CAPA
ÍNDICE EDITORIAL A vida é feita de conexões .................................................................................................................. 3 COMIDA - Um sanduíche com sabor de nostalgia .................................................................................4 EDUCAÇÃO - Próxima parada: Angola...................................................................................................7 HISTÓRIA - As máquinas do tempo.....................................................................................................10 ESTRADA - Verdadeiros motociclistas..................................................................................................12 MUSEU - Ninguém percebe mas o mundo não funciona sem botões. Todo mundo se abotoa! ...........14 MÚSICA - O ser humano muito além da música..................................................................................18 PERSONALIDADE - Uma gaijin em terras paranaenses.........................................................................22 LIBERDADE - O índio aventureiro........................................................................................................25 TEATRO - Miguel Esposito, o vigia amante do Teatro Guaíra................................................................28 ESPORTE - De Belfor Duarte a Couto Pereira: o monumental Alto da Glória ........................................30 PERSONALIDADE - Barbosa, o tratador de animais..............................................................................33
EXPEDIENTE
Revista Comuni
! Revista dos alunos de Jornalismo das Faculdades Integradas
do Brasil - UniBrasil. Rua Konrad Adenauer, 442 - Tarumã - 82821-020 - Curitiba/PR | Telefone 55 (41) 3361 4200 UniBrasil - Faculdades Integradas do Brasil Coordenadora do Curso: Prof{. Maura Martins Orientador: Prof. Rodolfo Stancki REDAÇÃO EDITOR CHEFE Guilherme Santos EQUIPE DE REPORTAGEM Amanda Toledo, Anne Louyse Araújo, Bárbara Beltrame, Emily Kravetz, Fernanda Brisky, Guilherme Santos, Jaqueline Lopes, Liriane Kampf, Marcio Taniguti e Noele Dornelles CAPA Amanda Toledo e Anne Louyse Araújo DIAGRAMAÇÃO FINAL Liriane Kampf
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EDITORIAL
A vida é feita de
conexões Guilherme Santos
Não há, com certeza, tema mais exaustivamente abordado na atualidade do que a conectividade entre as pessoas propiciada pelos recentes avanços tecnológicos. Através de nosos smarthphones, tablets e notebooks, permanecemos conectados ao mundo virtual por cada vez mais horas do dia. A edição especial da Revista Comunicaqui – Perfis, no entanto, visa mostrar que não é necessário nenhum acessório para estabelecer conexões. Mais que um simples currículo, os perfis aqui apresentados tem o objetivo de demonstrar como pessoas, lugares e até mesmo simples objetos tem o poder de estabelecer uma rede invisível de ligações entre os indivíduos. Mesmo sem perceber, são essas conexões que definem os rumos da nossa vida. Nos acompanhe neste passeio e descubra como cada pessoa que cruzamos na nossa vida é dotada de uma infinidade de histórias e curiosidades interessantes. Que cada local que visitamos guarda diferentes significados e preserva uma memória coletiva. É o caso da reportagem “Próxima parada: Angola”, pela
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qual percebemos como o idioma pode propiciar o intercâmbio entre diferentes culturas. É pela fala, meio mais tradicional de comunicação, que preconceitos são superados, amizades são estabelecidas e mesmo um estrangeiro pode acabar virando brasileiro. Descobrimos também a importância da conexão com o divino, que em “O Ser humano muito além da música” fica claramente exposta. Nesta detalhada reportagem, conhecemos a história de uma cantora que, por meio de seu dom, conseguiu realizar o sonho de ficar famosa quando ainda era criança, mas acabou largando tudo em busca de um sentido maior para a vida. Em “Um sanduíche com sabor de nostalgia”, visitamos uma antiga lanchonete que carrega a memória de diversas gerações de universitários curitibanos. O ambiente, que parece ter parado no tempo, transformou-se no refúgio daqueles que buscam conectar-se com o próprio passado. Conhecemos também um local de culto ao prazer de pilotar motocicletas. A reportagem “Verdadeiros Motociclistas”
apresenta um olhar de dentro de um grupo que, através desse hobby, estabeleceu laços entre os membros que os transformaram em uma verdadeira e grande família. Que as novas tecnologias facilitaram a maneira como nos comunicamos, não há dúvida. Mas que nunca nos esqueçamos que elas não substituirão, nunca, aquilo que há de mais importante: o contato humano. Boa leitura!
Em outras plataformas... Amanda Toledo A Revista Comunicaqui ganhou uma versão online. Pelo endereço www.comunicaqui. blogspot.com.br é possível ler notícias sobre nossas produções, além de ter acesso ao arquivo das revistas. A Comunicaqui foi criada em 2013 e é um produto laboratorial do curso de Jornalismo da UniBrasil.
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Foto: Guilherme Santos
COMIDA
Um sanduíche com sabor de nostalgia
O lanche que conquistou diversas gerações de universitários curitibanos e se tornou a marca de uma instituição centenária. Guilherme Santos Quem passa despretensiosamente pelo cruzamento da Rua Desembargador Westphalen com a Silva Jardim provavelmente notará com facilidade a presença do campus da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Os desavisados, porém, dificilmente fixarão o olhar na pequena lanchonete azul instalada na esquina oposta e que, há mais de três décadas, tem sua história intimamente ligada à instituição. O nome Montesquieu não condiz com a importância do local, que ganhou o gosto dos curitibanos pelo seu 4
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mais famoso lanche: o X-Montanha. Na inusitada receita, o tradicional hambúrguer é substituído por um bolinho de carne. Além dos ingredientes básicos: queijo, presunto, alface e tomate, o sanduíche ainda leva um pastel à milanesa na composição. O recheio é fruto de uma feliz oportunidade surgida após um período de desabastecimento de carne na década de 1980, sendo possível escolher entre queijo, carne ou palmito. Depois de pronto, fica fácil entender o nome de batismo dado pelos
frequentadores. A evolução da antiga Escola Técnica Federal do Paraná para Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná – o famoso CEFET – e a mais recente transformação em Universidade promoveram significativas mudanças no perfil dos alunos, a idenficiação com o X-Montanha, no entanto, permaneceu inabalada. Quem não conhece, pode pensar que o sucesso da lanchonete esteja ligado ao respeito à cartilha de estabelecimentos fast-food de sucesso, como dezembro 2013
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McDonalds, Burguer King e outros. Para a felicidade dos amantes da baixa gastronomia curitibana, isso é o oposto daquilo que a Montesquieu representa. As diferenças começam a ser percebidas logo na entrada. A disposição do ambiente foge da tradicional divisão por mesas e “obriga” todos os clientes a partilharem o mesmo espaço, num grande balcão em formato de “U”. A cada duas banquetas, daquelas antigas fixadas ao chão, estão bisnagas de catchup e mostarda, estrategicamente posicionadas para que ninguém fique sem molho. Apesar do capricho na limpeza, a gordura é perceptível no ar em cada uma das divisórias dos antigos azulejos de co-
Fachada do Montesquieu - mais de três décadas de funcionamento não foram suficientes para provocar grandes mudanças no loca.
zinha que dão o tom azul claro ao ambiente. Talvez as quatro caixas de óleo de garrafas de óleo de soja num dos cantos da lanchonete ajudem a explicar o
Álvaro Oda, o herdeiro do império do X-Montanha - fornecimento de sanduíches para os universitários está garantida por mais alguns anos. dezembro 2013
motivo. Para ser atendido, é preciso certa paciência, pois de fast o “X-Montanha” não tem nada. Os pedidos são anotados atenciosamente em guardanapos e levados pessoalmente a cozinha, que pode ser vista ao fundo, separada apenas por uma divisória de vidro. É nela, ao longe, que está a única televisão do local, daquelas pretas e pequenas de tubo. Depois de receber o tão aguardado pedido, é hora de escolher o acompanhamento. Apesar de estar presente entre as opções, a Coca Cola está longe de ser a mais pedida. Aqui o sucesso é a clássica Cini Framboesa, que sobrevive forte em sua garrafa de cerveja de 600 ml. Ao beber, o líquido praticamente se dissolve devido à quantidade de gás. Importante avisar: aqui a sua lista de cartões, vales, cheques e créditos virtuais não serão aceitos. O modo de pagamento resume-se ao velho e bom dinheiro em espécie. Mas não se preocupe, pois cada san
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duíche sairá apenas R$ 7,50, o que ainda lhe garante o posto de melhor custo-benefício das redondezas. Administrada desde a sua abertura pela família Ota, a lanchonete perdeu este ano um de seus mais importantes símbolos. Em março de 2013, Hiroyuki
Ota, ou apenas “Seu Zé”, morreu aos 85 anos, dos quais 35 dedicados à alimentação diária dos futuros engenheiros, técnicos e tecnólogos paranaenses. Além de criador da Montesquieu e idealizador dos sanduíches exclusivos do local, Seu Zé era a figura central do estabelecimen-
to, destacando-se apesar da serenidade típica dos orientais enquanto ficava sentado bem ao centro do grande balcão. A responsabilidade é agora dividida entre os três filhos da família Ota: Álvaro, responsável pelo atendimento, e as irmãs Geni e Emília, incansáveis na
Paisagem de quem come no X-Montanha, reforçando a conexão da lanchonete com a Universidade Federal do Paraná.
produção de uma média diária de 80 X-Montanhas. Em horários de pico, o atendimento é reforçado pelo filho de Álvaro. A presença da 3ª geração dos Ota é um indício de que muitas turmas de universitários ainda poderão saborear o clássico sanduíche. 6
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Mais que uma receita diferente, o X-Montanha representa, junto com a família Ota e todos os elementos que compõem a Montesquieu, um cenário cada vez mais raro em Curitiba. O local é um dos poucos que ainda mantém vivos os mesmos aspectos desde sua criação.
Essa característica talvez explique a constante presença de ex-alunos de diferentes épocas, que insistem em ocupar as velhas banquetas. Para eles, o principal recheio é a nostalgia.
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EDUCAÇÃO
Próxima parada:
Angola Uma passagem para a educação no Brasil e uma viagem pela vida de Zacarias Santos Anne Louyse Araújo
Uma conversa com um sotaque estranho chamou a minha atenção. Curiosa, segui para o último compartimento do ônibus tentando distinguir qual era aquele idioma. Chegando na “porta quatro”, enfim encontrei as vozes que tanto me instigaram. Dois homens jovens con-
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versavam em um idioma diferente que em meio ao tumulto do biarticulado, ainda não tinha conseguido identificar. Após alguns minutos da minha má educação ouvindo conversa, consegui decifrar: era português de Portugal, lusitano, dos bigodudos e difamados por aqui.
As estações tubo iam passando, e um impulso, que acredito que veio de Deus, surgiu. Foi com a coragem de um Caco Barcellos, que abordei o gringo e o convidei a uma entrevista. Influenciado pelos irmãos mais velhos, que estudaram aqui, que convenceu o jovem a
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morar em terras estrangeiras. Natural de Saurimo, cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, Zacarias Sambados Santos veio morar com o irmão no Brasil para estudar. Bolsista, é beneficiado por um acordo entre os governos brasileiro e angolano, que custeia e incentiva estudantes do país africano a realizarem formação acadêmica e superior no nosso país. Há três anos em Curitiba, já é especialista em Metodologia da Educação no Ensino Superior, e completa neste ano a pós-graduação em Gestão e Planejamento para Segurança Pública e Privada, e o curso de Gestão de Recursos Humanos. Evangélico e frequentador da Assembleia de Deus Pentecostal, só escuta louvor e música gospel, prestando a atenção no conteúdo da mensagem. Guiado pelo irmão mais velho, adaptou-se tranquilamente em Curitiba, onde encontrou compatriotas e também conheceu o “acolhedor jeitinho brasileiro de ser”. Como o arroz com feijão já era um velho conhecido, prato comum em países de língua portuguesa, o africano não sofreu para se acostumar com a comida. Apesar da assustadora imagem que tinha do Brasil - assaltos, prostituição, mulher pelada, bagunça, favela corrupção, - conhecia as referências acadêmicas do país, um dos prós que pesaram na decisão de estar por aqui até hoje. Logo após aterrissar em terras brasileiras, foi assaltado pela primeira e única vez em São Paulo. Os bandidos queriam levar a camisa Dolce e Gabanna e o relógio. Ele só con8
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seguiu salvar a camisa. Conseguir o visto de estudante foi uma das maiores dificuldades burocráticas que teve, apesar das fortes relações econômicas e politicas entre os dois países, e de ter um primo trabalhando no consulado paulista. A primeira vez que veio ao Brasil foi para prestar vestibular. Só após conseguir a declaração de aprovado, e de volta a Angola, é que começa o processo para se inscrever em programas de intercâmbio. Com o deficiente quadro de professores, o governo de lá incentiva os jovens a para quando voltarem, contribuírem ativamente na educação do país. “Jogar futebol, indiscutivelmente, passou a ser o meu hobbie”. Torcedor e fã da seleção canarinho, o futebol é uma das poucas coisas boas que sabia a respeito da nossa terra. Quando encontra tempo, passa horas chutando bola na grama sintética com os amigos e até montou um time com os angolanos que encontrou em Curitiba. Entre outras habilidades
está o mandarim, que aperfeiçoou quando foi a China e aumentou o número de relógios. Acredita fielmente que, em um futuro próximo, os cinco países de economia emergente que formam o BRICS (“Building Better Global Economic BRICs”) - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - dominarão a economia mundial. Também aposta em Dubai, paraíso fiscal que conheceu em uma viagem que fez com os irmãos para comprar os carros da família. Consumista assumido, ele passa grande parte do tempo das viagens escolhendo roupas, eletrônicos e acessórios. O passaporte já foi carimbado em outros países, como Namíbia, Paraguai, Argentina, Portugal, Itália e outros países da Europa. Africano de sotaque português, diz ter sofrido preconceito na pele poucas vezes. Conformado, acredita que o preconceito sempre existirá, devido à variedade de línguas, cores e culturas. Com um estilo nada tradicional, usa roupas das marcas Zara, Lacoste, Levis entre outras grifes internacionais.
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As cores vibrantes fazem parte do vestuário, que muitas vezes é mal compreendido - reclamou ser satirizado pelos amigos por usar um cinto rosa. Nas fotos do smartphone que comprou nos Emirados Árabes, aparece com ternos vermelhos, amarelos e azuis. Os relógios são a grande fixação, e só de marcas nacionais já adquiriu mais de dez para a coleção. “Economia, paixão maior”. Formado em economia, contou que uma das coisas que mais o marcaram foi a primeira vez que entrou em uma sala de aula como professor, aos 20 anos. Começou a lecionar economia e direito, e é na área da educação que pretende seguir
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carreira. Foi convidado como palestrante voluntário por vários colégios estaduais, para falar sobre temas ligados à África e gestão de conflitos. Junto com o amigo André da Silva, está terminando de escrever o primeiro livro, “Administração, Organização e Planejamento Estratégico”, que será publicado no próximo ano pela editora Junqueira e Marin. Empenhado com o projeto, o primeiro que reúne o conteúdo dos três temas em um só exemplar, ele confessou que perdeu uma namorada por passar tempo demais escrevendo. O foco do mercado é a Angola, devido ao déficit de materiais, mas também será lançado em livrarias brasileiras. Caçula e muito apegado
aos pais e aos oito irmãos, está sempre em contato com todos, seja por telefone, redes sociais ou viajando para a cidade natal. Apesar de bolsista, a maior parte de todos os custos é mantida pela família, que costuma vir ao Brasil para visitar ele e o irmão. Não sabe se a vocação para o estudo veio do incentivo do pai, que é Secretário Estadual do Comércio, ou dos irmãos, de quem fala com euforia que todos os irmãos já se formaram em cursos superiores. Convidado por duas universidades, Zacarias volta à África para dar aulas. Pretende avançar para o mestrado e um futuro doutorado, e ajudar a construir uma educação de qualidade em Angola.
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HISTÓRIA
As máquinas do tempo
Quem acha que a história da Rede só pode ser contada com dados históricos está enganado. Há muito mais por trás dos trens, trilhos e ferros. Liriane Kampf A extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) foi uma empresa estatal que administrou o transporte ferroviário desde 1957 a 2007, em todo o território nacional. Em meio século de existência, abrangeu as cinco regiões brasileiras e 19 unidades da federação. Em 1996, teve início a implantação de um processo gradual de privatização, passando a assumir diversos nomes em cada cidade, de acordo com o grupo econômico que assumia o comando. No Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, em 1997, a Rede deu lugar à Ferrovia Sul Atlântico, que, mais tarde, viria a ser o que conhecemos hoje como ALL (América Latina Logística). Mas a Rede não é só números. Aliás, ela é muito mais história do que números. Lauro que o diga. A família Silvério veio de União da Vitória para Curitiba em 1972. Agenor, pai de 8 filhos, era ferroviário. Fiscal de trem. “Ele trabalhava na Rede 10
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desde que me lembro”, conta Lauro. Em Curitiba, Lauro, já com 14 anos, entrou para a Escolinha da Rede (Centro de Formação Profissional Coronel Durival de Brito – inicialmente destinado a filhos de ferroviários). “A gente fazia o primeiro ano do segundo grau e, quem tirasse maior nota, podia escolher o curso profissionalizante. Escolhi Eletricidade. Tinha levado um choque em União da Vitória quando era criança. Eu tinha que perder o medo.” Estudava de manhã e ia para as aulas práticas à tarde. Em 1974, Lauro terminou o curso e estava pronto para ingressar na Rede. Mas não tinha vaga. “Disseram que chamariam logo, mas não chamaram.” Foi trabalhar em outras áreas. Em 1983 reencontra um antigo professor da Escolinha. “Ele disse que estavam me procurando e que ti-
nha vaga pra mim na Rede. Não pensei duas vezes.” Na época, a Rede já era uma economia mista, uma parceria entre iniciativa privada e Governo. Então, Lauro assinou carteira e iniciou a jornada que seria a mais marcante de sua vida. “Foram anos de trabalho intenso. Cruzar cobra direto. Atravessar a ponte São João a pé. Viaduto do Carvalho. Você está no túnel e, quando o trem vem vindo, você se encosta na parede e o trem passa a centímetros do seu rosto.” A emoção é visível. A nostalgia está quase palpável. O trabalho não era fácil. Plantões aos fins de semana. A esposa, que também trabalhava fora, e os filhos tinham de se acostumar à ausência. O que dezembro 2013
Foto: Liriane Kampf
era difícil. A do meio dormia cheirando a camiseta do pai. Mas não era qualquer camiseta. Era a camiseta da Rede. Uma azul celeste com aquele símbolo dos trilhos. O cheiro era um misto de perfume com ferro. E ela amava. Quando estava de sobreaviso e o bip apitava, Lauro ia pra Rede, se encontrava com seus colegas e iam para o meio do mato. “Tinhamos que atender os defeitos. Às vezes chovia muito. Andávamos no meio do mato, sem iluminação alguma, debaixo de chuva e rezando para Deus proteger, porque podíamos pisar em fios de alta tensão em qualquer lugar. Quando visualizávamos uma luz piscando lá longe, sabíamos o que tínhamos que fazer: resolver o defeito.” Depois, Lauro só avisava a Usina para que religassem a energia. Pronto! Luz em todo lugar. “Até hoje minha comida preferida é pão caseiro com margarina e café preto!” Quando voltavam para o vagão, e chegavam à Estação de Banhados, perto da região do Véu da Noiva, ganhavam uma refeição tamanho família dos ferroviários da região. “Era um pão caseiro enorme. Sem brincadeira. Era desse tamanho assim, ó!” Ele desenha na mesa o tamanho da fatia de pão. Mas, de repente, tudo apagava de novo. E lá iam os ferroviários resolver mais um defeito. “Geralmente, estávamos em três. Quando o trabalho era longo, a gente revezava. Enquanto dois trabalhavam, um dormia.” Com a privatização da Rede em 1997, ela se tornou dezembro 2013
Ferrovia Sul Atlântico. A economia passa a ter prioridade. “Os estrangeiros só querem saber de cuidar da linha do trem. Antes, os filhos daqueles ferroviários de Banhados, por exemplo, eram transportados pelos trens para suas escolas, nas cidades vizinhas. Depois da privatização, isso acabou.” Lauro, visivelmente triste, diz que o governo fez mal em abandonar as casas da região da linha férrea. Todo o patrimônio que tinha pelo caminho foi destruído. “Isso é o que mais machuca. Trabalhei tanto tempo, quando ia atender algum defeito, via as crianças no caminho, acenando para nós. Os funcionários que moravam nesta região faziam o trabalho pesado na via permanente e nem eram valorizados.” Lauro ficou na Rede de 20 de dezembro de 1983 até 3 de fevereiro de 1999, quando foi mandado embora por buscar seus direitos trabalhistas. “Um engenheiro novo lá queria mudar tudo: acabar com a ‘periculosidade’, mudar nosso esquema de plantão e de folgas. Não aceitamos.” Sobre a Rede, Lauro não se contém e demonstra a satis-
fação em ter feito parte desta história. “Conheci só gente boa lá. Conheci lugares maravilhosos. Vi a natureza. Sustentei minha família. Era um lugar ótimo para trabalhar.” Pausa. Pensa. “Acho que o Governo brasileiro perdeu de manter muitas famílias que dependiam do serviço. Passaram pros americanos, que simplesmente queriam os trilhos funcionando, sinalização e tudo mais. Mas o Governo esqueceu-se de todos os trajetos, do que tinha ao redor.” Cabisbaixo e imerso em seus pensamentos, Laura continua refletindo. “Em minha opinião, não sei se a privatização ajudou. Costumo escutar na Globo os jornais e programas falando sobre o patrimônio e tal... Essas casas foram abandonadas, o Ipiranga, a Casa dos Engenheiros, perto do Véu da Noiva... Tudo destruído... Só mato. E as empresas fazem propaganda para conhecer a Serra do Mar. Vai conhecer o que agora?” Lauro já saiu da Rede há 14 anos. Mas a Rede nunca vai sair do Lauro. Nem de seus amigos ou familiares. Esta repórter que vos fala é prova disso. Nunca vou esquecer o cheiro daquela camiseta.
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ESTRADA
VERDADEIROS MOTOCICLISTAS Motoclube Andarilhos da Noite realiza viagens por estradas do Brasil
Jaqueline Lopes
Jaqueline Lopes
O dia está amanhecendo, o som dos motores das motos e triciclos nas ruas próximas a Avenida Presidente Kennedy em Curitiba começa a aparecer. Motociclistas chegam com suas mulheres na garupa. Todos de preto com colete. No peito, o brasão, a bandeira do Brasil e a bandeira do Paraná. Nas costas, o mesmo brasão, mas com maior destaque. Assim começa a viagem dos Andarilhos da Noite. Quem se atrasa, precisa correr contra o tempo e encontrar os outros no caminho. Nunca ninguém ficou pra trás. Todos 12
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andam em fileira na estrada. Na hora de pagar o pedágio, o dinheiro de todos os integrantes é dado ao líder, responsável pelo pagamento. Enquanto isso, os outros passam e aguardam ele sair. O último dá um sinal e todos seguem viagem. Para onde? Isso é decidido em uma reunião entre os membros do motoclube, realizada mensalmente na última quinta-feira do mês, em que é obrigatório o comparecimento de todos. Se há convite para uma comemoração de outros motoclubes, lá vão eles. Todos são bem recebidos.
No mundo dos motociclistas, não existe rixa. Quando são convidados para um lançamento, eles recebem comida de graça. A preocupação fica por conta das acomodações para dormir, que cada um precisa arrumar. A maioria leva barracas e colchonetes em suas motos. Nos fins de semana é difícil ver um motociclista parado. Quando não há festas, eles inventam alguma coisa. Em um domingo em outubro, sem viagens agendadas, os membros do Andarilhos da Noite decidiram ir para Morretes, no litoral do Paraná, para um almoço. O dia a dia é normal para os andarilhos. Todos trabalham e têm suas famílias. O motoclube é um hobby, mas levado a sério. Isso vem do espírito aventureiro, que faz parte das vidas dos integrantes do grupo. Isso vem de anos, não só de quando se entra no clube. Cada integrante tem sua função no motoclube. Lenira Rocha é a caixa, além de ser a única mulher integrante com a própria moto. Ela controla o setor financeiro do grupo. Fica no caixa sempre que há festa e reuniões dos motociclistas. No caixa, vemos as fichas de cerveja, água, refrigerantes e dose. A amizade é grande entre eles. Todos são companheiros de viagem e se cumprimentam como irmãos. Na estrada, não é diferente. “Se você é andarilho e não ajuda um motociclista na estrada, não está seguindo a norma.” Isso é o que o presidente Nilton Betulino, conhecido entre eles pelo apelido de Manda Chuva, conta. Ele relata que, por diversas vezes, ajudou dezembro 2013
motociclistas na estrada, muitas vezes sem saber quem era a pessoa. Com isso em mente, chegou a abrigar um rapaz na própria casa. Às terças-feiras ocorre uma confraternização na sede do motoclube, que fica nas proximidades da Avenida Presidente Kennedy. A presença dos integrantes é quase integral, isso sem contar os visitantes de outros motoclubes. Nos motoclubes é comum o colete das mulheres ser diferente dos usados pelos homens. Isso não ocorre nos Andarilhos, pois os dois sexos usam o mesmo colete, no mesmo estilo. A diferença está na customização que cada um faz com o seu. É o caso dos brasões de outros grupos, chamados de petis, dos broches de motos, estrelas, guitarra e de frases como “Motoqueira é a puta que pariu”. Esses elementos dão um diferencial ao colete de cada integrante dos Andarilhos. A comida, que eles chamam de 0800, é de graça nos encontros. As mulheres prepa-
ram na cozinha, enquanto os homens cuidam de outras áreas. O que não pode faltar em um jantar de motociclistas é a carne, preparada em uma tenda montada na parte externa. Há espetinhos à vontade para as pessoas que estão participando. Na cozinha, o arroz e a salada complementam a janta. “Quando não dá tempo de comprar os alimentos para a comida, o jeito é um pão com linguiça”, conta Francis Bertulino, mulher do presidente do grupo. Ela e a japa Emi-a Sugisawa são as responsáveis pela compra dos alimentos e pela escolha do cardápio. As mulheres começam cedo. Às 20h são abertos os portões e começam os preparativos para janta. Enquanto esperam, comem espetinho e bebem o que mais agrada. O amarelo e preto predominam nas cores da sede. Frases nas paredes como “Andarilhos eternamente” e “Eternamente andarilhos” demostram a paixão pelo clube e pela estrada. Nas paredes, além das
frases, vemos quadros com vários adesivos dos motoclubes visitantes, que deixam o registro que passaram por ali, na forma de adesivos. No terreno lá fora, as motos são estacionadas em fileira. Isso mostra a organização dos membros. Em uma noite de confraternização não pode faltar o famoso rock and roll. Ao som dos ídolos do rock, a noite passa. De vez em quando, uma banda ou cantor aparece para dar mais variedade aos estilos musicais. O rock, porém, é o favorito. Do lado direito do bar é possível ver uma estante com vários troféus e lembranças dos lugares visitados. Todos são guardados e deixados à mostra para apreciação. Uma miniatura de uma moto laranja, que veio de Ponta Porã, chama a atenção pela beleza, e por parecer diferente das lembranças ganhas em visitas a outros motoclubes. São quase oito anos de história e de estrada. Em 2005, Elias da Silveira Neto e Tenente Assad resolveram montar um grupo de motociclistas. Após pesquisarem nomes, decidiram por Andarilhos da Noite. Em uma tarde de domingo, Neto foi para casa com suas netas, uma de dez anos e a outra de seis, desenhou o brasão, com uma caveira amarela à frente de um fundo preto. Todos gostaram, registraram o nome, e assim surgiu os Andarilhos da Noite.
Foto: Andarilhos da Noite
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MINIATURAS
Ninguém percebe, mas o mundo não funciona sem botões. Todo mundo se abotoa! Descrito e escrito por Leminski como um “significador de insignificâncias”, nosso personagem e alguém que funciona como um exercício de liberdade, humor e crítica Fernanda Brisky Já experimentou desligar o botão? Segundo Hélio Leites, o mundo não funciona sem eles. Formado em Economia, Hélio foi bancário por 25 anos. A necessidade de se expressar o levou a criar, em 1984, o Museu Casa do Botão, em Curitiba. Enquanto bancário, sua expressão se restringia a pintar quadros em acrílico. Com os botões, pôde levar não só os quadros, mas também o museu, os livros e a alegria para qualquer lugar. Comparado ao profeta Gentileza, personagem da vida carioca nas últimas décadas do século passado, nosso personagem trabalha com materiais reciclados, pois sempre se interessou por esse tipo de lixo, como ele mesmo diz. Quando tinha uns sete anos, olhava para um cabo de vassoura e pensava em uma sereia. Essa ideia foi o seu
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“Tudo tem botão, tudo pode ser um botão, todo mundo se abotoa. Agora, com as novas tecnologias, tudo liga e desliga em botões. A Terra é um grande botão. O umbigo, para os orientais, é um botão de conexão com o mundo externo. O botão surgiu no Egito antigo e ainda hoje está no peito das pessoas, perto delas, em todo lugar. E ninguém vê. E ainda dizem que os botões vão acabar, imagine. Nem que todo mundo usasse velcro”, trecho do livro Pequenas Grandezas - Miniaturas de Hélio Leites. primeiro trabalho para o museu. Hoje, seu foco são objetos como caixinhas de fósforo, botões, rolhas, latas, madeira e restos de material entalhado que, por suas mãos, transfor-
mam-se em personagens que contam histórias e chamam atenção de crianças e adultos. Determinado, perseverante e lutador. Essas palavras ajudam a descrever a intrigante
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personalidade de Leites. É dinâmico e versátil. Suas palavras transmitem paz e fazem refletir sobre tudo o que a vida oferece de bom e nem sempre percebemos. Para falarmos dele, não temos como separá-lo do museu. Lá, o artista expõe seus diversos trabalhos todo domingo na Feira do Largo da Ordem, na capital paranaense. Museu e vida, vida e museu Sabine Righetti é cientista, repórter e fã de Hélio Leites. Para ela, o museu está vivo porque ele e seu criador se misturam. “O museu é portátil, cabe em uma mala, vai aonde o artista for e entra em qualquer casa, ou qualquer outro museu. Com dezembro 2013
a obra, e suas cores e criações, é possível visitar sentimentos, conhecer literatura, discutir valores, educar e emocionar. Tudo por meio de objetos feitos a partir de lixo”, relatou em entrevista com o artista curitibano para a Revista Online Panorama. Certa vez, o cantor, compositor e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil escreveu que os museus – sejam grandes, pequenos e portáteis – precisam de personalidade. “O importante é que estejam vivos, que pulsem, consagrando o jogo de tradição”. Exatamente como o museu de Leites. Uma história para recordar A amizade de Renata Pallotini com Hélio é para vida
toda. Foi ela quem deu o nome ao museu. A teatróloga curitibana menciona que, como o museu não tem uma casa, ele leva a casa no nome. Qualidades foram definitivas e o poeta, segundo ela ,tem muitas qualidades. “O museu não tem sede, não tem goteira, não tem dinheiro. Ele viaja, ele se mistura, são dois em um, um em dois, não tem como falar de Hélio sem falar do museu e vice-versa”, recorda também em entrevista para Sabine Righetti na Revista Online Panorama. A função real do artista, que exerce múltiplas funções, é mostrar por meio de suas criações, que o mundo é pequeno, e que cada item do seu trabalho é simples, porém digno como qualquer outro considerado grande. “O artesanato é um treino para o meu diálogo com a humanidade. A banca da feira é meu palco, passa gente triste, feliz alegre. Gente de todo o jeito. E vejam bem a tristeza em certo ponto até que é boa, ela nos permite ver coisas que a alegria não deixa ver”, disse o artesão.
Memória histórica O sonho da casa própria, o discurso de Santo Antônio aos peixes. Uma história puxa a outra e a cada caixinha ele acrescenta um verso, uma observação inteligente, um jogo de palavras, uma piada. Tudo articulado, tudo caprichado. Usa o cabelo curto e mantém uma enorme franja grisalha, que
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também serve como elemento cênico. É elétrico, quer falar de tudo e sobre todos, quando encontra um amigo então, sente realizado. O escritor e jornalista Ernani Buchmann contou entusiasmado do ultimo dia em que encontrou Leites. “O cara é torcedor fanático do Paraná Clube e toda vez em que me encontra, chega elétrico e fala do projeto para exposição de suas ‘relíquias’ na sede do Paraná Clube. Ele tem várias miniaturas que fez do time e cada uma tem uma história diferente, um personagem diferente. Tem até a história da criação do time, versão Hélio Leites, que é demais”. Ernani compara Hélio a Lilliput, uma ilha onde o personagem principal se deparou com a população de pessoas minúsculas, com menos de seis polegadas
de altura, os chamadas lilliputeanos, que o tomaram por gigante. “O gigante Hélio e suas pequenas invenções, digam-se, gigantescas. Com miniaturas ele nos surpreende e conta historias geniais”, se diverte o escritor ao relembrar do amigo. Agatha Cristina Rocha, admiradora do artista-plástico, se emociona ao relembrar do escritor. Não esquece quando Hélio abriu a bolsa cheia de miniaturas e começou a contar a história de cada uma delas. “O intelectual para alguns e louco para a maioria, oferece seu trabalho e suas histórias a quem estiver interessado. Pouco importa quem ouve e como ouve. Você pode admirá-lo ou considerar diferente dos demais”, lembra. A proposta do artista e do Museu Casa do Botão é mos-
trar às pessoas o real sentido da vida, deixado de lado pela correria do dia a dia. Todo mundo se abotoa igual, mas não pensa da mesma forma, por isso é que cada um tem o seu próprio botão, no caso seus próprios pensamentos. Sem perceber que o mundo não funciona sem botões, todo mundo se abotoa querendo ou não. Uma coisa leva a outra. Nem sempre vivemos o presente com toda intensidade que ele merece. Nem sempre estamos atentos às nossas emoções e conexões diárias. Vivemos esperando a tal felicidade, sendo que muitas vezes ela já entrou em nossas casas e na nossa vida.
A nota de Lemisnki, o poeta pop Um belo dia, Lete, como Hélio era conhecido na época, visita Paulo Lemiski na sua casa e diz que foi visita-lo por dois motivos, ambos importantes: convencêlo a conhecer a causa botânica e pedir algum botão que o poeta pop não usasse mais. Chegou perguntando quantos botões o escritor tinha na roupa. De imediato, Paulo achou que Hélio era um mestre zen e escreveu o seguinte texto, publicado em 1986 para o Correio de Noticias. “Os desavisados e preconceituosos podem pensar que o inventor da Botânica não passa de um louco. Mas passa sim. Dos loucos, Lete, pessoa gentilíssima, só tem a doce obsessão de quem persegue uma idéia. Mas é a obsessão dos artistas ou dos cientistas, uma obsessão construtiva. Moderníssimo, fundindo gesto e performance com o emprego de material reles (perdão, meus botões!) e “mail-art”, Lete (e a Assintão) vai conduzindo uma das experiências criativas mais interessantes que tenho visto por aí, bem mais instigante e original que muitas vernissages de artes plásticas que não vão além do simples artesanato ou industrianato, em muitos casos. Para tanto, Lete e a Assintão estão recolhendo por toda a cidade, com um pequeno gravador, amostragens de assobios de todas as pessoas no sentido de construir a primeira Assobioteca da História. Ontem o botão. Hoje o assobio. Amanhã, o mundo. “mind Games”, diria John Lennon”. 16
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MÚSICA Foto: Emily Kravetz
O ser humano muito além da música “Se alguém me vê cantando e começa a se aproximar por causa disso, ele não vai se aproximar por quem eu sou. Por que a VOZ não sou eu. Eu (pausa) sou a Thais” Emily Kravetz Quando tinha apenas quatro anos, Thais lembra que o som da música a causava irritação. Principalmente quando tentava cantar junto, pois ela não conseguia produzir aquilo que escutava. “Até hoje eu não entendo muito bem o porquê
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isso acontecia”, recorda aos 25 anos. Onde tudo começou Aos oito anos de idade, a pequena garota saiu de Curitiba, onde vivia com a mãe, e foi morar com o pai em Balneário
Camboriú, Santa Catarina. Em setembro de 1998 ocorria o 1º Festival da Canção Estudantil do Estado, onde foram feitas seleções municipais e classificatórias. A garota de apenas nove anos, que estava no meio dessa competição, aguardava para saber quem seriam os finalistas. dezembro 2013
de casa com o pai. A medida em que a carreira era fortalecida, os relacionamentos ficavam cada vez mais superficiais. Volta e meia, a relação com outras crianças era interrompido.
Foto: Emily Kravetz
O novo, o ibope e o dinheiro
Enquanto observava as apresentações das outras concorrentes, começou a estipular em sua mente quais eram as melhores performances. Nessa seleção, ela não se enquadrava. “Então, a participante que eu achava que iria pegar o terceiro lugar não pegou! A que eu achava que ia ficar em segundo ficou em terceiro. Uma das competidoras que pensei: ‘Nossa essa é a top. Essa é a que venceu e pegou o segundo lugar’. Pensei que nem o terceiro lugar eu ganharia, não é?”, conta aos risos ao lembrar que estava chorando naquele momento. A cantora ficou em baixo do palco, envergonhada e triste, porque já se considerava derrotada. Mas, quando menos esperava chamaram seu nome e, de tão distraída, mal percebeu o anúncio “Thais Pina em primeiro lugar”. Por ser pequena, foi levantada e colocada no palco. Este foi um dos momentos mais emocionantes da carreira musical, ao contrário do que muitos acreditam quando imaginam dezembro 2013
ser a televisão. A música que rendeu o prêmio de primeiro lugar para artista foi “New York, New York”, de Frank Sinatra. Com uma voz marcante, madura e potente, quem escolheu o primeiro repertório foi o pai, que esteve à frente de seu trabalho até os 14 anos. Thais nunca viu a carreira musical como algo pessoal, mas sempre como profissional. Pela interpretação e voz, sua inspiração era Whitney Houston. Buscava praticar as mesmas coisas que admirava na cantora. Marisa Monte e Elis Regina eram as referências de música popular brasileira que a impulsionavam, dando ritmo e inspiração ao trabalho. No fim dos anos 90, ela era alvo de disputa entre emissoras de televisão. Mudou-se para São Paulo em março de 1999, onde passou a estudar e participar de programas de televisão a nível nacional. Nessa ocasião, ter uma casa e amigos era algo que estava fora de cogitação. Pelo menos uma vez por ano ela mudava
Depois de Sandy e Junior, não haviam crianças cantando com uma voz diferenciada na televisão. A busca pelo novo lançou uma disputa entre a Rede de Globo e Rede Record para contratar os trabalhos da jovem. Durante seis meses, Thais Pina comandou o programa de televisão “Da Hora”, transmitido pela Rede Record. No ano seguinte, foi convidada pela Rede Globo de Televisão para fazer abertura e o fechamento do “Criança Esperança 2000”. O convite se repetiu nos anos de 2001 e 2006. A musicista gravou o primeiro CD pelo selo BMG Ariola e participou de uma homenagem a Roberto Carlos no domingão do Faustão. Foi foi apontada pela crítica como a maior revelação artística dos últimos tempos. Recebeu indicação ao Prêmio Multishow de Música Popular Brasileira como 3ª colocada na categoria Revelação, em 2000.
“Thaís tem uma interpretação única e gosta de músicas de notas difíceis, com uma extensão vocal incrível”
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Depois de seis meses de trabalho, o contrato foi interrompido com a Rede Record. O produtor executivo Elvis Patez, que acompanhava o trabalho de da cantora por meio de um amigo em comum, o empresário do cantor Fábio Junior na época, Aldo Ghetto, fechou um contrato com o pai da garota. Foram três anos de uma parceria que buscava aprimorar e explorar mais a imagem da artista. Patez era responsável por arrumar uma gravadora e colocá-la em parceria com diversos artistas. “Thais tinha uma interpretação única e gostava de músicas de notas difíceis, com uma extensão vocal incrível. Sua interpretação de Elis Regina e Whitney Houston eram o ponto auge das apresentações dela”, disse ele à reportagem. Por trás da fama Neste universo era normal que as pessoas se aproximassem da adolescente, por sua voz e reconhecimento. Mas não era aquilo que ela buscava. Ao estar do outro lado das câmeras, foi descobrindo uma realidade que a levou a amaduFoto: Reprodução
Foto: Reprodução
Thais e a cantora Gil, na época em que apresentava programa na Record
recer precocemente. Construir uma imagem que não a representava, atender as expectativas dos outros, por meio de roupas e frases, transformou tudo aquilo que, para muitos, era glamoroso, em uma escravidão. “Não existe esse negócio de produto quando você lida com o ser humano. E é isso que a televisão tem colocado e as pessoas têm perdido: os seus valores. Elas têm se vendido para ser algo que não existe”. Contemplada com uma bolsa de estudos em um colégio particular, passou por algumas situações difíceis. Algumas crianças que acompanhavam o trabalho dela na televisão, a p e rs e g u i a com frequência dentro do colégio de famílias ricas. Seja por inveja ou por qualquer outro motivo que ela não con-
segue explicar. Certa vez, uma criança a derrubou de propósito da escada. “Eu não me importava com nada, mas os outros se importavam com a imagem. Eu não estava lá porque eu queria, mas eles queriam e não estavam. Eu sofria com isso, mas ao mesmo tempo eu aprendi o que o ser humano é capaz de fazer com outro”. A decisão Com um repertório variado com canções em português, inglês, espanhol e italiano, a agenda se mantinha cheia. Apesar e brincar de Barbie e boneca, as músicas que cantava eram sobre relacionamentos amorosos, não representavam os pensamentos e sentimentos da cantora. O poder, status, imagem e o dinheiro eram as recompensas que o mundo da fama oferecia. Apesar de cantar muito bem, aquilo não era um sonho de Thais, pois era apenas uma criança. “Então, o que me afastou foi perceber que aquilo não condizia com o que eu era e o que eu gostaria de ser.
Thais homenageia Roberto Carlos no Domingão do Faustão 20
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Foto: Arquivo pessoal
Em companhia dos amigos, Thais [centro] esteve em uma Conferência Nacional Cristã, em MG, em 2011.
Eu sempre quis me sentir bem, sem precisar da aprovação das pessoas. Viver dentro das mentiras e das disputas, nunca me fez bem. E a primeira oportunidade que eu tive eu me agarrei e sai fora.” Novos significados Depois da decisão de se afastar da mídia e do mundo musical, Thais conta que ficou muitos anos sem cantar. Há cinco anos, repleta de questionamentos sobre a sua existência, sobre o propósito de tudo que viveu, ela encontrou um novo significado para vida. Buscando compor suas próprias músicas, começava a questionar a Deus o porquê não tinha ideias para preencher as melodias. Quando começou a ouvir a voz Dele, as palavras, as frases e as letras musicais foram surgindo com uma fonte de vida. Aos poucos, dezembro 2013
o relacionamento com as outras pessoas foi melhorado. “Então, hoje, olhando pra trás, eu entendi que pulei etapas. Aprendi porque Deus me ensinou um relacionamento. Ele me amou, por isso eu posso amar. Ele me perdoou, por isso posso perdoar. Ele me curou, por isso eu posso mostrar a fonte da cura’’. Novos relacionamentos Enfermeira por formação e cantora por vocação, Marelisia Dias de Souza conheceu a história da jovem Thais por terem amigos em comum. As duas começaram a se aproximar devido aos encontros no estúdio de música que tinha como objetivo estudar a bíblia. Uma amizade um tanto quanto fraternal, se cultivava todas as sextas-feiras. Aproximadamente 12 pessoas se encontravam e, antes de co-
meçar a gravação, todos se reuniam para estudar a bíblia e dividir experiências. ‘’Eu me lembro das perguntas que ela fazia. Ela tinha muita curiosidade de se aprofundar na palavra’’. Ambas não carregam placa de igreja nem um método pronto e fechado para adorar a Deus, mas entendem que uma vida espiritual é um processo de ressignificação. Mari explica que percebeu algo em Thaís que nem todos possuem, a unção para cantar. Para Mari, Thaís é uma menina alegre. Tem uma risada que todos reconhecem. Tem uma sensibilidade grande. “E hoje, eu a olho não como aquela que foi uma cantora mirim, mas como uma mulher de Deus, com um coração segundo a vontade Dele”. Quando olha seu passado, Thais consegue entender um propósito em tudo.
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PERSONALIDADE
Uma gaijin em terras paranaenses A centenária japonesa que já trouxe mais de 60 crianças ao mundo, acredita que o contato com a vida prolongou seus anos na Terra Marcio Taniguti Comecei a entender a personalidade de Haguie quando já constava com seus mais de 85. A princípio, duas coisas já me espantaram: primeiro sua lucidez, haja vista a avançada idade, e sua energia. “Batchan” (avó em japonês) como a chamam minha família e os mais conhecidos, nasceu em 15/03/1911, em Kumamoto, na época, uma pro-
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víncia muito pobre no Japão. Lá viveu e estudou até os dezesseis anos. Filha de pequenos agricultores, o casal Zentaro Nakashima e Rissa Nakashima, ela sempre viu a beleza nas coisas simplórias da vida. Seu lazer favorito era o jogo de palitinho, o qual sempre instigou os convidados de sua casa a lhe acompanharem. Exímia jogadora,
quase imbatível, fraquejava por vezes devido sua avançada idade, porém – sem o perdão pelos seus cabelos embranquecidos – fingia a surdez na hora de cantar o número se o seu adversário estivesse vencendo. 1: Canta!! – Dizia Batchan; 2: Dois!! – Falava o convidado: 1: Ahhh...falou um....não escutei... – Levando a mão direi-
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ta ao ouvido e colhendo os palitos por debaixo da mês: 2: Dois!! Repetia o empertigado: 1 Ahhh Ummmm.... – Falava Batchan com voz arrastada. Com esse ar já tão brasileiro foi que Haguie, no inicio do século, com seus pais e três irmãos mais novos, fez do Brasil seu lar. Partiram do Porto Marítimo de Kobe, no navio a vapor Wakasa Maru, que era de onde partiam a grande maioria dos navios transportando os imigrantes japoneses, para uma viajem que durariam sofridos 63 dias. Foi nessa mesma embarcação que Batchan completou seus 17 anos, no dia 15/03/1928, portanto. Dizem que foi na quarentena do alojamento que aprendeu o palitinho e desde então se tornou praticamente invicta. Haguie nunca cansou de dizer o quanto se encantou com o Brasil, por suas terras sem fronteiras, cobertas por densas matas, habitat de variadas espécies de vida animal, fauna e flora sem igual. A ”terra em que se plantando tudo dá” recebeu, acolheu e se tornou para os imigrantes a segunda Pátria Mãe, mas nunca deixou de sentir saudezembro 2013
dades da sua terra Natal. Sempre nos meses de outubro, comentava com seus amigos que no Japão caía neve, imitando com suas mãos trêmulas o caminho que os flocos faziam até o chão. Tudo branco no Japa, né?! – Dizia Haguie saudosista. Era possível entender seu encanto pela neve, já que sua família se instalou, inicialmente, no município de Avanhandava, e posteriormente migraram
por outros municípios, todos no interior do estado de São Paulo, que tem temperaturas bem mais elevadas que o Japão. Dá pra se entender como Haguie se manteve sempre tão firme e altiva, seus pais logo que chegaram ao Brasil, juntaram suas economias e adquiriram terras para cultivar pequenas quantidades de café, algodão, amendoim, tomate, cebola, entre outras.
Foi uma época difícil que os imigrantes passaram por várias dificuldades, devido a adaptação com o povo brasileiro, em especial pela falta de conhecimento da língua portuguesa. Nesses tempos, Haguie se divertia quando os colonos se reuniam para festejos e comemorações de datas especiais que faziam parte da cultura japonesa, e que foram sendo trazidas aos poucos, por vários anos desde o início da imigração, por vários grupos de imigrantes, que assim formavam e fundavam associações e clubes exclusivamente frequentados pelos japoneses que, até então, eram muito fechados à sociedade brasileira. Haguie não estudou aqui no Brasil sendo, portando, não a l fa b e t i z a d a em língua portuguesa, mas aprendeu a falar, mesmo que com forte sotaque, muito bem o nosso idioma. Ainda aos dezessete anos, casou-se com Gunta Taniguti, que também era filho de agricultores imigrantes, e tiveram nove filhos, todos criados com o duro trabalho na lavra da terra, pois, além de seus afazeres de doméstica, auxiliava seu marido na “roça”. Tempos difíceis foram também os anos entre 1939 a
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1945, período em que ocorreu a Segunda Guerra Mundial. Por serem imigrantes de origem japonesa, e mesmo com toda a documentação legalizando a presença e a permanência no Brasil, Haguie Taniguti e sua família, assim como outras tantas, foram tiranizadas, humilhadas e até aprisionadas pelo exercito e pela policia brasileira, quando encontradas reunidas em pequenos grupos e conversando no idioma japonês. Trabalhou como comerciante por um curto período no final dos anos 1950 e na agricultura até meados dos anos 1980. Durante sua permanência na zona rural, desempenhou, também com muita dedicação, o papel de parteira, que foi um aprendizado que obteve ainda em sua terra natal, quando acompanhava e auxiliava sua mãe. Haguie realizou dezenas
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de partos atendendo principalmente mulheres de agricultores muito carentes de recursos financeiros, sem jamais ter cobrado qualquer quantia por esses trabalhos, os quais eram realizados na própria residência da paciente. Inclusive, foi nessa época que Batchan aprendeu a montar, pois o deslocamento até esses domicílios tiveram que ser realizado em lombo de cavalos, burros ou, quando com mais sorte, em carroças, charretes e raramente em precários carros. Mulher de fibra, muitas vezes de madrugada, enfrentando fortes chuvas, se deslocou para tais residências a fim de fiel servir seu papel de ajudar ao próximo, sem pesar o próprio esforço e cansaço. Como reconhecimento e gratidão suas pacientes sempre lhe prendava com galinhas, ovos e, às vezes, com filhotes suínos, bovinos,
caprinos e outros pequenos animais. Haguie tinha forte paixão por pescarias, assim como seu marido e todos os seus filhos. Batchan também tinha uma adoração e um profundo conhecimento em matemática, o que mantém até hoje, mesmo tento completado seus cento e dois anos de idade. Tem que se destacar, ainda, o que há de mais valioso na vida de Haguie, que é sua perfeita saúde, onde não se nota nem mesmo um pequeno sintoma de gripe, não faz uso de nenhum medicamento, não tem dores físicas e não necessita de dieta alimentar. Viúva desde 1979 vive hoje com seus filhos, ficando por um tempo sob cuidados de cada filho, e pelo que se vê é que ainda teremos a quem admirar por muito tempo nesta vida.
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LIBERDADE
O ÍNDIO AVENTUREIRO Já pensou em viajar 100 quilômetros de bike? O paranaense Índio garante que 400 quilômetros são “fichinha”. Com a fiel e magrela escudeira ao lado, nosso personagem compartilha experiências hilárias com a Comunicaqui Anali Modesto
Movimentos ágeis e mais de cinco décadas de experiência. Com o cigarro entre os dedos, as pernas cruzadas e cabelos raspados com apenas um rabo de cavalo chinês e fortes traços indígenas. O Índio, como gosta de ser chamado, prende a atenção de quem escuta suas histórias inusitadas. Fascinado por artes marciais, se tornou um mestre em Kung Ful apenas assistindo aos filmes de seu ídolo, Bruce Lee. Não veio de berço lustradezembro 2013
do, mas de uma família de classe média e bem estruturada. Mesmo assim, o espírito aventureiro prevaleceu. Sua primeira viagem foi aos 14 anos para o Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa, Índio conheceu pessoas e aprendeu a amar o samba. Para quem gosta de ouvir, o paranaense força o sotaque carioca, e começa a cantar Mulheres do Martinho da Vila que, segundo ele, é uma identificação da sua vida amorosa:
Já tive mulheres de todas as cores De várias idades de muitos amores Com umas até certo tempo fiquei Pra outras apenas um pouco me dei Já tive mulheres do tipo atrevida Do tipo acanhada do tipo vivida Casada carente, solteira feliz Já tive donzela e até meretriz Mulheres cabeça e desequilibradas Mulheres confusas de guerra e de paz Mas nenhuma delas me fez tão feliz Como você me faz...
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No Rio foi onde ele percebeu que não tinha nada melhor que “ser livre”. O próximo destino foi para a terra da garoa, São Paulo. Na época, as peripécias do rapaz nem sempre eram mar de rosas. Chegou um momento em que ele se viu sem dinheiro, sem moradia, com uma suspeita de úlcera e sozinho na gigante metrópole. Foi aí que ele resolveu tomar uma atitude. - Meu irmão é bem diferente de mim. Foi para os Estados Unidos e se tornou piloto de avião. Então, resolvi pedir dinheiro para ele. Comprei uma bicicleta. As economias enviadas pelo irmão Rui virou vendaval na mão do Índio. No entanto, ele precisava voltar para a cidade natal, Curitiba. - Olhei para minha bicicleta e pensei: vou virar atleta! Um bom atleta se alimenta bem. Então, com o restante do dinheiro, ele comprou um jabá traseiro, uma espiriteira e um pacote de polenta. Mais tarde, Índio descobriria que estes itens não seriam suficientes para suportar 400 quilômetros de chão pedalando. Como tudo, há necessidade de adquirir experiência. Pensando assim, o frio e o desconforto não foram obstáculos para que, no período de sete dias, chegasse ao seu destino. Com um movimento brusco, ao relatar essa etapa, Índio se levanta do sofá em que estava sentado e disse: e aí, eu gostei da ideia! Alguns meses depois, fez outra viagem. Em seguida, outra e sempre com a companhei26
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ra fiel, a bicicleta, todos esses anos. As cobertas no bagageiro da magrela, um colchonete, o jabá e a polenta na medida certa para não sentir fome em nenhum momento e muita água. Ah, um litro de vinho também o acompanhava, para bebericar no momento de preparar o almoço ou janta, na beira da estrada, cuja única luz que iluminava o mato em sua volta era a do lampião. Para dormir, os postos de gasolina e o encontro com pessoas solidárias eram os principais alvos. Apesar das dificuldades, ele nunca precisou dormir ao relento, pois conseguia um local com cobertura. E assim seguia viagem. A cada 10 quilômetros, uma parada para se alimentar ou descansar. Por dia, a meta era pedalar 80 quilômetros e chegar a São Paulo em cinco dias. Sem pressa, essas pausas eram divertidas para Índio. Enquanto mexia consecutivamente a polenta, ao lado, uma caixa de papelão 40 por 40 dentro da espiriteira, com uma panela que, ao fogo improvisado, cozinhava lentamente os pedaços de carne seca. Sem regras, a alimentação podia ser às 2h ou às 14h. As panelas e roupas eram lavadas em postos de gasolina. Algumas vezes, o vento provocado pela velocidade das pedaladas, era o que secava as roupas de Índio, que as vestia molhadas para se manter limpo. - Era uma delícia! Na busca incessante em explorar novidades, decidiu experimentar novas sensações. A droga foi uma delas. Experimentou alguns tipos até chegar ao crack. Com o vício, as viagens
já não eram um hobby, mas sim uma fuga. Quando Índio estava na estrada, não usava drogas. E por isso, passou a aumentar a frequência de idas e voltas de Curitiba a São Paulo. Nunca vendeu coisas pessoais para saciar o vício. O dinheiro usado era fruto de suas revendas de produtos que ele adquiria na famosa Rua 25 de Março em São Paulo. Quando conseguia parar, a recaída dava “gargalhada”. E começava a agir como mentecapto, segundo ele. Permanecia sem drogas no período de viagem, mas qualquer fúria era suficiente para voltar a usar. “Eu pensava: Meus Deus, vou virar mendigo. O que vou fazer da minha vida?” E então, o colchonete, espiriteira, polenta, jabá e o vinho entrava em ação novamente. Uma nova viagem era planejada. Quando essas recaídas ocorriam, o aventureiro rezava um terço para confortar a ansiedade e o fato de não poder estar, por causa do vício, no conforto de sua casa. - Não tenho medo da escuridão da estrada. Nem da velocidade dos carros e caminhões, ‘tirando fininha’. Piloto minha bicicleta com o queixo encostado no ombro direito. Assim eu vejo na frente e atrás. Faça um teste! Muitas vezes, na estrada ele ouvia: “Quer morrer, véio.” Mas isso não o incomodava nem um pouco. Com confiança em Deus, nada o amedrontava. Ele afirma que é um homem literalmente amparado pelo divino Espírito Santo de Deus. “Nunca sofri acidentes na estrada. Caso isso viesse a acontecer, seria IML (Instituo Médico Legal) didezembro 2013
reto”, diz ele. Nessas idas e vindas, Índio presenciou histórias. Um dia, estava em um bairro denominado Cracolandia, devido à quantidade de usuários de crack, na região central de São Paulo, e avistou um homem com um binóculo, aparentemente caro e um carro de alto padrão. Nesse momento Índio se perguntou: “que esse cidadão de bem faz por aqui?”. Em poucos instantes, o homem trocou o binóculo por uma pedra de crack. Depois o relógio, em seguida o par de sapatos de marca, e em algumas horas ele estava em uma situação pior que a de Índio que jamais vendera algo pessoal para se drogar. Então percebeu que todos ali, estavam no mesmo barco. Branco, negro, pobre, rico, com mansão ou com um barraco de madeira caindo aos pedaços, todos eram iguais quando estavam na cracolândia. Até uma criança de oito anos, que começou a inalar a fumaça do crack ainda na barriga de sua genitora, era igual ao Índio naquele lugar. No fim do túnel, o viciado em crack, achou uma solução. Resolveu se internar. Com o apoio da mãe, ele ficou durante três meses em uma casa de recuperação em Curitiba. Ele afirma ter sido o local que mais se sentiu bem em quase seis décadas de vida. - Toda manhã, os homens se reuniam em volta de uma mesa, para orar a Deus e agradecer por tudo que tinham conquistado até ali. A oração precisava ser criativa e em voz alta. Mas a única coisa que sabia rezar, era o terço, mais nada. dezembro 2013
Tinha vergonha por não saber agradecer. Foi aí que lembrei de uma canção que dizia assim: “Um novo dia nascerá O sol irá brilhar E a esperança de viver voltará...” E a cada frase eu falava em bom tom, em forma de oração: “Obrigado meu senhor, pelo novo dia que nascerá... (pausa para recapitular a próxima frase da música) O sol que o senhor fará brilhar, vai fazer as esperanças de viver, voltar...” Quando terminava, ele era aplaudido pelos demais, e estufava o peito de orgulho por isso. E assim conquistou o espaço na comunidade. Quando ele resolveu por conta própria, sair de lá, achando que estava recuperado, sua aparência era outra. As bochechas já não estavam sugadas, os ossos não estavam aparecendo e a auto-estima estava em alta. E com a consciência de que qualquer deslize seria fatal. Certo dia, ele estava em casa, ansioso, inquieto, andando de um lado para o outro em resistência às drogas, e momentaneamente, ficou sem energia elétrica. E isso fez com que o desespero aumentasse. Repentinamente, mesmo sem luz, o pequeno rádio começou funcionar. A transmissão era de muitas pessoas orando. Olhou para a TV desligada e viu a imagem de Maria, mãe de Deus. Assustado, foi até a janela tomar um ar. Foi aí que índio viu Jesus passar, acompanhado de anjos. Seria alucinação? Ele garante que não. - Jesus parou e sorriu
para mim. Um belo sorriso de paz. Pensei que estava ficando louco, mas não, não era loucura. Eu estava realmente presenciando tudo aquilo. E depois disso, Índio viu Jesus, que vestia roupas claras, seguir em frente. Naquele momento, ele tinha mais certeza de que o filho de Deus o acompanhava sempre. Para ele, aquilo foi um conforto, um aviso. Ele contou essa história, apenas para uma pessoa, e diz ter sido a maior burrada. Virou motivo de piada. Sem credibilidade, foi zombado e humilhado por ter relatado o que tinha visto. Com água nos olhos, ele diz ter se libertado por contar mais uma vez a experiência que viveu. - Eu me emociono e sempre vou me emocionar. Porque eu vi Jesus, sim! Não me importo se vocês vão acreditar, rir ou chorar. O que importa é que eu vi Jesus e ele sorriu para mim. Hoje, Índio, que não quis nos revelar o nome completo, se chama Rubens, está com 58 anos de muitas histórias e com uma disposição para viver centenas, ainda. Autor de frases incomparáveis e de movimentos invejáveis. Ele conta com entonação na voz aguda que, além de ser amparado por Deus tem sangue de Crocodilo. Pois assim como ele, nunca viu um crocodilo ficar doente. Com exceção da úlcera, que nunca se curou e a experiência do uso de drogas.
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TEATRO
Miguel Esposito, o vigia amante do Teatro Guaíra “Recebi uma praga da Virgínea Lane, que dizia: ‘Esposito, você vai morrer nesse teatro’. Tô aqui até hoje” Bárbara Beltrame Em 1964, Miguel Esposito, que estudava no Colégio República do Uruguai, foi convidado pela diretora para fazer uma apresentação de dança no recém-inaugurado Teatro Guaíra, que tinha apenas o auditório Salvador de Ferrante, o Guairinha, funcionando. Segundo a diretora, o jovem tinha jeito para a coisa. Apesar de os pais não aceitarem muito, Esposito se encantara pelo local. Aos 16 anos, entrou para o corpo técnico do Guaíra como aprendiz. Em 1963, foi criado o projeto Teatro de Comédia do Paraná, que tinha o objetivo de orientar e coordenar as atividades teatrais do Guaíra. Com isso, Esposito começou a viajar com a equipe da instituição. Naquela época, ele era um jovem que ainda precisava estudar. Por isso, eles tinham a “lei do circo”, que funcionava da seguinte forma: toda vez que eles paravam em uma cidade, uma equipe do governo estadual entrava em contato com a prefeitura local, que fornecia todo o material de ensino para eles. Foi assim que o funcionário mais antigo do Guaíra terminou seu Ensino Fundamental. A faculdade que Espósito se formou foi o Teatro Guaíra. Funcionário há mais de 40 anos, co28
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conversar e contar algumas histórias. Depois, pega sua planilha para ver quais visitas estão agendadas. Família
nhece cada pessoa e cada parte do teatro. Mesmo quando trabalhava como técnico de produção, ele engrenou nos cursos teatrais, iniciando sua carreira como ator. Apesar de ter interpretado alguns papéis, decidiu se dedicar ao teatro atrás dos palcos. Aproveitava o tempo livre para estudar a arte. Para isso, teve bons professores e colegas, que descreve como “as coqueluches da época”, como Nicette Bruno, Paulo Goulart, Cláudio Corrêa e Castro e Lala Schneider, entre outros. Os primeiros anos de Esposito no Guaíra foram duros. A ditadura militar tomava conta do país e o governo tinha controle de tudo. Eles interferiam nos cenários, figurinos e textos - dizendo o que poderia ou não ser dito no meio da peça. O vigia lembra, com detalhes, de vários momentos de tensões do período. Ele conta de Murilo Quindezembro 2013
tana, ator que trabalhava no elenco de Teatro de Comédia do Paraná, se apaixonou por uma atriz. Ela descobriu que ele era espião do governo e o colocou contra a parede, fazendo-o escolher entre a farda e o amor. Outro momento marcante foi o incêndio que aconteceu no Auditório Bento Munhoz da Rocha Neto – o Guairão – quando estava prestes a ser inaugurado. Nunca se soube ao certo qual o foi motivo do incidente, mas, para Esposito, foi vandalismo da ditadura. Além das várias histórias que guarda com muito carinho na memória, ele tem relíquias do teatro, como fotos, documentos e objetos. Grande parte dessas coisas foi doada ao Museu do Guaíra, no qual hoje ele trabalha como guia. Todo dia, Esposito chega às 9 horas e distribui os jornais em todos os departamentos. Cumprimenta todos pelo nome, e, às vezes, faz uma parada para
“Da soleira da porta para dentro ele é meu marido, da soleira para fora ele é de todo mundo”, diz a mulher de Esposito, Virgínia, ao descreve-lo. Ela também é apaixonada pela arte e, por isso, não se incomoda com a dedicação dele pelo teatro. Esse é o segundo casamento de Esposito, no qual teve uma filha, Marina, que trabalha com artes plásticas. No seu primeiro casamento foi pai de Ricardo, que depois de alguns anos conseguiu integrar também a família Guaíra. Certo dia, Esposito era entrevistado por um telejornal e Ricardo o observava da porta. “Sabe quem é ele?”, perguntou o filho a uma mulher. Ela fez que não e, cheio de orgulho, o jovem respondeu: “Ele é meu pai”. Sempre que Esposito fala da família uma alegria surge no rosto. Facilmente, ele se emociona contando as conquistas de seus filhos. Mesmo assim, é fácil perceber que o teatro é seu primeiro amor.
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ESPORTE
De Belfort Duarte a Couto Pereira: o monumental Alto da Glória Das conquistas aos mistérios, um passeio pelo primeiro grande estádio da capital paranaense o Major Antônio Couto Pereira
reprodução/internet
Noele Dornelles
Estádio Major Antônio Couto Pereira lá no Alto da Glória
Em 1928, o então presidente Antônio Couto Pereira foi atrás de um terreno com acesso fácil a torcida para a construção de um estádio para o Coritiba, o Coxa. O time comprou um terreno de 35 mil metros quadrados que hoje é sua sede, na Rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da Glória. Em 1932 surgiu o então Estádio Belfort Duarte, cujo nome foi dado como homenagem ao zagueiro do América do Rio, jogador mais leal 30
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de toda a história do futebol brasileiro. O jogo de estreia do estádio foi contra o América por 4 a 2, vencido pela equipe paranaense. Em 1977, o Coritiba, depois de fazer uma reforma no estádio para que pudesse receber mais de 55 mil pessoas, resolveu homenagear um grande presidente do clube. Com isso, o Belfort Duarte se passa a chamar Major Antônio Couto Pereira – local que eu e outros
torcedores chamamos de Alto da Glória. No dia 5 de Agosto de 1980, o estádio recebeu a presença do Papa João Paulo II, que o abençoou. Na ocasião, o espaço impressionou o pontífice, que pediu ao motorista para dar a volta completa no estádio, o que não estava previsto no protocolo. Mas quem é que iria desobedece-lo? O torcedor aposentado Pedro Vasconcellos, 70 anos, dezembro 2013
lembra que ouviu falar que tinha mais de 70 mil pessoas no Couto para ver o Papa. “Um recorde e tanto. Não acha menina? E nem era um jogo de futebol”, diz ele à jovem jornalista que escreve esta matéria (eu!). Grandes feitos O maior recorde de público no Couto Pereira em partida de futebol aconteceu em um jogo do rival Atlético Paranaense contra o Flamengo em 1983. O público total foi de mais de 65 mil pessoas. Um dos momentos mais importantes vividos pela torcida alviverde dentro do Couto Pereira foi a comemoração do título de 1985 conquistado dentro do Maracanã no Rio de Janeiro, quando o Coxa ganhou pela primeira vez o Campeonato Brasileiro. Pedro, assim como meu pai, estava lá e me conta que foi incrível pela primeira vez pular o fosso e invadir o gramado. “Na época, pense menina, a cidade parou para ver o time desembarcar no aeroporto. No Couto, tinha milhões de pessoas. Vi meu ídolo, Rafael Cammarota, de perto.” Vemos que tivemos grandes alegrias, mas como o torcedor João Lima, 63 anos, me disse ao ser entrevistado na arquibancada do estádio: “Menina, não ganhamos nenhum título aqui dentro. Sempre levamos os maiores títulos longe do nosso estádio. Sabe por quê? Simples, os maiores títulos têm que ser conquistados longe da nossa casa para comemorarmos aqui”.
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Mais do que 100 anos de Glória são 81 anos de Belfort Duarte
Segredos Os mistérios do Couto são guardados a sete chaves como diz o guia que faz o tour pelo estádio Rafael Augusto. Esses segredos podem ser de jogadores da base, que tem um alojamento em baixo do gramado em que permanecem em dias de jogos da categoria. Segundo eles, as cabines televisões serem mal assombradas. Essas histórias são usadas para assustar os jogadores mais novos. Shows Você acha que só a bola rolou no gramado do Couto? Que nada. Em 1984 teve show
do Menudo, que levou uma multidão no estádio. Em 1996, tivemos a presença do festival “Monsters of Rock”, que contou com a participação do Iron Maiden, Motorhead e Raimundos, entre outros. História Mas não foi só de emoção que o Alto da Glória viveu. No fim de 2009, o Coritiba estava a ponto de cair mais uma vez para a segunda divisão do campeonato. Com isso, após um empate em 1 a 1 com o Fluminense, a torcida se revoltou e invadiu o campo. “Aquilo não era mais o
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tória de levantamentos de troféus por meio de fotos, que os jogadores podem ver para honrar a camisa que vestem. Eu não poderia fazer essas conversas com os meus entrevistados sem perguntar a eles se lembram do que tinha no Couto antigamente. As respostas foram bem diferentes do que o esperado. João lembra-se dos churrascos que aconteciam no estacionamento do estádio. Para Pedro, o que ficou marcado foi a panificadora que servia pão com bife. No lugar dela, hoje há a Coritiba Store, loja oficial do Coritiba dentro do Couto Pereira.
Ao fim do meu papo com os meus entrevistados, fiquei com uma dúvida. Será que um dia terei a oportunidade de conhecer o alojamento que fica em baixo do gramado para ver os fantasmas? Ou isso é apenas uma lenda? Foto: Liriane Kampf
estádio de futebol, era um campo de guerra, menina. Ninguém sabia o que fazer. Se corria, a polícia vinha com tudo. Parecia a época de ditadura”, conta o aposentado João Lima. A pior consequência desse ato foi a suspensão dos jogos do Coritiba no estádio. A punição de 32 jogos acabou para o campeonato brasileiro do ano. Assim, ainda tivemos a oportunidade de jogar o paranaense daquele ano no Couto. “Passar em frente ao estádio num sábado e ver que não havia ninguém era o suficiente como punição”, comenta Pedro Vasconcellos. Grandes ídolos subiram esse túnel para entrar em campo.Hoje, o caminho conta a his-
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PERSONALIDADE
Barbosa, o tratador de animais Com um sorriso no rosto e alegria que contagia, Barbosa enfrenta os mais temíveis animais selvagens todos os dias, mas tem medo mesmo é do gavião.
Amanda Toledo Que existem nesse mundo funções diferentes e trabalhosas, todo mundo sabe. Porém, o que ninguém sabe é que existem pessoas que tornam esses desafios uma maneira de lidar com as dificuldades da vida e ainda contribuir para um mundo melhor. Mas do que e de quem estamos falando? João Barbosa de Souza, FILHO, como faz questão de ressaltar. Ou apedezembro 2013
nas, Barbosa, como é conhecido o tratador de animais do famoso Passeio Público de Curitiba. Com um jeito simples e único de ser, Barbosa, sorridente enquanto limpava o serpentário, me recebeu em uma segunda-feira [dia em que o parque não abre] tipicamente curitibana, com direito a calor, garoa, tempestade e todas as estações possíveis.
Nascido em Lucélia, São Paulo, terminou apenas o primário, hoje ensino fundamental, enquanto conciliava, desde os sete anos, os estudos com o trabalho na lavoura. Quando tinha 35, o cunhado de Barbosa, que trabalhava na Prefeitura, disse que havia uma vaga em Curitiba. Era a chance de ele largar a agricultura. Então, foi convidado a
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trabalhar na área de limpeza dos parques. Arrumou as malas e veio com esposa e os filhos para a capital paranaense. O agora tratador afirma que só sairá do cargo aposentado, exceto se, em suas próprias palavras, “o pai lá de cima não resolver me levar antes”. Hoje, com 47 anos de casado e prestes a completar bodas de ouro, gosta de aproveitar seus momentos livres fora de casa. Quando sobra um dinheiro, prefere ir à praia, apesar da esposa não aprovar muito a ideia. Apreciador do bom e ve-
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lho sertanejo, afirma que não gosta das músicas “de jovem” e que não tem frescura, come de tudo mesmo, só não, couve-flor e veneno. Barbosa ama o que faz. Seu amor pelos animais vem da inocência que percebe neles, qualidade que para ele o ser humano não tem. Mesmo assim não odeia ninguém, tem coração bom. Segundo os seus amigos, até os animais o olham com ternura. Os mais engraçadinhos chegam até a chamá-lo de patrimônio de Curitiba. A rotina de trabalho can-
sativa e a função árdua não são problemas para o servidor. Amigo de todos os funcionários, que abrem sorrisos ao vê-lo passar, a única coisa que o incomoda são as fofocas, que acaba escutando por ser um bom ouvinte. Não consegue citar apenas um fato marcante em sua vida, pois fica entre dois. O primeiro foi o acidente de caminhão que sofreu. Estava na carroceria e um vento forte o levou junto com a lona para o chão. Mesmo assim nem uma “ponta de dedo” ficou ferida. Soube então que Deus existe. O outro acontecimento foi quando entrou na jaula de um leão. Nela aprendeu o respeito que devia ter com os animais, pois quando ultrapassou o limite seguro, o felino o viu como presa. Preocupado com a segurança dos animais, gostaria que as visitas fossem guiadas ou que houvessem instruções para que os animais não fossem agredidos. Porém, para ele, os eventos de divulgação e incentivo desses passeios devem ser prioridade para a capital. Seu olhar mostra saudade ao lembrar da comemoração dos 300 anos do Passeio Público em 1993, onde ele, ainda “da limpeza”, conheceu o prefeito Requião e ajudou a plantar o carvalho que está até hoje lá.
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Pai, avô e bisavô zeloso, possui três filhos, seis netos e três bisnetos. “É mais fácil acostumar com menos dinheiro, do que com mais. Com menos, quando vem mais a gente sabe que subiu o salário”, diz o tratador dando risadas. Da vida não pede mais nada, a sorte grande já foi lhe dada quando conseguiu o emprego atual. Com simpatia e alegria contagiante, o protetor, que enfrenta os mais temíveis animais, tem medo mesmo somente de um: o gavião. Uma vez, conta ele, ao entrar no viveiro, derrubou o rato que seria o almoço do pássaro, se abaixou para pegar e no mesmo instante o gavião tentou lhe furar o olho direito. Jorrou sangue, mas não foi nada grave. Mesmo assim, hoje não entra mais sozinho e sua companhia fica envolta do bicho para que ele não escape. Grisalho aos 67 anos, Barbosa mostra a maturidade de quem já viveu uma vida inteira sem deixar de lado as brincadeiras e palhaçadas de um jovem garoto. Quem o conhece sabe que com ele não tem tempo ruim, já foi chefe um dia, mas não gostou de ficar de braços cruzados. Barbosa é do tipo que ama o que faz e a recompensa é o respeito dos animais e amigos.
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