Lembrador
Hist贸rias de vida dos moradores do Recanto do Tarum茫
EQUIPE TÉCNICA Coordenação editorial: Maura Oliveira Martins Edição e revisão: Maura Oliveira Martins Fotos: Paulo de Siqueira Capa, projeto gráfico e diagramação: Paulo de Siqueira Reportagens e textos: Camila Babeto, Julmara Mendes, Indiara Cordeiro, Nelci Guimarães e Paulo de Siqueira.
Introdução
O projeto deste livro reportagem surge de um sonho acalentado pelos nossos vizinhos. Na metade de 2014, soubemos que os moradores do lar Recanto do Tarumã, instituição próxima à UniBrasil, sonhavam em um dia registrar suas histórias de vida. Surge então a proposta de Lembrador – Histórias de vida dos moradores do Recanto do Tarumã, livro que busca trazer à público as narrativas destes senhores que generosamente compartilharam suas trajetórias aos jovens repórteres do curso de Jornalismo da UniBrasil, ainda em processo de formação. Assim, em uma tarde de junho, uma visita a esta casa habitada exclusivamente por homens marca o primeiro encontro entre estudantes e perfilados. Sentados em círculo, todos se apresentam, contam brevemente suas experiências e acenam às possibilidades narrativas que enriqueceriam posteriormente este projeto. Ao primei-
ro encontro, um primeiro impacto: diferente do que se imagina, esta casa foge do estereótipo pejorativamente consolidado do “asilo”, do local que recebe os que não têm para onde ir, os que foram abandonados, os que secretamente sonham em estar fora daqui. Na fala destes senhores, o apreço ao Recanto do Tarumã revela que, para muitos, aqui é um local em que vivem felizes – quiçá o melhor lugar em que já estiveram. Nas suas histórias, surge um retrato de uma Curitiba por vezes acolhedora aos estrangeiros ansiosos por melhores condições de vida; por outras, um lugar inóspito que abraça os sonhos frustrados dos que chegam. Alguns dos senhores, com humildade, acreditam que sua história é curta e que pouco têm a contar. Este engano seria desvendado posteriormente pelos nossos repórteres, aos quais todos revelariam vidas repletas de riqueza e sentido — seja nas aventuras quase ficcionais, seja na sabedoria expressa na simplicidade. As visitas ao Recanto foram momentos de aprendizado a todos. Aos estudantes, uma oportunidade de adquirir um conhecimento essencial ao bom jornalista: a rara arte da escuta desprendida de um cumprimento de uma pauta fechada; de colocar-se por inteiro à disposição daquele que narra, que respeitar o sentido proposto à sua vida enquanto fala. Algo que, ainda que possa parecer óbvio, é por vezes esquecido pelo profissional da lida diária, acostumado a buscar na fala da fonte a declaração que precisa, a informação que falta para o fechamento do texto. Assim, os participantes deste projeto puderam, acima de tudo, exercitar a verdadeira escuta do outro, o deixar-se surpreender pela maneira pela qual se significa por meio das palavras e dos fatos escolhidos. Se “a memória é um cabedal infinito
do qual só registramos um fragmento”, como escreveu Eclea Bosi, aos repórteres coube, sobretudo, respeitar os retalhos pinçados por nossos perfilados para a constituição de uma intrincada trama que, para eles, faz jus às suas vidas até o momento presente. Aos senhores participantes, talvez a gratificação se revele na honestidade que permeou todas as etapas do projeto, e que foi a linha mestra a conduzir os textos produzidos pelos repórteres. Preservar a dignidade da narrativa escutada, eis o desafio oferecido — e cumprido — aos jovens jornalistas que se dispuseram entrar por inteiro nesta empreitada, e que agora oferecem aos leitores as ilustres trajetórias destes senhores que ilustram a história do Recanto de Tarumã e, por consequência, ajudam a escrever a história de Curitiba.
Maura Oliveira Martins Professora e coordenadora do curso de Jornalismo da UniBrasil Coordenadora do projeto
Carandiru e o Alfaiate Poeta Por Paulo de Siqueira
Aquele foi o último dia do menino Maurício no emprego de entregador. Ele não pedalaria mais com sua bicicleta Merk Suisse vermelha pelas ruas de Juiz de fora, Minas Gerais, para levar aos clientes da alfaiataria Souza ternos, paletós, calças e coletes. Conduzia a bike com a mão direita; com a esquerda, levantada ao alto, segurava as encomendas, que jamais deixou cair. Era eficiente. E essa eficiência fez com que o dono do negócio, seu Luiz Brandão, o convidasse para aprender a profissão de alfaiate. Brandão deu um retalho de pano para o garoto de 17 anos e lhe ensinou os primeiros pontos da alta costura. — Ponto de alinhavado, ponto cruzado, diagonal, em cruz, de casear... Faz isso e depois a gente aprende outra coisa. O garoto aprendeu também a fazer bolso e a riscar o tecido
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com o giz águia — o giz dos alfaiates, que é triangular e de cor creme. Depois de desenhar o terno no tecido e cortar, era só bater no pano que o pó do águia desaparecia, não deixava marcas. Assimilou ainda a costura em linha reta, em ziguezague, o arremate e a costura invisível. Maurício se dedicou muito e fez tudo direitinho, como o patrão havia ensinado. Com o tempo, costurou calça, colete e paletó. Tornou-se um alfaiate de mão cheia. Aos vinte anos, seu salário era de profissional. Cobrava por peça que fazia e ganhava muito dinheiro. Mas costurar em pano não era seu único dom. Nas horas vagas sabia, e muito bem, costurar as palavras. Foi com elas que encantou a menina Rosa Maria. Ó Deusa em que tanto me inspiro Que guia todos os meus passos No meu último suspiro Eu quero estar em teus braços. Na campa eu que eu repousar, Eu quero que fique transcrito O teu nome para eu honrar como um maior manuscrito. Meus versos lá estarão, chamando bem a atenção Dos corações em agonia. E no dia de finados Entre as flores dos confinados o teu nome, Rosa Maria. A moça, assim como o poeta alfaiate, também era do bairro São Vicente, e quando ouviu as frases dedicadas a ela chorou, amou,
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depois noivaram e casaram. Um professor, cunhado de Rosa Maria, entendeu o talento do alfaiate que costurava as palavras e convidou-o a continuar os estudos. — Maurício, eu vou abrir uma classe de madureza ginasial. Você não quer participar? Eu nem vou te cobrar nada. — É mesmo? Eu vou sim. Madureza ginasial era como se chamava o científico da época, equivalente ao ensino médio de hoje. Porém, na semana em que o garoto iria prestar as provas finais do curso, algo inusitado aconteceu. Luiz Brandão, o dono da alfaiataria Souza — que era um sujeito viciado em jogo e toda a semana apostava no bolão local —, convidou o Alfaiate Poeta para acompanhá-lo à lotérica e fazer a fezinha de sempre. O prêmio estava acumulado, quem ganhasse iria tirar a sorte grande. — Maurício, aposta aí. Vai que você ganha. — Será? Eu não tenho dinheiro. — Aposta aí que eu banco. Se você ganhar, paga a bebida. O poeta alfaiate apostou e ganhou 280 milhões de cruzeiros. Comemorou com seus colegas de trabalho, pagou bebida e riram muito, muito mesmo, a ponto de Maurício esquecer o exame final. Reprovou na prova de madureza. Porém, agora ele tinha dinheiro e o ginásio não importava mais. Iria montar a própria alfaiataria. Da época de aulas ficou somente o dom da palavra. Formou-se um poeta sem diploma. Cada detalhe de sua vida, e os da vida alheia, ele colo-
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cava em versos. Logo que casou com Rosa Maria, decidiu que iria viver em São Paulo, a maior cidade do país. Nem bem terminou a festa de núpcias, embarcaram para Sampa. — Amor, acho melhor você arrumar um serviço com carteira assinada. Assim você terá uma maior segurança, férias, décimo terceiro, fundo de garantia e tudo mais. Acho melhor para nós — disse Rosa. Mas ninguém lhe dava emprego, porque ele não tinha experiência comprovada em carteira — só a de alfaiate e costurar tecidos, que ele não mais queria. Todos os dias saía em busca de trabalho e o que conseguia era sempre não. Certa vez, quando passava em frente à penitenciária Carandiru, leu na placa pregada no muro alto que ali havia vagas. “Vou tentar a sorte aqui”, pensou. Foi direto ao escritório daquele que foi o complexo penitenciário mais famoso do país, e falou com um policial que ali estava. — Você tem alguma experiência de guarda? — Não tenho. É que eu sempre trabalhei por minha conta. Mas pode ver minha documentação, ela é boa. Sei ler, escrever e tudo mais. Faço até poesias. O policial pensou, pensou e depois falou. — Vou te dar uma chance. Você será monitor. Porém, te oriento que não ajude e nem fale com os presos. Seja no que for! Você começa amanhã. Pode ser?
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— Pode. No dia seguinte, bem cedo, o poeta alfaiate foi para o seu primeiro dia de trabalho no Carandiru. Chegou e o levaram direto para o vestiário. Ele tinha que tirar as roupas e colocar o uniforme de monitor. Recebeu um bloco e uma caneta e o conduziram ao seu posto. Para chegar lá, tinha que passar por doze portões de ferro. Cada portão tinha um guarda e uma chave. Cada chave era diferente uma da outra. Se um preso quisesse fugir, precisaria ter todas elas. O corredor era mal iluminado. Nas laterais, ficavam as celas. À frente, de tantos em tantos metros, os portões enfileirados. O posto onde Maurício seria monitor ficava entre o décimo primeiro e o décimo segundo, e depois deste, havia o pátio onde os presos tomavam sol. Aquela pesada grade feita com grossas barras de ferro era a única coisa que separava o poeta dos detentos. Ele via aquelas pessoas andarem pelo pátio, com suas calças e camisões azuis, botinas e meias pretas. Vestiam também bonés azuis. Neles, assim como no bolso dos camisões, estava escrito um número que identificava cada um dos prisioneiros. Ali eles não eram mais Joões, Pedros, Josés — eram números. A caneta e bloco eram para o monitor anotar o número-nome do preso que cometia algum delito. Ele nunca anotou porque sabia que se o fizesse, ali, dentro do Carandiru, acabaria morto. Quando estava no trabalho, o alfaiate poeta, em silêncio, andava de lá para cá. Às vezes se escorava em algum lugar do corredor, depois caminhava mais um pouco. Olhava os presos perambulando no pátio e conversando entre si. Via as grades, o teto, as paredes, o portão de entrada e os outros portões que o separavam da rua. De ser alfaiate e poeta.
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Ali ele não conseguia mais costurar as palavras. Parecia que aquele corredor mal iluminado tinha colocado um feitiço em sua mente. Algo bloqueava sua alma de poeta. De vez em quando, algum detento lhe perguntava alguma coisa, mas Maurício guardava silêncio. — Ô guarda — eles o chamavam de guarda —, ajuda a gente. Nós tamo fazendo uma conta, mas não sabemo fazer. Quanto nós três vamo ter de dinheiro quando sairmos daqui? Ele vai sair em dois anos, ele em três e eu em quatro. Nós vamo cruzar lá fora e vamo reunir esse dinheiro pra comprá metralhadora, revólve e assaltá o Banco Nacional. Faz a conta aí, guarda? — Ah, eu não posso fazer conta para vocês. E eu também não sei fazer conta. Só tenho o quarto ano do primário. Uma mentirinha de sobrevivência — segundo palavras do próprio Maurício, ditas durante uma das tantas entrevistas com ele realizadas durante a reconstrução de sua história: “Eu mentia para eles, para não me complicar”. — Então empresta a caneta? — Eu não posso emprestar a caneta para você. Você sabe que eu não posso fazer isso. Se o outro guarda me vê fazer isso e resolve me caguetar, eu perco o emprego, eu sou mandado embora. Você sabe que quem trabalha aqui não pode nem conversar com vocês. Na época, os presos do Carandiru ganhavam uma bolsa reclusão que era de 50 cruzeiros por mês, mas não recebiam. O dinheiro ficava depositado em uma conta. Se o detento tivesse família, ela podia usá-lo. Àqueles que não tinham, o valor era guardado para quando saíssem da prisão. Era algo com o que se manter até conse-
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guir um trabalho. A ideia era ajudar os presos-números em uma nova e possível vida, incentivá-los a não cometer crimes por necessidade. Mas sair alguém do Carandiru disposto a mudar de vida era algo que raramente acontecia. O normal era que os detentos voltassem para o complexo. E isso, muitas vezes, porque eles queriam. Maurício, em sua solidão e pensamentos, suspeitava o porquê daquilo. — Olha, só ia para o Carandiru quem era condenado a mais de 40 anos de cadeia. Eu trabalhava lá das sete da manhã até às três da tarde. E o que me lembro é da comida. Era coisa boa. Não pense que eles comiam farinha ou sopa, não. Se a comida não fosse boa, eles botavam fogo naquilo. E ainda te faziam de refém. Acho que muitos voltavam pelo que tinham lá. Saíam hoje e voltavam amanhã — conta o ex-monitor. — Tinha um pastel que jamais vi outro igual aqui fora. Era de um palmo de largura e de comprimento. Era quadrado. Não era pastel de vento não, era socado de carne com cebola. Certo dia, o alfaiate poeta contou para sua esposa sobre o pastel que os presos comiam: ela quis conhecer. — Traz um para eu ver. — Não posso. Não pode sair com nada de lá. — Ah, dá um jeito. — Não tem jeito, não. Eu tenho que passar pelo vestiário, trocar de roupa e não pode sair com nada de lá. Não pode sair com um embrulho na mão. — Dá um jeito, põe na barriga. Só para eu ver. Ele teve que levar o pastel para a esposa. Colocou-o dentro de
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um saco plástico e o enfiou dentro das calças, colado na barriga. Em seus pensamentos, Maurício torcia para que a comida sempre fosse boa, porque se não poderia haver uma rebelião e ele seria refém. Quando em vez, ele via algum detento no pátio mostrar um estilete para os companheiros de cadeia. Não sabia de onde vinha aquilo, mas tinha medo e andava sempre desconfiado. Com o tempo, o poeta foi ficando triste, tenso e nervoso. Quando escutava as histórias dos presos, aquele estado emocional piorava. Mais ainda quando escutava os policiais torturando algum recém-chegado. — Conta, seu desgraçado covarde. Conta! Certa vez, os carrascos colocaram um rapaz sentado em uma cadeira de ferro e algemaram seus pés e mãos. Com uma torquês arrancaram, um a um, os dentes do detento que urrava de dor. Era sangue para todo o lado e, quanto mais o rapaz gritava, mais o torturavam. “Sabe o que aquele cara tinha feito? Ele estava perto de uma escola, sentado no meio fio descascando uma laranja, quando viu uma garota de uns doze anos tomar um caminho pelo meio do mato para ir ao colégio. Ele foi atrás, agarrou a menina e a quis violentar. Como o órgão sexual dele era muito grande e não entrava no da menina, aquele homem, que era feio pra burro, apanhou a faca que descascava a laranja e abriu a vagina da garota, para o pênis entrar. Depois de fazer o que quis, estrangulou a coitadinha para ela não contar. Acontece que todo o mal nesse mundo é descoberto, não tem jeito. Uma senhora que passava por ali e viu-o sair do mato,
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desconfiou. Depois que ele se afastou, ela entrou para averiguar. Se deparou com a menina morta e toda ensanguentada. É claro que ela denunciou para a polícia”. Maurício, que antes escrevia versos, agora aprendia gírias dos prisioneiros do Carandiru. Braço agora era asa, perna era caneta, mão era puã e bolso, porão. Não tinha mais o sono dos poetas, mas pesadelos que o torturavam. Sua cabeça não via mais a beleza das coisas: enxergava dor, malandragem, sofrimento e tensão. Em certo dia estava, mais a esposa, deitado na cama. Ela bordava e ele cabeceava, escutando o rádio de pilha que estava em cima da cômoda. De repente, levantou-se e, em silêncio, saiu do quarto. Não disse uma palavra. Só caminhou. Rosa achou que o marido tinha ido ao banheiro, mas como demorava em voltar, foi ver o que tinha acontecido. Olhou e não encontrou nada. Percebeu que a porta da cozinha estava aberta. Através dela, viu o portão da casa, que também estava aberto. Correu até lá e enxergou o marido caminhando sem rumo pela rua, só de cueca. Como se fosse um sonâmbulo. Naquele exato momento, um carro polícia parou para prender Maurício, por estar andando na rua quase pelado. Quando os policiais o abordaram, Rosa Maria se aproximou correndo, esbaforida: — Esse aí é meu marido. — Mas o que está acontecendo com ele? Por que ele está só de cueca? — Pois é... Ele estava lá, deitado comigo e, de repente, levantou e saiu caminhando.
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O guarda perguntava coisas para o homem quase nu, mas ele não respondia. Só ficava em silêncio mirando o horizonte. — Senhora, seu marido trabalha onde? — Na penitenciária Carandiru. Os documentos dele estão lá em casa. Eu moro ali. — Acho que ele está com algum problema na cabeça. Vamos ter que levar pro hospital. O alfaiate poeta ficou 28 dias internado no hospital psiquiátrico do Jabaquara, em São Paulo. Rosa ia visitá-lo diariamente. Assim que o marido recebeu alta, ela perguntou: — Você vai voltar a trabalhar naquele lugar? — Lá eu não trabalho mais. Vou voltar a ser alfaiate. — Tá certo. Dois anos depois, Rosa quis voltar para a sua terra natal, Minas Gerais. Ali, na capital paulista, se sentia sozinha. Não tinha amigas, não conhecia ninguém além do seu esposo, que trabalhava muito e tinha pouco tempo para ela. — Amor, em Juiz de Fora minha mãe tem casa pra nós. Não precisamos nem pagar aluguel. A gente pode ter uma vida muito melhor do que aqui. Aqui você tem que levantar cinco horas da manhã pra trabalhar. Sai às seis do serviço e chega às nove em casa. É loucura isso. Eles foram. Instalaram-se em uma casa e Maurício arranjou novo emprego em alfaiataria. À noite, quando voltava do trabalho,
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cumprimentava as mulheres da vizinhança que esperavam seus maridos nos portões. Rosa colocou na cabeça que o marido estava tendo um caso com uma delas e quis ir embora dali. Alugaram então outra morada, no bairro Ipiranga. Rosa engravidou e o Alfaiate começou a estudar novamente — queria ser advogado, aprender as leis. Mas Rosa, ciumenta que era, essa não tinha juízo. Quando Maurício ia para o cursinho, Rosa o seguia com o filho recém-nascido nos braços. Queria ver se o marido saía com alguma moça. Em certa noite, o alfaiate olhou pela janela da sala, meio entediado com o assunto que o professor explicava, e viu uma mulher escondida atrás de uma árvore em frente à escola. Parecia Rosa, usava um vestido também parecido com o que ele mesmo tinha dado a ela, e carregava um bebê em seus braços. Ele fixou os olhos na mulher e viu que era mesmo Rosa. “O que Rosa está fazendo ali?” — pensou. Mas deixou por isso. Não deu muita bola. No outro dia, olhou de novo e ela novamente estava lá. No terceiro dia, olhou outra vez, e Rosa ainda estava ali — parecia que esperava algo. No quarto dia, pediu licença ao professor e foi falar com a esposa atocaiada. — Rosa, o que você está fazendo? Se você toma uma chuva e molha esse menino, ele fica doente. — Eu vim ver se você estava de namorada. — Vamos embora agora! Quando eles chegaram em casa, Maurício tomou um café, fumou um cigarro, ligou a televisão e ficou olhando para ela. Não disse nada e depois foi dormir. Reinava o absoluto silêncio. Naquele dia, o poeta alfaiate ficou sabendo que a esposa se
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escondia atrás da árvore e, quando via que ele estava sozinho, corria de táxi para casa. Como o marido, por economia, sempre voltava de ônibus, sobrava tempo para Rosa colocar um pijama e fingir que estava esperando Maurício com comida pronta e tudo. Na manhã seguinte ao flagrante, durante o café da manhã, ele olhou para ela e disse: — Rosa, não vai dar pra vivermos juntos. Você é uma mulher bonita pra diabo, eu gosto de você, mas não tem confiança em mim e sem confiança não tem jeito. — É verdade isso? — É verdade. — E o Alexandre? — O Alexandre, você vai cuidar. Um filho precisa mais da mãe do que do pai. Rosa chorou. Chorou, soluçou e tentou se cortar com uma gilete no banheiro. Maurício deu chute na porta para tirar a esposa de lá. Avisou a sogra, que não estranhou o comportamento espinhoso da filha. Entregou a Rosa. E meses após a separação, ela se casou com um motorista de táxi. Maurício tomou outros rumos: além de aprender a beber, passou a usar drogas. Pensava que elas poderiam fazer esquecer o grande amor de sua vida, a menina a quem os versos ele tinha dedicado, Rosa, a mulher que, apesar de tudo, ele ainda amava. — Ô Marrom, toma aqui um dinheiro e busca cinquenta gramas de Cannabis pra mim — Marrom era um novo amigo do poeta alfaiate. Quando Marrom voltou, estava sem dinheiro e sem a droga. Foi logo contando uma história.
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— Você não sabe o que aconteceu. Tive que fugir da polícia, me joguei no bueiro para escapar. Quase que os guardas me pegaram. Fiquei sem o dinheiro e sem a erva. — Tá querendo passar conversa, hein, malandro? Você gastou o meu dinheiro em coca, e vem aqui querer me enganar. Você cheirou o meu dinheiro. Eu não aceito essas paradas, não. Vagabundo não aceita essas ideias, não. — O quê? Você quer me encarar? — reagiu Marrom, ensaiando uns passos de luta marcial. O ex-marido de Rosa, que passou a carregar punhal na cintura depois da separação, enfiou sem pestanejar a lâmina daquela arma até o cabo na barriga de Marrom. A vítima gritou, caiu e o Alfaiate fugiu. Andou meio sem rumo e foi parar numa praça no centro da cidade de Juiz de Fora. Quis ir ali para beber cachaça. Entre os goles, brotava em sua mente a imagem de Marrom gritando, caindo e o sangue jorrando. Naquela época, os mais próximos, os amigos de bebida, chamavam o alfaiate poeta de Cigano, por que ele tinha mandado trocar todos os dentes brancos da boca, aqueles que vêm de nascença, por outros de ouro. — Ô Cigano, você ainda tá por aqui? Você não sabe que a polícia tá te procurando? Foram hoje duas vezes lá no albergue te procurar. Cara, o Marrom morreu! Vá embora daqui! — a casa do alfaiate poeta agora era um albergue. O Cigano, mais que depressa, fugiu para São Paulo. E de lá para Curitiba. “Você tá perdendo tempo aqui em São Paulo. Você tem que
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ir para Curitiba. Lá sim que é bom. Lá você tem tudo, nem precisa trabalhar. Lá tem lugar para você comer, dormir e beber de graça. Você ganha roupa também. Você ganha tudo lá. Você pode andar à toa o dia inteiro e ainda tem gente que dá dinheiro” — disseram-lhe os colegas de vadiagem. No dia 30 de novembro de 1994, o alfaiate poeta, agora “Cigano”, desembarcou na rodoviária da capital do Paraná. Logo que chegou, quis zanzar pela cidade. “Caiu” no Terminal Guadalupe, no centro de Curitiba. “Naquela época, quando eu cheguei, encontrei ali um monte de pessoas bebendo. Dessas que moram na rua. Estavam em grupinhos bebendo cachaça. Eu fiz amizade com elas e comecei a beber mais do que já bebia. Eu tinha um pouco de dinheiro no bolso e pagava para eles as bebidas” — conta Maurício, então Cigano. — Cigano, você vai dormir onde? — Ah, eu não sei. Eu estou com vocês. Onde vocês forem, eu vou. — Então vamos pra maloca. A maloca era uma casa abandonada no bairro Alto da XV. Quando chegaram, Maurício e seus novos amigos pularam o muro para se malocar. Aquela se tornou sua casa por um bom tempo. Dormia, às vezes, enroscado em jornais. Em outras, com uma garrafa de cachaça ou fumando um cachimbo de crack. Quando não estava na maloca, dormia em frente à Caixa Econômica Federal da Praça Carlos Gomes, no centro de Curitiba. “Eu ganhava o dinheiro pedindo esmola. Tinha pra comer, pra caixa de papelão que comprava quando eu precisava dormir no centro. Cachaça nunca faltava. Pra pedir, eu dizia que tinha
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câncer na perna e precisava de um dinheiro para inteirar uma passagem pra um tratamento em São Paulo. Eu pedia um real, ou dois reais. No final das contas eu arrumava uns 80 contos por dia. Uma vez, enquanto mendigava, a polícia me mandou sair de lá, da Praça Carlos Gomes”. — Sai daqui, seu mendigo! Se você ficar aqui, quando a gente voltar, vamos te prender. — Eu não sou esmoleiro. Eu sou um artista — Maurício já tinha tomado sua dose diária de cachaça. — Você que é um mendigo enfiado nessa farda amarela aí. Você não sabe fazer outra coisa para ganhar a mixaria que ganha. Eu ganho quatro vezes mais do que você! Os guardas imediatamente agarraram o alfaiate poeta e o levaram para a delegacia. E, em uma sala privada, bateram nele. Maurício, que estava alterado pela pinga, apanhava e chutava as portas, os ventiladores, tudo o que via pela frente. Naquele dia foi parar no Hospital dos Trabalhadores, no bairro Portão, com todos os dentes de ouro e mais quatro costelas quebradas. Após alguns anos morando nas ruas de Curitiba, ele estava irreconhecível. Já era totalmente dependente do crack. - Quando eu fumava uma pedra, já estava de olho na outra. Porque o crack, você não consegue parar de fumar. A sensação de prazer que se tem é muito rápida. Você puxa a fumaça e, quando solta, parece que está nas nuvens. Quando termina de soltar a fumaça, acabou... O prazer dura segundos. São rápidos instantes de êxtase e, para ter isso de novo, somente com mais uma pedra. É por isso que o dependente não para de fumar. E quando o dinheiro acaba, ele vai
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em busca de mais. Ele vende as coisas que tem e da família. Se precisar, ele rouba. Eu não roubava, pedia dinheiro nas ruas e “arreava” a vermelhinha. Eu era um “papeiro”. A vermelhinha é um jogo ilegal feito nas ruas. Uma bolinha vermelha é colocada em baixo de uma de três tampinhas de garrafa que são embaralhadas com movimentos hábeis pelo “arreador” — ou “papeiro”. O apostador, para ganhar o prêmio, tem que adivinhar em qual tampa a bolinha está. Para misturar, Maurício fazia movimentos circulares com as três tampinhas, em cima de uma caixa de papelão. Ficava girando, girando e o jogador observando. Sempre que estava “arreando”, ele era acompanhado pela sua “companhia”, como eram chamados os parceiros de contravenção. Eram os “H”. Um deles ficava de frente para o “arreador”. Seu papel era incentivar os incautos a apostarem na jogatina. Ele ficava a toda hora dizendo “tá no meio”, ou “tá na ponta esquerda, tá na ponta direita”. Maurício, para ludibriar os ingênuos, levantava a tampinha onde o primeiro H dizia que estava a bolinha. E lá estava ela. Mas quando o incauto apostava — e às vezes a aposta era grande, cem, duzentos reais — sempre errava. Era como se a bolinha tivesse sumido. O segundo H era o farol, que ficava na esquina observando tudo. Ele era responsável pela segurança do “arreador”. Se a polícia se aproximasse, gritava: “Ó a louça”! Ou também: “Ó o jornal”! O terceiro H era chamado de prego. E este se misturava no meio das pessoas. “Tinha gente que ficava nervosa ao perder duzentos ou trezentos reais. Era o dinheiro que eles tinham pra pagar a luz, a água ou o telefone. O prego era encarregado de contornar alguma situação de conflito que podia acontecer. A malandragem era muito
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bem feita. Era um teatro. Quando o incauto perdia dinheiro, o prego encostava nele e tentava conversar”. — Poxa, eu também joguei com o cara aí e perdi. Era o dinheiro que eu tinha pra pagar o aluguel. Mas você vai recuperar. Tenho certeza disso. Desta forma, o terceiro H conseguia acalmar conflitos. O dinheiro que ganhavam era dividido entre a “companhia”. “No submundo do crime, existe uma pirâmide, hierarquia, bem definida. Tem a escória, que é pior do que o mendigo. Não presta pra nada. Nem pra ir comprar uma cachaça pra você ela presta. Tem o mendigo, aquele que pede dinheiro. Tem o pilantra, que é aquele em quem você não pode confiar — igual ao que foi o Marrom, que perdeu o meu dinheiro. Tem o vagabundo, que é aquele que quer comer às tuas custas, não trabalha, não faz nada, não pede, não rouba, não faz nada. Só quer comer de graça. Tem também o bandido. Ele só ganha na mão grande. Só armado. Ele é corajoso, mas não tem inteligência. Depois tem o malandro, que usa a cabeça, passa o conto do vigário. O malandro tá no topo da pirâmide do submundo. Ele comanda os outros todos. Porque ganha só na lábia. Ele é o cara mais educado do mundo. Não fala gíria. Só fala palavra bonita. Tudo isso pra poder enrolar o otário. Se falar bonito o otário não fica com medo. É só no 171. Ele conhece o ingênuo só de ver. Só de bater os olhos nele. Parece uma intuição que a gente tem”. Em uma manhã, depois de muito tempo nas ruas, o alfaiatepoeta-papeiro acordou na calçada, deitado dentro em uma caixa de papelão, cansado da vida que levava. Ele pensou que poderia estar na hora de recuperar, por si mesmo, a dignidade. Não queria mais morar
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na rua, beber, fumar crack. Foi então que procurou ajuda na FAS, a Fundação de Ação Social de Curitiba. Lá ele poderia conseguir o apoio necessário para deixar as ruas, para novamente enxergar a vida que corria através dos olhos de um poeta. — Maurício, eu vou te encaminhar para a Fazenda Solidariedade, em Campo Magro. Lá eles podem te ajudar. Lá você vai ter todo o apoio necessário para vencer o seu problema. Ok? — Tudo bem. O alfaiate-poeta-papeiro foi para a fazenda e lá se sentiu bem. Assistiu a palestras sobre como parar de usar drogas e de beber. Fez cursos sobre os malefícios da dependência de drogas e do alcoolismo. Aos poucos, foi assimilando tudo o que escutava e deixou de beber e usar crack — entendeu que a sensação de prazer ao se inalar uma pedra era fugaz. Fez amigos e voltou a costurar as palavras. Há tempos não era alfaiate. Deixou também de ser papeiro. Ficou poeta. Em 2009, porém, a Prefeitura Municipal de Curitiba fechou a Fazenda Solidariedade, alegando falta de recursos. Muitos dos internos voltaram a morar com as famílias. Outros, como Maurício, que já estava por lá há três anos, não tinham para onde ir. Foram encaminhados para o Recanto do Tarumã, conhecido também como Lar dos Idosos. Hoje, com setenta anos, o poeta passa os dias com os amigos no asilo, lembrando as façanhas da vida. E lembra muitas vezes do dia em que, bêbado, caiu e quebrou o braço — logo no início do tratamento contra o alcoolismo, na Fazenda Solidariedade. Foi levado às pressas ao Hospital Evangélico, onde os médicos estavam em greve. Por causa da paralisação, ficou nove dias deitado em uma maca, sem
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ser cuidado. O braço precisava de cirurgia, e como não a fizeram, começou a apodrecer. Quando os doutores chegaram, após à greve, tiveram que amputar o membro. Foi-se o braço esquerdo, que na adolescência Maurício levantava ao alto segurando as encomendas da alfaiataria de Luiz Brandão. O braço que levava os paletós, calças e coletes, quase como um sinal de vitória, não mais existia, assim como a época de alfaiate, de fumador de crack, de alcoólatra, de morador de rua, de marido, de arreador da vermelhinha, de cigano e de tantas outras coisas. Porém, o que ainda seguia bem vivo dentro dele era o dom de costurar as palavras em versos, roupas para a alma, que nunca envelhecem puídas e nunca andam rotas. Tu já foste criança e moço forte também. Guardas eternas lembranças de um passar ou de um alguém. Mas tu deves ficar contente pelos anos que hoje tens. Quem dera que muita gente pudesse tê-los também. Tu contribuíste bastante por nossa imensa nação. E a tua labuta incessante em prol desta geração. Mas a velhice chegou. O cabelo embranqueceu. A fala muito abaixou. E a mente enfraqueceu. Hoje quem é criança, amanhã velho será. Essa é a nossa herança. O prêmio que a vida nos dá. Ó Deus, tu que és soberano, evitai-os da discórdia. Dai aos velhinhos, todo ano, paz, amor e misericórdia. A todos os vovôs e vovós do Brasil e da minha terra mineira aceite essa prova gentil de Maurício de Oliveira.
O Samba, as mulheres e uma casa de assistência social Por Paulo de Siqueira
Antônio Luiz de Oliveira tem 72 anos e pernas que já não respondem muito bem por causa do reumatismo. Quando anda, é como se estivesse saltitando, como se desse pulinhos no mesmo lugar. Ele é um dos 120 residentes do Lar dos Idosos, no Tarumã. Gente relegada, à espera de alguma coisa que não sabe o que e nem quando. Alegre, Antônio andou e saltitou até o banco no caminho da horta comunitária do asilo. Sentou e mergulhou em um estado quase hipnótico de esquecimento do presente, para ver toda a vida passar diante dos olhos. O rosto, marcado pelas rugas do tempo, revelava alegria, depois dor, em seguida alívio. Do olhar fixo no horizonte e no passado, Antônio só acordou quando outro residente perguntou-lhe se tinha pilhas para emprestar, porque queria colocar no radinho que carregava nas mãos.
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No asilo, passam lentamente os dias, as noites, os meses e os anos. Faz quinze que Antônio mora naquele lugar. Os internos andavam de um lado para o outro como se procurassem alguma coisa, como se tivessem perdido algo. Volta e meia, um deles era chamado pelo sistema de som do local. “Sr. Amarildo, favor dirigir-se à portaria”. Aquela voz quebrava a rotina silenciosa e alguns residentes levantavam a cabeça para prestar mais atenção ao nome que era pronunciado. Outros, nem mesmo isso faziam. Era como se tivessem certeza de que ninguém iria visitá-los. Sabiam que estavam sozinhos. Entendiam e continuavam esperando e se apegando às pequenas coisas do lugar para passar o tempo. Os radinhos de pilha, campeonatos de sinuca, o grupo de música, conversas, televisão, recordações e o jogo do bicho faziam o entretenimento do lugar. Volta e meia, Antônio Luiz saltitava até o bar ao lado do asilo para pegar seus 10, 50 ou tantos reais que ganhava apostando no bicho. Naquele dia em que sentou no banco do caminho da horta, vendo a vida passar diante dos olhos, deu gato na cabeça. Faturou 100 paus. Nem isso o tirou daquela viagem ao passado, no banco da horta. Balançou a cabeça e como se não tivesse ninguém por perto, lamentou baixinho: “fiz algumas coisas erradas na minha vida...”. No ano de 1961, logo depois que serviu no exército, Antônio decidiu ganhar o sustento com as próprias mãos. Lembrou que até aquele momento tinha vivido às custas de Rosa, a irmã mais velha. Em um dia de Natal, ela foi buscar o caçula na casa da mãe. O pai havia morrido. O menino tinha 13 anos e sofria com os irmãos mais velhos que diziam: “Filho caçula não presta. Toninho, você não pres-
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ta. Você não vai estudar, vai só trabalhar”. Rosa achava que o menino merecia uma vida melhor. Levou-o para viver com ela e o marido em Sete Lagoas, em Minas Gerais. Os anos passaram e o rapaz tocava a vida. Ia para a escola e voltava para a casa da irmã. Não trabalhava. Só estudava. Quando completou quinze anos, decidiu abandonar os estudos. Achou que já sabia ler e escrever direitinho. Foi quando conheceu o samba. Não o dos tambores e da cuíca, mas o da cachaça com Coca-Cola. Ninguém sabe o porquê — talvez por causa do que os irmãos haviam dito, pela falta do pai ou, quem sabe, pelo gosto mesmo — mas bebia sempre que podia: toda vez que conseguia um dinheirinho, usava para comprar uma garrafa de Coca e duas doses de pinga. Aos 18 serviu no exército e, quando saiu de lá, achou que estava na hora de ser independente. Foi morar com a mãe em Montes Claros — sua cidade natal — e buscou um emprego. Conseguiu um trabalho de garçom. Aos poucos, aprendeu o ofício de servir e, mais uma vez, serviu. E direitinho, a ponto de ser solicitado por uma companhia de transportes ferroviários para trabalhar no trem que ia de Montes Claros à Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Periodicamente, o comboio de Toninho parava por um ou dois dias na cidadezinha de Corinto para reabastecer o restaurante do trem. O rapaz aproveitava para perambular na cidade. Nessas andanças, conheceu seus dois primeiros amores: Ione, uma adolescente de 16 anos que logo virou namorada, e o puteiro, que ficava ao lado da estação do trem. Antônio sentia vontade de ver a filha do alfaiate Pedro de Mou-
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ra, porém o samba, o fiel companheiro, puxava-lhe para outras aventuras, outras diversões. O rapaz, que não era bobo nem nada, decidiu saciar as duas paixões ao mesmo tempo. Queria alimentar a dois lobos de uma só vez. Quando desembarcava em Corinto, antes de ir para a casa de Ione, desviava o caminho para o prostíbulo. Lá se divertia. Muito e até se fartar. Depois caminhava até a casa do alfaiate e lá desfrutava com a namorada. Certa noite, ao desembarcar na estação, dois homens o esperavam. Não pareciam agressivos. Até sorriram quando Toninho chegou. — Olá, Antônio Luiz. Tudo bem com você? Seguinte, tira a gravata borboleta e o avental que o delegado que falar contigo. — De novo? — brincou Toninho. Quando o rapaz chegou à delegacia, descobriu que a mãe de Ione tinha feito uma denúncia contra ele. A menina estava grávida... Em 1964, vigorava o decreto-lei 2.848, de sete de dezembro de 1940, que dizia que alguém na situação de Antônio poderia se casar para não ir preso, caso a ofendida aceitasse. Desta forma, de acordo com o código penal da época, ele poderia conseguir a extinção da punição. Foi o que o rapaz fez. Da delegacia saiu marido, com documentos e tudo. Mas a vida do mineiro não mudou muito. Mesmo casado, ele continuava a trabalhar no trem e a morar com a mãe em Montes Claros. Às vezes visitava a esposa, que permaneceu com os pais em Corinto e, claro, aproveitava para passar no puteiro da cidade. Em certo dia, seu irmão mais velho, Augustinho, convidou-o
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para ir viver em Mariluz, no noroeste paranaense. — Ione, meu amor, vamos morar comigo no Paraná? — Eu não vou. Não vou deixar meu pai, minha mãe e meus avós para te acompanhar. Não sei se vai dar certo com você lá. E se não der, como é que fica? Não vou agora e nem quando nosso filho nascer. — Tá bom, meu amor. Você que sabe. Eu vou. E foi... Antes do filho nascer já estava na cidade que acabara de ser fundada e já era conhecida como a “Princesinha do Oeste”. Lá, a comercialização e plantio de café eram intensos. Toninho e o irmão queriam aproveitar os bons ventos. Tiveram a ideia de montar um armazém de secos e molhados porque em Mariluz ainda não havia nenhum. Iam vender arroz, feijão, açúcar e sal e tantas outras coisas para clientes como Inácio da Silva, paraibano que gostava de andar com o facão na cinta e não fazia muito tinha chegado com a família para tentar a sorte na cidade. O sol nascia e morria todos os dias na “Princesinha do Oeste”, assim como em qualquer lugar. A vida seguia seu curso e Antônio Luiz nunca mais tinha visto Ione, nem mesmo o filho que teve com ela. Nos finais de semana gostava de ir ao prostíbulo de Goioerê. Queria sentir a sensação de prazer que as moças de lá lhe davam. Gostava do puteiro, gostava do armazém, mas nunca se satisfazia, sempre queria mais... E conseguiu, em casa mesmo, através do irmão e da esposa dele, Luzia. — Augustinho, precisamos de uma ajudante doméstica. Josefa, a filha do paraíba Inácio, se ofereceu. Podemos contratá-la? — disse
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Luzia ao marido. — Pode. Josefa, a menina de 15 anos, filha do paraibano, não demorou para ir trabalhar com os mineiros. Ela ajudava na faxina da casa e, às vezes, limpava também o armazém. Em certo dia — a menina já entrosada com o serviço —, Augustinho e a esposa deixaram-na sozinha e foram levar as crianças ao médico, em Goioerê. Iam demorar... Naquela terça-feira, Josefa iria limpar a loja. — Oi, Josefa. Como é que está? Já limpou tudo ai? — perguntou Antônio Luiz. — Tô bem. Já limpei. E, à queima roupa, o rapaz quis seduzir a menina: — Você não quer dormir um pouco comigo? — Não!!! O meu pai e a minha mãe vão ficar bravos — respondeu a garota, com o rosto corado. — Não! Não vão ficar não. “Com nós” não tem brabeza, não. Toninho, com sua fala melíflua, envolveu a moça em promessas que talvez não pudesse cumprir. Mas isso pouco importava naquele momento. Queria mesmo era saciar a fome de moça. Aos poucos, e como se diz na crendice popular: “igual a uma cobra que hipnotiza sua presa antes de dar o bote”, convenceu a menina. Os dois deitaram e rolaram na cama, no quarto, nos fundos do armazém. Muitas vezes foram lá, sempre escondidos, e não demorou muito para a filha de Inácio engravidar.
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— Olha, Toninho, emprenhar um menina menor de idade não é bom, não. Você já é casado lá em Corinto. Como é que você vai fazer agora? Você não pode mais casar. Você pode ir preso — disse Augustinho. Inácio, o pai da garota, o paraibano bravo que andava com uma faca na cinta, somente ficou sabendo da história que envolvia a filha no quinto mês de gravidez. E uma guerra se desenrolou. — Não aceito o que o Toninho fez, nem a Josefa ter se deitado com aquele mineiro. Vou cortar o pescoço dos dois com o meu facão! Ao escutar as palavras de Inácio, Augustinho correu para o armazém e foi direto avisar o irmão caçula. — E agora, Toninho? Como é que você vai fazer? O Inácio não aceitou a situação. Ele vai passar o facão em você e nela também. Ele é perigoso. Depois de pensar um pouco, Augustinho disse: — Vou te levar embora daqui. Você e a Josefa. Vou te levar para Goioerê. Lá você aluga uma casa e toca sua vida. Vamos ver no que dá. Toninho, com medo do que pudesse acontecer, aceitou prontamente a proposta. Ele e sua nova “esposa” foram morar na vizinha Goioerê. Os anos passaram e Antônio Luiz se transformou em um vendedor de loteria federal, estadual e jogo do bicho. Com o dinheiro que ganhava, conseguiu comprar uma casa e dar uma boa vida à Josefa e os três filhos que tiveram. Já fazia nove anos que o casal estava
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junto. Inácio, o pai da garota, nunca os encontrou. Não pôde cumprir a promessa que tinha feito. A vida seguia. Mas ao lado do casal morava, com os pais, Liliana... Quando Toninho e Josefa chegaram de Mariluz, a moça tinha dez anos. Agora, aos 19, era uma morena bonita e estudada que frequentava assiduamente a casa de Toninho e da filha do paraibano bravo. Um dia, quando Antônio Luiz estava voltando do trabalho, Liliana o esperava na estrada. — Toninho, você é um problema sério. Tenho uma história para te contar hoje. — Então conta. — Eu me apaixonei por você. Já falei com minha mãe e com meu pai. Como é que nós vamos fazer? Se você não ficar comigo eu te mato. Não vou matar teus filhos, porque gosto demais deles. Mas se você não ficar comigo eu te mato. Não aguento mais ver você com a Josefa. O mineiro sentiu medo. Havia algum tempo que, com uma conversa melosa, tinha fisgado Liliana. Quando ela lhe contou a história, entendeu que sua vida iria mudar outra vez. Silenciosamente, enquanto olhava para a morena, analisava as vantagens que a vida lhe oferecia. Lembrou que o pai da moça era um homem de posses e alguma coisa poderia sobrar para ele. Toninho gostava da filha do paraibano bravo, mas ela era muito simples. Não sabia ler nem escrever direito e não era tão bonita assim. Não tanto quanto Liliana. Depois de alguns instantes, entendeu que era vantajoso trocar Josefa por Liliana. Fugiu com a moça para Cascavel. Deixou para trás a filha de
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Inácio com as três crianças — a mais velha tinha nove anos. Quando chegou à nova cidade, no oeste paranaense, além de vender a loteria federal, estadual e fazer o jogo do bicho, passou também a comercializar os carnês do Sílvio Santos. Toninho gostava de vender na zona rural e, como vendia bem, logo recebeu uma proposta do gaúcho José Aparecido, que também trabalhava com os “carnês do baú”. — Mineiro, o Silvio Santos tá ganhando muito dinheiro. Acho temos que tirar um pouco dele. Eu tô querendo fazer um negócio aí... — É mesmo. E o que é? — Olha só, nós temos que tomar um pouco de dinheiro do Silvio Santos para montar um prostíbulo em Caxias do Sul. Aí sim nós vamos ganhar muita grana. — O puteiro é boa ideia. Mas como vamos tirar do cara? —Eu te ensino. Gaúcho levou Toninho a uma livraria e compraram um carimbo de “pago”. Com ele, pretendiam tomar para si o dinheiro das doze prestações do carnê do Silvio Santos. Quando os dois amigos saíam para vender, diziam aos clientes que se pagassem o carnê todo, e à vista, receberiam carros, casas e outros prêmios maiores. Quando os incautos aceitavam, Toninho batia o carimbo em cada folha e deixava nela a marca azul de pago. O carnê, porém, só valia se fosse acertado em bancos. “Normalmente vendíamos em torno de 20 por dia. Naquela época o dinheiro entrava como água. Cada prestação ( uma folha do carnê) dava em torno de trinta reais, em moeda de hoje.
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Imagina quanto isso rendia. Mas aí eu caí”. Em um dia de 1977, os dois amigos não puderam ir à zona rural de Cascavel porque grossas lágrimas celestes haviam transformado as estradas em lama. Obrigados a permanecer no centro da cidade, tentavam encontrar mais uma vítima para carimbar outro carnê. — Tá vendo aquele velho lá? Eu andei sacando ele. Aquele bicho é burro demais! Vamos lá carimbar o carnê — disse gaúcho a Toninho. Foram e carimbaram. Era um aposentado que tinha ido sacar dinheiro no Banco do Brasil. Porém, os dois malandros não perceberam que o filho do ingênuo senhor o estava esperando fora do banco. Quando o rapaz viu que o pai tinha sido enganado, imediatamente denunciou o golpe e os malandros a um policial que fazia ronda por lá. — Mineiro, vamos embora! Vamos embora! A barra sujou. O filho do velho burro denunciou a gente. Corre!!! Toninho correu, mas não foi rápido o suficiente. Suas pernas não tiveram forças como as de gaúcho. O policial conseguiu agarrar o mineiro. Foi pego em flagrante. Sob os olhares das pessoas que passavam pela praça central, gente que se escondia debaixo de seus guarda-chuvas pretos, Toninho foi levado à delegacia e lá apanhou. Levou tanta pancada que contou tudo o que sabia: do carimbo de pago, das pessoas que ele tinha enganado, do dinheiro que o golpe rendia, do puteiro que queria abrir em Caxias do Sul... Tudo, absolutamente tudo o que os policiais pediram, ele contou.
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Depois da surra, foi julgado e condenado a uma pena de um ano e oito meses de reclusão. A terceira esposa Liliana, quando se inteirou do que tinha acontecido, decidiu voltar para a casa dos pais e nunca mais procurou o amante. Um ano e quatro meses depois do flagrante de 171, solto antes do fim da pena por bom comportamento, o mineiro de Montes Claros perambulava silenciosamente pela cidade de Goioerê. Procurava Josefa, mas não a encontrava. Procurou também Liliana e descobriu que a moça não vivia mais na cidade. Agora, Toninho estava sozinho. Voltou a vender bilhetes de loteria. Em uma das andanças, esbarrou com Joachim, um amigo que conheceu em Mariluz, quando ainda trabalhava no armazém de secos e molhados. Contou para o colega a história da prisão, da solidão e do problema financeiro. Joachim quis ajudá-lo: — Olha, Toninho, tem uma mulher aí, amiga da minha esposa, que ficou viúva há pouco tempo. Acho que você pode se arranjar com ela. O nome dela é Alvina. Ela é dez anos mais velha, mas dá para encarar. Antes de ir, toma uns gorós para soltar a língua. Toma o sambinha e vai. Só não diga que fui eu que contei... Alvina tinha três casas em Campo Mourão. Em uma delas morava com as filhas, as outras, alugava. Tinha também dinheiro guardado na poupança e recebia uma aposentadoria. Era tudo o que Antônio Luiz precisava... O mineiro passou a visitá-la frequentemente. Aos poucos, a viúva aceitou seus galanteios e levou-o para morar em sua casa, junto com as filhas. O que Toninho queria, Alvina dava, e com gosto: roupa,
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dinheiro, comida, casa, sexo, bilhetes de loteria para vender e ganhar mais e também samba. Quatro anos passaram e a viúva decidiu morar em Araucária, no Paraná. Quis ir porque a filha mais foi viver lá. Toninho foi também. Já na nova cidade, no ano de 1996, Alvina descobriu que tinha câncer de mama. Fez tudo o que pôde para ficar boa: tratamento quimioterápico e mastectomia. Achou que estava tudo bem. Mais tarde, porém, o câncer voltou. Desta vez na outra mama. Ela tentou uma segunda cirurgia, mas as coisas se complicaram. A quarta esposa de Toninho faleceu em 1997. Antônio Luiz sofria com a morte da companheira de tantos anos. A única maneira que conhecia para aliviar a dor era entregar-se ao samba. Passou a beber cada vez mais. Já tomava quase um litro de pinga todos os dias. Misturada com Coca, a cachaça dava muito samba, o que preocupou Isabel, uma das filhas de Alvina. A moça procurou a assistente social da cidade de Araucária. Queria ajudar Toninho. Não demorou muito para que ele fosse levado ao asilo Lar dos Idosos. Lá, com ajuda, deixou de beber. Trocou o samba pelo grupo de pagode do asilo, onde canta e já gravou CDs. Faz jogo do bicho e loteria federal apenas para os companheiros de morada, e sem carimbo de “pago”. Conta que se sente bem naquele local. Que lá as pessoas são boas para ele. Quando revê a vida toda, sentado no banco do caminho da horta, se arrepende de muita coisa que fez, e de outras que não fez, mas esquece tudo quando bate no pandeiro e canta aquele samba: “deixa a vida me levar, vida leva eu...”.
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Fragmentos de uma vida Por Indiara Cordeiro
Um domingo a tarde é quase sempre um domingo de família. Mas hoje eu não estou com meu marido, nem com os meus amigos. Estou fora do meu conforto. Nem sei quem são todas essas gentes. Gentes, tão diferentes, e ao mesmo tempo tão iguais. Homens que viveram coisas, sabem coisas que eu talvez nunca saiba. Uma mistura de sabedoria escondida, trama de gente entrelaçada por muitas histórias e um mesmo destino. Pensei no confinamento, na solidão de pensamento, de não ter alguém para partilhar das mesmas ideias. Ou não? Será que são felizes? Fiz uma multidão de perguntas para a minha consciência tão rasa, tão descabida e vazia de pensar em ajudar o próximo. Porque sempre tem alguém precisando da gente. Mas, o tempo era curto e eu não poderia mais segurar o passo,
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segui em frente e perguntei sobre aquele homem do qual eu adentraria a vida, do qual por algumas horas eu faria parte. Eu nunca havia entrado num asilo, e a sensação foi estranha. Confesso que me senti pequena, e com medo, porque nunca havia me imaginado um dia “velha”. Agora, sem enfeites e adorno nas palavras, se eu não mais poetizar a realidade, direi que ali são todos velhos e sozinhos, abandonados um dia por jovens como “eu”, ou não. O meu pensamento foi pra longe outra vez. Sofro muito de pensamento que caminha. Mas eis, que, em minha frente, já estava ele, todo jucundo e perfumado. Um senhor de 67 anos, mas que aparentava uns dez a mais. Talvez tenha sofrido muito na vida, pensei. Pele morena, estatura baixa, cerca de 1,60 m, barba feita, vestido de calças e camisa branca, e um colete de lã todo enxadrezado no azul marinho com preto. Imaginei até de quem poderia ser as mãos que tricotaram aquela sobreposição. Eu não poderia sair dali agora, meus olhos precisavam ficar fixos no seu Carlos de Jesus Beira, que fez questão de retirar o chapéu de palha da cabeça, já envelhecido do tempo e usado por tantos outros, só para me cumprimentar. Eu senti afeto e fui logo lhe dando um abraço bem apertado, que fez a mocinha da recepção rir alto. É que eu sou boba e sentimental e logo me apaixono pelas gentes. Para o nosso diálogo, sugeri a biblioteca. O mistério e o encantamento são sempre imbatíveis ali, lugar melhor não há. Se não servisse de inspiração para ele, pelo menos serviria para mim. Acomodei o Senhor Beira e me apresentei, pedi para que ele me contasse um
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pouco da vida. Faço uma confissão: não prestei atenção nos primeiros quinze minutos da conversa, porque eu estava ocupada demais imaginando que os pais do Senhor Beira eram cristãos, que deveriam crer em Deus, do contrário não colocariam o nome do filho de “Jesus” — segundo ele logo esclareceu, era nome e não sobrenome. E eu não acredito em Deus. E acho muito difícil ser ateu num país que culturalmente já nos faz nascer católicos. Então provavelmente o Senhor Carlos de Jesus era católico e acreditava em Deus. Após os 15 minutos de devaneio, retomei o sentido, e fiquei sabendo que ele era natural da Lapa, a cidade dos heróis (aliás, vocês sabiam que poucas cidades no país têm memórias de uma guerra ou conflito armado, como a Lapa? A cidade guarda até hoje, nos muros de algumas casas centenárias, as marcas dos tiros do episódio conhecido como “Cerco da Lapa”, no qual o exército local conteve o avanço da Revolução Federalista, que pretendia instituir sua própria forma de governo no Sul por rejeitar a República. Contei pro Senhor Beira e ele me fez uma montoeira de perguntas sobre a guerra que eu não soube ao certo responder). Fui logo mudando de assunto e pedindo para ele prosseguir com a prosa. Lá, ele nasceu, cresceu, fez-se homem e casou-se com a Dona Tereza, que era mulher de firmeza, dava conta da casa, da filha pequena e ainda trabalhava na lavoura. As mulheres de antigamente desconheciam a preguiça. Tereza era uma boa mulher, mas estava muito adoentada e logo deixou o Senhor Beira sozinho com a filha. Foi aplacada por uma doença misteriosa que lhe deixou enferma, de cama, por meses a fio, até beirar a morte. (licença, pra eu imaginar de novo: as mulheres de alguns anos
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atrás eram diferentes mesmo, mas os homens também). Creio que faltava paciência pra cuidar de uma filha de colo, dar de comer, trocar fraldas e ainda buscar o sustento com trabalho fora, a lavoura não rendia mais nada e dinheiro só se ganhava na capital. Por isso nem me estarreci quando o Senhor Beira me contou que deixou a única filha na Casa das Freiras, sem pensar duas vezes. Decerto confiava nelas, e confiava mesmo. Ele é católico, religioso, reza sempre pra Nossa Senhora. Meu palpite estava certo. Tão certo que a filha foi batizada com nome de santa, Maria Aparecida Beira, que é para manter a tradição. Já crescida e mulher feita, Aparecida foi pra cidade de Curitiba procurar o pai. Tinha notícias que ele trabalhava de ajudante num restaurante chinês. Viúva e com três filhos pequenos, estava sem rumo porque foi expulsa da propriedade do falecido marido – a cunhada dizia ser dona de tudo e pediu para a pobre cair no mundo e garrar rumo longe dali. A sina da Maria Aparecida não era nada boa: criada órfã, mas de pai vivo, casou-se com o César, que bebia e batia, batia e bebia, e não sabia fazer outra coisa a não ser judiar da coitada e dos filhos. A vida deu logo jeito de tirar ele do caminho da Maria. Morreu. O corpo foi encontrado numa valeta na cidade dos heróis. A causa da morte? A bebida. É só o que Aparecida soube contar. O Senhor Beira, que morava nos fundos do restaurante, nem abrigo pode dar para a filha naquela noite. Despediu-se dela e dos pequenos. Nunca mais ele viu ou teve notícias da filha com nome de santa. O que terá sido daqueles quatro viventes? Sozinhos, sem casa, sem comida, sem nada. Bem, vamos pensar que eles têm a Deus, nessas horas é sempre bom acreditar em alguma coisa. E vamos
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deixar que ele se encarregue dessa parte de cuidar deles. O Senhor Beira, como bom religioso que é, pensou a mesma coisa. Os anos se passaram, talvez, dez ou vinte anos. O Senhor Beira não lembra — ele acha desnecessário falar do tempo, afinal, de nada importa a cronologia, o que nos queremos saber é dos acontecidos. O que ele lembra era da tarde de domingo ensolarada, dia bonito, dia bom pra uma matinê. Dançar faz bem para as cadeiras, e beber uma cervejinha gelada renova qualquer homem. Ela era tão bonita, mas tão bonita, que não havia um só homem naquele salão que não reparasse naqueles cabelos compridos e negros. A boca parecia uma maçã madura, lábios vermelhos, cheirosa, e tinha um gingado, que não se comparava com de nenhuma outra. O Senhor Beira, que não costumava pensar duas vezes, tirou a Lourdes para dançar e tirou ela da vida do Zé também. Fugiu para a Lapa com a Lourdes. Tinha certeza que era para sempre. Mas já fazia uma longa semana que a Lourdes não voltava para a casa. Foi para Curitiba comprar um vestido novo e nada de voltar. Ela tinha uma prima por lá e o Senhor Beira foi atrás para descobrir o porquê do sumiço. A prima disse que ela tinha caído na conversa do Zé, seu antigo marido. Que ele a levou pelo braço e ela se foi com ele, sabe diabos para onde. O amor e a saudade eram grandes e ele precisava saber como ela deixara de amá-lo assim, de repente. Ficou sabendo do pior, da maior tragédia, o mundo desabou. Um conhecido confessou que o Zé matou a Lourdes e a levou para o viaduto dos Padres, que fica na BR-277, em direção à cidade de Morretes. O viaduto é repleto de lendas e mistérios. A história mais conhecida é a do Padre e da Anhaia: no século dezoito, no local onde
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hoje é o Viaduto dos Padres, existia um mosteiro. Perto deste local religioso, havia a fazenda de um homem muito rico apelidado de Pepe Ayala. Este homem tinha uma filha chamada Anhaia. Aos três anos de idade, esta garota teve uma febre muito forte. Então sua mãe fez uma oração pedindo para que a menina sarasse e se este milagre acontecesse, ela a colocaria no convento. Naquele mesmo instante, Anhaia saiu da cama curada. Ela era muito peralta e travessa, sempre inventava de se esconder nas plantações do sítio, quando fazia alguma arte. A própria garota abriu uma clareira, no meio do mato, e fez uma estrada secreta, onde sempre caminhava quando queria ficar sozinha. Porém os escravos descobriram este caminho e batizaram o local de Estrada de Anhaia. Apesar de tanta travessura, a garota foi criada com rigidez nos melhores princípios e aos dezoito anos foi mandada para um convento na Espanha. A jovem ficou apenas um ano no exterior, onde notou que não tinha vocação religiosa e voltou ao Brasil para o sítio da sua família. Uma certa tarde, a moça resolveu passear na própria estrada que montou quando era criança. Ao andar pelo local, notou que o caminho dava num mosteiro. No rio, ao lado da estrada, ela viu um jovem padre flutuando numa meditação. Anhaia não acreditou e gritou. O religioso assustou-se, abriu os olhos e se apaixonou pela donzela. Um certo dia, Anhaia descobriu que estava grávida e contou sobre o fato a uma das mucamas. O problema é que um dos escravos escutou tudo atrás da porta e contou para Pepe. O fazendeiro ficou furioso e colocou fogo no seminário. Anhaia, ao saber da tragédia, correu até a sua estrada e enforcou-se. Durante o incêndio, o padre mais velho saiu em chamas do mosteiro e gritou: “Quem fez isto, um dia pagará! Pois aqui virará um viaduto e muitos dos descendentes,
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dos meus inimigos, terão seus corpos mortos atirados aqui”. Um século se passou e construíram a Rodovia dos Padres perto de onde ficava o seminário que pegou fogo. A estrada de Anhaia continuou com este mesmo nome e muitas pessoas que passaram por este caminho a noite, falaram que viram o fantasma de uma jovem grávida, com uma corda no pescoço, em cima de uma árvore. As pessoas falam que é por causa da maldição dos religiosos que morreram queimados. Neste local, também, há muitos acidentes. Muitos caminhoneiros dizem que de madrugada aparece um fantasma, com vestes de padre, no meio da estrada e para desviar da assombração muitos motoristas acabam tendo acidentes. Desde a inauguração da Rodovia dos Padres, muitos corpos foram desovados lá, inclusive o da Lourdes. A vida do Carlos Jesus Beira só definhou a partir dali. Bebia mais que trabalhava. E os anos se resumiram numa solidão sem fim, interminável. Talvez, ele se sente um pouco culpado pelo fim que teve a vida da Lourdes. Eu não acho. Mas também não falei nada. Depois de muita bebedeira, e sem nenhuma família, o Senhor Beira foi resgatado pela Fundação de Ação Social (FAS) de Curitiba. Quem achou esse homem de história, e que eu imagino ter muitas outras além dessa que ele me contou, foi a Rose, assistente social. Hoje ele não tem vícios, goza de boa saúde e passa os dias em companhia de mais 100 homens cheios de outras tantas histórias reais e irreais, porque pra gente se manter vivo, a gente precisa viver também na imaginação. Senão definha. E eu nem falo do corpo. Engraçado. Quando o fitei pela primeira vez, fiquei pensando em muitas coisas, mas jamais imaginaria que o Senhor Beira sofresse
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de desconforto, porque amor sofrido, não correspondido ou perdido, é “desconforto”. Acho que nessa trama toda, a pequenez mais bonita da vida do Senhor Carlos de Jesus Beira foi a “Lourdes”. O relato acabou, eu fecho o caderno, e vou embora. Deixo o Senhor Beira abraçado em suas lembranças e numa saudade distante que eu trouxe para perto com as minhas perguntas e porquês. Eu vou, mas tenho certeza que tantas outras coisas ele está pensando agora. Coisas que ele poderia ter dito, mas não me disse. Que lembrou, mas não compartilhou, isso é só metade. Tudo bem, a gente é assim mesmo, fragmentado, vive aos pedaços. Sorte daquele que sabe ser inteiro.
Ser feliz por nada, pode ser tudo - ou João, sobrenome feliz Por Nelci Guimarães
Quando eu o conheci, dizendo aquela frase “perdi toda a família, a última foi minha irmã, aí vim parar aqui — essa é toda a minha história”, confesso que achei que seria difícil contar a vida daquele homem franzino, sentado com as mãos entre os joelhos e sem nada mais a dizer. Ele estava quase certo. Se não fossem os vãos entre as palavras de sua frase que me remeteram às interessantes vertentes que existem entre os dias vazios de todos nós – mas que muitas vezes não enxergamos. Se eu não ficasse conhecendo detalhes sobre a sua vida mais adiante, realmente, acharia difícil existir uma história interessante (mas afinal, que ser humano não é interessante?) no semblante quase infantil escondido atrás daqueles olhos embotados de velhice
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aos... 68 anos! Dentro daquela timidez, existiam guardadas umas tantas palavras que não saem. São só lembranças enterradas naquela pessoa conformada, até demais, com o que conseguiu amealhar na vida: duas gavetas no obituário Jardim da Saudade, no Portão. Recanto Tarumã. Esse nome nunca faria tanto sentido para mim, quanto naquela tarde chuvosa e fria em que retornei para a longa conversa que tivemos. E quando ele apareceu no fim do corredor, com passos cadenciados por um problema na perna — sequela de um acidente que sofreu — quase pude ouvir ao fundo uma sonata para piano de alguma ópera de Mozart, com uma marcação de marcha fazendo ecoar por aqueles vãos da parede. Acho que foi aquela tarde molhada. Aquele frio. E aquelas imagens. Mas quase ouvi. João Amílton Pinheiro da Silva nunca sonhou em ser nada. Nunca amou ninguém. Nunca casou. “Casamento é um jogo de azar”, disse. De tudo o que viveu, de todas as lições que teve, restou um amor incondicional à mãe, e um respeito quase ilógico e obediente que o privou de tudo. O seu projeto de vida foi trabalhar para ajudar a mãe. — O senhor nunca gostou de ninguém? — Não. — Não teve namoradas? — Não. Conheci pessoas, aproveitei a vida, tive alguns envolvimentos, mas nada sério. Foi só... Sabe, né? Quando nasceu, na cidade de Castro, no interior do Paraná, a família grande — do pai e da mãe — era como boa parte das famílias pobres brasileiras que, no final das contas, acaba vivendo do favor de
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alguém, e depende da ajuda do Estado, que nem sempre vem. Aí é a rua. A peregrinação. Como fez o peregrino João Amílton — a extensão de um menino que cresceu sem esperança e se tornou um homem sem sonhos. O pai sempre foi ausente desde que era pequeno, mesmo estando perto. “Nunca pude contar com ele, nem para uma conversa do dia a dia, imagine então para coisas de garoto”, disse. Viveu e cresceu quase sem sentir o passar dos anos, ancorado por uma relação guardiã da mãe. Quando o pai abandonou a família, e a mãe mudou-se para Curitiba, mais da metade de sua vida tinha passado quase em vão — 45 anos ou mais. “Vou correr o mundo” disse para si mesmo, então. Apesar de distante, tinha sequelas da ausência da mãe, e não teve a estrutura emocional para sobreviver sozinho: — Sentia muita falta dela, sabe? Era como se me faltasse o mais importante da vida, e mãe é coisa sagrada, né? — disse isso, juntando as duas mãos numa reverência à divindade que acredita serem as mães, e especialmente a sua. Não está de todo errado, conta a lenda da humanidade. Pois parece que esse ser onipresente na vida foi capaz de deixá-lo assim: inutilizado para as emoções. Que tal?... Foi ensacador em Jacarezinho — o boia fria apelidado de gaúcho; andante em São Paulo; estivador em Santos; lavrador em Maringá; arrumador em Ponta Grossa e, por fim, veio para Curitiba. Para os braços da mãe. Sentimento maternal é a sua marca registrada, além dos trocadilhos e ditados significativos que gosta de repetir com a seriedade de um personagem que “incorpora” para dar vazão de verdade à sua fala. Quando desembarcou na Rodoviária, pensou: “aqui tem café no bule”. E como foi quando reencontrou sua mãe, em Curitiba?
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— Vou falar a verdade, sabe? Sou um cara feroz! Nunca tive medo de trabalho e cheguei aqui para levar a vida honestamente como sempre. Porque comigo é assim: “eu cozinho arroz com pouca água”. — Foi fácil, então, se adaptar ao novo lugar. — Foi. Mais ou menos. Tive umas paradas difíceis. Algumas vezes, pensei: “deu porco na cabeça”. Situações difíceis, sabe? Mas quando pintava alguma parada eu não encarava coisa errada não. Eu e meus amigos “deitemo o cabelo” (fomos embora). — E do tempo trabalhado durante sua vida, o que conseguiu? — Não muita coisa, mas tenho tudo. Não sei se me entende. Sou muito feliz. Quero viver aqui, tenho esse espaço meu, tenho até televisão no quarto, acredita? — disse isso com tal orgulho que me sugeriu um menino que acaba de ficar dono da bola de futebol de meia para chutar com a gurizada da rua. — E... péra aí... - fez um silêncio pensativo. — Tenho duas gavetas lá no Jardim da Saudade, uma para mim e outra para minha irmã, porque se a gente morre sem ter nada vai para o açougue de gente lá — disse, cauteloso, apontando para algum lugar do seu horizonte imaginário. E... minha mãe e a outra irmã já estão no Jardim (da Saudade) esperando a gente. Se eu morrer agora, para mim tá tudo bem. Numa outra conversa, de repente uma outra história passa a fazer parte da sua contação. Quem sabe um desejo reprimido de viver um relacionamento; quem sabe um devaneio de quem não tem histórias para contar. E quem sabe a demência precoce por ter vivido
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recluso do mundo sentimental; mas, a certo momento, ele conta anedotas sobre si mesmo: que teria tido dois filhos em Jacarezinho, mas foi embora e nunca mais soube — nem da mãe deles e nem deles. E, mesmo aí — num tipo de teatro interior que ele monta como sua cena de vida ideal — ele volta a invocar a presença da mãe: “minha mãe não gostava da mulher, aí não deu certo”. Dentro de uma casa de repouso, sob uma ótica invertida, João Amílton é realizado com a vida que teve, e lamenta apenas as marcas que a bebida deixou em si mesmo e na irmã, que acabou morrendo, de cirrose — o que ele também parece não lamentar, quando relata. É prisioneiro de um certo estado de felicidade apática. E contraria as denúncias sobre a vida de idosos trancafiados e solitários, abandonados pela família. Tampouco garante fidelidade a prognósticos de longevidade como um ganho do homem moderno. Seu legado é a simplicidade de sua história. Ser feliz com pouco é a lição. Ele cumpriu seu curso de vida mesmo num viés que parece estar fora da ordem: aos 68 anos, espera a morte chegar, e sente-se feliz por, finalmente, ter um pedaço de terra, não para que lhe sirva de renda ou para usufruir em vida, mas para ser sepultado quando morrer. E o orgulho que resta é ter vivido o bastante para desfrutar de um quarto, num recanto para idosos e conviver com amigos de igual sorte. Ousei achar ser conformismo o que talvez seja um sentimento muito maior, e que o distancia do apego — este que escraviza a maior parte de todos nós — e nos faz ser incapaz de se sentir feliz com... uma televisão no quarto, por exemplo. Ou até mesmo com a visita de uma estranha, que proporcionou um momento singular em sua vida: — Hoje foi o melhor dia da minha vida. Ninguém nunca tinha
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feito isso por mim: arrancado aqui de dentro (a mão aberta sobre o peito apertado da emoção que lhe escapa nos olhos…) todas essas coisas guardadas. Estou me sentindo mais leve. Estou feliz como nunca me senti. Deu-me um beijo de despedida — como um pai que acabou de receber de consolo a visita de um parente distante.
Sem nunca perder a fé Por Julmara Mendes
Jovem do agreste pernambucano, morador da cidade de Cupira — situada a 167 km da capital — trabalhava na roça do pai desde pequeno. Nascido em 10 de março de 1941 e filho de pais descendentes de italianos, tinha oito irmãos. Lá a vida era boa, pois a família tirava o sustento das próprias terras. Mas, cansado daquela vida sossegada e sem perspectivas, típicas do interior, ainda não tinha 20 anos de idade quando resolveu tentar a vida no Paraná. Acreditava que a vinda para o sul do país seria a melhor maneira de trabalhar e ganhar muito dinheiro. E foi assim que, nos idos de 1962, Odino Leite veio para Curitiba e ficou hospedado na casa de amigos por um bom tempo,
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sem conhecer a cidade nem as pessoas. A realidade logo se mostrou muito difícil. Diferente do que pensava, não era tão fácil encontrar trabalho e o jovem, tão disposto e cheio de sonhos, não tardou a se decepcionar. Para alguém que viveu na infância com fartura, Odino estranhou quando até fome passou, diante das dificuldades na nova terra. “Lá em casa, a gente tinha tudo do bom e do melhor. Era tudo simples, mas a gente nunca passou necessidade”, lembra. Seus pais faleceram de maleita assim que ele veio para Curitiba e, desde então, nunca mais voltou para a sua terra de origem. Embora tenha boas lembranças da infância em Cupira, após a perda dos pais, não mais cogitou voltar para lá e adotou Curitiba como sua cidade, pelo simples fato de se sentir querido por todos. “Águas passadas não voltam mais, né? Quero saber é daqui prá frente”, pondera. Outra grande decepção que teve na vida foi o fato de não conseguir se alistar. “Queria servir à pátria, mas era muito pequeno e o oficial me cortou fora”. Hospedou-se, então, na casa de um colega de nome Auxílio Santos. Incansável, procurava emprego todos os dias, sem êxito. “Comprava jornal, tentava de tudo, mas nada dava certo. Naquele tempo não tinha serviço”. Contudo, depois de cinco meses de buscas incessantes, finalmente encontrou uma vaga de servente de pedreiro. Para quem nunca tinha trabalhado com construção teve que aprender na prática do dia-a-dia. A empresa era a Construtora Isa, localizada na região central de Curitiba, no bairro Rebouças. E é com muito orgulho que Odino conta a história do seu primeiro e único emprego, no qual permaneceu por 35 anos. “No primeiro dia, cansei bastante, mas eu tinha o maior prazer em trabalhar
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para ter o meu dinheiro. O que me mandavam fazer, eu fazia”. Depois de dez anos na mesma empresa, Odino deixa de ser pedreiro e passa a trabalhar na administração. “Graças a Deus, nunca me chamaram a atenção”, diz com a satisfação estampada no rosto. Pacato, nunca foi de frequentar bares, como faziam os colegas. Ia da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Mas, a vida não é só trabalhar e, no escritório da própria empresa encantou-se com uma moça da contabilidade. Luzia Damaceno dos Santos era a contadora da construtora e, em pouco tempo de namoro, os dois resolveram se casar. Mal sabia ele que a vida lhe pregaria mais uma peça. Odino conta que o namoro teve um início, no mínimo, inusitado. Um certo dia, ele se encheu de coragem e foi perguntar sobre Luzia para um senhor que trabalhava há mais tempo do que ele na empresa. E qual não foi a surpresa quando constatou que o homem para quem dirigia as perguntas era o próprio pai da moça. Tímido, educado e respeitoso, somente depois de seis meses desse fato se aproximou novamente de Luzia e, aí sim, os dois começaram a namorar. Sete meses depois noivaram e, quando já estava bem próximo do casamento, Odino perdeu aquela que seria a sua futura esposa. Com sérios problemas de saúde, ele não soube explicar a causa da morte da amada. Enfim, diante dessa grande decepção amorosa, Odino se manteve solteiro e não teve filhos, com medo de perder alguém novamente. Carlos Augusto Shuertz de Oliveira era o dono da empresa onde o pernambucano trabalhava. Conta, todo faceiro, a confiança que seu chefe depositava nele. “Ele saía e deixava a chave do cofre comigo”. Ex-coronel, dono de vários hospitais e supermercados em Curitiba, Shuertz também perdeu a esposa cedo. De repente, o velhinho para
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e, mesmo sendo autorizado, pergunta se pode falar. Parecia que ia falar algo muito feio ou fazer algum comentário constrangedor. Mas, que nada. É assim mesmo que ele faz quando vai falar qualquer coisa que não seja de bom tom ou que ele ache não ser conveniente. É apenas o seu jeito de se expressar, uma mistura de excessiva educação com outro tanto de timidez. Então, abaixando o tom de voz, quase sussurra: “O patrão era mulherengo que só... Gente rica é uma praga, sabe? Ele tinha aquele Galaxy, o carrão da época” revela, em tom de segredo, como se fosse algo abominável de se dizer. Por conta do trabalho, Odino teve a oportunidade de conhecer grande parte do Paraná. “O Brasil é o melhor país do mundo, tem de tudo”, fala com conhecimento de causa, pelas andanças que teve na vida, ora por visitar as obras, ora por ter que fazer pagamentos a funcionários. Com a vida pautada no trabalho e na dedicação ao patrão, mesmo tendo oportunidade de ir ao litoral nessas viagens, não ia. Não era por falta de tempo. Não ia simplesmente porque não gostava de praia. Também admite que nunca se interessou por esporte algum. Em compensação, adora animais de estimação. Sempre gostou. Lembra que teve um pitbull chamado Trodo, um cachorro muito querido, mas que infelizmente foi roubado. Segundo Odino, Shuertz fechou a construtora e mudou-se para Tomazina, cidade do norte pioneiro do Paraná, por ocasião do falecimento de um milionário, dono de uma das empresas para quem prestava serviços. O milionário se chamava Avelino Antônio Vieira, e foi o fundador do Banco Bamerindus, uma das maiores empresas brasileiras que, posteriormente, foi comprada pelo atual HSBC. Isso ocorreu há cerca de dezessete anos.
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Então, com o fechamento da construtora e a mudança do patrão para Tomazina, Odino aposentou-se. Mais tarde, com problemas na próstata, iniciou o tratamento no Hospital Evangélico. A experiência não foi das melhores, pois teve que tomar nove anestesias para realizar a cirurgia e isso fez com que sentisse muito medo. Sem pudor, mostra a todos a enorme cicatriz que lhe corta a barriga de cima a baixo. Como não tinha parentes ou amigos próximos que pudessem lhe ajudar na recuperação após o término do tratamento, o ex-braço direito de Shuertz foi encaminhado, por indicação de um amigo, para o Lar dos Idosos Recanto do Tarumã, local que paga quinhentos reais por mês para usufruir de tudo o que ali é oferecido. “Aqui é um tipo de sociedade. Todo mundo ajuda todo mundo”, enfatiza. E foi assim que, desde o dia 26 de março de 2012, passou a morar definitivamente nesta casa. Atualmente, o Lar dos Idosos Recanto do Tarumã conta com 120 idosos e atende exclusivamente homens acima de 60 anos. São pessoas que não possuem condições de cuidar de si, por não terem condições físicas ou por não ter a família por perto, como é o caso de Odino. Há todo um processo para ingressar na instituição, que começa com uma entrevista com a assistente social e segue com os exames médicos e avaliação psicológica. Somente depois de um período de adaptação de 30 dias é que o idoso decide se quer ficar ou não. Na maioria das vezes, a indicação para o encaminhamento inicial é da Fundação de Ação Social (FAS). Segundo me conta Odino, hoje em dia ele leva uma vida normal. Come de tudo ( alimenta-se cinco vezes por dia) e não tem pro-
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blemas de saúde. “Já sei que quando dá pressão baixa é só por um pouco de sal debaixo da língua e pronto”, comenta, em tom de quem sabe das coisas. Durante o tempo em que prestou serviços na construtora, afirma que nunca sofreu qualquer acidente de trabalho. “Eu me cuidava muito”. Mas todo o cuidado não se repetiu quando, Odino fez uma cirurgia de cataratas em uma das vistas. Por não seguir as recomendações médicas, teve como consequência um derrame ocular. Isso explica a visível cegueira de um dos olhos. No Recanto, Odino está há quase três anos, mas já fez amizade com todos os outros moradores e procura participar das várias atividades oferecidas pela casa. É praticante da musicoterapia, fisioterapia, psicoterapia e terapia ocupacional. A instituição possui uma equipe formada por médicos residentes em geriatria, que tem como responsável técnico o médico José Mário Tupiná Machado, além de enfermeiras, cuidadores e demais profissionais que cuidam da saúde dos idosos 24h por dia. No lar, ainda são organizados passeios a parques e praia, bailes e comemorações festivas. A estrutura ainda conta com um salão de jogos, biblioteca, sala de alfabetização, campo de bocha, sala de música. Animado, Odino fala com alegria que participa de quase tudo o que é oferecido pela casa. Do tempo em que trabalhou na construtora, tinha consciência de que precisava fazer seu pé de meia, como forma de assegurar uma velhice tranquila. Economizou um dinheirinho e hoje tem uma casa alugada no bairro Campina do Siqueira. O aluguel da casa, somado com o dinheiro que recebe da aposentadoria, lhe permite viver de forma digna no Recanto do Tarumã. Poderia estar em melhor situação, pois investiu todo o dinheiro que ganhou durante os 35 anos
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de trabalho na construtora, em criação de gado. Odino conta que foi ludibriado e roubado por um estelionatário que, segundo lembra, tinha o nome de Nilo de Oliveira. “Em tudo o que a gente vai fazer tem que pensar duas, três vezes. O que é bom a gente distribui pra todo mundo, o que é ruim a gente deixa de lado”, pondera, ao pensar no homem que tanto lhe prejudicou. E, assim, sentados na “salinha dos computadores” do Recanto do Tarumã, numa conversa totalmente informal, esse senhorzinho que a principio falava pouco, dispara a falar. A todo instante, tenta passar mensagens positivas, quer seja em alguma frase dita pelos pais durante o tempo em que conviveram na roça, quer seja nas próprias vivências. De repente, entra na sala um senhor bem vestido e começa a falar alto com outro colega, até então calado. Embora estivesse visivelmente constrangido pela atitude do colega, Odino não fala nada. Em vez de criar caso ou chamar a atenção dos amigos (que travavam uma conversa acalorada, ora sobre futebol, ora sobre política), preferiu sair dali e encontrar outro lugar mais tranquilo. Nessa hora ficou evidente que ele realmente não gosta de entrar em atritos desnecessários. “Não gosto de gente enjoada, nem mal educada. Não gosto de brigas nem de discussões. Procuro não ter bronca com ninguém, pois não gosto que sobre pra mim”, afirma, um tanto envergonhado ainda, pela atitude do colega. Por gostar de pessoas educadas, uma de suas máximas é a de que “quando somos educados, todo mundo nos trata bem”. É assim que aplica as lições dos antigos, sabedoria vinda lá do sertão. A nova sala é bem melhor do que a primeira. Parece ser um quarto especial, pois tem banheiro, sofá, cadeiras, televisão, rádio.
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Sem ninguém para atrapalhar, o ex-pedreiro continua a sua narrativa. Em determinado momento, demonstrando possuir uma memória invejável, o aposentado afirma lembrar-se de todos os nomes de rua do centro de Curitiba. A breve interrupção não o fez perder a vontade de mergulhar no passado e contar suas experiências. De família religiosa, Odino gosta muito de falar em Deus. Acredita que devemos ter uma vida mais saudável e, para isso, termina a conversa com a afirmação de que “todos nós temos que ter sossego na vida e tirar um tempo para Deus. Deus é Pai de todo mundo. A gente sem Deus não é nada”.
Lourival e a coragem de escolher a própria vida Por Camila Babetto
Sentado em uma poltrona vermelha de frente para a televisão, sua melhor companhia, encontra-se Lourival Zimann. Está cercado por vários homens, hoje já velhos. Todos descansam e tentam não pensar no passado. Lourival tem cabelos completamente brancos, olhos de um azul muito claro, já quase não mais notados, pois as rugas na face que não puderam ser evitadas escondem a beleza por trás deles. Sobraram somente marcas de um alguém que não é mais o jovem cujo amor imaginou ser eterno. A vida mostrou-lhe ser bem mais dura do que pareceu ser um dia.
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Dono de uma voz carregada de sotaque, um pouco rouca, mas mesmo assim suave e simpática. Lourival é acanhado. Difícil arrancarlhe algumas palavras, mas quando vai se ganhando espaço e confiança, ele logo se mostra disposto a revelar uma boa história. Não o tipo de história que estamos acostumados a ouvir, com grandes aventuras, paixões surpreendentes, felizes para sempre ou finais gloriosos, afinal, a vida nada se parece com um conto de fadas. Essa é uma história real, de um homem que batalhou muito, conquistou muitas coisas, mas que também renunciou, abriu mão de pessoas e relacionamentos, se decepcionou, sofreu, viveu e ainda vive, como ele mesmo disse.,“até quando Deus permitir”. Lourival nasceu no dia vinte e oito de maio do ano de mil novecentos e trinta e três, em Curitiba. Filho de pais humildes, trabalhou desde muito cedo. Entre as profissões que teve, foi como servente de obras que conseguiu conquistar moradia própria, carro, um casamento e manter por muito tempo a mulher e os filhos. Lourival aperfeiçoou seu trabalho e se dedicou muito até se tornar mestre de obra. Durante o tempo que esteve casado, viveu momentos felizes na casa onde morava no Pilarzinho em Curitiba, mas, assim como acontece com todo mundo, também teve muitos desentendimentos e dificuldades em seu. “Ela era meio ruim”. Talvez a expressão certa fosse personalidade forte, assim como a de Lourival – quando ele toma uma decisão, não volta atrás. Com 56 anos, faltando pouco para se aposentar e sossegar, Lourival recebeu uma proposta de trabalho. Tria que viajar muito, e assim ficaria mais tempo fora de casa. Na época, seus dois filhos já eram casados, e para ele essa seria uma boa oportunidade, pois seu
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salário melhoraria e trabalharia por apenas mais alguns anos. A mulher não aceitou. Foi o estopim. “Ficamos amargos um com o outro”. Lourival e a mulher continuaram juntos por mais alguns anos. Apenas moravam juntos. Quem sabe ainda se amassem. Mas a amargura é capaz de torturar, tirar a paz e acabar com o prazer de se viver na companhia de quem a causou. “Cansei de trabalhar em obra. Já estava aposentado. Decidi que ia seguir a vida. Sai de casa. Comprei um lote no Bairro Alto com um dinheiro que tinha guardado. Não consegui construir uma casa para eu morar. Então dei para meus filhos, que juntaram dinheiro e fizeram duas casas. Os dois moram lá até hoje. A mulher está lá também, foi morar com a filha. Desde a separação, nunca mais a vi. Eu a princípio fui morar em uma pensão no Pilarzinho próxima a minha antiga residência. Tive alguns bons amigos que me ofereceram suas próprias casas, mas eu não fui não queria depender em nada dos outros”. Coragem! Coragem ou loucura? Lourival, um homem já de idade, decidir largar tudo e seguir a vida, ou melhor, recomeçar a vida depois dos 60 anos de idade? Acredito que sim, é preciso muita coragem. Eu o admiro sinceramente, mas estou certa que é preciso uma pitada de loucura. Em um momento da trajetória, tomar uma atitude como a de Lourival é quase incompreensível, é arriscar, é tudo ou nada. E só ele é capaz de emitir um julgamento próprio porque foi ele quem viveu as consequências das suas escolhas. “Fico pensando, a gente faz cada burrada de vez enquanto que não dá certo. No total, morei em três pensões, mas eu não me ajeitava. O dinheiro foi acabando. Então me restou as ruas, minha mais
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nova moradia. Fiquei meio desorientado. Comecei a beber. Não, antes não bebia, a não ser, é claro, uma cervejinha de vez em quando. A bebida me esculhambou. Não teve jeito, me descontrolei, quando percebi já estava bebendo além do que poderia ter imaginado um dia. Não cheguei a me tornar um viciado, bebia mesmo para suportar a fome, o frio, o medo, a ausência das pessoas que amei”. Quando pergunto sobre arrependimento, Lourival balança a cabeça, como quem ficou em dúvida; mas, sem demora, responde com firmeza. “Voltar para casa? Não. Sou um cara que, quando decido, não volto atrás. Sentia falta da mulher e dos filhos, mas não, não voltei”. “Na rua, a vida não é fácil, ainda mais para um homem com a idade já avançada, como é o meu caso. Nos primeiros dias, não sabia como era passar noites acordado. A minha cama era um papelão. Desde aquela época, aprendi a não dormir. É triste, bem triste, mas com tudo a gente acostuma. Tive que me virar. Achava ridículo pedir dinheiro, então oferecia meu trabalho. Perguntava nas casas se não tinha serviço, limpava terrenos, fazia uns bicos, assim ganhava uns trocados para comprar comida nesses restaurantes bem pequenos. Mas como eu disse, já estava velho e bebia, é difícil darem trabalho para uma pessoa assim. Engraçado: para conseguir um prato de comida era muito difícil, pouca gente dava, mas bebida, muitas vezes, nem era preciso pedir”. Minha curiosidade me levou a perguntar a Lourival o que ele mais sentia vontade de comer e não podia pela situação em que se encontrava. Na hora, sua expressão mudou. Com um largo sorriso, ele revela: “ah! Sou meio carnívoro. Antes, uma ou duas vezes na se-
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mana eu almoçava em uma churrascaria. Gosto muito de carne. Nas ruas era raridade. Hoje aqui ainda é difícil eu comer, eles fazem mais frango”. E Lourival, como que sentindo o cheiro da carne na brasa, solta uma risada tímida. “A fome é muito ruim. O frio? O frio é uma tristeza. Os dois juntos são uma tortura. Não gosto nem de lembrar. Deus me livre! Ficava bem encolhidinho debaixo de uma marquise. Eu escolhi essa vida, então tinha que aguentar o sofrimento. Ainda bem que sempre fui forte. Minha doença era no máximo uma gripe. Graças a Deus, nunca precisei procurar um médico. Hoje, aqui na casa, é que estou meio azarado, com uma tosse que não quer me largar. Outro dia fiquei na enfermaria no oxigênio. Meus 81 anos já começaram a pesar”. Reservado, Lourival diz que prefere ficar no seu canto, mas na rua foi preciso viver em grupo para poder sobreviver. “De amigo só tive um, o Zezinho, um pouco mais novo do que eu. Esse cara era bacana. Ficávamos o tempo todo juntos, nosso reduto era o Passeio Público. Gostávamos de ficar lá por ser mais calmo. Durante o dia, podíamos dormir. De noite andávamos até altas horas conversando, o Zezinho adorava contar casos que via ou ouvia pelas ruas”. Quando batia o cansaço, os amigos procuravam um lugarzinho mais isolado, debaixo de uma marquise, um cantinho em que pudessem se proteger do vento, do frio, da chuva e das outras pessoas. “O Zezinho ficou comigo bastante tempo, até que um dia ele foi dar umas voltas sem mim e eu nunca mais o vi. Não sei o que aconteceu com ele. Às vezes, acho que ele morreu. Às vezes, acho que ele ainda está por aí debaixo de uma marquise. O que eu gostaria era que ele estivesse bem, que tivesse voltado para a casa ou simplesmente tivesse dado
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sorte, assim como eu, de encontrar um lugar bom para viver”. Lourival frequentava albergues para tomar banho, trocar de roupa, passar algumas noites e comer a única refeição oferecida por eles, o café da manhã. Ele ficou algum tempo, devido à idade, na Fundação de Ação Social (FAS), mas não se adaptou, pois o local é frequentado por pessoas de várias idades com diversos problemas sociais. Foi informado sobre a casa de repouso Recanto Tarumã e aceitou ser transferido. Mora no lar desde 2012. Lourival deu entrada na instituição com quadro grave de desnutrição e debilidade física. Recebeu os devidos tratamentos e diz ser bem cuidado e gostar de morar na casa. Existem muitas pessoas de todas as idades perambulando pelas ruas. Eles são imperceptíveis aos olhos de muitos cidadãos que seguem suas rotinas e não mais ouvem as vozes quem vem das calçadas. Essas pessoas não podem ser vistas como incômodo. São seres humanos e merecem serem tratados como tal. Assim como Lourival, quase todos tiveram família, emprego, casa, um propósito. Para quem já esta nas ruas há anos, ou para quem acabou chegar, a dificuldade a ser enfrentada é a mesma. A indiferença, o olhar desconfiado, o preconceito, a ausência de solidariedade e compreensão só colaboram para a falta de autoestima da população de rua.
os autores
Maura Oliveira Martins Orientadora deste projeto, é professora e coordenadora do curso de Jornalismo da UniBrasil desde 2008. Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 2002, pesquisa temas relacionados ao jornalismo literário e outras estratégias de representação do real nos produtos midiáticos.
Paulo de Siqueira Formado em comunicação social pela UNIBRASIL em 2013. Escreveu o livro “O Jogo Antes do Jogo”, que relata a história de vida de seis atletas paralímpicos de Curitiba e Região Metropolitana. O livro foi finalista do prêmio Expocom, em 2014.
Camila Babetto Camila é técnica de enfermagem desde 2010. Ingressou no curso de Jornalismo em 2013, em busca de uma nova carreira.
Indiara Cordeiro Indiara é estudante de Jornalismo, com ingresso na turma de 2013.
Julmara Mendes Julmara é corretora de imóveis desde 1993 e ingressou no curso de Jornalismo em 2012, em busca de realizar o sonho de ser escritora. Cursando jornalismo descobriu outras possibilidades de desafios a serem alcançados, além de escrever.
Nelci Guimarães Nelci Guimarães é jornalista formada em 2008 pela UniBrasil. Autora do livro reportagem “O autismo é outra história”, vencedora do primeiro lugar na categoria livro no prêmio Sangue Novo, em 2008.
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