Bordado Madeira

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Contos com história sobre a Cidade do Funchal

BORDADO MADEIRA Carla Patrícia do Vale Lucas Madeira (2005)



FICHA TÉCNICA

Bordado Madeira Autora: Carla Vale Lucas Ano: Madeira, 2005

Conto publicado no Livro intitulado Santa Maria Maior: Com palavras nascem histórias (2), por ocasião dos Jogos Florais Populares “António Feliciano Rodrigues (Castilho)”, promovido pela Junta Freguesia de Santa Maria Maior, em 2005, tendo obtido o 3.º prémio.

Referência: Lucas, C. V. (2005). Bordado Madeira. Em Santa Maria Maior: Com palavras nascem histórias (Vol. 2, pp. 23–31). Funchal: Junta Freguesia de Santa Maria Maior. ISBN: 972-99448-3-0


BORDADO MADEIRA

Tecido de linho rendado; agulha; dedal; linhas; passado – uma história de outrora entre outras tantas; presente – acabado de preencher e futuro – ainda por urdir... são os materiais necessários para fazer este “Bordado Madeira”.

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Sentada num pequeno muro, voltada para o Atlântico… pernas cruzadas uma na outra, pano rendado na mão esquerda, agulha na direita, negalho de linhas ao pescoço… enfio a linha na agulha, com alguma demora. Procuro encontrar tempos de outrora, capazes de relatar a história deste lugar onde estou sentada – junto ao Forte de São Tiago. Dei um primeiro ponto ao qual se seguiram outros tantos. Misturei neles a vida, o vento, as madrugadas… misturei neles a noite, o escuro e o medo, mas acima de tudo a força e a luta. Fui aos poucos fazendo os caseados, que com as suas muitas voltas me levaram a uma remota época natalícia… fui aos poucos desenhando a tradição que, mesmo extinta aquando o advento da república, permanece viva num, por vezes, fugaz recordar. Desfiz uns três pontos e comecei por desvendar a história de um menino de madeira, o Menino Perdido, prendado com muitas jóias, com pesado ouro e fios de pérola… Tratava-se da imagem de Jesus que, ano após ano, era escondida pela cidade, logo após a festa dos Reis Magos. Fui assim seguindo, ponto a ponto, o seu trajecto… Vi-o sair discretamente do convento de Santa Clara para ser escondido nalguma casa fidalga, sendo a Abadessa a única depositária deste segredo.

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Imensurável era a agitação e euforia daqueles que, convidados pelas freiras do convento, tentavam descobrir o paradeiro do cobiçado Infante. Assim, as cores com que os bordei – amarelo e vermelho – traduziam o sentimento que os preenchia. Parei uma vez mais… Deixei-me refrescar pela aragem fria que roçou o meu rosto. Mudei a cor da linha… coloquei-a na agulha e pespontei o próximo ponto e outra história consegui desvendar. Certa vez, coube ao comandante do forte de São Tiago guardar o menino. De tão contente que ficou, não conseguiu conter a sua alegria e o vermelho com que o talhei no pano, deu lugar ao negro… Por ter disparado cento e um tiros em louvor a Deus, o pânico instalou-se e varreu todas as ruas da cidade: as milícias tomaram os seus postos e toda a gente fugiu para dentro das suas casas, já que se temiam os assaltos dos piratas. O comandante, encaminhado para conselho de guerra, foi apenas condenado a pagar a despesa da pólvora ao Estado, já que havia demonstrado ser bom cristão. Fiz uma pausa, logo que acabados os caseados.

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Não tardei a urdir garanitos e logo me deparei com o presente, o presente desta freguesia – Santa Maria Maior. Fiz renascer as suas ruas estreitas e calcetadas, os fornos caseiros ainda resistentes ao tempo, os remates do telhado com pombinhas, cabeças de menino… Enfim, em cada enlace, em cada fusão das linhas com o pano, escrevi parte da história desta freguesia, centro histórico. E com outros tantos pontos: cavacas, bastidos e corda talhei, fio a fio, cada momento que, em aberto, construiria todo o futuro até que os negalhos de linhas chegassem ao fim e constituíssem, num prospecto futuro, este Bordado da freguesia de Santa Maria Maior.

Bibliografia: Pereira, Eduardo C. N. (1989). Ilhas de Zargo - volume II, pag. 514 a 516

Carla Patrícia do Vale Lucas (2005)

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AUTO-BIOGRAFIA


Sentei-­‐me junto às esquinas do meu pensamento, sem saber o que escrever… pediram-­‐me uma autobiografia, mas o que encontro nos rebordos do meu tempo são pequenos rascunhos do que sou e do que quero ser. Escutei os espectros da natureza tentando em vão me encontrar… Nasci mulher, tal como podia ter nascido flor, folha, pássaro, areia, pedra… numa eterna primavera. Nasci com o dever de edificar o meu mundo, a minha vida. A natureza que me rodeia deu-­‐me os instrumentos, alguns dos quais não soube certamente aproveitar. Ofertou-­‐me tudo o quanto preciso para diariamente construir a ponte, que preenche o meu coração e me ajuda a caminhar rumo a algo desconhecido. Aos poucos, fui juntando uma a uma as tábuas que a viriam construir… juntei-­‐as com dedicação, aprumo e fui crescendo lentamente, aprendendo com as feridas, com as conquistas… conseguindo, por fim, entender os sinais da natureza! A todas as vitórias e a todas as suas anInomias, juntei a força… o apoio dos que me amam e, constantemente, me ajudam a tecer a corda sobre a qual me apoio, nos momentos bons e menos bons. Hoje, uma longa caminhada deixo para trás (talvez não tão longa como me quer parecer). Resta-­‐me um presente, onde se reflecte o passado… e um futuro, onde espero decalcar o poder das minhas mãos.

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Encontro-­‐me agora, num árduo e conOnuo trabalho, a edificar o décimo nono degrau da minha vida, no 1.º ano do curso de Psicologia -­‐ Universidade da Madeira. Sinto que o espaço entre um degrau e outro é, agora, ínfimo… o tempo parece ter apagado os vesOgios de dúvida que até ali me guiou, sendo que estou a ponto de iniciar mais um ano neste curso, certa de que o meu coração aprovou a minha escolha. Não obstante este ritmo acelerado, conInuo a querer espelhar-­‐me na natureza, a querer inscrever-­‐me dentro de tudo o que me rodeia, como matéria, como energia… Sempre gostei de ler e escrever… Cada palavra, caída sobre o papel, parecia apaziguar o medo de cair, na construção do que sou. Ao mesmo tempo, como por magia, parecia alicerçar os meus sonhos, que logo começaram a crescer e dar frutos, mesmo que ainda verdes. Aos catorze anos, no décimo quarto degrau da vida, publiquei o meu livro de poesia “O Ensejo de PoeIzar”. Hoje, ao folheá-­‐lo, percorre o meu corpo algo indescriOvel… Quero acreditar, que este foi um primeiro passo que me deu força para lutar, para construir outros sonhos. No ano seguinte, fui convidada para dirigir o jornal BIS BIS da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal, do qual ainda hoje faço parte. A entrada no Ensino Secundário marcou um período importante na minha vida! Deixou nele marcas, que se perpetuaram neste caminho sobre o qual me construo. O ano 2002 teve também um cunho especial, em parte devido à conquista do prémio “Jovem Prodígio”, promovido pelo InsItuto de Juventude da Madeira.

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Em 2003, fui galardoada com o primeiro lugar no concurso Jogos Florais da Ameixoeira – Lisboa e o 2.º lugar no Certame Literário António Feliciano Rodrigues (CasIlho), promovido pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Na décima oitava tábua, usada para edificar a minha ponte, alcancei o 2.º lugar no concurso “Fórum Natural do Funchal” e hoje, no décimo nono degrau em construção, foi-­‐me atribuída uma menção honrosa no Prémio Nacional de Literatura Ferreira de Castro. Mas tudo isto são meros retalhos da minha vida, pequenas pedras que me ajudaram na construção de quem sou e de quem quero ser… No entanto, ao meu lado, tenho o que realmente me é essencial… a minha família e todos aqueles que passeiam pelo meu coração, todos aqueles que me fazem não ter medo de cair, de chorar e que me dão moIvos para sorrir. Sem eles, não conseguiria atravessar a ponte, que construí a cada segundo e que tenciono conInuar a construir, ladeada por uma corda de vitalidade e de amor, que para sempre me acompanha e beija de forma amiúde as minhas mãos. Assim, toda a natureza que me viu nascer… ver-­‐me-­‐á brilhar como o sol, sorrir como a flor, planar como a ave… porque sou mulher e, acima de tudo, quero conInuar a crescer interiormente, entregando-­‐me aos poucos aos esIos de desolação e a um tempo plácido, espelho de que com as minhas mãos me fiz nascer e, com a dos que me amam, caminhar sem medo, rumo ao meu sonhar!

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BORDADO MADEIRA Carla PatrĂ­cia do Vale Lucas Madeira (2005)


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