Força de Viver Carla Patrícia do Vale Lucas Funchal, 2002
Ficha Técnica: Força de Viver Autora: Carla Patrícia do Vale Lucas Local: Funchal Ano: 2002 Nota: Este conto foi vencedor do concurso “Jovem Prodígio” promovido pelo Instituto de Juventude da Madeira, em 2002, quando a autora tinha 16 anos.
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Sinopse
E
le, um jovem médico, tentando aproveitar ao máximo a sua liberdade... Ela, uma bela rapariga confrontada com os mais variados obstáculos que a vida pode pregar. Sozinha no mundo, mas com
vontade e desejo de ajudar os outros, vê-se obrigada a seguir um caminho diferente daquele que sempre quis para si e com o qual sempre sonhou. A fama que adquirira, unicamente com a sua imagem exterior, não conseguiu apagar o vazio em que o seu coração mergulhava. Mas tudo veio mudar o que lhe parecia um caminho já traçado. Numa bela noite, viu-se, sem qualquer aviso do destino, a embalar uma criança nos braços. A esperança voltou a renascer no seio do seu coração e as prioridades da sua vida voltaram a ser outras. Abdicava, aos poucos, da glória que conquistara e voltava a dar asas ao sonho adormecido. Apenas com o choro de uma criança, o amor veio despontar no coração destes dois jovens. A vida dos três, a partir daquela noite, ficou traçada nas estrelas e nada nem ninguém os conseguiria separar, nem mesmo o passado com os seus mistérios, nem mesmo o facto da verdade chegar tardiamente e trazer com ela o medo, a culpa e a dor tudo porque tinham FORÇA DE VIVER!
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Prólogo
A
vida prega-nos partidas e faz do caminho que percorremos algo que desconhecemos. O rumo que tomamos no nosso dia a dia é influenciado pelo tempo, pelo espaço e, em especial, pelas circunstâncias em que
estamos envolvidos. Assim, por vezes, o trajecto que queremos atravessar para chegar a um futuro, já construído nos nossos sonhos, é alterado e tudo nele opõe-se ao que acreditamos e ao que desejamos alcançar. Percorremos caminhos que nunca quisemos para nós, acomodamo-nos ao que então conseguimos sem que para isso lutemos para conquistar os nossos verdadeiros objectivos e sonhos. Esta história que a seguir vos conto é o retrato de uma grandiosa força de viver, a que todos nos devíamos entregar. Ao longo deste conto deparamo-nos com uma luta por parte das personagens principais, algo tão persistente que os leva à vitória e à conquista dos sonhos, que por mais adormecidos que estejam proliferam dentro de cada um de nós e lançam-nos no caminho da alegria. Sentimentos como o medo e a resignação dão lugar à perseverança e à esperança, sinónimo de confiança e de algo tão forte como o amor. Assim, as vidas das personagens estão entrelaçadas, para que o dom da espera venha a dar frutos – uma felicidade duradoura.
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Num mar de lágrimas, Num manto de sofrimentos, Acredita que é possível. Acredita nos teus sentimentos Acredita no teu coração indestrutível. E acredita que é possível vencer!
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E
ra uma bela madrugada, uma madrugada silenciosa que esperava calmamente pela euforia do alvorecer, quando Cíntia saiu de casa. O seu porte esbelto, os seus cabelos louros quando acariciados pelo sol, os seus olhos esmeralda e a sua forte adoração e dedicação pelo trabalho
confrontavam as suas vinte e três primaveras com uma beleza inimaginável. O relógio assinalava as seis horas da manhã, por isso tinha sessenta minutos para chegar à Clínica onde trabalhava como enfermeira. Tinha tempo então, por isso caminhava vagarosamente pensando como se sentia gratificada ao ajudar todas aquelas vidas. Quando chegou à Clínica ainda era cedo para entrar, por esse motivo sentou-se em frente da mesma a meditar e chegou à conclusão que a sua vida não podia ser alimentada somente por sorrisos, precisava ter um salário melhor para se poder sustentar e pagar as dívidas contraídas pelos seus pais, quando compraram o apartamento onde moravam, dois meses antes de terem falecido num acidente de viação. Mas a verdade era que não queria mudar de vida. Sentia-se bem tal como estava.
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De repente, levantou-se do banco onde estava sentada e caminhou rumo à Clínica, pronta para trabalhar, apesar de quarenta minutos adiantada. - Cíntia, já aqui tão cedo?! Tu não te cansas, passas a vida a trabalhar! Quem me dera a mim ter essa tua força! - exclamou Guida, pronta para acabar o seu turno. - Eu gosto do que faço!- respondeu Cíntia com a sua voz melodiosa. - Se eu fosse como tu, ou melhor, com esse físico aceitaria aquela proposta para trabalhar como modelo! - Sabes que não dou importância a essas coisas, o que eu mais queria era poder mudar este mundo e ter a certeza que a minha ajuda seria recebida com muito agrado por parte de todos. - Vê lá Cíntia, podias fazer tudo isso... com os teus cabelos claros e com os teus olhos verdes esmeralda cativavas toda a gente e com o teu coração e força ajudavas as pessoas, fazendo nos teus tempos livres trabalhos para a Clínica, que tanto gostas. Era fácil, conciliavas as duas coisas! - Não sei! Mas nesse teu ponto de vista, talvez fosse uma boa ideia. Sabes, a verdade é que preciso de dinheiro, para pagar as minhas dívidas. - Já te disse, aceita o convite e com toda a certeza não será necessário saíres da Clínica, podes trabalhar a part-time. - Mas Guida, o melhor é não criar falsas expectativas. Eles já devem ter esquecido da proposta que me fizeram. Esquece, eu não consigo! - Mas o que é isto?! Agora andas pessimista? - Posso saber o que se passa aqui? – interrompeu a chefe das enfermeiras, Dona Bernardete, bastante irritada, que não gostou de as ver a falar ali porque havia muito trabalho a fazer - Isto não pode ser, esta desordem tem que acabar!!! Cíntia iniciou o seu trabalho, seguindo as ordens da enfermeira chefe, mas os seus pensamentos vagueavam por outros caminhos. Na verdade, não queria perder o emprego mas, o dinheiro que ganhava não era muito e como era do seu conhecimento que a Clínica estava a atravessar grandes dificuldades financeiras, não tinha coragem de pedir um aumento, por isso não excluía a hipótese de vir a tornar-se uma modelo.
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Apercebendo-se da preocupação de Cíntia, Guida telefonou para a agência de modelos, e sem esta saber marcou-lhe uma entrevista para o dia seguinte com o director da agência. - Cíntia tenho uma boa notícia para te dar, só espero que não fiques aborrecida comigo, fiz tudo isto para teu bem. - Vá diz lá, que misteriosa notícia é essa? - Eu, Margarida Freitas, tenho o prazer de comunicar a vossa excelência que amanhã terá uma entrevista com o director da agência de Modelos. - O quê?! Como foste capaz de fazer uma coisa destas, sem antes me consultares? Estou extremamente irritada contigo, não o devias ter feito! - Cíntia, não fiz por mal, só quis ajudar. Por favor, tenta compreender-me, só o fiz porque sei dos problemas financeiros que estás a atravessar. Cíntia sentou-se numa das cadeiras do corredor da Clínica e suspirou. - Está bem!! Agradeço a tua preocupação. Pensando bem, sou capaz de ir a essa entrevista. Desculpa a forma como te tratei. Não o merecias, és uma grande amiga e sei que nunca farias nada para me prejudicar. Obrigada minha querida amiga! Com lágrimas nos olhos as duas cruzaram um olhar e abraçaram-se, deixando no ar uma onda de grande emoção. No dia seguinte, Guida acompanhou Cíntia até ao local da entrevista. Um grande prédio, estilo moderno, rodeado por um grande jardim com uma mistura estonteante de cores e aromas de variadas flores que prendiam a atenção de todos. Cíntia e Guida sentaram-se num dos bancos de jardim, à sombra de uma exuberante Magnólia, abundantes na Ilha da Madeira. À medida que ouviam o chilrear dos pássaros que entoavam verdadeiros hinos à vida, reflectiam sobre o passo que, agora juntas, dariam. Volvidos alguns minutos, levantaram-se e vagarosamente subiram a grande escadaria que as levaria à sala da entrevista. As pernas de Cíntia estavam flácidas e tremiam como duas varas embaladas pelo vento. Contudo, por maior que fosse a sua relutância continuava a não querer desistir dos seus objectivos.
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O director quando a mandou entrar, ficou perplexo com tamanha beleza, deixandose posteriormente envolver pela sua simplicidade e simpatia, admitindo-a de imediato para o trabalho. É engraçado como o rumo de uma vida pode mudar de uma hora para outra. Mas assim como a mudança abarca a realidade, o medo continua a marcar presença. A verdade é que Cíntia, ao invés de estar contente, temia e preocupava-se com a reacção dos seus patrões ao saberem desta sua decisão. No dia seguinte, logo que chegou à Clínica dirigiu-se para o escritório e logo bateu à porta do mesmo, e com enorme receio perguntou: - Posso entrar, doutora e doutor Fernandes? – ao mesmo tempo que abria a porta que estava entreaberta. - Entra, minha filha! O que te traz cá? – disse o Dr. Fernandes. Cíntia passeou o seu olhar pelo grande escritório. Os seus olhos irradiavam receio e a sua voz algum nervosismo, quando começou a falar. - Como já devem ter ouvido foi-me feita uma proposta para ser modelo a qual, após alguma meditação, acabei por aceitar. Quero-vos pedir que não me levem a mal por têlo feito, pois adoro ser enfermeira e gostaria de continuar a sê-lo, mas... O problema é que não posso trabalhar a tempo inteiro e... - E então querias trabalhar a part-time... mas não sei se pode ser! - interveio Augusto, com ar de brincalhão que também era administrador. - Está certo, mas... se acham que não é possível, não tem importância! O que tenho a fazer é despedir-me! – disse Cíntia desanimada, preparando-se para se retirar. - Ei minha filha, aonde pensas que vais? Ainda não acabámos e creio que tu também não! ... Estávamos a brincar contigo, claro que podes trabalhar a part-time. - disse a Dr.ª Fernandes olhando para o marido. - Verdade?! Obrigado, estou-lhes muito agradecida!!! - Não estejas, precisamos de ti! - replicou Augusto, com um sorriso maroto a contornar-lhe a boca. - Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Estou tão contente por ti, mas também pelo regresso do meu filho, que chega hoje de Paris onde esteve a estudar medicina! Hoje o dia parece sorrir, os meus filhos continuam perto de mim! Não fiques com essa cara,
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Cíntia – replicou Idalina, também presente no momento.- Sabes que te considero como filha. Dá cá um abraço!! - Cíntia, porque desististe do curso de medicina e optaste pelo de enfermagem? perguntou Augusto, tentando disfarçar a sua comoção, já que sempre desejara ter uma filha. - Sabe Dr. Augusto, a minha vida não tem sido fácil. Agradeço a Deus por me ter possibilitado este curso. Depois que os meus pais morreram não tive a mínima possibilidade de continuar a estudar e tive que optar pela carreira de enfermagem. - Nunca sentiste necessidade de voltar a estudar? - Senti e sinto. Espero agora com este meu novo emprego ter dinheiro para pedir transferência para o curso de medicina como sempre desejei. Os dias passaram. Cíntia parecia estar talhada para ser modelo, era como se já tivesse longos anos de experiência. Os seus actos eram naturais, leves, espontâneos e deixavam transparecer uma calma por vezes difícil de conquistar. A sua cara e a sua serenidade já eram bem conhecidas por todo o País. Na semana seguinte o Diogo, filho mais velho do Augusto e de Idalina foi visitar os pais à Clínica dando azo a que a sua mãe lhe falasse de Cíntia. Logo que entrou disse: - Olá mãe, como vão as coisas por aqui? - Vão muito bem! Que bons ventos te trazem por aqui? Pelos vistos tens andado muito ocupado com o novo hospital pediátrico pois raramente nos vens visitar! reclamou o pai. - Não ligues ao que o teu pai diz, estou muito feliz por aqui estares. Sabes filho, queria que conhecesses uma rapariga que trabalha aqui connosco... é muito bonita, simpática, tem um coração tão grande e muito carinhosa com os pacientes. - Estou a ver que pelo andar das coisas a tua mãe quer arranjar-te casamento! - Mãe?! Eu só tenho vinte e seis anos e não tenciono casar-me tão cedo! Somente a minha mãezinha para ter uma ideia tão tresloucada!!! - Não são nada ideias tresloucadas. Vocês os dois ficariam muito bem, juntos! Ouve o que te digo!
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- Está bem mãe! Agora vou andando, o trabalho não pode esperar! - disse Diogo, despedindo-se dos pais. - Já viste o que fizeste, assustaste o pequeno com essa história de casamento, além do mais a Cíntia pode ser uma boa rapariga, mas o que não lhe devem faltar são pretendentes. - Nada disso, eu pressinto que aqueles dois ainda se hão-de dar muito bem. - Deus me valha, para todas essas tuas maluquices! Ao sair da Clínica, Diogo saltou para dentro do seu descapotável vermelho, endireitou o espelho retrovisor, remexeu nos seus cabelos castanhos e sorriu com os seus dois profundos olhos verdes, enquanto pensava no que a sua mãe havia comentado. Olhando para o relógio pôs o pé no acelerador, arrancando rumo ao Hospital Pediátrico, onde desempenhava as funções de director e pediatra. Cíntia sentia-se feliz, mas não concretizada. O trabalho ocupava-lhe mais tempo do que o previsto, por isso não tinha disponibilidade nem força para exercer a sua profissão de enfermagem e assim ajudar os pacientes da Clínica. Alguns dias mais tarde estava à porta de uma livraria quando por ali passou o Dr. Augusto e assim que a viu dirigiu-se para junto dela e perguntou-lhe: - Como estás Cíntia? Pelos vistos muito bem, vendo pelas revistas! - Sim, pode dizer-se que as coisas correm bem, Dr. Augusto. No entanto,... - Cintia, tudo bem contigo?! Há quanto tempo não nos víamos... - exclamou eufórica Idalina, acabada de chegar. - Sim é verdade, tenho trabalhado muito e nem tenho tempo para ajudar o próximo, como gosto! - Mas continuas sempre com uma aparência óptima! É incrível tu e o meu filho desencontram-se sempre, se tivesses chegado uns dois minutos antes ficavas a conhecêlo! Mas que pena, queria tanto que se conhecessem! - Oh Idalina, pára lá com isso. - Então! Deixe estar Dr. Augusto quem sabe um dia, nós não nos encontramos. Na verdade, Cíntia tinha razão e esse dia não tardaria a chegar.
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Embora todos desejassem ficar mais um pouco a conversar não puderam porque Cíntia tinha um desfile nessa noite e já estava atrasada. Despediram-se e cada um seguiu o seu caminho. Uma semana depois, Cíntia foi dar um passeio com Guida, pois as saudades daquelas longas conversas começavam a bater à porta... Quando regressou a casa, já a noite estava cerrada. A lua escondia-se por detrás de um espesso véu de nuvens. Remexia a carteira à procura da chave de casa, enquanto ouvia o relógio da parede do corredor a assinalar as dez horas da noite. O silêncio que então embebia todo o seu prédio foi interrompido pelo choro de um bebé. Procurava... Procurava... e não adivinhava donde provinha aquele choro. Deambulava pelo corredor tentando encontrar alguma coisa... e nada. A sua única esperança era, agora, procurar dentro dos armários, abandonados dentro do próprio corredor. Mas como seria possível o choro provir dali? A verdade é que uma pequena criança chorava faminta, cheia de frio e muito assustada, dentro de uma pequena alcofa num desses armários que estava aberto. A sensação que Cíntia sentiu ao vê-la foi a de um total desconforto misturado com revolta e medo. O seu coração palpitava desesperado. Os seus braços, ainda dormentes pelo choque, estenderam-se e ancoraram a pequena criança ao seu corpo com muita força, enquanto caminhava para o seu apartamento, agora já com a chaves do mesmo na mão, as quais estavam escondidas a um canto da sua carteira. As mãos de Cíntia estavam trémulas e os seus pensamentos em confusão. Perguntava-se... Como seria alguém capaz de abandonar um bebé tão inocente? Agora, olhando para a menina que sustinha nos braços discou o número da polícia. O seu olhar prendia-se nela como que a abraçando com um amor maternal que brotava intensamente dentro de si sem explicação aparente. Passado algum tempo, uma multidão de jornalistas circundavam as portas envidraçadas do Hospital, para onde a pequena criança fora levada com o propósito de ser examinada. Enquanto isso, Cíntia deambulava pelos corredores do hospital, esperando alguma notícia. Andava, colocava as mãos na cintura, punha a mão sobre os cabelos e não
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conseguia pensar em mais nada. Lembrava-se, somente, como se sentira bem ao pegar no colo aquela tão doce criança - Esperança (como lhe chamava). Sentados, a assistir ao desespero de Cíntia, estavam alguns policiais e a assistente social que compreendiam e admiravam a angústia, o medo e em simultâneo o amor que Cíntia revelara por aquela pequena criança, cujo nome era derivado da esperança que mantinha viva a sua chama de vida. Cíntia com lágrimas a marejarem-lhe os olhos e com um grande aperto no coração por não ter notícias, dirigiu-se ao balcão de informações... - Há horas que não nos informam como está a bebé! Eu preciso saber como é que ela está! - Minha senhora aguarde por favor. Não vê que estou ao telefone! - Quero lá saber que esteja ao telefone, a única coisa que me importa é ter informações da menina e mais nada! Ouviu o que lhe disse? - Minha senhora, não lhe admito que me fale assim... - Eu falo como quiser! E a senhora em vez de estar para aí a decidir quem vai o supermercado, responda ao que lhe pergunto! – disse para a pessoa que estava a entender. - Cíntia, tenha calma! Não se preocupe, vá sentar-se que eu já lhe digo qualquer coisa! - interveio a assistente social, observando o seu nervosismo - Sr. Válter, traga-lhe um copo com água e açúcar, se faz favor! – disse para um dos policiais, e depois voltando-se para o balcão: - Por favor teria a gentileza de me informar sobre o estado da pequena Esperança! - Eu não lhe posso fornecer qualquer informação! Que tal falar com o médico que está a observá-la! Ele está mesmo ali... - apontou, a rapariga da recepção, para o rapaz que se dirigia em sua direcção. - Muito obrigada e desculpe aquela senhora. Ela está muito nervosa! - Boa noite, eu sou o Dr. Diogo Fernandes. Presumo que queira saber notícias da menina? - É claro! Doutor como é que ela está a reagir? - perguntou a assistente social.
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- Ela estava muito debilitada mas, neste momento, está a recompor-se. É uma bebé muito forte, e isso ajudou-a a vencer a crise. Cíntia que então ouvia a conversa levantou-se da cadeira e olhando para Diogo perguntou: - Será que posso pernoitar aqui, ao pé da Esperança, para ver como reage? - Por mim, não há problema algum. - Muito obrigado! - agradeceu Cíntia com uma grande felicidade que não conseguia, por mais que quisesse, disfarçar a tristeza e o medo que lhe banhavam o coração. As horas correram e a manhã chegou. Cíntia dormitara um pouco nos bancos do corredor do hospital. Nos seus sonhos tornara-se mamã e já via Esperança chamandolhe como tal. - Ei... ei... desculpe acordá-la, mas já é manhã e a sua pequenina está pronta para receber miminhos. - O que me diz, doutor?!!! - Exacto! A Esperança, como lhe chama, vai ter alta logo. Já lhe disse, para não se preocupar, a bebé está sendo bem cuidada! »Já agora, será possível que a conheça de algum lado? Sabe, este tipo de sensação não me é habitual, mas tenho a certeza que já a vi antes!!! Desculpe a minha intromissão, mas como se chama? – perguntou, envergonhado, Diogo, a pedido de um dos seus colegas de equipe. - Porque haveria eu de lhe dizer o meu nome? – perguntou Cíntia esboçando um leve sorriso. - Desculpe-me! Foi mera curiosidade, não precisa de se apresentar. Com licença! – desculpou-se, dirigindo-se para o pé do amigo a sorrir – Não te disse, ela só pode ser aquela modelo que tem aparecido nas capas das revistas. Só pode, senão teria respondido! - Claro que é! Vê esta revista, é ela!! Nesse mesmo dia, a assistente social veio falar com Cíntia: - Cíntia, queria perguntar-lhe se não se importava de ficar, temporariamente, com a menina até que encontremos um lugar apropriado para ela.
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- Com o maior prazer! Já agora, que estamos a falar neste assunto, queria perguntarlhe se seria possível adoptá-la! - Possível é... mas tudo leva o seu tempo, é um processo moroso e burocrático. Há que se preencher muita papelada; muitas investigações têm que ser feitas; mas há ainda um outro aspecto que vem complicar mais este processo - a autorização dos pais biológicos! - Mas será que posso dar entrada ao processo de adopção ou pelo menos tentar? - Claro, só não lhe garanto nada... Cíntia sentia que aquela criança faria, num futuro próximo, parte da sua vida. Desde o primeiro momento que a embalara nos braços, sentira o seu coração a despertar para um sentimento muito belo, um sentimento que enchia toda a sua vida de sentido e a mergulhava em esperança. E assim, o tempo que então passou não deixou de marcar cada passo, cada dia, cada noite na vida de ambas. Cíntia levava Esperança a passear pelos parques em contacto com a natureza, que as imergia num paraíso fora do real. Nos seus passeios, estavam também incluídas visitas à Clínica onde Cíntia trabalhava a part-time... Numa dessas visitas, Guida ao vê-las disse com um enorme sorriso: - Olá Cíntia, trouxeste hoje a pequenina! Olha como está bonita!! – depois abraçou-a e pegou na criança ao colo, com enorme ternura. - Ela cresceu imenso, não achas? – disse Cíntia. - Podes crer que sim! Não te esqueças, a Dr.ª Idalina está numa inquietação para te ver e à pequenina também. Ela deve estar a chegar. Alguns minutos depois entrava na Clínica e assim que viu Cíntia e a menina, correu para elas e exclamou: - Cíntia, minha filha, ai que saudades! Como é que vai, a menina mais bonita de todas? – referindo-se a Esperança, que sorria à medida que lhe fazia festas no queixo. - Ela está óptima e tem sido muito boazinha. - Eu tenho sentido muitas saudades vossas, essencialmente tuas, Cíntia! Anda daí, parece que é hoje que vais conhecer o meu filho! - Adeus Guida!! Cíntia acompanhou Idalina que a conduziu pelos corredores da Clínica.
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Nem imaginam o olhar espantado de Cíntia e de Diogo quando foram apresentados. - Diogo, esta é a rapariga de que te falei há uns dias atrás... é a Cíntia. Trabalhava antigamente aqui a tempo inteiro, mas agora é só a part-time, por causa da sua carreira de modelo... Filho, falei contigo! Estás a ouvir-me? - Vocês estão com cara de que já se conheciam! - interveio o Augusto surpreendido, mas sempre muito entretido a brincar com Esperança. - É verdade pai, nós já tivemos o prazer de nos conhecermos!!! - Eu bem te disse, Augusto! - exclamou Idalina, baixando a voz - Eles são feitos um para o outro! - Sim já nos conhecemos, mas não nas melhores condições, creio eu! - O que se passa?! Onde e como se conheceram? – perguntou Augusto com enorme curiosidade. - Do hospital, quando levei a menina para ser examinada. Enquanto ali estiveram, numa conversa animada, o firmamento escureceu. Algum tempo depois, da janela do gabinete onde estavam, podiam escutar a chuva a cair copiosamente e também o tumultuoso ribombar dos trovões. Da mudança brusca do tempo, podia-se adivinhar algo de ruim. - Cíntia, precisa de boleia para casa? - Agradecia se ma pudesse dar! A pequenina não pode apanhar frio. - Pois é claro que lha dou. Cíntia despediu-se e seguiu com Diogo. Uma conversa até bem divertida apoderouse do trajecto rumo a casa, enquanto que a chuva serenou e o véu de nuvens negras começou a dissipar-se. Ainda dentro do carro, à porta de casa, Cíntia pediu ajuda a Diogo: - Diogo, agradeço-lhe pela boleia! Mas queria pedir-lhe mais um pequeno favor! Será que podia tirar o carrinho da Esperança e montá-lo? Ela está cheia de soninho, até parece um anjinho a dormir, e eu não a quero acordar! - Sim é claro que posso, é sempre um prazer poder ajudá-la! A propósito, queira desculpar-me por aquele dia no hospital. Eu e o meu colega queríamos confirmar se era mesmo a famosa modelo.
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- Deixe isso para lá, não há problema algum! Quando por fim Cíntia olhou pelo vidro embaciado do carro e viu a figura de duas mulheres paradas em frente do seu prédio, sentiu um profundo aperto no coração. - Passa-se alguma coisa, Cíntia? – perguntou Diogo, acabando de abrir a porta para Cíntia sair. - Não, não é nada! Cíntia sempre muito pensativa e relutante saiu do carro, protegendo a menina com os seus braços, que emanavam calor. Caminhou vagarosamente... Não conseguia entender porquê, mas sentia o seu rosto transformar-se num pavio de tristeza. À porta do apartamento onde vivia, estava a assistente social juntamente com uma rapariga de longos cabelos pretos. - Boa noite Cíntia! Lamento, mas tenho uma má notícia para lhe dar! Encontramos a mãe da Esperança... O coração de Cíntia quase que parou, não queria acreditar no que os seus ouvidos ouviam... não podia acreditar que passado tanto tempo a iriam separar daquela que já fazia parte da sua vida. - “Esperança”! Não sei se deva rir ou chorar... Quem se atreveu a dar este nome horrível à minha filha?! - vociferou a mulher grotesca que acompanhava a assistente social. - Para que fique sabendo, foi eu que lhe dei o nome e acho-o louvável, pois fui a esperança que fez manter viva a essência desta criança que a senhora abandonou sem mercê alguma... - disse Cíntia. Entretanto Diogo, que tinha estado a montar o carrinho da Esperança, aproximou-se lentamente. O seu olhar era de espanto. Olhou para Cíntia e viu-a com um olhar lamentável, com olhar triste e distante e então percebeu o que estava a acontecer; olhou para aquela mulher e reconheceu-a de algum lado, pois vociferou algumas palavras: - Tu és... a Janete!!! - exclamou Diogo, prosseguindo com insinuações - Esta mulher é louca... - Oh Diogo, que fazes aqui? Deixa-me adivinhar... tenho a certeza que logo que aqui chegaste, apaixonaste-te por essa mulherzinha. Como se eu não te conhecesse!
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- Pára com isso! Não consigo perceber como foste capaz de abandonar a tua própria filha, mas o que me deixa mais revoltado é o facto de apareceres aqui a reclamar o trono de mãe, que já a ti não deveria pertencer... - Basta de confusão, a criança ainda se assusta! - replicou a assistente social, suspirando. - Lamento imenso Cíntia, sei que adoras esta criança mas já sabias que isto podia acontecer. Por favor entrega-nos a menina! Cíntia assim o fez, estendendo os braços muito vagarosamente. No seu rosto as lágrimas rolavam como a água de uma cascata, os seus olhos estavam tristes e tentavam pôr fim ao choro do seu coração. O seu corpo estava dormente, a sua cabeça parecia girar loucamente, nada conseguia ouvir, nada conseguia ver, até que de repente uma fraqueza inesperada apoderou-se do seu corpo, enquanto a assistente social tentava especular mais alguns factos, com Diogo... - Você não é o médico que cuidou da criança? - Sou sim... - Então como conhece esta rapariga? - perguntou a assistente apontando para Janete. - É simples! Eu estudei em Paris com esta rapariga e nem imagina o que aconteceu, as confusões que ela arranjou. Ela...- Diogo parou de falar, os seus olhos ficaram esbugalhados... Cíntia jazia no chão, desmaiada. A sua cara estava pálida, o seu rosto era percorrido por gotas de suor frio e o seu pulso estava débil. Talvez o não querer aceitar a perda desta criança se camuflasse naquele “sono inesperado”. O Dr. Diogo prestou logo os primeiros socorros e um momento depois voltava a si. - Leve-a para casa! – disse a assistente social para o Diogo - Coitada, sei o quanto lhe está a custar tudo isto, mas não posso fazer mais nada! O melhor é eu não estar aqui, quando ela acordar. Cuide bem dela!!! Ela bem precisa disso. Diogo, carregando Cíntia nos seus braços, abriu a porta do prédio e clamou por ajuda. De imediato, foi socorrido por uma das vizinhas que o levou até ao apartamento. Assim que entrou, Cíntia sentiu-se outra vez mal. O médico pousou-a na grande poltrona da sala; colocou a sua cabeça mais baixa que as restantes partes do corpo e permaneceu ajoelhado ao seu lado, beliscando ligeiramente as suas bochechas, enquanto que a vizinha aplicava água fria no seu rosto.
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Não tardou muito para que Cíntia despertasse. - Onde estou? Dói-me a cabeça! - perguntou tentando levantar-se. - Calma, não te levantes ... estás muito fraca! - Onde está a Esperança? - a sua voz parecia desvanecer no meio das lágrimas que rolavam pelo seu rosto, à medida que olhava para os seus braços vazios. Diogo, instintivamente, recostou a cabeça de Cíntia ao seu peito e acariciou-lhe os cabelos claros e macios, tentando transmitir-lhe conforto e amparo. E assim permaneceram até que o bip de Diogo ecoou pela sala, anunciando uma emergência no hospital. - Tem calma! Tudo correrá bem, basta acreditares e lutares que tudo se resolverá. Diogo encostou-a ao sofá e beijou delicadamente a sua face, despedindo-se. - Agora tenho que ir, mas prometo voltar o mais depressa possível. A dona Deolinda vai tomar conta de ti! Não te esqueças... descansa! - e olhando para Deolinda pediu: - Cuide bem dela! Não a deixe sair de casa e dê-lhe, se faz favor, uma chávena de café ou de chá quente. Mais uma vez muito obrigada pela sua ajuda e até logo. - Até logo...! Deolinda foi à cozinha, preparou um chá bem quente e aproximou-se de Cíntia dizendo: - É verdade, a menina tem que ter calma. O seu namorado há-de ajudá-la! - Está a falar de quem? - Do belo rapaz que acabou de sair, menina! - Do Diogo?! Ele é só um amigo, filho dos administradores da Clínica onde trabalho. - Pois muito bem, parece um bom rapaz! Menina, agora descanse e logo saberá como lidar com este assunto, da melhor maneira. - Agradeço muito a sua disponibilidade e ajuda, dona Deolinda! Obrigada! exclamou Cíntia com uma voz trémula e fraca. - Tudo o que faço não é nada, pois sabe muito bem que a considero minha filha! Agora não fale mais, descanse para recuperar as forças, que eu fico aqui a noite a fazerlhe companhia e a ajudá-la no que for preciso.
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As horas passaram e a manhã chegou. Diogo continuava no hospital e na sua face esboçava-se uma certa inquietação. Desejava que o seu turno acabasse para poder ver Cíntia, mas o tempo parecia interminável. Subitamente, quando assistia uma criança, comunicaram-lhe que estava uma rapariga à sua espera na recepção. A primeira imagem que lhe veio à mente foi a de Cíntia, mas quando se dirigiu para lá encontrou Janete com Esperança ao colo. O seu olhar de alegria transformou-se em revolta, não compreendia como teria sido capaz, esta mulher, por pior que fosse, abandonar a sua própria filha. - Ei Diogo, precisamos falar! - Lá isso é verdade, mas não aqui, estou no meu local de trabalho. - Tens razão talvez num sítio mais agradável! Que me dizes? - É melhor dizeres logo o que queres antes que eu chame os seguranças e te ponha no olho da rua! - Tu não te atreverias! Se assim o fizesses armaria um escândalo que jamais se esqueceriam. - Tu não eras capaz! - Queres pôr-me à prova?! Um escândalo com a tua vida sentimental, ou melhor, um escândalo por me teres abandonado e à tua filha! Muito interessante, não achas? ameaçou Janete. - Pára com isso! O que queres insinuar com essa história de uma filha?! - Não me digas, que ainda não desconfiaste de nada. A Esperança, como aquela rapariguinha sem classe lhe chama, é tua filha ... e sabes que mais? Já dei a notícia aos teus pais. O senhor Augusto é um homem muito simpático e ficou feliz por saber que tinha uma neta, como sempre sonhara. Por outro lado, a tua mãe Idalina, não gostou muito da ideia, mas paciência! Um deles adorou a existência de uma netinha, e para mim isso basta. - Só podes estar a brincar! Tu és doida, sabias? - Claro que sabia, mas sou doida de amor por ti! - Louca, sai já daqui! - disse elevando um pouco a voz, despertando a curiosidade das pessoas que os cercavam - Sabes, agradeço-te por me cederes esta pista. Se antes a
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vontade de reconquistar a pequena era mais por amizade, agora é uma necessidade de vida, na qual acredito ter êxito em salvar a menina das tuas garras. Adeus! As pessoas no hospital centravam o olhar nos dois, tentando encontrar respostas para tais reacções. Enquanto o Dr. Diogo se remetia numa reflexão profunda, voando nas asas do vento, até ao tempo que andou com a Janete – Será minha filha? Ou será de outro e está a fazer chantagem comigo? Se for necessário farei os testes! – pensava ele. Algum tempo depois a sua Secretária, já um pouco preocupada perguntou-lhe: - Está tudo bem consigo, Doutor? Posso ajudar em alguma coisa? Diogo só conseguiu responder com um simples aceno de cabeça em sinal de negação. Na verdade, a sua cabeça andava às voltas, parecia estar a viver um grande pesadelo e o mais grave de tudo era não saber como lidar com ele. Sentou-se pesadamente na poltrona no seu consultório, com um semblante cansado e pensativo. Os seus pensamentos confrontavam os seus sentimentos. Atordoado, levantou-se e pediu à Secretária que lhe estabelecesse a ligação com o seu advogado. Da longa conversa que tiveram, tiraram possíveis soluções. Tudo agora era uma questão de tempo para certificar se a Esperança era sua filha e para provar que Janete não tinha condições mentais para ficar com a criança. Assim que se despediu do advogado, a porta do consultório abriu-se bruscamente deixando passar Idalina, seguida pela Secretária que a tentava impedir: - Desculpe Doutor, mas esta senhora entrou de rompante e nem tive tempo de impedi-la! - Deixe lá, é a minha mãe... pode se retirar, obrigada! Por um leve instante o silêncio tomou posse daquela sala, mas logo foi interrompido pela voz austera de Idalina: - Diogo, por que não me disseste que tinhas uma filha? - Eu sabia lá, e se quer saber a verdade não posso garantir que seja mesmo minha. Suspirou, continuando de seguida - Sabe quem é a minha filha? Nem vai acreditar... - Como se isso me valesse de alguma coisa. Queria arranjar-te um bom futuro, verte casado com uma mulher bonita, de bom coração como a Cíntia, e depois ter vários netinhos como a Esperança, que é tão querida...
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- Mãe, posso falar?! A Esperança pode ser a minha filha, mas não tenho a certeza, pois não sei se ela andou com outro na altura em que andava comigo ou mesmo depois. É só uma questão de fazer os exames necessários. - O quê? - perguntou perplexa Idalina, sentando-se de imediato numa das cadeiras. - Exacto mãe, aquela louca que foi à Clínica falar-lhe, é a verdadeira mãe de Esperança! - Como é que sabes isso? - Ontem quando fui pôr a Cíntia a casa, estava lá a assistente social... Diogo continuou a contar a história, inclusivamente, o desmaio de Cíntia, o que muito preocupou Idalina, que a amava como filha, como futura nora. - Oh meu Deus!!! Filho, vê se tens mais alguma consulta para hoje, senão vamos fazer-lhe uma visita. - Mãe, não me apetece nada. - Tens que lhe contar a verdade... ela ama muito aquela criança. Diogo cedeu ao pedido da mãe e lá foram, para o apartamento de Cíntia. Quando chegaram, tocaram à campainha e ninguém os atendeu ... tocaram, tocaram ... e nada, até que de repente a dona Deolinda, veio à porta cumprimentá-los e avisá-los que Cíntia havia saído. - Eu não acredito que a senhora a tenha deixado sair! - exclamou Diogo, preocupado. - Eu até tentei impedi-la, mas quem é que ouve os mais velhos? Outrora, ainda ouviam e não eram nada teimosos, mas os de agora! - Já estou a ver, a Cíntia e o Diogo são parecidos até nisso - replicou Idalina. Cíntia saíra para recordar aqueles belos dias que levara Esperança a visitar a bela Natureza. Agora, naquele exacto momento, sentia o seu corpo a baloiçar com a aragem do vento, sentia a sua mente a voltar atrás no tempo, parecia reviver tudo de novo. Sentou-se num dos bancos do jardim, fechou os olhos e pôs-se a ouvir o canto dos pássaros. De súbito, para quebrar toda aquela cumplicidade que começava a existir, entre ela e a Natureza, apareceu Janete trazendo a passear Esperança, que chorava dentro do seu carrinho.
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- Olha quem é que eu encontro aqui! A namorada, ou lá o que é, do Diogo! - O que é que quer? - interpolou Cíntia, desviando de imediato o seu olhar para Esperança que não parava de chorar - Não vê que a menina está a chorar? - Lá isso eu ouço. Cíntia instintivamente pegou em Esperança, ergueu-a com os seus dois braços, provocando na sua alva carinha um leve sorriso. - Ela deve estar cheia de fome! Aposto que ainda hoje não a alimentou! Será que nem isso consegue fazer para manter bem a sua filha? - Cala-te já para aí! Não admito que me fales assim! Cíntia pousou Esperança no carrinho e afrontou Janete: - Pois bem! Eu falo como quiser, ninguém me proíbe. É incrível uma rapariga da sua idade, ter abandonado a própria filha. Não vê que essa criança que tem aí precisa muito da sua ajuda, precisa muito do seu amor! Você não é ninguém, se não consegue compreender isto e se não consegue dar um pouco de alegria àquela que nasceu de si. - Eu não a abandonei, fui só à procura de comer para ela e não tinha com quem a deixar. Também fui abandonada pelo pai dela! As afrontas de Cíntia começavam a irritar Janete que, descontrolada, estava pronta para lhe dar uma bofetada. Acontece porém que Diogo apareceu subitamente e agarroulhe na mão. Acabara de deixar sua mãe na Clínica e voltara atrás na espectativa de encontrar Cíntia. - Olha quem temos aqui! O teu protector! - Cala-te para aí, Janete! - ripostou Diogo, furioso. - Diz-me lá, já contaste a verdade à tua amiga, ou melhor, à tua namorada Cíntia? - A que se refere ela, Diogo? - perguntou Cíntia intrigada. Diogo não respondeu, porque não estava preparado para o fazer e conseguiu desviar a conversa para outro assunto relacionado com a saúde da menina. Ao mesmo tempo, Cíntia afastava-se o que o levou a segui-la, mas sempre à distância, por recear que ela voltasse a falar no mesmo assunto, até que a viu entrar para casa. Os dias voltaram à normalidade. Idalina ficara a saber do sucedido através de uma das suas amigas.
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A primeira reacção de Idalina foi falar com o filho, pois sabia muito bem que a obrigação de Diogo era contar a verdade a Cíntia, mas pelos vistos seria preciso dar um empurrãozinho. - Filho, posso falar contigo um minuto? - perguntou, batendo delicadamente à porta do consultório de Diogo. - Claro mãe! Lamento, mas tem de ser rápida... hoje isto está infernal. - Diogo vou directo ao assunto. Fiquei a saber que salvaste a Cíntia de ser insultada pela Janete, também sei que ela andou a fazer insinuações. - Sim é verdade, foi como que uma ameaça de contar à Cíntia que eu era o pai da Esperança. - Diz-me lá, Diogo, por que não contas tudo à Cíntia? - Eu não a quero magoar! - Cá por mim isso cheira-me a romance no ar! Estás apaixonado por ela? - Mãe! - Então, sempre tinha razão! Vocês foram feitos um para o outro. Ora bem, pensa comigo... Se contares a verdade à Cíntia tudo fica a teu favor e não contra e com toda a certeza ela não sairá desta história magoada mas sim aliviada e feliz. Se fores o pai da Esperança, que ela tanto adora, também vais ganhar a custódia da menina, que ela tanto adora, por isso vocês podem bem casar e viver felizes, juntamente com a Esperança... Não estou certa? - Mãe!!! - Tenho ou não tenho razão?! - Está bem! Tenho que admitir que tem razão... - Como sempre!!! - exclamou Idalina com um ar maroto. Diogo levantou-se da sua secretária e saiu do escritório decidido a contar a verdade a Cíntia. - Doutor... Doutor Diogo aonde vai? - questionou a sua secretária - Tem muitos pacientes à sua espera! - Não se preocupe, aposto que depois deste assunto resolvido ele vai atender muito melhor os seus pequenos pacientes! Sabe como são os problemas do coração, também
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têm que ser tratados e, por sinal, muito bem tratados! - exclamou Idalina para todos os que a quisessem ouvir. Em vinte minutos, Diogo chegou a casa de Cíntia. Subiu para o seu apartamento e encontrou a porta entreaberta. Disposto a fazer-lhe uma surpresa, entrou demansinho e deparou-se com Janete a falar-lhe muito chorosa. Assim que Cíntia se apercebeu da sua presença gritou revoltada e com uma imensa mágoa: - Sai já daqui... como foste capaz de enganar esta pobre mulher?! Como foste capaz disso?! Julgava-te diferente dos outros, mas a verdade é que me enganei... Sai já daqui! Sai!!! - Posso ao menos saber o que fiz? - Não te faças de desentendido, aqui a tua namorada contou-me tudo... - Tudo o quê? - perguntou Diogo, agora virando-se para Janete, que parecia deliciada com o desenrolar dos acontecimentos - O que é que andaste a dizer-lhe? - Sai Diogo ... sai imediatamente!!! Diogo lá saiu, sentia uma dor profunda no coração. Esperara muito tempo para contar a verdade e, finalmente, quando se decidira e tomara coragem para admitir e enfrentar os seus sentimentos tudo estava perdido, por causa das mentiras daquela mulher. O telemóvel de Diogo tocou e do outro lado da linha estava a voz sorridente de Idalina: - Olá filhinho, tenho boas notícias para ti! O teu advogado acabou de me telefonar e disse-me que já está tudo preparado para fazeres os exames de paternidade! Estás ouvirme?! Diogo o que se passa contigo? - Mãe... - Filho o que se passa, estou a ficar preocupada! - A Janete chegou primeiro e contou uma versão totalmente distorcida e ela não quer saber nada de mim, agora! - Filho, o quê? Chegou aonde? Quem não quer saber nada de ti? - A Cíntia...
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- O quê?! Não te preocupes, eu resolvo o assunto! Sabias que a Janete é procurada por uma série de roubos em Paris? É incrível, não é? Mas agora o seu destino é passar umas férias na cadeia! Diogo estava muito abalado e essa perturbação era notória na sua voz. Agora, novamente, só com os seus pensamentos deixava-se embalar com o canto dos pássaros e a alegria das crianças que corriam de um lado para outro, no jardim onde Cíntia costumava passear. Idalina que sentia uma grande admiração por Cíntia, não a queria deixar escapar como sua nora, por isso lá foi ao seu apartamento. - Posso entrar? - perguntou Idalina, batendo na porta entreaberta da casa de Cíntia. - Pode, claro que pode! Não ligue para a desarrumação, não tenho tido cabeça para organizar seja o que for! Então diga-me lá o que a traz por cá? - inquiriu Cíntia, convidando Idalina a sentar-se na grande poltrona. - O que me traz cá é muito simples. Está na hora de reestruturares as tuas ideias e organizares o puzzle que é a tua vida. Sabes, o Diogo... - Desculpe, mas agradecia que não falasse nele, pode ser? - Não, não pode ser! Como ia a dizer, o Diogo vai fazer exames de paternidade pois se a Esperança for filha dele quer a custódia dela. Sabes porquê? Porque descobriu-se que essa tal de Janete é acusada de vários roubos em Paris, fez tantas coisas desagradáveis e até inacreditáveis... - Idalina, aonde quer chegar com esta conversa? - Aonde quero chegar?! - suspirou, retomando de imediato o seu discurso - O meu filho pode ser o pai da Esperança, mas nem tinha conhecimento de nada disso, e hoje quando aqui veio, estava decidido a contar-te todos os factos. - Mas então, porque não me contou antes? - Pelo que sei, ficou muito confuso e não tinha coragem. Ele gosta muito de ti e temia que quando soubesses disto ficasses muito furiosa e nunca mais lhe quisesses falar. Cíntia não sabia o que dizer... o seu rosto mudara, nele esboçara-se um sorriso, uma alegria bem visível nas grandes esmeraldas que eram os seus olhos. - Idalina, sabe onde é que ele está, neste momento?
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- Quando falei com ele, estava num jardim aqui próximo, não sei em qual. - Deixe estar, imagino onde possa estar. Cíntia correu para a rua. O céu parecia sorrir-lhe e os raios ténues de sol mergulhavam o seu rosto, transformando-o em algo luminoso e mais belo do que antes. O grande jardim, a que Idalina se referira, estava repleto de flores com cores magníficas. - Diogo, onde estás? Diogo? - clamou Cíntia, na esperança de encontrá-lo. Quando Diogo ouviu a sua voz melodiosa, o seu coração quase explodiu de tanta felicidade. Os dois aproximaram-se progressivamente, abraçaram-se e trocaram um beijo profundo, envolto em magia e paixão e trocaram entre si as mais belas palavras de amor. Depois daquela explosão de felicidade ele contou-lhe tudo o que se passara, em França, com a Janete e o motivo que o levou a não lhe confessar toda a verdade logo de início. O que ela aceitou com enorme compreensão, contribuindo ainda mais para fortalecer o grande amor que já havia entre eles. Alguns dias depois, o Diogo recebia os exames de paternidade que lhe davam como sendo ele o pai de Esperança. Além disso, à medida que os dias iam passando, a menina parecia-se cada vez mais com ele, o que o deixava bastante feliz e à sua família. Dali em diante passaram a dar vários passeios, em especial ao jardim onde Cíntia costumava ir com a Esperança. Num desses passeios, ela não se conteve sem lhe disser: - Sabes, os pássaros estão a cantar em louvor à esperança, que existe em cada uma das nossas vidas. Foi aqui que me inspirei para o nome da tua filha... - ... da nossa filha... - Sim... da nossa filha... - Desculpem-me interromper os “pombinhos”, mas recebi um telefonema do advogado a dizer que a custódia da menina nos foi entregue e seria bom irmos buscar a Esperança, pois ela ao que parece não pára de chorar e os polícias estão a ficar impacientes... - interrompeu Idalina, acabada de chegar. Diogo, Cíntia e Idalina dirigiram-se à esquadra, onde Janete se encontrava detida, e onde resguardavam a pequenina para ser entregue ao pai por ordem do tribunal. Assim,
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que Cíntia pegou em Esperança, esta calou-se e sorriu como que a compreender tudo o que a cercava...
Cíntia e Diogo viviam felizes. Esperança crescia a cada momento e tornava-se cada vez mais bonita, entretanto vieram juntar-se a ela dois irmãozinhos gémeos, Alexandre e Catarina. Diogo continuava a exercer a sua profissão de pediatra. Cíntia acabara o seu curso de medicina e desistira da carreira de modelo. Trabalhava agora como médica na Clínica dos pais de Diogo - Augusto e Idalina que adoravam os seus netinhos. Quando perguntavam a Cíntia como foi possível vencer tantos obstáculos depois da morte dos seus pais, ela respondia: - Porque tinha Força de Viver!
Carla Patrícia do Vale Lucas
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