Conto
QUANTO MAIS VELHO MELHOR| Carla Vale Lucas
FICHA TÉCNICA Nome: Quanto mais velho melhor… Autora: Carla Vale Lucas Local: Funchal, Portugal Ano: 2005 Copyright © 2018 Conto escrito no âmbito de um desafio da comunidade local, que solicitava que a história tivesse como pano de fundo o vinho – o vinho Madeira. Com base neste mote, o presente conto foi escrito, apresentando dois crescimentos em paralelo – o da própria natureza, entrelaçado com o da natureza humana, nas diferentes estações da vida, servindo de alicerce para a história de um amor que perdura há mais de 50 anos, e que tal como o vinho, “quanto mais velho melhor”.
Um conto, entrelaรงado nas nuances da natureza e nas narrativas de umas quantas vidas.
PRÓLOGO A natureza e as histórias de vida caminham lado a lado. Seguem o mesmo ciclo… e crescem nos momentos, nas aprendizagens, nas quedas e nas conquistas, na chuva e no sol… e assim, entrelaçadas estão as narrativas que escrevemos sobre quem somos, nascendo destas as expetativas de futuro, e os objetivos de se continuar a florescer. Antes de vos convidar a ler “Quanto mais velho melhor…”, conto escrito em 2005, importa que percebam o porquê da sua escrita e o porquê de determinadas caraterísticas… e mais, que percebam o quão para mim este pequeno conto acaba por ser importante.
Talvez pudesse escrever um conto sobre o próprio conto, ou melhor sobre toda a história em que se alicerça… Este foi um conto que foi escrito, pelo menos, por 3 existires (ou não fossem assim todos os contos e a própria vida, povoada por subjetividades), e que teve como ponto de partida, um desafio lançado na comunidade local, para escrever algo que colocasse em evidência – o vinho - um elemento muito particular da história passada e presente da Ilha que me viu nascer e crescer.
Imbuída neste desafio, pela primeira vez, a curiosidade fez-me ir à procura de mais informações… perdi-me nas leituras e começaram a surgir dúvidas, sobre coisas que antes nunca havia questionado. A verdade é que sendo menina de cidade, em dias de semana, e menina de campo, aos fins de semana, determinadas nuances da natureza poderiam mais facilmente passar-me ao lado. No entanto, lembro-me claramente, que por ter tamanhas dúvidas sobre o que li, acerca do processo de crescimento das videiras, dos cuidados a ter, do processo de amadurecimento do vinho etc… encontrei no meu avô um possível explicador para estas questões.
Entenda-se que o meu avô sempre foi homem de poucas falas, cara redondinha, um sorriso por vezes maroto, de criança, muito ativo (e por isso sempre muito no seu mundo, a fazer sempre qualquer coisa…). 5
Lembro-me, e irei lembrar-me eternamente, dele com a foice ao ombro. No momento em que comecei a fazer estas perguntas, abriu-se uma
porta… uma porta para um mundo que desconhecia. Poucas foram as vezes que lhe vi tamanho entusiasmo (à exceção de quando jogava ao “casino”, jogo tradicional de cartas) e poucas foram as vezes que o vi se discorrer em ideias… Acho que nunca lhe conhecera tantas palavras ao longo de toda a minha vida. Começou, por isso, a ser uma – a nossa - prática rotineira. Todos os sábados, dia de campo, envoltos pela natureza, pelo som dos pássaros…
fazia-lhe perguntas acerca das suas experiências e do que entendia acerca da videira e do vinho. Não foi difícil que deste assunto se passasse a um outro, histórias antigas, guardadas a sete chaves… Desconheço o porquê, mas nunca na nossa família existira o hábito de falar sobre o que ficara para trás, escondido nas nuances do tempo. A curiosidade, elemento central, parecia se esmorecer na agitação do dia a dia, talvez por um certo rol de caraterísticas e traços pessoais de cada um, ou até
mesmo porque o presente parecia sempre ganhar destaque, mais do que as raízes..., quando era a própria natureza que continuamente nos ensinava o contrário – que os alicerces eram importantes, que poderiam assumir diferentes caraterísticas, e que acima de tudo nos ajudavam a adaptar à envolvente. Transportada para esta altura, consigo ainda sentir o sol a tocar as nossas faces, sentados na mesa de metal que oferecera ao meu pai, seu genro. Consigo mesmo sentir, o entusiasmo que me saltava pelos olhos (ou não fosse tão expressiva). Lembro-me do bloco de notas que arrastava comigo e que dedicara a registar todas as suas considerações, tal como escrivã.
Lembro-me, também, que à medida que falava com o avô, raras eram as vezes em que deixava o que estava a fazer – sempre fazia alguma coisa, seja descascar favas da fazenda, limpar algum utensílio da fazenda... – enfim, 6
poderia mesmo dizer que tal funcionava como um momento catártico… em que na monotonia da tarefa, deixava as palavras saírem, distraídas dos crivos do pensamento. Fui por isso, semana após semana, fazendo perguntas, que me levaram a conhecer mais sobre a história dele, meu avô, homem calado, e dela, a minha avó, que gostava muito de falar. Curiosamente, nestes momentos, a avó deixava-se ficar a um canto a bordar, dando espaço para que pudéssemos ficar retidos na cumplicidade. Só mais tarde, quando a conversa parecia estar a terminar, se juntava a nós, tal como se juntavam a minha mãe e o meu pai, enchendo o espaço com uma mistura de cheiros – chá de pessegueiro inglês, café acabado de fazer, e mais qualquer coisa doce, que dava assim descanso ao fluxo paralelo de pensamentos e sentimentos. Ela, a avó, não participou tanto nesta primeira fase de recolha de informação, mas foi a leitora mais ativa que tive, do resultado final do
trabalho. Ainda hoje, de cada vez que lê o conto, pergunta-me como consegui retratar a sua história. Certamente é o seu coração que se encarrega de preencher os espaços vazios - que, sim, são muitos! Por tudo isto, esta história é tão especial para mim… encerra o que considero o mais importante - a relação a desabrochar, a dar lugar a algo novo, a cumplicidade, o conhecer, o despertar curiosidade. É tão rara a oportunidade de se permitir tempo e se entregar a estes momentos - de dar
valor à história, às raízes, e ousar a aprender com ela, a se fortalecer, a viver melhor e a ousar imaginar novos contornos para o futuro, aceitando o que mudou, e abrindo os olhos para encontrar quais as forças que se despertaram no passado e que agora nos ajudam, a mais fortes, dar mais um passo na jornada.
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É certo que não ganhei o tal desafio de escrita, que iniciou todo este processo, mas também é real que neste desafio aprendi que na vida as
vitórias assumem contornos diferentes e únicos para cada um... para mim, aqui reside a verdadeira vitória, assente no processo, na construção da história e da relação. Conhecer mais sobre a história, conhecer mais sobre as narrativas que encapsulam vivências, medos, sonhos…, respeitar a sabedoria que cada palavra encerra, quando verdadeiramente ouvida, são os elementos mais raros e capacitadores que podem ajudar a acrescentar sentido à vida. São também estas narrativas exemplo de força, de
perseverança… e sei, sem qualquer sombra de dúvida, que é nestes elementos, em particular, que a vida ganha a sua estrutura, ainda que enfrentando as diferentes estações da natureza. Já se passaram tantos anos desde o momento em que escolhi escrever este conto, mas, só agora, passada toda uma ou duas mãos cheias de anos, ousei partilhar o mesmo, pelo menos para uma comunidade mais alargada… Faço-o porque prezo o processo, prezo o valor da história, preço toda a relação que perpetua, mesmo já não tendo o meu outro coautor comigo, e porque sei, que este mesmo conto, nas suas linhas, dá força a quem, na família, o continua a reler vezes sem conta… encontrando brilho e força
nesta história, enquanto registo das raízes de um amor, e assim nele continuar a caminhar face ao futuro.
Carla Vale Lucas Março 2018
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QUANTO MAIS VELHO MELHOR|
A Madeira que eu amo verdadeiramente, que não me canso de admirar, que não tem comparação com outra qualquer realidade geográfica minha conhecida. Que se não deixou corromper por nenhum turismo, que se mantém ciclópica, abissal, rebeldemente estéril e inacessível. Que transmite aos sentidos o espanto e o calafrio
que despertam as coisas primordiais. Que cabe nos olhos que a veem e nas palavras que a descrevem. Que é uma espécie de alucinação da natureza.
Miguel Torga, XIII Diário
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F
iquei tanto tempo sem me expressar, sem recordar a minha
origem, as minhas tradições. Era como se a um dado momento da vida, o passado tivesse deixado de existir e eu, consequentemente, também.
Havia-me fechado a sete chaves, a sete nós, na concha da rotina quotidiana e perdera o sentido de existir. Agora, sentada numa cadeira de vimes… nesta varanda, fecho os
olhos e deixo-me afagar pela aragem fria que me arrasta para uma vida passada. Sei que vivo as consequências do passado, esperando sempre pela aurora de um novo dia.
Perco o meu olhar na cidade movimentada do Funchal e vislumbro um azul subtil a emergir lá da baía, enquanto que aqui, em baixo, o jardim verdeja, as folhas deixam-se tocar pelo vento, avivando-se toda esta queda imagem, com o vermelho das rosas e com o branco das camélias. . Anichada estou, junto a um caramanchão em que se entrelaça uma buganvília de tons rosáceos, protegida por uns tantos espinhos. Sei, por isso, que estou segura… estou envolta em vida! Rostos calmos e inquietos, episódios bons e menos bons, felicidades e tristezas, não tardaram a se desembrenhar das margens do tempo. Ao mesmo que desprendia, uma a uma, as bagas de um cacho de uvas e as levava à boca, sentia como se aquele paladar, aquele manjar fosse a delícia que saciara desde sempre a minha essência de vida. Com tudo isto, parecia mostrar a mim mesma o quão importante era o passado, as marcas que ele perpetuava em cada momento. 14
Sempre ouvira os meus pais dizerem que dentro de uma garrafa de
vinho Madeira existia todo um vinhedo, toda a nossa ilha, o nosso povo, as nossas tradições, os nossos esplendores, vertiginosamente presentes nas íngremes colinas e nos vales, alcandorados na montanha. Por este motivo, agora, deliciando-me com um pouco deste vinho, sei que no seu paladar residem os dissabores e sabores que fizeram de mim o ser que sou! Os meus dedos abraçam os meus lábios tentando ainda sentir a fogueira intempestiva que os ardeu, camuflada em cada gota daquele néctar…
Na realidade, não conseguia compreender a razão para tamanhos desvarios de pensamento que me assolavam, mas estava certa de que a vida, tal como o vinho, tinha propriedades distintas e singulares, variando de pessoa para pessoa, de terreno para terreno. Ambos eram plantados e podados, ambos desabrochavam, davam fruto, mas também morriam… No entanto, ao longo dos tempos, apuravam o sentido e adquiriam um sabor especial. Foi assim que, aos poucos, fui perscrutando o meu passado e em cada baguinho de uva, que roía o apetite insaciável do meu estômago, consegui encontrar as histórias que me construíram, que me tornaram
quem sou… uma velha que, no espírito, vive uma eterna primavera, uma velha calejada por rugas que apenas me fazem recordar o quanto tenho vivido, mas acima de tudo uma mulher que por vezes se quer esconder do tempo, sem se aperceber que é ele que torna as coisas mais belas… São então as histórias vividas a dois, repletas de rebentos, que deram vida a mim mesma e sem as quais jamais existiria. São elas que, perdidas no secreto afluente do meu existir, adquiriram diversos sabores: doce, meio-doce, seco, meio-seco. 15
Hoje, e passados setenta anos de existência, comecei uma nova
etapa da vida, não porque a cada momento cresço interiormente e envelheço exteriormente, mas porque voltei a expressar, sem medo, os acordes do passado.
Cresci no campo… vivi da terra e senti tudo o que agora (na cidade) não consigo sentir. Senti-me leve, liberta… como que num promontório de vida, abraçando toda a imponente natureza e os pujantes artifícios de toda a existência. Colhíamos diariamente a brisa, nos lábios da manhã, e íamos (eu e as minhas quatro irmãs) colher flores, tratar delas, preparar o almoço, arrumar a casa e ainda bordar. Embora o trabalho chegasse a ser
extenuante, nunca nos faltaram motivos para sorrir, nem que esses se cingissem ao cantar dos pássaros que, a toda a hora, nos acompanhavam, destemidos. Percorríamos constantemente os trilhos já nossos conhecidos, de terra batida, ladeados por uma estonteante mistura de cores… Os nossos cabelos, por debaixo dos lenços que os prendiam, fugiam timidamente e, teimosamente, baloiçavam ao sabor do vento. Aí, no campo, vi as videiras crescerem… vi-as ultrapassarem todos os obstáculos e os problemas trazidos pelo nevoeiro que serpenteava as folhas, varria os solos… vi as encostas da minha vida,
com elas, ganharem cor e vitalidade. Cresci a sentir o cheiro do alecrim, o cheiro da terra, o cheiro do vinho e sei que toda a minha história se apurou com o tempo, tal como ele. Têm ambos a mesma raiz, a mesma origem. Hoje toda esta cidade, que os meus olhos abraçam, parece ser um deserto sem fim para o meu espírito, porque não lhe perscrutei vida, enquanto que cada minha história passada, tal como o vinho, está repleta de essência e por isso não se deteriora, talvez caminhe para um derradeiro fim, jamais se perdendo dentro de mim. 16
A cidade parece não ter norte ou sul, esquecendo-se num imensurável escuro de ruídos que destoam a noção de tempo e que nos fazem caminhar sem parar, passando despercebidos pequenos símbolos da natureza, pequenos sinais capazes de interromper o
nosso ritmo e nos fazer refletir no quão pequenos somos perante tudo o que sublimemente existe. Quando pequena, não tinha esta noção de tempo… vivia no e para
o campo. Pouco conhecia de outras realidades. As estações do ano, o nascer e pôr do sol guiavam-nos… Pela calada da manhã, o sol rasgava o céu entrando pelas janelas
da casa, beijando-nos ao de leve, à medida que os galos cantavam e, juntamente com os pássaros, assinalavam o dia de trabalho iminente. Ao entardecer, na hora das Ave-Marias, regressávamos a casa e de
lá já não podíamos sair. Nesse momento, o sol brilhava, banhando todo o campo numa luz suave de âmbar, que aos poucos desaparecia… O ar era fresco e purificador, por isso quando a noite chegava, dentro de mim, parecia ofuscar uma luz que ondulava pelos rebordos do meu corpo, tal como um punhado de cintilações dispersas que lá fora, no escuro, emergiam. A cada ano que se iniciava, do lugar onde me sentava a bordar, via os meus irmãos e o meu pai, nos poios, a plantarem os bacelos da Malvasia (casta branca) e a montarem as latadas que cobririam os socalcos, trazendo vida a toda uma zona antes inóspita.
Não me consigo lembrar se as latadas eram de varas ou de verga, mas sei que tinham entre 1,20 e 3 metros. Recordo-me ainda que, só ao fim de três/quatro anos, o bacelo era capaz de dar uma colheita apreciável. 17
Nessa altura, era indispensável proceder à cava, para que assim a terra pudesse arejar. Depois, eram necessários os adubos de tremoceiro e giesta, tudo para tentar melhorar o crescimento dos bacelos.
Os meus olhos brilhavam com tudo aquilo… sempre quisera ir para ali, para perto do meu pai, ajudá-lo, mas as raparigas não o deviam fazer.
Observava-o a caminhar com umas galochas e de enxada às costas, sempre com um ar sério… Aquela postura forte e firme permanecia até que o trabalho dos rapazes, e até mesmo o das raparigas,
terminasse… e aí, sim! Brincava connosco. Na verdade, ele era excecional…. Tinha umas mãos fortes, calejadas pela rudeza do trabalho no campo. Parecia ainda consegui-las sentir, despenteando os meus cabelos ou quando nelas aflorava um beijo, pedindo a bênção. Era um homem lutador, que trabalhava arduamente para que tivéssemos alimentos. A cultura da vinha desempenhava assim, o importante papel de providenciar economicamente o nosso lar. No entanto, o meu olhar não só se prendia a esta imagem, símbolo de coragem e tenacidade… perdia-se sim nas aventuras que, ali ao lado, ao lado das latadas aconteciam… Eu, as minhas irmãs e primas, descíamos o patamar das videiras, atravessávamos a levada e íamos para o terreno da vizinha, furtar umas deliciosas maçãs verdes e rijas. Ali vivia uma mulher, calejada por muitos anos de vida, que tirava sortes, metendo-nos muito medo, perguntando em voz alta e rouca, sempre que nos sentia por perto, “Quem vem lá?”.
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Nesse tempo, os populares acreditavam na existência de feiticeiras, sendo que, no escuro da surdina, quem tropeçasse em algo, seria fustigado pelas suas tenebrosas aparições. Não obstante tudo isto, teimávamos em lá ir e, de todas as vezes,
ela pegava numa vassoura e, tropegamente, corria para nos bater, mas já nós íamos distantes, rindo sem parar… Quando a velha senhora faleceu, acabou-se o divertimento,
acabaram-se as redondinhas maçãs verdes, que limpávamos nos vestidos antes de as mordiscarmos e sentirmos jorrar o seu suco divinal e indiscritível, tudo porque lá se instalou o posto da polícia e
nós, receosas, não nos atrevíamos a invadir o pomar. Lembro-me que, de vez em quando, os polícias – homens vestidos a preceito e cuja face ostentava voracidade - chamavam a minha mãe, avisando-a de que em determinado dia seriam dados corretivos aos prisioneiros. Assim, nesses mesmos dias, íamos visitar a avó, temendo que ela nos obrigasse a comer papas de milho e esperando, ansiosamente, que tivesse preparado o seu tão famoso pãozinho quente, feito no forno a lenha. Embora vivêssemos, de certa forma, oprimidos, era fomentado o respeito pelas autoridades e crescíamos, sem impedimentos, tal como os bacelos plantados. Foi neste espírito que ali nasceu, aos poucos, um amor… um grande amor. Todos os dias, à mesma hora, sentada no muro, bordava… e todos esses dias, àquela hora, sentia-me observada. Não estava a sonhar!
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Quando, pela primeira vez, os nossos olhos cruzaram-se demoradamente encontrei uma expressão ansiosa, que pareceu galgar rapidamente o meu corpo, corrompendo o meu coração com a mesma tenacidade. Era um rapaz bem-parecido, com um rosto redondinho à semelhança de um menino traquina, que trabalhava por conta de patrões (nossos vizinhos) indo, diariamente, verificar a água do poço. Conhecia muito pouco da sua história, apenas o que se comentava. Sabia que tinha lá chegado aos nove anos, vindo de muito longe, por os seus pais não terem meios de sustentá-lo e aos irmãos. Trazia apenas umas velhas botas que nem suas eram, pertenciam à mãe. Sem que esperasse, porque jamais julgara ser possível ver nascer algo dentro de mim, deixei-me cativar por aqueles olhos inquiridores que ensejavam falar-me. Era um amor à Romeu que me parecia empurrar para a beleza eterna de um sentimento pleno que desabrochava no meu peito. Mas este romance, que parecia crescer, ao mesmo tempo que os bacelos se tornavam parreiras de cepas grossas, exigia muito cuidado, para que vingasse, tal como acontecia com a vinha. As videiras tinham que ser amarradas às latadas, para que o vento não quebrasse os novos rebentos e para que continuasse a vegetar. Tinha ainda que ser podada, geralmente deixando em cada braço de cepa uma vara terminal com sete ou oito olhos e um ou mais sarmentos laterais com dois ou três olhos. Se, por ventura, a cepa
fosse pouco vigorosa, podíamos reduzir o número de olhos da vara terminal. 20
Todo este processo de poda, obedecia a condições meteorológicas e supersticiosas, o mesmo acontecendo com este amor, ainda pouco vigoroso, que logo se viu fustigado por fortes comentários mesquinhos que fizeram o meu pai pedir, ao chefe da polícia, para que nos observasse. Não queria que nos falássemos, nem tão pouco queria considerar a hipótese de casamento. Assim, as agruras de dias menos bons, de ventos irregulares, fizeram com que a colheita do fruto precioso – o amor, demorasse a se concretizar. Haviam dito, falsamente, que falara com o meu amado. Por isso mesmo, e porque corria nas minhas veias um sangue por vezes rebelde e temerário, atravessei os tantos metros declivosos e fui encontrar-me com ele, junto ao poço de água, palco do nosso namoro à distância… Sim, falei-lhe… cheia de medo. Quando dele me aproximei fui brindada com um sorriso que fez o meu coração bater mais forte. Passeei o meu olhar pelo seu corpo e contemplei aqueles olhos
castanhos, grandes e inquiridores. Sentia o espírito imbuído num maravilhoso espanto, que as palavras pareciam estar naufragadas num recôndito espaço do meu
ser, sem que as conseguisse fazer emergir até aos lábios. Ele, por sua vez, fitou-me demoradamente parecendo analisar a minha expressão um tanto ansiosa. Elogiou os meus longos cabelos
lisos apanhados, mas em especial o meu sorriso que fazia ligeiras covinhas no rosto. 21
Mesmo sentindo-me alegre, pressentia que por ali andava o meu “guarda-costas”. Parecia sentir os seus olhos atravessarem o meu corpo e eu ali tão culpada, tão afligida e tão arrependida, mas apaixonada, corri atrás dele e pedi-lhe que nada contasse ao meu pai. A Primavera anunciava-se com uma orquestra de sons, com um quadro divino de vida e alegria que se despenhavam nas inverosímeis montanhas do próprio existir. As videiras começavam a desabrochar e a paisagem deixava-se decorar por tons de verde. Surgiam os primeiros sarmentos eretos com folhas glabras nas duas páginas e com lóbulos muito profundos. Eram quase iguais e todas elas protegiam os bacelos. Uma doença, conhecida popularmente por mangra, assolava frequentemente os campos vitícolas. Atacava as suas folhas e os seus cachos, deixando-os com manchas acinzentadas. De forma a combatêla, procedia-se à enxofração, com um fole. Uma das primeiras enxofrações era feita quando o bago estava em flor e depois de se ter desfolhado a vinha. Outra, era efetuada, mais tardiamente, para amadurecer o bago.
Foi então no leito da Primavera, e com igual delicadeza e cuidado, que o meu amado veio pedir, aos meus pais, a minha mão em casamento.
Todavia, o pai negou-se a recebê-lo. Permaneceu na cama, onde descansava depois de um dia extenuante de faina vitícola. Lembro-me perfeitamente da minha mãe ir tentar convencê-lo e de
ouvi-lo dizer que não aceitava o casamento. Temia que eu, sua filha mais velha, não tivesse uma vida afortunada, pois o rapaz por mim 22
eleito ganhava uns míseros cento e cinquenta escudos por mês, o que não dava para sustentar uma família, segundo o parecer do meu pai que nos protegia, de um modo muito especial e persistente. Mas o que desconhecia era que o meu amado gostava muito de mim e, no intuito de me dar uma vida relativamente boa, havia andado a poupar todos os tostões que os patrões lhe davam. A minha mãe quando regressou à sala, onde estávamos todos, ele, eu e os meus irmãos pediu desculpa, justificando a atitude do pai. Embora muito diferente do pai, mais severa, apreciara desde sempre o meu amado, por isso a sua face, já sulcada por pequenas rugas, iluminou-se ao permitir o nosso noivado. Naquele momento, fiquei sem perceber o que é que se tinha passado. A minha mãe tão compreensiva? Ela não era má pessoa, talvez um pouco austera! Teria o meu pai, sucumbido ao seu desejo, sem entraves? Na verdade, conseguira convencê-lo, com os seus olhos pretos expressivos, alegando que como filha mais velha estava mais do que na hora de casar.
Independente de tudo isto e deixando de lado todas as especulações estava feliz… podia vê-lo, podia falar-lhe sem qualquer impedimento, mas isto só aconteceria no pequeno portão de madeira,
lá de casa. Este era abraçado pelas montanhas, a norte, e pela casa e pelos poios, a sul. Dormia na sombra dos imponentes ciprestes que, ao contrário da imagem que a sua presença nos cemitérios trazia, não
enviuvavam o espírito, pareciam, sim, assinalar uma vida longa, onde todos os sonhos pudessem tornar-se realidade. 23
No entanto, com o tempo, logo voltaram a surgir comentários maliciosos e o meu pai foi aconselhado a deixar-nos namorar dentro de casa, com os meus irmãos presentes. Mas, nem por isso as coisas se tornaram mais fáceis. Pelo contrário! Quando ele chegava para me ver, todo elegante, de fato e gravata não esquecendo um galante chapéu que lhe protegia os cabelos castanhos, ondulados e bem escuros, eu, tal como a minha mãe e irmãs, estava a bordar sob a ténue luz de petróleo e não podíamos parar. Os meus irmãos, esses, ouviam atentamente o velho rádio que, sempre na mesma sintonia, ecoava músicas que mais nos encantava a nós, raparigas. Certa vez, já farta desta restrição, larguei a toalha de linho rendado, que juntava pontos como garanitos, corda, caseados, bastidos…, feita por todas nós, e muito contente fui abrir-lhe a porta. Ele estava ali e eu queria dar-lhe toda a atenção do mundo, mas, por esta minha atitude intempestiva, vi-me obrigada a ir para o quarto
de castigo, ficando ele, ali parado, sem saber o que fazer.
Chegado o Verão, a paisagem viu-se novamente pintada por outras
cores, devido aos cachos grandes (oblongos) de malvasia, com bagas elípticas, pouco rijas, que num todo elevavam o nosso espírito a um eterno esplendor.
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Foi por esta altura, que mudamos de casa. Fui viver noutra freguesia, numa casa relativamente maior e com melhores condições. Tinha à semelhança da outra, uma horta e uma plantação vitícola. Era toda revestida a pedra e, na rua, existia um forno a lenha. O chão, de calhau rolado, estendia-se por debaixo das parreiras que, nesta estação, estavam preenchidas de uvas, satisfazendo a delícia das lagartixas, que de vez em quando pregavam-nos partidas, caindo sem aviso sobre o nosso regaço. Fiquei assim mais distante do meu amado. Não que isso tivesse qualquer repercussão no que sentia, pois ele estava dentro do meu coração. Por vezes, martirizava-me. Não sabia como tinha sido capaz de sustentar tão grande sentimento por um rapaz, parecendo por vezes um sacrilégio. Tão grande era o nosso amor que, certa vez, ousou cumprimentarme de forma especial, ofertando-me um beijo na face… Sei que corei e voltaria a corar, mais ainda porque a minha mãe vira-nos e correra atrás de mim, furiosa, deixando a sua mão marcada
no meu rosto. Não que ela não gostasse do meu noivo. Não! Apenas não queria que eu, a sua filha, ficasse malfalada.
Um dia, outro dia… um mês, outro mês... marcados por um tempo fugidio que logo assinalou a chegada do Outono, camuflado em
diferentes matizes, como que tomado por uma preguiça, sequiosa de vida. 25
Trazia consigo um colorido desusado que se espalhava ao longo das íngremes encostas, protagonizado pela apanha da uva. Assim, a cor castanha anunciava a queda das folhas e ponha a descoberto os bacelos e o escuro do basalto, mas também toda uma alegria que se espraiava em tons de vivacidade e harmonia. A época das vindimas propagava-se num sentimento de solidariedade que se repercutia numa grande festa. Crianças, mulheres e homens de todas as idades, uniam esforços neste objetivo comum. As uvas eram colhidas em cestos de asa pequena, sendo depois arrumadas em outros cestos de capacidade maior, como os cestos de vindima. Nestes, eram transportadas e posteriormente lançadas nos tradicionais lagares de madeira. Desde pequena, sempre gostei de participar na vindima. O que talvez mais me impressionasse e sustentasse o meu apetite insaciável eram as uvas que, ainda hoje, destronam qualquer mal-estar. As
raparigas
e
os
rapazes,
quando
pequenos,
eram
esporadicamente obrigados a pisar as uvas, no lagar. Diziam que era uma boa atividade para os ossos das crianças e até para quem tivesse dificuldade em andar, por ter a capacidade de enrijecer os ossos. A dividir o lagar existia uma vara… onde, de um lado, geralmente
ficavam três pessoas e, do outro, outras três. O velho lagar era um sistema complexo que exigia muito esforço por parte dos homens que lá trabalhavam, mas também do fuso, suspenso por um pau ligado à
vara, que fazia ainda mais peso.
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Nunca conseguira perceber muito bem como funcionava, apenas sabia que pés nus calejavam, num movimento lento, todos os cachos de uva, deles extraindo um delicioso sumo, que mais tarde daria origem ao ilustre vinho. O mosto (parte doce deste) era escoado por uma viga lateral, caindo numa tina. Para ser sincera, não me lembro de sentir qualquer prazer na pisa do vinho, quando pequena. Creio que aquela cor escura, avermelhada me metia medo. Talvez eu fosse uma rapariguinha que, embora por vezes corajosa, se deixava amedrontar por pequenas coisas. Recordo-me que, certa vez, fui buscar água a um fontanário que havia perto de casa, quando me apercebi que, a meu lado, caminhava um homem de aspeto sujo, barba por desfazer, com um cheiro entenebrecido a vinho e que tropeçava nos seus próprios passos. Assustada, comecei a gritar e a fugir, chegando a casa ofegante, sem força nos membros inferiores. Nunca consegui entender porquê, mas a partir daquele dia não gostava de ver ninguém a beber exageradamente, embora apreciasse
todos os processos inerentes à confeção do vinho, que julgava ser uma arte divina e exaustiva. Certo dia, o meu prometido foi visitar-me, como habitualmente
fazia. Estava ansiosa para que chegasse, mas quando lhe abri a porta, senti um forte cheiro a álcool que por mais que quisesse dizer o quão repugnável era o seu estado, não consegui… As palavras deram um nó
na garganta e fui a correr para o quarto. Numa torrente de lágrimas, expeli toda uma visão tormentosa que se arqueara sobre mim. 27
A minha mãe atónita com tudo aquilo arrastou-o, com a ajuda dos meus irmãos, para o canapé. Seguidamente, bateu na porta do quarto, trancada por sinal, ordenando-me que fosse tratar do meu noivo, mas como resposta, apenas soaram soluços profundos. De regresso à sala e vendo que ele estava indisposto, por não estar habituado a beber, acudiu-o. Preparou-lhe um banho de água fria, deu-lhe roupas de um dos meus irmãos, fez-lhe um café bem quente e deixou-o descansar, um pouco, no canapé da sala. Foi nessa altura que, com os olhos ainda inchados, saí do quarto, aproximei-me dele e, já o vendo melhor, sorri… Este episódio arreliara-me, mas ao mesmo tempo sentia-me aliviada por o meu pai ainda não ter chegado a casa. De certo, estava a fazer a repisa do vinho, atividade que envolvia para além de um exaustivo trabalho, muita música e muita bebida, numa grande festa que apenas agregava os homens. Sabia tudo isto, porque assim me contava antes de adormecer. Após ser retirado do lagar, o vinho era carregado num borracho ou
odre e só depois, deitado na pipa, onde iniciava a fermentação. Logo a seguir, urgia escolher, previamente, a lua em que o iríamos passar. Quando o dia dez de novembro chegava, véspera de S. Martinho,
“dia de pão e vinho”, a família juntava-se e todos, pequenos e graúdos, provavam o vinho novo, diretamente da cartola. Era uma verdadeira festa que parecia ter o condão de fazer crescer os mais
jovens.
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No entanto, intrínseco a todo este festim, estavam passos complexos e essenciais na chamada “passagem” do vinho, para que este pudesse perdurar e adquirisse o tão consagrado paladar e aroma. Em primeiro lugar, era necessário separar a borra do vinho, despejando e lavando a cartola, logo de seguida. Posteriormente, queimava-se enxofre dentro do vasilhame do vinho, de forma a ver se estava ou não em boas condições… Era ainda indispensável espalhar um pouco de álcool e andar de volta com a cartola, deitando o vinho, por fim. Com o tempo, o nosso vinho malvasia ficava cada vez mais doce e aveludado, com um acentuado perfume e com uma cor ainda mais carregada.
Era então este o ritual que se repetia e que eu assistia indiretamente, ouvindo as histórias contadas pelo meu pai. Hoje, muito se apagou da minha mente e estas recordações
poderão não fazer alusão a muitos outros cuidados que urgia ter. No entanto e porque as tradições nunca são demais, o dia do meu casamento, ou melhor, do nosso casamento, não tardou a chegar…
O pai levou-me ao altar, com um sublime sorriso e com um olhar enternecido, desfolhando o meu rosto com um beijo e logo me entregando ao meu amado. Foi um dia que jamais esquecerei… um dia, repleto de amor, um amor pronto para enfrentar todos os obstáculos de uma vida a dois. Na pequena festa que se seguiu, o meu amado fizera questão de incluir as três coisas que mais prezava comer: uvas, pequenas perinhas
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e lapas deliciosas e sempre que algum acontecimento especial ocorria ele, com muito esforço, voltava a oferecê-las para que me pudesse deliciar. Uma dessas ocasiões foi aquando a mudança de casa, com as poucas poupanças que tínhamos. Embora vendesse os bordados que fazia, o dinheiro nunca era muito, mas mesmo assim, fomos pagando as prestações até perfazer os vinte e cinco contos necessários. Não tardou para que surgisse um novo rebento na família, em plena Primavera. Mas não foi esta a única dádiva, com a qual fui prendada. Surgiram outras duas preciosidades, pelas quais agradeço constantemente. Agora, passados quase cinquenta anos, sei que tudo isto valeu a pena e posso mesmo dizer, com toda a certeza, e não ignorando os meus cabelos brancos que caem sobre os ombros e estas rugas que me emolduram o rosto, que fui feliz e que continuo a sê-lo… O tempo apenas apurou o sentido da vida, o sabor da vida, tal como o vinho apura o seu paladar, o seu cheiro, a sua cor. A minha vida foi assinalada por obstáculos, mas também por
conquistas! Por ela, estou muito grata… Hoje, estou aqui sentada, bebericando ao de leve este vinho Madeira, com a certeza de que ele traz em si toda a minha vivência,
todo o meu passado, todas as tradições que me marcaram… e, juntamente com ele, sei que ali, no pequeno terreiro desta casa em que vivo, o meu amado está a podar a vinha e a amarrá-la aos arames.
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Dali, sei que nascerão novos rebentos, perpetuados no amor, no amor à vida, no amor aos nossos filhos, aos nossos netos… e, em especial, no amor que sinto por aquele homem que me acompanhou na saúde e na doença, consagrando a nossa felicidade à mera existência de um forte sentimento que continua presente, embora passados tantos anos. Porém, não é só a minha história que se manteve presente neste néctar divino que molha, ao de leve, os meus lábios… é também a história de todos aqueles que fizeram dele o que é… é toda uma história que remonta os primórdios da colonização desta ilha, da nossa Madeira, e que, tal como em dias de outrora, continua a encantar milhares de pessoas por esse mundo fora, visitando os seus sonhos, satisfazendo as suas delícias, com os seus distintos sabores e aromas, provenientes das mais variadas castas (malvasia, sercial, boal, verdelho…) e das diferentes condições climatéricas e composição dos solos em que foram plantados. Assim, uma simples garrafa deste néctar divino – Vinho Madeira aviva-nos a memória… aviva-nos o coração e faz-nos encontrar o real de nós mesmos, a verdade que o nosso passado encerra e que se rende às artimanhas de um futuro próximo que enfrentamos com garra e esperança, para que dele consigamos colher o seu fruto ou o seu néctar, jamais esquecendo que “Quanto mais velho melhor…!”
Carla Vale Lucas
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