Contos com história sobre a Cidade do Funchal
VIAGEM AO PASSADO Carla Patrícia do Vale Lucas Madeira (2004)
FICHA TÉCNICA
Viagem ao Passado Autora: Carla Vale Lucas Ano: Madeira, 2004
Conto publicado no Livro intitulado Santa Maria Maior: Com palavras nascem histórias (1), por ocasião dos Jogos Florais Populares “António Feliciano Rodrigues (Castilho)”, promovido pela Junta Freguesia de Santa Maria Maior, em 2004, tendo obtido o 2.º prémio.
Referência: Lucas, C. V. (2004). Viagem ao Passado. Em Santa Maria Maior: Com palavras nascem histórias (Vol. 1, pp. 25–30). Funchal: Junta Freguesia de Santa Maria Maior. ISBN: 972-99448-0-6
VIAGEM AO PASSADO Vagueio pelas ruas apertadas de Santa Maria que albergam uma intimidade sem igual. As minhas mãos estão caídas nos bolsos de um casaco escuro, enquanto o meu olhar prende-se ao sentimento de inquietação que me abala. Caminho incerta, sem poder afirmar que passado faz a minha história presente. Nas casas que ladeiam as ruas estreitas consigo encontrar nos remates dos telhados “pombas”, “cabeças de menino” (…), na esperança de que sejam presságio de felicidade. Começo agora a pisar o chão de uma rua que me leva ao Largo do Corpo Santo e vislumbro os fornos caseiros, que um mar de histórias devem guardar. Continuo a caminhar… Acabei de passar pela capela do Corpo Santo e os meus olhos param no calhau rolado que pinta o chão. Consigo sentir nas paredes que percorrem comigo aquele Largo, o desejo de relembrar o passado e compará-lo ao presente. A história não pode morrer! Um friozinho percorre o meu corpo e desemboca-me na garganta, sem qualquer aviso. Cruzo os braços de forma a proteger-me daquele inesperado calafrio, que em parte me inspira vazio, mas que me atrai.
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A rua antes movimentada passou a ser névoa que esbateu tudo à minha volta. Começo a caminhar mais depressa… O medo enraíza-se pelo meu corpo, enquanto sinto os pés leves como se voassem rumo a um tempo esquecido. Percorro timidamente o olhar pelos meus braços e pernas e vejo-os desaparecerem num nevoeiro intenso. Ao longe, vislumbro a Fortaleza de Santiago com uma porta dotada de grade vertical e ponte levadiça. Ouço alguém a falar atrás de mim… volto-me e contemplo apenas vultos. Consigo discernir, a muito custo, o que dizem. Parece que a cidade do Funchal está totalmente protegida! Mas protegida de quê? Volto a colar o meu ouvido no que falam. Parecem existir muros que fecham a cidade a nascente e a poente, construídos para os defender do trono espanhol que tomou posse de Portugal. Vejo-os caminhar e sigo-os. Ouço-os ainda afirmar que foi graças a um ataque argelino que a Fortaleza de Santiago foi acabada de construir em 1620. Não posso acreditar… estou certamente a sonhar! Volto a sentir um calafrio e espero que venha quebrar todo este feitiço. Mas não! A névoa que antes me envolvia, adensa-se e… Tropas britânicas marcham dentro e fora do Forte. O que fazem aqui?– pergunto-lhes, ao mesmo que levo a minha mão aos seus ombros, tentando chamá-los… mas em vão! Na minha mão invisível sinto apenas um arrepio gélido camuflado no beijar dos meus dedos.
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Sento-me no chão! Não sei que fazer… não posso ajudar, nem fugir daquele mistério e deixo-me adormecer. Nos meus sonhos, ouço a resposta da questão que ergueu dentro de mim um rasgão de medo. São tropas britânicas que estão a se preparar para avançar para a Europa, para as Campanhas Napoleónicas! Desperto… não sei se é manhã, se é tarde! Até o meu relógio deixou de assinalar o tempo. Estou regelada e tenho as pernas entorpecidas, apesar de não as ver. Outra imagem me espera. Agora, numa fortaleza ampliada e cada vez mais sublime, vislumbro uma festa. Está tudo enfeitado, tudo tão belo… O meu rosto esboça um sorriso! Alegria… sim, a alegria percorre o ar que tão pouco respiro, nesta imagem do espectro que agora sou. Os meus olhos prendem-se na chegada de um rei. Conheçoo! (Pelo menos, dos livros de história que li na escola). É o rei D. Carlos?! … Bem, só podia ser ele, foi o único rei a visitar a nossa ilha!
Aproximo-me. Tento tocar-lhe nas vestes. Ele é forte, tem um rosto audaz, mas ao mesmo tempo os seus olhos parecem carregar um sofrimento atroz, presságio do trágico futuro que o espera… Observo todos a fazerem-lhe vénias enquanto eu continuo incrédula, com a dádiva que me foi concedida.
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Já manjava alguma coisa! O meu estômago começa a exigir algo, mas as minhas mãos nada conseguem suster daquele enorme banquete. Fecho os olhos, passando a mão no meu estômago e quando os volto a abrir, deparo-me com um tempo quase recente. Consigo lembrar-me do ano, em que transformaram o Forte num Museu de Arte Contemporânea e Militar. Ponho-me a tentar juntar os anos. Oito, nove… onze… Sim, há onze anos, em 1992! No entanto, mesmo depois de saber tudo isto, continuo sem perceber, porquê o nome de Santiago. Sem mais demoras sinto os meus pés a ficarem mais leves do que já estavam e vejo-me a voar! Estou, agora, no Largo de Santa Maria. As cores, os movimentos, as casas, a praia da Barreirinha apinhada de gente e lá ao fundo, o Forte de Santiago, levam-me a crer que estou no presente, no século XXI. O meu coração bate agora tenazmente. Coloco as minhas mãos sobre ele. Consigo vê-las! Sim… estou novamente aqui! Os meus olhos voltam a se fechar e tento escutar o que o meu coração comunica baixinho… Conta-me a história de um jogo, de um sorteio para escolher o padroeiro da cidade. E sou capaz de visionar, não sei como, o barrete de uma criança de sete anos, cheio de papéis, nos quais estão escritos os nomes dos Apóstolos, da Virgem e de São João Baptista. O nome tirado à sorte pelo capitão donatário, pelos membros da Câmara e do Clero corresponde a São Tiago Menor, primeiro bispo de Jerusalém.
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Ouço agora, que não tardou a se erguer uma capela para venerar a imagem de Santiago Menor, mas não sendo ele defensor contra as pestes, o terramoto de 1538, veio fustigar a população com a peste. No entanto, a fé por aquele padroeiro não esmoreceu e no primeiro de Maio, organizou-se uma procissão e renovou-se o tributo a Santiago Menor, não havendo registos de outra peste. Sussurra-me ainda que esta capela transformou-se na Igreja Matriz de St.ª Maria Maior, sendo o padroeiro o mesmo. Mas como a memória das pessoas é curta, logo começaram a prestar devoção a Nossa Senhora, cuja igreja (antiga matriz) situada outrora no actual Mercado dos Lavradores, fora arrasada por um terrível aluvião, em 1803. Depois de ouvir o que o coração me confidenciou, continuo em silêncio. Sinto-me leve, capaz de projectar a minha sombra na miríade do mar, e eis-me aqui escrevendo dentro dela o quão o passado é importante na construção de quem somos! Neste caso, o quão importante é o passado do Núcleo Histórico de Santa Maria!
Bibliografia: Roteiro Histórico Turístico da Cidade do Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1997
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AUTO-BIOGRAFIA ÁRVORE DE RECORDAÇÕES
A minha mente galga tempos de outrora… os meus olhos ladeiam cada curva do exis6r e descansam no chão coberto por um manto de folhas ma6zadas de vermelho, caídas de uma jovem árvore que vive no seu Outono. Sigo o voo das folhas ao sabor da aragem de outros tempos e ouço atentamente a história que me conta… a história de como nasci, de como cresci, deixando em aberto um caminho incerto. Esboçam-‐se nelas, os traços do gosto pela escrita e pela leitura desde a mais tenra idade… esboçam-‐se os contornos da imaginação que me levaram a viajar por mundos distantes e desconGnuos da realidade. A aragem fria que, con6nuamente, roça a minha mente, acalenta o peito com a imagem de um sonho… o sonho que, aos catorze anos de idade, deu o seu primeiro passo com a publicação do livro de poesia “O Ensejo de Poe6zar”, que contou com o apoio especial dos meus pais. E vejo-‐me, sinto-‐me crescer nesse tempo passado, tal como a pequena árvore que é apoiada por cada elemento da natureza – água, sol, chuva, terra…, Graças Divinas que descerram a cor6na de nevoeiro que não mais pode sucumbir o sonho ao irreal. Os meus dedos caminham sobre os recortes das folhas e beijam a sua textura… Em cada nervura vêem-‐se as bifurcações do sonho de tentar alcançar cada ser no seu mais profundo e ín6mo querer e de espalhar ao mundo a voz do coração.
AUTO-BIOGRAFIA ÁRVORE DE RECORDAÇÕES
Então, vêem-‐se desenhados pequenos troços do caminho que deverá ser percorrido. Relembro-‐me que, em 2001, surgiu uma proposta irrecusável, a de ser directora de um jornal trimestral – Bis Bis, da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal. Enquanto, que outras e outras tantas nervuras das folhas, escondem no meu coração as peripécias e aventuras que marcaram os dez anos na escola da Apresentação de Maria, outras mais são marcadas pela mudança que, então, se seguiu – a ida para o ensino secundário, acompanhada por um certo receio, logo superado pelo sonho que con6nuou a se tornar real. Fui congratulada com o prémio Jovem Prodígio 2002, na área de conto, e com o prémio Jogos Florais da Ameixoeira – Lisboa (2003), na área de poesia, entre outros. Assim, relembro de perto cada momento que construiu o meu sonho, dando-‐lhe asas para voar… No entanto, sei que tudo isto vive num Outono, onde as árvores perdem as folhas, onde o céu se irrompe em lágrimas de um tempo que vive para sempre na memória… mas eu vivo no presente, vivo na Primavera e agora, acabado o 12.º ano de escolaridade, vejo-‐me defronte a novas batalhas, novos caminhos, ao mesmo tempo que acompanho o crescimento de pequenas folhas que nascem da árvore, símbolo do futuro que me abarca a cada segundo, desde que alimentado pelo sonho, amor, esperança, em união com cada sopro da natureza que me incute o sen6do da vida! Carla Vale Lucas
VIAGEM AO PASSADO Carla PatrĂcia do Vale Lucas Madeira (2004)