Espelhos do Tempo

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ESPELHOS DO TEMPO Carla Patrícia do Vale Lucas



FICHA TÉCNICA Poesias: Espelhos do Tempo Autora: Carla Vale Lucas Ano: Madeira, 2005

Menção Honrosa Prémio Nacional de Literatura Ferreira de Castro em 2005


O PRÓPRIO TEMPO


ABSTRACTO

sem formas nem marcas… sem neblina nem luz… vagueando como vento, atravessando cada momento, erguendo a folha… erguendo a poeira… marcando o próprio tempo vago e imperfeito… pairando com a mesma leveza do ser e entregando a cada recanto a miríade de um novo querer.

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Por vezes, sinto-me perdida‌ perdida na linha da vida. Mas olhando a imagem, reflectida no espelho, sei que encontro a infância do meu mundo, dos meus dias‌.


INFÂNCIA DO MUNDO Galgo os degraus sem destino algum… Vagueio tentando encontrar a infância do mundo que se move sem assombro, com pureza e suavidade! Vozes perdidas enchem o meu espírito como melodia que ecoa pela manhã… Memórias jamais esquecidas - vividas sem desalento acalentam os já ressequidos lábios com doces palavras abandonadas de tormento! Desalinho de alma… de querer… de ser… Apenas sonho e realidade. Apenas ilusão e certeza. Apenas felicidade e tristeza. Apenas criança e adulto… Criança que se refugia no respirar da vida… Adulto que acorda no respirar do querer e do ter, e que morre a cada ferida.

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PÊNDULO DA VIDA

Sufoca a paisagem o gelo que atravessa o meu peito… e sopra cada momento em ritual de um pensamento, que é pêndulo no relógio da vida… Vivo presa ao passado e ao olhar que depõe em si mil venturas de um existir tão diferente, na fogueira de cada sentimento… Desaguam as remotas águas de uma ribeira calejada por mim… Desaguam as sombras pintadas pelo abismo que preenche meu ser, galgando até ao oceano em busca de um secreto afluente… que explode no mistério em que me abrigo, na enigmática direcção que percorro em busca de uma mão amiga que permanece queda olhando quem sou e esperando-me eternamente!

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MALAS DE RECORDAÇÕES

Balbucia em mim um sopro concreto e real, camuflado no eco que ecoa num descontínuo existir! As minhas mãos carregam malas pesadas, recheadas por mil recordações… Nas minhas mãos, regem-se histórias passadas, abandonadas, pouco a pouco, por uma memória que esconde quem sou! No meu coração delineiam-se sombras, traços de uma vida de outrora, escavada e trancada a sete chaves dentro deste meu portal de emoções…

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Assim, ecoa sôfrego o eco escondido num choro miudinho ao se ver apartar do passado e a caminhar rumo ao futuro… As malas pesadas são cada vez mais leves e a memória cada vez mais fugidia… No meu peito, apenas se acalenta a saudade marcada em cada tecido, em cada músculo deste meu corpo!

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RUÍNA DE EMOÇÕES

Marcas de um tempo que passou, árduos dias que ficaram mergulhados na triste ventura de um olhar perdido entre a gente… E foi por mim que o sol nasceu e foi por nós que a vida foi céu… Em meu pensar nasce o tempo que ficou para trás, marcado pelo frio, marcado pelo gelo que queima meu coração. E sou… ruína de emoções… Sou mistério de linhas… mar de sofrimentos… vento de tormentos e céu de tamanhos desalentos!

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E neste pêndulo da vida, moro eu‌ mora o meu presente, arrastando um tempo de outrora que me molda constantemente‌


MORADA DE SILÊNCIO

Irrompe pelo meu corpo o ensejo de outras eras… Move-se por detrás das palavras a dor, o arrependimento, o intratável sentimento que, ébrio, se apazigua na morada de silêncio em que habito… Meus sonhos correm de encontro a tempos de outrora, de encontro à infância que jamais estará perdida na memória… remetem-me para a saudade que se condensa no triste existir, no triste pesar que é o meu pensamento! Vivo eu… colada à história, trilhando caminhos enlameados, que, submissos, galgam marcas, vestes do limite que me cerca… Vivo eu… suspensa na ténue névoa que esbate todo o meu futuro nesta minha morada de silêncio!

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TRILHOS DE LIBERDADE

Escalei as íngremes encostas, galguei caminhos remotos e gritei por uma vida despida de tormentos… Talhei nas minhas mãos as sombras que se perderam na muralha que derrubei… Encontrei mil histórias de outrora… relembrei mil gestos de clausura e senti a prisão em que me encerrei… Fechadas, as cancelas, os lábios consumiram todos os sonhos que desfolharam do meu ser… Fechadas, emudeceram a vã certeza da vitória e escureceram as sombras em que deixei de me encontrar! Agora, no cimo desta encosta, com a força do meu coração, com o meu grito de liberdade, sorrio ao mundo… entreguei-me ao ofício do pensamento e trilhei rumos incertos e irreais, sentindo minha toda a pródiga sensação de liberdade que acalenta meu vago existir!

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LUZ BRANCA

Sob a concha enorme de um céu, caminho sem rumo nem destino acompanhada por um mar, um mar verde de arvoredo. Ao longe, o sol sorri para mim incita-me a atravessar a vereda em busca da luz branca que a todos os que amo ilumine. O meu corpo está leve, relaxado como nunca antes. Consigo ver na minha mente os meus passos no presente… acompanho o rasto de sorriso que emerge nos meus lábios… e deixo-me invadir por um calor que dos pés à cabeça, sobe devagar… agora mais depressa… e sempre cheio de força, repleto de vitalidade.

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Meus passos guiados pela luz que preencheu o meu interior… levam-me a caminhar pelo trilho agora protegido. Procuro apenas o eco, o eco do meu coração, que me dite a direcção que devo para sempre seguir… nesta concha que sou eu, neste mundo que é o meu e o teu, onde existimos nós, … eu… tu… a sombra de um passado fugaz e a luz de um presente tenaz.

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E assim se perpetuam as minhas

CONFIDÊNCIAS

Fossem estes dias vago ser de outrora… Fossem estas horas labirinto de emoção! Imagem de um mistério perdido no recanto da alma escondida… Fosse o calor do vento a imagem do pensamento que soa como gemido no tempo! Fosse o meu ser a fumaça de um querer! Fosse o meu coração memória da fugacidade de um ter! Fosse eu quem sonhara ser!

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Mas no espelho do tempo, embora desfocado, reflecte-se o futuro, emergido de uma árdua e contínua caminhada, que perfaz o meu ser. Por isso, sou viajante…


VIAJANTE

Sou viajante, contorno as esquinas do meu existir… Esfumam-se os dias, esfumam-se as horas… procuro a coloração do meu futuro e encontro a ruga que embranquece meu ser… Movo-me no tempo unindo-me às histórias para contar… Sou viajante tapando o meu ser com o véu da noite que cresce sem morrer, seduzido pelo tempo que mora em mim e se aperta no escuro da surdina, calejada pelo vento que me emudece e fascina!

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ILUSÃO

Sentada sobre a cama, encostada à cabeceira, perco-me no tempo que passou e no que mudou. Mas nem analisando consigo achar o que me mantém acordada! Os meus olhos tentam encontrar na penumbra a imagem que os mantém abertos, presos à ilusão de um sonho real… Ao som de uma balada, os meus ouvidos tentam perscrutar as palavras que quis ouvir, mas apenas abraçam o silêncio de uma noite perdida em ti! As minhas mãos tacteiam em busca da textura camuflada no beijar dos nossos dedos, mas nada conseguem encontrar…

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E o meu coração ouve a saudade que o mortifica por dentro, enquanto a minha alma o reconforta com outro sonho que nasce e que é mais irreal do que todos os outros, alimentando a pouca força que me consome! O poder do amor parece já não existir, ou não dá chama neste meu partir, neste partir do meu coração e de toda a minha paixão. Não sei que sentir, não sei que fazer, nem como agir… Queria apenas que o meu olhar pudesse criar o que com minhas mãos não consigo… um novo mundo para mim… um novo mundo para o meu coração, protegido agora por ti!

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ROUQUIDÃO DA ALMA

Turbilhão de sentimentos que acorrem a um ser tão diferente à não certa realidade… Turbilhão de sons que se espraiam tentando encontrar a leveza do mais sublime pensamento… Turbilhão de emoções que ateiam a rouquidão da alma, que grita ao tempo para que caminhem de mãos dadas, desfolhando a coroa de espinhos que envolve todo o sofrer! Cálidos são os afluentes que encaminham à Primavera do ser… Vagas são as encostas capazes de deplorar tamanha e incerta queda ao tormento, despenhando-se todo o corpo na demente culpa de um agir insípido que retoma em si a vontade de sobrevoar novos céus, novas venturas novos tempos!

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VOO SEM ASAS Voo sem asas rumo a ti… Não sei onde estás… apenas sigo um sol arrefecido pela minha insegurança! Encontrei o que havia de especial em mim, mas as forças desvanecem com o vento tempestuoso que me acaricia o rosto, mas não o coração que agora chora, assim como o céu promete fazer… Parto apenas com o que vagueia dentro de mim, cada vez mais forte… como que crescendo nas dificuldades que enfrento, nas respostas que não encontro… Fujo para ti, onde quer que estejas… Fujo para a tua alma, tentando encontrar … o abafo… o calor que me aquece neste frio que acarreto dentro do peito.

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Caminho em busca do derradeiro pôr do sol‌


PÔR DO SOL Adormeço devagar no silêncio das estrelas… Enumero os destinos que se perdem e vivo a verdade em que me encerro… O frio, a chuva… enredam-se em meus olhos, perdendo-se todo o ser na fresca sensação de um poder imortal, capaz de transcender o que sou… Os relógios que me apagam… Os espelhos que esbatem o meu ser, por vezes errante, são infinitos de enfraquecidos momentos, de invenções desmedidas que abarcam um fraco querer… Reanimam o meu coração todas as venturas que amanhecem sem hesitação e que são o tempo na procura incessante de um pôr do sol, o meu pôr do sol! OS ELH O P S E EMP DO T

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Por isso, lá fora… fora do meu coração nada existe… nem o próprio tempo, reflexo fugidio que cresce a cada momento.


NADA

o sol roça a minha face, os meus olhos fecham-se… estou leve, capaz de voar e mergulhar no mar de nuvens que sobre mim cai. nada… estou só… nada soa no meu agora paraíso construído pelo meu coração. nada do que os meus olhos vislumbram se iguala ao que dentro de mim cresce em união com os murmúrios que me envolvem. o sol, o vento, a chuva… o céu, o mar e a terra… nada… nada… apenas conceitos… que não mostram a verdade que encerram… que apenas me ligam à verdade não tão certa, à verdade que pinta meu coração com a vã imagem de uma ilusão.

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Assim, os espelhos do tempo sĂŁo o meu ser tentando urdir todo o meu firmamento e todo o meu querer!


Por vezes, sinto-me perdida… … perdida na linha da vida… Mas olhando a imagem, reflectida no espelho, sei que encontro a infância do meu mundo, dos meus dias. E neste pêndulo da vida, moro eu… … mora o meu presente, arrastando um tempo de outrora que me molda constantemente… Mas no espelho do tempo, embora desfocado, reflecte-se o futuro, emergido de uma árdua e contínua caminhada, que perfaz o meu ser. Por isso, sou viajante… Caminho em busca do derradeiro pôr do sol… E lá fora… … fora do meu coração nada existe… … nem o próprio tempo, reflexo fugidio que cresce a cada momento. Assim, os espelhos do tempo são o meu ser tentando urdir todo o meu firmamento e todo o meu querer!

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