CELINA MOTA
PELA CONTRAMÃO DA VIDA 1ª Edição
Brasília-DF
Edição do Autor 2010
Copyright © 2010 por Celina Mota Pela Contramão da Vida Celina Mota 1ª Edição 1ª Tiragem - Setembro de 2010 - 1.000 exemplares Impresso no Brasil Printed in Brazil Revisão João Carlos Taveira Diagramação Carlos Henrique Bodê Capa Simperson Cruz ISBN: 978-85-911118-0-0
M917p
Mota, Celina. Pela contramão da vida / Celina Mota. – Brasília : Ed. do Autor, 2010. 444 p. ; 22 cm.
ISBN 978-85-911118-0-0
1. Romance brasileiro. 2. Literatura brasileira. I. Título. CDD B869.3 CDU 821.134.3(81)-3
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Agradecimento
A
gradeço a Deus, por ter escrito estas
páginas. Foi muito difícil fazê-lo, mas sempre senti um anjo perto de mim a me ajudar. Agradeço a minha mãe e a meu pai (em memória) pela forma que me criaram. Agradeço a minha irmã, Loìde, e ao meu cunhado, Haroldo, pelo apoio e carinho. Agradeço as minhas amigas: Ana Beatriz, América e Rosarinha, que sempre estiveram ao meu lado, e a meus filhos, Sacha e Brummel, âncoras da minha vida. A Caca, fiel companheira, que nunca me faltou; e a todos os amigos que fazem parte da minha vida e que seria impossível citá-los aqui, sem esquecer de alguém.
Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.
Sumário PREFÁCIO — ......................................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 — REVIVENDO OS MEUS SONHOS........................................................ 17 CAPÍTULO 2 — BEM DISTANTE DOS MEUS SONHOS............................................... 27 CAPÍTULO 3 — O DIA SEGUINTE.................................................................................... 33 CAPÍTULO 4 — MEU PRIMEIRO EMPREGO................................................................ 37 CAPÍTULO 5 — O PARQUE................................................................................................ 41 CAPÍTULO 6 — DO MEU NOIVO...................................................................................... 47 CAPÍTULO 7 — RETORNANDO ÀS DÚVIDAS.............................................................. 49 CAPÍTULO 8 — COMEMORANDO COM OS AMIGOS................................................ 57 CAPÍTULO 9 — O ALMOÇO DE COMEMORAÇÃO..................................................... 61 CAPÍTULO 10 — NOVAMENTE SEM MARCOS............................................................ 65 CAPÍTULO 11 — MINHA DECISÃO ACONTECEU NA ESTRADA............................. 69 CAPÍTULO 12 — O ENCONTRO....................................................................................... 81 CAPÍTULO 13 — O TELEGRAMA.................................................................................... 97 CAPÍTULO 14 — “O DIA D”.............................................................................................. 101 CAPÍTULO 15 — EDUARDO E EU...................................................................................111 CAPÍTULO 16 — O REENCONTRO COM MARCOS.................................................. 113 CAPÍTULO 17 — O COMEÇO?........................................................................................ 119 CAPÍTULO 18 — MARCOS MAIS UMA VEZ ENTRA EM CENA............................. 123 CAPÍTULO 19 — MARCOS SOFRE ACIDENTE DE CARRO.................................... 127 CAPÍTULO 20 — UMA VIDA (SÓ) A DOIS..................................................................... 131
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CAPÍTULO 21 — ELE VIAJA DE FÉRIAS...................................................................... 139 CAPÍTULO 22 — ELE ESTAVA DE VOLTA.................................................................... 147 CAPÍTULO 23 — COMEÇAM AS DECEPÇÕES........................................................... 155 CAPÍTULO 24 — A SEPARAÇÃO DE MEUS PAIS........................................................ 159 CAPÍTULO 25 — EU QUERIA IR EMBORA.................................................................. 163 CAPÍTULO 26 — PERDI MEU EMPREGO E ABRI UMA BOUTIQUE..................... 177 CAPÍTULO 27 — DE CASAMENTO, NEM SE FALA! MAS EDUARDO SE MUDA PARA MINHA CASA........................ 191 CAPÍTULO 28 — COMPRO UM RESTAURANTE........................................................ 199 CAPÍTULO 29 — ELE ME TRAI...................................................................................... 203 CAPÍTULO 30 — CONSTRUÍMOS A TERCEIRA CASA............................................. 215 CAPÍTULO 31 — ENFIM, A CASA NOVA....................................................................... 225 CAPÍTULO 32 — OS CINCO FATOS QUE MAIS MARCARAM MINHA VIDA 1º FATO – MORRE MINHA IRMÃ HELOÍSA................................ 227 CAPÍTULO 33 — 2º FATO – UM ÓRFÃO ME TROUXE UM PRESENTE................. 235 CAPÍTULO 34 — 3º FATO – A NÃO AMAMENTAÇÃO................................................ 247 CAPÍTULO 35 — 4º FATO – O CASO LAURA................................................................ 257 CAPÍTULO 36 — 5º FATO – O CASAMENTO COM SEPARAÇÃO DE BENS.......... 267 CAPÍTULO 37 — PAPAI VOLTA PARA BRASÍLIA....................................................... 277 CAPÍTULO 38 — EDUARDO FICA DOENTE................................................................ 279 CAPÍTULO 39 — A INTERNAÇÃO E O DINHEIRO.................................................... 299 CAPÍTULO 40 — A ALTA E A COBRANÇA DO RECIBO............................................ 305 CAPÍTULO 41 — PAGUEI O DINHEIRO........................................................................ 321
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CAPÍTULO 42 — O TRANSTORNO DO TEMPO QUE EDUARDO FICOU EM CASA SE RECUPERANDO........................................................ 325 CAPÍTULO 43 — A DOENÇA E MORTE DE MEU PAI: NA MORTE UMA LIÇÃO DE VIDA................................................ 329 CAPÍTULO 44 — E O FILHO, VIRÁ?.............................................................................. 341 CAPITULO 45 — O PARTO E A SERENATA.................................................................. 353 CAPÍTULO 46 — COMECEI A LUTA PELA SEPARAÇÃO 1ª TENTATIVA (O medo)................................................................................................ 365 CAPÍTULO 47 — DE QUANDO EDUARDO SE REFORMOU E VEIO MORAR DE VEZ EM CASA............................................................. 369 CAPÍTULO 48 — SEGUNDA TENTATIVA DE SEPARAÇÃO (JUDICIAL) (As ameaças)......................................................................................... 379 CAPÍTULO 49 — FECHEI A BOUTIQUE...................................................................... 383 CAPÍTULO 50 — A RECAÍDA (Eduardo fica doente outra vez).......................................................... 389 CAPÍTULO 51 — DE FÉRIAS.......................................................................................... 393 CAPÍTULO 52 — TENTEI A SEPARAÇÃO PELA TERCEIRA VEZ (As regras)............................................................................................. 403 CAPÍTULO 53 — NÃO TEVE SEPARAÇÃO................................................................. 413 CAPÍTULO 54 — PESQUISANDO COMPORTAMENTO........................................... 417 CAPITULO 55 — UM PRESENTE DE NATAL PARA MIM......................................... 421 CAPÍTULO 56 — A VIDA EM MATO GROSSO............................................................. 439
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Prefácio
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estaco, inicialmente, que um belo ro-
mance significa muito, embora existam por aí incontáveis livros que não significam nada. Pela Contramão da Vida, de Celina Mota, é um romance dotado de qualidades pertinentes a uma boa e proveitosa leitura. Narrativa elegante, sugestivamente humana; aroma da beleza do coração. Nada criamos sem os sentimentos que nos acompanham sempre; amálgamas da alma. A fonte de nossa força existencial. Por isso, este livro impressiona; resgate de experiências fortes da vida; bagagem de sonhos e decepções que envolve o leitor numa rede de situações inesperadas. O enredo apresenta as circunstâncias de um destino romântico marcado de esperanças e enganos; triunfante: a noção de coragem! Escrever é depoimento e mensagem, memória revestida de imaginação; passar adiante a experiência da Via-Sacra própria. Desse modo, Celina Mota consegue, fluente e agradável, relatar suas várias histórias repletas de sentimento do mundo. Todo início resiste: crisálidas, sementes, embriões, como a gênese literária, têm origem difícil. Não foi à toa que Machado de Assis intitulou seu livro de estreia: de Crisálidas, a revelação
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de uma obra, primeiras histórias, em suas qualidades e equívocos, mas tudo bastante promissor. Assim, Pela Contramão da Vida aparece alvissareira a narrativa de Celina Mota, romance de educação sentimental, saído de um drama decorrente de paixão avassaladora. Consequentemente, razões de sobra tinha Goethe para afirmar que o homem é sempre o assunto mais interessante para o homem. Alguma coisa sobra ao naufrágio das ilusões, tal concepção foi bem aproveitada pela autora, escrevendo ela com certa eloquência infalível proveniente das recordações batizadas de lágrimas pungentes. Uma vez que o amor nunca é o mesmo para ninguém, surpreende sempre porque surge das nossas eternas contradições. Ele penetra o motivo da obra, pois Pela Contramão da Vida nota-se esse assombro lírico de constatar Camões em muitas passagens do romance: nos paradoxos passionais, isto é, nos desconcertos e desencontros do sentimento. Não há idade certa para o despertar do engenho e da arte. Exemplo famoso é o de Saramago ou o de Cora Coralina. A psicologia da composição medra silenciosa a espera de sua hora e vez, não assoma do nada inusitadamente, é uma conquista íntima da sensibilidade oriunda do caminho para a distância. Chega o momento e brilha a hora da estrela: Celina Mota, romancista! E das melhores do ramo. Jarbas Junior
Escritor, professor de redação e literatura brasileira
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PELA CONTRAMテグ DA VIDA
Dedicatテウria
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edico este livro aos meus irmテ」os: Pedro Alexandre,
Antonio Carlos, Raimundo Nonato, Judite, Helena (em memテウria), Noemia, Ana Maria (com especial carinho) e Loide. 15
1 Revivendo os meus sonhos ão três horas da manhã. Estamos a 30 de ouS tubro de um ano qualquer. Moro em Goiás, numa cidadezinha in-
teriorana onde ainda se vive de maneira simples e tranquila, uma simplicidade desprendida dos grandes avanços modernos e tecnológicos. É um lugarejo romântico e inspirador. Um lugar calmo que desperta na gente sentimentos de sonhos e poesia. Pelo avançado da hora, estou recolhida em meu quarto, mas não consigo dormir, pois neste momento me sinto muito abalada pelos fatos que aconteceram em minha vida nestes últimos anos. Fatos esses que me deixaram completamente frustrada, triste, vazia e sem esperança. E é durante a noite, no silêncio da madrugada, que encontramos refúgio para pensar e refletir sobre muitas coisas. Então, na imensa calma desta madrugada, estou a pensar e ouvindo a chuva que cai, cai fria e silenciosa. Ouvindo esse barulho tão triste e pesaroso, um passado muito remoto me vem à lembrança. Penso muito no passado, penso muito no presente. Penso tanto que chego a sentir uma dor física. E, neste pensar, fico refletindo e então me pergunto: “Por que a vida muda tanto?” Não tenho resposta, pois só a chuva me acompanha neste momento. Ah, a chuva... A chuva tem muito poder sobre mim, ela me deixa assim, triste e melancólica. Minha mente fica fechada e escura, uma sensação de angústia e ao mesmo tempo um prazer incontido. Tudo fica pesado, conturbado como uma tarde à espera de um grande temporal. 17
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Contagiada pelo barulho da chuva, sinto medo, muito medo do presente. Mas também sinto um pequeno aconchego interior que me vem neste momento conduzido pelas lembranças do passado e, nesse passado, fico a vagar. Portanto, mais lembranças e recordações vêm povoar minha mente; e de repente meu pensamento voa longe, tão longe que foge ao meu controle. Uma angústia e um vazio tomam conta de mim. Assustada, vejo então como a vida passa rápido, passa, vai levando tudo e às vezes não deixando nada. Hoje, aos meus 40 anos de vida, feitos recentemente, paro e analiso todos esses anos vividos, passo um a um em revista e numa contagem regressiva volto aos meus menos de 10 anos de idade. Volto a uma infância que já vai longe, vivida numa terra não menos distante. Para mim é muito triste saber que a vida me roubou muito daquela doce e pura infância; aliás, me roubou tudo e agora só tenho motivos para sentir saudades dos meus sonhos de criança. E, viajando pelas minhas saudades, relembro da nossa casa pequenina, casa simples e humilde, mas que abrigava em cada canto um doce aconchego, um sonho, uma magia. Em tudo se percebia um toque de uma fada chamada MÃE. Qualquer espaço daquela casa era cuidado de forma a proporcionar conforto e bem-estar familiar. Encravada ela ficava num recanto privilegiado pela natureza. Aquele cantinho era cercado por uma linda paisagem que a cada dia renascia mais bonita. E, neste momento, posso ainda relembrar tudo com riqueza de detalhes. Relembro até o perfume de cada flor daquele jardim nativo. Relembro da brisa fresca que soprava toda manhã e dos animais que pastavam perto do curral. Relembro tudo e, daqui da minha cama, posso quase ainda ver aquele belo cenário. Relembro que, do fundo de nosso quintal, se avistava, não muito longe, um grande vale forrado por um gramado verde e nativo. 18
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Aquele gramado era pontilhado por belas e miúdas flores do campo, dentre as quais surgiam altas e frondosas carnaubeiras que estavam sempre carregadas com cachos de flores e pencas de frutos que, quando maduros, em muito se assemelhavam a azeitonas pretas. Fico a pensar como eram belas aquelas altas e imponentes carnaubeiras a embalar-se ao sabor do vento. O carnaubal se estendia e seguia assim até chegar ao pé de uma montanha. Montanha aquela que sofria uma misteriosa metamorfose. Ora estava verde, verde como uma esmeralda, ora ficava azul, um azul muito forte com nuances acinzentadas. Depois ia ficando escura e mais escura, até se tornar preta como a noite. Era uma mudança constante que me deixava encantada e imaginando: tudo aquilo era arte de um deus que por lá vivia e que, num toque de mágica, pintava sua majestosa casa nas cores que ele bem queria. Mas, como a fantasia nem sempre se torna realidade, hoje sei que aquele constante movimento era devido a fenômenos próprios da natureza: como o tempo, a posição do sol, o clima; ou até mesmo pelo meu estado de espírito, pois qualquer coisa era motivo para eu ficar horas, ali parada, olhando para aquela montanha e tudo mais que se estendia à minha frente. Olhava o céu, a montanha, olhava a relva verde e fria que me cercava. Era um mundo belo e aconchegante. Era uma viagem ao infinito. Uma viagem ao mundo encantado da infância bem vivida. Todo aquele conjunto formava um cenário especial que muitas vezes só vemos estampados em telas pintadas a óleo ou a outro recurso qualquer. Seja ela de um artista famoso ou de um principiante desconhecido. Enfim, cenários estes que muitas vezes só serão percebidos pela alma sensível de um artista ou de uma criança sonhadora. Eu não era uma artista, era só uma criança e, como criança, tinha liberdade e direito de sonhar. Vivia a imaginar que ali naquela 19
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montanha existia um reino encantado cheio de animais. Era lá que eu “construía” um habitat natural para todos os personagens das estórias que eu ouvia contar. Era lá que moravam todos os monstros e fadas do meu reino. Imaginava animais mansinhos e ferozes também. Imaginava onças pintadas, veados saltitantes, pássaros grandes e coloridos, grandes tamanduás a enrolarem sua comprida língua nos formigueiros a cata de alimentos, antas, pacas e tatus com suas ninhadas... E assim ia catalogando tantos animais que sabia ali não existirem, mas eu os “criava” e convivia com eles. Assim, imaginariamente, completava o cenário como eu bem queria, pois mesmo aquilo que não estivesse ao alcance dos meus olhos eu conseguia inventar. E como se não bastasse tanta beleza assim já descrita, tinha bem ao fundo do vale um riacho de águas azuis e transparentes que passeava e se enroscava calmo e serenamente entre o vale e a montanha. Ele era como um pai bondoso e generoso que a todos acolhia e a todos servia. Para nós, crianças, ele também representava o lazer, a brincadeira e a alegria. No tal riacho vivíamos a brincar, a subir e a descer, às vezes pelas margens a pescar piabas, às vezes a nadar. Era um nadar pouco convencional, pois sua profundidade bastante irregular nos obrigava a sair do nado para uma caminhada; da caminhada para umas escorregadas. Escorregávamos e mergulhávamos novamente deixando para trás uma água suja e esbranquiçada. E, quando passava o último da tropa, ela voltava logo ao seu estado original, que era limpo e cristalino. Depois, subíamos até uma várzea e num pequeno pomar catávamos frutos nativos para o lanche da tarde à beira do riacho. Nessas brincadeiras tomávamos muito sol, tanto sol que a pele chegava a descascar e quando o corpo começava a arder corríamos para a água outra vez, pulando e espirrando como cabritos 20
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na chuva, mas apesar de tanta exposição o resfriado passava longe; parece que éramos imunizados pela própria felicidade. E era assim que nos divertíamos de maneira simples e feliz. Naquele clima de felicidade, eu vivia a imaginar meu futuro. Um futuro que só via e queria que fosse grande, porém seguro como minha infância. Mas quão grande surpresa nos reserva a vida. Conheço tantas pessoas que buscam na psicologia, na terapia, uma forma mágica para entender ou fugir do passado, porque dele não trazem boas recordações. Porém há os que nele buscam uma essência de vida, viajam para lá constantemente e de onde não querem mais voltar. Não me sinto pateticamente presa ao passado, mas é para lá que fujo quando o aqui, o presente fica insuportável. Quando pinta este imenso vazio parece que só consigo mesmo suportar porque é para lá que volto correndo, para esta doce lembrança que ainda me acalenta a alma. Portanto, é lá que estou neste momento e posso ainda ouvir a canção que vem pelo rádio; rádio aquele que não tinha uma boa sintonia; não sei se pelo desgaste do tempo ou se pela localização que não era favorável. Aquelas músicas vinham não sabia eu de onde, mas sabia que elas me enchiam de encanto e alegria. Brincando e sonhando, ficava a ouvi-las e, de vez em quando, entre uma canção e outra, entrava a voz do locutor, que tentava vender mais e mais um produto antigo e já bastante conhecido. Ele anunciava uma nova marca de brilhantina para os cabelos, uma pasta de dente, uma lâmina de barbear ou um “maravilhoso laquê para seu penteado permanecer impecável”. Depois vinha a hora do noticiário nacional; e, quando deste ele falava, colocava entonação mais séria na voz e até mesmo uma certa reverência. Mas o que eu mais gostava era quando ele transmitia um recado, uma mensagem para um ouvinte qualquer, enviada por um parente que se encontrava distante. Ficava encantada com aquilo 21
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tudo; com a voz do locutor, então nem se fala. Ele tinha uma voz forte, grave, que mais parecia o ressoar de um trovão. E foi assim que ele se tornou meu ídolo desconhecido. Imaginava-o bonito, educado e gentil. Ele sempre começava seu repertório assim: – E atenção, muita atenção, Sr. Fulano, Sra. Fulana de tal... Lembro-me muito bem de uma notícia que ouvi certo dia, em que ele dizia: – “E atenção, muita atenção senhor João de Deus, que mora lá Fazenda Serrinha, no município da cidade Castelo, sua filha Madalena avisa ao senhor e toda a sua família que seu netinho já nasceu... É um belo menino! Ela diz também que, como lhe havia prometido, o mesmo se chamará João de Deus Neto e avisa ainda que ela e o bebê passam bem.” Abraços saudosos a todos. De sua filha Madalena. Eu adorava ouvir as mensagens, elas me faziam viajar junto com a doce e misteriosa voz do desconhecido locutor, e viajando eu continuava a pensar: “Que lindo! Como será a Madalena e seu bebê? Será que ela havia defumado suas roupinhas com aquela queima de alfazema, erva-doce e manjericão, como minha mãe costumava fazer dias antes da chegada de um bebê?” Quando mamãe fazia aquela defumação, a casa toda se enchia de um doce e agradável perfume, que caracterizava a chegada de mais uma vida naquela já numerosa família. A queima de ervas ela fazia para purificar e perfumar as roupinhas, numa demonstração de zelo e carinho pelo seu pequeno que ia chegar, pois na simplicidade em que vivíamos não tínhamos o muito que o dinheiro podia comprar. Mas ela, como mãe convicta que era, fazia de tudo para nos tornar a vida mais confortável. Bem, mas será que o senhor João de Deus teria ouvido a notícia? Ou estaria a embalar-se numa rede da varanda de sua fazenda, desfrutando de um bom sono depois do almoço? 22
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Se o destinatário havia ouvido ou não, isto não seria problema, porque, com certeza, mais cedo ou mais tarde, algum vizinho que ouvira a notícia iria lá para comentar o assunto, todo empolgado com a importância do fato, pois a Madalena fora criada ali, naquela vida simples do campo. Mas agora era moça casada e de posses, posse o bastante para poder pagar uma mensagem daquele tamanho. E novamente eu pensava: “Como gostaria de receber uma mensagem pelo rádio”. Mas de quem? Todos os meus moravam ali mesmo. Porém eu viajava e viajava, tangida pela voz misteriosa do rádio, para onde ela se direcionava eu a seguia. Navegava pelas ondas que iam e vinham, sumiam e reapareciam entre um chiado e outro, os quais minha mãe tentava controlar procurando uma melhor posição, uma melhor sintonia das rádios. E eu ficava só a observar o cordãozinho que aparecia no pequeno visor do rádio. Naquele visor cheio de números e traços ele corria para lá e para cá, conduzido pela mão da minha mãe. Enquanto ela movia o botão de um lado para o outro, entre os chiados distantes se captava vozes diferentes; eram palavras ininteligíveis e indecifráveis para mim. Então eu perguntava: – Mãe, o que é isso? Por que eles falam assim? – São pessoas que moram em outros cantos da Terra, outros países, minha filha – dizia ela. Países bem distantes daqui. São pessoas de outras terras e que falam outras línguas. Em geral elas são loiras, olhos azuis, altas e muito bonitas, mas tem também os de olhinhos repuxados, e os de pele escurinha... – Como assim, mãe? De olhinhos repuxados e pele escurinha, eles são diferentes de nós? – Diferentes? Diferentes em parte... acho que sim. E como ela não era nenhuma perita em assunto de raças e línguas estrangeiras, saía rapidamente pela tangente e dizia: – Bem, não importa a cor nem as diferenças, só sei que eles 23
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falam assim desse jeito e a gente não entende nada. É o tal do inglês, do espanhol, do alemão, do francês, ou outras palavras assim, que eu nem sei bem o que são e nem para o que servem. E assim, com aquele seu jeito, simples e, ao mesmo tempo, majestoso, ela continuava explicando a confusão das tais “línguas” diferente; e o resto ficava por conta da minha imaginação que não era pequena. Sentada em meu banquinho preferido, colocava a mão no queixo e não sabia se prestava atenção ao que ela dizia ou se acompanhava aquela confusão. Mas quase sempre eu preferia deixá-la falando sozinha; e concentrava-me no rádio, só queria entender como era possível que uma coisinha tão pequena igual aquela podia ser tão “inteligente” e saber de tantos assuntos, como podia captar do nada conversas tão importantes. Conversas estas que os adultos ouviam e depois se reuniam para comentar. Eles discutiam por horas sobre o que eles haviam escutado no rádio. Parecia que aquela caixinha “faladeira” era dotada de uma inteligência especial, pois todos do vilarejo, homens, mulheres, crianças, adultos ou anciões, a ela se rendiam. Achava tudo àquilo incrível e continuava pensando: “Se ele ‘pode’, um dia eu também vou poder, um dia vou sair daqui; vou viajar e descobrir muitas coisas.” Eu precisava e queria ser diferente, não que não gostasse de ser como era e sim porque tinha uma imensa curiosidade de conhecer, de descobrir a vida, de viajar e criar. Vivia criando, vivia um sonho bom. Aquele traço da minha personalidade era algo que pulsava muito forte dentro de mim e através do rádio podia entender bem melhor que a vida não era só aquilo que eu conhecia e vivia. Portanto, crescia dentro de mim e junto comigo uma curiosidade incontida. Não sabia eu com exatidão o tamanho do planeta Terra, nem sabia o que era planeta, nem o que era “outros países”. Só sabia que 24
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coisa linda era a vida e que ela brotava para mim de maneira diferente. Ela queria algo maior de mim, melhor dizendo, eu queria dela. Mal sabia eu que existia um mundo tão grande, além daquelas poucas léguas de terras que conhecia e que nelas estava contido um pequeno povoado que, segundo a minha imaginação, era a “vila das redondezas do castelo real”. E quando para lá podíamos ir se fazia disso um verdadeiro acontecimento. Lá podíamos passear pela estação de trem, ver pessoas diferentes que desciam ou subiam dos vagões de passageiros com suas malas e frasqueiras nas mãos. Mas havia outros que só acompanhavam e embarcavam seus filhos para seguirem viagem, pois estudavam longe dali. Pelo rádio e pelo trem, eu já entendia que havia vida do outro lado daquelas montanhas. Enquanto observava aquele movimento mais curiosidade eu sentia. Por pouco não entrava no trem e partia também. Então quando ele ia embora e sumia na curva da estrada ficava um silêncio e uma saudade que eu nem sabia do que ou de quem. Quando tudo se aquietava na estação e eu me acalmava da grande euforia, partíamos então para outras brincadeiras. Da estação íamos var a casinha do motor barulhento, que gerava energia elétrica para iluminar o vilarejo. Poucas casas tinham o privilégio de receber aquele luxo, pois antes vinham as prioridades tais como: a praça, a estação de trem, o posto de polícia e o dos correios e telégrafos. O pouco que sobrava das prioridades era distribuído de forma seletiva, ou seja, para os moradores mais importantes do vilarejo. Porém, lá pelas 21 horas, o motor era desligado e a “grande vila” ficava às escuras, deixando todos numa igualdade silenciosa. Enquanto não desligavam as luzes, podíamos brincar, na pracinha iluminada, de projeto simples e modesto. Era um quadrado de 10x10 metros mais ou menos, que tinha um poste de madeira 25
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fincado bem no centro, e do qual pendiam quatro braços e em cada extremidade dos braços uma lâmpada de luz fraca e amarelada. Uns três banquinhos de concreto e alguns canteirinhos de margarida que uma bondosa e voluntária senhora havia plantado e também deles cuidava. Assim era a nossa praça, simples, porém o orgulho das poucas crianças que por ali moravam. Só sei que a luz elétrica era para mim outro xis da questão; era outro fenômeno encantador depois do rádio e do trem, é claro. E com ela surgia mais um sonho, o de ter uma casa toda iluminada como aquelas que eu via por ali. Naqueles passeios, quando a sorte nos sorria mais largamente, até um circo fazia parte de nosso roteiro; mas esse circo só se podia ver do lado de fora, pois o pouco dinheiro e a religião não permitiam que nele entrássemos. Porém fazia para mim mesma mais uma promessa: “Um dia, venho aqui e entro.”
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2 Bem distante dos meus sonhos odos aqueles sonhos, toda aquela procura e T fantasia de criança eram amuletos aos quais eu me apegava e, as-
sim, seguir a vida muito feliz. Mas é nessa procura pura e inocente, que muitas vezes não encontramos só os sonhos bonitos. O destino também tem seu próprio caminho e nos conduz para onde ele bem quer. E é por isso que hoje vivo muito distante daquela paisagem que tanto me fazia sonhar. Distante física e geograficamente falando. Hoje todos aqueles sonhos já terminaram, foram destruídos. E em meu peito só restam as lembranças dos tempos felizes de minha infância, tempo daquela vida digna e cheia de objetivos. Uma vida pura e não desgastada por acontecimentos muitas vezes alheios à nossa própria vontade. Acontecimentos que surgem na contramão da vida e que fazem de nossos sonhos algo sem sentido. Coisas que transformam nossos objetivos numa tremenda confusão, numa grande incerteza. É aí que tudo muda e que tudo se perde. Hoje sinto uma imensa saudade de apenas sonhar com as canções que ouvia no meu querido rádio. Ele, tão quieto, vivia sobre aquela mesa de ipê, forrada, com uma toalhinha branca, bordada em ponto cruz, com motivos onde se via galhos de trepadeiras e neles alguns pássaros numa expressão de canto e movimento. E são ainda estas doces lembranças que me dão forças para enfrentar as horas difíceis da vida. Por isso sempre volto ao pas27
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sado e por lá quero ficar. Quero ficar naquela doce e pura infância, porque voltar para cá, para o meu hoje, às quatro horas da manhã, minha mente se recusa. É lá que quero ficar. Lá numa infância onde tínhamos pai, mãe e irmãos reunidos à mesa do jantar, onde se agradecia a Deus pelo pão e pela vida. Uma infância onde aos domingos éramos conduzidos por nossos pais para uma igreja e de lá voltávamos com o coração cheio de sonhos, fé e esperança. Uma infância onde a igreja ainda era um lugar sagrado e não uma entidade voltada para fins lucrativos. A religião não era uma política e sim uma vocação. Uma infância onde uma mãe zelosa lavava, passava, cozinhava e cuidava de tudo com amor e carinho, sem revoltas por estar fazendo trabalhos domésticos. A mãe era só mãe e esposa: a rainha do lar; não tinha que se matar de tanto trabalhar lá fora para atender a essa enorme demanda de necessidades inúteis que foram surgindo com a vida moderna. Necessidades estas muitas vezes supérfluas e de puro consumismo. Uma infância onde esta mesma mãe fazia grandes bonecas de pano. Bonecas de pernas finas e compridas, olhos grandes e arregalados, cabelos loiros lisos ou pretos encaracolados, feitos com fios de meias que ela tão pacientemente trabalhava. Ela recortava um pedaço de meia, desfiava a trama na horizontal, puxando fio por fio; os que ficavam presos ao tecido iam se encaracolando naturalmente e assim ela conseguia obter o que queria: como cabelos para aquele personagem que estava criando. Depois, como se tivesse uma noção exata da anatomia humana, ela formava uma peruca, colava cuidadosamente na cabeça da boneca e, pronto, ficava um belo cabelo cacheado. Também fazia vestidinhos cheios de laços e fitas para nossas bonecas, ensinando-nos como cuidar de nossos próprios filhos, se um dia os tivéssemos. 28
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Uma infância onde a prioridade e o bem mais precioso era a formação do caráter de um filho e de uma família; onde um pai e uma mãe eram reverenciados e amados, e que o mundo inteiro podia desabar que não tínhamos medo. Nossos pais sempre juntos e unidos era a garantia de que nada nos afetaria. Uma infância onde a presença de um pai era a certeza de segurança e bem-estar. Não se via um pai embriagado, violento e agressivo agredir uma mãe com palavras grosseiras e obscenas na presença dos seus próprios filhos. Uma infância onde o senso do dever e do trabalho nos fora ensinado de maneira simples e objetiva; ou seja, através do exemplo. Eles não diziam faça isto faça aquilo; eles simplesmente faziam e os filhos seguiam seus passos num aprendizado puro e natural. Assim aprendíamos a cooperar, a compartilhar e a viver em harmonia. Uma infância onde tínhamos liberdade, mas éramos acompanhados, observados, corrigidos e advertidos quando errávamos, não vivíamos entregues a própria sorte. Uma infância onde a pobreza não era motivo para nos sentirmos pequenos ou diferentes, pois a honradez que vinha de nossos pais era maior do que qualquer valor monetário. As crianças nem bem sabiam para que servia o dinheiro: isto era assunto de adulto. Recebíamos apenas o que eles podiam nos oferecer, mas recebíamos com amor e gratidão, sem rebeldia, disputa ou egoísmo. Uma infância onde um pai, com pedacinhos de madeira, latas, arames e barbantes fabricava um sem fim de bugigangas para seus filhos brincarem de forma livre e criativa. Uma infância onde numa noite clara e enluarada nossos pais reuniam, na calçada, amigos e vizinhos para nos contar estórias de lobisomens, da mula sem cabeça, do saci pererê, branca de neve e dos sete anões, Joãozinho e Maria e muitos outros contos de fadas. Lendas de cobras gigantes que habitavam no amazonas, da gameleira que gemia nas noites de lua cheia, de casa mal assombrada, do vaqueiro e seu cavalo que apareciam e sumiam nos pastos da fazenda Encantado. 29
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Uma infância onde a pureza e a inocência de uma criança eram preservadas de forma rigorosa; e a elas não era permitido viver uma maturidade tão precoce. Por fim, uma infância onde não sentíamos falta de nada. Tínhamos casa, alimento, família, religião, trabalho, escola, diversão e amigos. Não éramos pequenos seres escravos do consumismo desenfreado, inconsciente e inconsequente. Ainda que algo nos faltasse, tínhamos nossos pais e isso, para nós, era o bastante: eles sempre nos diziam: “fiquem tranqüilos que tudo se resolverá”. Era uma paz maravilhosa. Portanto, é lá que quero ficar. Ficar naquele mundo de conto de fadas que tanto ouvia falar nas rodas de calçada nas noites enluaradas. É lá que gostaria de ficar; porém, a realidade me traz de volta e, para não travar de vez, um dia tive a ideia de começar a escrever. Pensei: escrevendo posso imortalizar tudo que me foi precioso, como também tentar com isso neutralizar este presente que tanto me confunde e me desestabiliza. Todo esse conflito está muito forte em minha mente, está muito bem gravado no meu interior e isso me causa um grande desconforto. Então vou tentar passar tudo para o papel e ver se me sinto mais aliviada. Esta foi sem dúvida a melhor solução que encontrei para desabafar e creio eu que muitas pessoas já usaram deste recurso para amenizar sua dor e solidão. É um desabafo onde ninguém é ouvinte. É um monólogo triste e silencioso, como tem sido minha vida desde que, como disse antes, o destino resolveu agir sozinho. Não quero aqui, caro leitor, levar até você um melodrama, uma estória corriqueira e ter a pretensão de estar escrevendo algo inédito. Não, não quero isso, não é esta a minha intenção. Porém, sempre gostei de ler, de ouvir, de aprender com outras pessoas e até mesmo com os meus próprios erros. Por isso, pretendo sim que 30
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meu depoimento leve até você um sinal de alerta, tenha você menos ou mais de vinte anos; seja você homem ou mulher, não importa. Só quero dizer que é muito importante pensar bem, antes de tomar qualquer decisão na vida. Filosofia de cordel? Não. Experiência de vida? Sim. Embora muitas vezes o meu exemplo não sirva para você, o seu exemplo não sirva para outros, mesmo assim a gente sente grande necessidade de contar, de desabafar, até mesmo com a esperança de que alguém leia, seja solidário com você e diga: – Como eu te entendo, amiga, já passei por tudo isso também. Sei que muitos escrevem e contam a sua versão dos fatos, porque a certa altura da vida se sentem criaturas estranhas, pessoas incompreendidas e vão ficando silenciosas, depressivas, e de difícil convivência. É quando ela se sente tão abalada, tão ferida, que não vê mais graça em nada, perde o interesse por tudo, até mesmo pela própria vida. Neste desalento, ela se fecha, ela se isola e se esconde do mundo. E, neste esconderijo, percebe que se iniciou sua GRANDE SOLIDÃO e ali também começa sua decadência. Muitas vezes, as pessoas ao seu redor começam a demonstrar dúvidas quanto à sua sanidade mental; chegam até a dizer que você perdeu a razão, pirou de vez. E muitos vão parar mesmo num sanatório para loucos, basta para isso que você seja diferente, fuja do convencional e discorde de certos padrões que lhe são empurrados garganta abaixo. Você é louco? Não, mas há alguém pra te ouvir? Para tentar entender os motivos de suas desilusões e da sua demanda interior? Não, ninguém vai te ouvir, te entender, você é uma figura estranha. Você é ou se tornou estranho depois que a vida te obrigou a isto? Eh, mas quem para pra te escutar? Então, por que não escrever? 31
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Vou escrever; aliás, já estou escrevendo. Será que é assim que muitos se tornam escritores, por ter tanto a dizer e ninguém para pra ouvir?
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3 O dia seguinte screvo, escrevo e o dia vai chegando. E Neste exato momento, sinto meus olhos bastante cansados
pelo sono perdido, mas uma sensação de alívio e bem-estar começa a tomar conta de mim. De repente, me sinto feliz por saber que encontrei dois amigos: a caneta e o papel. Sei que eles não se recusarão a me ouvir; eles não duvidarão de meus motivos nem de meus sentimentos; neles posso confiar. Continuo escrevendo e, na mesma proporção que escrevo, sinto desaparecer um grande peso que estava dentro de mim. O grande peso da dúvida, da solidão, da decepção e da incerteza. Sinto como se fosse o degelo de um enorme iceberg que me congelou a vida neste nestes últimos anos. Escrevo até que o dia amanheça completamente. O sol desponta meio preguiçoso, intimidado pela noite chuvosa, mas ele vem e seus primeiros raios brilham entre a folhagem, entre os galhos das árvores, formando na calçada um desenho rendado que se move lentamente, saindo do lugar como se fosse movido em câmara lenta. As pessoas começam a passar pela rua conversando alegremente. Ouço uma música baixinha e bem distante. Vendo e ouvindo todo esse movimento, percebo com alegria que o dia trouxe a vida novamente e que o silêncio da noite já se foi. Seria “água com açúcar” falar dos passarinhos que estão a 33
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cantar? Talvez seja. Mesmo assim quero falar deles porque eles também lembram e muito a minha infância; e foi dela que estive a falar até agora. Ouvindo os passarinhos a cantar, minha tristeza diminui. Parece que de repente me sinto um pouquinho mais feliz. Os pássaros me fazem lembrar que moro numa casa muito bonita, com um belo jardim e um rico quintal, onde plantei flores e muitas árvores. Plantei mangueiras, laranjeiras, limoeiros, abacateiros e outras, as quais abrigam hoje em seus galhos dezenas de criaturinhas alegres e voadoras que, com seu canto, vêm me acordar todas as manhãs e essa ligação com o passado me faz feliz. É inacreditável como precisamos da felicidade para viver. Vejo aqui neste pequeno trecho que citei quatro motivos, quatro migalhas de motivos para formar um grãozinho de felicidade e nele me apegar. Citei o papel, a caneta, os pássaros que cantavam e as árvores que plantei no quintal. Foi a eles que me apeguei neste momento para não afundar de vez na tristeza. E sei também que quem consegue encontrar essas pequenas migalhas ainda pode ter cura de sua dor interior. Volto meu olhar para este amontoado de papel que estive a rabiscar durante a noite e que agora paira sobre minha mesinha de cabeceira e penso: “Será tudo isso uma grande bobagem? O que escrevi aí são apenas borrões de uma mente desiludida e um coração magoado?” Tento ler o que escrevi, mas não consigo. Dormir agora também seria impossível, estou muito apegada a estes novos “amigos” e não quero me separar deles. Descanso um pouco e retorno a escrita. Agora está mais difícil. As lembranças ficam todas embaralhadas e confusas. As do passado me animam; as do presente me entristecem. Fica tudo uma mistura de doce e amargo. 34
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Meu Deus! Como é ruim escrever ou falar de nossas próprias mazelas; a gente acaba se deprimindo ainda mais. De repente foge aquela pontinha de alegria que senti, foge por que o passado está muito ligado ao presente e não posso separar um do outro. Escrever é assim como arrumar uma grande casa que está em desordem. É colocar cada peça em seu devido lugar e organizar cada detalhe. Minha cabeça está numa confusão porque são tantas as coisas que pretendo narrar, que é difícil coordená-las. E assim fica uma salada de pensamentos, nem sei mais por onde recomeçar, se pela infância, se pela adolescência ou se pelo hoje. Não! Pelo meu hoje, não. Meu hoje é muito ruim.
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4 Meu primeiro emprego ou recomeçar pelo final da minha adolescênV cia e voltar um pouco a fita para aquele tempo. Olhando de lá, dá
para sentir como é grande a diferença da minha vida de hoje com a de outrora. Revendo o tempo quando aqui cheguei e trazia comigo muitos sonhos, alegrias e esperança. Cheguei a uma cidade estranha, costumes diferentes; fiquei muito perdida. Não tinha amigos nem parentes, mas, apesar da pouca idade, não me deixei intimidar. Logo tentei me achar, me situar naquela nova e tão sonhada fase da minha vida. Então me preparei para agarrar a primeira oportunidade que, com certeza, viria. A cidade era bem pequena, menor do que é hoje, claro. Não oferecia opções de trabalho e crescimento; porém, na minha cabeça, tudo era possível, pois eu tinha muita determinação. Logo comecei a estudar para terminar o ginásio (primeiro grau). Era também só o que a cidade tinha a oferecer naquela época em se tratando de colégio. Não tinha eu a mínima experiência para qualquer tipo de trabalho; porém, queria e precisava muito de um emprego. Um detalhe curioso é que trabalho aqui não era o assunto preferido entre os jovens. Não davam a mínima importância a essa necessidade; viviam despreocupados, e a maioria dependia dos pais. Além do mais, o campo de trabalho não era nada animador; resumia-se apenas à prefeitura, que já tinha seu quadro de funcionários formado por nove pessoas, incluindo o prefeito. Fato este 37
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que é bom ser lembrado, pois naquele tempo a título de economia para o órgão municipal os funcionários eram quase sempre obrigados a acumular duas, três ou mais funções, sendo remunerados apenas por uma delas. Hoje esta mesma prefeitura que, diga-se de passagem, cresceu um pouquinho mais tem o luxo de ostentar um quadro com mais de trezentos funcionários. É uma verdadeira empresa que só emprega com a finalidade de pagar promessas de campanha, como se voto fosse uma mercadoria a ser vendida. Hoje, ao contrário daquela época das funções acumuladas, são as funções que acumulam os funcionários... Bem, mas vamos ao que me diz respeito. Esperança de que surgissem novas vagas na prefeitura era pouca. Mas havia também um pequeno hospital, em cuja folha de pagamento constava apenas dois médicos, três enfermeiras práticas e uma formada. Bancos? Só havia uma pequena agência do Banco do Brasil, que mais parecia um postinho de vila. O comércio, a contar entre vendinhas, lojas de tecidos, padaria e uma farmácia, se resumia ao todo em sete portas abertas. Apelei então para o FÓRUM, onde também estavam os cartórios da cidade. Com um pouquinho de charme e boa vontade se conseguia uma vaga para serviços diversos, uma espécie de secretária, com um salário não muito diferente das instalações do mesmo, ou seja, simples e acanhado. Como eu também estava começando, não tinha experiência de nada, não podia exigir muita coisa. Peço, ando, procuro e, ali no FÓRUM, consigo meu primeiro emprego. No dia marcado, comecei feliz da vida, pois sentia que por ali viriam pelo menos boas amizades e experiência. Trabalhei, aprendi muitas coisas e depois de um tempo surgiu um convite. Aceitei, fui trabalhar no consultório particular de um dos médicos da cidade que, na época, eram dois apenas. Mais amizade, mais conhecimento, mais um pulinho; e de passo em passo consegui chegar ao hospital e ali também 38
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continuei como secretária particular, pois nunca tive vocação para a enfermagem. Lá conheci um terceiro médico, que posteriormente veio fazer parte da equipe; o mesmo, sendo um solteirão, percebe logo a minha presença e fica seriamente decidido a me namorar. Mas fiquei sabendo que era solteiro por convicção e que na cidade havia uma antiga namorada que suspirava por ele e ainda tinha a esperança de um dia levá-lo ao altar. Era coisa assim de namoro da época da faculdade. Sabendo também que ele era uma pessoa especial, uma pessoa calma, tranquila e envolvente, teria sempre uma pretendente a rondá-lo. Percebendo todo esse quadro, não tive coragem de partir para um namoro ou até algo mais sério com ele; sabia que teria sérios aborrecimentos no futuro. A bonita paixão do solteirão por uma moça bem mais jovem perdurou por um bom tempo. Mas não alimentei esperança para ele nem para mim. Com o passar dos dias e outros acontecimentos, essa paixão foi ficando para trás. Não magoei nem cedi aos seus apelos, e assim acabou algo que poderia ter sido um bonito romance de curta duração, pois ele veio a falecer algum tempo depois, vítima de um infarto fulminante.
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5 O parque
O tempo passou e, devido meu temperamen-
to irrequieto, eu mudei novamente de emprego. Consegui minha tão sonhada vaga na prefeitura. Pareceu-me muito boa aquela troca e não pensei duas vezes: lá seria mais seguro e promissor. Comecei como Secretária da Educação e Cultura do município. Nessa secretaria me foram designadas mais algumas funções relacionadas ao MOBRAL, o hoje extinto MOVIMENTO BRASILEIRO DE ALFABETIZAÇÃO. O MOBRAL tinha por meta, além da alfabetização para adultos, levar também a todas às prefeituras conveniadas uma série de outras atividades, tais como: promover a exposição e divulgação de trabalhos artesanais, apresentação de pequenas peças teatrais e de grupos folclóricos da região. Criava bibliotecas e pinacotecas, posto cultural, cursos profissionalizantes e balcão de empregos. Em resumo, se houvesse um espaço, um evento público na cidade, ali estaria presente o MOBRAL através de uma equipe de cinco pessoas da qual eu fazia parte, dando apoio e incentivo. Desnecessário seria falar do meu primeiro ou do meu segundo emprego. Mas é o caminho mais exato para chegar onde quero; pois foi numa dessas atividades relacionadas ao meu trabalho, durante uma apresentação de CAPOEIRA, no parque AGROPECUÁRIO DA CIDADE, a festa de PEÃO DE BOIADEIRO, a hoje já bem conhecida festa de rodeio, que teve início a mais bela e também a mais 41
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triste estória de minha vida. A mais doce e também a mais amarga de todas elas. E eu tinha apenas vinte e dois anos de idade. Foi ali nos festejos do parque da cidade que tudo começou. Esse evento durava em média sete dias e atraía muita gente da cidade e região. Como já dito, a equipe do MOBRAL marcava presença em tudo; e não fugindo a regra tinha sua hora marcada também naquela festa. Naquele dia levamos o grupo de capoeira para sua apresentação. Durante a apresentação do mesmo e por ser eu uma das organizadoras do evento, estava sempre atenta, cuidando para que tudo saísse bonito e agradasse a todos. Quase impossível, não? Como agradar a todos? Mesmo assim, como um radar, eu vigiava cada movimento. Foi então que, enquanto passava os olhos pela plateia, percebo ali parado um bonito rapaz. De pé estava, braços cruzados e olhava a cena com ar de reprovação e pouco caso; parecia até que a apresentação lhe era muito enfadonha. Notando sua indiferença, fiquei a observá-lo mais atentamente e, em certo momento, vi e ouvi quando ele se virou para alguém que estava também de pé ao seu lado e disse: – Vamos embora, já cansei de ver tanta bobagem e idiotice. Isto é coisa de gente desocupada. Parou um pouco e depois completou sua crítica mortal com mais algumas palavras ofensivas, demonstrando claramente seu preconceito contra pessoas humildes e de cor. Olhei para ele e não disfarcei que ouvi seu comentário grosseiro. Sob meu olhar de reprovação, eles saíram rumo ao pequeno bar do parque. Como eu estava numa posição que me era favorável e sem que eles percebessem, pude fazer um rápido Raio-X da figura deles. Melhor dizendo, da figura daquele que havia feito o comentário. Vi que era um belo rapaz. No momento, classifiquei-o para mim mesma como o homem mais bonito que eu já havia visto. 42
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Seu andar era firme e determinado, tinha uma boa estatura, não era exageradamente alto, mas seu porte físico era fácil de ser notado. Trajava bermuda e camiseta brancas, óculos escuros e sandálias modelo franciscano, na cor preta. O cabelo cor de mel era bem curto nas laterais, cortado quase à máquina zero, e a parte central era um pouco mais cheia e formava um discreto topete. A pele tinha um tom levemente bronzeado. Sua figura, sem sombra de dúvida, causava grande contraste com as demais pessoas ali presentes, que por força do evento exibiam um estilo bem diferente. Era a onda do country, calça jeans, camisa em tecido xadrez, bota cano alto, chapéu de abas largas, e até mesmo para os homens “a pedida” era um cabelo mais longo. Fiquei a observá-lo, não só pela diferença de estilo, mas também por sua atitude grosseira e arrogante. O desprezo com que tratou nossa apresentação, que com certeza não era a oitava maravilha do mundo, mas paciência! Foi demais sua grosseria. Fiquei mal, fiquei com ódio, me senti humilhada e prometi que passaria tudo aquilo a limpo. Foi aí que ouvi a voz do meu lado valente, daquele espírito de eterna procura. Procura de sempre descobrir algo novo, de viver coisas diferentes, de buscar o que não tinha, de desafiar o impossível, de desvendar os mistérios. Aquele espírito despertou dentro de mim como um relâmpago. Pronto! Comecei a imaginar coisas e de repente só ouvia o som do berimbau. Aquele som foi ficando cada vez mais distante. Fiquei ali parada e sem graça. SIM! Parada mesmo! Porque as palavras dele haviam me abatido, haviam me tirado todo o meu bom humor, me deixado com uma sensação de mal-estar e humilhação, a boca seca e amarga. Senti repentina raiva dele, sequer o conhecia, mas acharia um jeito de lhe dar uma lição. 43
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Era uma apresentação tão bonita. O galpão todo enfeitado. Tínhamos ensaiado bastante o grupo e o mesmo estava caracterizado e muito entusiasmado desempenhava bem o seu papel. Enfim, ali estava o que tínhamos de melhor; e aquele estranho, com poucas palavras, me desmontou, me abateu e me deixou sem graça. Naquele momento, dei mesmo muita importância ao fato, pois não estava acostumava a lidar com pessoas tão mal-educadas como a que eu acabara de conhecer. Mas só alguns anos depois foi que pude constatar que ele usava a boca, usava as palavras como arma mortal. Ele falava pouco, mas quando fazia com certeza era para afetar alguém. Descobri que além de ser de pouca conversa tinha um vocabulário sujo, vulgar e agressivo. Bem, mas naquele momento a atitude dele me causou tanto aborrecimento que mal percebi quando terminou a apresentação. Ouvi as palmas e os assovios como se não fossem ali perto de mim. Naquele dia, terminei meu trabalho sentindo um grande constrangimento e não a sensação do dever cumprido. Quando dei por encerrada minha participação no evento, e ainda muito pensativa, dirigi-me ao barzinho, pedi um refrigerante e sentei-me em uma mesa afastada. Ele ainda estava lá, tomando uma cerveja e conversando com seu companheiro. Num instante, percebo que me olhava insistentemente e também me peguei olhando para ele, como que atraída por uma força magnética. Encarei seu olhar por algumas frações de segundo, mas de repente desperto daquela espécie de torpor, levanto-me e saio andando apressadamente, fugindo do seu olhar. Ele não menos apressado levanta-se e me segue, alcançando-me em poucos segundos. – Boa-tarde! – Boa-tarde. – Respondi e apressei ainda mais o passo; mas ele continuou andando ao meu lado. – Quero pedir desculpas pelo meu comportamento. Vi que não gostou. Não sabia que era você a responsável pela apresentação do grupo de capoeira. 44
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– E sabendo faz alguma diferença? – perguntei em tom agressivo e emendei – Nem lhe conheço. – Faz sim. – Faz? Ou é só uma forma de puxar conversa? Você não me parece alguém que está preocupado em ser agradável ou gentil. – Não costumo inventar pretexto para abordar alguém, mas com você, sim, usei este assunto para me aproximar, embora não goste mesmo de CAPOEIRA, não tem muito a ver comigo. – Com certeza, você é bem arrogante e pretensioso. Como iria gostar de um esporte tão popular! – Não sou arrogante, apenas não é minha preferência. – E o que lhe faz pensar que a CAPOEIRA foi ali apresentada só para você? Só para lhe agradar? – Não penso assim, apenas me expressei mal, me desculpe. – Tudo bem. Não tenho nada contra nem a favor da CAPOEIRA, apenas faz parte do meu trabalho, organizar e apresentar essas atividades. Aliás, pensando melhor, acho mesmo que não lhe devo explicações. Francamente! Com licença. Não parei mais nem para ouvi-lo, deixei-o falando sozinho. Pronto! Dei-lhe o troco, estava me sentindo vingada; havia desbancado o arrogante de uma figa. Diz o ditado que “dois carneiros de chifres grandes não bebem água na mesma cuia”. Pude ver ali o real sentido daquele provérbio popular. É muito engraçada a cena dos carneiros; eles tentam de frente, de lado, mas aqueles enormes chifres os impedem de chegar a boca na água. O incidente me fez sentir uma antipatia instantânea por aquele desconhecido e ao mesmo tempo uma vontade enorme de fazer algo para ferir seu orgulho. Era uma sensação estranha, era algo forte que me tirou a concentração de tudo. Fui embora, não queria mais ficar no parque, mas a inquietação me acompanhou e se instalou de vez no meu peito. 45
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À noite, já em casa, ainda podia sentir seu perfume; era algo cítrico e silvestre. Tivemos poucos minutos de conversa, mas aquele ponto era uma lembrança marcante. Por muitos dias fiquei que só pensava nele. Queria vê-lo novamente para saber o que era aquilo que eu estava sentindo. Queria me vingar ou estaria apaixonada? Meu Deus! Não devo dar vazão a sonhos impossíveis, a fantasias malucas. Sou noiva e o que vou fazer com essas ideias estranhas.
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6 Do meu noivo eu noivo não morava aqui, morava noutra M cidade que fica a 320 km de distância daqui. Estava terminando a
faculdade, fazia Administração de Empresa e já segurava um emprego. Mesmo com tanta correria, ele sempre vinha me ver, era muito atencioso e sonhava com o dia de nosso casamento, que era seu assunto preferido, por incrível que pareça. Ele era “família” e o casamento, uma realidade em sua vida: falava disso sempre com muito entusiasmo. Eu por minha vez, sentia muita dúvida e tentava ganhar tempo, fugindo do assunto o quanto podia, pois embora já estivesse de compromisso marcado, não me caía muito bem a ideia de casar. Eu era ainda muito jovem e queria viver mais um pouco sem as obrigações de um casamento. Mas o que mais me doía era saber que não gostava dele o bastante para um compromisso tão sério. Não sentia por ele aquela paixão de gelar o sangue nas veias, aquela paixão que nos faz flutuar só pela simples lembrança da pessoa amada. Não tinha nada assim no nosso relacionamento. Sentia falta de viver um namoro com mais emoção, precisava experimentar algo mais forte, precisava viver uma paixão, viver realmente a força do amor. Nosso namoro era, para mim, um simples compromisso moral. Não havia paixão em meu peito; porém ia me casar mesmo as47
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sim. Ele era um bom rapaz, parecia-me próspero e me dizia de um bom futuro ao seu lado. E pensando nisso, tentava apagar da memória a lembrança do desconhecido do parque. Tentava não deixar a dúvida invadir de vez o meu coração, mas ela já estava lá e não queria mais sair.
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7 Retornando às dúvidas as, daquele momento de tanta dúvida que M me dividia até a alma, que perturbou todos os meus pensamentos, que me tirou a paz, até tudo começar, foi questão de poucos dias. Quando numa segunda-feira chego à prefeitura, entro na minha sala de trabalho e avisto dois envelopes sobre minha mesa. Um, pela caligrafia da sobrescrita, já dava para identificar o remetente. Era do meu noivo romântico e apaixonado. Vale a pena ressaltar aqui que, na época, não havia telefone na cidade, fato que nos permitia ou obrigava a escrever sempre. E assim, muitas vezes, surgiam belas cartas de amor. O segundo envelope, pensando eu se tratar de assunto relacionado ao trabalho, abro-o e dentro dele havia um pequeno bilhete que dizia: “Estive aqui para falar com você, como não te encontrei deixei este. Gostaria muito de te ver para conversarmos. Aguardo-te na pracinha do Jatobá às 19h.” Em baixo havia um nome como assinatura. Eu não sabia como se chamava a pessoa com a qual me confrontei lá no parque, mas imaginei que se tratava da mesma, pois quem mais se atreveria sabendo que eu era noiva? Mas, mesmo noiva, a simples lembrança dele fez o chão tremer sob meus pés. 49
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Taquicardia, ansiedade, emoção, raiva, calafrios, impaciência, dúvida foi tudo que senti ao ler o bilhete. Como eu não mais o havia visto, a lembrança dele estava ficando controlada, mas com o tal bilhete me veio tudo novamente. Fiquei dividida, terrivelmente dividida, irritada e sem perceber quase gritei. - Que estúpido! Pretensioso! - Falando sozinha colega? – Perguntou alguém que passava pelo corredor. A mesma não ouviu resposta, pois não a dei. Fiquei olhando para o envelope por um bom tempo e uma grande tentação me veio à cabeça. Coloquei-o de lado, tentei me concentrar no trabalho, mas foi impossível. Olhei para aquele bilhete novamente, peguei-o, rasguei-o em pedacinhos e o atirei fora. Tentei novamente esquecê-lo. Mas como esquecer, meu Deus? Ele era um mistério e eu queria desvendá-lo. Aquilo já estava se tornando uma obsessão para mim e não tinha mais como fugir dela. Eu queria e sufocava, e quanto mais sufocava mais queria. A lembrança dele me fazia sonhar, me fazia tremer. Sentia um frio na espinha e o sangue gelado nas veias. Meu Deus! Isto é paixão, estou apaixonada! É isto, apaixonada, só podia ser, pois nunca havia sentido sensação tão estranha. Pensei, pensei, mas lá não fui. Mais uma vez achei abusada a atitude dele. Que ideia, me mandar um bilhete assim? Que sabia ele da minha vida, para se comportar com tanta intimidade? Naquela noite, adormeci pedindo a Deus que chegasse logo o fim de semana, sexta-feira, pois era a quinzena que Marcos, meu noivo, viria me ver e com ele ao meu lado talvez me sentisse mais segura e a salvo das tentações pelas quais estava passando. Por aqueles dias que antecederam a vinda de Marcos, procu50
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rei ficar mais em casa, não sair. Saía só o estritamente necessário; tinha medo de um encontro casual com aquela pessoa. Sexta-feira chegou e lá pelas 18h retorno do trabalho. Estava radiante pela expectativa de rever Marcos. Pela primeira vez sentia uma vontade incontrolável que ele chegasse logo. Queria saber se ao seu lado conseguiria mesmo afastar do meu coração tanto dúvida, que era grande e sufocante. Chego a casa, fico pensativa e desanimada novamente. Mesmo assim vou me preparar para esperar Marcos que não tardaria a chegar. Tomo um demorado banho e após me secar passo minha colônia preferida. Era uma colônia à base de alfazema, simples e de grife não famosa, mas que causava um efeito muito agradável. Sei disto porque, além de gostar muito dela, eu era quase sempre interrogada a este respeito. Muitas das minhas amigas queriam saber que colônia eu usava, onde a comprava, se era nacional ou importada. Diziam: – Hum! Mas que perfume gostoso! Que delícia de perfume! Diz pra nós, qual é o nome dele? Diz, por favor! Outras nem disfarçavam a curiosidade, entravam em meu quarto e iam direto à penteadeira, revirando e abrindo os frascos que ali estivessem, cheiravam um a um e diziam: – Não é este. Este também não é. Mas qual será? Que droga! Pra que tanto segredo? Por que não conta logo? Eu me divertia muito, pois sabia que a tentativa delas era inútil e engraçada, porque mantinha os outros frascos bem à vista, de propósito, só para despistar as curiosas. Eu escondia e muito bem escondido o que elas queriam saber e jamais revelaria a ninguém, por mais amiga que fosse. Aquele perfume era minha marca registrada, sabia que fazia um grande sucesso e não queria dividir com ninguém. Era assim, coisa de mulher caprichosa, não queria que aquela particularidade tão minha se tornasse um artigo popular, algo 51
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banal, pois a questão do perfume certo para a pessoa certa é muito importante. E até hoje me mantenho fiel a ele, uso outros algumas vezes, mas trocá-lo definitivamente, não consigo. Só se ele sair de linha. Às vezes ele desaparecia do mercado, mas eu revirava meio mundo até encontrá-lo. Engraçado é que mal sabiam elas que se tratava de uma colônia simples, de pouco custo, e encontrada até nas farmácias. Era mesmo uma questão de química X pele e que, em particular, aquela mistura do alquimista me caía muito bem. Era uma fragrância fresca, seca, almiscarada e indefinida. Algo assim que deixava a gente com todos os sentidos em alerta, na tentativa de segui-la e descobrir a que ela nos remetia. Antes de entrar para o banho, já havia separado uma roupa bem bonita e deixado em cima da cama. Uma calça de veludo canelado na cor marrom chocolate, uma blusa de malha colante amarelo-creme e de manga longa. Sapato, bolsa e cinto eram de um tom marrom dourado. Depois do banho e da colônia, ponho todo o conjunto, me olho no espelho e gosto muito do que vejo. Fiz uma maquiagem bem leve e natural. Por último, escovadas no cabelo longo e sedoso. Que me desculpem a falta de modéstia, mas estava em frente a um espelho e contemplava ali uma figura muito bonita, da qual hoje sinto saudades. Sinto saudades não só pelo físico, que era perfeito, mas, sobretudo, por aquilo que eu conduzia no meu peito e que a vida levou embora. Da natureza recebi muito, pois, além da beleza física, Deus me deu charme, requinte e uma elegância natural. Sem querer nem perceber ditava moda, costumes e comportamentos. Mas sabia também que tudo aquilo era um simples presente de Deus e não era mérito meu. Era uma pessoa privilegiada. Sentia-me completa por dentro e por fora. Não me faltava nada. Só tinha mesmo aquela 52
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cisma de viver uma paixão. Do resto tinha muitos sonhos e motivos para ser feliz. Deixando de lado meu narcisismo, olho o relógio e vejo que já são mais de vinte horas. Ainda olhando o relógio, escuto o barulho de um carro. O barulho daquele motor era já meu velho conhecido e no momento esperado com muita ansiedade. Ao ouvir a campainha da porta, minha irmã caçula corre e vai abrir. Lá de dentro escuto quando ela fala: – Olá, Marcos! – Olá, olá, onde estão todos? – Saíram todos, só estou eu e Celeste, mas pelo visto agora vai ficar só eu. – Sempre mimada, não é, Laura? – Você que acha. Fico sempre sozinha, não vê? – Está bem, mas chama a Celeste pra mim, vai? – Celeste, é para você... É o Marcos. Até parece que ainda precisa avisar, pensei. Ela deu o aviso e depois saiu correndo para receber algumas amiguinhas que a chamavam para brincar na calçada. Entro na sala e lá estava ele. Veio ao meu encontro, abraçoume e beijou-me tão carinhosamente que, por um instante, senti mais remorsos pelos pensamentos que me atormentavam nos últimos dias. Ele me abraçou e em seguida afastou-se um pouco de mim e segurando-me pelas mãos, disse: – Que saudades, meu amor! Como foram longas estas duas semanas. – Hô... se foram! – Concordei, aconchegando-me de encontro ao seu peito. – Então, sentiu saudade minha, sentiu muita falta, querida? – Como senti Marcos, como senti... Não imagina você o quanto... Quando ele me apertou mais em seus braços fiquei tão sensibilizada que por pouco não desabo em prantos. 53
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– Isto é muito bom, porém lhe digo que perto está de terminar esta espera, esta saudade, esta distância que nos separa, meu amor. E, para concluir sua promessa, ele me entregou um pequeno pacote embrulhado para presente. Em seguida, puxou-me pela mão e sentamo-nos ali mesmo no sofá da sala. – Abra! Abri. Era um bonito porta-joias e dentro dele havia uma chave. Fiquei surpresa e assustada. Uma chave? – Esta chave é para trancar meu coração? – Brinquei, muito sem graça, pois já imaginava do que se tratava aquela chave. – É, quero trancar-me aqui dentro para sempre. – Falou ele, também em tom brincalhão, apontando o dedo para o meu coração e continuou. – Lembra aquela casa que fomos ver? A terceira delas, a que você mais gostou e ficou em aberto a negociação? – Lembro... – Pois é, ganhamos de presente do seu futuro sogro. Ele a comprou para nós. Presente de casamento. Podemos marcar a data, o que você acha? Meus futuros sogros eram mineiros de tradição, gozavam de uma boa situação financeira e faziam gosto pelo nosso casamento. Diante daquela surpresa inesperada, meu coração doeu muito forte e se encheu de mais dúvidas. Parece que foi pior a presença dele, me senti mais pressionada e sai dali voando em pensamento. E agora? Ele me pegou bem de jeito. Seu pai já se envolvera mais ainda, nos dando um presente tão significativo como aquele. Além do mais me fez lembrar o quanto seus familiares eram amáveis e atenciosos comigo. Aí meu Deus, como me sentia mal, mal só de pensar o que tinha pensando dias antes. Só de ter pensado em trair, me sentia horrível. Parece que estava traindo a ele, ao seu pai, aos seus familiares e aos meus também. Era um drama. – Ei! Ainda está aí? – Perguntou ele, estalando os dedos 54
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na minha frente como um mágico para despertar a pessoa hipnotizada. – Sim, estou... Só estava pensando um pouco. – E o que me diz de marcarmos a data do casamento para logo? – Ótimo. Podemos marcar, já é tempo, não? Embora você ainda não tenha terminado a Faculdade, dá-se um jeito. Vou trabalhar também. Não vamos pagar aluguel. Filhos, de início, também nem pensar. Então acho que já podemos mesmo começar a arrumar tudo para o casamento. Não tinha um pingo de convicção no que estava falando, mas falei até mesmo para me convencer e não pensar mais no que não devia. No calor da emoção fizemos os cálculos, as anotações e também decidimos pela data. Meus pais não sabiam da nossa decisão repentina, não estavam presentes no momento. Porém já tínhamos o enxoval pronto e certa confiança, pela data eles não discutiriam. Estava me deixando levar para ver como ia me sentir, dali pra frente. E, em clima de alegria, saímos para encontrar nossos amigos e comentar com eles sobre o casamento. Com meus pais falaríamos no dia seguinte.
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8 Comemorando com os amigos noite estava linda. Lua bonita, um clima frio A e agradável. Era maio, mês das noivas e, como tal, eu estava me sen-
tindo quando saímos de casa. Aqui nesta região o período que vai de maio a julho, faz um tempo maravilhoso. Clima adorável e romântico, principalmente para os enamorados, para os apaixonados. Era muito convidativo para passear e namorar pelas ruas e calçadas. Mas, no auge da discoteca, nossa cidade também já tinha a sua e que era o ponto de encontro da juventude, claro. Mas até mesmo os mais maduros iam lá de vez em quando para matar a curiosidade, queriam saber como era dançar na semiescuridão, só com aquele globo de luzes coloridas a jogar seus reflexos no salão, deixando os dançarinos com aspecto de fantoches. Na boate havia um espaço que antecedia a pista de dança: era a sala dos drinques. Quem não quisesse dançar logo que chegava se instalava ali mesmo para um bate-papo, namorar ou simplesmente apreciar uma bebida. Alguns sentavam às mesas, outros, nos banquinhos espalhados ao longo do comprido balcão de estilo “salão americano”. Marcos e eu entramos, mas ficamos na sala dos drinques; escolhemos uma mesa mais reservada, num cantinho tranquilo, pois queríamos nos situar melhor com a ideia da data do casamento e discutir mais algumas coisinhas. Porém, enquanto conversávamos, foram chegando outros 57
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casais de amigos e juntando mesas e mais mesas. Logo estava formada uma boa turma ao nosso redor. Marcos era assim de paz e amizade com todo mundo. Vivíamos rodeados de amigos. Em pouco tempo todos já sabiam da novidade e comentavam animadamente. Falamos para eles que havíamos marcado a data do casamento para o final de julho. A novidade esquentou o ambiente e já começaram a falar dos presentes e preparativos. – Vamos fazer a recepção na fazenda. A novilha para o churrasco é por conta do papai aqui. – Quem falava era o João Pedro, o fazendeiro da turma, e que não abria mão da bota de cano alto e do chapéu de abas largas, nem mesmo quando saía com a namorada. Era bonitão e fazia bem o papel de fazendeiro. – O fogão e a geladeira serão meus presentes. – Falava Cleber, o empresário e pretenso padrinho de casamento. A cama eu garanto. – Era o Antônio, filho do senhor Zé da Marcenaria, e que era admirado e elogiado pelo dom de entalhar belos desenhos na madeira, ou seja, era marceneiro e um fino entalhador. Os presentes foram surgindo a todo vapor e apareceu até quem ia dar a cerveja e boa parte da bebida. A Solange se propôs fazer o bolo dos noivos. Confiando na mãe, é claro, pois aquela que se propunha a dar tal presente não sabia sequer bater uma clara em neve, enquanto que a mãe era uma fada na cozinha, melhor falando, do forno e fogão. Não faltou nem mesmo a turma que iria enfeitar a igreja. Era uma empolgação geral. Uma falação só. Cada um dava sua opinião. No interior era assim. As pessoas viviam como em família. Todos participavam de tudo. Era uma união que dava gosto de se ver. Quem menos falava ali eram os noivos. Só os amigos faziam planos. Parecia que a festa era só deles. Iam resolvendo tudo. Uma graça. A confusão foi geral, mesmo assim arrisquei falar, e disse: 58
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– Com tantos presentes e apoio assim, acho que vamos antecipar a data, e... – Não terminei a frase, parei, parei como um rádio que é desligado bruscamente da tomada. Pronto, minha voz sumiu, perdeu o volume. Tudo girou em torno de mim. Muito sem jeito tentei voltar ao assunto no mesmo pique, mas não consegui. Foi impossível, todos perceberam meu repentino descontrole e voltaram a atenção para mim, o que me deixou ainda mais aflita. – Que foi? Não se sente bem, Celeste? – É, Diva, acho que é cansaço, não ando dormindo bem. – Falava, mas não conseguia sequer erguer a cabeça. – Vamos, te levo para casa. – Falou Marcos. – Não, não, isto já vai passar, preciso apenas de ar puro; aqui dentro está muito abafado, vamos sair um pouco. – Vamos. – disse Marcos. Abafado que nada! Foi a presença dele ali no mesmo recinto que me fez sair de órbita. Tinha até me esquecido dele por alguns dias e de repente ele reaparece ali bem na minha frente, quando eu estava tentando firmar minhas decisões. Foi demais para meu dividido coração. O pior é que, como por uma tentação encomendada, ele estava belo e a penumbra que envolvia o ambiente deixava-o ainda mais misterioso e distante. Estava irresistivelmente charmoso. Sentava-se numa posição muito sexy e convidativa para lhe ser roubado um beijo. Estava recostado ao balcão, assim meio que de pé, meio que sentado, num dos bancos. Uma perna dobrada para trás e a outra firmava o peso do corpo no chão, numa atitude assim como quem já estava de saída. Mas, pelo jeito, ele não ia sair, pois acabara de receber a cerveja que havia pedido, e a mesma foi aberta pelo garçom que gentilmente serviu um copo, não muito cheio, e depositou-o a sua frente sobre o balcão. 59
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Ele levou o copo à boca e saboreou a bebida gelada com prazer, depois acendeu um cigarro e tragou lentamente. Enquanto soltava a fumaça tragada, com aquele jeito de cow-boy forasteiro, nos filmes bang-bang, seu olhar estava fixo em mim e sequer procurava disfarçar. Por um momento, tentei encará-lo e dizer que eu estava bem e feliz; que me deixasse em paz, que não me atormentasse mais com sua presença; porém seu olhar era forte: não consegui dominá-lo, não consegui sustentar o meu. Era um olhar determinado, sem dúvidas. Parecia perfurarme o peito como uma lâmina fria e afiada. Atônita, não sabia o que fazer com as mãos, o quê falar, com quem falar, para onde olhar. Entrei em pânico total, ainda bem que todos acreditaram no meu mal-estar e na minha dificuldade para respirar. Marcos foi o primeiro a se levantar e a me convidar novamente, no que concordei sem discutir. – Vamos, Marcos, quero mesmo ir para casa. Desculpem mas não dá para ficar, outra hora conversaremos mais sobre a festa do casamento. Os amigos foram solidários e ficaram preocupados, mas tranquilizei-os dizendo que um bom descanso resolveria tudo. O difícil foi encontrar forças nas pernas e sair dali, pois para chegar até a porta teria que passar por ele, que permanecia sentado tranquilamente e recostado ao balcão, observando o circo pegar fogo. Levantei-me apoiada por Marcos e sem ousar levantar os olhos, passei tão perto dele que ainda pude sentir seu perfume e seu olhar a me queimar a face. Enfim, quando transpus a porta, saí a puxar Marcos pela mão, e apressei o passo o quanto pude até chegar ao carro. Entrei e sentei-me com as pernas bambas. Saímos e fomos para minha casa. 60
9 O almoço de comemoração aímos do campo minado e fui me refugiar no S ambiente seguro de minha família.
Marcos ainda queria ficar mais um pouco para o caso de eu não “melhorar” me levar a um médico. Ele ficou desapontado, pensando ter me causado muita emoção. Por isso se sentia culpado e não queria me deixar sozinha. Mesmo assim não o deixei ficar. A presença de Marcos estava me incomodando e não ajudando como havia eu pensado. Sentia-me ainda mais sufocada e sem liberdade para pensar e decidir que rumo dar à minha vida. A cena da boate me tirou o sono completamente. E a noite daquele sábado veio fazer parte da coleção de lembranças que eu já guardava dele. O domingo amanheceu bonito e alegre. Estava frio, porém o sol brilhava com raios quentes e dourados, mas eu estava muito triste, sentindo a cabeça arder como fogo. Não tinha vontade de sair de casa, não queria ver ninguém, queria ficar só para sonhar com aquele momento que ainda estava tão vivo na minha lembrança. Então, Marcos apareceu como havíamos combinado. Iríamos sair para um rápido passeio e depois retornaríamos para o almoço que mamãe preparava em clima de comemoração pela data do casamento. Marcos tinha pouco tempo naquele domingo para conversar com meus pais. À noite eu já havia adiantado o assunto com eles, deixando os maiores detalhes para quando Marcos chegasse pela manhã. 61
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Quando ele entrou e cumprimentou a todos, reparou no meu semblante cansado e mal dormido e foi logo perguntando: – E aí? Como está, meu anjo? Se sente melhor agora? É, parece que não. O que vejo não me agrada. Por Deus, Celeste, me diga o que está acontecendo com você, minha vida! Está realmente doente? – Não, não estou doente. Só tive uma noite péssima e mal dormida. Agora estou muito indisposta, por isso acho que vou dispensar seu convite para um passeio matinal. – Está bem. Se não se sente à vontade para sair, ficaremos em casa e aproveitaremos para ajudar “mamãe” neste almoço gostoso. Ando mesmo com muita saudade dela. Dizendo isso já se foi para abraçar e beijar mamãe, mexer nas panelas e dar opinião ou elogiar o que ela estava fazendo. Para ela era mesmo uma alegria quando ele estava por perto; não só ela, todos em casa gostavam muito daquela pessoa, amiga, alegre e carinhosa, que só sabia agradar e ser gentil. Era um beijo aqui, um abraço ali, um afago acolá e assim de beijo em beijo, de abraço em abraço, ele chegou até papai, que, muito concentrado, lia sua velha Bíblia, aconchegado numa poltrona ao pé de uma janela da sala de estar. Aproximou-se de papai, puxou um pufe e sentou-se apoiando os cotovelos sobre os joelhos. Inclinou-se em direção a ele para conversar e o assunto era a data do casamento. – Senhor Tancredo, sei que era nosso dever, meu e de Celeste, ter-lhe consultado antes a respeito da data do nosso casamento. Porém, ontem à noite, tomamos a liberdade de marcar o dia e de até já ter comentado o assunto entre amigos, mas quero pedir que não tome como uma falta de respeito. Neste momento, eu e mamãe nos juntamos a eles. Carinhosamente ele me convidou para sentar e, segurando minha mão, disse: – Estamos aqui para ouvir sua opinião. – Nada tomei como desrespeito – disse meu pai. – Sei que vocês têm maturidade o bastante para tanto, como também já haví62
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amos falado a respeito dias atrás, não foi? – É verdade. – E para quando marcaram? – Para final de julho, último sábado do mês. O senhor concorda? – Concordo sim, dá tempo para os proclamas e os preparativos? – Dá, sim, senhor. Ficamos na sala ainda um bom tempo. Eu e mamãe depois largamos os dois conversando e fomos para a cozinha dar os últimos retoques no almoço. Encarreguei-me de pôr a mesa e caprichei na arrumação, pois mamãe também tinha caprichado no cardápio. Ela havia preparado um delicioso frango ao molho pardo, costeletinhas de leitão assadas, farofa de feijão andu com torresmo, arroz branco, palmito de guariroba ao molho de açafrão e uma salada de folhas e legumes, temperada com azeite e suco de limão. Estava tudo bem simples e caseiro, mas o clima de uma família feliz. Uma mesa posta com respeito e uma prece a Deus era o toque especial daquela refeição. Sentado à cabeceira da mesa, meu pai fez o agradecimento. “Senhor nosso Deus, queremos te agradecer pelo pão que alimenta nosso corpo, queremos ainda senhor, te pedir que nunca deixe faltar em nossa mesa e que não esqueçamos jamais de alimentar também nosso espírito ouvindo a tua palavra, amém.”
– Amém. – respondemos em coro. Durante todo o tempo que permanecemos à mesa tentei, em vão, comer alguma coisa, mas não descia nada. Tinha um enorme nó que obstruía minha garganta. Minha vontade era que terminasse logo aquele almoço para me retirar sem despertar a atenção dos demais ali presentes. Mera ilusão era a minha pressa, pois mamãe percebeu tudo e começou as indagações. – Por que não come, Celeste? Você está sem apetite também? 63
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– Desde ontem, não me sinto bem, como já lhe falei mamãe. Mas é só uma indisposição, não me parece nada grave e também não quero ir ao médico. – fui logo prevenindo, pois sabia que na medicina não havia remédio para o que eu estava sentindo. – É o que veremos. – disse mamãe. Terminado o almoço, fomos todos para a sala. Cada um se instalou como achou melhor e mais confortável, pois o almoço nos deixou meio com preguiça e sonolentos. Uma compoteira com uma deliciosa compota de casca de laranja da terra foi colocada na mesinha de centro, acompanhada de tigelas e colheres de sobremesa. Todos se aproximaram e se serviram do doce. Olhei para ele, que me pareceu tão apetitoso. Servi-me de um pouquinho e mesmo sem vontade provei. Mas não achei graça nenhuma, pareceu-me até amargo; larguei a vasilha e me afastei discretamente. Não queria mais ouvir perguntas sobre minha falta de apetite; só queria pensar nele, naquele misterioso desconhecido. Na minha mente só tinha lugar para aquele olhar fulminante que me atormentava a cada instante. Ao me lembrar da cena da noite anterior, minhas mãos suavam e gelavam. E o pior é que tinha a nítida sensação de estar cometendo um crime hediondo. Diante daquele quadro de fidelidade familiar, não devia estar pensando como estava. Era um sofrimento ao qual eu não estava acostumada. Ao invés de estar alegre e comemorando, estava me sentindo num velório. Eu não queria ficar noiva, não queria mais casar, não queria pensar em data de nada. Só queria vê-lo, só queria pensar nele. O domingo se arrastou longo e sem graça, mas de certa forma me sentia amparada pela presença de Marcos. E sabia também que ele não ficaria por muito tempo, pois tinha que retornar às suas atividades e partiria na madrugada de segunda-feira. E, de fato, Marcos se foi, triste e preocupado com minha falta de interesse pelos fatos. Eu fiquei também triste e me sentindo culpada. 64
10 Novamente sem Marcos segunda-feira chegou, dia de trabalho e, A consequentemente, de me expor ao risco de um encontro acidental.
Aquilo me deixava aflita e com ideia fixa. Passou a segunda-feira, a terça, a quarta e nada aconteceu. Quinta-feira, já um pouco mais calma, eu estava esquecida do susto da boate. Esquecida até demais, pois o destino existe, só não sabemos como lidar com ele. Só não sabemos como nem quando ele resolve nos aplicar suas próprias leis. Como disse, na quinta-feira saio e vou ao banco para resolver assuntos de trabalho e também alguns de ordem pessoal. Chegando lá, no banco, fiquei olhando as filas, mas achei todas muito grandes. Então procuro a menor e estaciono nela. O fato de estar num lugar público me deixava impaciente e assustada, como quem deve algo à justiça. Fiquei torcendo para que chegasse logo a minha vez de ser atendida. Como ainda não se usava o sistema de fila única, decidíamos sempre pela fila menor, pensando ser a solução para quem tinha pressa. Mas, às vezes, o cliente que estava na frente tomava um tempo precioso, tempo de atender duas ou mais pessoas, porque levavam muitos assuntos para resolver ao mesmo tempo. Analisando isso, fiquei mais angustiada porque a fila não andava. E, para matar o tempo, comecei a contar, com os olhos, as pessoas à minha frente. 65
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Uma... duas... três... seis e sete pessoas ainda me antecediam até o caixa. Enquanto fazia a ridícula contagem, percebo que entra mais uma pessoa e ocupa um lugar na fila, logo atrás de mim. Por um momento, não olhei para trás. Que me importava? Era só mais um cliente que vinha tratar de assuntos com o banco. Continuei olhando para o caixa que, atrás daquela pequena parede de vidro, trabalhava tão lentamente como se tivesse o dia inteiro só para ele. Desviei a atenção do funcionário e baixei a vista para minha papelada. Fiquei assim meio que conferindo as anotações, alheia a tudo ao meio redor. De repente, uma coisa no ar me fez ligar todos os sentidos. Era um cheiro, um perfume... – Esse perfume me lembra algo! Algo ou alguém? Alguém! – exclamei interiormente. Lentamente me virei para trás e o que vi me fez sentir como se tivesse recebido uma descarga de 1000 watts. Rapidamente pensei: “Vou desmaiar, vou desabar aqui mesmo, com certeza”. Enquanto “decidia” se desmaiava ou não, comecei a ouvir a voz das pessoas como um zumbido distante. E, entre aquele burburinho, ouvi uma voz que me pareceu um pouco familiar. – Boa-tarde! Ouvi e vi aquilo mesmo ou era o pânico me pregando uma peça? Por que tinha ele de estar ali, Santo Deus? Fiquei meio abobalhada e antes de sair correndo porta afora, tentei ainda, num esforço sobre-humano, me controlar e não perder uma oportunidade daquelas, pois sabia que só no cinema coisas assim aconteciam. Reagi e olhei novamente para trás e ali pertinho de mim, a menos de um metro de distância, estava ele... Ele se portava numa atitude extremamente descontraída, na qual posso descrever assim: de pé, pernas levemente afastadas uma 66
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da outra, a mão direita descansava elegantemente num dos bolsos da calça da farda verde-oliva, a camisa de malha de algodão branca era bem colada ao corpo, deixando claras evidências de um tórax forte e bem definido. O chapéu que também fazia parte da indumentária estava jogado para trás e pairava a altura da nuca, preso ao pescoço por uma alça do mesmo tecido. Coturnos pretos e bem polidos. Barba bem-feita, mas que conservava no lugar uma marca azulada, sinal de que era bastante farta. Fui descendo meu tímido e ousado olhar e vi braços fortes e pelos dourados, mãos firmes, grandes e bonitas. E na mão esquerda segurava uma pasta preta, com jeito de que nela continha algo de muito valor. Fiquei pasma. Aquela figura era a virilidade personificada. E sem sequer olhar para cima, respondi, muito tardiamente, mas respondi: – Boa-tarde. Respondi, quase sem voz. Respirei fundo e saí dali e não mais voltei lá naquele dia. Foi uma atitude ridícula e infantil, mas não podia ficar. Mais de uma semana ainda faltava para Marcos retornar. Telefone ainda não existia. Se ao menos pudesse ouvir a voz dele, talvez suportasse melhor a espera sem me envolver com aqueles pensamentos traidores, pois aquele homem, com certeza, interferiria fatalmente na minha vida. E pensar que faltava apenas dois meses para o meu casamento. Que tortura.
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11 Minha decisão aconteceu na estrada unho chegou e o dia dos namorados se aproJ ximava. Eu havia combinado com Marcos que passaria este dia com
ele em Brasília, aproveitaria para ver a casa e mais alguma coisa que estivesse pendente. Embora viajar daqui para qualquer lugar que fosse, era um verdadeiro transtorno. Mesmo assim arrisquei combinar com ele, e também pensando: “Assim darei mais valor às tantas idas e vindas dele, no seu desconfortável FUSQUINHA.” Queria de repente valorizar cada gesto de Marcos para me firmar melhor nas ideias. Ônibus era coisa rara: esperava-se por um durante horas e horas; às vezes até mesmo dias se esperava por um ônibus. A “rodoviária” era apenas uma salinha improvisada que mal cabia o agente de passagens. Os passageiros se abrigavam em baixo de uma sofrida árvore, que teimava em resistir a tantas disputas. Ela servia para amarrar cavalos, bezerros, porcos, ovelhas, e tudo mais que devia ficar preso era atado a ela. Servia também para pendurar arreios e embornais de quem chegava a cavalo, sem falar que era a única sombra que tinha ali e onde se podia sentar, para esperar, descansar ou fazer um lanche. E ainda tinha as crianças e os adolescentes que nela subiam para brincar em seus galhos e até fazer bonito para as garotas que passavam retornando do colégio exibindo seu bonito uniforme e conduzindo braçadas de livros e cadernos, com aquele ar de quem já sabe tudo da vida. A parada em baixo daquela árvore era coisa obrigatória, pois além do mais era 69
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ali que se podiam colher muitas informações sobre quem chegava e quem saía da cidade. Estrada pavimentada só dali a 280 km. Até lá eram buracos e poeira mesmo. A nossa querida BR-020 não passava de um projeto mal rabiscado, razão pela qual o Exército se encontrava na região. Veio para fazer a pavimentação daquela estrada. Esta obra de pavimentação se estenderia por alguns anos, mas foi concluída e inaugurada durante governo do Presidente JOÃO FIGUEIREDO. Bem, mas enquanto me preparava para aquela aventura de viagem, tentava me envolver cada vez mais com meu trabalho, para fugir do que não queria pensar e achei nele uma boa fuga. Mas, como de costume, a cada bimestre do ano, nós, da Secretaria de Educação, fazíamos uma vistoria nas escolas municipais, principalmente nas da zona rural, que era onde estava concentrado o maior número delas. Íamos de fazenda em fazenda, e em cada escola verificávamos entre outras coisas: diário, boletim do aluno, rendimento escolar de cada um deles. Elaboração de planos de aula e provas. Verificava-se o estoque de material e a merenda escolar. Levava gás e lampião para as aulas noturnas do MOBRAL, que eram direcionadas para o adulto não alfabetizado. Muitas vezes até o pagamento do professor tinha eu que levar, quando por um motivo ou outro ele não podia comparecer até a secretaria para tal fim. Era um trabalho cansativo, porém gratificante. Através dele pude conhecer muito da realidade da vida humana. Da vida dos menos favorecidos, ou talvez dos mais favorecidos, pois a maioria não tinha vida confortável; mas qualidade de vida eles tinham, num mundo diferente, é claro, mas um mundo rico de paz e inocência. Naquela tamanha pureza do camponês, um dia aconteceu algo que me fez rir demais. Era que na programação da secretaria tinha o período de treinamento para o alfabetizador do MOBRAL. Uma tarefa bastante delicada, pois a maioria deles era de pessoas muito simples e 70
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de pouca escolaridade, o que pela minha ótica foi o grande erro do MOVIMENTO. Ofereciam um rico material didático e de apoio para a alfabetização, mas não tinha o principal elemento: um professor capacitado para explorar satisfatoriamente o conteúdo daqueles kits. Foram gastos rios de dinheiro, porém o salário oferecido ao alfabetizador era ridículo, desestimulando assim qualquer outro com melhor classificação, alguém que pudesse de fato aproveitar aquele belo material. Para tais treinamentos, vinha uma equipe de Brasília, munida de tudo que havia de moderno para a alfabetização, e durante os treinamentos, acontecia de tudo, tamanha era a dificuldade que tinha o ‘alfabetizador’ para assimilar o que lhe era ensinado. Lembro-me que certa ocasião, numa turma, havia um alfabetizador e este se chamava Gil. A aula do dia era sobre o sujeito da frase. Gil não conseguia entender patavina do tal sujeito. A monitora tentava se fazer entender de todo jeito, mas o Gil não conseguia acompanhar o raciocínio, e quando ela se viu sem recursos teve a brilhante ideia de usar GIL como o sujeito da oração. Escreveu então no quadro-negro a frase: “Gil comeu uma salada de frutas.” Explicou, explicou mais e mais, depois, confiante de que ele havia entendido, dirigiu-se ao mesmo e perguntou: – E agora Gil, conseguiu entender? – Agora, entendi sim, “fessora” – disse o Gil todo contente. – Então Gil, qual o sujeito da oração? – “É craro qui é eu, né fessora?” Todos caíram na gargalhada, para o desespero da professora. E ele, Gil, de boca aberta, não entendia porque estavam todos rindo e começou a rir também. Era com fatos assim que se convivia todos os dias. Era divertido e muito proveito se tirava disso. 71
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Bem, mas vamos voltar um pouco para sabermos por que falei das visitas bimestrais às escolas. Dias depois que sai correndo do banco, não tinha mais visto meu príncipe de farda verde. Porém, quando retornava de uma dessas visitas, ao sair de uma estrada vicinal e entrar na BR, andamos uns 15 km, quando o carro em que viajávamos deu um tranco lá não sei bem no quê, nos obrigando a parar na beira da estrada. O motorista desceu para tentar dar um jeito. Desci também e me afastei um pouco, indo procurar abrigo embaixo de uma árvore às margens da rodovia. Enquanto ali estava, passava alguns carros e algumas pessoas paravam e até ofereciam ajuda, as quais o motorista dispensava. – Não, obrigado, é coisa simples e já vou dar um jeito nisso! De longe, eu só observava e até estava gostando de ficar ali apreciando aquela calma, aquela paz das pastagens verdes que se estendiam para bem distante da estrada e onde os animais pastavam tranquilamente. Estava envolta numa imensa paz e meus pensamentos estavam bem longe dali. E, assim, meio distante, meio ali, vi que parava do lado oposto da pista, uma camioneta e que na porta da mesma estava escrito o logotipo do batalhão à qual ela pertencia. Mesmo de longe dava para ler, apesar da densa camada de poeira que a cobria. O condutor do veículo usava aquela farda verde, que todos já conheciam na cidade e região. Do lado do passageiro, desceu alguém e ordenou ao outro fardado que ajudasse o motorista do carro quebrado no que fosse necessário. Enquanto dava a ordem, arrumou o chapéu na cabeça, ajustando a alça do mesmo, por baixo do queixo, movimentando o nó como o de uma gravata, para a direita e para a esquerda. Depois se inclinou um pouco para o lado direito, levou a mão ao bolso, o qual ficava a altura do joelho e na lateral da calça. Retirou dali um 72
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maço de cigarros, acendeu um e levou o restante de volta para o mesmo lugar de onde os havia tirado. Depois, com passos largos e decididos, veio em minha direção. Pelo visto ele já havia me reconhecido e naquele momento eu o reconheci também, mesmo estando ele desalinhado e empoeirado. Sua farda não estava tão impecável como da última vez que o vira na agência do banco e pela quarta vez o destino colocou aquele homem na minha frente e de forma inesperada. Atônita, olhei para um lado e para o outro e não vi saída, o carro estava a uma distância de uns trinta metros e para alcançá-lo teria que cruzar com aquele fardado que vinha em minha direção. – Pronto, e agora? – pensei. Estava só e sem meios para fugir, sem parecer mais ridícula do que lá no banco. Mediante tal situação pensei: “Como estou só, vou tentar ser mais adulta e encarar esta, sem tremer as pernas.” Levantei, pois havia transformado um tronco velho ali esquecido num confortável assento. Ao me levantar senti-me um pouco zonza, vendo estrelinhas e ouvindo cigarras a cantar. Preparei-me então para recebê-lo e ouvi dele novamente as duas palavras que ouvira no último encontro. – Boa-tarde... – Boa-tarde. Respondi ao seu cumprimento, respirei fundo para oxigenar o cérebro e pensei: “Parece que nunca vamos passar de ‘boa-tarde’”, mas passamos. Como não saí correndo, ele se animou e puxou conversa: – Houve alguma coisa com “seu carro”? – Houve, quebrou uma coisa lá que não sei o que é. Também como estão essas estradas, assim não há carro que aguente; estão mesmo abandonadas. – Estavam. – retrucou veementemente. Deixamos escapar mais algumas abobrinhas sobre o tempo, o defeito do carro, o projeto do asfalto, etc. 73
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Era uma conversa sem nexo e sem sentido para o momento, pois sabíamos que não era nada daquilo que queríamos falar e esse fato estava me deixando mais embaraçada e a ele também, tamanha era sua inquietação. Mãos agitadas, um cigarro atrás do outro, uma gota de suor que aparecia sob o chapéu, que ele nem havia tirado, tudo aquilo denunciava uma grande tensão. De repente um silêncio, um olhar; um olhar tão profundo que fiquei gelada. Olho no olho, senti meu corpo paralisado e novamente não pude sustentar seu olhar. Baixei os olhos e ele também, numa atitude de fragilidade, o que não lhe caía muito bem, pelo seu porte físico avantajado e comportamento arrogante, mas que, naquele momento, deixava-o ainda mais atraente, pelo contraste da força física com o emocional que demonstrou. Meio encabulado, ele retornou a conversa usando o defeito do carro como um meio, e disse: – Para o problema do veículo, eles terão uma solução, mas e eu? O que faço com tudo que estou passando? Procuro e não te encontro, te escrevo e você não responde. Seu silêncio, sua indiferença estão me atormentando dia e noite, não tenho mais paz. Dê-me uma chance de ao menos te falar? Incrédula e muda, ouvia tudo e, por fim, respondi: – Por que você cismou comigo? Sou noiva, sabia? E não pretendo trair meu noivo. -É, vi que você tem alguém; pude vê-los outro dia na boate. Mas não me importo com isso, minha vida mudou radicalmente depois que te conheci; ou melhor, depois que te vi, pois praticamente não te conheço, só sei que quero te falar dos meus sentimentos por você, pois sei que estou apaixonado. – Não acredito nisso de paixão à primeira vista. – Eu também não acreditava, até o dia que te vi. Meus planos hoje nada mais são do que uma grande confusão, pois também sou noivo. Lá na minha terra tem alguém que usa uma aliança no dedo 74
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da mão direita, esperando por mim. Só que agora tudo isso perdeu o sentido. Enquanto ele dizia aquilo, olhei e vi que realmente usava uma aliança na mão direita. Ele, por sua vez, estava com o olhar voltado para a minha, que também ostentava uma bonita aliança de noivado, pois, na ocasião da compra da mesma, Marcos fizera questão de comprar uma que estivesse à altura de nossos planos de uma união próspera e bonita. Naquele momento, entendi que estava estabelecida uma batalha. Saber que ele também era noivo foi um choque para mim. De repente, já senti medo daquela rival desconhecida. Senti ciúmes e insegurança. Será que eu estaria à altura dessa competição? Será que ela contava, significava muito para ele? Seria bonita, forte, inteligente e de atitude? Saber que no seu coração tinha planos com outra mulher, mexeu comigo. Imediatamente imaginei como seria ele no casamento. Como seria ele voltando para casa depois de um dia de trabalho. Imaginei-o abraçando, beijando sua mulher e seus filhos ao seu redor a chamá-lo de papai. Como seriam seus fins de semana, numa roupa esporte e corpo relaxado, ajudando nas tarefas domésticas e com as crianças nos passeios dos domingos à tarde? Vislumbrei cenas nunca antes passadas pela minha cabeça. Não sei o que ele pensava naquele momento. Só sei que estávamos paralisados e ficamos assim por um bom tempo. Eu só pensava, ele só pensava. Olhei novamente para ele e vi que estava ainda mais embaraçado. Mesmo assim, ele perguntou: 75
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– E então, o que faço? Por favor, responda-me: Que faço dos meus sentimentos? Senti verdade naquela expressão e também uma grande ansiedade estampada em seu rosto. Por sorte, um discreto toque de buzina veio para me tirar daquele embaraço. Olhei em direção ao carro e o motorista acenou indicando que estava pronto para continuarmos a viagem. – Tenho que ir, até logo. Num gesto impensado e quase desesperado ele segurou minhas mãos e disse: – Por Deus, Celeste, preciso te ver e hoje. Não me leve à loucura, o que sinto é algo que não consigo controlar. Pouca coisa me importa agora se eu não tiver você. Acredite-me... Por um momento, ainda refleti e a imagem que tinha formado dele ficou um tanto diferente, não esperava aquele apelo. Seria ele aquela pessoa que eu estava idealizando? Seria ele aquele homem forte que transmite segurança a uma mulher? Seria? Também veio, em rebate ao meu pensamento, que a paixão, o amor deixa as pessoas mais vulneráveis, mais fragilizadas. Talvez seja esta a situação do momento, pois se ele soubesse o tamanho do fascínio que exercia sobre mim não teria implorado tanto. Mas ele não ficaria sabendo pelo menos ali, pois mesmo a muito custo consegui me manter mais equilibrada do que ele. Eu, talvez mais do que ninguém, sonhava com o momento de me atirar em seus braços, de senti-lo bem perto de mim, de tocar seu corpo. Só de imaginar seus lábios tocando os meus era de parar o coração. E por toda aquela loucura que vinha me atormentando, eu tinha medo, muito medo, medo até dos meus pensamentos. Só mesmo o respeito que tinha por Marcos é que me impedia 76
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de cometer todos os erros que andava pensando em cometer e ali mesmo, às margens daquela rodovia. Mas por quanto tempo ainda eu resistiria? Mais uma vez fomos interrompidos por aqueles que nos aguardava. – Está pronto, senhor. – disse o outro fardado, aproximandose mui discretamente e com esta mesma atitude retirou-se imediatamente, indo aguardá-lo sentado atrás do volante do veículo que conduzia. Ainda permanecemos parados por alguns segundos, pois era mágico o momento embaixo daquela árvore. Não queríamos nos separar, quebrar o encanto. Sabíamos que ao sair dali a realidade era outra. – E então, deixa-me te ver hoje? Longe de todos, onde possa te falar de mim e ouvir de você, por favor! Não resisti mais. Sabia que dali em diante não tinha mais como fugir do que estava sentindo por ele também e concordei. – Está bem, irei ao teu encontro, amanhã. Hoje não. Deixeme refletir melhor sobre isso. Espero-te a noite. Estarei sentada no segundo banco da Praça do Ipê. Só te peço que seja discreto ao se aproximar de mim. Está bem? Eu mesma não acreditava no que acabava de dizer. Só então me dirigi ao carro, entrei e tomamos novamente a estrada, enquanto ele permanecia parado do outro lado da rodovia. Durante o percurso de volta para a cidade, fiquei muito agitada, inquieta mesmo. Comecei a folhear as pastas que conduzia comigo. Largava as pastas, abria a bolsa, só para manter as mãos ocupadas. Por fim peguei o maço de cigarros e acendi um. Já fumava, sim, pouco, mas fumava, coisa que Marcos não suportava, não gostava. Apesar de que naquela época o cigarro era um hábito comum entre a maioria dos jovens, ele não fumava, mas também não me proibia. 77
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Não era fumante ativa, só o fazia em momentos críticos, como quando tinha algo muito importante para decidir, por exemplo. Fumei, não fumei, joguei fora o cigarro, nem sei o que fiz com ele. Cláudio, o motorista, que percebera tudo desde a cena embaixo da árvore, comentou: – Parece que está acontecendo alguma coisa muito perigosa, Celeste. Ele que, além de ser meu colega de trabalho, era também nosso amigo particular, meu e de Marcos. E por uma terrível coincidência tinha que ser ele meu primeiro confidente para um assunto tão delicado. Não tinha como esconder dele e nem mentir. Sendo ele também uma pessoa educada e discreta, confiei e contei tudo para ele. – É meu caro amigo Cláudio, estou sem saber o que faço de minha vida, melhor dizendo, do meu noivado. Como você viu, pintou outra pessoa que balançou totalmente meu coração. E o pior, sinto que é mesmo uma grande paixão. É algo muito forte, não é brincadeira, Como sei também que da parte dele não é menos intenso este sentimento. Sem contar que ele também é noivo. – Esta estória não vai acabar bem, Celeste. Já pensou na bela dor de cabeça que vai conseguir até resolver este drama? Marcos será capaz de cometer uma loucura. Desculpe-me, não quero ser intrometido, só fico preocupado por demais, pois gosto muito de vocês e acho que formam um belo casal. Não imagino ver os dois separados, pense bem, eu como amigo não gostaria de ver tudo isto acabar assim. – Nem me fale Cláudio, nem me fale. Tremo só de pensar no que estou vivendo, mas é tão grande o que estou sentindo. É diferente e muito bonito e não saberia mais viver sem isto. É como se de repente o mundo começasse a existir para mim na questão sentimental. Meu namoro e noivado com o Marcos sempre foi pelo lado lógico e racional, pelo menos de minha 78
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parte. Sei que nunca houve entre ele e eu o que está havendo agora. Você não faz idéia, Cláudio, como um sentimento desses transforma uma vida. Isto agora até me faz lembrar uma cena que vi certo dia, enquanto observava duas crianças que brincavam, ouvi algo engraçado, mas no momento não dei muita importância ao que uma delas disse, quando foi agredida pela a outra e xingada de “burrona”, durante a disputa por uma determinada boneca. Aquela que perdeu a boneca falou para a vencedora: – Sua feia, sua burrona, você é besta mesmo! A outra mesmo sendo agredida não perdia a linha. E segura de si levantou-se, colocou as mãos na cintura e respondeu com muita personalidade: – “Não sou burra nem feia! Sou muito lindinha, porque minha mãe me ama. Ouviu? Minha mãe me a m a!” – Agora entendo melhor ainda o que ela queria dizer, pois só mesmo quem tem a felicidade de viver o amor é que pode entender o valor desse sentimento para uma vida plena. – É? ... – Em muito poucos dias, Cláudio, pude ver um mundo tão bonito, tão alegre, tão cheio de sonhos. Um mundo que pensei não encontrar nunca. – É mesmo sério este caso? – É muito sério, Cláudio. Eu preciso viver esta paixão, este amor, este sonho. Se abrir mão desta experiência não conseguirei mais tocar minha vida de forma satisfatória... Vai ficar um vazio. Procurei mudar o rumo da conversa e ele percebeu meu embaraço e não insistiu no assunto. Fizemos o restante do percurso em silêncio. Já era final do expediente quando entrei na Prefeitura só para guardar o material. Na segunda-feira colocaria tudo em ordem Ao colocar o material em cima da mesa vi que havia um telegrama sobre a mesma; peguei-o e abri: estava escrito: 79
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“Aguardo-te dia doze como havíamos combinado vg beijos e pt final” Aquele telegrama me deixou com um nó na garganta, obstruiu minha respiração. Como poderia eu não gostar de alguém assim? Pois mesmo com tantos afazeres, ele conseguia sempre se fazer presente? Tinha muito cuidado em não deixar se apagar a pequena chama do nosso amor. Ele era atento e percebia que meus sentimentos com relação a ele eram muito pouco para o que pretendíamos. Mesmo percebendo ele fazia tudo para acrescentar, para somar. Coloquei o telegrama na bolsa, retornei ao estacionamento e pedi ao Cláudio que me levasse para casa. Falei a ele do telegrama de Marcos. – Fico com medo da decepção que você possa causar ao Marcos, ele talvez fique muito abalado. Sabemos do quanto ele te ama e confia em você. Cláudio tinha toda razão, porém não lhe dei resposta. – Até segunda, Cláudio – despedi-me. – Até. Aquela decisão que tomei à beira da rodovia foi o marco inicial da destruição de uma vida... De uma vida que antes eu pensava ser sem emoção, mas que era bem o contrário. Foi ali que troquei a serenidade do amor pela paixão duvidosa. Foi ali que troquei o verdadeiro amor pela atração física. Foi ali que troquei a verdade de um homem bom e sensível, amável e companheiro, pela sedução de um conquistador implacável e sem sentimentos.
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12 O encontro m casa, mamãe preparava o jantar. E Entrei e só cumprimentei quem encontrei. Em seguida tran-
quei-me no quarto. Joguei-me na cama e me pus a sonhar, a imaginar como seria o encontro. Eu iria mesmo ou só estava me enganando? Enganando-me ou não, eu queria ficar sozinha com meus sonhos. Não queria ouvir ninguém. Não queria ouvir uma só palavra que pudesse atrapalhar minha decisão que já fora difícil por demais. Não queria que nada ofuscasse aquele brilho, aquele sonho dourado. Mas nem sempre tudo é como a gente quer, pois um leve toque na porta veio me tirar do meu doce sonho. – Sim? – respondi. – O jantar está na mesa e já é tarde. Vai jantar? – Podem jantar mamãe. Estou com muito trabalho para pôr em ordem e sem fome também. – Menti. Ela insistiu, mas eu a fiz desistir. Mais tarde, levantei-me, tomei um banho e voltei para a cama, ouvi música: Paul Mauriat, Roberto Carlos, Raul Seixas. Porém nada me fazia relaxar. A expectativa daquele encontro era muito grande e eu ansiava por ele febrilmente. Mas o telegrama de Marcos não me saía da cabeça. Meu peito estava amargurado e sufocado. Resolvi sair e andar um pouco ali mesmo, no meio da meninada que brincava nas calçadas, aproveitando a lua clara. Ali acontecia de tudo. 81
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Tinha futebol, pique esconde, cabra-cega, bolinha de gude, jogo da amarelinha. Era uma confusão generalizada; ninguém seguia regra de nada e tudo acabava em gritaria. Então cheguei perto daquele bando de crianças, conversei com elas, chutei bola, falei que elas estavam jogando “errado” e que precisavam de um técnico para treiná-las. Aproximei-me de outro grupo e belisquei a bochecha rosada do Gordinho. Foi aí que se animaram com a minha presença e começaram a fazer festa ao meu redor. E na maior gritaria veio um deles e me convidou para fazer parte do seu time de futebol. – Prometo que outro dia voltarei para ouvir a proposta do “clube”. Se for boa, eu aceito e fico. – Brinquei. – Não, joga hoje, vai? – Insistiram. – Não, hoje eu não vou jogar, estou muito triste, quando deveria estar alegre e muito alegre. Ficaram preocupados e queriam saber por que eu estava triste. Aproximaram-se mais de mim e fizeram um círculo ao meu redor, numa atitude carinhosa. Todos queriam ajudar a afastar de mim a tristeza. – Que foi, Celeste, está triste com o Marcos? – Não, mas é por causa de Marcos que estou triste, Paulinho. – Não liga, não; isso vai passar, quando vocês forem tomar sorvete... Ri muito da previsão otimista do Gordinho, que só pensava em comer. Para ele uma boa porção de sorvete resolveria qualquer tristeza. Andei mais um pouco, perambulei entre as crianças que, alheias a tudo, só brincavam e faziam barulho. Como elas eram felizes. Voltei para casa, queria chorar. De repente me senti tão só, tão infeliz, que pensei: “Por que a gente cresce? Só para ter tantos conflitos? As crianças brincam tão felizes, enquanto que eu não sei o que faço de minha vida. Por que a vida não nos deixa ser uma eterna criança?” 82
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Enfiei-me novamente no quarto, desta vez embaixo das cobertas e tentei dormir. Mas lá pelas quatro ainda estava acordada. Porém a noite não parou só porque eu não dormi e o sábado chegou. E sábado me lembrava Marcos... Bem cedo já me arrumava para esperá-lo e passarmos o dia juntos. Mas aquele sábado tinha outro sabor, um sabor de aventura, de medo, de expectativa e, por que não dizer, de pecado? Levantei-me tarde, não queria sair da cama, mas saí. Fui pra cozinha, sentei-me à mesa para tomar pelo menos uma xícara de café. Estava zonza de fome, de sono e sem apetite. Enquanto saboreava o café, meu olhar fugia da xícara para uma distância perdida. Mamãe sempre atenta a tudo, me perguntou: – O que está acontecendo, Celeste. Faz dias que você anda meio desligada das coisas! – Nada, mamãe, nada! Nada? Que ironia, quase gritei: está acontecendo tudo no meu coração, mamãe! Um terremoto, um maremoto, um dilúvio, uma tempestade, um furacão. Todos os fenômenos da natureza estão acontecendo dentro do meu peito. Mas não falei nada, fiquei calada. Logo depois alguém bateu palmas à porta, minha irmã atendeu: – Sim? – É aqui que mora Celeste? – Sim. Vou chamá-la. O carro da tarde anterior e o motorista eram os mesmos e estavam estacionados em frente à minha casa. Quando me viu chegar à porta, o motorista desceu, aproximou-se de mim, entregou-me um envelope e disse: – Tenho ordens para aguardar a resposta. – Com licença. – Pedi e me afastei um pouco para ler o conteúdo do envelope, onde estava escrito: 83
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“Desculpe-me enviar este, é que gostaria de saber se ainda está de pé o nosso compromisso para hoje à noite. Caso não queira escrever, basta dizer “sim” ou “não” ao portador”. No bilhete não tinha assinatura, não precisava. Fiz um sinal ao rapaz, que se aproximou. – Diga-lhe que sim. Às 20h, no local combinado. Reverente e cortês, como é a maioria dos militares, desde o menos ao mais graduado, este também não fugia à regra. Com a cabeça ele fez um gesto afirmativo e saiu rapidamente. Pronto, mais uma vez eu disse sim, quando poderia ter dito não. Daquela hora em diante o dia se tornou mais longo. Procurei preenchê-lo de mil maneiras. Fui ao salão, arrumei unha e cabelo. Voltei para casa, apliquei uma máscara relaxante para o rosto. Ouvia música, entrava e saía, não encontrava lugar dentro de casa. E novamente mamãe deu o sinal: – O que queria o moço do carro hoje cedo? – Trouxe para mim um recado de uma professora que mora perto da rodovia. Ela só me olhou e no seu olhar pude ler “Pobre criança, mente tão mal e ainda pensa que eu acredito”. Senti o peso do seu olhar e, meio que saindo pela retaguarda, perguntei: – Mãe, onde está Mateus? Mateus era meu irmão caçula e que na época tinha 16 anos de idade. – Foi à quadra, jogar bola! – Preciso falar com ele. – Quando aparecer, avisarei. – Está bem Mal anoiteceu, já corri para o armário de roupas e comecei a escolher. Tinha a mania de ser extremamente exigente com o que 84
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vestia, ainda mais numa ocasião tão especial como aquela. Olhava uma por uma, mas nada me transmitia segurança para um momento tão importante como o que me aguardava. Precisava de algo belo e discreto. – O que vou vestir hoje, meu Deus? – ficava a me perguntar. Olhava todas as roupas e nada me inspirava segurança. Uma marcava demais a silhueta, a outra muita clássica e apagada, a terceira esporte e sem graça. – Ai, que dúvida. Se ao menos pudesse contar com a ajuda de uma amiga, de uma irmã! Mas como contar ou pedir ajuda sem falar da magnitude e da importância daquela escolha? Por fim optei por um conjunto de fuseau, muito em evidência naquela década. A calça preta e justa, afunilada até o tornozelo, formava par com uma túnica longa num tom verde lodo com detalhes dourado ouro velho. Completei com um sapato de salto quadrado e não muito alto. Como acessórios usaria somente um par de brincos de pedras verde escuro. Montei na cama este conjunto, como se ela fosse o manequim. Era outro hábito que tinha; sempre arrumava a roupa sobre a cama, antes de vesti-la. Usava este recurso para ver melhor o que era certo ou errado. E, por assim ser, fiquei satisfeita. Achei perfeito. Além do mais, a noite estava fria e agradável. Enquanto decidia se fazia uma maquiagem, se usaria somente um batom, meu irmão bateu à porta, perguntando: – Posso entrar? – Se já tomou banho, pode sim. – Brinquei com ele. – Já tomei, sim, estou bem cheirosinho. Ao dizer isso, foi logo entrando e junto com ele uma onda de cheiro muito forte invadiu meu quarto de maneira insuportável. 85
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Fiquei furiosa, pois ele sabia que eu não suportava quando ele fazia aquilo. – Háááá! Seu gambazinho de uma figa, você é mesmo bem engraçadinho. Vai saindo do meu quarto! S A Í N D O! – gritei. Saí correndo de perto dele e ele correndo atrás de mim, tentando me abraçar para me provocar mais ainda com aquele cheiro horrível. Era bem do costume dele fazer gracinha comigo, para me ver furiosa. – P A R A! – berrei com ele novamente. – Está bem. Queria falar comigo? – disse ele parando de correr e já de pé no umbral da porta. – Sim. Quero que saia comigo hoje à noite, pode? – Depende, não posso deixar minha garota esperando muito tempo. Você sabe como é a concorrência, não? E aonde vai que precisa de escolta? – Segredo. Depois eu falo. Você vai? – Está bem. O que não faço por minha irmã querida? Ele concordou sem mais perguntas, acreditando se tratar de assunto relacionado ao trabalho. Sempre que tinha alguma reunião fora do horário do trabalho, era ele meu guardacostas. Marcos não gostava que eu saísse sozinha à noite. Acreditando em algo inocente, saiu para tomar seu banho e eu para o meu. Ao sair do banho e antes de me secar completamente, passei aquela colônia preferida, depois de alguns minutos maquiei-me, vesti-me e soltei os cabelos. Antes, no salão, os havia prendido com bobs, deixando-os jeitosos, sedosos e com volume. Reajustei o cinto da túnica, e tudo ficou na mais perfeita ordem. Meu irmão entrou no quarto, já banhado e bem vestido; desta vez estava com um cheirinho mais agradável. Ao me ver, foi logo dando seu voto de aprovação: – Hum! Como você está bonita, mana! O cunhado está aí hoje? 86
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idéia...
– É claro que não, seu bobo. Se estivesse pra que te levaria? – Então, pra que tudo isso? – Tudo isso o quê? – Esta arrumação toda, se não é para seu noivo? – E só posso me arrumar bem, se for para o meu noivo? Que
– É. Não permitirei, se um dia eu tiver uma noiva, que ela saia assim, quando não for comigo. Chama muito a atenção. – Ainda bem que não sou sua noiva. – É. Ainda bem. – Larga de ser machista e vamos? – Sei não... Sei não. – Disse ele como se fosse um idoso muito experiente. Saímos a pé. Não tínhamos carro, mas, sendo a cidade muito pequena, nada era longe. Seguimos conversando e, ao chegar perto da pracinha, disse para ele: – Agora pode deixar que eu vou só. Vá à sua paquera, sim! Lá pelas 21h30, espere-me no barzinho CARRO DE BOI, que te encontrarei lá. Está bem? – OK. Mas tem certeza que vai sozinha? – Vou. Já disse, é ali pertinho. Apontei para um rumo qualquer. Ele ainda ficou indeciso ao se afastar. Era muito ciumento: por ele e pelo cunhado, que estimava tanto, andou alguns passos e parou olhando para trás, mas eu insisti: – Vai! Não se preocupe, já disse. – Olha lá, hein? Não devia andar sozinha por estas bandas e principalmente à noite, pode sair comentários e Marcos não vai gostar. – Ora, vá! Por fim, eu segui para um lado e ele para o outro, mas saiu resmungando e inconformado por me deixar sozinha. Se ele soubesse onde eu estava indo... 87
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Andei um pouco mais e fiquei meio desapontada quando percebi que havia pouca iluminação na pracinha. Em destaque só a claridade natural da lua. Aquele era um lugar nada apropriado para uma moça noiva e desacompanhada. Alguns casais, espalhados ao longo da calçada, conversavam baixinho, numa atitude de cooperação para que todos tivessem espaço e privacidade. O banquinho, no qual havíamos combinado, por sorte estava desocupado. Sentei-me, tensa como uma corda de viola. Estava com medo e sentia a garganta seca. Por momentos tive vontade de sair dali correndo antes de fazer o que estava previsto. Mas fiquei. Seria deselegante fumar? E o cheiro do cigarro? Ele também fumava, mesmo assim achei inconveniente. Não fumei e um tanto desolada fiquei a pensar: Fui a primeira a chegar. Ele não virá, só estava me testando. Engano meu ele já estava lá e eu não havia percebido. Encontrava-se na outra extremidade da praça e, quando me avistou, veio se aproximando como que por acaso. Quando o vi, meu coração quase parou e depois começou a bater num rítmo desabalado. A claridade da lua refletia sobre ele, deixando-o mais bonito e misterioso. Trajava uma calça Lee, camisa também esporte com listras finas e clarinhas, no tom baby blue. Foi se aproximando de mim devagar e despreocupadamente. Um agradável cheiro de colônia chegou até mim, antes mesmo que ele. E agora meu Deus, o que faço? Arrependi-me de ter ido; porém era quase tarde para desistir. “Agora que se meteu a independente, Celeste, aguenta”, pensei com meus botões. O que poderia acontecer dali em diante? 88
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Não tive mais tempo para responder a mim mesma, pois ele já estava ao meu lado. – Olá... Levantei-me e cumprimentei-o também. Depois sentamo-nos, um de cada lado do banco, que não tinha encosto. Ficamos frente a frente, assim como quando se senta numa conversadeira. Ele de frente para o norte e eu de frente para o sul, digamos assim. Estávamos tímidos e indecisos. Eu que era muito faladeira e extrovertida, estava muda como uma estátua. Ele não estava menos encabulado, mas foi quem primeiro emitiu um gesto e um som. Segurou minhas mãos e quebrou o silêncio. – Celeste, parece um sonho, como esperei, como planejei este encontro, e agora que estamos aqui não sei nem como te dizer o que gostaria... – Não foi só você. Eu também esperei muito por isto. – Com estas palavras, você me diz que tenho chance? – Chance de quê? – Ora, Celeste, não sabe que estou perdidamente apaixonado por você? Por que brinca assim? – Não estou brincando, só não sei o que dizer, falei por falar. – Não diga nada agora, só me permita que lhe dê um beijo. Beijar?! Como ele fora direto. Combinamos um encontro para conversarmos, não para beijar. Imagina beijar outra pessoa? Beijaria somente Marcos. Mas aquela palavra ficou se repetindo na minha mente como o eco se repete na montanha. Beijar, beijar, aquilo continuava como um sino a badalar e cada badalada produzia um efeito mágico sobre mim. Beijar, ser tocada por ele? Era um sonho, eu não teria coragem de tornar realidade aquele sonho. 89
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Mas não conseguia dizer sim, como também não dizia não. E ainda segurando minha mão, que por sinal estava gelada, aproximou-se mais um pouco de mim, preenchendo o pequeno espaço que havia entre nós dois. Muito suavemente tocou meu braço, depois meu rosto e segurando por baixo do queixo parou e olhando bem nos meus olhos perguntou: – Posso? Do rosto, levou sua mão pela minha nuca, foi subindo por baixo do cabelo, numa suave carícia. Senti sua respiração muito próxima de mim. Então fechei os olhos como que hipnotizada, dali em diante não vi mais nada e palavras são poucas para descrever o que senti. Seu hálito era fresco e agradável. Seu toque de mão tinha uma energia especial. Ainda senti quando sua mão deslizava de minha nuca para levantar meu rosto, segurando-o firme. Fiquei eletrizada, todo meu corpo ficou como que anestesiado. Tudo aquilo era inédito para mim e o beijo que jamais havia experimentado antes aconteceu. Com ele me senti transportada para o mais belo jardim da Suíça. Faltava-me ar para respirar; estava ofegante e assustada. Quando por um segundo recobrei os sentidos, fiquei chocada. Imediatamente me lembrei de Marcos, ali no meio daquela traição e, com o susto, acordei daquele sonho. Um tanto encabulada, pela minha entrega tão espontânea, reagi, tentando pôr um freio nas minhas emoções. Afastei-me um pouco e, ao tomar esta pequena distância dele, pude olhá-lo de frente, enquanto tentava falar alguma coisa para me justificar, mas não conseguia dizer nada. Só olhava para ele. Então percebi que os três primeiros botões de sua camisa estavam desabotoados, deixando à mostra parte de seu peito bonito e bem definido. 90
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Levantei os olhos e vi no seu rosto uma expressão tão bonita. Expressão de grandeza, de nobreza. Expressão de um deus forte e sereno. Calado ele permanecia. Parecia que analisava minha reação ao seu beijo. E, convicto do seu efeito positivo, puxou-me novamente para junto de si e veio o segundo, o terceiro, o quarto beijo. Por quanto tempo permanecemos assim, não sei. Foi um envolvimento tão forte que, quando me dei conta, minha mão estava pousada em seu peito, atitude que ele aproveitou e mui carinhosamente colocou a sua mão sobre a minha, firmando-a de encontro ao seu corpo. E com a outra me abraçou e inclinou-se para recostar sua cabeça à minha. Assim permanecemos por mais um bom tempo, bem quietos, com medo de nos afastarmos e tudo acabar de repente, como havia começado, pois daquela hora em diante não dava para prever o que poderia acontecer. Como reagiriam as outras pessoas que seriam envolvidas naquela trama? Era tudo tão indefinido. Não podíamos contar com nenhuma certeza. Algumas pessoas passavam e olhavam insistentemente, talvez por me reconhecerem e incrédulas não entendiam o que estava acontecendo. Fiquei preocupada e ele também. Não pretendia me expor assim. Então disse: – Não podemos permanecer aqui, estamos chamando a atenção. – Concordo. Você precisa ir. Posso te acompanhar? – Imagina! Nem em sonho. Ainda é cedo, vou encontrar meu irmão e ele me levará para casa. Beijou-me demoradamente, aproveitando que os curiosos tinham se afastado um pouco. – Poderia morrer hoje, assim levaria comigo a certeza de ter sido o homem mais feliz. Não sabia que a felicidade existia assim. Como pude viver tanto tempo sem ela? Tive que viajar de tão lon91
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ge para vir encontrá-la aqui numa cidade completamente estranha. Esta sensação é a mais bela experiência que já vivi. Esta paz, este aconchego que sinto agora é algo indescritível. Agora preciso só saber como será. Por mim escreverei amanhã mesmo para minha noiva, terminando nosso compromisso. E você, quando fará isto? Pois sinto que também me quer e que não estou mais sozinho neste sonho. – É verdadeira sua afirmação, não tenho dúvidas de que também estou completamente envolvida neste laço. Só não sei como lidar com esta situação, não depende só de mim. – Não me desespere, Celeste; o que sinto por você é grandioso e esta sua indecisão está me deixando doente, me sufocando, pois nunca sei como você vai reagir. Se vai me aceitar, se vai me recusar. Por Deus, peço-te: não me deixes sair daqui, hoje, com esta incerteza; a não ser que gostes do teu noivo. – Pairava muitas dúvidas sobre isso, mas hoje não as tenho mais. Porém temo pelo que lhe possa acontecer depois desta decepção. – Eu te quero. Se me queres também, lutaremos, não vou parar para ver nem analisar as consequências. Sei que elas virão, mas não me importarei com nada. Nada me deterá. Eu também te quero muito, não posso mais negar isso. – Só isso que preciso saber. Minhas palavras foram seladas por um beijo ainda mais especial. Como especial também foi o susto que levei ao ouvir a voz do meu irmão. Ele, que nas suas andanças foi parar justamente na pracinha, deu de cara com a cena e menos enfurecido não podia ter ficado. Falou comigo quase aos gritos, coisa que não era do seu costume. Nunca gritava com ninguém e especialmente comigo, que era só carinho. – Celeste! O que está acontecendo? 92
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Levantei-me como que impulsionada por uma descarga elétrica e, aflita, não sabia o que dizer. – Desculpe-me, Mateus; te fiz esperar muito? Nada me respondeu. Então arrisquei ser mais formal e apresentar Eduardo para meu irmão. – Eduardo, este é Mateus. Mateus este é Eduardo – disse apresentando um ao outro. E completei dizendo: – Estávamos conversando, já estou de saída e... Não esperou para ouvir o restante da frase. Uma mão ficou suspensa no ar, sem resposta. Encarou-nos e não disfarçou sua decepção. Saiu feito uma flecha, indo posicionar-se mais adiante e de braços cruzados, ficou a me esperar, mas de costas viradas para nós. Eduardo ainda me deteve por uns segundos e perguntou: – E quanto a nós, como fica? Vais sair assim sem me dizer nada? – Veja, já começamos a dar vexames. Vamos esperar mais um pouco. Agora tenho que ir, preciso me explicar com meu irmão. Vamos pensar, talvez ainda possamos retroceder. Ainda possamos parar. – Não, não podemos mais. Isto seria impossível. Para que nos privarmos de ser felizes? Além do mais este encontro não vai ser mais segredo para ninguém. Amanhã, ou hoje mesmo, muitos estarão comentando. – O que vamos fazer então? – Nada. Foi o destino e não vou recuar. É minha felicidade que estou defendendo e a sua também. – Está bem, mas agora me deixa ir; mandarei notícias logo que achar conveniente. – Mas... – Até outro dia, Eduardo. Apressei-me e alcancei meu irmão. Ele estava com cara de poucos amigos. 93
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– Vamos, Mateus, conversaremos a caminho de casa. Seguimos calados e ele chutando pedrinhas pela a estrada afora; estava arrasado e decepcionado comigo. Olhei para ele e senti que o havia decepcionado de forma cruel. Senti-me ainda pior por saber que o havia envolvido naquilo, mesmo que de forma indireta. Que eu tinha omitido a ele um fato, uma coisa tão grave. Mantive-me calada e culpada, rezando para que ele mesmo começasse o sermão, o que não esperei muito. – Sabe o que está fazendo? Sabe o tamanho da sua irresponsabilidade e pouca vergonha? – Sei, sim, Mateus, mas não fiz por mal, só tento ser feliz. – Por acaso não és feliz? E pensas ser feliz magoando aos outros? – No que se refere ao amor de um homem e uma mulher, no que se refere a uma paixão, não, não sou feliz, tentei me enganar e conduzir as coisas assim mesmo, mas as dúvidas me dividiam muito. Agora não, agora sei que não era mesmo feliz e nem serei se tiver que abrir mão disso que estou vivendo hoje. Hoje posso marcar no caderno do meu subconsciente tudo o que me fazia falta no relacionamento com Marcos. – E o que faltava? – Sentia falta de sonhar, de planejar. Sentia falta de emoção. Da paixão. Da plenitude do amor. Deste sentimento que faz seu corpo estremecer, com a simples lembrança da pessoa amada. É incrível, meu irmão, mas descobri um mundo novo para mim... Mediante minha franqueza e serenidade com o assunto, ele foi cedendo e, aos poucos, voltando a ser meu velho companheiro e bom amigo, me facilitando assim a conversa. – Puxa! Mas assim de repente? Num simples encontro? – De repente, sim. Tudo acontece de repente, mas não tão de repente assim. Há dias isso vem acontecendo, porém só hoje tive coragem para pagar o preço e ver. Não queria que você soubesse 94
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dessa forma, ia contar hoje mesmo, mas já que aconteceu, paciência. Espero contar com sua descrição até poder conversar com os demais, sem sofrer grandes perdas, porque sei que elas virão. – Sou obrigado a concordar com você, o que se pode fazer, não é? Dizem que no coração a gente não manda. Mas prepare-se para enfrentar um furacão. Marcos não vai entender as coisas com esta facilidade que você está colocando. – Não é que esteja dando pouca importância ao fato, Mateus. Apenas é o que sinto e não vou deixar de viver este sonho. É muito importante para mim. Espero que um dia você sinta o mesmo que estou sentindo. Só assim verá que faz muito sentido o que estou lhe falando agora. É que o amor faz toda a diferença na nossa vida. – Não! Se for assim, para acabar com a vida dos outros, prefiro que não. As pessoas não merecem serem traídas e enganadas. Senti suas palavras como uma bofetada em meu rosto. Calei-me e uma lágrima teimava em rolar. Então, deixei-a cair e chorei em silêncio. Ele percebeu que eu estava chorando. Aproximou-se e, numa atitude de arrependimento e solidariedade, abraçou-me forte e filosofou. – Pobrezinha, está perdida no fantástico mundo do amor. – Não debocha tá? Estou sofrendo muito com isso. Apesar de estar feliz, não queria magoar nem causar transtorno a alguém que não merece. Por isso preciso que me ajude e não que me critique. – É, mana, pelo visto arrumou um bom problema. É mesmo como disse antes: não mandamos nos nossos sentimentos. Chegando a casa, mais uma vez pedi segredo para o assunto. Fui para o meu quarto, meu esconderijo. Ali me refugiei com medo do mundo. Bem mais tarde, mamãe me chamou. Fingi que estava dormindo; não queria enfrentar o seu olhar. Olhar de mãe que, pela experiência de vida, conhece muito bem os atalhos que os filhos tomam para fugir das explicações e cobranças. 95
13 O telegrama omingo, pela manhã, sentamo-nos à mesa D para o café. Estava longe dali e inerte em meus pensamentos; não
conseguia comer nada. Tomei uma xícara de café e belisquei uma fatia de bolo. Percebendo meu desalento, Mateus cochichou no meu ouvido: – É melhor comer e se ligar mais nas coisas, mamãe já está desconfiada. E, além do mais, está ficando magra como um esqueleto, já percebeu? Com a cabeça afirmei que sim e senti uma grande vontade de chorar. Ultimamente era assim que vivia, só com vontade de chorar. Talvez fosse meu sexto sentido me avisando. Com o comentário de meu irmão fiquei vermelha como um pimentão maduro. As faces me ardiam como fogo. Oh! Meu Deus, porque sentia tanto desconforto e vergonha? Saí da mesa quase correndo e fui me sentar num cantinho da sala. Como já tinha um confidente, este veio juntar-se a mim, mas não me tranquilizou em nada; muito pelo contrário, continuou me aconselhando contra. – É melhor desistir enquanto é tempo. Façamos de conta que não houve nada, que eu não vi nada. Por mim, guardo segredo para sempre, embora sabendo que você errou, mesmo assim eu guardo. – Ficou maluco, é? Como eu poderia fazer isso? Ia me sentir ainda mais suja, enganando Marcos assim. Não, prefiro enfrentar logo a verdade; foi isso que nossos pais nos ensinaram, não foi? 97
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– Bem, você que sabe. – Disse ele e saiu. Eu não sabia de nada, que ironia! Mas estava naquela situação mesmo sem saber onde ela ia terminar. Uma sensação de angústia e reprovação, de medo e rejeição foi tomando conta de mim, do meu interior. E eu pensava: “Será que o tempo se encarregará de resolver isso por mim?” Enquanto pensava, adormeci encolhida no canto da sala, pois estava cansada e mal dormida. Naquele mesmo domingo, à tarde, compareceu à minha porta o mensageiro da camionete. Atendi-o e recebi de suas mãos um bilhete que dizia:
“Celeste, Não dá para esperar nem mais um minuto sem te falar. Quero te dizer o quanto foi bonito este amanhecer: hoje o dia tem outra cor, outro sentido. Meus sonhos hoje são outros e preciso te dizer também do quanto te quero e saber de ti quando poderei te ver novamente.” Beijos do teu Eduardo. Por sorte mamãe não estava naquele momento, ela não aceitaria outra mentira. Entrei, peguei papel e caneta e escrevi:
Eduardo, Não seja imprudente, não me mande mais bilhetes. Mandarei notícias quando for possível. Não assinei, entreguei o envelope ao rapaz e entrei correndo, sentindo que a rua inteira estava olhando para mim. Os dias se passavam lentamente. Tudo parecia uma eternidade. Meu trabalho estava atrasado, não rendia, por mais que me esforçasse. Não queria pensar em nada, minha cabeça estava ocupa98
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da só em encontrar uma forma de sair daquele labirinto e por um ponto final no assunto “Marcos”. Sentia vergonha de estar enganando-o. Na quarta-feira acordei muito ansiosa e resolvi tomar uma atitude para fazer o assunto chegar logo até Marcos. Então passei nos correios e enviei um telegrama. Estava bastante constrangida, pois o telegrafista era o mesmo que tantos outros telegramas nossos, meus e de Marcos, já havia recebido e transmitido. Optei pelo telegrama porque a carta demoraria muito a chegar e não estava disposta a esperar tanto; queria iniciar logo a peleja e nada melhor que mandar um telegrama para adiantar o assunto. Então escrevi: Marcos vg não irei mais ao teu encontro como havíamos combinado vg nosso noivado acabou vg não haverá mais casamento pt Aguardo-te para conversarmos e pt final Celeste
Com o telegrama Marcos já ficaria de sobreaviso, não seria pego de surpresa. Com isso aliviaria um pouco o tamanho da minha culpa. Ao jovem falta realmente o senso do ridículo e da disciplina. Imaginem como é que alguém termina um compromisso de noivado assim? Quando saí dos correios, achando eu que tinha solucionado o problema com um simples telegrama, passei onde Eduardo morava e deixei um bilhete para ele, comunicando-lhe que o primeiro passo eu já havia dado, comunicando a Marcos a minha decisão, agora era só aguardar até sábado quando ele viria. Depois Eduardo me respondeu, também com um bilhete, dizendo que já havia feito o mesmo em relação a sua noiva, na segunda-feira, e que nem a aliança estava mais usando. Beijei o papel e guardei na gaveta como troféu. 99
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Não queria me encontrar com Eduardo, antes de uma decisão com Marcos. Mas mal podia me conter, sentia uma saudade enorme dos poucos minutos de contato que tivemos. Uma saudade que não conhecia dimensão. Uma saudade que doía e me inquietava. Era tanta saudade que tinha ímpetos de procurá-lo e me atirar em seus braços; pedir que me abraçasse forte e que não me deixasse desistir de ser feliz, mas ia me controlando, faltava pouco. Recebi resposta de Marcos dizendo saber que se tratava de uma brincadeira, que viria logo e que estava com saudades. Melhor que viesse mesmo, assim acabaria com aquela tortura, porque nada me impediria de viver aquele amor que eu queria viver.
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14 “O dia D” arcos chegou alegre e bem humorado. M Distribuiu beijos e abraços a todos. Pegou uma xícara de café
e sentou-se. Tentava disfarçar, mas estava retraído, impaciente e ansioso. Seu desconforto era visível. Eu também não estava menos incomodada. Pensava no que havia escrito no telegrama e agora na presença de Marcos, sentia vergonha por ter sido tão fria. Queria sair logo dali e bem rápido, antes que o assunto chegasse aos meus pais. Primeiro queria conversar a sós com Marcos. Cheguei perto dele e falei baixinho: – Vamos a algum lugar, onde possamos conversar mais à vontade? – Vamos, mas onde? Decidimos ir ao balneário, que fica nas proximidades da cidade e, que por certo, naquela hora da manhã não teria muito movimento. Fizemos o percurso de casa até o balneário num silêncio incômodo. Lá chegando, permanecemos dentro do carro, pois estava muito frio. E mais gelada estava eu. Não sabia como iniciar a conversa. Ele também, calado, só olhava a paisagem à sua frente. – Desculpe-me, incomoda se eu fumar? – Perguntei. 101
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– Não, fique à vontade. – Recebeu meu telegrama? Pergunta idiota, mas foi só o que me escapou no momento. – Que você acha? Embora tenha vindo até aqui achando que era só uma brincadeira. Mas, pelo clima que vejo agora, percebo que tem algo errado mesmo e que eu preferia nem ouvir, mas estou aqui para isto. – Marcos ... – Do que se trata, meu anjo? Que pensa estar fazendo? – Atalhou ele. Que raiva! Não queria que me tratasse assim. Não queria que fosse carinhoso e compreensível comigo. Queria que ele saísse no grito. Que falasse grosserias e bobagens, que fosse deselegante, assim ficaria mais fácil para mim. Assim teria pelo menos um pequeno motivo para justificar minha insensatez. Mas nada disso acontecia; ele continuava tenso, porém controlado e esperava pacientemente. Eu estava trêmula e quase sem voz, mas falei: – Marcos, conheci outra pessoa e me apaixonei por ela. Não posso mais continuar com nosso compromisso. Não posso mais me casar com você. Sinto muito, é isto que está acontecendo. Não conseguia sequer olhar para ele. Só vi que os nós de seus dedos estavam brancos quando esmurrou o volante do carro. Abriu a porta, saiu e foi recostar-se numa árvore. Parado ele ficou a pensar. Depois de algum tempo, reuni o pouco de coragem que ainda me restava, aproximei-me dele e fiquei em silêncio. Estava desolado, decepcionado. Seus sonhos desfeitos. Seus planos riscados. Seus projetos condenados. Toquei-lhe o braço e ele com ternura me abraçou. Havia lágrimas em seus olhos quando me falou. – Não posso acreditar que tudo acabou assim, minha que102
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rida. Onde foi que eu errei? Você deve estar equivocada com essa ideia de estar apaixonada. Vamos repensar? Este erro poderá ser esquecido. Vamos comigo para Minas Gerais, lá ficará com minha família e só retornaremos para cá, próximo ao casamento. Falta tão pouco e procurarei estar mais presente. Você tem estado muito só. É até compreensível que esteja em conflito. – Marcos... – tentei falar, mas ele não deixou. – Lá, você esquecerá este infeliz episódio. Concorda? Enquanto ele falava, estava a me segurar pelo braço e olhavame nos olhos com grande carinho e interrogação. Mas eu não cedia aos seus apelos, estava cega de paixão, atormentada por um sonho irreal e não queria nada que não fosse parecido com aquilo. – Não posso Marcos. Estaria enganando a nós dois. Tem tudo para não dar certo. Estou realmente inclinada a tomar esta decisão e, por favor, me perdoe e tente me entender. – Me falta capacidade para isso, Celeste. Por Deus, me entenda você! Quantos sonhos e planos desfeitos? Como vou encarar assim de repente, tudo sem você? Já enfrentamos tantas coisas juntos e agora como vai ser para mim? – Outras pessoas virão, Marcos. – Ora! Pare de bobagens, Celeste, não é assim tão simples. Esquecer não é possível... E, numa tentativa de me convencer, me abraçou mais forte e tentou me beijar, ao que reagi, bruscamente. – Não, Marcos. Não faça isto. – Então a fidelidade já conta para com essa outra pessoa? Já sou eu quem o está traindo? Como posso suportar isso? Está me rejeitando em nome desta paixão? Está me rejeitando por causa de um desconhecido? De um estranho. Isto me dói demais, Celeste. Neste momento ficou indignado e muito exaltado se afastou de mim. – Marcos! Vamos tentar manter a linha. 103
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Não manteve e temi por minha vida nos momentos seguintes, tamanha era sua fúria, seu descontrole. Ele perdeu a cabeça. Disse e fez coisas que não tinha costume de fazer, pois era fino e educado, mas naquele momento ficou fora de si. Fiquei com medo, porém mais aliviada, pois como disse antes, agora tinha “algo” para me justificar. Gostei, pois demonstrou também que sabia reagir se provocado fosse e eu não ficaria com a sensação de ter magoado alguém indefeso. Aos poucos, tentei acalmá-lo e consegui convencê-lo a me levar de volta para casa. Pela estrada ainda conversamos um pouco, e ele perguntou: – Conheço a figura? – Creio que não. Ele não é daqui. – Ainda bem que não o conheço, mas teria imenso prazer. Quem sabe um dia, não? Havia desdém e ameaça em suas palavras. Era compreensível. Chegando a casa convidei-o a entrar, ele recusou. – Não, obrigado. Depois tornaremos a falar. Creio que ainda não acabamos esta conversa. Precisamos esclarecer alguns pontos, mas agora não, está doendo demais. Sabia eu da sua intenção, que era a de me fazer desistir e deixar o dito por não dito. Mesmo sabendo disso, concordei em lhe ver mais uma vez, não queria magoá-lo tanto. Marcos não foi embora naquele dia. Permaneceu na cidade e deu vexame. Bebeu muito, coisa que sequer sabia fazer; era avesso a bebidas. Fiquei sabendo, depois, que, ao me deixar em casa naquele dia, ele encontrou meu irmão. O que foi um achado para Marcos, no estado em que estava, precisava de um ombro amigo. Meu irmão “tomou conta” dele durante todo o dia, porque viu que Marcos estava muito perturbado e não sabia o que estava 104
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fazendo, tamanha a bebedeira. Nesta confusão toda, meu irmão ficou sabendo que ele, Marcos, já sabia de tudo. Como era de se esperar, Marcos desabafou com ele, contou de sua decepção e humilhação. Mateus ficou no meio de um fogo cruzado. E depois disso ficaria contra ou a meu favor? Ficou mais para o contra. Ele, como homem, sentiu a dor do amigo e ex-futuro cunhado. Mas os laços de família, o sangue, às vezes falam mais alto depois, ele entenderia o meu lado. Eu só estava tentando ser feliz... E, neste vai e vem pelos bares da cidade, Marcos e Eduardo se encontraram. Mas não houve confronto, pois, por sorte, os dois não se conheciam. Mateus ajeitou para que continuassem assim, sem se conhecerem. Ele ficou igual a gato e rato, fugindo com Marcos, do local que por acaso o outro aparecia. Como os bares eram poucos, estavam quase sempre se encontrando. E de fuga em fuga eles passaram o dia. Mateus perdeu o dia a cuidar de Marcos. A noitinha, já muito cansado, arrastou Marcos para nossa casa, mas Marcos ficou plantado dentro do carro, em frente de casa. Meu irmão entrou e me disse muito aborrecido: – Marcos está aí fora. Está bêbado e insuportável. Quer falar com você, vai lá? – Não faz sentido, não é Mateus? Conversar com ele, bêbado como está... – Muita coisa não faz sentido, não é Celeste? Esta é só mais uma. Mamãe, que desconhecia a situação na íntegra, estranhou muito aquela “versão” de Marcos. Mesmo assim tentou arrumar as coisas com ele. Ficou impressionada com o estado de sua embriagês e ofereceu uma xícara de café fresco e amargo, porém ele recusou. Continuou dentro do carro, sem querer entrar e ali mesmo 105
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adormeceu. Mateus deitou-se no sofá da sala e deixou a porta aberta para ajeitar qualquer provável problema. Papai achou muito estranha toda àquela movimentação. Marcos a dormir na rua, em frente a nossa casa, com os vizinhos já a fazerem comentários. Mamãe já foi mais direta e atacou o assunto de frente. – Celeste, tem algo que a gente não está sabendo? – Sim, mamãe. Terminei o noivado com Marcos. Por isso, toda esta confusão. Ele não quer aceitar que terminemos. –falei claro e sem rodeios. – Meu Deus! Por que você fez isto? – Estou apaixonada por outra pessoa. – Ora! Não me venha com bobagens, Celeste. Apaixonada como? Você sequer saía de casa! A não ser para o trabalho. Como conheceu outra pessoa para virar assim sua cabeça? – Pois é mamãe, coisas do destino, foi bem no trabalho que conheci essa pessoa. – Destino ou falta de juízo? Como pensa em fazer isso, ainda mais com uma pessoa como Marcos? Tão boa e dedicada. Com tudo pronto para o casamento. Pensou no que você está fazendo? – Desculpe mamãe, mas não é o fim do mundo. – Para você, não, mas para ele, sim. Que vergonha os filhos nos fazem passar... – Eu também estou sofrendo muito com isto, mamãe. – Será? E eu aqui feito boba, não percebi nada, ou melhor, percebia sim, algo como aquela camioneta e seus recados das escolas, não? – Fui obrigada a mentir, mamãe. Não queria envolver mais ninguém nessa estória. Perdoa-me pelas mentiras, sei que não devia mentir. – Você sabia desta confusão toda, Tancredo? – perguntou ela ao meu pai. 106
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– Tanto quanto você. Fiquei sabendo disso agora. Mas para tudo há uma explicação, uma reparação dos erros que cometemos, não é minha filha? – disse meu pai. – Não, papai, parece que não haverá reparação; por mim isso é definitivo. Pelo jeito, a conversa ia tomar rumos que eu não queria. Com certeza viria a culpa, o sermão e tudo mais para me dividir e era isto que eu não queria no momento: ficar mais dividida, entre a responsabilidade ou seguir meu coração. Portanto, tive que falar de maneira firme e decidida. – Agora vamos mudar de assunto, conversaremos sobre isso noutra ocasião. – Isto não diz respeito só a você... – Diz respeito só a mim, sim. Desculpem, mas não quero falar disso agora. Lá fora Mateus tentava reanimar Marcos, que havia despertado e se dava conta do que estava fazendo. Muito encabulado, pediu desculpas e, ao sair, deixou recado com meu irmão para que, se possível, fosse encontrá-lo na pensão onde estava hospedado, já que não quis atendê-lo em minha casa. Que ele precisava retornar para sua cidade, mas antes queria ainda me falar e tentar entender minha decisão. Pedi ao meu irmão para dizer-lhe que não me esperasse, pois não iria ao seu encontro. Vi quando ele saiu, sem falar mais nada. Estava realmente ferido, transtornado. Senti muita pena dele, mas decidi que era melhor assim. Logo ele esqueceria. Fiquei sabendo depois, que ele partira naquele mesmo dia. Imaginei como teria sido a viagem para ele, como deveria estar se sentindo vazio, solitário e amargurado. Senti vontade de voltar atrás, para não fazê-lo sofrer tanto, pois havia, em mim, um sentimento por ele: não era uma loucura de 107
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amor, mas havia. No entanto, me segurei. Agora que começara não queria voltar à estaca zero. Foi muito difícil desarrumar, mas a bagunça estava feita, não ia dar uma de “Maria vai com as outras”. Ao pensar nisso, fui tomada por uma súbita sensação de alegria, alívio e liberdade. Estes sentimentos foram transformando-se em força e determinação. Pensar que, dali em diante, seria vida nova, que eu estaria partindo para o tão sonhado. Que poderia correr para Eduardo e, aconchegada em seus braços, ver minhas dúvidas serem dizimadas. Só algum tempo depois é que vim saber que bela liberdade eu encontraria. Em que bela armadilha eu fui cair. E como diz a letra de uma velha canção, “eu era feliz e não sabia”. Porém, naquele momento, tomada por uma enorme empolgação, lancei mão de papel e caneta e escrevi um bilhete. Coloquei-o num envelope e lacrei. Chamei meu “mensageiro” de plantão, que brincava jogando bola na rua e disse-lhe: – Leva este envelope para aquele rapaz que mora na... (escrevi o endereço da pensão que Eduardo morava). Está bem? – Sim. – Traga-me a resposta, certo? – Sim. – Quando você voltar te darei umas moedas. Mediante a promessa das moedas, ele pegou o envelope, saiu e voltou numa rapidez digna das olimpíadas. Quando voltou trazia consigo outro bilhete, onde Eduardo dizia ter recebido minha mensagem e muito feliz ficara. Pedia que eu fosse ao seu encontro, à noite, no mesmo lugar que havíamos nos encontrado da outra vez. Que estava perturbado de saudades e queria saber tudo detalhadamente. Se o garoto não voltasse, entenderia que eu tinha aceitado seu convite. 108
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O garoto não voltou. Mal podia esperar aquelas poucas horas que nos separava. Estava tonta, atordoada por tamanha agitação, mas iria, não esperaria nem mais um minuto. Decidida, me arrumei e parti rumo à “felicidade”. Antes, porém, recebi a reprovação geral da minha família. Meu irmão foi o primeiro a se pronunciar. – Não dá para esperar pelo menos alguns dias? Marcos acabou de sair. – Não, não vou esperar mais. Preciso vê-lo e conversar com ele. Quero sentir se realmente fiz a escolha certa ou não. Mateus ainda me olhou decepcionado, mas não disse mais nada. Neste dia ele não quis mais me acompanhar. Embora eu tenha pedido muito, ele não foi. Estava aborrecido com sua irmã, que até então era seu exemplo de comportamento. Deixou-me ir sozinha, como a demonstrar seu desprezo pela minha atitude. Todos estavam frios e silenciosos comigo, se comportavam como a dizerem: – “Foi você quem quis assim; depois não venha chorar o leite derramado”. Senti medo e abandono, me senti sozinha. Minha família não demonstrou o menor apoio ao que eu estava fazendo. De repente, foi quebrado o elo que nos mantinha unidos e em harmonia, como deve ser uma família de verdade. Minha atitude quebrou esse elo. Senti no momento uma grande amargura. Por que não podia ser completa a felicidade? Estava tentando preencher um lado e o outro estava ficando vazio? Nunca dava para equilibrar? Meu Deus! Enquanto me dirigia ao local combinado, ia pensando: “Será que estou fazendo algo tão errado assim, para que todos se voltem contra mim? Para que todos me virem as costas?” Se estiver, por que só eu não consigo ver? 109
15 Eduardo e eu uando nos encontramos, Eduardo e eu, ele Q me abraçou forte, me apertou em seus braços. “Naquele momento
senti que estava certa.” Ali sob sua proteção, conseguia ver as coisas com mais clareza e sentia tudo com a exatidão da matemática. Havia uma grande sintonia de emoções e desejos, de toque e sentimentos. Uma enorme percepção de gestos e palavras. Um relaxamento, um aconchego intenso. Tinha uma química que nem a ciência conseguiria explicar. Conversamos por um longo tempo, falamos de tantas coisas. Falamos das pessoas às quais estávamos magoando. – Estou me sentindo muito culpada; estamos causando um grande estrago na vida deles. – Falei para ele. – Em todos os segmentos da vida existe o ganhador e o perdedor. — Disse-me ele. – Não. Não vamos colocar assim, nesta condição de ganhadores e perdedores. Eu me sentiria pior, me sentiria terrivelmente egoísta. Isso não seria ganhar. Eles sequer tiveram chance de lutar, de se defenderem. Foram abatidos antes mesmo de poderem reagir. Enfim, todos nós fomos pegos de surpresa. Conversamos mais e mais como se fôssemos antigos namorados. Não queria me separar dele. Queria ficar todo o tempo ao seu lado, mas tinha que ir embora. Não podia abusar da minha recémconquistada liberdade, pois sabia que em casa estavam preocupados comigo. 111
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Pedi então que me levasse para casa, mas só até as proximidades. Não queria mais conflitos com eles. Todos iriam odiar me ver chegar assim já acompanhada pelo novo namorado. Cheguei só, o que para minha família também era estranho. Estaria eu deixando de ser uma moça recatada, de hábitos e costumes familiares, para me tornar uma sem regras? E assim começou uma outra história em minha vida. Uma história de fugas e mentiras, mas que eu a todo custo tentaria transformar em algo bonito e real. Nossos encontros foram se amiudando, até se tornarem fato conhecido entre todos. Era constrangedor pra mim, quando encontrava meus velhos amigos, pois se mostravam sempre receosos e distantes, frios e de pouca conversa. Isso me doía muito, porque antes todos eles faziam parte de nossas vidas, minha e de Marcos. Agora podia sentir a desaprovação deles de maneira franca e direta. Eles demonstravam bem o seu preconceito com quem traía. Estava começando a perder o afeto dos amigos e da família, mas os obstáculos não seriam motivos para me desencorajar. Mesmo assim, antes de me envolver definitivamente com Eduardo, ainda tive um encontro e uma conversa com Marcos, coisa que ele exigiu e eu achei justo.
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16 O reencontro com Marcos lguns dias se passaram e tudo corria bem, A até que Marcos resolveu reaparecer e exigir que tivéssemos aquela
conversa, pois eu não havia cumprido a promessa feita a ele, quando chegamos do balneário. Ele se sentia muito magoado com isso. Dizia ter ficado muitas coisas sem explicações. Fiquei receosa e pensei que ele queria simplesmente me comprometer e causar dúvidas para o outro namorado. Porém, disse-me, através de um pequeno bilhete, que queria conversar em paz. Sabendo eu que ele era uma pessoa íntegra e não atentaria contra mim, achei que realmente lhe devia uma explicação melhor. Então aceitei vê-lo. Além do mais estava segura e sabia que nada abalaria minhas decisões. Assim, combinei que o encontraria naquele mesmo dia. Após 17h, passaria na pensão onde estava hospedado. Naquela pensão que era uma construção simples e antiga, porém muito bem cuidada, e que fora outrora palco de tantos momentos alegres para nós e o nosso grupo de amigos. No terreno dos fundos, havia um belo pomar, com banquinhos de madeira espalhados por toda parte. Havia árvores e muitas plantas de jardim Em todo canto tinha um canteirinho de margaridas, bem-mequer, azaleias, onze horas de várias cores, roseiras, coqueirinhos e muitos xaxins de samambaias pendurados em cada coluna daquela 113
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construção de arquitetura colonial. O jardim era cuidado com zelo e carinho por um velho jardineiro, que nunca se casara e amava as plantas como sendo a sua verdadeira família. Bem ao centro do pomar tinha um espaço que era preferido por todos que ali frequentavam. Tratava-se de uma enorme latada de maracujá, que fazia sombra como um telhado. Era bonita, viçosa e deixava um agradável cheiro de flor espalhado pelo ar. Embaixo da mesma, havia preguiçosas, redes e cadeiras forradas com almofadas de retalhos coloridos. Aquele ambiente transmitia prazer e bem-estar. Muitas vezes já tinha estado ali com Marcos em situações diferentes, como para um almoço, um churrasco ou simplesmente para um bate-papo de fim de tarde. A dona da pensão já tinha por nós um carinho especial. O fato de Marcos ser uma pessoa muito carinhosa e amável contribuía sempre para que se fizessem bons amigos. Chegando lá, disse ao porteiro que Marcos me aguardava. Ele me acompanhou pelo o longo corredor, o qual conduzia a uma confortável e bem decorada sala de jantar. Aquele espaço mais parecia uma galeria de artes. As paredes eram recobertas por um rico acervo de telas, gravuras e fotografias antigas. Passamos por ela e chegamos a uma varanda de onde se tinha uma bela vista para o pomar e de lá, ele apontou na direção que Marcos se encontrava e disse: – Lá está ele, triste e calado desde a hora do almoço. Já leu, tomou café, leu novamente, cochilou na espreguiçadeira, mas não quis sair dali. – Obrigada, Nestor. Já ia me afastando quando Nestor falou novamente: – Minha filha! – Sim, Nestor. – Pense no que você está fazendo. Fiquei muito triste quando soube do rompimento do seu noivado com Marcos. 114
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– É, Nestor, são coisas da vida... – Então vá, não o faça mais esperar. – Disse Nestor. Entrei e me aproximei lentamente, muito receosa, pois naquele momento ele me pareceu um desconhecido que estava ali à minha espera. Ele estava sentado sob a latada de maracujá, folheava uma revista, como se estivesse lendo, mas não estava lendo. Cheguei mais perto dele e cumprimentei-o. Levantou-se, beijou minha face como a de uma amiga e convidou-me a sentar. Sentei-me ao seu lado e vi que sobre um banquinho havia um pacote, de tamanho razoável. Estava envolto num papel pardo e atado por barbante de algodão. Enquanto eu tocava no pacote com a ponta dos dedos, na intenção de disfarçar meu embaraço, ele começou a falar. – O principal motivo pelo qual pedi este encontro é para te pedir desculpas, por aquele dia. Fui fraco e infantil. – Ora! Imagina. Não fez nada que não seja compreensível. – Agradeço pela sua sensibilidade e me sinto mais à vontade para lhe perguntar se não aconteceu nada que a fizesse mudar de ideia, porque, por mim, ainda estou disposto a riscar esta página e retomar nossos planos. – Marcos, vamos pôr um ponto final e feliz nessa história? As coisas já estão tomando seu rumo, se acomodando, com o tempo esqueceremos este triste episódio. E nesse tom conciliador, conseguimos conversar por muito tempo, ouvindo os motivos um do outro. Mas me mantive firme e não reatei o compromisso. Por fim, ele viu que era em vão a sua luta e seus argumentos. Deu-se por vencido e já preparado para terminar a conversa. Pegou o pacote que estava sobre o banco e me entregou, dizendo: – Este pacote é para você. São coisas que faziam parte de nossa história. Acho melhor devolvê-las, já que esta foi a minha úl115
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tima tentativa de reconciliação. Acredito que não me sentiria bem as guardando comigo. Ao tentar receber o pacote de suas mãos, ele me olhou de frente, olhou bem nos meus olhos. Percebi, então, quanto dano eu havia causado àquela pessoa tão querida. Ele estava estranho, visivelmente ferido na sua dignidade, parecia cansado e abatido. Com minha atitude irresponsável, havia magoado, havia brincado com seus sentimentos e, com tamanho egoísmo, não me importei em feri-lo daquele jeito. Além do sentimental, havia também o aspecto físico. Estava magro e com olheiras profundas. Barba por fazer e roupas mal cuidadas. Seu abandono era chocante. Ele segurava o pacote numa ponta e eu na outra; relutava ainda em me entregar como também relutava em pôr um ponto final em nosso noivado. Senti pena, muita pena. Mas o que senti foi maternal e eu não queria confundir os setores. Piedade, não. Não era disso que ele estava precisando: alguém que sentisse pena dele, como eu estava sentindo. Ele era nobre, não precisava de pena e sim de ser amado. Segurei o pacote com mais força e puxei-o para mim. Levantei-me e esperei que ele fizesse o mesmo; porém não o fez. Então falei: – Até um dia, Marcos. – Até um dia. Ai! Como me senti horrível ao transpor aquele portão. Quando o fiz, ainda dei uma última olhada para trás e ele continuava sentado na mesma posição. Estava inerte, como se mais nada existisse ao seu redor. Saí da pensão e andei, quase a correr. Cheguei a casa com um nó na garganta. 116
PELA CONTRAMÃO DA VIDA
Comentei com mamãe a conversa que tivera com Marcos e ela falou que eu estava dando um grande e largo passo no escuro. Estava trocando o certo pelo duvidoso, pelo desconhecido. Respondi que era exatamente o desconhecido que me fascinava. Usei mais alguns argumentos na tentativa de ser ouvida e respeitada. Mas, ela não respondeu mais nada; apenas olhou-me e sorriu. Sabia claramente que eu só estava tentando receber apoio e consentimento da parte dela, mas ela não me deu. Não abriu a guarda e nem deu espaço para continuar a conversa. Mais angustiada eu fiquei. Peguei o pacote e fui para o meu quarto. Desatei o nó do barbante e abri. Nele havia muitas coisas que Marcos guardava. Eram amuletos que lembravam tudo do nosso namoro, dos nossos encontros e de todas as coisas que fizemos juntos. Eram cartas, cartão de natal e de aniversários, telegramas, fotografias, notas de restaurantes onde jantamos pela primeira vez, passagens de ônibus. Uma rosa seca e amassada, alguns objetos que eu havia lhe dado de presente. Tudo, tudo ele guardava, numa atitude carinhosa e romântica. Enfim, ali estava o que representava a história de duas pessoas que sonharam e planejaram um futuro. Ali estava o resumo de uma história inacabada, principalmente para ele. Mas, para mim, era o marco de um novo começo. Que fim teria este começo? Se pudéssemos prever o fim do que começamos...
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17 O começo? duardo e eu começamos a namorar pública E e abertamente. Para mim era tudo novo, tudo muito forte. Foi um
período de sonho e mudanças radicais. Mas será que ele, Eduardo, se entregaria na mesma intensidade? Teria os mesmos objetivos que eu? Andaríamos na mesma direção? É o que veremos. Mesmo a contragosto de todos, fomos levando o namoro adiante, porém muito cedo fui despertada para a crua realidade. O tempo foi passando. Certo dia, percebo que os meus amigos haviam se afastado todos de mim. Não sobrou um sequer, pois, além dos fatos ocorridos, logo de início Eduardo se mostrou uma pessoa de difícil convivência, extremamente fechada. Ele não tinha amigos, não se relacionava com ninguém e também não aceitou os meus amigos. Excluiu um a um até o último. Segundo sua filosofia de vida, teríamos de criar um mundo “só para nós dois”. E o pior é que tudo indicava que no mundo dele não haveria espaço para ninguém que não fosse ele mesmo. Nada estava acontecendo como sonhei. Como planejei. Passei a viver um louco período de adaptação onde eu tentava me encaixar a qualquer preço e me entregava de alma e coração àquele relacionamento; entregava-me sem reservas por achar que este era o meu papel. Assim tudo começou a acontecer de forma errada e perigosa, mas eu não desistia. 119
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Nessa fase já nos víamos com grande frequência, tínhamos nossos encontros à noite e, durante o dia, ele sempre aparecia e sem avisar no meu local de trabalho para dar um alô ou simplesmente me controlar. Bem de início descobri também que, além de tudo, ele era horrivelmente ciumento, chegando mesmo às raias da obsessão. Controlava-me dia e noite de onde ele estivesse. Outra forma de manter a vigília era mandar de vez em quando um mensageiro me levar um bilhete carinhoso e cheio de promessas. Outras vezes me mandava uma flor do campo ou uma rosa roubada de um jardim. Seria bonito se não tivesse uma segunda e perigosa intenção por trás daqueles gestos de paixão. Mas logo comecei a perceber e, com certo desconforto, que aquilo era só uma estratégia para controlar meus passos, invadir a minha vida. Porém, mesmo percebendo, não queria admitir a realidade. E o pior é que recebia tudo aquilo como estímulo para minha vaidade e com isso me sentia a mais amada, a mais realizada das mulheres. A musa inspiradora. Sentia-me única e grande. Seguia fazendo o jogo dele. Meus colegas de trabalho que também faziam parte da ala dos insatisfeitos pela minha escolha, nem de longe tocavam mais no assunto, pois percebiam os ciúmes dele e a intenção de afastar todos do meu caminho. E assim fomos levando até ficar como ele queria. SÓ EU E ELE. Ou seria só ELE? Como ele, por opção, não freqüentava a minha casa, tinha eu que encontrá-lo sempre na rua, na pracinha, na sorveteria ou nos bares. Mas, para sair de casa, ainda dependia muito do meu irmão, pois àquela altura dos acontecimentos só podia contar com ele. Era só ele quem ainda me acompanhava quando eu pedia. Era só com ele que eu ainda podia contar. Então insistia para que não me abandonasse; não queria de repente me tornar uma libertina sem família e sem referência alguma. 120
PELA CONTRAMテグ DA VIDA
E foi justamente por ele estar comigo que certa vez me livrei de uma boa encrenca, ainda criada por Marcos...
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18 Marcos mais uma vez entra em cena erto dia, quando chegamos ao barzinho JZ, C onde Eduardo me aguardava, juntei-me a ele e meu irmão foi jun-
tar-se aos seus amigos. Eu e Eduardo entramos na “cabana”, que era um anexo do bar e também salão de dança. Procuramos nossa mesa preferida num cantinho bem mais ao fundo do salão e sentamo-nos ali. Pela personalidade de Eduardo, que não gostava de se “misturar”, já tínhamos até um lugar reservado para ficarmos mais à vontade. Os demais frequentadores da cabana percebiam nossa preferência por aquela mesa e raramente alguém a ocupava e quando acontecia algum evento que exigia reserva de mesa a placa com nosso nome ia para lá. E assim sendo, de onde ficávamos dava para ver todo o movimento da entrada do bar e, num certo momento, vi que Marcos inesperadamente entrara no recinto. Foi um susto, pois além de não esperar vê-lo por um bom tempo, ele estava com aspecto horrível, com um jeito muito estranho. Vestido de forma esquisita, ele usava uma bermuda desgrenhada, sem camisa e, o que era pior, me parecia bastante alcoolizado. Tremi, gelei só de pensar que ele pudesse chegar até nós e esse fato só não aconteceu graças a três fatores. Primeiro: A cabana era bem mais ao fundo do terreno, como já descrevi, e também tinha pouca iluminação. De onde ele estava não dava para ver muito bem quem estava lá dentro. 123
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Segundo: O dono do bar sabia que eu estava lá com Eduardo e era conhecedor de toda história. Portanto, quando o viu entrar, foi logo ao seu encontro, cumprimentou-o calorosamente e convidouo a sentar-se. Fez comentários sobre a falta da camisa e os dois riram bastante. Em seguida, ele saiu para pegar a mesma dentro do carro e retornou já vestindo a peça que faltava. Novamente o dono do bar convidou a sentar-se e lhe serviu algo que ele pediu; como também se sentou à mesa para lhe fazer companhia. De onde eu estava dava para sentir todo o clima, via que o outro tentava evitar um desfecho trágico, tamanha a sua pressa em atendê-lo e envolvê-lo por ali mesmo. Terceiro: Disse a Eduardo que precisava falar algo para meu irmão, pedi licença e fui até ele, que já se encontrava também ali na cabana. Cheguei perto dele para pedir socorro. Falei: – Mateus, disfarça e olha, veja quem está ali fora... Por Deus, você precisa tirá-lo daqui antes que ele me veja, para que eu possa sair também. – Sabia que ia dar nisto! – disse meu irmão. – Será que Marcos não se toca que tudo acabou? Francamente. – Ele não vai aceitar nunca, pelo visto... – E você, vai passar o resto da vida se escondendo? Mas está bem, vou tentar sair daqui com ele e quando conseguir você dá um jeito e faz o mesmo. Mas vá direto para casa, porque não sei até onde eu posso segurá-lo e pelo jeito não está sóbrio. Agora resolve tirar onda de bebum inveterado; era só o que me faltava; virar babá de noivo traído. Sempre resmungando, ele saiu e foi para perto de Marcos. Foi uma alegria para ambos. Mateus fingindo surpresa com a presença de Marcos e também fingia que a presença dele ali não era missa encomendada. Demonstrou muita alegria em rever o amigo e já foi logo puxando a atenção para si. 124
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Mateus fez então sinal para o dono do bar e por código disselhe que ia assumir o controle. O outro aliviado pôde ir cuidar do balcão onde os clientes já reclamavam. Senti grande alívio em saber que ainda podia contar com meu irmão, embora ele não deixasse barato, sempre me aplicava um sermão, e mesmo com raiva nunca me deixava sozinha se eu precisasse dele. Fiquei atenta e, depois que os dois saíram, inventei uma desculpa qualquer e fui até o balcão, pois sabia que meu primeiro anjo estava ansioso para me falar. Assim que me aproximei do balcão, ele chegou perto e foi me contar sobre os comentários de Marcos. Disse que estava muito revoltado com o que eu havia feito e que não ia esquecer aquilo facilmente. Pretendia encontrar meu atual namorado para um acerto de contas... e tantas outras barbaridades ele falou. Fiquei mais aflita porque não conhecia esse lado feio de Marcos; não sabia que ele era uma pessoa vingativa e obstinada. Estava me parecendo que ia dar trabalho. Voltei para junto de Eduardo, dei um tempinho e disse que queria ir embora. Ele fez objeções, dizendo que ainda era muito cedo e que tínhamos acabado de chegar, coisa e tal... Mesmo assim insisti e ele me levou embora. O engraçado é que poucos dias atrás eu saía de um recinto, com Marcos, fugindo de Eduardo. E agora saía de outro, com Eduardo, fugindo de Marcos. Era algo muito forte para mim, mas... No dia seguinte, Mateus me falou muito preocupado que Marcos estava revoltado mesmo e pelo jeito poderia até fazer uma bobagem se me encontrasse acompanhada de Eduardo. Disse também que, durante todo o tempo em que estiveram juntos (ele e Marcos), só falava no assunto da traição. E que voltara para reparar a vergonha que tinha passado. 125
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Mateus se valeu da amizade dos dois para fazê-los ver as coisas com menos ódio, com menos rancor, mas Marcos não aceitava argumentos. Mateus estava preocupado porque não se podia prever quando Marcos ia aparecer sem avisar. Naquele fim de semana, enquanto Marcos estava na cidade, eu não saí mais de casa. Tinha medo de provocar uma tragédia envolvendo também meu irmão, pois com certeza ele sairia em minha defesa. Quando Marcos foi embora, tentei levar uma vida normal, porém a não aceitação dele estava me estressando e me deixando com muito medo.
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19 Marcos sofre acidente de carro arcos dava sinais de que ia perturbar e tanM to fez que, cinco semanas depois, recebo telegrama de uma amiga
moradora de Brasília informando que ele havia sofrido um acidente de carro e estava hospitalizado com muitos ferimentos. Fiquei triste e me sentindo culpada. Pensei muito e decidi lhe fazer uma visita. Só temia que seus familiares não me recebessem bem; mesmo assim fui. Chegando lá me dirigi ao hospital onde ele estava internado. Quando entrei no corredor onde se localizava o apartamento indicado na recepção, encontrei seu irmão mais velho que saía de um quarto. Quando ele me viu veio ao meu encontro e me recebeu com muito carinho. Perguntei então se podia entrar para ver Marcos e ele, mui amável, disse que sim, dirigiu-se à porta e avisou ao irmão que ele tinha uma visita. Depois foi logo se afastando para que eu pudesse ficar mais à vontade. Empurrei a porta e fui entrando devagar; ele se virou um pouco e tão surpreso ficou, que quase caiu da cama. Cheguei pertinho do leito, vi que ele estava abatido e senti vontade de lhe fazer um carinho, pois sabia eu que ele estava sofrendo muito. Mas de que adiantaria mexer ainda mais com os seus sentimentos? – Olá... – Meu Deus! Morri ou estou delirando? É você mesmo? – Hei, para com isso! 127
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– Juro que nunca esperei te ver aqui, nunca! – Se minha presença não te agrada, posso ir embora agora mesmo. – É claro que me agrada, ou melhor, é mais que agradável. Mas como ficou sabendo? – Nossa amiga Lucinda me mandou um telegrama. – Foi muito gentil da parte dela. – É, ela te adora, é uma amiga fiel – disse eu. – É... – Mas, me conta Marcos, como está? Espero que nada de muito grave tenha te acontecido. – Nada grave. Só um pé torcido, um braço quebrado, um olho roxo, algumas costelas fraturadas e mais uns bons arranhões pelo corpo. Como vê, não foi nada sério para alguém forte como eu. Mediante seus comentários caí na risada, pois ele mais parecia uma múmia com todas aquelas ataduras, curativos, gesso, faixas pelo corpo todo e ainda fazia graça da situação. Ele nunca perdia o bom humor e acabou rindo comigo, mesmo se contorcendo de dor pelo esforço de rir. – Sinto muito – disse eu, enxugando as lágrimas de tanto rir. – Que nada, até valeu a pena estas peças quebradas se isso serviu para você vir até aqui me ver. – Ora, não seja bobo... – Você deve ter imaginado que fiquei mal, para se aventurar numa viagem tão difícil como esta. – É verdade, Marcos. Pensei no pior, mas, graças a Deus, não foi tão grave assim. Espero que não fique sequelas que te impeçam de levar uma vida normal. – Segundo os médicos, não ficarão. Só algumas cicatrizes. – Isto me deixa mais aliviada – interrompi-o antes que ele começasse a falar de cicatrizes. – É. E por que veio realmente? Só para me ver? – Única e exclusivamente. Você merece e é meu dever lhe dar 128
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apoio neste momento. Sei que você faria o mesmo por mim. – Que bom que você pense assim, mas será que não mereço algo mais, assim como uma reconciliação com minha ex-noiva? – Haar! Não vai querer aproveitar da minha bondade para com os enfermos, vai? – brinquei. – É só como enfermo que veio me ver? – Vamos parar... Marcos? – Está bem, não vou mais ser indiscreto. – Assim é melhor. Mas como tudo isso aconteceu? – Foi uma bebedeira, que acabou numa batida. Por pouco não aconteceu o pior. O carro ficou imprestável, virou sucata. – E o outro carro? Porque foi com outro que você bateu, não foi? – Sim. Bati contra um caminhão, fui parar longe, fora da pista. E sei também que fui o culpado por este acidente. Por sorte o outro motorista não sofreu nada; o carro dele era maior e aguentou bem. – E por falar em bebedeira, Marcos, você nunca foi a favor da bebida e nem também de atitudes agressivas. Por que isto agora? – O que você acha? – Não vim aqui para ser acusada nem para me sentir culpada de nada. Se a conversa vai tomar esse rumo, é melhor que eu vá embora. Acho que você é adulto e responsável por seus atos. – Pronto, pronto, parou! Sei que você foi leal ao terminar tudo de forma clara e transparente. Não deu certo, paciência. Sei que vou sair desta e tentar esquecer. Não fui o primeiro e nem serei o último a passar por isso. Pensando assim me sinto melhor e este acidente também me serviu de alerta. – Também acho Marcos. E acho até que podemos ser bons amigos. O que você me diz? – Amigos? Seria isto possível? – Melhor que inimigos, pois, apesar de nosso namoro ter terminado, você é para mim uma pessoa muito querida. Não gostaria de saber que você nutre algum sentimento de ódio contra mim. Quero manter sua amizade. O que me diz? 129
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– Pois é não tenho nada a perder. Por mim está bem. Não digo, amigos, amigos, mas vamos ver. – Assim me sinto melhor e posso voltar para casa com o coração mais aliviado. – Pode sim, preciso voltar à realidade. O fato de ter vindo aqui me ver demonstra que você é uma pessoa digna, e de paz; portanto, como tal, merece ser feliz. E assim terminamos nossa conversa, sem ressentimentos. Estava me sentindo mais leve e Marcos também dava a entender que ia parar com as bobagens. Que ali naquele quarto de hospital estava se encerrando definitivamente o nosso noivado. O dom do perdão deixa as pessoas mais tranquilas. Saí do quarto e fiquei a conversar com a mãe e a irmã dele, que aguardavam sentadas no corredor. Mas elas não tocaram no assunto do rompimento do noivado e muito menos eu falei. O momento não era apropriado. No dia seguinte, antes de partir, ainda fiz uma rápida visita para Marcos e dele ainda trouxe a lembrança de um olhar triste e resignado. O tempo passou e o capítulo Marcos ficou de vez para trás. Alguns anos depois, fiquei sabendo que ele havia se casado, estava bem e até filhos já tinha. Ao saber disso, minha culpa desapareceu completamente. Sabia então que pelo menos a vida dele tinha voltado ao seu curso normal, enquanto que a minha estava parada, parecia que flutuava ao vento sem um destino certo.
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20 Uma vida (só) a dois om a continuidade do namoro, começava a C surgir uma grande diferença entre Eduardo eu. Divergíamos com-
pletamente sobre quase tudo, caminhávamos para rumos diferentes. Nossas opiniões eram quase sempre opostas, terrivelmente opostas, principalmente no que se refere aos valores moral, social, cultural, familiar. O que ainda se mantinha forte era a grande paixão. Mas, para mim, uma vida a dois era muito, muito mais que isso. E com muita apreensão comecei a entender que éramos duas pessoas completamente diferentes em tudo. Logo bem cedo, ele começou a se contrapor ao meu caminho. Começou a impor a sua vontade e sem critério algum só por puro egoísmo. A controlar tudo que por ventura eu pensasse fazer. Qualquer gesto era vigiado e criticado. Começou a controlar meu modo de vestir, de como cortar meu cabelo, cor do batom, cor do esmalte, horários e a convivência com minha família. Até nesse setor ele marcava cerrado. Começa então um tormento, uma loucura em minha vida. De repente a minha LIBERDADE foi subtraída e me vi presa e controlada. Eu tinha meus planos, sonhos, ideias e vontade própria, mas sem desrespeitar o espaço que um homem ocupa naturalmente na vida de uma mulher e a mulher, na vida de um homem. Sabia eu da importância do companheirismo. A bem da verdade, eu tinha opinião e personalidade forte, porém em situação alguma me achava 131
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superior aos homens. Nunca fui simpatizante dos ideais feministas, nada contra, mas não tenho esse perfil. Foi aí então que ele percebeu esse ponto “fraco” na minha personalidade: aproveitou, atacou e se estabeleceu. Cedo descobriu que com ele eu não discutia, só obedecia. Cedo descobri que ele era autoritarista e eu cedia a tudo para evitar brigas. Cedo descobri também que ele era invasivo, se apoderava dos meus méritos e fazia questão de me deixar sempre numa posição inferior. E, assim, começaram os abusos e, por consequência, os conflitos. Vi logo que nossos ideais eram contrários. Aliás, ele nem demonstrava ter ideais, projeto de vida. Um projeto de vida a dois. Se declarou também totalmente contra o casamento formal. Mas o casamento estava nos meus planos, pois não tinha terminado um noivado sério para viver de aventuras. Mas o pior é que eu não conseguia fazê-lo enxergar as coisas pelo lado convencional e em bem pouco tempo de namoro ele já exercia total domínio sobre mim. Era uma ironia do destino, logo eu que sempre fora uma pessoa sensível, porém forte e decidida. Como eu já estava bastante envolvida e intencionava casar com ele, deixei aflorar a mulher dócil e submissa que havia dentro de mim, na tentativa de me encaixar num relacionamento já declarado autoritarista. Foi assim, sem eu perceber, que de repente surgiu na minha frente um ditador implacável, um dominador frio e cruel. Foi aí que se revelou o monstro de egoísmo que ele tão bem escondia por trás daquela aparência de homem romântico e apaixonado, de um amante perfeito, atento e protetor. Por trás daqueles “cuidados” que ele dizia ter por mim, estava bem escondida uma pessoa mandona, radical, cabeça pequena, obstinada e de ideia fixa. A sua lei ele aplicava sem dó nem piedade. 132
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Ele sabia se fazer obedecer por bem ou por mal. Ele foi exigindo e eu cedendo. Foi avançando e eu recuando. Foi gritando e eu calando. Foi ditando e eu obedecendo. Foi oprimindo e eu me encolhendo. Foi ganhando espaço e eu perdendo. Foi dominando e eu me anulando. Foi brilhando e eu me apagando. Sei então que quando terminou o capítulo Marcos em minha vida, outro bem diferente começava. Mas não era mais só um capítulo, era agora uma longa estória de renúncias e solidão. Entre outros desvios de comportamento, ele demonstrava verdadeira aversão ao convívio social e familiar, como já mensionei antes. Nunca visitava minha família, nem permitia que eu convivesse com ninguém e nem que eu tivesse amigos. Às festas tradicionais e comemorações da cidade eu não podia mais ir. Nas reuniões dos amigos eu estava sempre ausente. Nos aniversários, casamentos, batizados e velórios, também não mais podia ir. Igreja? Nem pensar. Desconfiava de todos os líderes religiosos que, segundo ele, eram ladrões e aproveitadores. Para mim não havia mais os almoços de domingo, o cafezinho na sala e a conversa descontraída dos fins de semana com minha família. Eu nunca estava em casa e com ele passava os domingos, feriados e qualquer minuto de folga eu estava sempre envolvida com ele. Todos odiavam aquele meu novo comportamento, aquele meu isolamento. Alguns mais atrevidos até se arriscavam a comentar: – Que figura estranha esse seu namorado, parece que vive de 133
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mal com o mundo, com a vida. Não se relaciona com ninguém. Ele é sempre assim? Como é que você aguenta? De início, eu até pensava comigo mesma: “É por isso que eu o adoro, por este seu jeitão de menino emburrado, de menino zangado; só eu e ele nos bastamos. Para que tanta gente ao nosso redor? Até prefiro assim, muitos amigos só vão atrapalhar”. Mera cegueira e estupidez, pois eu valorizava a amizade e a família, mas já estava bem dominada pela personalidade egoísta dele. Como poderia eu imaginar, pensar em construir alguma coisa sadia dentro dos princípios que ele adotava? Dentro dos padrões que ele estabelecia e implantava na minha vida? Dizia sempre que só eu e ele nos bastávamos. Eu sabia que estava tudo errado, mas a doença da paixão era mais forte, porque a nossa diferença era fato e não dava nem para esconder. Porém eu tentava ignorá-las, direcionando tudo para outro lado e dizendo que ele era uma pessoa forte e independente, autossuficiente, e outros adjetivos que eu inventava para me justificar. E assim ele foi se instalando, foi me dominando, foi ficando folgado, abusado, intolerante e, ao mesmo tempo, demonstrando uma paixão quase impossível. Fui vivendo naquela utopia... Mas, a certa altura, comecei a sentir falta do convívio com as outras pessoas, pessoas que foram tão importantes para meu crescimento pessoal. Pessoas que eu amava e respeitava, mas não podia mais me aproximar delas, pois eu as havia perdido, desprezando-as. Vez por outra até ensaiava reconquistar algumas, voltar ao convívio delas. Alguns até me davam crédito e abertura para me reaproximar, mas ele ficava enfurecido e logo começava a atacar a pessoa e eu constrangida recuava novamente. Se uma pessoa se aproximava da gente e puxava conversa, ele ficava sempre calado, reservado e de pouca conversa. Parecia um pavão, numa atitude que mantinha qualquer um à distância. Por mais 134
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animada que fosse a pessoa, ele conseguia deixá-la sem graça; às vezes chegava a ser grosseiro e direto, comportava-se como a dizer: – Chega! Basta! A conversa é só até aqui. Eu ficava com muita vergonha, mas ia calando, aceitando. E, para me manter mais envolvida nestes momentos de extremos ciúmes, ele ficava mais atencioso, mais carinhoso comigo. E me envolvia de maneira tal que eu não podia dar atenção para mais ninguém que estivesse por perto. Ele me abraçava, puxava meu rosto para o seu lado, desviava o rumo da conversa, fazia coisas de uma imaturidade vergonhosa. Não dava sossego enquanto a pessoa não se retirava. Parecia uma criança assustada que tinha muito medo de perder a mãe. Ficava que era só atenção comigo, me cercava, me envolvia de todas as formas possíveis, para eu não permitir ninguém por perto. Fazia questão de estar sempre demonstrando seu “amor” por mim e sempre repetia que eu só precisava dele e ele só de mim, que só ele me bastava. Esta frase se tornou o nosso lema de vida. Controlava, me envolvia, me reprimia, me sufocava. Então fui ficando insegura e cheia de dúvidas. Fui perdendo cada vez mais o contato com as pessoas e me envolvendo mais e mais com ele. Parecia uma doença. Mas não queria questionar muito sobre aquilo, pois, apesar de tudo, me sentia bem ao lado dele, me sentia tão amada, tão bem cuidada, tão tudo e ainda me enganava dizendo toda orgulhosa: – Ele é realmente forte e determinado. Só eu e ele. O mundo será pequeno, para nós dois, o mundo não terá fronteiras. Quem poderá nos deter? Não sabia eu que o EGOÍSMO é o pior sentimento que podemos cultivar, porque é ele que nos detém e nos fecha todas as portas; é ele que nos consome e nos empurra para o isolamento; e é ele mesmo que nos leva para a solidão. 135
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Eu estava convivendo com a doença do egoísmo. Estava me deixando contaminar por ela e não percebia onde aquilo ia chegar. Já andava até pensando e me comportando como Eduardo. “Éramos duas estrelas” que brilhavam muito forte, ofuscando todos aqueles que, porventura, chegassem perto de nós. Tinha ao meu lado um monumento de homem, que me envaidecia. Uma fortaleza para me abrigar e nem de longe pensava em dar uma palavra a favor daqueles que ele afastava de nós de forma tão indigna, embora muitas vezes ao encontrar essas pessoas na rua eu tentasse justificar a “falta de jeito” dele, ao que elas me respondiam: – Entendo. Tudo bem. Quem sabe um dia você verá a besteira que está fazendo. Um dia eu vi, mas já era tarde. Naquela época não queria saber de conselhos. Tentava me justificar, mas, na verdade, não me importava mesmo com a opinião dos outros. Entendia como pura inveja e não parava mais para ouvir ninguém. Seguia mesmo na dele, até porque eu não tinha outra escolha se quisesse ficar com ele. Mas hoje eu sei que minha atitude era por puro medo de ver o que não queria ver. Era só autodefesa, pois, no fundo no fundo, eu já sentia, já percebia que algo de muito errado ia acontecer. Mas não admitia porque eu o amava. Vivia achando que era só uma questão de adaptação. Com o tempo tudo se acomodaria e a vida seria uma maravilha ao lado dele. Só não podia perceber que tudo aquilo eram fragmentos de traumas de infância, que lhe renderam uma dupla personalidade. Que eram sintomas de uma personalidade e de um caráter mal formado e cheio de erros. Que era produto de um grande desequilíbrio emocional e que posteriormente aquilo me sucumbiria. Ele era uma pessoa atormentada por um enorme conflito interior... 136
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Sofria de: Medo e insegurança. Complexo de perseguição. Sentimento de posse e domínio. Complexo de inferioridade e rejeição. Instabilidade emocional. Desconfiava de tudo e de todos. Não tinha um ídolo vivo ou morto. Não admirava ninguém. Era egoísta, radical e preconceituoso. Era extremamente severo. Não admitia erros de ninguém Para ele, ninguém era bom; ninguém era capaz de boas atitudes, de boas ações; ninguém era capaz de amar simplesmente por amar. Nunca elogiava uma pessoa, mas criticava a todos e de forma injusta, só por pura necessidade de se auto-afirmar. Portanto, digo sempre, como seria bom se todos nós tivéssemos um pouquinho de psicologia, para entender melhor e com mais rapidez a criatura humana, antes que um desastre assim ponha fim aos nossos sonhos mais bonitos. Ponha fim à nossa mais pura alegria e ingenuidade. Pena que toda aquela sensibilidade e submissão que eu cultivava e guardava para encantar um homem fora cair nas mãos erradas. Mas, naquele estágio, minha entrega já era total; progressiva e cheia de cumplicidade para com ele. Até meu querido irmão Mateus foi deixado de lado por imposição dele.
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21 Ele viaja de férias namoro continuava bem e cheio de emoO ções, pois meu amor era muito forte. Eu me sentia reprimida, mas
também me sentia amada. Então, chegou o fim de ano. De férias ele partiria para sua terra natal e eu não iria. Quando fiquei sabendo dessa viagem, pensei logo que não suportaria a separação. Embora temporária, mas seria muito longa. Entre férias e folgas acumuladas, ele tinha direito a quase dois meses. Sessenta dias sem vê-lo, sem beijá-lo, sem sentir seu abraço, sua proteção. Eu já estava muito dependente dele. Não ficávamos um só dia sem nos ver. Com quem dividiria tamanha solidão? Nem mais amigos eu tinha. Não queria que o destino fizesse isso comigo, ou conosco, pois ele também demonstrava não querer se separar de mim. Porém era inevitável sua viagem e dizia que sua mãe, já de idade e viúva, reclamava sua presença constantemente. Ele tinha que ir, mas também não demonstrou interesse em me levar junto. Ele falava muito do apego que tinha por seus familiares, coisa contraditória, mediante seu comportamento para com os meus, mas como se diz é o “temperamento”. É incrível como encontramos desculpas quando não queremos ver o óbvio. 139
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Ele partiria no domingo bem cedinho, e os dois dias que falavam para ele viajar foram tristes e melancólicos. Estávamos de coração partido. O encontro de sábado, à noite, foi carregado e pesaroso, cheio de recomendações, pedidos, como também a promessa de que voltaria logo. Aquele beijo e abraço de sábado deixou em mim uma sensação muito triste. Abraçou-me forte e disse: – Amanhã passarei aqui, bem cedo, para te ver antes de partir. – Está bem, então até amanhã. – Sentirei saudades. Não consegui falar mais nada. Entrei e chorei a noite toda. Sem ele me sentia tão pequena, fraca, perdida e sozinha. Naquele mundo que havíamos criado só para nós dois, eu não contava com mais ninguém. Precisava dele o tempo todo e para tudo. Criara em mim uma total dependência dele. Não sabia mais fazer nada sem antes conversar com ele. Estávamos muito apegados um ao outro. E agora essa viagem. Bem cedo me arrumei e fiquei à espera. Olhava o relógio sempre. As oito, as nove, às onze horas, meio-dia e nada. Começava a sentir um frio no estômago. Aquela espera era horrível, era sufocante. Quase uma da tarde, ouço um toque na porta, corro aos tropeções, abro a porta e mais triste fiquei. Era nosso mensageiro particular. Acho que ele notou minha decepção e disse: – Sinto muito, pois sei que ficou triste. Esperava por ele, não? Mas não foi possível ele vir; só me pediu que lhe entregasse isto – e foi embora. – Hã! – disse eu decepcionada. – Sim! Se eu tiver notícias antes de você, virei lhe falar e se precisar de mim estarei à sua disposição. 140
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– Obrigada – disse eu, desolada. – Até logo. Meu Deus, o que era aquilo? Olhava para o envelope com os olhos ardendo pelas lágrimas que já caíam. O rapaz ainda tentou dizer alguma coisa para me consolar; porém, interrompi-o perguntando: – Ele já foi mesmo? – Sim, já partiu hoje bem cedinho, mas só agora me foi possível vir aqui lhe trazer a carta. Voltei para dentro de casa, sentei-me na cama com o envelope nas mãos. Fiquei parada e as lágrimas caíam. Não queria abrir o envelope, tinha medo que algo tivesse mudado. Que a possibilidade de ele rever a ex-noiva tivesse falado mais alto que nossa paixão de Romeu e Julieta. Pensava comigo mesma: “Assim como ele chegou, agora também partiu. Não voltará mais. Não vou suportar esta situação”. O pior é que era isso que todos esperavam acontecer. Era uma espécie de vingança pelo que eu havia feito com o Marcos. Alguns até torciam para que eu me danasse. “Não vou suportar, vou morrer. Não quero passar por tudo isso. Sou muito orgulhosa, não quero sofrer a humilhação de ser abandonada”, pensava o tempo todo. E mais: “Não vou conseguir viver se isso acontecer”. – Não! Não! Não! – falei em voz alta, quase gritando. A ideia de tê-lo perdido, me amedrontou, me aterrorizou, me arrancou dos meus sonhos mais bonitos. Lembrei-me de Marcos. O que ele devia ter passado. Como deve ter sofrido, quando lhe virei as costas, sem o menor remorso. – Hei? Você está aí? Alguém falou perto de mim. 141
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Era Mateus, olhando para mim e girando em torno de si mesmo como quem procura algo que perdeu. – Hei? – repetiu. – Estou... Olhei para cima e só então ele viu que eu estava chorando e ficou apressado em me acudir. – Que houve, minha irmã? Por que está chorando? Por que esta carinha tão triste? – Eduardo me deixou. Terminou tudo. Foi embora. Não voltará mais. Meu irmão pegou das minhas mãos o envelope, ainda fechado, e o segurou. – Como ele teve coragem de fazer isso, assim friamente, sem antes te preparar? Pois, pelo que sei, até ontem à noite vocês estavam bem. Se ele te fizer sofrer, juro que vou até o fim do mundo para encontrá-lo e dar-lhe-ei uma lição de vida que ele jamais esquecerá. Imagina, por que foi atravessar seu caminho, enquanto você ia tão bem com Marcos? Eu mesmo acertarei as contas com ele, pode deixar... Como foi isto? – perguntou ele. – Está tudo aí. Olhou, virou o envelope de um lado para o outro. Girou nos calcanhares novamente, procurando ao seu redor e disse: – Não entendi como sabe o que ele disse se o envelope ainda está lacrado? Sequer abriu para ler? Ele veio aqui e te disse isso pessoalmente? – Não, mas eu sei que é isto. Ele não veio se despedir de mim como havíamos combinado. Só me mandou o mensageiro trazer esta carta. – Que cachorro! Vou arrancar-lhe a cabeça! – Para com isso! Abandonei Marcos, agora estou sendo abandonada, é o que mereço. Era o peso da culpa ainda me rondando. – Posso abrir e ler para você? 142
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– Abra, mas não quero ouvir o que está escrito aí, não tenho coragem. Fechei os olhos e só ouvia o barulho do papel sendo rasgado. Foi fração de minuto, mas para mim parecia uma eternidade. Parecia o dia da sentença final. Mateus permaneceu quieto e só lia em silêncio. Meu coração parece que ia parar de vez. Então falei para ele: – Se for muito triste o que está escrito aí não quero ouvir, por favor. Outro dia eu leio. – Está bem, como quiser. Dobrou a folha de papel e colocou-a novamente dentro do envelope, devolveu-me e saiu assobiando. Achei que ele fez pouco caso da minha dor e gritei para ele: – Que falta de sentimento. Não se importa com meu sofrimento? Com minha dor, seu insensível. Sai assim como se nada estivesse acontecendo? – Importo sim, quer que eu leia para você? – Não, eu mesma o faço. Você é muito frio, como pode? Aposto que até esta feliz. Ele saiu rindo sem dizer nada. Fiquei por muito tempo com o envelope na mão, até que recobrei a coragem, lavei o rosto com água fria para refrescar, pois meus olhos estavam ardendo de tanto chorar. Depois abri o envelope e li:
“Meu querido amor, Parti hoje bem cedinho. Não tive coragem de me despedir pessoalmente, como havíamos combinado. Sei que ficaria muito abalada, como eu também; não queria me despedir de você. Sei que estes dias serão muito difíceis para mim; porém não podia mais adiar minha ida, pelos motivos que já te falei; não se preocupe que logo escreverei, manterei contato sempre. Peço que me guarde fidelidade, 143
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pois a ti também guardarei. Amo-te eternamente. Beijos mil, Eduardo.” Que alívio! Que alegria, meu Deus! Como pude duvidar do nosso amor, assim na primeira ameaça? Li e reli aquela carta nem sei quantas vezes e só lá pelas dezoito horas lembrei-me que sequer tinha almoçado naquele dia. Sentia uma fome terrível, um vácuo no estômago. Tomei banho, depois fiz um lanche rápido e leve, não conseguiria jantar. Depois do lanche, saí à porta, senti a rua triste e a tarde cinzenta: parecia que eu tinha acabado de chegar de um velório. Uma grande falta me doía por dentro. Uma falta que só podemos sentir e avaliar seu tamanho quando nos é tirado algo tão querido. É um vazio que nada preenche. É uma tristeza que nos deixa impotente. Com tamanha saudade, meus pensamentos vagaram por longas estradas. Paisagens distantes foram surgindo em minha mente. Imaginei que àquela hora ele já estaria bem distante. Guiando por estradas ermas e sem fim. Pensativo e sozinho. Sabia, sentia que ele estava triste como eu. Sabia que ele sentia minha falta tanto quanto eu a dele e, na solidão da estrada, era a lembrança de mim que lhe fazia companhia. E todos esses pensamentos que tive, ele confirmou em carta, quando recebi a primeira após sua partida. Carta que ele havia escrito de uma cidadezinha no estado da Bahia. Nela, ele dizia que, no segundo dia de viagem, não suportando mais a saudade, parou para escrever e aliviar seu coração. Ali mesmo ele colocara a carta nos correios. 144
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Dizia onde tinha dormido. O quanto ainda tinha para rodar. Da solidão. Da falta que sentia de mim e que o tempo todo ouvia nossa música predileta: SAN FRANCISCO, tema do filme FRUTO DE UMA PAIXÃO. E entre outras coisas me falava de nosso amor e que nada mudaria seus sentimentos por mim. Com esta carta me sentia mais tranquila. Ele não mentiu também quando disse que me escreveria com frequência, porque aquela foi a primeira de uma série de 29 cartas que ele me escreveu num período de 56 dias. Com sua ausência não conseguia me equilibrar nem no trabalho. Não tinha ânimo nem inspiração para nada. Como fuga da dor que estava sentindo, desenvolvi um hábito engraçado. Sempre que entrava na minha sala de trabalho, olhava o calendário que ficava na parede acima da minha mesa. Logo que entrava ali, meu olhar ia direto para ele. Era uma coisa mecânica, como se fosse ele o símbolo de meu problema. E, de certa forma era, ele marcava data. Então chegava perto dele e contava quantos dias haviam se passado desde sua partida e quantos ainda faltavam para ele retornar. Aí comecei a marcar os dias que passavam. Marcava com um xis e, assim, o calendário foi ficando que mais parecia uma cartela de bingo. Encontrei naquele pequeno gesto um alívio que me ajudava a suportar a terrível espera. Como segunda ajuda, ainda tinha a espera pelo carteiro, que vinha em dias alternados e, às vezes, trazia até duas cartas ao mesmo tempo. Cartas aquelas que enalteciam meu coração, minha alma, minha vaidade de mulher e que me enchiam ainda mais de amor por aquele que, tão radicalmente, soubera se apossar do meu coração. 145
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Que tão fortemente me fizera ver o verdadeiro sentido da palavra amor, da palavra paixão (até então, verdade seja dita, era assim que eu via). Aos poucos o calendário foi ficando cheio de xis. Era xis azul, xis vermelho, preto, marrom. Já marcara 29, 38, 47, 50 e 56 dias. Cinquenta e seis dias foram riscados. O 56.º caía numa sexta-feira, que já deixei riscado e pensei: “Na segunda-feira, marcarei o sábado e o domingo”. Dois dias de uma só vez. Cada número que marcava era como uma terapia. Riscar um quadrinho daqueles era uma recompensa para o meu coração. Ao riscar a sexta-feira, um sexto sentido me dizia que seria o último daquela espera. Eu sabia que ele estava prestes a chegar, mas não tinha uma data exata. Ele não me dizia. Quando indagava, me respondia que era surpresa e dizia: – Não quero deixá-la apreensiva, marcando dia, chegarei breve. Assim parece que foi melhor. O fato de não saber o dia nem a hora, me dava a esperança de que a qualquer dia, num momento qualquer, ele surgiria como que por encanto.
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22 Ele estava de volta ábado, acordei com uma sensação de alegria S e conforto interior. Sentia uma paz que emanava de dentro para
fora ou de fora para dentro. Nossa sintonia de pensamentos estava mais apurada, algo me dizia que ele estava por perto. De repente fiquei animada, sentia vontade de sair, de cantar, de pular, de correr, de me arrumar e ficar bem bonita. Pulei da cama, alegre, cantando e feliz como a pressentir que algo de bom ia acontecer. Tomei um banho gostoso, vesti uma roupa alegre e descontraída. Olhei-me no espelho e estava tudo bem comigo. Andei pelo quarto, pela casa, depois me pus a esperar. Não sabia bem o quê, mas esperava. Porém as horas iam passando e nada acontecia. Por quem eu estava esperando? Ele não me avisara de que ia chegar. De tanto esperar, comecei a sentir muita angústia. Não sabia mais o que fazer para voltar ao normal. Ouvia música, andava de um lado para o outro, mas nada me acalmava o espírito e aquela inquietação se instalou dentro de mim, acabando com meu bemestar e paz interior. Tinha que sair, andar um pouco. Quem sabe aquela ansiedade não desapareceria? Já estava ficando esgotada e de mau humor. Saí. Cheguei até a calçada e tomei um rumo. Comecei a descer a rua sem muita vontade. Queria andar a esmo, andar sem destino e me distrair. 147
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Andava assim só observando a rotina, o movimento natural daquela tarde de sábado; a vizinhança toda por ali. Uns sentados nas calçadas conversando animadamente, outros que chegavam de passeios com as crianças e carregando sacolas e cestas de piquenique. Do outro lado, a meninada que corria, jogava bola e andava de bicicleta. E eu, só, caminhava e caminhava. Passei na casa de uma amiga, conversei um pouco e depois segui andando. Olhava o horizonte à minha frente: ele estava triste, escuro e com jeito de que ia chover; a tarde estava ficando fria. Eu olhava mais e mais para o horizonte, como se ele pudesse entender o que eu estava passando. Como se dele viesse minha salvação. Porém minha angústia crescia. Por que aquilo não terminava? Por que não acontecia nada para me tirar daquela esquisitice? Já era quase noite. E tão envolvida eu estava com os meus pensamentos, que não percebi o carro que se aproximava. Mas é claro que uma hora eu ia perceber. Percebi e olhei para o carro, pois estava bem perto de mim e deslizava lentamente ao meu lado. Olho. Olho novamente e não acredito no que vejo. Parei. O carro parou também, a porta se abriu devagarzinho e do interior do veículo ele saiu. Foi uma surpresa tão grande que fiquei paralisada, me senti suspensa no ar, me senti como se estivesse levitando e só recuperei o real sentido quando ouvi sua voz. – Meu grande amor! Minha vida, que saudades! Pulei em seus braços e, ali mesmo, no meio da rua, aconteceu o maior abraço, o mais ardente beijo que os moradores da mesma já puderam ver ao vivo. Não deu tempo para me lembrar dos princípios da boa moral. Foi uma alegria impossível de descrever. Novamente era só ele e eu. 148
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Ele estava ali ao meu lado, outra vez. Eu podia vê-lo, tocá-lo, abraçá-lo. Não acreditava. Ele era realmente só meu. Ele voltara. Afastei-me do seu abraço para poder vê-lo melhor. Como estava bonito. Seus olhos cor de mel estavam com um brilho mais intenso, ganhara um tom diferente pelo bronzeado da pele. Bronzeado de praia. Estava um pouco mais robusto, um pouco mais gordo, o que lhe caía muito bem, devido à sua altura. Mais alegre, transmitia força e vigor. Apesar da longa viagem, não demonstrava cansaço. Segundo ele, aquele dia estava dirigindo desde bem cedo. Disse que queria chegar e me ver, nem que fosse a pé ele chegaria. Conversamos muito tempo ali mesmo e quando percebemos já era noite; então eu disse: – Vamos até minha casa, para jantar, fazer um lanche, imagino que esteja com fome. – Estou sim, mas ficar com você é mais urgente. – Então vamos, mamãe te prepara algo rápido. – Não. Primeiro vou até o alojamento tomar um banho e trocar de roupa. Em seguida virei te buscar, temos muito que conversar. Até já. – Até. Ele entra no carro e sai. Volto para casa e entro correndo, cantando, pulando e abraçando quem encontrasse pela frente. Vou até minha mãe e lhe digo que ele chegou e peço a ela que prepare a mesa. – Talvez ele jante conosco. Nem sei por que pensei nisso, pois ele nunca havia entrado na minha casa. Mesmo assim mamãe concordou meio sem vontade, mas concordou. Quem sabe ele não havia mudado? Corro para contar ao meu irmão, da minha alegria, e ele como de costume rebateu com suas brincadeiras. 149
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hoje.
– Vai começar tudo outra vez, pelo jeito nem jantará em casa
– Janto, sim. Até pedi a mamãe para por mais um prato na mesa. Ele jantará conosco. Estava tão feliz que me arriscava a sonhar com uma convivência melhor, por parte dele, em família, mas meu irmão era mais realista. – Pirou mesmo, é? – Para com isso, Mateus. Estou tão feliz, nem posso acreditar que ele voltou. – Nem eu. Por mim, estava muito bem sem ele aqui. – Vai! Até te dou um desconto, pois sei que você ainda não o aceita. Mas se ele voltou é sinal que tudo ficou mesmo resolvido com a ex-noiva. – E ainda não estava resolvido? E se ele tivesse reatado com ela, o que você ia fazer? – Nem quero pensar nisso. Acho que ele não seria tão covarde assim comigo. – Até aí tudo bem, mas duvido muito que ele aceite o convite para jantar. Esquisito como é, nem deve comer. Ele se acha um deus, com certeza. E os deuses não comem. Mas, vamos ver, já vi muitas coisas estranhas acontecerem nesta minha pouca idade. Vamos ver. Para minha decepção e vitória de Mateus, que mais uma vez ficou com a razão, ele não aceitou o convite. Pediu desculpas e disse que queria ficar só comigo; tínhamos muito que conversar. Entendi e concordei. Na realidade a gente precisava mesmo conversar. Era grande a saudade um do outro, por isso disse para minha mamãe que o jantar ficaria para “outro dia”. – É por aí que vamos – disse Mateus, o crítico de plantão. Não dei resposta e saí. Sai novamente para viver minha felicidade. Fomos para a pracinha e sentamo-nos no nosso cantinho preferido. E, num envolvimento aconchegante e cheio de cumplicidade, ouvi coisas tão bonitas, que jamais esquecerei; entre outras ele me disse: 150
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– Como senti sua falta. Como foram longos estes dias sem você. Só mesmo a companhia de meu povo para me fazer suportar tanta saudade. – Não acredito que tenha sentido saudades assim. Com tantas mulheres bonitas por lá, como podia se lembrar de mim um pouquinho sequer? – É justo por isso, foi fato decisivo. Foram pontos que pude analisar com muita clareza e ver quão fortes são meus sentimentos. Vi muitas mulheres, sim, bonitas e livres, mas acredite, nenhuma me atraiu, porque me vinha sempre na lembrança esta que aqui ficou e que me acompanhou em pensamento, cada segundo, cada minuto que estive longe, e nem por um instante conseguia esquecer. Nem em sonho queria te trair. Por nada quero trocar esta paz que sinto quando estou ao teu lado. Quando penso em ti, tudo fica mais claro, mais definido e isso me enche de força e felicidade. Era tão bonito ouvir tudo aquilo, mas tive que fazer a pergunta que mais temia. – E tua ex-noiva? Como foi revê-la? – Foi constrangedor. Foi constrangedor, porém útil, pois voltei com mais certeza do que nunca de que é a você que eu amo; que é a você que eu quero como nunca quis alguém. E digo mais: esta viagem serviu para tirar qualquer dúvida que pudesse vir um dia. Creio que nada me separará de você. Se existe alma gêmea, você é a minha. – E sua família, como reagiu ao assunto? – Com muita crítica e cobranças. Jogaram na minha cara que isso não se faz. Minha mãe foi a mais inconformada. E, intransigente como é, disse-me que não esperava passar por este vexame, pois além da moça que eu humilhei, os familiares eram amigos desde há muito tempo e por isso ficou um assunto mal resolvido. Mas, para mim, o que importa é o que decidi. Como poderia casar-me com ela depois de conhecer você? Seria suicídio. – Ela não tentou uma reaproximação? 151
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– Esta foi a pior parte da história. Ela ainda usava a aliança, na esperança que um dia eu voltasse e reatasse tudo. É costume na minha terra. Elas esperam os noivos, ou os maridos, por anos afora. Muitos nem voltam mais lá, mas elas esperam, às vezes até a velhice. – Que situação humilhante. – É, mas não me deixei influenciar. Ela é uma boa moça, logo encontrará um bom casamento. – Tomara... – E aqui com você, como foram estes dias? – Tristes e cheios de saudades. Contei-lhe do dia de sua partida. Do meu desespero e das dúvidas que tive antes de ler a carta. Ele riu muito e também se ressentiu pela minha falta de confiança. – Como pode ter imaginado isso? Seria eu um cafajeste para te magoar tanto assim? – Fatos constam que isto poderia acontecer, sim. Você não era noivo quando me conheceu e terminou tudo? – Sim, mas a situação era bem diferente. Além da paixão que me dominou, você também era noiva e a fiz desmanchar um relacionamento já bem estruturado. – Não seja por isso. Não se sinta obrigado a nada. – Hei! Que rumo vai tomar esta conversa? – Só quero deixar as coisas bem claras. – Pois para mim está mais do que claro. Conversamos bastante e cada vez mais me convencia de que nos bastava um ao outro. Dali em diante a nossa vida foi voltando ao normal. Com a chegada dele, a alegria tinha voltado à minha vida. As manhãs eram mais bonitas, as tardes mais alegres e cheias de expectativas. O trabalho era mais gostoso de fazer, e tudo ficava mais bonito e perfeito. 152
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Apesar de nossa já comprovada diferença, eu me adaptava bem e vivia intensamente nossa paixão. A vida me sorria o tempo todo e parecia me dizer: você nasceu com uma estrela, ou você é uma estrela. Era tudo como um sonho bom, uma brisa fresca. Conduzia aquele namoro com muito carinho e dedicação. Foi um período muito bonito na minha vida. Eu pensava que ia longe tangida pela felicidade e avancei bastante. Mas, quando parecia que tudo ia entrar nos trilhos, aconteceu algo muito sério na minha família e eu fui, indiretamente, a maior vítima daquele fato.
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23 Começam as decepções em horas que a vida nos abate de forma fria T e cruel. E foi numa destas horas que meus pais resolveram se sepa-
rar, deixando-me numa situação delicada perante Eduardo, pois foi dele que menos recebi apoio e respeito numa hora tão difícil como aquela. Meus pais não podiam escolher pior momento para se separarem. Paguei caro pela separação deles. Paguei por um erro que não cometi. Foi aí que começaram a aparecer os sintomas mais claros de que ele não estava preparado para um relacionamento sério. Não estava preparado para enfrentar os altos e baixos da vida a dois. Com ele seria só na alegria, na tristeza não. Vi que nem de longe ele era aquela fortaleza que eu imaginava. Como também não era companheiro. Imediatamente se mostrou radical, preconceituoso e conservador a respeito do assunto de separação. Foi mesmo intransigente. Nada camarada nem compreensivo. Por nenhum minuto esteve do meu lado. Em nada me deu apoio. Para mim foi chocante a reação dele. No primeiro abalo, ele se mostrou fraco. Eu rompi com tudo e com todos pelo nosso amor, enquanto ele foi egoísta e cruel na primeira oportunidade. Além de não demonstrar o menor sentimento pela minha dor, passou a me cobrar 155
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feio pelo comportamento dos meus pais. De início fez o maior escândalo, brigou, agrediu verbalmente, acusou de pouca vergonha, barbarizou mesmo com o assunto. Falava coisas absurdas, acusando mais diretamente a minha mãe pelo fato de ter sido dela a iniciativa da separação. Depois se calou num silêncio incomodo. Eu que já estava me cansando de sua ditadura, fiquei mais decepciona, mais apagada. Ele estava começando a destruir aquela riqueza que existia dentro de mim. O cara só exigia, só cobrava, só impunha sua vontade, nunca concordava com nada, nunca oferecia nada. Um “muito obrigado”, sequer não se ouvia dele, um pedido de desculpas, uma demonstração de respeito pela a opinião dos outros, uma palavra de apoio. Parecia um poço sem fundo, e nada preenchia o ego daquele homem, que estava sempre querendo mais e mais atenção. Em nada ele cedia; sua vontade prevalecia sempre, não importava a quem atingia, a quem ele enlouquecia, a quem ele destruía. E naquele episodio ele se revelou totalmente. Mas sua demonstração de egoísmo, de fraqueza, quando da separação de meus pais, foi o início do que viria depois. Dali em diante, a máscara começou a cair rapidamente. Foi só decepção, uma atrás da outra. Foi aí que as nossas DIFERENÇAS começaram a fazer a diferença. Lembro também que quando as decepções começaram a se acumular e eu tentei terminar tudo, quando tentei me livrar dele, foi aí que encontrei o maior dominador da história: um projeto doméstico do ditador Hitler. E por ser assim, ele não aceitou a separação dos meus pais como uma coisa possível de acontecer e ainda passou a me acusar de má procedência. Passou a usar aquilo para me diminuir. Então eu dizia: – Já que você pensa assim, é melhor terminarmos por aqui mesmo, antes que fique mais sério. Ao que ele me respondia: 156
PELA CONTRAMÃO DA VIDA
– Você já quer se comportar como a desavergonhada de sua mãe. Comigo é diferente: sou eu quem manda. Não sou mandado por mulher e mulher minha não se separa. – Não sou sua mulher. Não sou casada com você. Ele ficou calado, e eu tive o silêncio por resposta. Que decepção.
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24 A separação de meus pais separação de meus pais é algo que gostaria A de omitir, porém não posso. Foi um momento muito triste, mas
não devemos falar só das alegrias. Não devemos nos enganar e sim enfrentar e tentar solucionar o que de ruim também vier a acontecer. Foi uma coisa que naquela época me abalou muito, me magoou profundamente, pois jamais pensei passar por aquilo. Jamais imaginei que viesse a acontecer uma separação entre aqueles dois, embora algumas vezes já houvesse notado certa diferença entre eles. Mantinham uma conduta incontestável, mas a gente notava certo desgaste. Percebíamos que era um casamento desgastado. Davam a entender que só se mantinham juntos por respeito à religião. A igreja impõe isto: o casamento é indissolúvel. Mas me pergunto: até onde isso é verdade? Pois em nossos corações quantas vezes isso é diferente? Os sentimentos são outros? Somos humanos e sujeitos a mudança de conduta e opinião, mas às vezes somos obrigados a obedecer a certas regras nem sempre lógicas. E assim estava o relacionamento dos dois: frio e sem graça. Existia uma grande apatia, um grande afastamento, que até hoje não sei bem porque, qual o motivo de viverem daquele jeito. Eles nunca me contaram. 159
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E por todo bom exemplo que eles sempre nos deram, tiveram a dignidade de enfrentar o problema e não esconder o lixo debaixo do tapete. Eles romperam com a igreja, com o preconceito e com um casamento no qual não eram mais felizes. Puseram fim numa coisa que não tinha mais sentido para eles. O que ficamos sabendo depois da separação é que mamãe nunca amara o marido. Gostava dele como se gosta de um irmão, mas amor nunca existiu. Tinha sido um casamento arranjado pelos pais deles. Lá pela década de vinte, a moça não tinha o direito de escolher seu futuro marido. Eram os pais quem determinavam e casavam os filhos com quem bem entendessem. Isto não é uma informação nova, mas cabe citar aqui o porquê de muitas mulheres viverem um casamento errado, sem amor. Por isso, sofriam pelo resto de suas vidas. A mulher que se separava não era bem aceita, principalmente naquela época. Com minha mãe foi diferente, por ser ela uma pessoa decidida e de temperamento forte. Ela pôde tomar a decisão que tomou. Para muitos, o que ela fez foi loucura, falta de pudor; mas para ela, não. Ela tinha seus motivos. Casara-se muito jovem, tivera muitos filhos e uma vida de luta constante. Seus pais impuseram-lhe o casamento muito cedo. Enquanto ela queria estudar, ser professora, eles a obrigaram casar-se. Nunca soube o que era liberdade; fora criada num regime muito rígido. O casamento para ela foi só mais uma regra a ser cumprida. Parece que vivia sempre sufocada, embora cumprisse muito bem o seu papel de mãe zelosa e caprichosa, esposa dedicada e fiel. Mas, enfim, ela tomou uma atitude que parecia desastrosa, e foi. Mas só até certo ponto, pois eles souberam nos criar, nos preparar para enfrentar o mundo de cabeça erguida, com responsabilida160
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de, com limite, mas sem covardia. Papai? Este sim entrou numa tristeza de dar dó, pois ele era apaixonado por ela e parece que o homem fica mais fragilizado nestas horas. Mas, se arruma daqui se arruma dali e fomos tocando o barco. Meu pai e minha mãe realizaram a separação com respeito mútuo, tentando ferir o menos possível a nossa sensibilidade, sem ferir nosso amor de filho, sem diminuir o valor um do outro. Sem desmanchar, sem quebrar o encanto que tínhamos por cada um deles. Conduziram a separação de tal forma, que mais tarde todos ficaram amigos. Ela nos visitava sempre, fato que meu pai não se opunha. Não houve aquela briga horrível que sempre acontece envolvendo justiça, escândalos, ameaças de morte e tudo o mais. Não houve intrigas nem imposições. Resolveram e pronto.
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25 Eu queria ir embora epois da separação, todos ficaram muito D apegados a mim, por ser eu a irmã mais velha e até mesmo por ter
um espírito de liderança mais acentuado. Todos se apoiavam em mim para tudo. Para qualquer assunto, meu pai me consultava me ouvia e aceitava minhas decisões sem discutir. O que eu decidisse estava decidido. Ele era uma pessoa muito pacífica e de poucas decisões; porém era um grande amigo. Um pai zeloso, exemplar e companheiro. Pessoa justa e digna, sempre preocupado em nos dar bom exemplo. Em tudo que ele fazia deixava uma lição de vida. Mesmo quando veio a falecer alguns anos depois, até naquele último minuto ele soube nos dar exemplo. Assim sendo, foi possível aceitar a separação com dignidade e tocar a vida sem cobranças. Não fosse a intransigência de Eduardo, tudo teria sido mais fácil para mim. O que mais me atormentou foi a forma como meu namorado se posicionou dali em diante. Não me deu o menor apoio, nem mesmo fazia mais seus comentários ferinos a respeito. Nada, nem um simples comentário ele fazia, comportando-se com total indiferença. Assim, massacravame pelo silêncio. Estranhei muito e me sentia encurralada. Com os demais, dava para encarar, assumir o assunto. Mas com ele, não; sentia-me acanhada, culpada, envergonhada 163
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de uma atitude que não foi minha, mas que ele me fazia sentir como se fosse. Seu silêncio era como uma bofetada, uma dor que não passava. Era uma tortura que me deixava angustiada e sem saída. Seu silêncio me incomodava mais que qualquer comentário que viesse a fazer. Um dia, não suportando mais a situação, encostei-o na parede e tentei tirar dele alguma definição, o que ficou ainda pior quando ouvi a resposta à minha pergunta. – Por que você nunca mais se manifestou a respeito da separação de meus pais? Parece um estranho, porque age com tanta indiferença assim? – E por que deveria comentar? Não tenho nada com isso, é assunto seu. – Porque somos namorados e pelo que sei pensamos em algo mais sério. Assim o assunto também devia lhe interessar, pelo menos seria o normal. – Você quer mesmo saber a minha opinião? – Claro. – Acho tudo isso uma pouca vergonha. Onde já se viu um casal com tantos filhos e a esta altura da vida se separarem! – Não vejo isso com tanta severidade assim. É lógico que não é muito agradável nem fácil de aceitar, mas aconteceu e ninguém morreu por isso. – É uma grande palhaçada, isso sim. Pouca vergonha, coisa de gente desclassificada. Fiquei chocada com tamanha frieza e preconceito. Não pude mais continuar o assunto. E foi esta a definição temporária que ficou, porque mais tarde ele continuaria usando o assunto para me humilhar e me desrespeitar. Nunca foi capaz ou nunca quis separar as coisas. Por qualquer bobagem, me jogava na cara que eu era filha de pais separados. 164
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Com tanta pressão e me sentindo menos valorizada, não conseguia ficar à vontade. Comecei a arcar a culpa e aos poucos fui definhando, mas ele continuava indiferente ao meu sofrimento. Comecei a duvidar do nosso futuro e tudo ficou muito confuso e eu já não tinha mais por ele o mesmo sentimento Eu tentava erguer e sustentar meu pai e meus irmãos, para não sentirem tanto a separação. Mas ele não me dava suporte, só me tirava. Ele dizia coisas que magoava a mim e aos meus familiares. Percebi que ele era uma pessoa que não admitia um pequeno erro, uma pequena falha das pessoas. Parecia obstinado e sem critérios para avaliar nada. Era 100% bitolado pelas leis militares, não só na vida profissional, mas também na vida pessoal. Parecia uma máquina programada para obedecer e ao mesmo tempo dar ordens. Desiludida e já receosa, só me restava tomar uma decisão e tomei, melhor tentei. Antes de conhecer Eduardo, enquanto noiva de Marcos, eu e minha família tínhamos planos de nos mudarmos para Brasília. Sendo meu pai funcionário público federal, esta transferência lhe era facultativa. Era uma idéia antiga. Mas, como o casamento não aconteceu, e com tantos outros acontecimentos, ela foi ficando meio esquecida. Então, com este novo fato e que deixou nosso namoro abalado e estagnado, não se falava em casamento ou algo que me aliviasse a insegurança, achei por bem ir embora para longe. Achei que indo embora pudesse amenizar um pouco o complexo que ele estava sentindo por namorar uma moça filha de pais separados. Talvez eu indo embora para longe ele se sentisse mais à vontade e, com o namoro de longe, com a saudade, as coisas pudessem andar novamente. Voltei a me apegar então à chance que tinha com meu pai, para irmos embora, pois não queria ficar parada no tempo; tinha uma vida para viver. Só uma coisa pesava horrivelmente nesta decisão: ele. Era Eduardo novamente. 165
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Como veria mais esta mudança? Como se comportaria? Seria o fim de nosso namoro? Pelo visto ele não era chegado a mudanças; era travado e apegado a tudo de que se tornasse dono. Nos seus aposentos, por exemplo, guardava todo tipo de inutilidade, desde caixas, sacos, sacolas, latas, garrafas vazias, roupas e sapatos velhos que jamais seriam usados novamente, mas ele as guardava como relíquias valiosas. Quando tentei falar com ele a respeito de meus planos de ir embora, a conversa não rendeu mais que uns minutos. Ele se mostrou resistente e não quis sequer comentar o assunto. Isto me atormentou muito, mas decidi seguir com meus objetivos e ver no que ia dar. Estava me sentindo sufocada e havia indícios de que ele me escravizaria se não tomasse uma atitude. Conversei com meu pai e ele concordou que eu encaminhasse o pedido de transferência dele imediatamente. Era meu desejo. Ele concordava, pois além do mais já havia lhe falado de meus planos quando ali chegasse. Queria voltar a estudar, trabalhar, ter melhor qualidade de vida. Também via a possibilidade de apagar um pouco de nossa memória o caso da separação, pois aqui estava sendo impossível levar uma vida normal, por causa das cobranças de Eduardo. Então papai me disse: – Minha filha, se for para o bem de vocês, eu também me sentirei bem. Faça tudo como achar melhor, mas com uma condição. – Qual? – Que você mesma resolva tudo. Faça o que for necessário e nós iremos. Só não tenho paciência de lidar com a papelada da transferência que é um horror. – Está bem, papai. Aceito sua condição. Dei início àquela tarefa que não foi fácil. Dependíamos dos correios, de viagens e um vai e vem sem fim, mas valia a pena pelo tanto que eu queria ir. 166
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Tudo finalizado e com a transferência de papai já publicada, foi uma grande alegria e uma vitória, pois eu fizera tudo sozinha e calada, já que não tinha com quem dividir nada. Certo dia, papai chegou do trabalho e trazia a notícia de que já estava de aviso para se apresentar no novo local de trabalho. Foi uma festa! Todos queriam ir. – Tem certeza, papai, que tudo já foi resolvido? Mal posso acreditar. – Tudo resolvido, minha filha. Apresentar-me-ei lá na próxima semana. Por enquanto, vocês ficam: irei na frente, para ver moradia e acertar mais algumas coisas; depois virei buscá-los. Ficamos radiantes, pois todos queriam aquela mudança geográfica e emocional. Passei o dia pensando e fazendo planos. Queria esquecer um pouco os desacertos e recomeçar do zero. A situação do namoro ia se inverter. Antes era Marcos que vinha; agora seria Eduardo que iria. À noite, ao encontrar Eduardo, estava ansiosa para lhe contar da nossa alegria e torcendo para que ele dissesse sim. Um sim, pelo menos. Concordar sem me magoar, ver o lado bom da coisa. Com o coração aos pulos, não via a hora de encontrá-lo para dividir com ele minha alegria. À noite, quando chegou para me buscar, eu transpirava de alegria e ele notou. Com muito custo fiz com que ele entrasse em casa pra podermos conversar melhor. – Meu Deus, que euforia é esta? – perguntou ele. – Estou muito feliz mesmo e louca para te contar. Vamos sentar, quero te falar. Ele, com cara de dúvida, entrou e se sentou. Ainda bem que sentamos antes, pois do contrário eu teria caído, pelo choque que levei com a reação dele. – E aí, do que se trata? – perguntou ele. 167
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– O pedido de transferência de meu pai foi aceito. Está tudo pronto, logo podemos ir. Semana que vem ele irá se apresentar e cuidar para vir nos buscar depois. Ele ficou mudo e com cara de monstro. Já me apavorei esperando o que viria, mas arrisquei e perguntei. – Você concorda, não? Ele levantou-se, andou de um lado para o outro e, ofegante, disse: – Não! Você não vai! – Como não vou? Ficou maluco? Eu preciso ir. E depois você irá também, se quiser. Não tem nada que te prenda aqui. Além de tudo, papai só concordou com isso por que eu pedi. Porque eu quero ir. – Eu te avisei antes. Não irei e se você for não espere por minha visita e nem precisa vir aqui, não estarei à sua espera. – Mas, Eduardo, é por pouco tempo. Você pode pedir sua transferência para lá também. – Não! – berrou. – E se você for, terminamos tudo agora mesmo. Senti o mundo inteiro desabar sobre mim e tentei argumentar. – Tem meu pai, que agora está sozinho e fez isso por mim, porque eu queria. Como posso desapontá-lo assim? Já pensou no que está me pedindo? – Já. Mas te preveni antes que não aceitaria. – Será melhor para todos nós, Eduardo. Não tenho mais nada para fazer aqui. – E nós, não conta? – Não tem nada a ver. Será por poucos dias, você pedirá sua transferência também. É uma cidade melhor, oferece mais chance de crescimento. – Não irei. Não perca seu tempo insistindo. – Você está sendo egoísta. Não pensa em mais ninguém além de você? Que tipo de educação você teve, Eduardo? 168
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– Que tipo de educação eu tive não lhe interessa. Não vou e basta. E se você for... – terminou a frase em tom ameaçador. Como de costume, ele não ouvia ninguém. Deu a conversa por encerrada, dirigiu-se à porta e disse: – Depois a gente se vê. Hoje você estragou este momento, estragou tudo. Saiu feito um louco e deixou-me falando sozinha. Ele jamais dialogava: sempre tinha razão e pronto, era um ditador nojento. Eu estraguei o momento? Que pessoa mais estranha. A essa altura dos acontecimentos, eu já andava bastante sensível e chorava à toa. Foi só o que pude fazer naquele momento: chorar. Por outro lado, pensava: “Ele mudará de ideia, ele se acostumará e verá as coisas com outros olhos. Isto foi só uma reação explosiva. Sei que entenderá que nada vai mudar entre nós, que é apenas uma mudança de endereço”. Minha família nada tinha a ver com a invenção da mudança. No momento, era coisa minha. E agora, como poderia abandonálos? Deixá-los partir? Não fora deles a idéia. E tampouco estavam preparados para irem sozinhos. Eles precisavam de mim mais do que antes e se eu não fosse seria um transtorno. Não tinham mais a mãe, eu não podia deixá-los. Como se arranjariam numa cidade estranha? E assim, fui catalogando mil justificativas, na esperança que uma delas ele aceitasse. Pensando assim, uma pequena esperança brotou dentro de mim. Agora só me restava esperar e contar com um pouco de sensibilidade da parte dele, se é que ele tinha alguma. Se é que sabia o que era família. Contava também com nosso amor, jurado e sacramentado. Contava que, por ele, as coisas se acalmariam. Apegava-me a qualquer esperança. 169
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Mas nada disso passou da imaginação para a realidade. Nos nossos encontros seguintes, não permitia sequer que eu falasse sobre o assunto. Não queria nem ouvir. E então, meu pai partiu para se apresentar. Eu fiquei e comecei a arrumar as coisas. Passei quinze dias em mais terrível agonia, na maior confusão mental. Eduardo não cedia e eu não achava um meio de desatar aquele nó. Estava sozinha, arrasada e magoada. De quem mais esperava ajuda e apoio, foi quem mais uma vez se negou. Foi grosseiro e incompreensível. E agora, com quem contar? Falaria mais alto a razão ou o coração? Só o tempo se encarregaria de dizer. Eu não podia mais recuar, tinha um compromisso muito sério com meu pai. Portanto, fui embalando muitos de nossos objetos. Fui embalando em caixas e arrumando aos poucos. Estava quase tudo pronto, só esperava papai voltar e Eduardo dar sinal de consentimento. Pedia a Deus a cada hora para que ele pudesse aceitar e não estragar nossos planos. Ele ficou sabendo que eu estava a arrumar as coisas e mais estúpido ficou. Travamos outra briga, mas nada foi resolvido. Tudo ficou como ele queria. – NÃO! E confesso que até hoje, que em todo esse tempo de convivência, foram raras as vezes que ouvi um SIM da parte dele. Quando papai voltou, vinha feliz. Feliz como há tempos não se via. Chegou e abraçou a todos. Mais tarde e em clima de suspense, ele nos contou tudo e também me entregou a chave do apartamento. Doeu por dentro. A segunda chave que eu recebia e que não ia poder usar. 170
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E por causa de quem? Ao me entregar a chave, papai me disse: – Este é seu troféu, lutou muito por ele. Você merece. É uma garota de fibra. Aí doeu mais ainda. De fibra?! Pensei: e ele, como a ler meus pensamentos, completou. – É sim, até eu já estou bem convencido de que você fez a coisa certa. Gostei muito da cidade, que tem mais vida, mais alegria e um bom campo de trabalho. – Eu não lhe disse papai, que o senhor ia gostar? – É, minha filha, gostei mesmo e o melhor é que temos direito a muitas outras coisas. – Sério? Como o quê, por exemplo? – Temos direito à moradia, transporte, escola, tratamento odonto e hospitalar; enfim, muitas vantagens que não temos aqui. – É? Que maravilha. É bem localizado o apartamento? – Sim. Bem localizado. Felizmente temos leis que amparam bem os brasileiros e um presidente que respeita as mesmas. (Só para lembrar, tínhamos na época um presidente militar.) Todos os meus colegas de trabalho que lá estão morando vivem bem instalados. Pude verificar este fato. Todos moram bem e são tratados com dignidade. – Fico feliz, papai, que o senhor tenha voltado tão bem impressionado. – Agora vamos levando a mudança aos poucos. Irei à frente e vocês ficam, enquanto não termina este semestre. Faltam poucos dias. Depois virei buscá-los e levaremos todos os documentos para a matrícula escolar. Os colégios são bonitos; creio que vão gostar. – Está bem, papai. Está bem. Já até comecei a embalar parte das coisas. Naquele momento, meu pai não notou minha angústia. Eu também não lhe disse nada do que estava passando. Tinha esperan171
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ças que tudo daria certo na última hora e não seria preciso contar nada para ele. Tínhamos passado por um mau momento, mas agora estava envolvido com a mudança e eu não queria apagar dele aquela doce alegria. Papai voltou para seu novo endereço, mas eu ainda tinha que ficar por causa das aulas. E, enquanto isso, eu continuava na esperança. Mera esperança. Não via em Eduardo nada que me animasse. Pelo contrário, só havia um grande silêncio entre nós dois. No final da última semana de prazo, papai veio para nos buscar. Dá para imaginar o desenrolar dos fatos? Agüentei, segurei e enrolei, até quando não deu mais. Então chamei meu pai para uma conversa e entreguei o pescoço à forca. – Papai, precisamos conversar. Sei que não vai ser fácil, porém temos que tentar. Antes de começar a falar, as lágrimas me traíam, desciam pelo meu rosto já tão cansado. – É tão sério assim, para você estar chorando? Aconteceu algo entre você e o Eduardo, algo que não devia? É gravidez? Se for, trate de se acalmar e vamos conversar. – Papai – disse eu espantada. – Minha filha, quem tem filhos, deve estar preparado para tudo. Era bem do feitio dele essas tiradas, pois, apesar de ser uma pessoa simples era um pai inteligente, amigo e que sabia das coisas. – Não, não é isso, papai. Acho que até preferia que fosse, pois creio que lhe decepcionaria menos. Uma gravidez não me deixaria tão dividida como estou agora. – Por Deus, para de me afligir, conte logo. – É que não posso... – Não pode o quê, Celeste? 172
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– Não posso mais ir embora com vocês. – Por que, Santo Deus? – Por causa de Eduardo. Ele não quer que eu vá. Fala em terminar tudo se eu for. Não quero perdê-lo, papai. Decidi por ficar e sempre que puder irei lá para vê-los, organizar a casa, dar apoio. Ficarei assim até que alguma coisa mude. Pode ser que ele resolva ir para lá também. Quem ficou parado desta vez foi meu pai. Parado e sem resposta. Meus irmãos nem se fala, de como indignados ficaram. – Que este moço está pensando? Será que manda em você a esse ponto? Ele não tem o direito de interferir em decisões tão particulares: é apenas seu namorado e não sei se passará disso. – Não é apenas meu namorado; ele é a pessoa que eu amo, embora tenha um temperamento difícil é com ele que estou envolvida. – Temperamento difícil? Chama isso de difícil? Para mim tem outro nome. Doente! – Ele tem personalidade forte. – É. Já vi tudo – disse Mateus, injuriado. A discussão não foi fácil, até que papai falou alguma coisa e nos fez parar. Na data prevista, fizemos a mudança. Acompanhei-os e deixei-os instalados na nova moradia, que era bonita e confortável. Mas para mim foi mais uma separação doída. Despedimo-nos com grande tristeza e desolação. Eles ficaram inconformados, mas parti de volta deixando a promessa de que não os abandonaria. Estaria sempre por lá e que eles jamais ficariam sozinhos. Prometi e cumpri. Ia sempre por lá, protegendo e confortando-os, enquanto Eduardo se mordia de ciúmes e reclamava o tempo todo de minhas idas. Depois que eles foram embora, continuei morando aqui, mas sem alegria. Ainda tinha meu trabalho, pois não havia pedido 173
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demissão. Ainda contava pelo menos com o trabalho, para não me sentir tão desolada. Entre Eduardo e eu alguma coisa se rompeu, se quebrou. Era muito grande o ponto negativo. Perdi parte do carinho que tinha por ele. Nossas vidas ficaram marcadas por mais esse fato e eu não conseguia esquecer sua frieza. Não entendia como podia ser tão insensível. Para ele, era uma simples birra. Uma forma de testar sua autoridade sobre mim e mais uma vez ele venceu. Depois que minha família foi embora, aí ele voltou a me tratar melhor. Tratava-me muito bem, com toda a atenção. Estava mais ousado, pois agora mais do que nunca ERA SÓ EU E ELE. Mais uma vez sua vontade prevaleceu e com isso estava se achando o dono da situação. Tornou-se gentil e carinhoso novamente, do jeito dele, é claro, mas vá lá, só que a sementinha da mágoa ficou plantada em meu coração e dava sinais de que ia crescer. Aquela situação me deixava totalmente intranquila, não podia entendê-lo. Sabia do meu apego com minha família, sabia do meu sofrimento por não estar perto deles. Sabia da minha culpa nesta história deles terem ido embora e fingia não ver nada. Percebia que ele se sentia até muito bem pelo fato de eu ter ficado só. Tudo aquilo estava me deixando enojada, mas eu o amava e começava a lutar para fazer dele uma pessoa mais humanitária. Quanto tempo se gasta para mudar alguém? Se é que isso é possível. Quantos anos eu ainda poderia perder naquele projeto? De certa forma, aliei-me a ele para estudá-lo melhor. Fui calando novamente, aceitando suas imposições. Ele foi tomando terreno, tomando espaço e mais espaço, até que começou a implicar com minhas idas a Brasília. Só que aí ele se deu mal. Continuei indo, não dei ouvidos às suas proibições. Ia e voltava rápido. Era só o tempo de ver como eles estavam. Fazer algumas compras, ver escola etc. 174
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Graças a Deus, estavam sempre bem por lá. Tudo na mais perfeita ordem. Com o tempo, eles foram se arrumando, de maneira que minhas idas já não eram tão urgentes como no início. Dois dos meus irmãos já estavam trabalhando e os outros só estudavam e cuidavam da casa, pois eram menores de idade. Papai tinha feito bons amigos e entre as mulheres deles algumas faziam o papel de mãe postiça. Nas amizades que meu pai fez, tinha algumas pretendentes a casamento. Mas ele não queria; dizia ter medo que os filhos não se entendessem com a madrasta. Preferia ficar só mesmo. Mas, seis anos após a separação, ele se casou novamente. Na verdade, nós, os filhos, é que insistimos para ele se casar, porque estava ficando muito só. Todos já estavam bem encaminhados, seguindo suas próprias vidas. Não era justo que ele vivesse na solidão.
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26 Perdi meu emprego e abri uma boutique inha ficado, respeitando a vontade de EduarT do, mas as coisas entre ele e eu não andavam como era de se esperar.
Tinha meu namorado, meu trabalho, meus sonhos, porém tudo agora tinha um sabor de dúvida e inquietação. Estava decepcionada e com uma sensação de abandono, sem minha mãe, sem minha família e com Eduardo a me por cabresto. Era uma onda de mudanças que eu não estava conseguindo administrar, mas toquei pra frente. Ele, cada vez mais, demonstrava ser uma pessoa egoísta e com grande complexo de rejeição. Depois da separação de meus pais e da vitória sobre o fato de eu não ter ido embora, andava querendo se mostrar muito mais superior; e as cobranças só aumentavam. Mas, pelo menos no trabalho, as coisas iam bem, ou melhor, eu pensava que iam. Até que um dia recebi chamado ao gabinete do senhor Prefeito. Ele queria me ver... Já era de costume esses chamados ao gabinete para uma reunião ou acerto de alguma tarefa. Aquele chamado não me causou surpresa, mas, ao entrar no recinto, senti um clima. Fiquei quieta, esperei, esperei, pois o digníssimo estava ocupado, despachando. Quando ele levantou a cabeça e me dirigiu um bom-dia, aproveitei e perguntei: 177
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– Não vem mais ninguém para a reunião? – Não, Celeste. E não é reunião. – Bem, pensei... – É que estou fazendo algumas reformas na secretaria de educação e queria lhe falar sobre isso – disse ele sem me olhar de frente. – Já tinha ouvido falar alguma coisa a respeito. Fico feliz, está mesmo precisando. – Pois é. E como seu cargo é de confiança, gostaria que colocasse o mesmo à disposição, por mera formalidade. Entre outras coisas, estou pensando em mudança de função. Efetivação de cargo, para ficar tudo legalizado. Você deve fazer esse pedido por escrito. – Acho justo, tudo bem. Ele me entregou o pedido já pronto, só para eu ler e assinar. Li e não vi nada de anormal mediante suas justificativas; assinei e devolvi a ele o papel. – Era só isso, então? – Só. Obrigado. – Aguardarei segunda ordem. Pedi licença e voltei ao trabalho. Saí da sala e meu sexto sentido parece que queria me avisar alguma coisa, pois achei o Prefeito com cara de poucos amigos. Mas assinando ou não, não fazia diferença. Ele poderia me mandar embora quando bem entendesse. Mas por que me mandaria embora? Estava tudo bem e eu desempenhava minhas atribuições de forma exemplar, me achava até um pouco “Caxias”. E com a certeza de que cumpria bem o meu dever, continuei trabalhando. Alguns dias se passaram e nada me foi comunicado. Certo dia, perguntei ao secretário se tinha alguma correspondência para mim da parte do senhor Prefeito. Disse-me que não tinha. Marquei então uma hora e fui falar com ele novamente. Notei que ficou embaraçado ao ver-me. 178
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Lembrei-me que já tinha ouvido algumas fofoquinhas de uns colegas mais faladores. Já estava um pouco de sobreaviso, mas não esperava que fosse o que me aconteceu. Sentei-me e aguardei, enquanto ele assinava mais alguns papéis. Depois ele levantou a vista, dirigiu-se a mim e disse: – Bem, Celeste, seu pedido foi aceito e em caráter irrevogável. Tem coisas que você ouve, mas não entende, não é? – Desculpe-me, senhor Adilson, mas não entendi. – É isso mesmo que você ouviu. Você foi despedida, não trabalha mais aqui e suas contas estão sendo providenciadas. – Mas, Sr. Adilson posso saber por quê? – Pode, sim. É que não acho justo que, trabalhando conosco, você apóie politicamente candidatos de outros partidos; era seu dever estar do nosso lado. – Mas como? Não sou política. Não tenho influência política, não sou ninguém neste setor. Se alguma vez manifestei minha simpatia por alguém, foi coisa muito simples. Creio que minha expressão não teve peso algum, não teve a mínima importância. Faço meu trabalho com esmero e dedicação. Por que isso então? – Não estou pondo em dúvida sua competência no trabalho. Sei que você é uma boa funcionária e merece meu respeito. – Então, pela lógica, isto não deveria estar acontecendo. Despede assim um funcionário, só por simples capricho político? – Não quero discutir meus caprichos. De qualquer forma, esta é minha última palavra. – Se é que o senhor tem palavra, não é senhor Prefeito? Pois não foi isso que ouvi há três dias, quando aqui estive. Ele ficou lívido, mas não respondeu. Baixou a cabeça e continuou escrevendo. Talvez bolando mais “um plano de estratégia” ou mais uma “brilhante ideia”. Meu sangue quente e meu ódio pela injustiça me fizeram reagir de maneira agressiva. 179
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Era muito jovem ainda, mas a retidão, a moral, a lisura, a transparência de atitudes, o cumprimento de uma palavra dada eram coisas primordiais para mim. Olhei para ele e de repente ele se tornara, a meu ver, uma figura ridícula e de pouca importância. Antes de me retirar de seu gabinete, ainda lhe disse: – Talvez o senhor esteja me prestando um grande favor, pois com este empreguinho aqui não se vai muito longe. Tenho outros ideais. Melhor que ficar a mercê de favor político. Não vou me deixar abater com isso. Sei trabalhar e o senhor terá notícias minhas. Faça bom proveito do seu emprego e até nunca mais! Saí sem recolher os meus pertences. Fui para casa, profundamente aborrecida e magoada. Mandei recado para Eduardo que àquela noite não podia vê-lo. No dia seguinte, retornei à Prefeitura para pegar meus objetos pessoais e me despedir de alguns colegas. É espantoso como os políticos, na sua maioria, são capazes de atitudes pequenas e indignas. Mas aquela atitude pequena me inspiraria grandes idéias e uma delas me fez acontecer profissionalmente falando. Desempregada, ficava difícil me manter. Recorri ao meu pai até decidir o que fazer. Mas aqui não via muito no que me apegar. Algo assim que me despertasse o interesse. Aí veio novamente a ideia de ir embora, mas como levantar o assunto outra vez? Tentei colocar a cabeça no lugar e me arranjar sem ir embora, pois até já estava acostumada com a situação e os outros também não reclamavam muito a minha falta. Cada um estava se encaixando em alguma coisa. Eles não queriam me atrapalhar, respeitavam a minha decisão de ter ficado. No íntimo, alguma coisa me dizia que eu ia encontrar uma saída para a questão do trabalho, e encontrei. Depois de muito procurar, de muito penar, encontrei. 180
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Um dia entro numa loja para pagar uma continha que tinha ficado para trás, devido à perda de meu emprego. Era uma loja mista, uma espécie de tem-de-tudo. Era armazém, loja de tecidos, armarinho. Tinha também roupas feitas, calçados, foices, machados, enxadas, panelas, vassouras, sombrinhas e até frutas lá eles vendiam. Era um ambiente no mínimo exótico, digamos assim. Enquanto eu estava na loja, chegou uma jovem senhora à procura de um vestido; uma roupa mais “fina” para ir a um casamento. O dono da loja muito triste ficou por não ter a mercadoria em questão. Disse para a cliente que no mês seguinte trariam muitos vestidos bonitos e mais alguma coisa ele prometeu para se justificar e convencê-la a voltar depois. Continuou falando e gesticulando como um comerciante turco, que não quer perder a venda e vende até gato por lebre. Assim agitado ele se foi para atender a outras freguesas que entravam na loja, pois era de bom movimento seu estabelecimento comercial, fato justificado pelo repentino crescimento da cidade em consequência da grande migração de pessoas oriundas do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e até de São Paulo. Houve uma grande corrida para essa região na década de 70. Enquanto o rapaz do caixa procurava minha conta num velho livro de capa preta, grosso, encardido e meio ensebado (engraçado, mas era um livro em que se anotavam as contas), fiquei observando. Pude ver que o comércio de nossa cidade era muito deficiente. E constatei também que a maioria dos comerciantes e comerciários era do sexo masculino, caracterizando assim a falta de uma loja direcionada para atender o público feminino. Vi logo que eles estavam aquém de atender a demanda que se anunciava. Em poucos meses a cidade parecia um formigueiro, coisa semelhante a garimpo. E analisado aquela cena, imediatamente tenho uma ideia e saio da loja a pensar. 181
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estalo.
Enquanto pensava, de repente uma luz se acendeu. Veio num
Meu Deus! Aqui está minha grande chance. Minha grande oportunidade. Como não pensei nisso antes? Saio pelas ruas quase correndo e vou procurar Eduardo para lhe contar o que havia descoberto e também da minha pretensão. Não o encontrei, estava para o campo. Deixei recado para ele me procurar urgentemente, precisava lhe falar. Ele chegou a minha casa umas cinco horas depois. Sequer havia tomado banho nem trocado de roupa. Ainda estava fardado e empoeirado, pois lhe haviam dito que era urgente o meu chamado. Enquanto eu o esperava foi tempo suficiente para formar grande parte de meu projeto. Projeto de um novo e rentável trabalho. Já estava apaixonada pela ideia. Estava febril por aquele novo sonho e não entendia por que não havia percebido tudo aquilo antes. Quando Eduardo entrou, pulei no seu pescoço e disse-lhe: – Achei! Achei! – Achou o quê? Acertou na loteria? – Achei meu ponto de partida. Meu novo trabalho, minha grande chance, dessas que só acontecem uma vez na vida. – De que chance você está falando? – Quero ser comerciante. Vou abrir uma BOUTIQUE aqui. – Uma boutique aqui? Não acha que está sonhando muito alto? – Que sonhando alto que nada. Já estou é atrasada. – Aqui não tem campo para isso. – Só tem meu amor. Só tem. Até fico com raiva só de pensar que não vi isso antes. Precisei ser despedida de um emprego que não me rendia muito financeiramente falando, só para descobrir esta grande chance. Contei-lhe como tudo aconteceu, como descobri o grande espaço aberto no comércio. Falei de como eu via aquela oportunidade. 182
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– A cidade já tem muitos jovens, muita gente vindo de fora. Eventos que não se tinha antes agora acontecem aqui. Toda aquela migração, que foi uma verdadeira avalanche humana, era devido à conclusão da nova estrada, um trecho de 620 km da BR-020; trecho este que liga Brasília ao Nordeste. Esse fato foi de suma importância para o posterior desenvolvimento agrícola dessa região, além é claro de grandes áreas de terras devolutas, abandonadas e improdutivas que existiam no sul da Bahia. Eram terras praticamente sem donos e sem valor. Mas com a conclusão da estrada os fatos mudaram. Pequenos posseiros que moravam nas veredas, e tinham qualquer espécie de documento de uma área grande ou pequena, começaram a vender suas propriedades por preço de banana, a notícia se espalhou rapidamente e aparecia gente de todo lado querendo comprar terras, atraindo, assim, um considerável contingente de plantadores de soja e outras atividades. Então, estrada nova, muita terra e por preço irrisório, água boa em abundância nos gerais da Bahia, clima bom e chuvas regulares, região atrasada e custo de vida barato, era sem dúvida um quadro favorável a tudo aquilo que estava acontecendo. Continuei expondo meu ponto de vista e de forma apaixonada. – Aqui então está se tornando o paraíso da especulação, com certeza essa corrida ao ouro não vai parar tão cedo. Ele me ouvia com atenção e desta vez sem dizer NÃO. Mais tarde comemoramos felizes nosso novo plano e que seria de imediato colocado em prática, não fosse o principal elemento deste projeto: o dinheiro. Eduardo tinha algumas economias, mas nada expressivo para tamanha ousadia. Porém, quando se tem vontade, o resto fica mais fácil. Nesta causa e unicamente nesta, ele me disse sim, ele me deu total apoio, pois via nela a chance da minha aceitação definitiva de ficar aqui. A estabilidade dele aqui era uma coisa pendente, havia a certeza de que terminando as obras da estrada (BR-020), eles seriam 183
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transferidos para outras frentes de trabalho, pois ele pertencia a um Batalhão de Engenharia e Construção. Falamos também sobre este fato, ao que ele me respondeu não haver problemas, pois tinha a chance de ficar trabalhando por perto e residindo aqui. Pelo jeito gostava muito deste lugar. Ele não dizia, mas demonstrava querer firmar raízes por estas terras. Mediante seu apoio, dei início à documentação para abrir uma firma. Aluguei o ponto, escolhi o nome. Encomendei os móveis, tudo coisa simples. O dinheiro era muito pouco, não dava para grandes luxos. Tentei ser bastante criativa e fazer uma coisa bonita e aconchegante. Diferente dos demais já existentes. Era para ser algo diferente e de bom gosto. Mas, e o dinheiro? Tomei as primeiras providencias confiante de que o dinheiro seria conseguido. Eduardo, que era apaixonado pela pecuária, apesar de ser militar, dizia que gostava muito da criação de gado, pois passara boa parte de sua infância em fazendas. Aqui, os poucos amigos que ele tinha eram fazendeiros e com eles efetuara pequenos negócios na compra de gado. Ele comprava uma rês aqui e outra ali e fazia o seguinte: comprava e já combinava com o dono para que o animal ficasse nas pastagens do mesmo, até que juntasse uma boa quantidade e pudesse vender; o que eles aceitavam mediante o pagamento do que os animais consumissem de pasto. E assim conseguia formar pequenos rebanhos, os quais ele vendia depois obtendo um bom lucro. Os pequenos fazendeiros concordavam com as condições que ele impunha, porque às vezes queriam vender só uma ou duas cabeças, não tinham grandes rebanhos nem Eduardo poderia comprar muito, pois ganhava pouco também. Mas como era extremamente econômico e podia comprar de pouco em pouco ia juntando. Comprava e anotava tudo; tinha um controle no livro de registro, data da compra, valor pago e em qual fazenda ou sitio ele havia deixado o animal. 184
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Daí, pela história da boutique, ele foi conferir e viu que já tinha uma boa quantidade de gado, coisa assim para vender um caminhão fechado. E juntando com as economias do banco ficamos alegres, já dava para começar. Eduardo vendeu o gado, juntou com o dinheiro do banco e quase todo o salário do último mês, depositou na minha conta e me entregou o recibo bancário e disse: – Espero que com isso ajude a reparar o mal que te fiz, separando-te da tua família contra tua vontade. Mas é que te amo demais e não saberia viver longe de ti. Não te prometi nada de concreto até agora, porque sei que tudo se resolverá. Vamos “juntar” nossas forças e trabalhar. Você não quer ficar sem o seu trabalho; se gosta de trabalhar, então vamos à luta. – É verdade, realmente dou muita importância ao trabalho. Pelo fato de ser eu uma pessoa inquieta e cheia de idéias não conseguiria ficar parada. – Terá todo meu apoio. Mediante tamanha demonstração de solidez, de serenidade e raciocínio lógico, renasceu por ele uma onda de carinho e admiração, o que me fez esquecer aquela mágoa que estava escondida desde que meu pai se mudara para Brasília. Cheios de novos planos e sonhos, voltamos a nos ver com bons olhos e recomeçamos a nossa vida. Só não imaginava eu que aquele recibo era para ele como se estivesse me comprando. Ele me cobraria aquele valor muitas dezenas de vez. Ao longo de quinze anos fiz aquele dinheiro render mil, duas mil, dez mil vezes. Nem sei quantas vezes ele se multiplicou em minhas mãos, mas para ele, Eduardo, tudo era sempre pouco. (Explicarei isso mais adiante.) Então de posse do recibo que representava o capital inicial, arranjei os últimos retoques e me preparei para a primeira viagem rumo a São Paulo. 185
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Conhecer São Paulo foi uma experiência maravilhosa. Foi uma grande emoção. Quando lá chegamos, o ônibus rodou por muito tempo, até chegarmos à rodoviária. Enquanto percorríamos as ruas e avenidas, me encantava com seu tamanho e magnitude. Tive medo, pois sabia dos riscos que estaria correndo me aventurando por uma cidade tão grande, sem conhecer nada e sem a menor experiência para o que eu pretendia fazer. Só contava com minha intuição, meu senso crítico e a grande vontade de vencer. Aquela viagem foi melindrosa, arriscada mesmo. Não sabia onde comprar sem correr o risco de ser enrolada. Então usei a tática da paciência. Fiquei dois dias só andando pelo comércio, pela cidade. Fui conhecendo um pouquinho daquela imensidão e quando algo me interessava anotava o endereço para voltar mais tarde. No hotel conversava com outras comerciantes que também estavam ali pelo mesmo motivo que eu. Elas já bem experientes me ajudaram bastante, deram dicas muito importantes, como por exemplo: onde comprar mais barato e com boa qualidade, onde não comprar, como se comportar mediante certas situações na rua, como tomar táxi, etc. Colhi informações e no terceiro dia saí bem cedo e fui às compras. Tomei um táxi e segui para o Brás. Desci na Rua Silva Teles esquina com a Mendes Jr., subi ruas, desci ruas, até que entrei numa loja. Desconfiada, olhei muito, mas não comprei nada. Mais uma vez saí e andei até me decidi onde e o quê comprar. Quando comecei não queria mais parar. Comprava, comprava. Enchia sacolas e mais sacolas. Por vezes me juntava a grupos de mulheres e íamos pra lojas mais distantes. Enfim foi uma loucura só, uma sensação indescritível, que eu nem via o tempo passar. Era tanta coisa que queria trazer. Tanta roupa bonita, bijuterias finas, calçados, cintos, bolsas, perfumes, meias e um mundo sem fim de adereços que toda mulher gosta. Só saí das lojas quando era quase noite e me avisaram que iam fechar. 186
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À noite, no hotel, não consegui nem dormir, tão agitada estava com o movimento do dia. Mas, na manhã seguinte, saí, cada vez mais confiante, para as compras. Comprei, comprei e fiquei até o terceiro dia comprando. O dinheiro já estava no fim e, então, parei e me organizei para voltar. Foi com pena que deixei aquela atividade tão gostosa, mas tinha que voltar para vender, refazer o capital e sentir o efeito. Entre ida e volta tinha gasto oito dias. Como não tínhamos telefone ainda, fiquei sem comunicação. Quando cheguei, Eduardo estava em pânico pensando que eu havia me perdido por lá e que não voltaria mais. Mas voltei e abri minha tão sonhada boutique. Só deixei Eduardo ver quando terminei de organizar tudo e, antes de abrir ao público, levei-o para ver. Ele tomou um susto, ficou impressionado como eu havia conseguido, sozinha, realizar tamanha proeza e com tão pouco dinheiro. Logo nos primeiros dias, foi um sucesso, pois antes de viajar tinha colocado faixas e cartazes anunciando da abertura da mesma quando eu retornasse de São Paulo. Atrasou uns dias, mas abrimos mais ou menos na data anunciada. Todos corriam para lá pra ver e comprar. Foi uma festa. Vendi tudo muito rápido. As mulheres se maravilhavam com a novidade. Logo acabou o estoque, foi um sopro. E lá vou eu novamente para São Paulo. Só que dessa vez já mais segura e sabendo o que eu realmente devia comprar. Quando voltei com a segunda remessa, tudo foi vendido rapidamente como da primeira. E o mesmo aconteceu com a terceira, a quarta, a quinta e assim por diante. Meu capital foi crescendo e não parava mais. Fui ficando mais experiente e, por conseqüência, fazia melhor meu trabalho. Passei a comprar também em Itaim Bibi, porque lá eu encontrava um produto diferenciado. Roupas mais caras, luxo e até algumas grifes ousava comprar apostando num objetivo. 187
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Com o tempo só fui melhorando e a fama se espalhou rapidamente até pelas cidades vizinhas, de onde vinham várias clientes. Com isso eu me sentia muito privilegiada. Tudo funcionava em rítmo de crescimento acelerado. Aconteciam muitos bailes, festas de formaturas, casamentos e batizados. Minha boutique atendia muito bem a clientela femenina que era o meu alvo principal. Esses eventos eram verdadeiros desfiles de moda. Cada uma queria estar mais bonita. Mais bem vestida. Era uma disputa silenciosa, mas nós sabíamos que ela existia. Por consequência desse sucesso público, começamos Eduardo e eu a participar dos eventos sociais, pois ele até já se mostrava mais amigo, entusiasmado com o crescimento do meu trabalho. E, afinal de contas, era o jeito mais original de divulgar o produto que eu vendia. Como representante da mais nova criação da cidade, eu tinha por obrigação aparecer sempre muito bem vestida nessas ocasiões, como também no dia a dia. É claro que tinha o cuidado de escolher a roupa certa para cada ocasião. Figurava como modelo, sempre ostentando peças bonitas e de boa qualidade para dar bom exemplo, o que me foi de grande proveito, pois, aos olhos da ala feminina, nada passava despercebido e todas queriam me acompanhar. Sem falar que o povo dessa pequena cidade tem muito bom gosto para se vestir. O tempo passava e o trabalho rendia bem. A clientela foi se formando e crescendo. Em bem pouco tempo tinha nos meus arquivos uma preciosa lista de clientes ou uma lista de clientes preciosos. O povo do Sul continuava a chegar e na sua maioria eram grandes plantadores de soja e que fizeram a diferença no que se refere ao crescimento da cidade e da região que antes era muito pobre. Era um povo destemido e desbravador. Povo de uma cultura que pensa grande e realiza muito. E rapidamente transformaram a região de terras arenosas da Bahia em grandes fazendas produtivas, gerando assim mais riquezas para o nosso país. 188
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Tinha também a turma do reflorestamento. Havia uma multinacional especializada na plantação de pinhos e eucaliptos, que também se instalou aqui. Junto com ela, veio muita gente para trabalhar em todo tipo de atividades. Crescia a procura pela mão de obra especializada e não especializada também. De repente todos tinham trabalho: desde a mais simples a mais qualificada profissão. Abriam-se portas para todos os setores. Eu trabalhava e trabalhava. As viagens se tornaram mais frequentes, pois o movimento me exigia isso. Meu trabalho, que começara tão acanhado, já apresentava proporções sólidas e satisfatórias. E eu seguia em frente sem embaraço algum. Crescia e estava feliz naquele aspecto, mas andava preocupada com o outro lado de minha vida. O lado sentimental. Nosso relacionamento estava estagnado novamente. Eduardo não falava em casamento. Cobrava dele uma definição, mas parece que ele não ligava mesmo para o assunto e ia só enrolando. Nesse espaço de tempo, já contávamos com uma boa economia que empregamos na construção de uma casa (a primeira das cinco que seriam construídas posteriormente), que não era lá grande coisa. Mas eu contava como se fosse para nossa moradia, pois ainda imaginava que o casamento devia estar nos nossos planos. E como ainda continuava morando na casa que era de meu pai, esperava que aquela fosse para nós. Mas, naquela época, a procura por imóveis para alugar era grande demais. Os preços eram altos e tentadores. E aí não deu outra: terminada a casa choveu ofertas para alugar e lá se foi “a minha casa”. Eduardo alugou-a. – E nós, Eduardo, como vamos ficar? Parece que está mais que na hora de definirmos nossa situação. Além do mais estou ocupando a casa de meu pai, o que não acho justo. Talvez a queira de 189
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volta, porque seria mais uma renda para ele se a alugasse. – Veja se ele quer vender a casa, nós a compraremos. Papai concordou e nos vendeu a casa e lá eu continuei morando. Era assim que ele resolvia as coisas. Sempre deixando a pessoa sem armas para lutar. Eduardo tinha a mania de ver no dinheiro a solução para tudo. Já começava a acumular bens em seu próprio nome. Mas, sendo nós, ainda solteiros, isso era meio perigoso. Em caso de rompimento, perante a lei eu não teria nada. Na verdade, tudo que andávamos comprando e fazendo era documentado no nome dele, enquanto que eu só trabalhava para isso. Mas eu ia confiando.
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27 De casamento, nem se fala! Mas Eduardo se muda para minha casa uito triste, eu já sabia que meu príncipe enM cantado não era tão príncipe assim. Já estava bem claro que ele ha-
via deixado de lado o principal motivo que nos unia. Já estava muito claro também que ele direcionava tudo para o lado da ambição, para o lado do dinheiro. Via em mim um grande potencial de trabalho, uma força inesgotável, uma máquina de fazer dinheiro. E assim, cinco anos se passaram desde o primeiro encontro na pracinha. Cinco anos empacados no que se referia ao sentimental. Ou melhor, dizendo, ao casamento. Eu que tinha paciência de elefante, continuava esperando e vivendo na sombra da dúvida. Mas um belo dia ele se superou na arte de ser abusado, de ser inconseqüente. Certa vez, quando retornava de uma cansativa viagem a São Paulo (e como nesse tempo já contávamos com os preciosos serviços telefônicos), liguei avisando dia e hora da minha chegada. Cheguei e lá estava ele me esperando na recém-inaugurada pequena rodoviária. O agente da Empresa separou toda a minha bagagem, que não era pouca, pois já trazia comigo boa parte das compras que fizera. Eduardo me ajudou a transportar tudo para a BOUTIQUE. E eu disse à funcionária que ia passar em casa, tomar um banho rápido, e retornaria mais tarde para começar a distribuir a mercadoria em seus devidos lugares. Queria deixar tudo em ordem para segundafeira atender melhor. 191
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– Eduardo, me leva para casa. Preciso de um banho; depois voltarei. Quero trabalhar hoje à noite e amanhã. Não quero deixar nada atrasado para segunda-feira. – Então, vamos – disse ele. Quando cheguei a minha casa, vi um amontoado de coisas na sala. Era uma bagagem estranha, não muito grande, mas via-se que alguém estava de mudança. – Ué? Será que errei de casa? De quem é tudo isto? – Não errou de casa, não. São as minhas coisas, eu as trouxe para cá. – Pegou fogo no quartel? Ou você foi licenciado e não teve tempo de procurar uma pensão? – brinquei. – Para onde vai com tudo isto? – perguntei enquanto dispensava no chão minha mala de viagem. – Resolvi que de hoje em diante vamos morar juntos. Vou morar aqui com você – disse ele com a maior cara de pau. – Como é que é? – Vamos morar juntos – repetiu ele. – Assim, sem ao menos avisar? Sem me consultar? O que é isto? Ficou maluco? – Mas... – Eu tenho família, e tenho meus princípios, não era isso que esperava para minha vida. – Somos independentes, podemos fazer o que bem entender de nossas vidas. – Ora, francamente! Sua atitude me dá nojo e quer saber mais? Já estou cheia de você, do seu comando, e se eu não der um basta nesta história, você fará de mim uma palhaça. Um fantoche. Se quiser morar aqui, case-se comigo! Você não acha que já bagunçou demais a minha vida? Que modo de amar é este? Você não respeita valores morais, você não respeita nada e nem a ninguém? Terminei um noivado sério e decente para ficar com você porque te amava, não foi para me prostituir. Você é retardado ou o quê? 192
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– Calma, mas que reação. Pensei que ficaria contente e aceitaria, afinal vivemos muito sós. – E para você só tem este caminho. Que amável de sua parte. – Não, mas é o mais rápido e fácil. – E mais conveniente para você também, não é? Seu imprestável, isto se chama abuso, isto é atentado ao pudor, à moral, isto é constrangimento. – Vamos conversar direito... – Acho bom você se retirar da minha casa e levar tudo isto daqui. Para mim basta. – É assim que você me ama? – C H E G A! Que coisa mais estúpida e ainda vem falar de amor. – Por que tanta alteração? Isto é tão natural nos dias de hoje. – S A I A já da minha casa! – gritei. Ele saiu. Eu não retornei mais à BOUTIQUE naquele dia, como havia planejado. Fiquei desorientada e indignada, pois estava com saudades dele e o imbecil acabou de vez com minha alegria. Será que aquele homem nunca acertava em nada, só via as coisas por sua ótica egoísta e vulgar. E neste clima ele se foi e não deu sinal de vida por dois dias. A segunda-feira foi um transtorno para mim. Não conseguia me concentrar em nada e toda a mercadoria nova esperava nos pacotes para ser remarcada e organizada. Na tarde da segunda-feira, ele mandou pegar umas peças de roupa e dizer que depois pegaria o restante, mas sobre sua atitude idiota não mandou dizer nada. E ficou assim: ele não me procurava e eu também não. Tinha vontade, mas pensava: “Se eu fizer isto, perco toda a minha moral com ele; mas se não ceder se não der uma abertura, posso perder o grande ‘amor da minha vida’.” Por outro lado, pensava: “Se concordar em morarmos juntos 193
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sem casar, será um comentário medonho. Temos que respeitar a opinião das pessoas. Uma vez que desrespeitei a ética moral, senti na pele como dói a indiferença. Não queria afrontá-las novamente com um comportamento ‘imoral’.” Pela primeira vez estava disposta a não ceder a seus caprichos, mesmo me sentindo como uma folha seca ao vento. Resisti e resisti. Se ele quisesse que desse o primeiro passo e desta vez ele deu. Foi um alívio quando o vi se aproximar da loja. Senti uma felicidade enorme e já queria me atirar em seus braços e ceder a tudo que ele quisesse. Não conseguia mesmo viver sem ele, amavao demais, que se danasse a moral e a ética. Mas como ia perder aquele trabalho de cura, que há dias tentava realizar? Iria eu amolecer assim de repente? Não, não iria. Então, pensei: “Para, Celeste, não se desvalorize tanto, vá com calma”. Parei e esperei, já que veio, queria ouvi-lo primeiro. Ele entrou na loja com aquele jeitão de menino triste e emburrado, e me cumprimentou: – Boa-tarde. – Olá Ficamos parados olhando um para o outro. A balconista se retirou dizendo que ia tomar água. – Preciso te falar, pode ser agora? – Pode sim. Entramos no pequeno escritório da boutique, servi água e café, como se fosse uma visita formal. – Como tem passado? – perguntou ele. – Vou levando, me acostumo fácil, tento aceitar a realidade da vida. Se você quis sumir, paciência. – Não sumi porque quis, você é que complica. – Ou seja: é do seu jeito ou nada feito, não é? – Não é bem assim. Mas como é que ficamos? – Você é que sabe... Só não dá mais para aceitar tanta imposição 194
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Eduardo. Você precisa aprender a respeitar os sentimentos das pessoas. – Celeste, me desculpe, foi realmente uma estupidez, mas como somos pessoas adultas e independentes não via tanto mal em morarmos juntos antes do casamento. Não tive a intenção de te magoar. – Vejo que conhece a palavra casamento. – Que bobagem! Você pensa então que não quero me casar? Pois saiba que já me sinto casado mil vezes com você. Não vejo minha vida de outro jeito. No entanto, casar agora ficaria muito complicado. Não temos família aqui, trabalho fora. E quem iria organizar tudo? Agora é só uma questão de tempo, depois oficializaremos. E já morando juntos facilitaremos as coisas, evitaremos formalidades, noivado e um outro tanto de aborrecimento que é organizar uma festa de casamento. Não gosto muito destas coisas. Tinha sentido o que ele dizia. E aí comecei a balançar o coração, mas pensava no meu pai, nos meus irmãos. Será que eles aceitariam mais essa surpresa? O cara não era impedido nem nada, o que custava seguir as normas da lei? Papai, como já disse antes, talvez até tenha previsto o desenrolar dos fatos, pois ele nunca confiou em Eduardo. Mas eu não queria abusar de sua compreensão. – Vejo que você tinha pensado em tudo, menos no mais importante. – O quê? – Me consultar sobre seus planos. Ele continuou se explicando, se justificando, me levando na conversa e eu fui cedendo, fui dando espaço novamente. Muitas promessas e declarações de amor foram somadas à minha vontade de estar com ele. – Está bem, prometo que vou pensar, mas preciso de um tempo para me acostumar. A idéia é extravagante demais para mim; nunca pensei passar por isso, imagina. Mas pode ser que me acostume. Fui para casa mais alegre e à noite nos encontramos. 195
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No dia seguinte acordei bem mais disposta e radiante, tinha recuperado meu motivo de viver. Aquele impasse estava temporariamente resolvido e tinha mais chances de me decidir com mais calma, pensar melhor, embora eu já soubesse qual era minha decisão. Ele estava morando numa república, com alguns de seus colegas de farda, até que a gente resolvesse o que ia fazer. E como os fatos levam a crer, decidi por aceitar que ele se mudasse de vez para minha casa. Por que não? Em breve nos casaríamos e esta mancha desapareceria. Será que isso daria certo? A última vez que confiei tanto assim em alguém, perdi meu emprego. O que eu perderia desta vez? Desta vez perdi mais feio. Perdi os dois bens mais preciosos de minha vida. Perdi a PAZ e a LIBERDADE. O apaixonado é irracional, toma atitudes fantasiosas e irresponsáveis. Passamos a morar juntos. Tudo parecia romântico, porém estranho. Eu me sentia péssima, pois era uma situação desconfortável perante os meus vizinhos, perante a cidade e os novos amigos que eu havia conquistado. Passei por momentos constrangedores, como por exemplo, quando chegava alguém e dava de cara com ele, em atitudes de dono da casa. Lá ia eu explicar que estávamos morando juntos, etc. e tal. Percebia os olhares de reprovação da vizinhança. Enfrentava fofocas terríveis. Uns diziam: bem feito, é isto que ela merece: ser difamada. Ele nunca se casará com ela. Era só isso que ele queria. Mas quem mandou largar o noivo como largou? Um rapaz tão bom. É o troco pelo que ela fez. Por esse caminho seguia a torcida do contra e ele sabia disso, porém se fazia de desentendido. O tempo passou e com a boutique corria tudo às mil maravilhas. Cada dia eu trabalhava com mais afinco, pois tudo que fazia 196
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era retorno garantido. Com as economias em dias e o trabalho fluindo bem, partimos para a edificação de algo mais sólido financeiramente falando. Construímos uma segunda casa e esta ficou um pouco melhor que a primeira. Terminada, escriturada e alugada, tudo novamente no nome dele e para Celeste mais trabalho, mais coisas para administrar e fazer render muito. Casamento? O assunto caiu de vez no esquecimento. Casar para quê? Não tinha tudo que o casamento podia oferecer e de prêmio uma mulher idiota e submissa que trabalhava até a exaustão, para ele se tornar um pequeno emergente, abusado e arrogante? Pela convivência sob o mesmo teto, passei a conhecê-lo melhor e ficava impressionada com o poder de manipulação, de imposição que ele demonstrava ter. Não aceitava ser contrariado em nada e muito menos ser desobedecido. O relacionamento foi tomando formas contraditórias.
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28 Compro um restaurante cidade crescia de forma surpreendente e A como trabalho não me intimidava, ataquei mais um ponto de gran-
de carência naquela onda de crescimento. Depois da segunda casa construída, direcionei os investimentos para outro setor. Compro o único restaurante da cidade. Era um ponto muito bom, porém o dono pouco entendia do assunto, como também não estava conseguindo acompanhar a demanda que se instalou no setor da alimentação. Comprei, reformei e troquei quase todos os funcionários. Eles estavam muito mal acostumados com o antigo ritmo e não iam entender que a minha proposta de trabalho era bem mais arrojada. Não podia eu perder tempo nem dinheiro. Coloquei anúncio informando que a casa estava sob nova direção e me empenhei para fazer daquele lugar o ponto mais freqüentado da cidade. E consegui. Em tempo recorde, o restaurante já me rendia um bom dinheiro. Acumulei mais essa grande atividade ao meu já tão sobrecarregado tempo. Agora, era a boutique, as viagens para São Paulo, as construções, a fazenda (já havíamos comprado uma pequena fazenda) e o restaurante, tudo para eu tocar sozinha porque Eduardo dava sempre uma desculpa e nunca se envolvia com nada. Dizia que não queria saber de problemas: estava cansado, 199
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não tinha jeito para o negócio, tinha tido uma semana difícil no campo; enfim, inventava mil desculpas. Mesmo que não ajudasse em nada, se metia a dar ordens que só atrapalhavam. Na época, ele não trabalhava mais aqui e só vinha nos fins de semana. Portanto, era: eu e eu mesma. Hoje fica difícil até de imaginar como é que conseguia fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Só tenho duas explicações para tanto heroísmo: gostar de trabalhar e a força do AMOR, que eu ainda acreditava existir. Nas horas de refeição, o restaurante ficava tão cheio que era difícil atender a todos. Mas eu saía da boutique e ia direto para lá. Ajudava no caixa, no balcão e até de garçonete, atitude que tive logo de abandonar, pois os homens que lá faziam suas refeições e que me viam sempre só, sem namorado, viviam tentando me conquistar. Vinham com propostas bem diretas e na frente dos funcionários, depois os mesmos ficavam a comentar, e diziam: – Até parece que ela vai querer namorar outra pessoa; para ela não existe um homem na face da Terra, só o “bonzão” lá, que esquenta esse coração; aí é brincadeira, como pode ser tão cega assim? – dizia alguém. – Se eu fosse ela, ia nessa, passava-lhe uma rasteira das boas. Com tantos pretendentes que aparecem por aqui, ela ainda fica esperando não sei o que daquele tal. Vai cansar de esperar, pois ele nunca se decidirá a casar, e ainda se acha o dono de tudo. Eita, cara abusado! – fofocava outro. – Pois é. – É até bom que não se case mesmo, porque ele nunca vai ser um bom marido para ela. – Pode ser que ela desista de esperar e... – Desiste nada. Ó, mundão errado! Ah, se fosse eu... – Querem parar de se meterem com a minha vida? Que falta de respeito é esta para comigo – falei para aqueles dois, que conver200
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savam na minha presença sem a menor cerimônia e sequer pediam segredo para o assunto. – Estamos só brincando, dona Celeste. Mas a senhora bem que podia ver o tempo precioso que está perdendo. Com tantos homens bonitos e ricos que tentam lhe conquistar, fica aí perdendo tempo. Nem dá chance, fica aí marcando passo com aquele esquisitão. – Que modos são esses, Jorge? – Me desculpe dona Celeste, mas tem coisas que a gente sente e até dá pena de ver, uma pessoa como a senhora... – Tudo bem, tudo bem, obrigada pela preocupação, agora vamos ao trabalho. Saí dali calada, pois sabia que eles estavam cobertos de razão. A única idiota era eu mesma, que tinha um relacionamento errado, cheio de dúvidas e ainda continuava me enganando. Bem, mas vamos ao trabalho. Ficava no restaurante até atender o último freguês. Mesmo dormindo tão tarde, eu não me descuidava de nada e bem cedo já estava de pé. Primeiro passava no restaurante para verificar o abastecimento, o cardápio do dia e a limpeza. Queria tudo no maior capricho. Encaminhava todas as tarefas, depois deixava por conta do gerente. De lá ia para a boutique, dava continuidade ao dia e trabalhava até o anoitecer. Quando fechava a boutique ia para o restaurante novamente e ali permanecia noite adentro. O movimento da noite era maior que do dia, pois muitos só apareciam para o jantar. Pelo fato de trabalharem mais distante, não vinham para o almoço. A rotina era pesada. Era boutique, restaurante, viagens, eventos sociais, casa e tudo mais para cuidar. Era nessa loucura que eu estava vivendo. Eduardo? Seguia sem oferecer ajuda, mas logo se auto-ele201
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geu meu “superior”. Criticava friamente quando alguma coisa dava errado. Era violento e agressivo com as palavras, não admitia um pequeno erro e quando passava no restaurante era só para fiscalizar. Comigo, então? Tinha que ser matemática exata, quando se referia ao dinheiro. Mas parece que eu vivia num estado de demência constante. Como podia permitir que aquela pessoa me dominasse de forma tão infame, como estava me dominando? Não era meu costume aceitar o que vivia aceitando, mas ele tinha uma força estranha, uma força diabólica que dominava qualquer um que, por azar, cruzasse seu caminho. O cara era um ditador nato.
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29 Ele me trai trabalho tomava todo meu tempo. Mas, no O dia que Eduardo chegava do campo, jamais o decepcionei, jamais
ele me pegava de “calças-curtas”. Apesar de tanta correria, nunca me descuidei do lado mulher. Para mim, ser mulher estava em primeiro lugar; nunca me descuidava dos bons tratos. Sexta-feira à tarde já tinha salão agendado e tirava o resto do dia para descansar, me refazer da semana, me arrumar e esperar por ele. Quando ele chegava, largava tudo por conta do pessoal e me dedicava completamente a ele. Saíamos para um passeio, uma cervejinha, um piquenique, um banho de cachoeira, uma festinha, um jantar mais íntimo em casa enfim, proporcionava sempre um fim de semana agradável para nós dois. Sequer eu podia descansar, pois era toda atenção para com ele. Meus finais de semana passavam tão rápidos que, quando percebia, era segunda-feira novamente e mais trabalho, mais correria. Mas eu me sentia bem e consciente de cumprir meu papel de boa esposa e dona de casa. A profissional era à parte, só durante a semana. Minha maior realização era fazer bonito para ele, era crescer no seu conceito. Mas ele não entendia. Não entendia que eu precisava de seu reconhecimento, precisava de uma palavra de incentivo. Que ele dissesse que tinha uma grande mulher ao seu lado, pois eu precisava de um elogio, de um pequeno afago para o meu ego feminino. 203
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Não. Nada disso vinha dele. Parece que tinha medo de reconhecer meus méritos e parecer fraco. Ia me levando como se eu fosse sua empregada, sua subalterna. Era frio e sem gratidão. Sabendo eu que estava sendo explorada escandalosamente, algo já me incomodava também nesse aspecto. Comecei a notar que ele exigia mais e mais de mim no trabalho e, por mais que eu fizesse, ainda era pouco. Estava sempre arrumando algo para jogar nas minhas costas. Tinha um jeito maligno de me induzir, no calado, a trabalhar mais e mais. Deixava tudo por minha conta e eu tinha que fazer prosperar e dar bons lucros a qualquer preço. Sua ambição pelo dinheiro era grande e meu potencial já estava ficando pequeno. Por mais que tivesse força e vontade, era muito peso para mim; porém ele exigia mais e mais. Como eu não queria demonstrar fraqueza, não estabelecia limites e ele me comandava como se eu fosse um recruta raso à sua disposição. Os dotes militares de Eduardo eram extensivos à sua vida particular. Não sabia separar as coisas. Mas eu não podia reclamar, foi minha a escolha. Não queria um “homem forte”? Por que reclamar agora? Férias? Eu nem podia falar. Àquela altura dos acontecimentos, eu já sabia que ele não era um líder nem uma cabeça privilegiada, mas sim um ditador. Mesmo assim, eu não questionava meus direitos, para não deixá-lo em situação inferior. Afinal, era meu “marido”, e era importante para mim que ele figurasse bem em tudo. E assim ele se aproveitava dos meus feitos, das minhas conquistas de maneira desonesta e ia colecionado as comendas, os troféus. Prosperava? Era mérito dele. Crescia? Era mérito dele. Errava? A culpa era minha. Mas, tudo bem, isso era coisa pequena para mim. Eu sabia do meu tamanho e valor. Aquela diferença não ia me abalar, por isso deixava que ele se gabasse por tudo. E assim, com meu comportamento de mãe protetora, ele 204
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crescia mais e mais no seu egoísmo, na sua mesquinharia. Cresceu tanto que virou um monstro, um monstro de apego ao dinheiro e aos bens materiais. Dos outros valores, dos outros bens da vida ele não tinha conhecimento. Além do mais, tornou-se um bom boêmio, que gostava da vida noturna e das jogatinas. Passava agora seus fins de semana bebendo e jogando. Não respeitava mais nossos horários e me deixava esperando até altas horas da madrugada no restaurante. Sempre, antes de sair, me dizia: – Vou ali e volto já. Quando aparecia, era madrugada. Certa vez me cansei de esperar e fui para casa. Quando ele chegou, já ao amanhecer, me disse que estava num bar com alguns amigos. Como eu não tinha o hábito de cobrar nada dele, nem pedir explicações de suas atitudes, me conformava e achava que era coisa de homem. Não ia me humilhar chorando com ciúmes e catando informações para saber de suas atividades extraconjugais. Tinha que ser fina. Ele sempre dizia que não suportava mulher fofoqueira. Portanto não ia entrar nesta de bisbilhotar sua vida. Encarava suas saídas e desaparecimentos como coisa normal. Essas fugas foram se repetindo muitas e muitas vezes e ele foi ficando inquieto e desligado. Estava distante e pouco amável comigo, ao ponto de um dia eu lhe falar sobre o assunto, mas ele me disse: – Não tenho nada. É apenas cansaço, problemas no trabalho. – Cansado? Você, Eduardo? Que dirá de mim. Seu cansaço tinha nome, endereço, e quase toda a cidade sabia menos eu. Que dia de humilhação, que coisa amarga quando descobri tudo. Nada posso comparar ao que senti naquele dia, nada posso comparar com aquela decepção. 205
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Fiquei sabendo que ele estava envolvido com uma mulher e que a mesma estava grávida. Exigia dele que se casasse com ela para assumir o filho. Já que comigo ele não era casado e “só morava”, estava livre para se casar com ela. A mulher em questão estava longe de ser uma donzela, mas exigia reparações pelo fato de estar grávida dele. Exibia a barriga e fazia questão de dizer que era dele o filho. Estava falando muito e dava a entender que o assunto ia render. É de suma importância dizer, aqui, que ele não queria ter filhos. Sempre se fazia bem claro sobre isso. Proibia-me até de falar sobre o assunto. Dizia que uma criança daria muito trabalho e não me deixaria tempo para trabalhar. Por medo de uma rejeição dele por um filho, eu evitava a gravidez por todos os meios anticonceptivos, e aí me aparece essa figura grávida, acusando-o da paternidade do filho. Quando ficou sabendo da gravidez, ele sumiu dos encontros com ela. Foi aí que começaram as ameaças da parte dela, dizendo que ia me procurar e contar tudo. Mediante essa possibilidade, ele achou melhor se adiantar e, fazendo-se de vítima inocente, me contou sua versão. Se ela não o ameaçasse de me contar tudo, de fazer escândalo, ele continuaria com certeza me enganando com ela por muito tempo. No dia em que ele resolve me contar tudo, chegou do campo muito cedo, passou na boutique, entrou meio desconfiado, me abraçou e disse: – Vamos pra casa. Preciso te falar algo e tem que ser agora. Estava com o semblante muito triste. Vi que se tratava de coisa séria, muito séria. Chegando a casa, ele pegou uma cerveja na geladeira, me serviu um copo, nos acomodamos cada um em uma poltrona, depois ele levantou-se, acendeu um cigarro e começou a andar de um lado para outro, enquanto falava. 206
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Primeiro se culpou muito, se condenou, se colocou como o pior dos canalhas, um cachorro mesmo, o homem mais desprezível do mundo e tantos outros adjetivos. Fui ficando apavorada e não sabia o que pensar: nunca tinha visto ele daquele jeito. Será que foi transferido e não queria me levar junto? Ou queria terminar tudo para não casar? O que mais poderia assustá-lo assim, além do casamento? Talvez não fosse seu objetivo assumir um compromisso tão sério como o casamento, uma família e agora não sabia como me dizer aquilo. – Ora, Eduardo, não deve ser tão grave assim esse problema. Fala logo de uma vez, estou ficando aflita. – Eu sei que destruí nossas vidas e você não vai me perdoar. – Que maluquice é essa que está me dizendo? – Tenho medo de te falar... Promete que não vai me deixar? – Como vou te prometer se não sei do que se trata? – É que... É que tem uma pessoa aí que cismou comigo. Vivia se oferecendo para mim e eu acabei cedendo e te traí com ela. – Quando foi isso? – perguntei já quase sem voz. – Numa dessas suas viagens para São Paulo, saí com ela. Mas juro que foi uma única vez, e agora... – E agora? – Agora ela anda dizendo que está grávida. – Está o quê? – gritei. – Está grávida e diz que o filho é meu. A casa girou, o mundo ficou escuro, as forças me faltaram e desfaleci. Uma dor dilacerante atravessou meu peito, uma dor sufocante que obstruía minha respiração. Parecia que ia explodir em mil pedacinhos, tamanha era a pressão que sentia no peito. Queria gritar e bater a cabeça de encontro à parede até morrer. Era isso! Eu merecia morrer, porque burrice tem limite. 207
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Num desesperado gesto de loucura, comecei a dar violentas cabeçadas na parede, mas ele correu e me segurou. Esmurrei-lhe a cara, o peito. Dei-lhe ponta-pés, cotoveladas e me desvencilhei dele. Comecei a gritar e a chorar descontroladamente. Chorava e não conseguia me conter: era um choro de autopiedade e de ódio também. Já andava muito cansada de tanta enrolação da parte dele. Cansada de tanto trabalhar e não ter reconhecimento. Cansada de tanto me doar sem ser valorizada. Cansada de ser desrespeitada. Cansada de ser tolerante. Estava estressada, esgotada, sufocada de tanto segurar as emoções, de tanto fingir que não via as coisas erradas e agora mais esta? Precisava gritar muito para não morrer sufocada. Aquela revelação teve o impacto de dez granadas em minha volta e explodi gritando: – Seu infeliz! Como ousa fazer isso comigo? Não te basta o que tenho feito por você? Faltei em alguma coisa? Apesar de tanta correria, nunca me descuidei de nada, nunca fui ausente nem desleixada. Estive sempre do seu lado, lhe tratando com carinho, respeito e dedicação. O que há de errado com a nossa vida sexual? Por que você tem que ser tão miserável assim, ferindo-me a este ponto? O que há com você? Qual é o seu problema, afinal, seu psicopata. – Escute, deixa-me falar e me explicar. – Explicar o quê, seu doente? Quero que desapareça definitivamente da minha vida. Esqueça o que houve entre nós e desapareça. Saberei encarar essa perda, mas não permitirei mais que comande e destrua minha vida. Não se sinta obrigado a ficar comigo por nada do que aconteceu. Você já demonstrou seu caráter que, para mim, não é dos melhores. De cabeça baixa, ele ouvia tudo calado, e lágrimas lhe caíam pelo rosto. Tive mais raiva pela sua covardia de ainda chorar para me fazer chantagem. 208
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– Pelo menos seja mais digno e não chora. Quem chora aqui sou eu. Choro por que não fui inteligente o bastante para ouvir a voz da razão, quando ela me gritava claramente para não entrar neste barco furado. Que o meu destino seria só afundar. Sentia um ódio sem tamanho. Aquilo não cabia dentro de mim. Não conseguia entender como uma pessoa pode ser tão ridícula e sem moral. Mas aí me lembrei que havia feito algo parecido. Surpreendi-me pensando nisso e via que a culpa condena, mas sabia também que não tinha usado de tamanha vulgaridade. Tudo que fiz foi por amor e não simplesmente para magoar alguém. “Esta você me paga. Não ficará impune” – pensava comigo mesma. Depois de muito chorar, de muito me debater, pedi para ficar só. Ele saiu mesmo, sem querer me deixar naquele estado de tristeza. Daquele dia em diante fiquei a matutar, a pensar e só uma idéia me vinha à cabeça. Dar-lhe-ia uma lição, me vingaria, mas como? Não o trairia fisicamente, não saberia fazer isso. Não, traição não. Mas precisava fazer algo, uma coisa que o ferisse bastante e lhe roubasse a paz e a disposição de me trair. Que lhe rendesse o que pensar. Estava muito espaçoso, muito à vontade. Fiquei muitos dias sem aparecer na boutique nem no restaurante, e só pensava. Talvez uma lição de vida lhe desse uma freada. Depois de muitos dias de isolamento, uma idéia me ocorreu. Arrumei um jeito de lhe roubar a paz, de lhe ferir. No que eu poderia lhe ferir mais? Pelo dinheiro, pela sua ambição, é claro. Dar-lhe-ia pelo menos um bom prejuízo monetário, embora esse prejuízo fosse meu, pois tinha toda uma luta empenhada e que seria destruída com o que eu pretendia fazer. Quem foi o objeto de minha vingança? Meu querido restaurante ENGENHO VELHO, que ia muito bem e com um ótimo saldo na conta bancária. 209
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Não esperei muito, para não mudar de idéia. Tinha que agir sob influência da emoção, do contrário não faria, pois meu senso de responsabilidade não me deixaria. Mas dessa vez era uma questão de honra, porque nada era mais importante para ele do que o dinheiro, e já estava ficando bem acostumado com a fama. Dois dias depois, já estava tudo decidido. Fecharia o restaurante, não continuaria me matando de trabalhar e ele, na vida boa, com disposição para suas aventuras baratas. Se ele quisesse que assumisse o controle do restaurante. Sabendo eu que ele não tinha competência nem vontade para isso, coloquei minha vingança em prática. Reuni todos os funcionários e lhes falei da minha decisão de vender o RESTAURANTE. Disse-lhes que atendessem a clientela naquele dia, mas não falassem sobre o assunto com ninguém, pois sabia que os clientes com certeza tentariam me fazer desistir da minha loucura. Já tinha mais alguns restaurantes na cidade, mas o ENGENHO-VELHO era o maior e melhor, tinha espaço físico e estrutura para atender a todos de forma confortável. Com ele fechado, causaria um grande transtorno e desorganização na vida de umas dezenas de pessoas que trabalhavam na região e dependiam de fazer suas refeições ali. O fechamento do ENGENHO-VELHO era como se dinamitasse uma ponte de uma estrada importante. Tal fato deixaria muita gente desorientada, e foi o que aconteceu. Senti por meus clientes e até me achei irresponsável, pois sequer tive coragem de avisá-los. Senti também pelos meus bons e fiéis funcionários, que estavam perdendo seus empregos sem um prévio aviso. Depois da reunião, saí e mandei confeccionar uma faixa com letras bem grandes, que dizia: FECHAMOS – VENDE-SE 210
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À noite, quando terminou o movimento, foi com grande pesar que cerrei as portas do restaurante e, com a ajuda de um dos funcionários, fixei a faixa numa altura que pudesse ser lida de longe. Choramos, eu e alguns dos funcionários. Sabia que estava fazendo uma coisa mesquinha e infantil. Não tive compaixão dos meus bons clientes que, por uns dias, ficariam sem um ponto certo para suas refeições e sem ao menos saber o porquê daquele desatino. Tinha toda consciência daquele ato absurdo, mas para mim tudo já começava a apodrecer. Acabara de perder a ilusão do amor puro e verdadeiro e isso me deixou vazia e sem base para nada. Sou movida pelo amor e pelos sonhos. Não consigo ser feliz sem estes dois sentimentos. Por eles e com eles sou muito grande, sem eles me sinto como nada. E também precisava dar sinais de que eu existia e que tinha vontade própria, que eu era tolerante, mas idiota não. É pena que ele não entenda a diferença entre paciência e retardamento mental. E ali mesmo na porta do restaurante abracei a todas as pessoas que tinham estado comigo naquela empreitada. Abracei uma por uma e agradeci a elas pela enorme colaboração, pelo tempo que trabalhamos juntos e pelas alegrias que me proporcionaram. Acertei dia e hora para irmos ao contador. Saímos um para cada lado: parecíamos uma família quando se desfaz. Fui embora e me refugiei em casa e de lá não saí por muitos dias. A boutique ficou entregue a balconista, que se desdobrava em dez para dar conta. Lá no campo, Eduardo ficou sabendo do fechamento do restaurante. Dá para imaginar sua reação? Não, não dá. O que você imaginar ainda é pouco. Ele chegou louco, furioso. Veio para me desacatar violenta211
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mente, mas me mantive firme e inacessível, não lhe dando chances de extravasar sua fúria. Mediante minha indiferença às suas palavras agressivas, parou um pouco, pensou, saiu e, quando apareceu novamente, vinha mais calmo. Tentou me ganhar na conversa mole, me adoçar a boca. – Sabe o tamanho do prejuízo que vai nos causar? – Se sei. Quem bem sabe sou eu. E lhe digo mais: não é maior do que um que você me causou. Ou pensa que só você pode tudo? Que pode ir pisando, magoando as pessoas e ainda quer que elas se ajoelhem a seus pés? – Você leva tudo para o lado sentimental. – E levo mesmo. O que seria a vida sem esse lado? Do que adianta viver, ter dinheiro, trabalho, posição social e não ser feliz? Ou, para você, sentimento é só uma palavra que se ouve e não se sabe o seu real sentido? – Precisa ser tão ferina assim? – Eu? Ferina? Que me diz de você? – Dê-me as chaves do restaurante, vou organizar tudo aquilo novamente. Vou reabrir. – Com todo prazer, mas arrume outra pessoa para você explorar. – Quero o endereço dos funcionários para procurá-los e readmiti-los. Alguém ficará como gerente, como sócio, mas não podemos fechar assim de uma hora para outra. Será muito prejuízo. – Tem razão. Não podemos fechar, mas fechei e duvido muito que encontre uma pessoa que queira trabalhar para você, explorador como é. Ou você confia que haja outros idiotas como eu? Entreguei-lhe as chaves. Tentou recontratar a equipe e colocar o gerente como sócio. Ninguém aceitou. Todos recusaram em atitude de protesto pelo que ele havia me feito. Disseram que só voltariam a trabalhar se fosse comigo; do contrário procurariam outro emprego, o que por sinal não seria difícil, pois a oferta estava boa para todos os setores. 212
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Como ele não conseguiu ninguém, veio até mim, entregoume as chaves e disse: – Tenho que ir trabalhar amanhã. Quando voltar, vou procurar uma solução para reabrir o restaurante. Ele não pode ficar fechado. Você volta e vai tocando enquanto eu chego para arrumar alguém. Era um imbecil para Imaginar que, depois de tudo, ainda podia me convencer a fazer isso. Só voltei lá quando apareceu um comprador e rapidamente eu o vendi, sem ao menos procurar saber o real valor do que estava vendendo. Eu sabia que se Eduardo arrumasse alguém para abri-lo, e com certeza conseguiria, mais cedo ou mais tarde eu acabaria me envolvendo novamente. Ele tinha certeza e contava com isso para me obrigar a continuar trabalhando mais e mais. Naquele momento era só uma jogada, enquanto me acalmava, enquanto me amansava. Mas, quando ele voltou, eu já havia vendido e o novo proprietário se preparava para reabrir e em grande estilo. Ele ficou incrédulo, indignado com minha atitude. Pensava que eu não seria capaz de desafiá-lo tanto assim. Brigou, ameaçou e eu pensava: “Agora que vai acabar tudo, porque ele não sabe perder”. Mas não, ele não rompeu com nosso relacionamento, pois sabia que arrumaria outro jeito de continuar me explorando e arrumou.
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30 Construímos a terceira casa s homens sabem mesmo das fraquezas das O mulheres. E Eduardo sabia bem das minhas. Eu era romântica e
apaixonada, e uma pessoa apaixonada é presa fácil. A construção da terceira casa foi o que ele esquematizou para me manter no ritmo. Começou o trabalho de me convencer a ficar numa boa com ele e, ao mesmo tempo, tomar o controle das coisas novamente. Lá do campo onde trabalhava, ele se mantinha atento, me mandava presentes, bilhetes e pedidos de desculpas. Dizia também que “me perdoava” pela venda do ENGENHO-VELHO. Dizia saber que no fundo eu tinha razão de ter me revoltado tanto, a ponto de fazer tamanha besteira. Fazia-se de amigo e compreensivo com a minha atitude, como se ele não tivesse nada a ver com a história, e ainda ia me fazer sentir culpada por ter jogado fora uma boa fonte de renda. Cavou, mexeu, revirou, até deixar como ele queria. O assunto da traição ficou de lado. Quando passou aquela tempestade toda, um dia ele me propõe uma viagem. Aceitei. Fomos para um lugar bonito, com belos rios e cachoeiras. Passamos uma semana. Esta semana foi o que consegui das férias que eu tanto reclamava, uma semana. Uma única semana. E lá ele me presenteou com a notícia de que já estava preparando alguma coisa para começar a construção de outra casa. No final da conversa, ele me disse: 215
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– Esta, sem dúvida, será para você. “Reatamos” mediante essa promessa. Depois dos “acertos” na vida sentimental, me entrego novamente ao trabalho, muito machucada, mas ainda tinha alguns sonhos. Ao sabor dos sonhos, começo a peleja pela minha tão sonhada casa. E, com a casa, talvez o casamento e os filhos. Primeiro passo foi encontrar o terreno para comprar. Encontramos um muito bom e bem localizado. Compramos e pagamos. Segundo: encontrar um arquiteto para fazer o projeto. Aqui ninguém usava o serviço desse profissional, era tudo feito na base do mestre-de-obras, do prático. As construções não eram planejadas. Mas como eu queria uma casa bonita, diferente e funcional, sem dúvidas que eu precisaria de um e para isso teria que ir à capital. Preparava-me para a viagem, quando conversando com uma pessoa ela me falou de alguns engenheiros que costumavam se hospedar no Hotel de uma amiga nossa e esse dito hotel era bem em frente à minha boutique. Falei com a dona e a mesma me disse que promoveria um encontro. Alguns dias depois, quando eles chegaram, ela conseguiu que um me atendesse. Então lhe falei dos meus planos. Disse-lhe que queria construir uma casa bonita, de fachada diferente. Algo inédito. Mas isso não se referia ao luxo e sim à criatividade, à originalidade. Já tinha alguma idéia, porém precisava de um profissional para fazer o projeto. Mostrei para ele os rabiscos que eu mesma tinha feito. Ele achou engraçado e, brincando, disse que ia copiar para fazer a casa dele, pois estava excelente o meu desenho, que eu era uma boa arquiteta. Demos risadas. Mas, falando sério, ele aproveitou muito dos meus rabiscos quando fez a planta. 216
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Juntos, eu e o engenheiro (não era arquiteto) fomos ver o terreno. Ele ficou encantado. – E então? – perguntei. – É um terreno maravilhoso, que nos dá uma grande liberdade para criar. – O senhor aceita fazer a planta, então? – Bem, não sou arquiteto, sou engenheiro, mas tenho alguns amigos que são arquitetos e juntos tentaremos fazer uma planta para você. Posso descrever a posição do terreno e seus planos. Vamos ver, porque estou aqui a serviço de uma firma e não me sobra tempo. – Sei. Mas quando pode me dar a resposta? – Estou saindo de férias agora e vou para São Paulo. Lá terei mais tempo para ver isso. Ficarei fora por uns dois meses. Ao retornar, trarei uma solução. Você pode esperar? – Sim. Não tenho muita pressa. Só começarei a construção mais adiante. Tenho que determinar tempo para cada coisa, cada etapa. E creio que não ficará barata essa obra. – Com um bom projeto se consegue fazer uma casa bonita e diminuir os custos. Ele se foi de férias e eu continuei a sonhar. Eu costumava tomar café com pão-de-queijo, na casa dessa amiga, dona do hotel. Assim, nós conversamos e muito sobre reforma e construção. Ela me falava que pretendia reformar o hotel, o que mais tarde ela fez deixando-o muito bonito. Num desses cafezinhos, ela me disse que o engenheiro havia ligado, informando que estava de volta, para reservar seu apartamento. Ele disse para ela que estava trazendo a planta da minha casa. Fiquei esperando com muita ansiedade. Só estava com um pequeno medo: que ele cobrasse muito caro pelo seu trabalho. Não havíamos combinado nada sobre o valor e eu não tinha a mínima noção disso. 217
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Pensava: “Se for muito caro, dar-se-á um jeito. Não vou me preocupar com isso agora. Quero é ver minha planta e se ficou bonita. Pagarei o que for cobrado”. Esperei, esperei... Um dia, bem cedinho, quando chego à boutique, reconheci o carro dele estacionado em frente ao hotel. No interior tem disso, todo mundo se conhece e até um veículo que não é da cidade é facilmente identificado. Olhei bem e me certifiquei que era mesmo o dele. – Que bom, ele chegou – eu disse. – Ele quem? – perguntou a balconista. – Nada, só estava pensando alto. – Há! Fiquei inquieta. Queria ver logo minha planta. Como a boutique ficava bem em frente ao hotel, continuei observando o movimento do mesmo, até que vi sair uma caravana conversando apressadamente e entre os demais estava ele, o Dr. Paulo. Ele segurava umas pastas e um canudo, desses de papel cartão. Pararam na calçada, conversaram mais um pouco e foram se separando. Pensei que ele ia seguir com os outros, mas não, separou-se deles e foi em direção ao meu estabelecimento. Entrou e foi dizendo: – Bom-dia, bom-dia. Estendeu-me a mão num caloroso cumprimento. – Bom-dia, Dr. Paulo, que prazer em revê-lo. – O prazer é todo meu. Estava com saudades de Goiás, desse clima agradável, sem poluição e dessa gente tão amável. Enquanto falava, colocou a bagagem de mão sobre o balcão, abriu uma pastinha e dela tirou alguma coisa e separou pro lado. Do canudo de papelão, retirou uma folha de papel vegetal, desenroloua, esticou-a bem em cima do balcão e foi dizendo: – Aqui está a planta de sua casa. Se não gostar, farei outra, pois quero que fique contente com sua construção. Apontando com um lápis, ele foi me mostrando e explicando 218
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cada detalhe, cada traço. Como deveria fazer o muro, as aberturas, o acabamento, o jardim, etc. Era muito gentil e tirava todas minhas dúvidas de maneira tal que pude visualizar a casa já pronta. Quanto ele terminou, eu não tinha mais dúvidas, era aquilo mesmo que eu queria. Estava perfeita. – É linda! Maravilhosa! Parece que o senhor xerocou o que eu tinha em mente. É linda! Linda! Quase lhe dei um beijo, de tão contente que fiquei. Mas e agora? Qual seria o preço? Quanto me cobraria? – pensava. Tinha que manter a linha quando ele falasse o preço, pois poderia levar um grande susto. A compra do terreno tinha nos deixado sem reservas. Porem já tinha guardado um pouco de dinheiro para tal finalidade. – Está perfeita, doutor. Se eu tiver qualquer dúvida, procurarei o senhor. Agora me diga quanto lhe devo pelo seu trabalho. – Nada, nada. Não me deve nada. – E para quem pago, então? – Para ninguém. É um presente que estou lhe dando e também quero que fique uma lembrança minha de quando aqui estive. Um marco de minha passagem por essas terras. E nada mais original e gratificante do que desta forma. Será uma alegria para mim, ver essa casa edificada e saber que contribuí para que ela exista bela e imponente. Você merece este presente, sei da sua luta e como ama o que faz. Comentário da nossa amiga Estela – completou ele, fechando a pasta. – Mas... Ouvia-o emocionada, pois ele bem pouco me conhecia, mas já sabia do meu apego ao trabalho. – Nada? Não vai me cobrar nada? – Nada, já disse menina. Sei que não ficava bem dar-lhe um beijo, embora ele tivesse um ar paternal e já fosse bem maduro, assim tipo meu pai. Mesmo 219
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assim dei-lhe um forte abraço e tasquei-lhe um beijo na face direita, deixando-o desconcertado e vermelho de vergonha. – Desculpe-me. Esta é a melhor forma de demonstrar minha alegria, não só pelo seu presente, mas pela maneira carinhosa com a qual o senhor me deu e como entendeu cada detalhe, cada desejo meu nesse projeto. – Você é uma graça, menina – disse-me ele rindo. – Vá em frente e continue assim, alegre, espontânea e cheia de vida. – Continuarei. – Agora tenho que ir. Preciso ver como andam as coisas lá pela fazenda. E, qualquer dúvida, me procure. – Procuro, sim. – Um bom-dia para você. – E para o senhor também. Ah, não se esqueça de limpar o batom do rosto – disse eu para ele. Ele saiu rindo. Ao entrar no carro, ainda me acenou e, com um lenço na outra mão, limpava a marca de batom que ficou na sua face. Ficou algum tempo por aqui, mas infelizmente foi embora antes mesmo que eu começasse a construção. E nunca mais voltou. Não tive o prazer de mostrar para ele o quanto a casa ficou bonita. Os preparativos continuavam, mas tínhamos que ir devagar. Era época da corrida ao ouro sim, mas não era fácil. Estava trabalhando num grande projeto, num grande sonho, que tinha altos custos. E de etapa em etapa, já tínhamos avançado bem. Primeiro, compramos o básico, como material elétrico e hidráulico. A parte de madeira, portas e janelas, estas compramos aqui mesmo, pois já contávamos com uma excelente fábrica de móveis e esquadrias, de linha colonial, cujos proprietários eram oriundos de Cafelândia, no estado de São Paulo. Eles vieram também movidos pelo crescimento da região e aqui se instalaram. São ótimos profissionais na arte da marcenaria. Pessoas dignas e prósperas que também marcaram muitos pontos no desenvolvimento de nossa cidade, gerando 220
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empregos, divisas e também por divulgar e tornar conhecida esta região através de um trabalho sério e de qualidade. Quando já tínhamos todo o material, passamos a economizar dinheiro para a mão de obra. Queríamos começar e terminar de uma vez, sem parar, como se diz: receber na chave. Nesse período, atravessamos uma época de instabilidade. O comércio dava sinais de altas e baixas, inflação alta, moeda desvalorizada e também surgiam muitos concorrentes. Os imigrantes perceberam que era bom para vender de tudo e começaram a abrir muitas lojas. Eles puxavam amigos, parentes e conterrâneos. Cada um puxava uma pequena parcela dos meus clientes e com isso diminuía meu caixa. Sorte que foi uma fase passageira. Muitos desistiam por falta de vocação, por falta de jeito para a coisa, mas eu seguia em frente, passava pela concorrência e me mantinha na dianteira. Ainda não tinha filhos, o que me deixava completamente livre para o trabalho. E assim todo o dinheiro que entrava era guardado, reservado. Como sabemos, o difícil é começar. A gente ia juntando e contabilizando, mas ainda faltava muito. Talvez com um ano de economia, daria para começar a construção. Empenhava-me para chegar nesse ponto. Mas, numa feliz noite, enquanto conversávamos no bar JZ, apareceu um senhor à nossa procura. Nós não o conhecíamos, mas um amigo que estava conosco era seu conhecido e levantou-se para cumprimentá-lo, em atitude de respeito e muita estima. O senhor era um renomado fazendeiro da região. Ele nos procurava porque queria comprar um lote, um terreno para construir aqui uma casa, pois estava se mudando para cá. Já tinha visto outros terrenos, mas sua mulher tinha visto e gostado do nosso terreno. Daquele onde íamos construir a nossa casa. Ela, a esposa, disse para ele que procurasse o dono e comprasse o terreno. Após nos ser apresentado pelo amigo, conversamos e ele perguntou se queríamos vender o terreno. 221
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Pegou-nos de surpresa. Ficamos balançados. Pelo jeito ele queria mesmo comprar e não importava o preço, só queria o terreno. Não venderíamos nosso terreno, que foi tão cuidadosamente escolhido. Mas a tentação do dinheiro para começar logo a casa foi grande. Com o dinheiro compraríamos um terreno menor e sobraria para completar o da construção. Conversamos por um bom tempo, porém não lhe demos resposta na hora. – Pensem bem e espero que a resposta seja sim. Minha mulher quer o terreno e não sou de contrariá-la por nada. Você tem o que ela quer e eu tenho o dinheiro, diga quanto quer e faremos o negócio. – Está bem, senhor. Vamos analisar. Depois o procuraremos. – Aguardarei, mas só até amanhã, pois tenho pressa. – Está bem, amanhã teremos a resposta – disse eu. – O homem é decidido, não? – disse Eduardo. – É. Este aí é conhecido, tem fama de ser boa gente, homem de atitude, e foi sempre assim – disse uma pessoa. – É bom saber, para o caso de vir a ser meu vizinho. – Melhor você não poderia encontrar – disse o amigo que estava conosco. – Bom, se é assim, já é um passo. Em casa continuamos analisando a proposta do comprador. Daí surgiu a ideia de vender a metade, porque o terreno era muito grande. Podíamos vender uma boa área para ele e ainda nos sobraria o suficiente para o nosso projeto e com folga. Decidimos então vender metade do terreno para aquele homem. Porém o preço que Eduardo pretendia pedir eu achava quase impossível uma pessoa querer pagar. Caso aceitasse, juntando aquele valor com o que já tínhamos reservado, daria para pagar a mão de obra da construção. Se faltasse dinheiro, seria muito pouco. Na noite seguinte nos encontramos no local e hora combinados. 222
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– E então, o que decidiram? – Decidimos lhe fazer uma proposta. O terreno tem 48m de frente por 62m de fundos. Podemos lhe vender uma área de 20m de frente por 62m de fundos. Dá para o que o senhor pretende? Ele analisou, fez as contas e concluiu: – Sim. É uma boa frente. Um bom tamanho. Qual o preço? Eduardo deu o preço e ele não discutiu uma vírgula. – Amanhã cedo iremos ao cartório para providenciar a escritura e o pagamento. No dia seguinte, fomos e realizamos o negócio. Eu estava só de companhia porque o terreno estava escriturado no nome de Eduardo. Tudo pronto. Dinheiro no banco. Material encostado. Contratamos uma equipe da capital para executar o trabalho. Aí vou eu novamente com a turma da construção civil. Tinha que acompanhar, administrar a obra. Eduardo nunca tinha tempo e nem se interessava, porque não gostava. Para mim, tudo bem. Eu amava me envolver nessas atividades. É emocionante ver uma obra ser erguida, ver como ela cresce a cada dia. Como vai tomando forma, como vai encaixando cada detalhe. Portanto, não tive medo de aceitar o desafio. Eu estava sempre ali controlando tudo, inclusive para evitar o desperdício de tempo e de material. Êta turma desmedida, esta da construção civil! Eles não zelam nem um pouco pelo aspecto econômico. Vão gastando, derramando, quebrando; quando você percebe já gastou material para quase mais uma casa. E mesmo você estando junto, eles não respeitam. Na hora que você vira as costas eles fazem de propósito; nem todos são assim, as exceções existem. Por isso, não largava e ficava atenta a tudo, ficava na cola deles. E assim a casa foi crescendo e tomando forma definitiva, até que um belo dia ela estava pronta. Quem já construiu uma casa, sabe o tamanho do prazer que a gente sente. Você olha e não acredita que foi capaz de fazer algo tão 223
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grande e bonito. Algo que vai durar por dez, vinte, trinta, oitenta ou até cem anos e saber que foi você que ali a deixou. Dá uma sensação de poder, uma sensação de realização. Ali estava a minha casa como eu sonhei. Bonita, grande funcional e diferente. Esperei Eduardo chegar do campo. Encontramos o encarregado da obra e fomos para recebê-la. Depois de tudo conferido, o rapaz disse ao nos entregar a chave: – Está pronta! Agora só falta a festa. – É, meu amigo, seria bom, mas vai ficar para outra vez – disse eu. Que festa que nada! Eu precisava mesmo era de um bom descanso, precisava dormir um bocado, pois tinha sido um rojão danado. Aquela conquista me rendeu muitas alegrias. Pois, sendo uma casa diferente das demais já existentes, ela chamava mesmo a atenção. E posso até dizer que foi um marco, um ponto de partida para despertar a vaidade dos outros moradores da cidade. Um despertar para um novo estilo de construção, um novo estilo de arquitetura. Dali por diante, muitas casas bonitas foram surgindo. Hoje temos edificações lindas e que ditam o bom gosto das pessoas desta cidade.
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31 Enfim, a casa nova udamo-nos para a casa nova sem oficializar M o casamento. Na realidade era uma coisa que não tinha mais tanta
importância para mim. Tinha perdido o encanto pelo casamento, aliás, não mais queria me casar. Não queria mais assinar um compromisso, um documento, documento este que para ser desfeito torna-se uma verdadeira dor de cabeça. Estava bem em cima do muro. Mediante tantas coisas negativas que já tinha acontecido no nosso relacionamento, era hora de cair fora e não de me enrolar mais ainda. Mas agora tinha minha casa nova. Tanto sonhei com ela que não queria deixá-la, tinha de continuar o jogo. Deixei o barco correr livre, soltei os remos. Tinha perdido muito naquele jogo. Perdi tempo, dinheiro, trabalho, juventude, saúde, equilíbrio emocional, família, amigos. Tinha perdido tudo mesmo. Só me restava continuar jogando para recuperar o prejuízo. Só me restava ele, só me restava um relacionamento que já nascera doente, distorcido. Com Eduardo, tudo era pelo avesso; nada com ele era normal, nada era convencional. Depois daquela traição, que me deixou doente de tristeza, eu achava que era o que de pior podia me acontecer; não fazia ideia do que ainda ia passar. Aquela traição escandalosa foi só um espelho retrovisor colocado à minha frente, para que eu pudesse ainda olhar para trás e ver 225
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que já tinha uma enorme montanha de sujeira acumulada e que ela me seguiria e me engoliria, fazendo-me desaparecer dentro dela. Só que eu não queria olhar pelo retrovisor, queria seguir em frente e sempre com a esperança de que algo bom ainda ia acontecer. Mudei para a casa nova, mas já levando algumas mágoas, que guardava comigo, pois não tinha como me livrar delas. Apesar das realizações positivas no aspecto financeiro, não conseguia me encontrar na vida sentimental. A boutique também ganhou novas instalações. Fora construída uma sala anexa a casa, para essa finalidade. Ela estava muito bem e me proporcionava muitas alegrias. Bem, casa nova, vida nova, não é? Estava tão envolvida com tudo que até voltei a me sentir feliz. A casa nova me restabeleceu a alegria perdida. Era uma espécie de recompensa pelo que eu havia passado. Na vida não se tem tudo e o que vem de bom devemos aproveitar com garra e otimismo, porque das coisas ruins também não podemos fugir, elas vem e nos encontra. E por falar em coisas ruins, foi nessa fase, depois da casa nova, que as cinco piores delas me aconteceram. Cinco fatos que mudariam radicalmente o meu jeito de ver a vida, que mudariam radicalmente meu jeito de ser, alegre, romântica e sonhadora.
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32 Os cinco fatos que mais marcaram minha vida 1º Fato - Morre minha irmã Heloísa entei entrar com o pé direito na casa nova. T Torcia para que dali em diante as coisas andassem pra frente nova-
mente, mas... Dói muito ao iniciar este relato. Sinto-me bloqueada, travada, pois gostaria de falar só de amor, de paixão, do belo e da vida. Da vida? Que é a vida para nós? Somos simples protagonistas dentro dela! Quem somos nós para tentar entendê-la? Lembro-me bem: era uma bela e ensolarada manhã do mês de julho. Hoje cedo, ao levantar e me preparar para escrever, de repente sinto que o clima está tão parecido com o daquele dia. Daquele horrível dia. Lembro-me, então, que coincidentemente estamos no mês de julho de 199... e que está próximo o aniversário daquele episódio fatídico. Pensando nisso sinto uma tristeza profunda. Abro a porta e saio para ver se o dia está igual àquele de anos atrás. E estava, estava terrivelmente parecido. Céu limpo sem nuvens, sol claro e um vento frio que vinha do leste. 227
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Volto para dentro de casa, pego papel e caneta. Sento-me, preciso escrever, mas minha mão fica paralisada, mente travada. Tento sair daquele travamento, tento desbloquear minha mente e, aos poucos, a cena vai se reconstituindo claramente, clara até demais. Certo dia, como outro qualquer, começava cheio de planos e movimentação, o que é natural na vida de quem trabalha. Na programação desse dia, tinha uma tarefa que era a minha preferida. Uma vez por semana, eu ia ao sítio comprar verduras, frutas e legumes fresquinhos, colhidos na hora e lavados na bica de água cristalina. Era uma obrigação gostosa e intransferível. Eu não delegava aquela tarefa a ninguém. Bem cedinho, passava na casa de minha amiga Raquel ou ela passava na minha. Íamos para o sítio, às vezes de carro, às vezes de bicicleta ou até mesmo a pé, pois o trajeto era uma agradável caminhada. Lá colhíamos frutas e verduras, jogávamos nas cestas e depois fazíamos um gostoso e relaxante passeio pelos arredores do sítio. Trazíamos flores colhidas na vereda de areias brancas. Com elas eu enfeitava a fruteira da mesa ou um vaso de cerâmica rústica, que harmonizava perfeitamente com aquela obra da natureza. Naquele dia, ao retornar do sítio, encontro a funcionária da boutique em desespero, pois não conseguia me encontrar. Esquecera completamente que era o dia da minha ida ao sítio. Quando me viu estacionar em frente à boutique, correu ao meu encontro. Estava com uma expressão de dar medo. Vi que algo muito grave tinha acontecido. – Celeste, graças a Deus que você chegou! – Que aconteceu, menina? – Entra! Senta aí. Ah, meu Deus! Enquanto falava, ela ia me puxando para dentro da loja e me jogou numa cadeira. Chorava e já me estendia um copo com água. 228
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Peguei o copo e fiquei paralisada mediante tanta aflição. – Não sei como te falar... Ah, meu Deus... – Fala logo e pronto! Não tem que me falar? Que coisa! Está me deixando pior! Vamos, fala. – Laura ligou (Laura era uma de minhas irmãs). – E daí? – Foi a Heloísa. – Que tem a Heloísa – Ela... ela morreu! – Como morreu? Está maluca? Que coisa mais estúpida é esta que está me dizendo? Neste momento, eu já estava de pé e sacudindo a moça pelos ombros. Gritava com ela, sem me dar conta do que estava dizendo ou fazendo. – Calma, Celeste, calma. Tente se controlar, você precisa ser forte. – Como minha irmã ia morrer? Imagina, ela é tão jovem e cheia de vida? Você parece que é idiota, não sabe nem dar um recado. Deve ser uma doencinha de nada, uma coisinha qualquer. Imagina ela morrer! Minha irmã não, para de ser tola, menina. Dizia coisa sem nexo e agredia a moça que pacientemente tentava me acalmar. – Ela não morreu, ela não pode fazer isso comigo, eu sei que ela não morreu... Corri para o telefone. Liguei. Do outro lado atenderam imediatamente. – Alô, aqui é a Celeste. Só ouvia soluços do outro lado da linha e uma voz entrecortada que tentava me dizer alguma coisa. – Alô? É você Laura? – Não, sou eu, Anita (Anita era outra irmã). Celeste, aconteceu algo terrível. – Eu não quero ouvir! 229
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Mesmo sem eu querer ouvir, ela falou. – A Heloísa faleceu. A encontramos já sem vida, no quarto; estava do mesmo jeito que dormiu – disse-me ela aos prantos. Joguei o telefone para um lado, não queria mais tocar nele. Fiquei olhando para ele e ainda ouvia a voz dela do outro lado da linha... – Alô... Alô... Fiquei sem fala, me recusava a acreditar, não queria acreditar. Para mim, era mais fácil agredir a moça que me dera a notícia; mas agora não dava mais para ignorar os fatos. Deixei-me cair numa poltrona e só então percebi que já havia várias pessoas ao meu redor tentando me apoiar. Aos poucos fui perdendo as forças, o sentido. Desmaiei. Ao recobrar os sentidos, sentia uma terrível sensação e queria não ter voltado nunca mais ao meu estado normal. De repente, aquela bonita manhã de sol não existia mais, tornar-se-ia triste e sem qualquer sentido. Sentia um amargo horrível na boca e ouvia as pessoas como se elas estivessem distantes, era só um eco confuso. Sentia-me péssima, porém tinha que me organizar e partir imediatamente. Não podia perder um minuto. Como nunca, elas precisavam de mim. Peguei minha bolsa de mão, chamei minha outra irmã que morava comigo e partimos na mesma hora. Naquele dia tivemos a ajuda de um grande amigo, que nos levou e deu total apoio durante a viagem. Hoje ele também já não se encontra mais entre nós. Partira algum tempo depois, vítima de um acidente de carro. Deixou-nos muita saudade e uma grande falta, pois era uma pessoa amiga, companheira e que servia a todos com carinho. A ele minha póstuma gratidão. Durante a viagem, só conseguia chorar e imaginar como eu poderia passar por tudo aquilo. Como iria vê-la sem vida, inerte, pronta para a viagem final? Pronta para o nosso último adeus? 230
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Por que ela? Que era tão cheia de planos e sonhos? Nunca havia eu passado por uma dor daquele tamanho; tentava ser forte, mas era impossível. Chegando lá, me deparei com o pior quadro que podia imaginar. Papai, sentado num canto e muito abalado, chorava copiosamente. Minhas outras irmãs, em estado de choque. A caçula era a mais desesperada, pois fora ela que encontrara a irmã, sem vida, ao entrar no quarto onde ela dormia, pela manhã. Da irmã falecida, avistei o filhinho que, na época, tinha apenas nove meses de vida. Ele chorava no colo de alguém que eu não conhecia. Chorava como se entendesse que perdera sua querida mamãe, para sempre. A casa estava cheia de gente, todos tentando ajudar de alguma forma. O corpo tinha sido recolhido ao IML, para autópsia, e tínhamos agora que aguardar para dar início ao velório. Estava com o coração em pedaços, mas não seria naquele momento que iria fraquejar. Tentei arrumar as coisas, daqui e dali, e todos, aos poucos, foram se acalmando. Sentiam-se mais apoiados com minha presença. Só à noite o corpo foi liberado para a capela. Ali já aguardávamos para as últimas homenagens. Quando os agentes funerários terminaram de arrumar tudo, os familiares e amigos começaram a se aproximar do esquife para vê-la. Eu fiquei para trás. Queria adiar o quanto pudesse aquele último encontro. Mas tinha que vê-la pela derradeira vez. Depois de muito relutar, fui me aproximando e chegando perto do corpo. Toquei-lhe a face, que estava branca e fria como a cera; seus olhos cerrados já não brilhavam mais; seus cabelos, antes tão bonitos, estavam presos e recolhidos para trás, de onde nunca mais sairiam; suas mãos postas estavam geladas e arroxeadas. 231
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Só então acreditei que ela realmente partira e que tudo estava acabado: nada mais eu podia fazer por ela. Não consegui ver mais nada. Só chorava e me sentia fraca e insignificante perante a vida. – Meu Deus, se sua face está assim, branca e fria, imagina seu coração que sofrera tanto, ao ponto de causar-lhe a depressão profunda que resultou em sua morte. Ela passara grande desilusão amorosa. Conheceu um rapaz e por ele se apaixonou. Desse amor nascera seu filho, que não foi reconhecido pelo pai. Ele a deixou apenas com a dor da desilusão e um coração magoado. Ela sentia muita culpa por ter se tornado mãe solteira, embora todos lhes fizessem entender que não a condenávamos. Mesmo assim, ela se sentia numa situação dolorosa, pois, além de tudo, aquilo era contra seus princípios morais e religiosos. Quando tudo isso aconteceu, ela se afastou de todos, sentiu culpa e vergonha. Foi ficando muito triste, isolada e infeliz. Teve uma gravidez de muita dúvida e incerteza quanto à criação e educação de seu filho: como criá-lo e educá-lo com segurança? Quando o bebê nasceu, ela cuidou dele com esmero e dedicação. Mas se isolava cada vez mais de tudo e de todos. Por fim, se entregou de vez a uma tristeza tão grande que dava pena de ver. Não reagia a nada nem por nada. Só tinha um sonho que acalentava seu coração. Era o de ver, um dia, o pai de seu filho entrar por aquela porta, pegar seu bebê no colo, segurá-la pela mão e conduzi-los para uma vida feliz e digna. Embora tivesse um pretendente que a amava e dizia assumir seu filho e criá-lo como se dele fosse, ela não queria, amava o pai da criança e era dele que eles precisavam. Sonhava com seu amado e esperava encontrar nele toda a felicidade e tranqüilidade que havia perdido, por confiar nele de uma 232
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forma tão ingênua. Esperava dele uma atitude, uma reparação. Um simples encontro para aliviar seu constrangimento. Porém morrera, partira para sempre sem realizar seu sonho, sua alegria, pois ele jamais se manifestou a respeito do assunto. Não fora honrado o bastante para sequer lhe fazer uma visita e amenizar sua dor. Quem veio ao seu encontro foi a morte, fria e covarde, na calada da noite, talvez por ela tanto a haver desejado, pois não tinha mais alegria. Amava demais seu filhinho, mas o outro lado estava completamente vazio e sem esperança. Minha irmã estava muito abalada e não conseguia mais seu equilíbrio interior. Só lhe restou a morte. Ela se foi, mas deixou para nós a sua lembrança naquela linda criança, naquele bebê, que hoje é um bonito rapaz e graças a Deus é feliz, educado e de bom caráter. Muito bem criado pelos tios Anita e Álvaro, que o adotaram. Anita e Álvaro se conheceram e se casaram após ela ter morrido. Anita, mesmo ainda solteira, foi quem mais se decidiu na adoção dele. Dois anos depois, casou-se e levou o pequeno com ela. O pai biológico é atualmente um “Senhor” Deputado, lá no estado do Paraná, eleito, talvez, mediante a promessa mais recorrida pelos políticos, que é a de “acabar com a situação miserável da criança abandonada”. Irônico, não? Gostaria imensamente de revelar aqui o seu nome, mas deixa pra lá... É apenas mais um mentiroso entre tantos outros que há pelo Brasil afora. Não tivesse aquela criança uma família que o amou e o acolheu com carinho, seria ele, com certeza, mais um mais um menor abandonado. Com a perda dela, que era quem mais cuidava da casa, e pelo fato em si, desestruturou completamente a vida da família. A lembrança era muito marcante e por ter ocorrido a morte em casa, ficou o trauma para quem lá vivia. 233
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Tiveram que mudar de casa e de cidade. Voltaram para cรก; queriam dar um tempo e esquecer um pouco aquela dor.
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33 2º Fato - Um órfão me trouxe um presente omo já vimos, antes de Anita se casar – e C isso só veio acontecer dois anos depois da morte de Heloísa –, eles
ainda voltaram para morar aqui e trouxeram o pequeno órfão. Então surgiu o problema. Quem ficaria com o bebê? Todos eram solteiros ainda e não tinham base para assumir uma criança assim de repente. Os que eram casados queriam adotá-lo, mas moravam longe, e nós não queríamos nos separar dele. Eu não tinha filhos ainda, por imposição de Eduardo, é bom lembrar, mas já tinha estabilidade para tanto. Então, com filhos ou sem filhos, éramos os mais indicados no momento para assumir a criança. Apesar dos altos e baixos de nosso relacionamento, eu assumiria com todo o prazer, porém ele se recusou prontamente. Quando abordei o assunto com ele, foi um deus-nos-acuda. O homem foi de uma frieza de congelar a alma. – Se não quero filhos próprios, por que vou adotar filho dos outros? – Mas, Eduardo, é um caso especial. É meu sobrinho, é meu sangue. Por que não tenta entender? – Pois que vá com os outros tios, que são casados. – Eles querem e como querem! Mas a criança ficaria longe de papai, longe da gente. Iríamos sentir muita falta dele. Afinal, fomos nós que vivemos bem de perto tudo o que aconteceu. Não é justo 235
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separá-lo de nós agora. – Pois que se organizem e cuidem dele. Não quero e está encerrado o assunto. Já andava com nojo dele e com mais nojo fiquei. Que criatura mesquinha e nojenta. Até onde iam seus ciúmes? Sua mania de posse, sua mania de manipular e de dominar as pessoas? Aquilo era sufocante, revoltante. Como é que alguém tolera isso? – sempre me perguntava. O Zé Bedeu tinha de ser obedecido em tudo, obedecido nas suas maluquices ou fazia coisas do tipo: se emburrava num canto, não falava com ninguém nem respondia a nada. Chutava tudo e xingava a quem encontrasse pela frente. Tirava a roupa e a atirava fora. Pratos e xícaras voavam pelos ares. Batia portas e saía em disparada. O tempo fechava quando era contrariado em alguma coisa. Seu complexo de rejeição era tão grande que uma dúvida devia lhe atormentar demais. Era o medo de não ser respeitado. Mas ele não sabia se fazer respeitar. Apenas a gente tinha medo de sua língua ferina, das suas reações extremistas. Mas respeito, não. Por que é que será que alguém se protege tanto assim? Como ele se protegia? Por que será? O que será que tenta esconder? Bem, só sei que na companhia de tal criatura não foi possível adotar a criança. Mas sempre que podia trazia Rafael para ficar comigo um pouquinho. Amava-o muito, só não podia demonstrar meu amor por ele sem que a fera não mostrasse os dentes e as garras afiadas. Sentia-me muito constrangida, pois ele sequer olhava para a criança que, muitas vezes, lhe estendia as mãozinhas numa atitude inocente. Balbuciava algumas palavras, mas ele passava reto, nem olhava, ignorando totalmente aquele apelo de atenção. Aquilo me matava de dor. Que será que aquele homem havia sofrido para ser tão insensível e avesso a qualquer gesto de carinho? 236
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Nesses momentos, eu tentava amenizar o quadro e dizia: – Toma, Eduardo, segura o bebê um pouquinho? – Tira! Tira! Você sabe que não gosto de crianças. Tira-o de perto de mim, não suporto essas coisas que só choram e comem. Era horrível. Cada dia, cada minuto eu descobria uma coisa ruim naquele homem. Será que não tinha uma única boa qualidade? Uma sequer? Com certeza, eu estava lutando com um louco, um maníaco, um demente, um psicopata e não sabia. Ou minha boa-fé era grande demais que não dava para imaginar alguém assim, às soltas, convivendo normalmente com as outras pessoas. Ele foi ficando com tanto ciúmes da criança e via que ela estava me tomando muita atenção, que logo armou uma das suas. Um belo dia, quando chegou do trabalho, eu estava com o bebê no colo e dava-lhe um copo de suco. Quando ele entrou, olhou atravessado para a criança e passou sem ao menos cumprimentarme. Sumiu casa adentro. Depois mandou Jurema me chamar. Queria falar comigo, no quarto, a sós. Como sempre, fui atendê-lo imediatamente. – Boa-tarde. Como foi sua semana no trabalho? – Tudo bem. – Muita chuva atrapalhando o andamento das obras? – Muita, mas não é disso que quero falar. – Pensei que fosse, pois os únicos assuntos que lhe interessam nesta casa são: trabalho e dinheiro. De qual dos dois você quer falar? – Ora! Dane-se com sua ironia! Quero falar sobre este menino. – O nome dele é Rafael, se você não sabe. – Eu sei. Só não sei por que ele está sempre aqui. É só isso que não sei. – Ele está “sempre” aqui, porque eu quero e vai estar o quanto eu bem quiser. 237
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– Eu não quero e nem gosto de vê-lo por aqui, toda vez que eu chego. – Ora! Vá se danar. Não tenho que lhe obedecer em tudo. – Não estou para brigas. Dá para você ficar calma e me ouvir? – Com você é impossível alguém ficar calmo! Já estou cansada de só lhe entender, de lhe passar a mão na cabeça, de lhe obedecer. Com isso você só cresce mais e mais na sua loucura. Você só exige mais e mais, parece um demente. Você goste ou não, é problema seu. Rafael virá e ficará aqui sempre que eu quiser. – Já lhe disse que não estou para brigas. – Que bonitinho, e para que você acha que estou? Se você me proíbe de convívio até com uma criança. – Vamos parar? Quero lhe falar de uma coisa que você vai gostar. – Não me diga? Até que enfim, vou ouvir algo de você e do qual vou gostar? – Também não quero ouvir suas críticas. – Claro que não quer. Mas me diga o que quer. – Estive pensando e DECIDI que está na hora de termos nossos filhos. – DECIDIU, é? Mais uma das suas decisões, é claro. Aliás, como tudo, tem que ser como você quer e decidi. Não lhe ensinaram que os outros têm suas próprias opiniões e decisões também? – Não é isso. É que me deu vontade de ver uma criança nesta casa. – Hummm, que mudança! Para quem até bem pouco tempo não queria nem ouvir falar em crianças e tem horror a idéia de ter filhos. – É que pensei muito e me deu vontade. – Muito pouco seus argumentos. Isso está me cheirando mais é a ciúmes, Eduardo. Não vou entrar na sua paranóia, para depois você até maltratar esse filho quando ele nascer. Sei lá o que se passa na sua cabeça doente. Para sofrer as conseqüências desse enorme 238
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erro que cometi já me basto eu. – Com este menino, desculpe, com o Rafael por aqui comecei a gostar da ideia de ter um filho ou mais de um. Comecei a entender que não é como eu pensava e mudei de opinião. Agora quero ter nossos próprios filhos. – Duvido muito. Você é uma pessoa doente, Eduardo. Doente de tudo e principalmente de ciúmes. Não conheço ninguém com uma mente igual à sua. Como quer ser pai, agora? Assim de uma hora para outra? Pra mim, está muito bem assim, pois ficará mais fácil quando eu quiser acabar com esta farsa que tenho vivido. – Eu mudei, já disse. – Isso não se resolve com um estalar de dedos. Mas, com o tempo, você pode me provar que realmente mudou. – Você não confia em mim? – É brincadeira, não é? E por que deveria confiar em você? Saí sem lhe dar chance de continuar a conversa. Saí à francesa, pois fiquei eufórica com a idéia, mas não podia demonstrar para ele ali naquele momento. Fiquei muito feliz com a surpresa. Fiquei toda agitada com a chance de poder pensar em ter meu filhos. Fiquei radiante! Num segundo tudo mudava dentro de mim. E eu já começava a sonhar, a imaginar um bebê. Meu instinto maternal, que estava morto, adormecido, despertou. Não há quem resista a isso, ainda mais quem, como eu, fora criada numa família de nove irmãos, e na vida adulta estava sendo privada de ter meus próprios filhos. Disfarcei, fui para o quarto e me tranquei lá. Ali pude dar pulos de alegria e socos no ar. Como disse antes, ele sabia me manipular de maneira perigosa. Sabia atacar como uma serpente que fica à espreita. Estava sempre calado, mas me estudava instintivamente e sabia aplicar o golpe na hora certa, e não errava um. Resolvera tirar a criança de 239
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mim e foi o meio mais curto e seguro que achou. Envolver-me-ia com a gravidez e esqueceria o sobrinho que, segundo sua imaginação, estava me roubando dele. Mas fiquei quieta com o assunto e passei a pô-lo em teste, em prova com relação ao comportamento dele com as crianças. Foi ficando que era só atenção com Rafael. Até pegava-o no colo, muito sem jeito, mas tentava. Já lhe presenteava com algumas iguarias que criança gosta, fazendo-lhe agradinhos. Quando encontrava a criança comigo, afagava aqueles cabelos loiros e cacheados, ao que ela reagia com um sorriso de dois dentinhos. Podia agora ficar com Rafael em casa, por mais tempo sem receber aqueles olhares atravessados. Passeava com ele e ele brincava feliz na minha companhia. Um dia Eduardo chegou perto de nós, enquanto tomávamos sol no jardim. Então arrisquei aumentar a dose do teste. – Olha, Eduardo, como ele está bonito? – É um menino muito bonito mesmo. Vem cá pro titio, vem? – disse agachando-se para a criança chegar mais perto dele. – T i t i o? – perguntei – É. Não sou tio dele também? – É. Claro que é... Amoleci toda, mas não fiz nenhum comentário. Cuidado, Celeste, isto é fita. Não se deixe levar pelas aparências outra vez. Mas ele fazia uma fita muito bem feita e ia me convencendo. – E aí, ainda pensa em ser pai? – continuei. – É só o que quero agora. – É bom pensar muito, você sempre se refere às mulheres grávidas como sendo a coisa mais feia do mundo. Não suporta ver algumas exibindo aquelas barrigas ridículas, parecendo umas bobas. Não é assim que você acha? E há também as que engordam e ficam feias depois do parto. Eu posso ser uma delas, pois sou de 240
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família que as mulheres ganham mais peso durante a gravidez. – É só você se cuidar, para não engordar. – Não posso lhe garantir isso. Dizem que na gravidez a gente sente muita fome e eu não sou de fazer dietas. Tenho horror a regime para emagrecer. Não quero sentir culpa cada vez que quiser comer. Como, e pronto. – Mas que desculpa mais sem sentido essa sua, agora. – Sem sentido nada. E se durante a gravidez você me rejeitar. Rejeitar a mim e ao seu filho? Depois não tem mais jeito. – Não sou louco de rejeitar meu próprio filho. – Já vi tantos fazerem isso. – Ora, que conversa mais sem graça. – Você não me inspira confiança, Eduardo. Algo me diz que tem em mente outras ideias, menos a de ser um verdadeiro pai. Ser pai ou mãe é tarefa das mais delicadas para um ser humano. – Já sou bem adulto para saber o que quero. – Principalmente quando é do seu interesse, não é? Não quis mais discutir. Não queria ouvir algo que me fizesse desistir de levar em frente o que já estava se concretizando dentro de mim. Ele me dera abertura para pensar no assunto e agora estava eu mais apaixonada pela maternidade. Queria meus filhos, imaginava-os correndo e brincando pela casa. Outro tormento que criei para a minha cabeça, pois fiquei dividida como uma melancia partida ao meio. Por um lado, queria demais ter meus filhos; por outro, tinha medo, tinha dúvidas mediante nosso já comprovado desajuste conjugal. Nosso relacionamento estava mais para acabar do que para continuar. Tanto tempo de vida em comum, mas não combinávamos em nada. Só ainda se mantinha boa parte da grande atração física. Isso era fato, mas a formação e a criação de uma família não dependem disso. Como resolver sem me questionar tanto? Por que tudo que envolvia Eduardo era complicado e difícil? 241
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Não lhe dizia que sim nem que não, mas não decidiria aquilo sozinha, esperaria por uma vontade superior à minha e a dele. Dei um tempo e depois de pensar muito, parei com o anticoncepcional e me deixei guiar pela própria natureza. Ela não me fez esperar muito, me respondeu imediatamente. Fiquei grávida. Quando lhe mostrei o resultado do laboratório, ele demonstrou grande alegria. Foi solidário, me abraçou forte e prometeu muitas mudanças. Pronto, estava feito. Se daria certo ou errado, só Deus sabia. Será que não seria mais uma peça errada naquele enorme quebra-cabeça? Já tinha muitas e todas erradas. Era hora de largar o jogo. Mas eu não, continuava pondo as peças mesmo sabendo que não estavam no lugar certo, sabendo que no final não combinariam. Não é assim? Não gostamos de desafiar a lei do óbvio? A gravidez se tornou notícia, todos me parabenizavam. Estava feliz, mas não podia “curtir” minha barriga. Continuava com muitas dúvidas em relação ao comportamento dele com a criança que estava por vir. Não conseguia relaxar e só tinha medo, além do mais continuava trabalhando, viajando muito e sozinha. Quando me queixava, ele ainda dizia: – Gravidez não é doença. – E o que você entende disso? Não estou me queixando da gravidez e sim dos riscos que corremos eu e a criança, viajando e principalmente sozinha. Cada vez mais me sentia explorada. Isso me indignava e era motivo para mais brigas. Quanto eu já tinha ajudado aquele explorador? Por que ele não me tirava a sela e as esporas, nem durante a gravidez? Foi um período que eu não tive problemas de ordem física. Mas vivia sempre às voltas com os de relacionamento. Não sentia paz um minuto sequer. Foi uma gravidez que não pude curtir mesmo. 242
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Estava mais triste, não pelo filho que gerava e sim por minha incapacidade de reagir contra os comandos de um desequilibrado. Não bastasse todo aquele conflito interior, um belo dia Eduardo me vem com mais uma de suas maravilhosas ideias. Mais uma vez ele “pensou” e “decidiu”. Até a presente data, não conhecia seus familiares, nem mesmo minha sogra. Ele não fazia muita questão de nos aproximar e, pela distância que morávamos, o contato era só por cartas ou telefone. De toda a família, que não era pequena, a única pessoa que eu conhecia era um primo dele, que por um acaso, certo dia, passou na nossa casa. E assim sendo, ele resolve convidar a mãe dele para passar uma temporada conosco, em pleno terceiro mês de minha gravidez. – Ai meu Deus, como ele faz tudo errado. Lá era hora para uma proposta destas. Para convidar a sogra que eu nem conhecia? Logo na minha primeira gravidez? Tanto tempo ele teve para fazer isso, mas não fez. Ia eu saber como era ela? Pelo tanto que falam mal das sogras, não dava para ficar tranquila, ainda mais com a amostra de filho que eu já conhecia. Se o filho era como era, como seria a mãe? Estava vivendo cheia de dúvidas. Não sabia como conduzir o fato de ser mãe. Era uma experiência que vivia sozinha, pois ele em nada contribuía para minha tranquilidade, muito pelo contrário. Além do mais, sentia muito enjôo, azia, desconforto e trabalhava demais. Não tinha tempo para mais nada. E como é que ele queria trazer a mãe numa hora daquelas? O que eu podia fazer? Nada. Era aceitar e aceitar. Com isso fiquei péssima e de mau humor. Estava deprimida e só queria ficar só, quieta e pensar no meu filho que ia chegar, mas qual o que... Ele resolveu tudo e trouxe a mãe. Imaginem? Receber a sogra, pela primeira vez, num clima 243
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desses? Mas “ele queria” e lá vou eu apostar para ver. E ela veio. Ainda bem que dessa vez eu ganhei a aposta, incrível, mas ganhei. A mãe dele era uma pessoa boa e amável, alegre e comunicativa. Chegou e logo já se fez útil, me ajudando, me apoiando, me aliviando as dúvidas. Com o passar dos dias, ela foi se inteirando também de nossa situação conjugal e viu que a mesma não era das melhores. Aos poucos, ela foi entendendo como tinha sido minha vida ao lado do filho e estava decepcionada com ele. Sendo ela uma pessoa madura e experiente, viu tudo antes mesmo que eu lhe falasse qualquer coisa. Embora sabendo de nosso desajuste, ela não tomou partido contrário a mim, se tornando assim uma boa aliada, dandome força e se colocando sempre na minha defesa. Ajudou-me muito na confecção do enxoval do bebê. Acompanhou-me e orientou-me durante o restante da gravidez. Só sei que foi ela que esteve comigo nos momentos mais difíceis, inclusive quando fui para a maternidade. Foi ela que esteve ao meu lado, sempre prestativa e carinhosa. Quando viu sua netinha – a primeira do único filho que tinha -, se emocionou até as lágrimas, deixando-me muito comovida também. Ela cuidou muito bem de nós duas, de mim e de minha filha. Desdobrava-se em amor e carinho. Eu às vezes ficava enciumada e dificultava um pouco as coisas para ela, com relação ao bebê. Ela, porém, entendia meus ciúmes e não se fazia de rogada. Dizia já ter sido mãe de primeiro filho e sabia como era essa sensação, esse ciúme. Era uma pessoa justa, boa e bem humorada. Era a amiga que eu estava precisando. Contraditório, não? 244
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Mas, lembrando o título deste capítulo, quando digo: um órfão me trousse um presente, entendo assim, porque foi pela presença dele, Rafael, que eu pude ter minha filha, meu maior presente.
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34 3º Fato - A não amamentação os cinco episódios, este foi o terceiro pela D ordem dos acontecimentos, e o que mais mexeu com minha cabeça, pois tinha tudo a ver com o bebê que ia chegar. Para o final da gravidez, ele tinha se mostrado um pouco melhor. Até mesmo pela presença e as cobranças da mãe que não lhe dava trégua e tentava fazê-lo entender o verdadeiro papel de marido e pai de família, embora tarde, tarde demais, ela tentava. Com as cobranças dela ele já se mostrava mais carinhoso, menos agressivo e aceitava bem minha mudança física. Mas sempre me alertando para eu não engordar, me deixava quase maluca com o assunto. Mas vamos lá, esse comportamento já era previsto, porque ele valorizava muito o físico perfeito, mania de militar. Por outro lado eu não podia mesmo me descuidar da balança, por minha saúde e também pela profissão que exigia que eu estivesse sempre bem cuidada. Só que ele exagerava nas cobranças. Uma desculpa aqui, outra desculpa ali, fui passando e já me aproximava do oitavo mês. Na véspera do bebê nascer, eu andava mais calma, mais segura. Mas parece que ele não gostava de me ver feliz e logo jogou um balde de água fria na minha alegria me surpreendendo com uma terrível proibição que até hoje não entendo. Até hoje aquilo não cabe na minha cabeça. Uma proibição monstruosa, coisa de louco mesmo. Certo dia eu estava deitada, descansando depois do almoço, quando ele entrou no quarto. Sentou-se ao meu lado na cama, co247
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meçou a conversar e algum tempo depois fez comentários a respeito da minha barriga e também dos seios que tinham aumentado muito de tamanho. Já me encolhi toda e fiquei com pavor de ouvir o que ele poderia dizer depois. – Por favor, olha lá o que você vai falar, Eduardo. Te preveni que tudo isso acontece durante a gravidez, não me assuste. – Não, não! Você está muito bonita, aliás, mais bonita ainda e eu te amo mais a cada dia que passa. Olhei-o meio desconfiada, mas sentindo um pequeno alívio. – Que bom que você está vendo assim. E se eu ficar com o narigão vermelho, como muitas ficam? – perguntei. – Não tem problemas, depois volta tudo ao normal, não é? – Volta, sim. – Por mim está tudo bem, mas agora quero te pedir uma coisa. Aliás, pedir não. Vou fazer uma exigência, mas só para quando o bebê nascer. Meu Deus! O que seria dessa vez? – pensei gelada. – Ih, lá vem você. O que será desta vez, Eduardo. Se for a escolha do nome, pode desistir, não abro mão do que já escolhi: é um direito da mãe. – Não, o nome é este mesmo, acho muito bonito e bem diferente. – Ainda bem, não sendo o nome, pode falar. Pelo o resto a gente não vai brigar. Qual é a sua exigência? Manda aí – brinquei. Ele mandou. – Não quero que você amamente, dê o peito, ou sei lá como vocês dizem. Não quero ver você com uma criança pendurada no peito, parecendo uma lavadeira. Tenho horror só de pensar em ver isso, me dá nojo. – Para aí mesmo! Você me dá arrepios. Que coisa mais horrenda de se dizer, Eduardo! Ou até mesmo de pensar. O que se passa com você? Isso não é normal. Você precisa de ajuda. Precisa de um médico. Francamente. Por que me assusta tanto assim? 248
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– O que tem de errado com meu pedido? – Ainda me pergunta? Não sou eu que posso lhe responder isto, só um psiquiatra pode. – Não precisa me ofender, não sou louco, só não quero e pronto. – Olha, não vou discutir isso com você. Vá procurar um médico, ele poderá lhe ajudar a tirar esses traumas que você tem. Só pode ser trauma. Onde já se viu um absurdo desses? – Que médico que nada. Isso de amamentar é bobagem, é besteira, coisa de quem não tem o que fazer. Além de ser feio, tem aquela idiotice de horário para dar o peito. Toda hora tem que largar o trabalho e sair correndo para dar de mamar. É mesmo coisa de gente atrasada. Dá mamadeira e pronto. Pude ler nas entrelinhas que o infeliz já estava pensando nas horas que eu poderia perder deixando de trabalhar para amamentar a criança. Pensando no dinheiro que eu deixaria de ganhar naquelas poucas horas. – Isto que você está me exigindo e da maneira como está me impondo é crime, e vou recorrer à justiça se preciso for. – Veja como você quiser. Tudo eu aceito, menos isso. Não vai dar de mamar à criança e é assunto encerrado. Tentei acalmá-lo e fingi me submeter às suas ordens. – Darei o peito escondido. Você não precisa ver. – NÃO! Não quero rejeitar este filho, eu já o amo, mas isso de peito, não. Você não dará. Berrou aquela monstruosidade e saiu batendo a porta. Na sua expressão, notei asco e aversão pelo assunto. Parecia ter mesmo horror à cena da amamentação. Pronto, meu Deus, ele estragou tudo. Como vou me livrar disso? Como vou poder viver com essa proibição a me torturar? Como será quando meu filho nascer? Como eu poderia olhar para aquela criatura, dali em diante? Chorei muito. Fiquei abalada. Minha cabeça doía e eu sentia um grande medo, medo do que ele ainda pudesse inventar. 249
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A quem pediria ajuda? Aqui não tinha psicólogo, psiquiatra, ninguém a quem recorrer para um assunto tão delicado assim. Conversaria com o padre? Contaria para minha sogra? Será que ela estaria capacitada a me ajudar ou me diria coisas que piorassem ainda mais? Que acabasse de vez com a minha paz? Achei melhor não contar nada a ninguém. Fiquei calada. Calada e chocada. Fiquei com medo até de pensar nas palavras dele. Tentava tirar aquilo de minha cabeça, mas não conseguia. Era tudo um grande absurdo. Nem para discutir o assunto com ele eu tinha mais coragem. Como podia proibir a mãe de amamentar seu próprio filho? Parecia coisa de Hitler. A que ponto chegaria seus ciúmes? Fiquei transtornada de medo. Depois disso, podia esperar qualquer loucura da parte dele. Evitava discutir o assunto com ele, mas ele insistia e me aplicava verdadeiro terrorismo. Chegou mesmo a dizer que jogaria a criança pela janela, se me visse com ela ao peito. Cheguei a ter pesadelos imaginando a cena da criança sendo arremessada pela janela. Acordava sempre assustada e protegendo o ventre com as mãos. Perdi completamente a paz. Perdi também o apetite, não conseguia nem mais me alimentar. Perdi novamente a graça de curtir a gravidez. Às vezes olhava as roupinhas e não conseguia mais ver meu bebê vestindo-as. Fechei o bauzinho onde guardava o enxoval do nenê e não queria mais abri-lo. Fiquei muito deprimida e só chorava. Nada mais eu podia fazer para apagar aqueles traumas que ele estava me causando. Onde quer que eu fosse, eles me seguiriam. 250
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Era tanta decepção. E eu que tinha esperado tantas coisas boas daquele homem. Mas a cada etapa de nossas vidas ele só me decepcionava e ainda dizia que me amava. Amava loucamente; só se for loucamente mesmo. Evitava o assunto fingindo ter aceitado, pois não queria mais ser molestada. E chegou o grande dia. O dia que antes de ouvir aquele absurdo era o mais esperado nos últimos anos. Mas, mediante tal fato, já não era mais tão esperado assim. Tornara-se um dia que, se eu pudesse, teria adiado para nunca. Foi um dia muito tenso. Fui para a maternidade com aquela proibição na minha cabeça. Durante o parto era só no que eu pensava. Rezei tanto para ele não estar presente no dia do nascimento de meu filho. Deus, porém, não me ouviu. E ele, Eduardo, pressentia tudo. Como todas as pessoas mal resolvidas, ele não era diferente. Era muito desconfiado e, quando se sentia rejeitado, aí é que ele teimava em ficar. Aí é que ele teimava em impor a sua presença. Por uma grande coincidência, minha filha nasceria na véspera de um feriado nacional. E de folga, ele veio para casa na noite anterior e, na hora de eu ir para a maternidade, ele foi comigo. Infelizmente. 14 de novembro, nove horas. Ela chegou. Nasceu a minha filha. Um lindo bebê. Gorduchinha, pele clara e cabelos castanhos. Tive uma séria complicação no parto. Não fosse pela habilidade de um bom médico e a prática do parto cesariana, talvez os médicos tivessem perdido duas vidas naquele dia. Fiquei na sala de parto bem mais tempo do que o previsto, mas tudo terminou bem. Antes do parto, tinha pensado em proibir a visita de Eduardo, já com medo do assunto da amamentação. Mas como proibir a 251
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visita do próprio marido? Do próprio pai da criança? Nossas desavenças ainda não chegavam a tanto. Portanto, ele veio nos fazer uma “visita”. Quando entrou no quarto e viu a filha, amoleceu todo. Chorou emocionado. Emocionado? Não sei, só sei que chorou. Muito desajeitado, pegou-a no colo e a beijou. Foi uma cena até bonita, que me fez sentir uma ponta de esperança. Mas, como nos outros momentos, este também não foi diferente. Foi apenas uma pequena ponta mesmo. Era só uma pequena fagulha que se acendia e que ele apagava de forma cruel. Era sempre assim, em tudo eu procurava uma esperança, em tudo eu via uma chance de ser feliz novamente, mas bastava ele abrir a boca e tudo se acabava. Ali não foi diferente. Ele permaneceu no quarto por um bom tempo. Mas quando se preparava para sair, “abriu” a boca e apagou a luz que se acendera dentro de mim. E dessa vez doeu como um soco no estômago. Antes de sair do quarto, chegou perto de mim, inclinou-se um pouco sobre o leito e me beijou, acariciou meu rosto, meus cabelos e depois disse: – Agora que tudo terminou, é sair logo desta cama e voltar para o trabalho. E, não se esqueça: nada de peito para o nenê, já comprei mamadeira e leite; estão com a enfermeira. A mãe dele olhou para ele e para mim, sem entender o que ele dizia. – Que história é esta de não dar o peito? – Nada, dona Elza, é bobagem do Eduardo. – Bobagem não. Nunca falei tão sério – disse ele. Ele saiu, deixando sua mãe com a maior cara de interrogação. Eu queria chorar, gritar, quebrar tudo ao meu redor. Queria pedir para nunca mais ver aquela criatura horrenda perto de mim e de minha filha. 252
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Mas não podia gritar, não podia chorar, tinha que conter as emoções, pois, além de ter saído de uma cesariana, tinha minha sogra que era só atenção para comigo e a neta. Ela estava tão alegre e eu estragaria tudo se fizesse um escândalo. Mais uma vez me calei. Estava fraca e debilitada pelo parto. Sabia que, se começasse a falar, iria acusá-la de ter criado aquele monstro e ficaria com ódio dela também. Nos momentos seguintes passei mal e chamaram o meu médico. Ele recomendou repouso e silêncio. Fiquei ainda três dias na maternidade, e pensava: “Ao chegar a casa, terei mais chance de amamentar minha filha, nem que seja escondido”. E dizia para mim mesma: “Isso é força do momento; com o tempo passará. Ele está apenas com ciúmes”. Que momento que nada. Em casa, marcou cerrado: vigiava-me o tempo todo e a qualquer suspeita de que estivesse amamentando a criança, ele já se manifestava. Amaldiçoei mil vezes a lei que dá direito a folga de uma semana a maridos de parturientes. Muitos maridos deveriam estar bem longe nessas horas. Alguns só servem para causar vexame. Estava aflita com a delicadeza daquela situação. Minha cabeça dava nó. Não raciocinava mais. Fazia tudo errado. Não sabia que atitude tomar sem me expor emocionalmente. Resolvi e contei tudo para a mãe dele, num desesperado pedido de ajuda; e também já a culpando por não ter criado o filho de forma sadia, já a culpando por ter tido e criado uma criatura daquelas e soltado ao mundo para causar tanta dor às outras pessoas que não tinham nada a ver com a maneira errada dela educar um filho. Contei, mas ela também não pôde fazer nada por mim. Ela não sabia como abordar o assunto com ele, sem me jogar numa boa confusão. O que ela fez foi me ajudar na tarefa de amamentar às escondidas. 253
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Auxiliava-me, vigiando a porta e os movimentos do filho que, por sinal, mudara completamente. Ao invés de estar na rua, nos bares, como era de costume, estava plantado dentro de casa. A criança mamava em horários descontrolados. Fui ficando tão abalada, que o leite começou a secar rapidamente. Eu chorava, minha filha chorava. Chorava às vezes com fome e eu ia enrolando para ver se ele saía e eu pudesse dar o peito e não a mamadeira. Ele não saía. Eu dava mamadeira. O bebê dormia e os seios de tão cheios vazavam como um recipiente furado. Vazavam que molhavam minha roupa e descia até o chão. E nessa angústia fiquei que o leite secou em apenas vinte dias após o parto. Fiquei tão bloqueada que nada fazia o leite render novamente. Ficou em mim uma mágoa que não esqueço. Uma dor cravada. Até hoje sinto quando vejo uma mãe amamentando seu bebê. Não tive essa alegria, esse prazer de amamentar meus filhos, como fazia minha mãe. Ela amamentava o filho até ele completar dois anos de idade. Comecei a odiá-lo de verdade. Comecei a sentir pavor da presença dele. Dois meses depois do parto, minha sogra partira, levando consigo a certeza de que o “casamento” de seu único filho não duraria por muito mais tempo. Estava muito decepcionada. Imaginava tê-lo criado de forma adequada, mas o resultado que ela vira era bem diferente. Ela, como eu, imaginava-o como um bom marido. Mesmo diante do quadro que ela presenciou, nos aconselhou oficializar o casamento, para assegurar os direitos, meus e os de minha filha. Ela lutou muito para que isso acontecesse. Ficava triste por 254
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saber que eu poderia ser mais prejudicada ainda, sem o casamento. Que eu e a crianテァa estテ。vamos desamparadas perante a lei. Ela se mostrou entテ」o muito justiceira no jeito como insistia para oficializarmos o casamento.
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35 4º Fato - O caso Laura orte de minha sogra, por ela ter partido anS tes de sofrer mais uma tremenda decepção.
Minha filha já tinha completado três meses de vida, quando este fato veio à tona. Há dias vinha notando em minha irmã caçula um comportamento estranho em relação ao meu marido. Percebia, por exemplo, que ela não ficava no mesmo recinto em que ele estivesse. Ela podia estar bem, conversando ou fazendo qualquer outra coisa, se ele chegasse no local, ela mudava completamente. Ficava pálida, perdia o jeito e saía dando uma desculpa qualquer. Eu andava estranhando tudo aquilo, mas não queria aceitar o que me vinha à cabeça. Seria demais o que estava pensando... Aqueles pensamentos malucos eu atribuía à depressão do pós-parto, ou ao cansaço que me fazia imaginar coisas. Mas passei a observá-los melhor, até que em determinado momento entendi que algo anormal estava acontecendo. Foi num fim de tarde, quando ela voltava do trabalho e entrou na minha casa para ver a sobrinha. Trazia um presentinho para o bebê: um ursinho de pelúcia. Enquanto me entregava o presente, ela pegou a criança no colo e fazia gracinhas para ela e, ao mesmo tempo, conversava alegremente comigo. 257
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E sem que esperássemos, pois não era o dia que Eduardo deveria chegar, ele chegou. Chegou e entrou na sala onde estávamos conversando. Quando percebemos sua presença e ela olhou para ele, foi a gota d’água. A reação dela ao vê-lo foi grande e notável. Foi tão grande o susto que não conseguiu disfarçar. Entregou-me o bebê e disse-me às pressas: – Estou indo, Celeste. Tenho algumas roupas para por em ordem. Depois falaremos mais, tchau, tchau... Saiu, sem sequer olhar para trás. Diante da cena, não me restava mais dúvidas e pensei: “Agora chega de adiar esta conversa”. Concordei que ela se fosse, sem o costumeiro “está cedo”, ou “vamos tomar mais um cafezinho”, coisas assim para segurar a visita por mais tempo. Até preferi que ela fosse mesmo. Tinha agora só que tomar coragem para encarar o assunto, pois já tinha bastante material para fechar o quadro. Só não sabia como fazer sem magoá-la, pois algo me dizia que ela fora vítima de uma coisa grave. Sentia também que não era ela a culpada pelo que estava se passando. Mesmo assim, tinha que estar preparada para arrancar dela aquilo que eu precisava saber. Depois que ela saiu, dei um bom espaço de tempo, o bastante para que ela chegasse a casa, me preparei emocionalmente para ouvir o que fosse e me dirigi a casa dela. Chegando lá, toquei a campainha e foi ela quem veio atender a porta. Quando me viu, disse: – Ué, por que não me disse que vinha? Teria te esperado. – Resolvi vir depois que você saiu. Quero falar com você. – Mas eu estava lá, por que não falou? – Resolvi depois, já disse. Depois que você saiu. Aliás, pelo jeito que você saiu. – Ora! Apenas tive que vir... – Mas eu não perguntei nada, Laura. 258
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– Não, mas está muito estranha. – Estou? Ela já se traía com tantas explicações não pedidas. Tentou me levar pela tangente, mas perdeu rapidamente a pose de mulher segura que tentava manter. Percebendo a fragilidade dela, entrei direto no assunto. – Não somos crianças, Laura. E você sabe muito bem porque estou aqui. – E como poderia saber? Sou adivinha? – Vim aqui para tirar uma dúvida, ou melhor, para ouvir uma confissão. – Que coisa mais estranha... – Sei que algo está errado, entre você e meu marido. E não saio daqui sem levar uma explicação. Seja ela qual for, estou preparada para saber. – Algo errado? Imagina. De onde tirou essa ideia? – Ora, minha irmã! Não confunda paciência com retardamento mental. Não sou retardada, embora ande agindo como tal ultimamente. Mais uma vez ela tentou ganhar tempo e não me esclarecia nada. Mas minha outra irmã, percebendo a situação, entrou na conversa e foi fria e objetiva. – Vamos, Laura, conta de uma vez, já está mais do que na hora de entregar aquele cafajeste. Ele não merece seu silêncio. Conta logo, se não eu mesma conto, pois era o que você devia ter feito imediatamente, porque ele conta com seu medo para te fazer calar. Aquele desclassificado... Ela ficou muito emocionada e quase não conseguia falar. Vi que era algo realmente grave. Nunca tinha visto minha irmã tão injuriada. Laura que estava encolhida num sofá, disse: – Então, conta você, não tenho coragem. Só de pensar naquele porco, naquele monstro, me sinto muito mal. 259
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Ao terminar de falar, ela correu para o quarto e da sala onde eu estava só ouvia seus soluços. As palavras dela foram o bastante para eu prever o que ia ouvir. Tive medo, mas precisava ouvir. – Vamos, estou esperando – falei para a que tinha ficado comigo na sala. – Tem certeza de que quer ouvir? – Vamos, já disse. Não tenho outra escolha. – Teu marido... aquele animal, tentou, tentou... – Vamos, fale! – Tentou abusar de Laura, tentou violentá-la; não sei qual o termo exato para o que ele tentou fazer. Nesse momento, me senti como se estivesse sendo empacotada a vácuo. Não encontrava ar para respirar. – Por que não me contaram isso antes? Não deviam ter escondido de mim. – Como te contar? Foi no dia que você ganhou nenê. – Isso já tem três meses, então. Por que não me contaram quando me recuperei do parto? – Sim. Tentamos te contar, mas tivemos dó de você. Não queríamos te dar mais um desgosto por causa deste desavergonhado, mas já que você percebeu tudo, foi melhor assim. Ela tem sofrido muito com isso. – E como foi? Se é que você consegue contar. – Aquele dia, ao retornar do trabalho, ela passou direto na sua casa, queria noticias. Jurema disse que você estava na maternidade e que já tinha ganhado nenê. Então, de lá mesmo, ela resolveu ir para a clinica, ver vocês. Quando, coincidentemente ou não, ele disse que estava indo para lá também e lhe ofereceu uma carona. Ela aceitou. Entrou no carro e saíram. Só que... – Só que... – Em vez de se dirigir para a maternidade, ele tomou outro rumo. – Que rumo? 260
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– Tomou a BR e seguiu por muitos quilômetros. – E ela, o que fez? – O que podia fazer? No início ela pensou que ele fosse a uma borracharia ou oficina, que ficam ali na saída da cidade e não disse nada até então. – Sei. Sei qual é a oficina, ele sempre vai lá. – Mas ele não entrou para a oficina e, como foi se distanciando muito, ela começou a ficar preocupada. Mas ainda não tinha se dado conta de suas intenções. – E? – Em certo momento, ela perguntou para onde ele estava indo, mas ele não respondeu. – Que horror! Meu Deus. – Achando mais estranho ainda, ela tornou a perguntar e nada de resposta. Ele só aumentava a velocidade, não respondia. Foi aí que ela, apavorada, imaginou sua real intenção. Pediu com calma para ele voltar, fingindo não estar entendendo a intenção dele. Mas nada. Ele não a ouvia. – E? – Entre todos os argumentos que ela usou, disse ainda que saltaria do carro em movimento, mesmo que se ferisse muito ou até mesmo morresse. – E ele não parou? – Parou nada; não deu a mínima para o desespero dela. Ela disse que ele parecia enlouquecido, não o reconhecia mais, pois ele estava horrivelmente estranho. Quanto mais ela pedia para ele voltar, mais ele seguia em frente. – E foi até onde? – Ela não sabe bem. Estava muito apavorada para localizar com exatidão o lugar. Além do mais, já era noite e estava escuro. Só sabe que ele rodou muito e depois entrou numa estrada de fazenda, fora do asfalto, claro. E lá parou, desligando o motor do carro e os faróis também. 261
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– E então? Ali ele a agarrou e tentou pôr em prática a sua intenção. Dizia que era louco por ela. Dizia que gostava de você, mas que a desejava muito. Que queria fazer isso e aquilo com ela (usava termos obscenos). – Oh, Infeliz! Eu ouvia tudo aquilo, com o estômago gelado e um grande nó na garganta. Como eu gostaria de esmagá-lo, de reduzi-lo a fragmentos microscópicos. De varrer da face da Terra aquele verme nojento. Como uma pessoa conseguia se fazer tão desprezível assim? Podia bem imaginar o que ela devia ter passado nas mãos do desequilibrado, pois o conhecia bem e sabia que não era de desistir com facilidade, quando queria uma coisa. Sem mencionar seu porte físico, que intimidava qualquer um. – Ele conseguiu realizar seu intento? – Não. Por sorte, não. – E como ela conseguiu se livrar do maníaco? No momento, falava dele como se não fosse nem meu conhecido, quanto mais meu marido, tamanho era o nojo que estava sentindo. – Como se livrou dele? – Ela falou algo que o fez parar como se um raio o tivesse atingido. – E qual foi a palavra mágica? – No desespero de se livrar dele, ela disse que se não a levasse de volta para a cidade imediatamente, se ele a molestasse, teria que matá-la também. Pois se com vida dali ela saísse, iria direto para a maternidade. Contaria tudo para você e para quem estivesse presente também ouvir e que ele seria responsabilizado pelo que viesse lhe acontecer. E depois faria uma ocorrência na Delegacia de Polícia e o processaria. – E ele? 262
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– Foi como parou. Recompôs-se, pediu desculpas e a trouxe de volta para a cidade. – Desculpas. Como se uma infâmia dessas pudesse ser desculpada assim, sem mais nem menos. Posso imaginar o que ela viveu. – É. E foi por tudo isso que ela não foi te ver aquele dia na maternidade, embora fosse a mais ansiosa para ver a sobrinha. Você sabe como ela é com crianças. Você até estranhou e perguntou por que ela não fora lá, lembra? – Claro. Lembro, sim. Achei esquisito ela não ter ido me ver. – Ficou muito abalada e chorou a noite toda. Culpa-se até hoje, achando que facilitou as coisas, que o incentivou quando aceitou a carona oferecida por ele. – Ela não teve culpa de nada. Como ia imaginar que isso poderia acontecer? Como prever uma coisa dessas? Ela não tem a mente suja igual a ele. Além do mais, ele é o pai da sobrinha dela, é seu cunhado, é da família. Ela só podia era confiar. Como poderia ela ter esse tipo de maldade? Não está acostumada com gente assim. Voltei para casa, tão magoada, tão decepcionada, tão infeliz. Por que a vida é tão cruel com a gente? Por que temos que carregar no nosso íntimo coisas tão ruins assim? Dias passados, voltei a falar com elas e disse da intenção de levar minha irmã à Delegacia e fazer a denúncia. Elas, porém, me fizeram desistir, alegando ser uma cidade pequena. E isso só pioraria as coisas para ela, pois, além do trauma que estava vivendo, seria exposta a comentários. Também seria a palavra dela contra a dele. Com certeza sobraria para ela a maior fatia do escândalo. Lembrei-me também das bondades da mãe dele, que sempre fora amável comigo, embora não estivesse fazendo nenhum favor, pois sei que fazia por merecer suas bondades, mas vá lá. Ela deixou uma boa imagem com quem conviveu aqui. Não seria justo denegrila, com uma atitude do filho. Mesmo de longe ela continuava me dando apoio, escrevendo e telefonando. Pedia muito para que eu 263
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tivesse paciência e tentasse levar em frente este casamento. Ela não sabia da metade do que ele fazia e pensava eu também em mim e na minha filha, no que sobraria de negativo para nós duas. Eu também estava muito cansada física e mentalmente. Por sorte, não tinha acontecido o pior com Laura. Estava tão chocada com tudo que não me sentia em condições de começar uma demanda na justiça contra ele, pois sabia que não seria fácil nem agradável. Esses pensamentos me fizeram parar, me fizeram calar novamente. Mas depois uma atitude eu tomei. E, de atitude em atitude, estava me tornando uma pessoa mesquinha e vingativa. E o pior é que não conseguia resolver o problema de uma vez. Só fazia coisas erradas que me prejudicavam e me deixavam em desvantagem. Quem conseguiria ser mais mesquinho? Quem conseguiria fazer besteira maior? Quem conseguiria ser mais idiota e perder mais tempo? Podendo eu cortar logo o mal pela raiz, não, continuava fazendo o jogo dele e era um jogo porco e sujo. Ele fazia e eu dava o troco. Achava que me vingando, me confrontando com ele, um dia ele me respeitaria. Deveria tê-lo denunciado ou pelo menos me separado dele. Mas não conseguia fazer uma coisa nem outra. Era uma maldição, coisa de vidas passadas, Karma mesmo. Não conseguia me libertar daquela convivência, por mais que tentasse. Parecia uma doença crônica. E em represália à covardia dele, separei nossas camas. Daquele dia em diante passamos a dormir em quartos separados. Não o queria mais por perto de mim. Não viveríamos mais como marido e mulher. Foi horrível quando lhe disse isso. Ele queria me obrigar a cumprir “meus deveres de mulher”. Mas o desafiei e não cedi à sua pressão, embora continuasse morando na mesma casa. Ele não saía, 264
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eu não saía também, e assim passamos a viver. E, pela separação de cama, minha vida se tornou um inferno pior do já estava, como se isso ainda fosse possível. Jamais permitiria qualquer contato físico. Seu castigo seria a minha rejeição. Se não gostasse que fosse embora. Mas não foi... O imprestável se submetia a tudo só para me castigar também. Além do mais ele se sentia dono de tudo que havíamos construído, não ia querer dividir nada comigo facilmente e nesse aspecto eu também estava totalmente desprotegida. Estava nas mãos dele. Então ele folgava ainda mais. Não ficaria com ele, mas também não sairia livre para refazer a minha vida sem antes tomar um belo prejuízo em todos os sentidos. Com o passar do tempo, me sentia muito mal com a situação. Sentia-me só, idiota, desvalorizada e não sabia como viver aquilo. Era horrível. E ele? Como estava a essas alturas? Estava se mostrando muito bem e ainda posava de machão, porque sabia que, mesmo separada, eu não teria coragem de expor minha irmã, levando o caso às autoridades. O infeliz aprontava e ainda se dava bem. Ele tinha sempre uma carta escondida na manga. Mas, quem sabe, um dia ele não perderia? Não se enrolaria nas próprias pernas? Minha vida sentimental se acabou de vez, depois que aquilo tudo aconteceu. Encarei então o grande erro que cometi ao me envolver com ele e que lutava desesperadamente para não admitir. Tinha que sair daquela situação o mais rápido possível, mas, sem o casamento efetivado, eu e minha filha ficaríamos prejudicadas, financeira e moralmente falando. E isso não era justo. Então comecei a arquitetar um plano e assim me veio a ideia do casamento, o que já não era sem tempo. Com jeito tentaria leválo ao ponto que eu precisava e quando tudo assinado... Por ser assim, bolei outro plano (o plano “b”): casar-me-ia e depois pediria a separação, tudo dentro da lei. Não queria que mi265
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nha filha perdesse nada, afinal, para que tanto eu tinha trabalhado? Parti entテ」o para mais uma insensatez. E novamente lテ。 vou eu PELA CONTRAMテグ DA VIDA.
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36 5º Fato - O casamento com separação de bens á para imaginar alguém se casar numa situD ação dessas, que descrevi no capítulo anterior?
Pois é, eu “casei”. Pura vingança. Tudo se tornara só disputa, brigas e vingança. Mas dessa vez eu conseguiria fazer a besteira maior que a dele. Não era um torneio de besteiras, agressões e mesquinharias? Pois é. Minha vida se tornara algo sem sentido, uma vida falsa e cheia de mentiras. O caso de Laura ficou em segredo. O caso das camas separadas ficou em segredo. Jurema fora advertida e proibida de falar sobre as camas separadas, com quem quer que fosse. Ela, que não era de fazer fofocas, guardou o segredo até quando não precisou mais. Segredos esses que ele fazia questão de guardar também e só para seu proveito. Se as pessoas soubessem que o garanhão, o bonitão da cidade era rejeitado pela própria mulher seria humilhante e ele não podia ser rebaixado a esse ponto. Pelo fato de não vivermos mais como marido e mulher, ele passou a levar uma vida totalmente absoluta, sem regras, sem limites, o que era bem da sua natureza. Mas eu não me importava mais com suas traições, com suas saídas. Sabia que não fazia mais sentido me envolver com isso e, 267
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assim, ele podia vadiar o quanto quisesse. E ainda fazia parecer aos amigos, que, em casa, estava tudo em ordem e que dava total atenção à sua mulher. Mas só eu e Deus sabíamos em que carência de amor; afeto e atenção eu vivia. Sabia que com ele estava tudo perdido, não dava mais para guardar esperanças. Portanto, passei a lhe tratar com total desprezo e indiferença. Quando ele viu que tinha me perdido mesmo, não se conformou. Cercava-me de todos os lados, mas não conseguia me despertar, me tirar daquela grande apatia. De tudo ele fazia para me levar na conversa novamente, e quando não tinha mais recursos para me tentar, levantou o assunto CASAMENTO. Coincidentemente, o que eu também estava planejando, mas com outra finalidade... Dessa vez, ele ia se enrolar na própria teia. Levantou o assunto de forma velada e decisiva, mas eu sabia que a serpente só estava se preparando para atacar novamente. Mal sabia ela que desta vez eu também já tinha meu plano. Ele continuava insistindo, e eu fui dando espaço, soltando a corda. E agora, CASO ou SEPARO? Olhava a certidão de nascimento de minha filha e lá estava escrito PAIS SOLTEIROS. Ela e eu não tínhamos nada garantido para fins como: pensão, plano de saúde, herança. Nada. Nada. A ficha dele no quartel era de um militar solteiro. Outra poderia mui facilmente levar tudo que eu havia construído. E isso não seria justo para nós duas, minha filha e eu. Casando-me, pelo menos minha filha não carregaria esta descriminação para o resto de sua vida. E assim passaram-se quatro meses e eu vivendo na pressão, na dúvida: casar ou largar tudo e ir embora de uma vez? A segurança de minha filha dependia agora, única e exclusivamente, só de mim. Assinaria o casamento ou ela sofreria as perdas futuras. 268
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Bem, já que ele estava tão “bonzinho” e nem de longe desconfiava da minha intenção, fiz o jogo dele outra vez. Casaria. Como estava perto do 1.º aniversário de Sabrina, marcamos o casamento, e o batizado dela para esse dia. Casei-me. Pronto, eu estava casada depois de anos tentando da forma tradicional. Feliz? Não. Terrivelmente infeliz. Desde que conhecera aquele homem, minha vida andava mesmo, literalmente falando, pela contramão. Mas, pelo menos dessa vez, tinha sido por uma boa e justa causa. Antes do dia “D”, disse para ele que assinaria tudo, no cartório, na igreja, mas nossas camas continuariam separadas. Ele não disse nada, talvez pensando que eu mudaria de ideia depois do casamento, pois que pensasse. Enquanto isso, eu pensava comigo mesma: “Agora vai começar. Agora é minha vez de ajustar contas com este explorador de mulher”. Sabia da aversão que ele tinha pelo casamento, da aversão que tinha de se sentir preso a alguma coisa, da aversão que tinha de se comprometer. Sabia do medo que tinha de dividir qualquer coisa comigo. Todo nosso patrimônio ele geria e tinha como sendo só dele. Sabia do medo que ele tinha de perder dinheiro. E, casando-se, sabia que automaticamente o que ele “tinha” passaria a me pertencer também. Isso para ele deveria ser um tormento, um pesadelo. Apoiei-me nesses fatos para me vingar melhor. Nunca ensinaram para o coitado, da importância de saber dividir, da importância do desapego. Nunca lhe ensinaram como estes valores nos ajudam a viver bem, a conquistar fronteiras. Nunca, nunca lhe ensinaram isto: era idiotamente apegado a qualquer coisa que representasse dinheiro. 269
Celina Mota
Sabendo de todos esses pontos fracos, parti para o ataque e para o casamento, com o único propósito de assegurar o que era meu por direito, direito esse que ele não reconhecia. Já me sentia bastante fortalecida para enfrentá-lo. Não mais o admirava, não mais o respeitava, não mais o amava. Meus desejos sexuais já estavam controlados, atrofiados e reprimidos. Não restava mais nenhum bom sentimento para com ele: tornara-me uma pessoa fria, vingativa e, às vezes, deselegante. Deselegante o bastante para fazer o que fiz no cartório. Durante os preparativos para o casamento, ele não podia deixar de “abrir a boca”, mas abriu e perdeu a oportunidade de ficar calado. Estávamos no cartório, perante a escrivã, que tomava nota e fazia as perguntas de costume para o acordo pré-nupcial. Respondíamos a todas de forma calma e tranquila, não fosse a última pergunta que ela fez: – Qual o regime de comunhão de bens? Regime com separação, regime parcial ou regime universal? Ele foi despertado pela pergunta e levou um susto. Prontamente perguntou para a escrivã: – E tem diferença? Era um idiota mesmo, olha só a pergunta que fez e ainda se achava esperto. – Tem sim – respondeu a escrivã. – E qual é? Enquanto ela explicava as diferenças dos regimes, eu já começava a me divertir com o repentino interesse dele pelo assunto, e já sabia qual dos três ele ia escolher e não errei. Ficou muito agitado e falou para a moça: – Já entendi. Já entendi. Não sabia que tinha isso, pensei que casar já dava todo o direito para a mulher. Mas já que é assim, melhor pra mim. 270
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Parou, pensou e disse: – Será este aí que não vai dar “direito”... – Qual? Pode ser mais claro? – Este aí, com separação de bens. A escrivã, que nos conhecia e sabia da nossa situação desde que eu me envolvera com ele (acho eu que só fazia as perguntas por pura formalidade), olhou para mim, incrédula com o que acabara de ouvir. Ela sabia que quase tudo que tínhamos fora construído por mim e além do mais tínhamos uma filha. Olhei para ela, olhei para ele e fui acometida por uma crise de risos. Fiquei histérica. Ria, ria e não conseguia parar, e a moça esperando. Depois, ela repetiu a pergunta enquanto eu secava as lágrimas de tanto rir. Foi cômica a pretensão do sujeito. E ele, com a maior cara de pau, insistia com firmeza na resposta. – É este aí, este com separação de bens, já disse! Ela não escrevia uma vírgula, e com a caneta suspensa sobre o livro esperava minha confirmação. Ele estava ficando irritado porque ela não o obedecia e não acabava logo com aquelas perguntas chocante para ele. Naquela pergunta ele viu uma chance de me passar a perna mais uma vez... Agora se casaria tranqüilo, não tinha que dividir nada comigo. Estava me divertindo com a cena e o provocava mais ainda, enquanto ele insistia com a escrivã. – Vamos logo com isso, estou com pressa – falava ele para a escrivã. Do estado de histeria que me encontrava, passei para um de calma e frieza. Levantei-me, aproximei-me da mesa, ignorando completa271
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mente a presença daquela figura grotesca, covarde e ridícula, debrucei-me sobre a mesa e batendo com a ponta do dedo indicador sobre o livro de registro disse para a moça: – Por favor, Abadia, escreva aqui, com letras bem grandes e se possível for, vermelhas. Escreva: COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS e tudo mais que a lei me assegurar, antes, durante e depois do casamento, como também depois que ele morrer, escreva tudo, tudo, não esqueça nada, certo? Imediatamente fui atendida, embora ela tivesse dúvidas se ele assinaria ou não o documento que faria valer aquele regime. Mesmo assim ela escreveu: Comunhão Universal de Bens. Ele levantou-se e estava ofegante e já ia “abrir a boca” novamente, mais não deixei. Voltei-me para ele, encarei-o e disse-lhe sem a menor cerimônia: – Olha aqui! Escuta bem, seu estúpido imbecil! Tenho nojo de você. Não gosto mais de você. Tenho por você um grande e profundo desprezo, mas vou casar-me com você, sim, e só por dois motivos. O primeiro, para assegurar o que é meu e de minha filha. O segundo, para ver o seu desespero, porque sei que é demais para sua cabeça estúpida, ter que dividir algo comigo. – Não sou obrigado a assinar isso – rosnou ele. – Não é, mesmo, mas vai assinar. – Quem vai me obrigar? – Ora, como ousa me afrontar desta forma, seu explorador de uma figa? Vai casar-se sim e com tudo direitinho a meu favor, até mesmo porque metade destes bens é minha. Só estou querendo legalizar a situação, porque você não é confiável e não vou permitir que me desrespeite mais uma vez, que me faça de palhaça, entendeu? – Vá para o... – Vou, mas antes você vai assinar tudo e sabe bem por quê. Disse para a escrivã: 272
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– Já estou indo, Abadia. Mas não se esqueça de escrever tudo que me assegure dos meus direitos, confio em você, com ele me entendo depois. – Tudo bem, Celeste. Saí dali sem ao menos olhar para trás; estava cega de vergonha e ódio. Quanta humilhação ainda viveria por causa daquele homem? Além de vingativa, estava me tornando também uma boa chantagista. Ele assinaria ou eu contaria para todo mundo o caso das camas separadas, o caso de Laura e tudo mais. O cômico é que na Escritura Pública de pacto antenupcial, entre outros termos, constam os seguintes dizeres: “... em vista da convenção, já entre os mesmos estabelecidos, de suas livres e espontâneas vontades, sem coação, constrangimento ou induzimento algum, concordam e assinam...”, etc., etc. Por mim, queria viver somente o amor, acima de tudo o amor, mas se para ele era assim, então que fosse. No dia marcado foi tudo assinado. Para o casamento não houve festa nem convidados. Foi uma cerimônia triste e sem graça. Não avisei para ninguém. Só bem depois é que a notícia se espalhou. Mas, no dia, não. Foi tudo bem discreto. Eu não queria comemoração, não tinha nada para comemorar e meus amigos sequer foram avisados. Somente as testemunhas exigidas foram convidadas. Não haveria festa, mas fiz questão de levar um fotógrafo para tirar bastante fotografia. Foram muitas fotos, nas quais ele parece mais um réu na hora da sentença final. De noivo, ele não tinha nada. Na hora do casamento tremia e suava feito um retardado. Acho que foi o pior dia da vida dele, não só pelo casamento em si, mas porque nos registros estava indicando Comunhão Universal de Bens. Guardei aquela certidão de casamento como um troféu da minha vingança. E era também um lembrete: estava na hora de vol273
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tar ao meu lugar com honra e dignidade, nem que fosse à base de vingança e de muita briga, porque do sonho de casamento de princesa só restou isso que descrevi. Depois do casamento, as coisas piorariam ainda mais para mim. Ele, como era de se esperar, imaginava que eu iria pagar-lhe o “favor” por ter-se casado comigo. Dizia-me agora que tínhamos de resolver o problema das camas separadas. Não é assim que a Igreja manda? – dizia ele. Engraçado. Desta vez ele queria adotar as normas da Igreja. Pois ele que esperasse até se danar, porque cada vez mais eu tinha horror a ele e às suas atitudes. Com certeza, alguém perguntaria: – Por que você se obrigava a levar uma vida assim? E eu respondo: – Me obrigava porque, muitas vezes, uma pessoa se coloca em seu caminho de forma mansa e sutil, lobo com cara de cordeiro. Empurra daqui, calça dali e vai entrando, vai invadindo. Você percebe que tem algo errado, mas vai deixando, vai se acomodando, pensando ter o controle de tudo nas mãos. Mas que nada; quando você se dá conta, seu mundo já foi totalmente invadido, suas bases totalmente destruídas, suas convicções aniquiladas, seus valores destorcidos. Aí, quando você acorda e vê que precisa recuperar seu espaço, sua identidade, começa então o debate. Um vai e vem, uma pura perda de tempo. Se não sair de uma vez, nunca mais você conseguirá. Em vão, lutará; em vão, se atormentará. O tempo passa e você ficará mais perdida do que pode imaginar. Mas como aceitar que perdeu o controle dos seus atos, que tudo tomou outro rumo, que tudo se perdeu pelo caminho? Que você não é mais capaz de conduzir sua própria vida? Então, você começa a andar em círculos, procurando uma saída, uma explicação e nada você encontra. Anda, anda e volta sempre para o mesmo lugar. 274
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Quanto mais você luta, mais você se perde. Como recomeçar se não lhe sobrou mais nada? Se não tem mais seus sonhos, suas fantasias? Se seus valores foram todos desacreditados, deixando em sua mente uma enorme interrogação? Um enorme vazio? Se suas dores deixaram marcas e feridas tão profundas que, se cem anos ainda viver, você não as esquecerá, não as apagará da sua memória? Como recomeçar, se nos sentimos desiludidos e descrentes? Se não acreditamos mais nas lendas que enfeitam a vida? Nos sonhos que acalentam nossas almas? Nos castelos que um dia construímos? Se não acreditamos em mais nada disso, como recomeçar? Sua cabeça fica como uma taça de sorvete, que antes você arrumou, colocando cor e sabor, bem separadinhos, enfeitou com frutas e bolinhas coloridas, fez aquela decoração bonita e agradável. Mas veio alguém pegou aquela taça de sorvete, mexeu, mexeu e remexeu. Num segundo ela deixa de existir na sua forma bonita e original. De repente, as bolas bonitas e coloridas não existem mais e passa a existir só uma mistura disforme, sem valor e de sabor duvidoso. É assim que fica nossa cabeça. Você não sabe mais se age por vontade própria ou se por imposição dos outros. Mais você vai ficando, na esperança de resolver tudo, na esperança de arrumar novamente aquela taça de sorvete, mais se torna impossível. Será que alguém consegue? Outra coisa que nos obriga a ficar também é aquela sensação de que você não podia ter errado tanto na escolha de sua “cara metade”. Justo você que se achava tão inteligente e exigente? Como é que foi cair numa roubada destas? Parece até que é uma questão de não admitir que errou feio. Você fica tentando aproveitar algumas migalhas para poder recomeçar; é como se os sentimentos pudessem ser reciclados. 275
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guém.
E assim você vai ficando... na tentativa de mudar algo ou al-
Outro erro, outro terrível engano, pois não mudamos ninguém. Ninguém muda, se ele mesmo não quiser mudar. Como vamos conseguir mudar alguém, pois se até para nós mesmos é difícil uma mudança, porque estamos sempre acreditando nas nossas verdades? O outro lado também acha que está com sua verdade e é nessa teima que acontecem as grandes desgraças. Nessa teima é que muitas vidas são destruídas, muitas mortes acontecem. Mesmo sabendo disso tudo, fui ficando e formando um labirinto sem começo nem fim; um labirinto que por mais que eu andasse, nunca encontraria a saída. Enfim, estava casada na forma da lei e da igreja. (Por também querer, pré-estabelecer base religiosa para minha filha, pois do contrário ela não poderia ser batizada, optei pelo casamento religioso com efeito civil e a cerimônia aconteceu na igreja.) Mas nunca me senti tão descasada. Sentia uma sensação de vazio, impureza e indignidade. Eu não sabia que a vingança tinha um sabor tão estranho e o que eu acho é que quem pratica a vingança se sente mais infeliz. Ela deixa um sentimento de mal-estar e desconforto, de uma coisa mal resolvida, mal acabada. Pelo menos, foi assim comigo. Não senti que cresci em nada. Não me estabilizei emocionalmente falando. Pelo contrário, me senti cada vez mais confusa, mais diminuída, mais sugada, mais vazia... Até mesmo perante minha família não me sentia confortável. Eles sabiam de nossas vidas separadas e não entendiam como eu ainda pude oficializar o casamento.
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37 Papai volta para Brasília elo fato que aconteceu com Laura, meus faP miliares se ausentaram de vez da minha casa. Só os via quando ia a
casa deles ou quando os encontrava na rua. O único que não sabia do fato era meu pai, mas mesmo assim ele não se relacionava bem com o genro. E em uma de minhas idas a casa deles, durante a conversa ele me disse: – Minha filha, vou voltar para Brasília. Já passou algum tempo e estamos mais recuperados da perda de nossa Heloísa. Aos poucos tentaremos nos ambientar lá novamente. – Mas por que voltar, papai? O senhor já está aposentado. O que vai fazer lá? Não é feliz aqui? – Por mim e suas irmãs sim, estamos bem, mas sinto que não somos bem-vindos aqui, por parte do seu marido. Ele está sempre fechado, isolado, não se aproxima, não facilita a convivência. Sintome muito constrangido por isso. Não vivemos em família e só temos você aqui, mas não podemos desfrutar dessa vizinhança, dessa convivência. Portanto é melhor ir embora. – Ora, papai, o que tem vocês com isso? Ele é assim mesmo com todos. – Sinto muito lhe dizer uma coisa, minha filha, mas percebo que vocês não têm um bom relacionamento. E talvez nossa presença esteja contribuindo para isso. Ele tem muito ciúme de você, não deixa ninguém se aproximar, parece um cão de guarda. Mas não 277
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se preocupe, iremos bem, melhor que da primeira vez, e também já vi minha netinha nascer. Vocês já estão casados e estruturados, não tenho mais motivos para me preocupar. Agora é das outras que devo cuidar, elas ainda precisam muito de mim. Além do mais, lá voltarão aos estudos e ao trabalho. – É, papai, o senhor tem razão em tudo que acaba de me falar. E mediante tudo isso, eu nem posso lhe pedir que fique. Volta se para o senhor for melhor assim. E hoje com o asfalto, a distância encurtou bastante. Já contamos também com o telefone, o carro e bons ônibus. As coisas estão mais fáceis agora e sendo assim podemos nos ver com mais freqüência. Ficou decidido assim e eles voltaram. Papai foi embora sem saber do caso de Laura. Ele ficaria muito chocado. Preferimos poupar-lhe dessa dor, pois para ele seus filhos eram tesouros intocáveis. Doeria muito se ele soubesse. Ele ficaria muito chocado por mim e pela outra filha. Eles se foram e novamente eu estava só. Ainda bem que já tinha minha filha e que era minha alegria.
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38 Eduardo fica doente obre papai, sempre tão bom e preocupado P em ser discreto. Ele não imaginava o que tinha acontecido de fato,
para um afastamento maior entre eu e eles. Foram embora e novamente eu fiquei só. Minha convivência com Eduardo era horrível, coisa de louco mesmo. Depois do casamento, que só contribuiu para piorar as coisas, ele, Eduardo, queria a todo custo que eu me rendesse e voltasse a ter uma vida normal com ele. Nos últimos tempos se revoltava e se entregava mais e mais à bebedeira, à jogatina, à depravação e às mulheres de vida fácil. Geralmente trocava o dia pela noite. Em suas férias, seus fins de semanas, seus feriados, ou qualquer tempo livre que tivesse, ele aproveitava para cair na depravação. Só aparecia em casa para causar desordem e desavença, fazer bagunça e reclamar de tudo e de todos. Brigava, agredia, humilhava depois se atirava num sofá, numa cama ou até mesmo no chão e ia dormir roncando feito um animal. E pelo constante uso do álcool, da vida desregrada e a falta de higiene, seu corpo exalava um mau cheiro horrível e esse cheiro se espalhava por toda a casa. Dormia o dia inteiro e a noite saía novamente, só voltando altas horas da madrugada ou mesmo ao amanhecer do dia, acordando a todos com uma barulheira infernal. Buzinava, batia portas e portões, arrastava cadeiras, deixava portas abertas e as luzes da casa todas acesas. 279
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Ia para a cozinha, pratos e panelas não ficavam um só no seu lugar. Saía comendo e espalhando comida por onde passava. Os banheiros ficavam imundos. Vômitos e outros dejetos ficavam pelo chão. As roupas, ele as espalhava desde a entrada até onde terminasse de tirá-las. Ficava nu dentro de casa, causando vexame e constrangimento. A criatura era um verdadeiro atentado ao pudor e à vida. Bebia desordenadamente e tinha hábitos grosseiros, que agrediam a moral de quem convivesse com ele. Nunca descansava do trabalho, nem convivia com a família. Em nada ele participava e voltou a ser extremamente antissocial. Era uma convivência humanamente impossível de suportar, e esse ritmo de vida atormentava a todos. Era uma vida de desordem física, moral e social. O indivíduo, tanto aprontou que um dia ficou doente. Apareceu-me com uma forte rouquidão, uma tosse insistente e dificuldade para respirar. Por causa desse quadro, os roncos aumentaram de forma insustentável. Ninguém em casa conseguia mais dormir um minuto sequer à noite. Os roncos eram tão altos que incomodavam até mesmo os vizinhos. Quando dos primeiros sintomas da rouquidão, ele estava de férias em casa e pude acompanhar de perto o progresso da doença. Sua mãe também estava conosco. Tinha vindo para o aniversário de dois anos de Sabrina. Ela ficou bastante preocupada e nós duas tentávamos levá-lo ao médico logo de início, mas ele se recusou. Ninguém o convencia e a crise foi aumentando ao ponto de passarmos quatro noites sem dormir. Tinha horas que ele chegava quase ao fim, tamanha era a dificuldade que tinha para respirar. Por muitas vezes ele se agarrava às portas, suspendendo o corpo, na ânsia de encontrar ar para os pulmões. Na quinta noite de luta, já estava muito debilitado. Então conseguimos levá-lo ao médico ainda meio a contragosto, mas foi. 280
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Sabia eu que sua má vontade de ir ao médico era com medo que o mesmo suspendesse as noitadas, pois, mesmo doente, não parava de beber. E foi o que aconteceu, o médico mandou parar. Na consulta, o médico constatou que se tratava de um sério problema na garganta. Estava tão grave que obstruía a passagem do ar, mas que não podia diagnosticar a causa daquele quadro sem exames de laboratório. Encaminhou-nos então para Brasília e, com urgência, recomendou um colega seu, um especialista em garganta e pescoço, um otorrinolaringologista. Partimos para Brasília e fomos direto para o consultório do médico indicado. Lá, foi feita uma consulta mais detalhada e alguns exames foram solicitados e para serem feitos imediatamente. O médico não ficou tranquilo com o que viu. Mesmo assim prescreveu algum medicamento e fez recomendações para começar logo com o tratamento. Disse ser apenas um paliativo, enquanto aguardávamos o resultado dos exames. Passamos numa farmácia e, de posse do medicamento prescrito, fomos para casa de uma amiga que reside no centro de Brasília, onde ficaríamos hospedados. Ela nos recebeu muito bem e nos acomodou da melhor forma possível. Providenciou para que iniciasse logo o medicamento e passou a cuidar dele, enquanto eu descansava um pouco, pois eu já estava com cinco noites sem dormir. A fadiga me tirava qualquer ânimo, e eu ainda não sabia o que vinha pela frente. Ele tomou o medicamento nas horas prescritas, porém não apresentava melhoras. Mesmo após a terceira dose ministrada, sua respiração estava cada vez mais comprometida, em nada tinha melhorado. Eu, que mesmo exausta, não conseguia dormir. Ao ver toda a sua aflição, levantei-me e chamei Marina, a dona da casa, para me auxiliar, pois ele demonstrava resistência em ir ao médico novamente. 281
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Ele percebeu que não podia mais resistir e se entregou. Fomos às pressas para o hospital, onde o médico já nos aguardava, pois telefonamos antes avisando do estado em que ele se encontrava e que estávamos seguindo para lá. Ao vê-lo, o médico ficou muito preocupado. Quando terminou de examiná-lo, disse-nos ser necessária uma pequena intervenção cirúrgica, de emergência. Enquanto o médico fazia seus contatos internos, ficamos um olhando para a cara do outro, sem saber o que dizer, tamanha a surpresa. Chegaram alguns atendentes, que o médico havia chamado. Ele fez sinal para Eduardo se aproximar. Quando ouviu novamente a palavra cirurgia, ele quase entrou em pânico, de tão apavorado que ficou. Quis fugir e não aceitar a intervenção. Entrou em debate com o médico e por nada concordava com o que fora determinado pelo mesmo. Tamanha foi sua resistência, que o médico perdeu a paciência e disse-lhe: – Está bem. Não posso o obrigar a nada, mas, antes de sair daqui, pedirei a você e sua esposa que assinem um termo de responsabilidade, pelo que vier a acontecer. Sua respiração se tornará cada vez mais difícil, forçada e outras complicações poderão surgir. A intervenção que pretendo realizar não vai curá-lo. Será para garantir sua vida, pois, como está, você corre serio risco de morrer asfixiado. – E como será isso? Essa intervenção? – Faremos em você uma traqueostomia, para poder respirar melhor e ganharmos o tempo necessário para fazer os exames. Só depois de tudo realizado é que partiremos para uma cirurgia de fato, ou não. Depende do que determinar os exames. – E o que é traqueostomia? Mediante a explicação do médico, Eduardo ficou paralisado. Ficou muito abalado e suava frio. 282
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Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, e o médico esperando. Eu também estava muito tensa e não ajudava em nada. Sempre tive medo de hospitais e doenças complicadas. Depois que o médico falou como era a tal traqueostomia, aí fui eu quem desanimou de vez. Sorte que Marina estava conosco e a mesma tinha um jeito todo especial para lidar com situações delicadas como aquela. Vendo ela que ele piorava a cada minuto que passava, resolveu entrar no debate e ajudar o médico a convencer o paciente (impaciente). Falou com Eduardo, deu-lhe força e o encorajou a enfrentar o momento sem tanto dilema. Por fim, ela disse: – Confie no médico, Eduardo. Ele sabe o que está dizendo. – É. O que se pode fazer, não? Então vamos logo com isso... Foi um alívio para mim, pois sozinha não conseguiria convencê-lo. Com tudo que advêm de uma demanda dessa, quando ele foi entregue e encaminhado ao centro cirúrgico, já era noite. Marina, que esteve conosco o tempo todo, ainda demorou um pouco, mas teve que se ausentar. Pediu desculpas por não poder ficar mais por que tinha que trabalhar pela manhã bem cedo. Ela saiu por volta de 00h45 da manhã. Fiquei sozinha naquele enorme hospital. Não conhecia ninguém ali, nem queria chamar minhas irmãs. Só queria esperar o resultado de tudo para depois comunicar a elas e pedir ajuda, pois sabia que ia precisar e muito. Pensava também nas diferenças delas com ele, mas não relutei quando precisei e pedi ajuda. Todas se prontificaram. Ajudaram-me sem tocar no assunto que tanto nos magoou. Para elas, naquele momento, ele era só um doente muito desesperado e com medo de morrer, e eu sozinha não podia mais ficar. 283
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Bem, mas voltando à madrugada da cirurgia. Quando Marina, foi embora, fiquei na antessala, perto do centro cirúrgico, para onde o tinham levado. Sentei-me num banco da sala. Dali dava para ver e ouvir boa parte do movimento dos médicos numa outra sala mais ao fundo. Sentada estava e muito só me sentia. Só me restava esperar. Bem depois, surgiu lá dos fundos do corredor um enfermeiro. Ele me viu sentada no banco, se aproximou e falou comigo: – A senhora é a esposa do paciente Eduardo? – Sou sim. Como ele está? – Está sendo preparado para a cirurgia, mas está bem. Trouxe-lhe seus pertences. – Ah, sim! Obrigada. Entregou-me um monte de coisas e voltou para onde tinha saído... No momento eu não tinha, ali comigo, uma sacola, uma bolsa, nada onde pudesse acomodar aqueles objetos. Fiquei com eles nas mãos e olhava tudo, meio abobalhada. Parece que eu estava despertando de um longo pesadelo. De repente aquela situação de doença, de hospital, de cirurgia, de risco de morte acontecia muito rápido. Estavam ali comigo a calça, a camisa, o relógio, as meias e os sapatos dele. Estava tudo ali na minha frente, mas, e o dono, ainda voltaria? Senti uma sensação horrível com esse pensamento. Não me sentia uma esposa a cuidar do seu marido. Ele se tornara uma criatura estranha para mim. Mas ao mesmo tempo não consegui ficar indiferente ao sofrimento dele. Devagar coloquei aquelas peças em cima do banco. Os sapatos? Os sapatos é um caso a parte. 284
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Os SAPATOS me dizem muito de uma pessoa ou de um fato. E naquele momento então aqueles me faziam sentir calafrios... Coloquei-os no chão, perto do banco, um ao lado do outro, assim como se o dono estivesse ali sentado. Fiquei a observá-los e uma grande tristeza invadiu meu peito. Com grande pesar eu pensava: “Somos coisas tão pequenas, insignificantes e vulneráveis”. Aqueles objetos representavam um homem que, até bem pouco tempo, era uma pessoa arrogante e prepotente. Que se achava superior a todos. Que até bem pouco, se movimentava dentro daquelas roupas, e agora estava ali inerte entre aquelas quatro paredes, podendo até mesmo sair dali sem vida e nunca mais fazer uso daqueles sapatos. Nos acessórios de uso pessoal, o que mais me atrai são os sapatos. Tenho mania de comprá-los. Eles sempre me dizem alguma coisa. Aquelas cenas de filmes ou acidentes de carro, onde os sapatos ficam espalhados pelo chão, elas mexem muito comigo. Quando os vejo jogados a esmo, amassados, sujos, maltratados, ou perdidos à beira de uma estrada, parece-me o fim. Pareceme que seu dono também se perdeu. Os sapatos representam para mim movimento, caminhada e liberdade porem aqueles que estavam ali parados, perto de mim, eles me davam arrepios e uma sensação de impotência. Aquelas peças tão quietas me deixavam ainda mais deprimida. Elas tinham cheiro de cigarro e do perfume que Eduardo usava. Procurei desviar o pensamento, mas foi impossível. O silêncio era grande, não avistava uma única pessoa com quem conversar. Só os plantonistas estavam a postos, cada um cuidando de seus afazeres e, assim, não davam muita chance para conversas que não fossem estritamente relacionadas ao seu trabalho. Também não queria me ausentar da salinha. Esperava vê-lo saindo dali bem e com vida. 285
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Mas não aparecia ninguém lá de dentro também, para onde o tinham levado. A espera era marcante e sufocante. Resolvi então sair um pouco. Fiquei perambulando por alguns minutos, ali mesmo pelas calçadas, para respirar um ar mais fresco. Quando retornei à salinha de espera, parece que tinha passado uma eternidade. Sentei-me novamente no banco, perto das roupas e dos sapatos que eu havia deixado ali. Para o meu alívio, logo em seguida apareceu alguém vindo lá de dentro. Era o mesmo enfermeiro de antes. Avisou-me que Eduardo já tinha subido para o apartamento, que estava bem e consciente. Disse-me também que eu podia ficar com ele, mas não devia fazê-lo falar muito para não provocar tosse. Conduziu-me até o andar que ele estava e, ao sairmos do elevador, me indicou o número do apartamento e que o mesmo ficava mais para o final do corredor. Deixou-me ali e tomou a direção contrária, andando apressado.
Fiquei parada, pensativa e sem ação. Depois de um bom tempo resolvi me mexer e seguir para o rumo indicado pelo o enfermeiro. Fui me aproximando da porta do apartamento e de longe ouvia um barulho estranho. Era como se alguém gargarejasse um líquido grosso e esse gargarejo vinha acompanhado de um assovio seco e agudo. Parei, não conseguia me aproximar mais do quarto. Não conseguia me mover. Fiquei indecisa: continuava ou não? Gelada, pareí novamente no meio do percurso, ouvindo aquele som horrível. Depois ouvi passos apressados atrás de mim. 286
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Era uma enfermeira e vendo minha indecisão, veio ao meu auxílio e me disse: – Venha. Não se preocupe, esse barulho acontece, quando é feito a traqueostomia. Você é a mulher do paciente? – Sim. – Venha. – O que fizeram com ele? – perguntei. – Uma traqueostomia. – Traqueostomia? Que palavra estranha. Como é mesmo isso? O médico já explicou, mas parece muito estranho. – Venha para ver como é. Ela insistiu, mas não entrei. Ela entrou sozinha, pois tinha também que cumprir as prescrições médicas contidas na ficha dele. Quando ela saiu, ainda me encontrou plantada no mesmo lugar. Ali em pé, eu segurava os sapatos em uma das mãos e as roupas na outra. Tinha-as dobrado, feito um bolo, e segurava-as de encontro ao meu peito, como se não quisesse me separar daqueles objetos. Não mais amava Eduardo, mas a expectativa da morte é algo muito ruim. Estava travada. Sentia-me mais doente do que ele e me arrependia de não ter chamado minha irmã para ficar comigo. Arrependia-me, mas já era tarde e tarde da noite também ou, melhor dizendo, cedo da madrugada, cedo já do dia. Amanhecera completamente e eu nem tinha visto. Para mim estava tudo pelo anverso. Fora um dia e uma noite horríveis, desde que ali chegamos. O ambiente hospitalar nunca foi o meu preferido. Tinha receios e uma ponta de fobia. Nunca tinha tido a necessidade de me envolver tão diretamente com hospitais. Só quando ganhei nenê, mas lá o clima era 287
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outro. Ali, naquele ambiente estranho, estava me sentindo como um peixe fora d’água. E, naquele momento de aflição, como uma bênção divina, vejo minha irmã que entrava pelo corredor e vinha em minha direção. Marina, quando foi embora, ficou preocupada por ter me deixado sozinha. Então avisou para minhas irmãs e contou que o quadro era preocupante. Uma delas, imaginando meu apuro, correu para lá bem cedo, pois sabia da aversão que eu tinha por hospital. Quando ela me viu parada no corredor, correu ao meu encontro e foi logo perguntando: – Que barulho é esse, Celeste? – Não sei, ainda não tive coragem de entrar para ver. Disseme a enfermeira que é por causa da tal traqueostomia. – O que é isso? – Também não sei direito, ainda não vi. A enfermeira retornou pela segunda vez. Olhou para mim com jeito de quem entendia meu medo. Olhou e entrou no apartamento dele, levando uma bandeja na mão. Enquanto ela se encontrava no interior do quarto, eu ouvi que ele tossia muito e ela ligava uma coisa que fazia barulho e ele tossia mais e mais. Ela pacientemente dizia: – Calma senhor Eduardo. Passados alguns minutos, ela saiu, parou perto de mim e tentou encorajar-me novamente a entrar. Quando finalmente, conduzida por minha irmã, consegui me aproximar da porta do quarto, a cena que vi me deixou de cabelos em pé. Ele estava deitado. Tinha um orifício na base da garganta, por onde uma válvula de metal fora introduzida. Esse arranjo era preso ao pescoço por duas tiras brancas, amarradas para trás como uma gargantilha. 288
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Seu rosto, pescoço e parte da região do tórax, até onde eu pude ver, estavam horrivelmente deformados e inchados. Era uma infiltração subcutânea. Ele estava cheio de ar. Parecia um balão inflado. Estava todo vermelho, com os olhos esbugalhados, fixos no teto. Fiquei olhando para ele sem reconhecê-lo e tentava entrar no quarto, mas não conseguia. Aos poucos fui me aproximando pé ante pé, mas antes de cruzar totalmente a soleira da porta, ele começou a tossir violentamente e com isso foi impulsionado para frente, levantando parte do corpo e, assim, espirrou sangue e baba em tudo que estava à sua frente. Rapidamente recuei. Não entrei. Saí de costas e afastei-me o quanto pude indo sentar-me numa cadeira que encontrei no corredor. Senti desfalecer. Não sentia mais o chão sob meus pés. Era a pior cena que eu podia ter visto na minha vida. Além do mais tinha estado sob grande pressão psicológica nos últimos sete dias e estava muito abalada. Aquela visão foi horrível. Minha irmã correu para perto de mim e me amparou, com medo que eu desmaiasse de uma vez. – Calma Celeste! Amanhã ele já estará melhor. – Acho que ele não sairá desta. Não sei onde ela conseguiu a xícara de café que me trouxe. Ela ainda ficou mais algum tempo comigo, até que meu cunhado veio buscá-la. Ele ia para o trabalho, mas eles tinham um filho pequeno que não podia ficar só. Eles saíram e me prometeram enviar outra pessoa para ficar comigo. Àquela hora o movimento no hospital já era grande. Já tinha iniciado o expediente completamente. Eram visitantes, acompanhantes, enfermeiros e médicos 289
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num vai e vem constante. E eu ainda não tinha entrado no quarto, pois fiquei o tempo todo no corredor. Não queria vê-lo daquele jeito. Aquele homem outrora tão forte e tão bonito estava agora humilhantemente irreconhecível. Na terceira visita da enfermeira, ela me disse que ele procurava insistentemente por mim. – Está bem, já vou entrar – eu disse. Percebi que ele estava mais calmo da tosse e me animei a entrar. Fui entrando devagarzinho, com grande receio de olhar para ele. Entrei. Estava quieto e calmo, parecia querer dormir, mas não conseguia. O furo na garganta era terrivelmente incômodo. A calma foi só por um instante. A tosse voltou. Eduardo ficou muito agitado e, ao tossir, saía uma secreção pelo orifício da cânula. Com isso, ele se engasgava e tossia mais ainda. Corri e chamei a enfermeira, que veio prontamente e começou a fazer uma aspiração. Ela introduziu uma mangueirinha fina no orifício da garganta, conectou-a a um miniaspirador, que se encontrava na mesinha de cabeceira da cama, ligou o mesmo e começou a limpar o canal. Enquanto ela fazia o procedimento, ele ficava mais agitado e tossia sem parar. Virei-me de costas para não ver; aquilo me causava náuseas e vertigens. E para meu espanto, quando ela terminou a limpeza da cânula, me chamou e ensinou-me como proceder se ele se engasgasse novamente, como usar a mangueirinha, o aspirador e tudo mais... E me dizia: – Caso ele se engasgue novamente, não pode deixar a cânula obstruída, para ele não tossir tanto. Você mesma pode limpar cons290
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tantemente. – Eu? Eu mesma fazer isso? – Você vai conseguir. – Não fala sério, não é? – Estou falando sério. É fácil. Dizia aquilo com naturalidade, achando que para mim era a coisa mais natural do mundo: fazer aspiração numa garganta humana como se fosse um tapete. Já havia eu trabalhado num hospital, é bem verdade. Mas só na parte de consultórios; nada de me envolver com cirurgias e doentes. Então disse para ela: – Não vou conseguir. É bom não confiar. – Está bem, mas qualquer alteração pode me chamar. – Pode estar certa disso. O dia foi movimentado. Tivemos muitas visitas, muitos telefonemas. Muito apoio também. Com isso tive tempo até para me ausentar um pouco. Fui até a casa de meu pai, mas não conseguia relaxar, não conseguia dormir. Aquela imagem não me saía da cabeça. Voltei então para o hospital, pois achava melhor ficar por perto. Apesar do nosso total afastamento, me sentia no dever de cuidar dele, de torcer para que tudo terminasse bem. Eu não conseguia ignorar o momento, que era muito delicado. Na segunda noite no hospital, ficamos só nós dois novamente. Os parentes e amigos tinham sua rotina. Não nos sentíamos bem um com o outro, mas era comigo que ele contava em primeira mão. Nessa noite, já apresentava alguma melhora. Um pouco mais acostumado com a cânula, respirava calmamente por ela, porém estava de mau humor e muito calado. Não falava comigo e só me olhava de relance. Parecia que não estava tranquilo comigo por perto. Conversei com ele e disse-lhe que ficasse tranquilo, pois faria o que pudesse para ele sair bem daquela e se curar logo. Disse291
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lhe também que não se preocupasse, pois, apesar de tudo, eu tinha uma filha com ele e, naquele momento, as mágoas não contavam para mim. Tentava amenizar sua dor, pois sabia que era grande. Ele era uma pessoa orgulhosa e de hábitos livres, não gostava nada do que estava passando, ou seja, de ficar à mercê dos outros, preso a uma cama de hospital. Mediante minha franqueza e já vencido pelo cansaço, ele consegui dormir um pouco. Enquanto ele dormia, sentei-me numa poltrona e fiquei que nem me mexia, na esperança de que ele dormisse bem e não voltasse a tossir. Eu não queria fazer aquela aspiração, que seria para mim um horror. O cansaço já tomava conta de mim também. Eu fazia um esforço medonho para me manter acordada, mas o sono não avisa e ali mesmo, na poltrona, cochilava. Tentava, mas não conseguia me manter acordada. Quando acordei de um desses cochilos, tive que esfregar bem os olhos para poder ver melhor o que eles me mostravam e eu não queria acreditar. Seria sonho ou realidade? Estaria eu vendo coisas? Estaria alucinada pelo esgotamento, pelo cansaço? Olhava e olhava. Senti um arrepio. A cama estava vazia. O soro gotejava no piso. O lençol jogado no chão e com jeito de que havia sido pisoteado. O aspirador estava ligado e sua mangueirinha pulava de um lado para o outro como uma cobra maluca. E ele, meu Deus, onde estaria? Em pânico, me virei para um lado e para o outro e de repente vi que ele estava atrás de mim, encostado no parapeito da janela do apartamento, que ficava no 4.º andar. E, em frente, a mesma janela que, na verdade, era um janelão, ele fazia gestos como se quisesse 292
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transpô-la, só não o fez porque esta era bem mais alta, com relação ao piso. E ele não encontrou nada em que pudesse se apoiar para subir. Estava meio passado e dava sinais de não ter controle dos seus próprios movimentos. Parecia não saber o que estava fazendo. – Eduardo! O que é isso? Para – gritei para ele. Quando falei, ele se virou na minha direção e veio com os braços erguidos para frente e caminhava em passos lentos, como um robô. Olhei bem para ele e só então vi que estava sem a cânula e novamente respirava com dificuldade. Seus gestos eram lentos e mecânicos. E, assim, aproximou-se mais e mais de mim, com as mãos estendidas para frente, parecendo querer alcançar meu pescoço e me estrangular. Vendo isso, fiquei com medo, apavorada. Levantei-me então e comecei a fugir rumo à porta. Fui andando de costas para a mesma, até alcançá-la e sair dali em disparada à procura de ajuda. No meio do corredor havia a sala de apoio dos médicos e enfermeiras. A porta estava aberta e para lá me dirigi. Mas, antes de entrar correndo na sala, ainda olhei para trás e vi que ele me seguia em passos lentos. Se não fosse pelo momento tão dramático, esse teria sido cômico. Eduardo vestia um “camisolão” do hospital. Daqueles que eles costumam vestir nos pacientes quando vão para a sala de cirurgia. O dito camisolão mal lhe cabia dentro, tanto na altura como na largura. Era muito engraçado ver aquele homenzarrão usando o ridículo pedaço de pano, que mal lhe cobria as partes íntimas. E, ostentando apenas aquele deselegante avental, ele vinha pelo corredor longo, vazio e silencioso; vinha rumo a não sei o quê. Era um perfeito sonâmbulo. Uma figura patética. Ainda olhando para trás, entrei correndo na sala dos médicos, fechei a porta atrás de mim e tranquei-a. 293
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Estava tremendo e sem voz. No interior da sala, estavam duas enfermeiras. Ficaram muito assustadas quando me viram entrar feito um raio. Levantaram-se de um pulo e procuraram se esconder atrás do armário de aço que tinha na sala. Eu, que estava branca de medo, tive que me controlar para ganhar a confiança delas. Pensavam que eu entrara ali daquele jeito para lhes fazer algum mal. Coisa de gente de cidade grande, que vive assustada com a violência e com pessoas descontroladas. – Desculpem entrar assim, é que estou precisando de ajuda – falei ofegante. Quando falei, apareceram dois rostos, um de cada lado do armário. Este ficou muito engraçado: parecia o desenho de um monstro quadrado com duas cabeças. Só dava para ver o rosto delas, o corpo continuava escondido atrás da peça de aço. – O que houve? Você está bem? – Estou sim. O problema é meu marido, o paciente do 415. – Sei. O da traqueostomia. – Sim. Ele apresentou uma reação estranha. Falei com ele, mas não me reconhece. Parece querer me estrangular. – Ele está no quarto? – Não. – Não?! – Não. Ele fez uma desordem lá no quarto. Tirou o soro do braço, arrancou a cânula da traqueostomia e está desorientado e vindo atrás de mim. – Retirou a cânula? – Sim. Retirou tudo. – Santo Deus! Ele corre risco de morrer. Elas saíram de trás do armário e correram para abrir a porta. 294
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Mas, nesse pequeno intervalo, enquanto eu falava com elas, ele já havia passado por onde nós estávamos e entrado na enfermaria, que ficava perto da sala, no mesmo andar. Era uma parte aberta, só com um grande balcão que a separava do corredor. Era o lugar onde ficava todo o controle dos pacientes internos naquele andar. Ficava o fichário, remédios e umas geladeiras. Saímos as três da sala e chegamos onde ele estava e vimos também que estava causando um bom estrago em tudo que encontrava no local. Derramava remédios, jogava bandejas e embalagens de soro pros lados. Derramava água pelo chão, tirava tudo do lugar, parecia o Hulk enfurecido. Olhávamos tudo aquilo, paradas, ninguém se mexia. Quando ele nos viu, fez menção de se aproximar. Estava com os olhos injetados e o rosto desfigurado. E, dessa vez, fomos nós três que correremos para nos proteger na sala. Corremos e nos trancamos lá dentro novamente para pedir socorro pelo telefone. Enquanto uma tentava no telefone, ficamos as duas em silêncio. Daí a pouco percebemos que o barulho diminuía. Só se ouvia passos e tinha-se a impressão de que ele se afastava, não sabíamos para que lado, pois onde estávamos ficava bem no centro do enorme corredor. A enfermeira que estava ao telefone ficava desesperada, pois, por incrível que pareça, o tal do telefone não funcionava exato naquele momento. Ela tentava e tentava. Batia pra lá e pra cá e nada. Por fim, resolveu largar o telefone e começou a gritar pela janela. Gritava para o andar de cima, para o andar de baixo, para quem ouvisse primeiro e desse o sinal. Era um desespero. Tínhamos medo que ele fizesse algo irreversível, pois com certeza estava surtado e não respondia pelos seus atos. 295
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Gritaram e gritaram, até que alguém ouviu e respondeu. – Que se passa aí em cima? O andar está pegando fogo? Olhamos para baixo, de onde tinha vindo a pergunta, e uma delas respondeu: – Chama a segurança! Temos um paciente com problemas. Avisa também para os médicos que estão de plantão nesse andar, rápido, por favor. – E por que você mesma não fez isso pelo telefone? – O telefone não funciona e não podemos sair da sala... – Está bem, está bem... – gritaram lá de baixo. Paramos um pouco e tudo ficou em silêncio. Sorte que os outros pacientes daquele andar não se deram conta do que estava acontecendo. Afinal, eles também corriam certo risco. Se ele entrasse num dos apartamentos, com certeza ia causar um bom reboliço. – Abra a porta, vamos ver se ele ainda está aqui – disse uma das enfermeiras. Com muito medo, abrimos a porta e vimos que ele tinha sumido. Olhamos para os dois lados do corredor e nada... Não conseguíamos mais vê-lo nem ouvi-lo. Ficamos esperando na sala, pois não sabíamos o que fazer sem a ajuda de um homem. E se ele tivesse morrido? Comecei a chorar. Ainda bem que em poucos minutos chegou ajuda. Contamos para o pessoal da segurança e eles se espalharam à procura dele. Só ouvíamos os passos e o ranger dos coturnos no piso limpo e bem polido do corredor. Em seguida, chegaram também dois médicos. – Peço que sejam rápidos, por favor. Tenho medo de que ele pule por uma janela. Está muito descontrolado e, o pior, está sem a cânula da traqueostomia. Ouvindo isso, os médicos saíram apressados e se envolveram também na busca. Entravam e saíam em todos os outros aparta296
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mentos, mas nada... Ela havia sumido. Com tamanha angústia da espera, voltei para a sala das enfermeiras, sentei-me e tapei os ouvidos com as mãos. Tinha medo de ouvir a confirmação do que eu temia. Apesar de tudo, não queria o pior para ele. Pensava na mãe dele, que tinha ficado na nossa casa em Goiás. Pensava na nossa filha. Pedia a Deus que tudo terminasse bem. As enfermeiras ficaram num vai e vem e não me diziam nada. Uma trouxe-me um copo com água e desapareceu. Tomei a água e permaneci sentada e com os olhos fechados. De repente, ouvi um barulho que se aproximava. Tremia de medo, mas precisava saber o que estava acontecendo lá fora. Saí da sala e vi que já o tinham encontrado. Estavam vindo com ele, lá no fundo do corredor. Dois homens da segurança conduziam-no, segurando-o pelo antebraço, um de cada lado. E ele estava como que aéreo, olhar perdido e alheio a tudo ao seu redor. Um enfermeiro trouxe uma maca e o deitaram nela. Em seguida, entraram no elevador e vi que iam descer com ele. Corri então para os médicos e perguntei: – Ele está bem? Para onde estão levando ele? – Não, ele está bem. Sem a cânula quase ficou asfixiado. Vamos levá-lo ao centro cirúrgico para recolocá-la. E para lá sumiram com ele. Quando já era dia, trouxeram-no de volta ao quarto. Junto com ele, vieram dois soldados, que receberam instruções para permanecer de guarda naquele andar, até segunda ordem. Mais tarde, os médicos mandaram me chamar e me fizeram mil perguntas a respeito do comportamento dele, como pessoa. Do seu equilíbrio emocional, de como controlava suas emoções e, enfim, de sua vida, no geral. Eles me perguntavam e eu respondia segundo minha ex297
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periência de vida ao lado dele, que era das piores, e eu não podia mentir. Não sei a que conclusão eles chegaram: nunca me disseram nem eu perguntei. Só sei que, após 24 horas, dispensaram a segunda dupla de soldados, digo segunda porque foram duas duplas que se revezaram nesse período. Ao dispensarem os soldados, fiquei mais aliviada, pois achava constrangedora a presença deles ali por perto, embora fosse necessário. Depois, quando lhe contei o ocorrido, ficou muito constrangido e disse não se lembrar de nada do que tinha acontecido. No quarto dia, tudo corria bem e ele tentava encarar o tratamento de forma mais racional. Perguntei se podia me ausentar um pouco do hospital. Ele disse que sim. Chamei alguém então para ficar com ele e saí. Fui para a casa de meu pai. Lá chorei e chorei muito. Chorei até sentir uma sensação de alívio. Tomei um tranquilizante e dormi a noite toda. Pela manhã, meu querido e saudoso pai me preparou um café, alguns biscoitos, leite, chocolate e frutas. Mas só consegui tomar o café puro: não conseguia comer. Fazia dias que só beliscava alguma coisa da refeição que era servida no hospital, para me manter viva. Terminando o meu café, fui novamente para o hospital.
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39 A internação e o dinheiro ssa demanda duraria mais de 26 dias, entre E internação e tudo mais. Aguardávamos resultados dos exames, inclusive da biópsia. Por esse longo período de idas e vindas e a exigência de minha presença lá constantemente, a vida em casa foi ficando para trás. Estava com tudo atrasado. Eu tinha que estar lá e cá ao mesmo tempo. Às vezes, anoitecia lá e amanhecia aqui. Ou anoitecia aqui e amanhecia lá. Cuidava dele e cuidava de casa, das contas e de abastecer a dispensa. Cuidava da minha filha e cuidava de minha sogra. Cuidava da boutique e cuidava da pequena fazenda. A maior preocupação era com minha sogra, a quem tinha de transmitir calma e segurança, pois estava muito preocupada com a saúde do filho. Ele lá no hospital estava insuportável e não queria ficar só um minuto sequer. Por isso, exigia minha presença o tempo todo. Acho que fazia aquilo para me infernizar mesmo, pois não tinha tanta necessidade de estar agarrado a mim, de estar naquela dependência toda. Podia andar, falar e se alimentar sozinho. Todas as suas funções fisiológicas estavam normais. Não era um aleijado, mas se comportava como tal. 299
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Era só mais uma forma de chamar a atenção, de me massacrar. De me punir por não ser eu a doente e sim ele. O destino estava lhe fazendo ver que ele não era o invencível, o todo-poderoso, como queria ser. Com toda a labuta, ainda tinha que me segurar, não podia contrariar o homem em nada. E assim me esforçava para oferecer um ambiente de paz, contribuindo para o seu pronto restabelecimento. Ele tinha que estar bem emocionalmente. Todas as suas ordens tinham que ser obedecidas. Todas as suas vontades, satisfeitas. Eu que me danasse. Mesmo assim, eu sabia que as coisas não podiam parar. E nessa confusão, fui ficando com todos os meus compromissos atrasados. Compras por fazer. Contas a pagar. Funcionários querendo receber seus salários. A despensa vazia, sem mantimentos. A geladeira, o freezer, uma tristeza, não tinha mais nada. Mas eu pensava: “Depois que recebermos os resultados dos exames, resolvo isso com mais calma; assim não tenho cabeça para fazer nada”. A espera pela biópsia era traumática, uma expectativa terrível. Quando faltavam poucos dias para recebermos os resultados, um dos médicos disse: – Se tudo correr bem, você será liberado por uns dias. Pode ir para casa, com data marcada para retornar. Mas você permanecerá com a traqueostomia por mais um tempo, por simples medida de segurança. Poder ir para casa foi uma ótima notícia. Estávamos estressados e angustiados com a espera. Nesse mesmo dia à tarde, falei com ele: 300
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– Eduardo, você está bem, só aguardamos os procedimentos normais; e sendo assim, acho que vou pra casa com mais calma, preciso tentar pôr as coisas em ordem: contas e tudo mais que está parado. Vou lá e, quando chegar o resultado dos exames, avise-me, que virei rapidamente para te buscar (como se ele fosse uma criança). – Está bem – concordou ele. – Então, agora vou a casa de meu pai pegar minhas coisas e ver se ainda acho ônibus a esta hora. (Tínhamos carro, mas eu não podia usar, ficava trancado na garagem; ele controlava tudo.) – Certo. – Você vai ficar bem? – Vou. Está tudo bem, pode ir. Quando já me preparava para sair do quarto, ele me chamou. Cheguei perto da cama e ele me estendeu algo; vi que era um cheque. Recebi-o e pensei: “Até que enfim ele se lembrou que meu dinheiro também acaba”. Até hoje ele não se manifestou a respeito para, pelo menos, saber se eu ainda tinha algum, ou se estávamos precisando de alguma coisa dentro de casa. Nem se eu tinha dinheiro para as passagens que foram muitas, nada, nada ele queria saber. Eu que me virasse pra tudo. Olhando o cheque, continuei pensando: “Que bom que se lembrou, antes tarde do que nunca”. Abri o cheque e vi que era mais ou menos o valor do seu soldo mensal. Fiquei aliviada e admirada com aquela generosidade, que não lhe era peculiar; mas, quem sabe, ficou sensível por causa da doença. Qual foi minha decepção quando ele “abriu a boca”. Enquanto eu pensava, ele falou, matando meu pequeno sonho. – Quando você chegar lá deposite este cheque, o total na minha poupança. Aplique tudo. 301
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Falou aquilo com a tranquilidade de um monge. – Todo? – perguntei. – É. Todo! Olhei para o cheque, olhei para ele e saí sem falar mais nada. Não queria perder a calma e esmurrar aquela cara de pau. Tomei o elevador para descer; queria correr dali, para bem longe. Sentia nojo dele. Aquela era uma atitude no mínimo monstruosa. Como alguém no leito de um hospital, passando pelo que ele passou e estava passando, ainda conseguia ser tão miserável? Ainda podia pensar em dinheiro assim com tanta frieza? Como ele poderia ser tão desprezível daquele jeito? Eu não entendia. Desejei muito que ele morresse e me deixasse em paz, mas... Enquanto descia no elevador, pensava na sua atitude mesquinha. Eu chorava de vergonha, parece que todos tinham visto e ouvido o que eu ouvi. Peguei minha bagagem na casa de meu pai e fui para a rodoviária. Consegui passagem já bem tarde, às 21h30, mas dava para chegar, em casa, ao amanhecer do dia. O trajeto era de 320 quilômetros. Uma média de 6 horas de viagem. Quando me acomodei no ônibus, pareceu-me o sofá mais confortável do mundo, tamanho era o meu cansaço. Preparei-me para descansar bem durante a viagem, mas não conseguia. Não tinha paz e só pensava na história do cheque e na covardia daquele homem, que era o meu marido. Justo naquele dia, que eu estava apreensiva com tantos compromissos atrasados, ele, o maldito, estava pensando em economizar ainda mais às minhas custas. Como eu ia aplicar aquele dinheiro, se estava com tudo atrasado? Não me sobrava tempo nem dinheiro para pôr as contas em ordem. Vendia bem, mas gastava muito. Eu trabalhava para isso mesmo. Não tinha apego ao dinheiro. Tinha controle do orçamento, mas apego não. 302
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Desde que minha filha nascera o meu trabalho já não corria tão bem, já não andava na mesma velocidade. E, com a doença dele então, me enrolou mais ainda o meio de campo. Resolvi então não aplicar o dinheiro. Quando cheguei a casa, ao amanhecer do dia, tomei um banho para acordar e fui para o banco. Troquei o cheque e sanei o que tinha de mais urgente e que, por sinal, não deu para muita coisa, mas serviu assim mesmo. Na minha agenda, anotei data e valor, para devolver-lhe com juros cada centavo, quando me fosse possível. Corri para lá e para cá. Fiz umas cobranças de contas já vencidas e acertei o restante das pendências da casa, como salários de funcionários e tudo mais. Fiquei mais tranquila. Depois de cinco dias, me ligaram do hospital, dizendo para eu ir, pois os exames já estavam prontos, mas ele só queria saber o resultado quando eu chegasse. E lá fui eu novamente e com o coração mais apertado com a expectativa dos resultados. Chegando lá fui direto para o hospital. Entrei no quarto, cheguei perto dele e cumprimentei-o. Estava muito ansiosa para saber de tudo, mas antes de me cumprimentar direito a primeira coisa que ele me perguntou foi pelo dinheiro. – Aplicou o dinheiro? Incrédula, eu respondi, quase sem voz: – Apliquei. – E o recibo? – Deixei em casa, na gaveta da mesa da boutique – menti. – Era para trazer, gosto de controlar tudo. Ai! Que vontade de estrangular aquela coisa esquisita, aquela figura grotesca. Vontade de tapar aquela válvula, com cimento ou durepox, para nunca mais ele respirar, pois o oxigênio que ele usava iria fazer falta à humanidade. Ele não merecia nem o ar que respirava. 303
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Com certeza aquela criatura me levaria à loucura ou a cometer atos de loucura. Nossas diferenças de caráter eram grandes demais, eu sabia. Mas até onde isso ainda era possível? – Bom, já que você faz tanta questão, trarei o recibo da próxima vez. Aliás, creio que você terá alta agora e em casa te entregarei o recibo – falei tentando encerrar o assunto. Acho que eu menti tão mal, que ele insistia em perguntar pelo recibo. Com isso, eu me sentia muito incomodada, me sentia péssima; era como se eu tivesse roubado aquele dinheiro. Ele estava me levando a fazer coisas que nunca pensei em fazer antes. Mas, no íntimo, me consolava, pois sabia que devolveria logo, logo, o tal dinheiro. Imagina pegar dinheiro dele. O tipo machão que a mulher não usa o dinheiro dele. Só ele pode usar o dela. Mas de forma indireta para não se comprometer. Esse tipo de gente não se compromete explicitamente. Eles agem de forma a induzir o companheiro ou a companheira a gastar todo seu dinheiro e ainda dizem: nunca “peguei” um centavo seu. O meu dinheiro era gasto todo nas despesas da família, que não era pequena, enquanto que o dele era guardado ou usado para comprar gado, carro, terrenos... Mas sempre algo que ele pudesse documentar no seu próprio nome.
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40 A alta e a cobrança do recibo então, como previsto, ele teve alta; porém a E cânula não fora retirada.
Seu tratamento ainda não havia terminado. Teria de voltar periodicamente aos médicos. Por enquanto era só um descanso. Com o calendário das visitas em mãos e tudo certo com o hospital, podíamos ir para casa. Agradeci e me despedi de todos que estiveram conosco, nos ajudando e nos dando esperança. Aquela enfermeira se tornara minha amiga e ria dos sustos que passei nos primeiros dias. Do hospital fomos para a casa de Marta, uma prima de Eduardo. Que alívio! E tinha uma sensação de festa, dentro de mim, porque tudo estava indo bem e podíamos voltar para casa. Na casa de Marta, fomos recebidos com alegria. Também estava presente a irmã dele que veio lá de onde morava para ver o irmão e conhecer a mim e a sobrinha, que ainda não conhecia. Foi um encontro tumultuado. Não me sentia à vontade para conhecer ninguém naquele momento. Bem, mas o que quero lembrar aqui é o fato ainda relacionado ao dinheiro. Ele não dava trégua. O tempo todo perguntava pelo recibo ou se eu havia aplicado mesmo o dinheiro. Em momento algum, achava-me em condições de dizer-lhe a verdade. Sempre dava um 305
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tempo e confirmava que tinha aplicado. Ia levando e deixava para falar do assunto quando chegássemos a nossa casa. Pensava ter no ambiente familiar um aliado para aplacar sua fúria, pois sabia que ela viria. Por isso, fui enrolando. Quando voltamos para nossa casa em Goiás, sua irmã veio também. Ela intencionava ficar alguns dias conosco. Chegamos a nossa casa às três horas da manhã. Estava muito cansada, porém feliz. Ia retornar à vida normal por uns dias. Vida normal? Pois é, vamos começar pelo meu trabalho, pela boutique, que estava carente de atenção e com urgência. Mas como conciliar isso com as outras tarefas? Naquele tempo, quando tinha que reforçar o estoque da boutique e, por algum motivo, não pudesse viajar, eu recorria a um casal que representava muitas fábricas de Goiânia. Ambos eram representantes de várias confecções de lá. E no momento de correria que estava passando, lembrei-me deles e, lá mesmo em Brasília, liguei pedindo que viessem me atender e que trouxessem bastante roupa, pois o estoque estava a zero. Combinamos tudo pelo telefone. Pedi rapidez e com tal fui atendida. Ele, o representante, chegou quase junto comigo. Mas vou deixar um pouquinho de lado esse detalhe. Naquele dia, levantei-me cedo para encaminhar tudo. Aliás, nem tinha mais me deitado, pois chegamos com o dia já clareando. Tomei banho, me vesti e desci para iniciar o dia. Fui até a cozinha, chamei as moças que trabalhavam em nossa casa. Fiz uma pequena reunião e distribuí as tarefas. Ordenei a uma que arrumasse bem a casa, trocasse camas, tapetes e toalhas. Queria a casa limpa e fresca. Para a da cozinha, pedi que providenciasse biscoitos, doces, bolos, sucos, refrigerantes e café. E, para o almoço, fizesse frango caipira. 306
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Peguei minha filha no colo, brinquei com ela, beijei-a e pedi para a sua baba que a mantivesse sempre limpinha e bem cuidada, mas que a deixasse brincar à vontade. Aquilo tudo, para mim, era rotina. Toda manhã conferia e encaminhava o trabalho da casa antes de me enfiar na boutique. Minha mãe me ensinou que uma casa limpa e organizada gera saúde e economia. Portanto, nunca descuidava de casa, mesmo trabalhando fora. Gosto de tudo arrumado, não importa o trabalho que dá. Aquele, então, era um dia especial. Sabia que teríamos visitas, muitas visitas. No que não me enganei. O povo daqui sabe ser solidário e a doença de Eduardo tinha virado notícia. Tivemos uma grande recepção, todos queriam saber como ele estava passando. Então, terminando a reunião da cozinha, eu mesma fui fazer uma revisão nele, no doente. Quero ressaltar aqui, que, pela longa permanência no hospital, acabei por me acostumar em fazer a manutenção das cânulas e a limpeza da traquoestomia.
– Bem, mocinho, agora é hora do banho. Vamos fazer uma geral – já fui chegando num clima de brincadeira, para amenizar seu mau humor. Foi para o banheiro, sem dar uma palavra, e eu fiquei esperando. Quando voltou do banheiro, mandei que se sentasse numa cadeira, para eu começar os cuidados de enfermeira. Retirei a cânula móvel e depositei-a num recipiente para esterilizar. Não tínhamos também o aspirador, que nem se fazia mais necessário. A enfermeira me ensinou como proceder com os recursos domésticos. Em seguida limpei a incisão, troquei a gaze e as fitas que 307
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amarravam a base da cânula em volta do pescoço. Aquelas fitas se sujavam rapidamente, ficando com um aspecto desagradável. Depois recoloquei tudo de volta no mesmo lugar e estava pronto. Era necessário fazer esse procedimento duas vezes por dia. Ainda tinha muito receio de fazer aquela tarefa, mas fazia. Do contrário, teríamos que pagar uma enfermeira. Mas, como já tinha muitas despesas, eu mesma me habilitei a fazer o trabalho e já o fazia direitinho Troquei cama, toalhas e o pijama para ele. Fiz tudo para que se sentisse o mais confortável possível dentro de sua casa e pudesse esquecer o desconforto do hospital. Depois, atendi e acomodei minha cunhada. Estive um pouquinho com minha sogra e perguntei-lhe se já havia tomado seu remédio para a pressão. – Não, minha filha. Não tomei ainda. – E por que não tomou? – Porque acabou. – Há, já vou providenciar outro. Vou pedir da farmácia e pra já, está bem? – Não se preocupe com isso agora, deixe para depois. – Imagina. Mandei alguém ir comprar o remédio para ser mais rápido, e ela ficou satisfeita. Logo após, fui para a boutique. Conversei com a vendedora e dei atenção também às duas clientes que se encontravam lá e perguntavam pela saúde do Eduardo. Já estava pegando o rumo da rotina, pois adorava trabalhar, principalmente quando tinha paz para isso. Não estava em paz havia muito tempo, mas ainda conseguia encontrar muito prazer no trabalho. Enquanto recolhia uma papelada na gaveta, para ir ao banco rapidinho fazer alguns pagamentos, alguém veio lá de dentro e me 308
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avisou que Eduardo estava me chamando. Larguei o que pretendia fazer e fui atendê-lo. – Oi! Está tudo bem? – Que bem que nada. Como posso estar bem? – Ora, isso vai passar. – Bobagem. Diz isso por que não é com você – respondeu azedo. – Está bem, está bem – respondi. O fato de estar usando aquela “gargantilha” deixava-o de péssimo humor, além do já costumeiro. Estava recolhido em seu quarto e não queria saber de visitas. Eu, a mãe ou a irmã é que recebia as visitas. Conversávamos e falávamos do assunto, mas ele não queria ver nem ser visto por ninguém. Permanecia isolado no quarto e não permitia que fossem vê-lo. Estava complexado, o que era compreensível. Realmente não se podia dizer: “Oh! Como você está bonito”. Daquele furo na garganta, além de barulho, saía secreção constantemente. E quando ele precisava falar, tinha que tapá-lo com o dedo indicador e a voz saía forçada e esganiçada. Aquilo, com certeza, deixaria qualquer um sem ânimo, com a autoestima lá baixo. Que dizer dele, que já era enfezado por natureza. Por isso tentava entendê-lo e atendê-lo em tudo. Sabia que estava sofrendo muito e eu respeitava sua dor. Então, num tom brincalhão, ainda perguntei? – E aí? O que você quer? – O recibo do dinheiro. – Ah, o recibo? – É. Por acaso está surda? E agora meu Deus? Que vou dizer? Pelo tom de voz, ele estava bravo e com ideia fixa no tal recibo. Só pensava em dinheiro o miserável e eu ainda não podia fa309
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lar a verdade pra ele. Tinha sempre muita gente por perto e alguém podia ouvir os maus tratos que com certeza eu receberia. E agora? – É, como fui esquecer? Você já me pediu tanto. Já vou pegar na boutique. Ia saindo para dar mais um tempo e ver se providenciava logo o dinheiro e entregar-lhe o recibo. Mas a campainha da porta tocou. Jurema atendeu e avisou-me que era o rapaz de Goiânia. Aproveitei o momento de descuido do opressor e fui atender a porta, mas estava com a cabeça em chamas. Sabia que meu tempo havia se esgotado. O cerco estava fechado, não dava mais para fugir. A qualquer momento ele atacaria novamente. Atendi ao rapaz e pedi que deixasse as malas. Depois do almoço, iria separar o que fosse do meu interesse. Enquanto conversava na sala com o vendedor, o doente tornou a me chamar, enfurecido, ignorando completamente a presença do rapaz. Pois do quarto dava para ouvir perfeitamente minha conversa e saber que se tratava de coisa rápida. Ele bem que podia esperar um minuto enquanto eu despachava o rapaz, mas não esperava, e me chamava insistentemente. – Rogério, vai deixando tudo aí mesmo na sala descarrega aqui, está bem? – eu disse aflita. – É que tenho que atender ao Eduardo. Chegamos esta madrugada e ele ainda está muito enfadado. – Certo... certo! Depois farei uma visita para ele também. À tarde passarei aqui. – Só bem à tardinha, Rogério, por favor. O dia hoje está muito cheio e preciso de tempo para ver as roupas com calma. – Está bem, voltarei depois. Não se apresse por minha causa. Não era só meu tempo que estava pouco, era medo que o rapaz assistisse uma cena desagradável. Aquele homem estava me deixando demente, idiota e desequilibrada. Em tudo ele pressionava. 310
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Enquanto eu fechava a porta da sala, ele continuava com seus ganidos, me chamando aos gritos. – Já vou! Já vou! – eu respondi. O motivo de seus ganidos, ainda era o recibo. Quanto mais ele pressionava, mais eu ficava com medo e sem ação; ficava travada. Já estava preferindo enfrentar a situação e pôr um ponto final naquela angústia, acontecesse o que acontecesse. Mas, por incrível que pareça, não encontrava dentro de casa um espaço onde pudesse conversar com ele, sem me expor a um grande vexame. Porém sabia que tinha de acabar com aquilo de qualquer jeito. Na sala, na cozinha, no quarto, na boutique, sempre tinha alguém e todos poderiam ouvir os impropérios, se ele achasse de usar seu costumeiro vocabulário. Eu tinha que resolver o assunto, mas também tinha que evitar constrangimentos para mim. Tinha a mãe dele. A irmã. Além dos que trabalhavam em casa, com certeza todos ouviriam tudo a respeito da minha “desonestidade” com o dinheiro dele. Só de pensar, suava frio. – Vou pegar um suco e já volto para conversarmos sobre este assunto, Eduardo. Saí do quarto e fui direto para a cozinha, que fica separada do restante da casa, um anexo. Entrei na cozinha e peguei um copo com água para tomar. A cozinha estava num clima tão agradável. A moça preparava o almoço que cheirava longe. Aproximei-me do fogão enquanto tomava a água. De pé, com o copo na mão, olhava as panelas reluzentes. Uma chiava como uma máquina a vapor e exalava um delicioso cheiro de galinha a cozinhar. Uma caneca fervia água para mais uma garrafa de café. Destampei outra panela, que secava um arroz branquinho e com cheiro de manteiga de leite. Numa panela menor, um picado 311
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de mandioca fresquinha e um tutu a mineira, por sua vez, já estava pronto e depositado num alguidar de barro em cima da mesa. O ambiente estava perfeito. Uma organização, uma harmonia que prendia qualquer um que ali chegasse. Estava agradável e aconchegante. Tão entretida fiquei, saboreando aquela paz na minha cozinha, que acabei me esquecendo um pouco das mazelas que assolavam minha vida no momento. Minha cunhada entrou também na cozinha. Servi-lhe uma xícara de café. Ela recebeu-a, puxou uma cadeira, sentou-se, tomou o cafezinho e acendeu um cigarro. Puxei uma cadeira também e sentei-me ao lado dela, para descansar um pouco e também lhe fazer companhia. Era visita e precisava de atenção. E enquanto isso o recibo ia ficando para depois. Ia... Sentei-me, mas não estava tranquila. Não queria mais adiar o assunto do dinheiro. Tencionava subir logo, como havia prometido a ele. Estava muito inquieta. Queria ficar com ela ali, na cozinha, mas não esquecia o que tinha para fazer. Ela, alheia à minha aflição, puxou logo conversa. Falava das árvores do quintal. Das galinhas gordas e bonitas, presas no galinheiro de tela. Dos pássaros que iam e vinham e descansavam nos galhos do cajueiro, faziam uma festa como se deles fosse a casa, e era, pois não permitia que ninguém os assustasse nem os afugentassem do quintal. Até estava me sentindo mais aliviada e descontraída com a conversa da moça, num sotaque calmo e arrastado. Mesmo assim pensava o tempo todo: “Tenho que conversar com ele, resolver logo este assunto e ficar em paz, para depois poder separar as roupas e liberar o vendedor”. O pensamento de me envolver com as roupas me encheu de prazer e alegria. O fato de poder voltar ao ritmo normal do meu trabalho era bom e agradável. 312
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Amava minha profissão. Adorava ver e comprar roupas bonitas para alegrar minhas clientes, que compravam e valorizavam cada peça como se fossem jóias raras. Ia reanimar a boutique, estava parada demais. Com esses pensamentos me animei toda. Antevia o prazer daquele momento. Cada mala que abria, era uma caixa de surpresa para mim. Podia escolher e comprar à vontade. O vendedor trazia roupas belas, finas e maravilhosas, pois sabia da minha exigência pelo visual e também pela qualidade. Sabia também como eu trabalhava na hora de escolher. Como eu demorava muito, ele aproveitava para passear pela cidade e tomar uma cervejinha gelada. Preparava-me para o momento mágico e até convidei a cunhada para me ajudar na escolha das roupas. Ela adorou a ideia. Combinamos para depois do almoço, e já fazia menção para me levantar e falar com Eduardo, quando ouvi passos na escada, que dava acesso à cozinha. Ouvi também o já conhecido barulho que era produzido pela cânula. Ele descia as escadas e se dirigia à cozinha. Já fiquei de sobreaviso e cuidei para ser mais gentil, tinha que evitar o assunto ali. – Oi, Eduardo, quer um cafezinho, enquanto espera o almoço? Senta aqui. Ofereci-lhe uma cadeira, mas ele nem deu resposta, ignorando completamente minha gentileza. Com o dedo indicador, tapou o orifício da garganta para poder falar e disse: – Não quero café coisa nenhuma! Onde está o que veio buscar? O recibo? – Olha Eduardo, vamos lá em cima, preciso mesmo conversar com você, já estava subindo para isso. Agora já me é possível. Antes 313
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estava sem tempo. Vamos? Com tanta conversa fiada, ele me olhou com ódio. – Está me enrolando demais com essa história. Fala aqui e agora! Onde está o recibo? – Vamos lá para cima. – N Ã O! – berrou A irmã dele olhou para ele, sem entender aquela fúria e o descontrole repentino. Por mais que eu o chamasse, ele continuava plantado. Não queria subir e continuava firme na cobrança. Como uma criança assustada, que cometera algo terrível e estava diante de um pai severo para receber o castigo, eu confessei meu “erro”. Deixei as palavras saírem aos supetões. Eu as ouvia, mas parecia que não era eu que as pronunciava. E foi com grande alívio que joguei tudo para fora. Por maior que fosse o castigo, não seria pior para mim do que mentir. Do que passar por toda aquela pressão. Sentia-me muito mal por ter me comprometido com algo assim e ficar me escondendo. Sentia-me péssima e feia por mentir, mas sua tirania, sua repressão e sua ditadura estavam me obrigando a mentir e muito. Não só aquela mentira, mas outras também já tinham acontecido. Ele era um carrasco, um ditador e não respeitava minha opinião, minhas necessidades, me obrigando, portanto, a andar às voltas com a não-verdade, para fugir de sua opressão e críticas idiotas. Cobrava-me de tudo, pedia explicações de cada palavra, de cada gesto. Era insuportável. Pronto, joguei tudo para fora. Acabou. Foi melhor assim. Agora ele ia “abrir a boca”, era só esperar uma fração de segundos, um milésimo de segundo. E abriu. Ali mesmo, diante da irmã, da empregada e de minha filha. Esperei gelada pela sua reação, que veio rápido e mortal como um 314
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tiro certeiro. Até hoje, aquela cena, aquelas palavras me perseguem, não consigo esquecê-las. Ele falou: – Como ousa pôr a mão no meu dinheiro, sua abusada? – Não peguei seu dinheiro, Eduardo. Foi só um empréstimo, que devolverei logo. – SUA VAGABUNDA! Você é uma LADRA, não merece confiança... Hoje, quando ouço estas duas palavras, sinto até arrepios; sinto um frio no estômago. Meu Deus! Era um sonho ruim. Não era verdade. Nunca tinha ouvido nada daquilo. Era um sonho e eu ia acordar logo. Senti meu corpo paralisado de vergonha. Não conseguia me mover. As lágrimas queimavam meus olhos e desciam pelo meu rosto, como lavas de um vulcão. Quando consegui me mover, saí dali. Subi as escadas correndo, cega de dor e vergonha. A irmã dele ficou horrorizada com o que ouviu, e chegou a repreendê-lo. – O que é isso, Eduardo? Sua doença não lhe dá o direito de ser tão grosseiro, fracamente... Ela subiu atrás de mim, mas não me alcançou mais. Tranquei-me no quarto e aquela frase me chicoteava o rosto, o corpo, a alma, o espírito. Afetou-me em tudo, me arrasou e me abateu. Senti-me pequena e nojenta. Eu que era tão segura, tão forte, tão determinada, estava num canto, encolhida como uma demente. Ele conseguira me deixar pequena e mais insignificante que um bicho de goiaba. Que vergonha. Que indignidade. Se pelo menos eu estivesse só, poderia gritar. Eu chorava e me retorcia. Queria que uma mágica retirasse de 315
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minha mente aquelas palavras tão fortes, tão injustas comigo, mas não saía, ficava martelando, se repetindo como um disco furado. Algum tempo depois, ouvi um toque na porta. Não respondi. Outro toque e alguém falou: – Sou eu, dona Celeste, abra, por favor. Reconheci a voz daquela que cuidava de Sabrina e que também ainda era uma criança, mas já se fazia pessoa de minha confiança e estima. Destranquei a porta. Acho que, só mesmo para ela, eu abriria aquela porta. Abri a porta e ela estendeu-me uma xícara de chá, pediu licença e entrou. Tentou me confortar e confidenciou comigo. – Eu não gosto dele. Ele é ruim para a senhora. Por que a senhora não o deixou morrer? – Ora, Maria, para com isso! Não precisa você se armar com esse tipo de sentimento. Obrigada pelo seu apoio, mas não precisa sentir isso, está bem? E também já estou melhor. – Mas é isso mesmo que eu penso. Não ia me importar se ele tivesse morrido. Por que ele não vai embora e lhe deixa em paz? A senhora não precisa dele! Estava surpresa. Era incrível como uma menina, uma adolescente de pouca cultura, em tão pouco tempo de convivência já entendia e podia separar as coisas. Ela sabia que, enquanto eu vivesse atada, não reagiria para me livrar daquela escravidão física e moral. – É verdade, Maria. Eu não preciso dele, mas ele precisa de mim, ele está doente. – Pois para ele não faço um café! Um favor! Queria que ele morresse mesmo! Ele é ruim... Pode morrer que não vou chorar. É um monstro que só sabe magoar as pessoas. Nesse momento ela conseguiu me fazer ri, por sua tamanha franqueza. Eu me senti protegida por aquela valente amiga. Até estava gostando da sua cumplicidade e apoio, mas pre316
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feri puxar as rédeas. Afinal o dono da casa tem seu lugar e merece ser respeitado. Não devia ser molestado por uma menina, embora concordasse plenamente com ela. Mas a fiz parar. – Seu chá estava ótimo, Maria. E Sabrina, como está? Dormiu? – Dormiu. Dei-lhe banho e ela dorme. Parece um bibelô de porcelana. Venha ver. Ela me puxou obrigando-me a sair da cama, pois percebeu minha pouca vontade de levantar. Fomos até o quarto da minha filha. Fiquei mais sossegada, ao vê-la dormindo tão tranquilamente abraçada ao seu anjinho. Seu anjinho era uma bonequinha negra de cabelos encaracolados e que ela não largava por nada. A boneca era sua companheirinha para dormir, para brincar, arrastar pelo chão, conduzir no carrinho, dar papinha, suco e banho. Assim abraçada ao seu anjinho, ela dormia e, pelo sono, estava protegida. Minha dor e tristeza não a afetariam agora, tão diretamente. Beijei-lhe a mãozinha gorducha e saímos do quarto, em silêncio, Maria e eu. Sentia-me mais refeita. A imagem de minha filha, tão calma e serena, me transmitia uma sensação de poder e responsabilidade. Uma sensação de que eu era grande e não um bicho de goiaba. Por ela eu me guiaria. Por ela, seria valente como uma leoa. Venceria a tudo e a todos, e juntas chegaríamos a um final feliz. Ela era a minha força, minha tração. Ainda constrangida tentei retomar de onde havia parado, mas ficou difícil. Estava com tanta vergonha de minha cunhada, que procurei evitá-la. Mas como evitá-la? Teríamos que almoçar e não queria fazer o papelão de deixá-la sozinha à mesa. 317
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Sabendo do meu embaraço, ela tentou me distrair e dar pouca importância ao fato, mas eu abordei o assunto. – Me desculpe Cléa. Sei que foi horrível... – Ora! Deixe isso para lá. Não houve nada. Não tem do que se desculpar. Se há alguém aqui que precisa desculpar-se, este alguém não é você. Ele, sim, precisa de uma boa conversa. Que agressividade. – Eu não devia tê-lo provocado. – Imagina. Por que a mulher não pode usar o dinheiro do marido quando precisa? Ainda mais numa situação dessa que você contou. – Ele não permite que toque no dinheiro dele. Além do mais foi sem sua permissão. – Onde já se viu isso. Quem trabalha como você trabalha... Pelo visto é você quem dá vida a isso aqui. Ele tinha mais era que lhe respeitar. Deixe que vá ter uma prosa com ele. – Não precisa se indispor com ele. Está passando por uma hora difícil. – Deixe de ser boazinha e exija que lhe respeite. Ah, se ela soubesse do resto que eu passava! Sentamos à mesa para o almoço, mas aquela delícia de cardápio, que antes eu estivera a saborear com os olhos lá na cozinha, agora para mim parecia um grude. Enquanto eu servia um prato para minha sogra, ela conversava animadamente, pois não tinha presenciado a cena e estava inocente de tudo. Almoçamos e depois, sem muito entusiasmo, fui às malas. Estava meio sem graça. Mesmo assim precisava separar as roupas. A vida não para só porque se está triste. Envolvi-me na tarefa, eu e minha cunhada. E aos poucos fui esquecendo aquele infeliz episódio. À tarde começaram as visitas novamente para o doente. Isolei-me noutro cômodo da casa. Estava muito ocupada e 318
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triste para recebê-las. Então deixei minha sogra e cunhada no papel de anfitriãs e continuei com as roupas. Elas faziam bem o papel. Recebiam a todos com carinho e atenção. Conversavam e serviam-lhes algo para beber e comer. Estávamos todos tentando encaminhar as coisas num ritmo agradável, não fosse o doente emburrado no quarto sem querer aproximação de ninguém. Estava revoltado com a possibilidade de ficar com a cânula. Os médicos não tinham dado esperanças de que ele fosse se livrar dela tão cedo. Um deles chegou mesmo a garantir que não a tiraria mais. Essa possibilidade lhe deixava com pensamentos suicidas. Dizia preferir morrer a viver de forma indigna, “com um buraco no pescoço”. Eu que o conhecia bem e sabia de sua falta de esperança, temia pelas suas ameaças e que elas fossem extensivas a alguém da família. Podia imaginar que, para ele, era algo terrível sim, e não me surpreendia a sua entrega total ou até mesmo que viesse a cometer o suicídio.
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41 Paguei o dinheiro mau humor dele foi se tornando algo masO sacrante e traumático. A doença deixava-o fora de seu mundo.
O mundo que ele conhecia era o da bebida e das noitadas... Todo esse mundo lhe foi tirado de repente e, em consequência, também o trabalho, pois ficou de licença temporária. Foi uma mudança radical em sua vida. Dentro de casa não se sentia à vontade. Como sempre preferiu o outro lado, nunca se preocupando em conquistar seu lugar no ambiente familiar. Não tinha, portanto, estrutura para, de repente, se ver preso a costumes e horários de uma casa, de uma família. Aquilo era o fim para ele. Mas, com o passar dos dias, ele foi se aquietando, se definhando, entristecendo; ele foi se isolando, se escondendo e se calando mais e mais. Eu ficava preocupada e vigiava-o constantemente, para impedir alguma atitude maluca da parte dele e fazia de tudo para reanimá-lo. A mãe dele era prestativa e amável, mas nada o tirava daquela tristeza. Porém, certo dia, ele nos surpreendeu. Numa segunda-feira, bem cedo, tomou banho, se barbeou, trocou as gazes que protegia a traqueostomia, pegou o carro e saiu sem falar aonde ia. Ficamos um pouco temerosas, mas aguardamos para ver como ele ia voltar. Enquanto isso, eu conversava com a mãe dele para distraí-la, pois ficara cismada com a atitude repentina. 321
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dou?
– Minha sogra, será que ele vai reagir agora? Será que acor-
– Vamos torcer para que sim, minha filha, essa entrega dele está ficando séria. – É preocupante, mas sei que ele vai reagir. – Sei não... – disse ela. Eu tinha pena dele e intimamente sabia o que lhe faltava para uma melhor recuperação. Faltava a ele a ajuda mais importante para fazer-lhe reagir. Faltava o amor. Eu sabia que faltava para ele o amor, o carinho, o aconchego, o companheirismo e a cumplicidade de uma mulher. Faltava para ele o jeito especial com que uma mulher sabe fazer isso quando ela ama, quando ela se empenha por alguém. Quando uma mulher não quer perder a pessoa que ama, não há barreiras, não há tristeza, não há doença... No meu caso, eu não podia mais oferecer ajuda. Tudo isso já tinha morrido dentro de mim, e não era por que ele estava doente que eu ia esquecer todo mal que já tinha me causado. Só cuidava dele pura e simplesmente por educação e piedade. Fazia estritamente a parte humanitária, nada mais eu podia fazer. Além disso, até mesmo porque ele não valorizava o mínimo esse lado bom da vida. Para mim, “era jogar pérolas aos porcos”. Bem, mas ele saiu e não demorou muito a voltar do passeio. Quando entrou em casa estava com um semblante melhor e mais animado. Então arrisquei a perguntar: – E aí, Eduardo, foi dar um passeio? É bom sair um pouco para se distrair. Dizia aquilo, mas sem muita convicção, pois até eu mesma estranhava vendo-o com aquela coisa atada ao pescoço, que mais parecia uma coleira. Era um adereço humilhante, e daí a sair pelas ruas usando aquela esquisitice era pior ainda. O povo é muito curioso e cria situações às vezes não muito agradáveis. 322
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Mas vá lá, mesmo assim era bom vê-lo reagindo. Quem sabe não ficaria logo livre e ia trabalhar? Só assim minha vida ia voltar aos trilhos. E fiquei surpresa quando ele me respondeu sem a costumeira agressividade. – É, andei um pouco por aí. – E onde foi? – Só andei. Depois fui ao banco. – Ao banco? – Sim. – Hã... Deu uma olhada na sua conta, e, sem dúvida, viu que seu dinheiro já foi depositado? – Conferi. Tudo certo. – Não faltava nada? – Não. Entendi então o porquê do repentino bom humor dele, ao voltar do passeio. E pensei com meus botões: “Ainda bem que já depositei o bendito dinheiro”. Depositei, mas não tinha falado nada para ele. Queria que me perguntasse novamente pelo dinheiro, para lhe aplicar uma boa lição. Mas, ao invés de me perguntar, ele foi conferir direto no banco. Fiquei muito decepcionada com o objetivo de seu passeio e a conversa morreu ali mesmo. Não tinha estômago para conversar com uma criatura daquelas. Disse ter algo para fazer na boutique e me retirei da presença dele, sentindo asco e nojo. Depois lhe entreguei o recibo do depósito, o qual ele recebeu sem o menor constrangimento. Desse dia em diante, ele costumava dar umas saídas. Às vezes se demorava, às vezes voltava logo. Mas eu não quis mais perguntar aonde ele ia. Por certo estava “vigiando” para o dinheiro não sumir de sua conta. Acho que ele tinha medo que eu fizesse uma mágica e o retirasse de lá outra vez. 323
42 O transtorno do tempo que Eduardo ficou em casa se recuperando
Por recomendação médica, Eduardo ficou de
licença algum tempo a mais que o previsto. Foi o período mais longo de convivência doméstica que tivemos até então. E, pelo fato de estar doente, ele permanecia muito tempo em casa; coisa muito estranha para mim. Estranha e desagradável. O homem era de uma irritação sem medidas. Além do desequilíbrio, que era uma característica sua, tinha o agravante de estar sem a bebida, o cigarro, as farras; isso o deixava literalmente louco. Pela falta do cigarro, ele adquiriu outro vício: começou a mascar chicletes. Esse era um dos motivos de suas saídas diárias. Ia comprá-los. Retornava da rua com um punhado deles, de toda espécie e sabor. Guardava-os nas gavetas e devorava-os ao decorrer do dia. Até aí tudo bem. Dizem que quem para de fumar arruma outro hábito para tapear a dependência. Mas o que me deixava louca era a maneira grosseira com que mascava os chicletes. Aquilo me levava ao extremo da irritação. Pedia-lhe que fosse mais discreto com os tais chicletes. Ele me respondia com uma meia dúzia de palavrões e lá se ia uma boa briga. Eu não estava acostumada com a presença dele dentro de casa, por tanto tempo. Aí então vi a dura realidade de conviver com uma pessoa tão diferente. Já tinha uma boa ideia, pelos poucos momentos que ele passava dentro de casa. Mesmo assim, no todo, era horrível e me fazia muito mal. 325
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Seus hábitos de higiene pessoal eram bem poucos e de péssima qualidade. Para mim, que sempre fui amante da organização, da limpeza, da boa educação, dos bons hábitos, da ética, enfim, de tudo que foi inventado para tornar o ser humano uma figura elegante, para mim era um tormento suportar aquilo. Era de doer. Sou amante da simplicidade. Mas da simplicidade com disciplina. E como diz uma frase: “A maior elegância é a simplicidade”. Frase com a qual concordo plenamente. Só que há pessoas que confundem hábitos grosseiros e desleixo com simplicidade, e ainda dizem: – “Sou uma pessoa simples, não tenho luxo”. Confundem certas atitudes com coisa simples. Eduardo, por exemplo, tinha a “simplicidade” de cuspir ao chão, arrotar à mesa, palitar os dentes escancaradamente na presença de todos. Tossia e escarrava onde estivesse. Assuava o nariz sem lenço usando as pontas dos dedos. Limpava o ouvido com palito de fósforo e, como um macaco, coçava as partes íntimas sem a menor cerimônia. Onde ele fazia as refeições, mais parecia que uma galinha havia subido à mesa; ficava comida espalhada em volta do prato e até mesmo pelo chão. Ele usava colher, ao invés de garfo. Limpava as mãos, a boca na toalha da mesa ou na própria roupa. Passava fio dental, sentado no sofá da sala. Toda essa “simplicidade” e mais aquelas citadas num dos capítulos anteriores (dos dejetos no banheiro, etc.), juntas e somadas, eram de arrasar qualquer cabeça. Eu via aquilo horrorizada. Meu Deus! Isso é um selvagem, e como vou me livrar dessa criatura horrenda? Minha filha terá por pai uma coisa dessas? Onde é que eu estava com a cabeça, santo Deus? Por tudo isso, hoje eu digo que ao jovem não deveria ser permitido decidir coisas tão sérias de sua vida, como o casamento, por exemplo, até passar aquela fase que parece de insanidade mental. 326
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Que me desculpem os jovens, pois eu também já fui uma. Mas só podia estar insana, quando cometi a barbaridade de me deixar levar pelo entusiasmo da juventude. Pelo entusiasmo da paixão. Embora eu não soubesse por quem estava me apaixonando, muitas pessoas me alertaram, mas não dei ouvido a elas. Não vou generalizar, mas é quando se é muito jovem que cometemos as piores asneiras e das quais nos arrependeremos para sempre. Mas, voltando a “simplicidade”, só sei que o cara não fazia nada para ser aceito, em nada contribuía para diminuir meu desprezo por ele. Foi um transtorno aquele período de convalescença. Foi uma longa temporada de visitas ao médico. Mas, por volta de uns três meses, resolveram tirar a cânula e fechar a traqueostomia. Eduardo finalmente foi liberado. Os médicos recomendaram alguns cuidados importantes e alertaram para não voltar a fumar. Ele voltou ao trabalho e, por um bom tempo, não teve mais problemas com a saúde. Mas continuaram os roncos durante o sono. Como estava se sentindo bem, aos poucos foi voltando à vida pregressa, esquecendo-se completamente das recomendações médicas. Não demorou muito e se jogou na “Vidona” novamente. Mas vamos a outra etapa, a outro assunto.
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A doença e morte de meu pai: Na morte uma lição de vida
al tinha me recuperado do problema da doM ença do Eduardo, recebo a notícia de que meu pai estava doente.
Minha irmã me disse que ele não estava se alimentando bem e o pouco que comia não fazia boa digestão. Fiz-lhe uma visita e voltei muito triste. Não gostei nada do aspecto dele. Era bem desanimador o quadro. Papai estava magrinho e não tinha mais sua habitual alegria e animação. Dias depois ficamos sabendo que era grave, mas guardamos a esperança de que os médicos estivessem errados. Infelizmente não estavam e, segundo nos foi informado, a cirurgia não era mais permitida, mediante o estado avançado do mal que sofria. Tentamos lhe dar vida e alegria. Um dia ele nos confessou que queria muito ir à sua terra natal. Relutamos, pois sabíamos da gravidade do seu estado de saúde. Sua segunda esposa insistia muito no assunto da viagem, e dizia ser bom para distraí-lo. Conversamos então com o médico dele e o mesmo disse não ter nada contra, desde que ele fosse bem acompanhado. Não devia se cansar nem demorar muito por lá. Preparamos a viagem para os dois. Munidos de agenda com endereços e telefones de todos os filhos, preparamos documentos e mais documentos, remédios e algumas das coisinhas que ainda podia comer. E a promessa de nos ligar todos os dias ou ao sinal de qualquer alteração. Tudo combinado. Partiram para o tão sonhado passeio. 329
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Ao nos despedirmos por aqueles poucos dias que ele se ausentaria, notei nele, não sei se uma alegria sufocada, por poder rever pela última vez sua terra querida, ou se aquele momento era uma eterna despedida. Parecia-me que ele queria ir; que ele precisava ir. Parecia-me que ele queria ficar; que ele precisava ficar. Mas foi. Ou melhor, levaram-no. Nunca pude entender se ele estava triste ou feliz. Se ele de fato queria ir ou se estava apenas agradando a alguém. Por um mês, mantiveram contato constantemente. Mas depois foram ficando distantes as ligações, e não havia como entrar em contacto com eles. Na última ligação, nos foi dito que ele estava se sentindo melhor e que iam passar uns dias numa fazenda de amigos e que lá não tinha telefone. Uma semana se passou sem notícias dele e da esposa. Já preparávamos alguém para ir procurá-los, mas esta pessoa não chegou a ir. Naquele mesmo dia, dona Rosa, a mulher de meu pai, ligou para minha irmã, que recebeu a ligação com apreensão e agonia. Disse então para minha irmã Anita que ele estava bem e que enviasse dinheiro para eles. Minha irmã havia ficado incumbida de transferir dinheiro para eles onde estivessem. Mas minha irmã disse para ela: – Primeiro quero falar com meu pai. Preciso saber se ele realmente está bem. Não confiávamos nem um pouco naquela senhora, que era uma pessoa estranha, interesseira e cheia de fanatismos religiosos. Segundo a filosofia dela, meu pai não precisava de médicos, pois Deus ia curá-lo. Garantiu ao telefone que ele estava bem, só um pouco indisposto para ir até a cidade telefonar. Minha irmã não “engoliu” a conversa dela e insistiu em querer ouvi-lo ao telefone, do contrário não mandaria o dinheiro. 330
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Pediu-lhe também que, se algo tivesse acontecido com ele, ela nos dissesse que iríamos buscá-lo imediatamente. Ele não ligava e minha irmã não mandava o dinheiro. Ficamos aguardando e só ao final de três dias a dona Rosa ligou novamente. Anita pressionou-a para falar a verdade, pois era estranho que meu pai não ligasse para nós. – D. Rosa, se algo acontecer ao meu pai e a senhora estiver nos enganando ou escondendo, levarei a polícia para lhe fazer uma visita, pois, pelo que combinamos este passeio não era para se estender tanto. A senhora sabe que ele está doente. Por que não volta ou pelo menos deixa que ele fale com os filhos? É bom que fique sabendo que nós não confiamos na senhora. – É que não queria dar preocupações a vocês. – Mais do que tem nos dado com esta falta de notícias? – retrucou Anita. – Você não é a boa samaritana como quer se fazer passar. Quero falar com meu pai ou não mandarei dinheiro. Nesse dia dona Rosa abriu o jogo e disse: – Ele não ligou para você porque está internado. – Como internado? Que conversa é essa? E onde ele está não tem telefone? – É que ele passou muito mal e foi levado às pressas para o hospital. Estava sentindo muitas dores e lá ele foi operado. Não está sequer saindo da cama. – Operado? Com que autorização fizeram isso? A senhora sabe que ele não devia mais se submeter a nenhuma cirurgia. Aliás, este foi o acordo entre médicos e a família. E a senhora sabia disso. Mediante essa notícia, foi uma correria. Localizamos o medico de meu pai em Brasília e pedimos para o mesmo falar com o de lá, o que tinha atendido meu pai. As informações não foram boas. Embora sem saber com o que iam se deparar, duas de minhas irmãs tomaram um avião no mesmo dia com destino àquela cidade, 331
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com a intenção de providenciar a remoção de nosso pai para cá. Chegando a capital, tomaram outras conduções até chegarem à cidade onde ele estava hospitalizado... Era uma pequena cidade no sertão, bem no interior, sem recursos; nem mesmo estrada tinha para chegar até lá. Mesmo assim, em tempo recorde, elas conseguiram chegar até ele. Providenciaram para trazê-lo de volta a Brasília. Por pouco ele não faleceu lá mesmo, longe dos filhos, pois sequer sabíamos o que estava acontecendo. Sua remoção para cá foi de grande sofrimento. Temíamos que morresse durante a viagem. Elas tiveram de fazer uma operação relâmpago e sob grande tensão. Mas conseguiram, num ato de heroísmo, trazê-lo ainda com vida para junto de nós. De lá avisaram que deveríamos nos reunir em Brasília. Papai queria ver todos os filhos. Chegaram com ele a Brasília num vôo da madrugada. Os filhos aguardavam no aeroporto e levaram-no para casa e não para o hospital. Saí daqui às pressas e cheguei lá ao amanhecer do dia. Sabendo os outros irmãos do especial apego que eu tinha por meu pai, eles temiam pelo meu encontro com ele e, assim, me prepararam de todo jeito, para tornar menos sofrido aquele momento. Meus irmãos tinham medo que eu me chocasse muito quando visse o estado físico em que se encontrava meu papai. Por isso, diziam-me para ser forte. Mas, chegando lá, pedi que me deixassem entrar sozinha no quarto. Queria ficar só com ele naquele momento. Entrei e quando transpus a porta do quarto e fitei os olhos nele, desejei ter morrido primeiro para não ver o que estava vendo. Para não ver meu pai sofrendo daquele jeito. Ele era uma pessoa tão querida e tão nobre, que não merecia 332
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sofrer como estava sofrendo. Enxerguei na cama um corpinho miúdo e imóvel. Estava acabado e não tinha mais onde emagrecer. Era só pele e osso. Tinha diminuído muito de tamanho e de peso e estava pequeno e encolhidinho, tão triste, cansado e sem vida. Cheguei mais perto e falei: – Papai, a sua bênção. Olhou-me como se aqueles olhos estivessem pousando num ponto bem distante do infinito. Era um olhar sem brilho e sem direção. Lentamente estendeu-me a mão magrinha, enrugada e fria, e disse: – Deus te abençoa, minha filha. Segurei sua mão e levei-a de encontro ao meu rosto. E chorei. Só chorava e não conseguia falar nada. Sabia que ele também chorava, mas foi o primeiro a reagir. Com a grandeza de caráter do pai amável que ele era ainda me deu forças e alento, fazendo-me ver mais uma vez quão admirável criatura ele era. – Por que chora minha filha? Não precisa chorar, apenas chegou a minha hora e estou pronto para partir. Não chore, seja forte. – Papai, por que ficou lá tanto tempo e não nos avisou? – As coisas fugiram do meu controle. – Como? – Deixemos isso de lado, minha filha... Não importa. O que importa agora é que estou aqui com vocês. O pior já passou. Não queria partir sem ver meus filhos. Mas agora estou feliz... Falava com grande esforço e quase eu não conseguia ouvir o que ele dizia. Permaneci com ele mais tempo do que estava suportando, porque sabia que seriam seus últimos minutos de vida e não os perderia por nada. Então ele inclinou a cabeça para um lado, descansou por alguns minutos, segurando minha mão, depois abriu os olhos e me fez uma pergunta e um pedido. 333
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Pedido este que ele não sabia quão caro me custaria atendê-lo. Primeiro veio a pergunta. – E minha neta Sabrina, como está? Por que não veio ver o vô? – Ela está bem, mandou-lhe um montão de beijos. Não foi possível trazê-la agora, depois ela virá lhe ver. – Para mim, não haverá depois, minha filha. Mas diga-lhe que lhe mandei também outro tanto de beijos e que eu a amo muito e quero que ela seja uma boa filha. – Sim, papai, darei a ela o seu recado... O pedido. – E você, por que ainda não deu um irmãozinho a ela? – Não havia pensado nisso, papai... – menti. – Pois quero lhe pedir agora que me dê mais um neto. Os filhos são joias dadas por Deus e de valor incalculável. Sei que estou partindo agora, para junto do Criador, mas parto tranquilo, porque sou um homem realizado e rico. Rico, não de bens nem de dinheiro, mas porque gerei e criei nove filhos maravilhosos. Vocês são a minha riqueza. – Papai, não fale muito, não se canse e não se emocione. – Deixe-me terminar, minha filha. Terei a eternidade para ficar calado. Para descansar. – Não, papai, não diga isso. – Você me promete que terá pelo menos mais um filho? Sabrina é muito só. Nem num momento como aquele, eu estava a salvo dos males causados por aquele que um dia escolhera para ser meu marido. Nem num momento como aquele eu podia sofrer minha dor sem ter que me lembrar de como ele me fazia mal. Como atender ao pedido de meu pai? Como me deixar ser tocada por aquele que eu mais desprezava? O pior é que não tinha tempo para refletir e nem podia contar a verdade ao meu pai. Sabia que a vida dele estava por poucas horas e não iria estragar aquele momento por nada neste mundo. 334
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– Papai, não sei se essa será uma boa ideia. Trabalho muito e não tenho tempo. Mas vou pensar no assunto, está bem? – Não há o que pensar. Trabalhe menos. Largue tudo se for preciso. Deixe as coisas mais por conta do seu marido. É dever do homem suprir a casa, é dele essa responsabilidade. Deixe um espaço na sua vida para seu verdadeiro papel, que é o de ser mãe... E sei que será um belo menino e lhe fará muito feliz... E não diga mais que ter um filho não é uma boa ideia, imagina... Vocês, jovens, falam cada coisa. Estava ofegante e parou de falar, depois eu continuei. – Não sou mais tão jovem assim, papai – tentei brincar. – Para mim, você ainda é minha filhinha que carreguei no colo. Nesse momento eu chorava muito e sentia meu peito esmagado. Como alguém conseguia ser tão grande como ele? Como conseguia ser tão lógico, mesmo na hora final de sua vida? A calma e a dignidade com que ele enfrentava a morte eram dignas de um mestre da filosofia. Por fim, e não querendo cansá-lo mais, concordei, para que ele ficasse em paz. Queria que ele partisse tranquilo como estava. Por que molestar sua paz com meus conflitos? Com minhas mazelas? – Está bem, papai. Farei o que me for possível para lhe dar mais um neto. – Fico feliz. Que Deus abençoe você e ao meu neto que virá; que desde já ele receba a minha bênção; e que ele seja um homem abençoado, bom e justo: esta é a herança que deixo para ele. Que Deus o abençoe... Novamente encostou a cabeça para um lado. Já estava quase sem vida. Fechou os olhos e ficou quieto. Fiquei ali, olhando-o e uma paz invadiu meu peito sofrido: sabia eu que, apesar de tudo, ele não sofria. Não estava dividido 335
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entre o medo e o fim inevitável. Não se questionava por aquilo que era impossível evitar. Estava em paz consigo mesmo. Ele sabia que tinha câncer no esôfago e em estado cruelmente avançado. Ficar perto dele me fez bem, me fez refletir mais ainda sobre o viver. Aproveitei para dizer-lhe do quanto eu o amava e o admirava. Aos poucos, os outros filhos foram entrando no quarto. Veio também um grande amigo dele, pessoa de sua estima. Ao ouvir a voz do amigo, ele se virou e, reconhecendo-o, disse: – Meu amigo, que bom lhe ver... Os dois eram inseparáveis. Foram amigos desde jovens e passaram juntos muitas alegrias e tristezas e ali estavam eles outra vez dando força um ao outro. O amigo pegou uma cadeira, colocou-a ao lado da cama, sentou-se e, mesmo tentando se conter, chorou muito, mas permanecia de cabeça baixa. Papai falou num tom suave e seguro. – Ora, que cara é essa? Está muito feio assim chorando... Estou bem, não carece chorar... E ele falou no mesmo tom brincalhão. – Tenho essa cara feia, desde que nasci. O que se pode fazer? Papai esboçou um acanhado sorriso e ele também. Novamente calou-se. Tentava descansar, mas logo começou a gemer e disse que estava sentindo muita dor. Pediu para levá-lo ao banheiro. Quando voltava do banheiro, apoiado pelo amigo e por um dos filhos, eu vi que realmente estava tudo terminado. Deitaram-no na cama e ele começou a se agitar. Perguntamos se podíamos chamar uma ambulância; ao que ele respondeu: – Agora não, depois sim. Aqui estou tão bem entre vocês. Estava com muita saudade de todos. 336
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Minha irmã deu-lhe um remédio que já fora prescrito pelo médico. Depois de alguns minutos, ele se acalmou um pouco e novamente nos surpreendeu. Não sei de onde ainda tirava forças para falar, mas falou e desta vez era para nos pedir perdão. – Quero neste momento pedir perdão a todos vocês, meus filhos aqui presentes e aos que não estão presentes... Também aos meus genros, às minhas noras e aos meus netos. Peço a todos que me perdoem se tiverem alguma mágoa de mim. Minhas filhas perdoem-me qualquer falha que eu tenha cometido. E você, Laura, minha caçula e às vezes um pouco rebelde, me perdoe se não fui um bom pai, um grande pai... Mas fiz o possível... Eu tentei... Uma grande pausa, um grande silêncio. Ao redor de sua cama, todos choravam em silêncio. – E você, meu grande amigo, me perdoe qualquer ressentimento... Novamente se calou. Por um instante, ele se calou e se isolou. Parecia que não estava mais ali. Parecia que não havia mais ninguém perto dele. Era só ele e Deus. Alguns minutos depois, ele começou a falar novamente e desta vez fazia uma prece. – Senhor, meu Deus, agora quero a ti, Senhor, pedir perdão. Perdão por todos os meus pecados, pois sou um fraco pecador. Não peço a te Senhor, que me tires o que estou passando, mas que me dês força e resignação para suportar. Peço-te que me perdoe e, por amor, receba-me em teus braços... Todos nós ouvíamos aquela prece, paralisados pelo efeito daquelas palavras e não queríamos perder uma sequer. Cada um chorava silenciosamente para não interrompê-lo. Terminou sua oração, seu pedido de perdão e ficou quietinho, sem movimento algum. Tempo depois pediu ao amigo Zeca para ler o salmo 23, no que foi atendido prontamente. Ele mesmo tomava frente ao seu úl337
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timo ato religioso, como cristão que era, fazia isso muito bem. A fé que praticava era verdadeira e comovente. Lemos e cantamos o que ele pediu. Terminado aquele ato de fé, ele ficou quietinho novamente. Peguei sua mão, que estava muito fria. Não conseguia mais sentir seu pulso quando o procurei. Não sabíamos o que fazer. Não queríamos nos afastar dele, levando-o ao hospital. Portanto, esperávamos que ele se manifestasse. Então, ele disse: – Agora chamem uma ambulância, preciso ir. Nós nos olhamos aflitos. Chamamos a ambulância ou deixemos que ele descanse aqui mesmo? Ninguém se movia do lugar. Mas, por fim, ouvimos que alguém estava ao telefone. A ambulância chegou. Relutamos ainda, não queríamos ficar longe dele novamente. Queríamos segurá-lo perto de nós para reanimá-lo. Queríamos ter o poder de não deixá-lo partir. Nós os filhos tentávamos prolongar o mais que pudéssemos aquele momento e os bombeiros esperavam pacientemente, comovidos com a nossa dor. Ainda bem que nestas horas tem sempre alguém que fica menos travado e toma as decisões. Foi o que fizeram meu irmão Mateus e o amigo do meu pai. Pediram para que todos se retirassem do quarto, para poderem iniciar a remoção. A equipe colocou meu pai na maca e desceram as escadas, seguidos por nós. Laura insistia para ir junto, queria acompanhá-lo até o fim, mas ele não deixou. Foi sua última decisão como pessoa e como pai. Impediu-a de entrar na ambulância. Laura então lhe deu um beijo na face e se afastou em prantos. 338
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Introduziram a maca na ambulância e um deles entrou junto. Fecharam a porta traseira e seguiram para o hospital. Esta é a ultima visão que tenho dele. Foi a última vez que vi meu querido pai. Pouco tempo depois, meu irmão telefonou e nos disse que, em menos de 15 minutos, após saírem, ele fechou os olhos para sempre. Foi embora. Deixou-nos para nunca mais voltar. Arrependemo-nos e nos perguntávamos: por que não o deixamos morrer ali mesmo, pertinho de nós? No aconchego do seu lar? Mas sempre estamos tomando decisões às vezes erradas, principalmente num momento de aflição. Nunca mais o veríamos nem ouviríamos seus sábios conselhos. Foi um transtorno recebermos o corpo para o velório e sepultamento. Novamente estávamos naquele cemitério, naquela capela. Novamente se repetia a mesma cena de cinco anos atrás. Só que desta vez ele não estava lá para nos apoiar e nos dar forças. Ele não estava, mas nos deixou grandes lições de vida. E a última delas foi naquele momento final, de como ele partiu com dignidade e respeito ao Criador.
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44 E o filho, virá? oltei para casa com uma enorme saudade de V meu pai. Doía-me muito saber que jamais ele voltaria.
Quando perdemos alguém assim, parece que a vida começa a se desintegrar. É uma dor sem tamanho, uma saudade que nada cura. Quando abria os olhos pela manhã, a primeira coisa que me vinha à mente era a lembrança dele e aquela promessa que lhe fizera. A lembrança de meu pai me confortava, mas aquela promessa me atormentava dia e noite e já me recriminava por ter prometido algo quase impossível de se cumprir. Quanto mais tentava esquecer o assunto, mais ouvia suas palavras: “Será um menino e lhe fará muito feliz”. Ou estas: “E não me diga mais que não é uma boa ideia ter um filho”. Aquelas frases ficaram gravadas no meu pensamento e me tirava o sono e a paz. Como poderia cumprir aquilo? E pensava comigo mesma: “Oh, meu pai, como fui lhe prometer uma coisa dessas? Mas o senhor também jamais iria imaginar qual o meu verdadeiro motivo de eu não ter tido mais filhos”. Perdia noites pensando em como seria maravilhoso poder ter meus filhos, quantos eu quisesse. Pensava no prazer de gerar uma vida. Pensava na grandeza da maternidade e da amamentação. 341
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Fascinava-me a alegria de receber nos braços um bebê frágil e pequenino, para acalentá-lo no meu peito como a transmitir-lhe vida. Mas eu não podia ter essa felicidade, pelo menos de maneira espontânea e natural. Aquele homem matara dentro de mim todo e qualquer direito a uma vida digna e sadia. E o que mais me doía era o fato de ainda ser muito jovem, e como jovem tinha meus sonhos e desejos, os quais eu era obrigada a sufocar, reprimir, matar. Mesmo reprimindo, sufocando a dor, comecei a sonhar e a desejar carinhosamente que esse filho pudesse se tornar realidade. O tempo passava e eu não conseguia esquecer a promessa feita a meu pai. Olhava para minha filha e pensava: “Ela precisa mesmo de um irmão! Que seria de mim se não tivesse os meus?” Tentava justificativas mil para me encorajar. Eduardo não sabia nada da minha conversa com meu pai. Não havia lhe contado da promessa de ter mais um filho. Todos os meses, eu dizia comigo mesma: “É agora, estou no período fértil, vou preparar um clima, dar uma de fraca: fico com ele e consigo engravidar”. Mas o tempo passava e eu não tinha coragem. Era um verdadeiro massacre. Cheguei até a pensar em desistir de cumprir a promessa. – Não vou mais me preocupar, meu pai que me perdoe. Afinal é para isto que Deus deixou o perdão, para as coisas erradas que fazemos. Mas qual o quê, esquecer que nada. Era ideia fixa mesmo. Quanto mais tentava esquecer, mais forte se tornava a lembrança do que meu pai havia me pedido. Comecei a fazer anotações após cada período, queria estar com a tabelinha pronta, caso eu decidisse de uma hora para outra. Nunca usei a pílula. Quando tinha vida conjugal, só usava tabela. Portanto, tinha experiência na prática da mesma e confia342
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va, pois a primeira gravidez foi programada e deu certo. A segunda também poderia ser fácil. Portanto, de tabela controlada, um dia lhe causei grande espanto quando lhe dirigi e palavra. (Pouco nos falávamos; só falava com ele quando era estritamente necessário.) Naquele dia, quando ele chegou do trabalho, tomou um banho e já se preparava para sair. Aproximei-me dele e falei: – Preciso falar com você. Olhou-me meio espantado e desconfiado. – Do que se trata? Não esperei que me perguntasse a segunda vez. – Meu pai, antes de morrer, me pediu para ter mais um filho. Disse também não ser bom para Sabrina, ficar sozinha. – Um filho? – É. Um filho. – E aí? – Na hora, lhe prometi que tentaria, mas para mim está sendo horrível tomar esta decisão. Comecei a ficar gelada e, para meu espanto, ele se dirigiu a um sofá. Sentou-se e me convidou a sentar também. Em seguida, demonstrou grande interesse pelo o assunto, coisa difícil, pois ninguém conseguia mantê-lo preso a uma conversa por mais de um minuto. Era uma pessoa extremamente calada e de difícil acesso. – Como prometeu? Dá para explicar melhor? Naquele momento, comecei a me arrepender de ter falado com ele e tive vontade de esganá-lo e cuspir-lhe na cara. Sabia de antemão o que ele já antevia. Vi nos seus olhos que já se preparava para uma vitória: mostraria a todos como eu era idiota, pois tinha conhecimento de seus casos e ainda o aceitava como marido. Minha gravidez seria para ele como um troféu de machão e conquistador. E, para mim, uma medalha de OURO, pelo 1.º lugar em burrice. 343
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Sabia eu também que ele não estava interessado no que prometi ao meu pai. Nem mesmo no filho que pudesse vir. Conhecendo-o como eu conhecia, sabia de tudo isso e sentia repulsa só de estar tendo aquela conversa com ele. Era tamanho o meu asco, que não conseguia sequer olhar para ele. Algumas pessoas, incluindo minhas irmãs, já sabiam da nossa situação de camas separadas e o motivo também. Então, para ele, nada mais conveniente do que eu aparecer de repente com uma gravidez, após quase cinco anos de vidas separadas. Indiretamente ele diria a todos: – Viram? Não adianta se meterem comigo, sou o bonzão mesmo e consigo o que eu quero! Esses pensamentos me deixaram com mais ódio, pois ele sempre se dava bem em tudo. Era assim, por mais que ele aprontasse ainda saía vitorioso. Não tinha mesmo critério algum; para ele era tudo na base do tanto faz como tanto fez; portanto nunca se feria com nada, mas voltei à conversa: – Prometi que tentaria ter esse filho e para cumprir esta promessa, vou deitar-me contigo uma vez. Uma única vez e apenas para essa finalidade. Depois pretendo continuar como estamos. Ele deu uma risada debochada e disse: – Espera engravidar, assim, “de uma só vez”? – Espero, sim. E por que não? Pelo que sei não é necessário mais que isso para acontecer uma gravidez. Se eu não engravidar é por que não era para acontecer e darei o assunto por encerrado. Tirarei esse peso de minha consciência. Sei que a natureza é sábia e a gravidez é concebida em um único ato. Basta que aconteça na hora certa. – Você está muita esperta... – Dispenso suas críticas. Já fiz minhas anotações. Espero que funcione, se você concordar, é claro, tentaremos. É claro que ele concordaria, imaginem se perderia uma chance dessas. 344
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– Por mim, tudo bem... – ele disse. – Vou deitar-me contigo hoje, mas antes quero sair para a rua também com você! – eu emendei. Ele entendeu menos ainda. Eu falava sem levantar a cabeça de tanta vergonha e nojo. Minha intenção era beber, embriagar-me para não ver nada do que eu pretendia fazer. Em casa não dava para fazer aquilo, tomar uma bebedeira. Além do mais queria me distrair, viver um pouco. Já que ia cometer um delito, que fosse completo: apareceria com ele em público, pois se acontecesse a gravidez, isso eu não poderia esconder mesmo. Vivia numa total solidão, sentia muita falta de nossos bons tempos; tempos de sonhos e namoros. Minha única distração era o trabalho. Não fosse por ele, estaria vivendo enclausurada. Não saia mais de casa para nada e não tinha mais amigos e nem marido. Todos estes pensamentos me deram coragem e fui. Fui com a maior cara de tola. Entramos no carro e saímos, encontramos um barzinho e nos sentamos ali. Sentia-me estranhamente sem graça. Parecia que todos estavam olhando para mim e rindo. Sentia-me como uma daquelas mulheres que ele costumava sair. Era como se eu estivesse com o marido de outra e não com o meu. Era uma sensação estranha e muito desconfortável. O barzinho era afastado e de pouco movimento. Mesmo assim ele me exibia como se exibe uma peça rara ou um troféu. Estava que era “atenção e cuidados.” Mas eu só bebia e bebia, tinha grande pressa em me embriagar. Ele oferecia mais bebida e eu aceitava. Fui bebendo de tudo. Misturei várias bebidas, até sentir o mundo girar ao meu redor. Comecei a enxergar tudo embaçado e uma zoeira no ouvido. As mesas giravam, as pessoas se moviam como se fossem fotos gravadas para slides. 345
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Quando tudo rodava e rodava, eu disse para ele: – Agora chega. Quero ir para casa. Aí, lembrei-me vagamente que tinha algo terrível para fazer. Sentei-me novamente e bebi mais. Bebi até não sentir mais o movimento das pernas. Sentia meu rosto dormente como se estivesse anestesiado. Não tinha mais reflexos nem coordenação motora e, à minha volta, tudo só girava. Ele bebeu menos. Estava no comando. – Agora chega, chega... Quero ir para casa. Mui “gentilmente” ele me atendeu. Chegando a nossa casa, mesmo depois de ter ingerido tanto álcool, eu não conseguia encarar o assunto com naturalidade. Para isso os reflexos ainda funcionavam. Mas, no mais íntimo do meu ser, algo dizia que eu precisava encarar, afinal, para que tinha bebido tanto? Não tinha costume de beber e a experiência de estar bêbada era terrível. Encarei. Tudo aconteceu de forma terrivelmente mecânica, traumática e desconfortável para mim. Quanto mais ele tentava ser gentil e romântico, em nome dos bons tempos, mais eu sentia nojo e pavor do que estava fazendo. Sentia-me como uma pessoa sem valor algum. Mas me conformei pensando que não mais passaria por tudo aquilo outra vez. Entreguei-me e pronto. Estava feito. Depois de tudo, pedi que se retirasse do meu quarto. – Mas... – Por favor, respeite o que te falei antes. Eu mal conseguia falar, de tão bêbada que estava, mas vi que ele saiu. Estava se mostrando agradável na tentativa de me iludir outra vez. Ele se foi para o quarto dele, mas eu não conseguia dormir. O quarto girava como uma roda gigante e uma enorme sensação de 346
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mal-estar, uma sensação de desolamento tomava conta de mim. O descontrole dos movimentos era total. Tentava raciocinar e procurava por em ordem os pensamentos, mas não conseguia nada. O momento era dos piores. Se me levantava, parecia que ia cair; se me deitava, sentia que a cama ia me tragar. O teto girava e se abria, os móveis caminhavam e se duplicavam. Era um horror. Por fim me arrastei para o banheiro e vomitei até quase desmaiar. Fiquei horas assim, até o dia clarear. Enquanto eu passava mal, ele dormia feito um anjo. Quando ouvi que já tinha alguém acordado em casa, levantei-me, mas a cabeça pesava uma tonelada. Tomei um longo banho frio, demorando um tempo precioso em baixo do chuveiro. Queria com aquilo também lavar a minha alma, me purificar, como se fosse possível, com um simples banho. Mas para mim foi. Depois do banho me sentia mais “limpa”. Saí do quarto cambaleando, chamei Jurema e lhe pedi um café sem açúcar. Enquanto ela foi preparar o café, tomei uma colher de ENO. Sentia que aquela ressaca ia me matar. Pois me doía a cabeça e eu tinha ânsias de vômito, tonturas e boca seca. A água não matava a minha sede. O efeito do álcool não saía de mim. Sentia-me encharcada até a raiz dos cabelos. Como é que alguém consegue se embriagar? Que coisa medonha é ficar bêbado. Tomei outro banho frio e nada de melhorar. Chegou o café, tomei e fiquei parada no quarto, mas deitada. Aos poucos o efeito do álcool foi desaparecendo. As coisas foram clareando e voltei à realidade nua e crua. Aí então senti uma enorme vergonha de mim mesma. 347
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Jurema me trouxe mais um café e me olhava intrigada, me olhava sem entender nada, pois percebia que algo havia acontecido. Não se aguentou de curiosidade e perguntou: – Me desculpe D. Celeste, aconteceu alguma coisa? Nunca lhe vi assim! – Aconteceu, Jurema. Fiz algo e estou me sentindo péssima. – A senhora saiu com ele? – É. Saí, para cumprir uma promessa... Uma obrigação que não podia mais adiar. Ela me olhava espantada. – Uma promessa? Uma obrigação? – Sim, Jurema. E quero lhe contar algo, para você ser minha testemunha, caso eu precise um dia. Senta aí nesta cadeira. – Mas, sentar-me aqui? – Sente-se. Contei-lhe tudo, desde o pedido de meu pai até o ocorrido naquela noite. Sabia que podia confiar nela para contar-lhe algo tão íntimo, e que também não seria segredo, caso viesse a engravidar. Não lhe contar poderia ser pior. Ela perderia a confiança em mim e ia imaginar que eu andava fazendo algo errado. – E a senhora espera ficar grávida assim? – É a segunda vez que ouço esta pergunta e lhe digo que espero, sim. Tenho fé em Deus que sim, foi tudo programado. Ela não entendia nada do que eu estava lhe dizendo, sobre tabela e controle de natalidade. Mesmo assim me ouvia e eu desabafava meu coração. Sentia-me melhor, por poder dividir com alguém aquele drama. Serviu-me mais uma xícara de café e foi embora para a cozinha. Mais tarde me trouxe um suco de tomate, bem gelado. Era bom para curar a ressaca e ela sabia disso. Tínhamos grande experiência no tratamento dessa doença, pois lidávamos com ela constantemente. 348
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Naquele dia não tive condições psicológicas para trabalhar e aproveitei para ficar com minha filha. Ele saiu, logo que acordou, e não puxou conversa comigo. Ainda se mostrava meio ressabiado. Para o meu almoço, Jurema fizera uma canja de galinha, que me serviu numa tigelinha. Ela fora mesmo muito sábia. Eu não conseguiria comer nada sólido, pois me doía tudo por dentro. E só ela para entender e respeitar aquele momento. Ela era uma pessoa admirável: sempre no seu posto e nunca confundia os setores. Sabia perfeitamente manter distância e sabia estar perto quando solicitada. Bons tempos, aqueles que se podia contar com os préstimos de uma boa empregada doméstica. Elas tinham amor e respeito pela família e a casa onde trabalhavam. À tarde, Eduardo apareceu em casa, já alcoolizado. Evitei falar com ele o quanto pude, mas ele me abordou e perguntou se estava tudo bem. Tentou puxar mais conversa, mas não lhe dei chance. Simplesmente fui seca e objetiva. – Está tudo bem, sim, obrigada. Retirei-me da presença dele, pois não queria a mínima conversa. Sentia muito por ele e por mim também, que sofria de tanta solidão. Mas tinha certeza de que não adiantava tentar, nada mudaria. Já havíamos nos enganado demais e estávamos cada dia mais afastados um do outro. Portanto, não queria criar novas esperanças e sofrer outra vez. Já estava acostumada a viver sem ele. Como não dei importância a sua tentativa, ele saiu novamente e só retornou tarde da noite, bastante embriagado e abusado. Por isso tivemos uma violenta discussão, que terminou com uma tonelada de palavrões. Até uns empurrões eu recebi, mas com firmeza consegui me livrar dele. Deixei claro que se ele proferisse aqueles insultos novamente, eu levaria o fato ao conhecimento das autoridades locais ou ao 349
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seu comandante. E disse mais: levaria não só aquele caso, mas toda a sua vida indisciplinada fora do quartel. Ele ficou intimidado e me deixou em paz. Tranquei-me no quarto e consegui dormir. Na segunda-feira, ele voltou para o trabalho. Só então pude deitar a cabeça no travesseiro e sonhar um pouco. Ficaria grávida? Ora duvidava, ora confiava na ajuda divina. Três semanas se passaram. Numa manhã senti enjôos e uma leve tontura. Epa! Vamos parar com essa paranóia! Isso já é ideia fixa. Estou sentindo coisa que não é real. Mas, mais uma semana se passou, as tonturas e enjôos continuavam e as regras não vinham. – Aí! isso mexeu mesmo com minha cabeça e abalou-me a este ponto: estou ficando desequilibrada e não grávida. É gravidez psicológica. Disparei a rir. Ria descontroladamente, pensando na falsa gravidez. E mais uma semana e nada. Passou o dia das regras que, por sinal, eram bastante regulares, e nada. Mas o que fui inventar? Agora estou eu aí, grávida de vontade. Não tem gravidez nenhuma aqui, eu sei. Já sei, vou comprar um desses testes que vêm prontos. Então fui à farmácia e comprei um. Voltei rapidinho e li as instruções. Esperei a manhã seguinte e procedi como mandava o fabricante. Resultado: POSITIVO. Quase explodi de alegria, mas não confiei. Comprei mais dois e repeti a operação em dias diferentes. POSITIVO. POSITIVO. Na semana seguinte fui ao médico providenciar o pedido de exame. Em seguida, colhi o material e levei ao laboratório. 350
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Pedi que me ligassem logo que estivesse pronto. Ligaram-me. Corri, peguei o envelope, voltei para casa e me tranquei no quarto. Abri lentamente e li. POSITIVO. Ali mesmo agradeci a Deus e chorei. – Obrigada, meu Deus! Obrigada, meu pai, pela força que me deu! Se não fosse por você, não estaria sentindo esta alegria agora. Foi um momento feliz, um momento mágico. Era como se meu pai estivesse ali comigo, pertinho de mim a me dizer: – Não disse que ele vai te fazer feliz? Já se sente feliz por ele, por este filho que virá. Guardei aquele segredo o quanto pude. Era só meu. Quando não dava mais para guardar, chamei Sabrina e lhe dei a notícia em primeiro lugar. – Você vai ganhar um irmãozinho. – Onde ele está? – Aqui, na barriga da mamãe. Está aqui para crescer e quando ele ficar maiorzinho, assim, um pouquinho mais, vem uma grande cegonha voando, arruma ele numa cesta bem bonita e entrega para nós. – Como eu, que ela trouxe para você? – Sim, do mesmo jeito que ela trouxe você para a mamãe. – Que bom! Que bom! Eu posso cuidar dele? – Pode sim, ele será seu bebezinho, mas você deixa eu te ajudar a cuidar dele também? – Não, eu cuido dele sozinha. Rimos. Ela correu e gritou: – Maria! Maria! Vou ganhar um irmãozinho! Maria olhou para mim com ar de interrogação. Então lhe chamei e contei que estava grávida. Dali em diante, eu fui contando o fato para algumas pessoas. 351
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Evitei o quanto pude contar para Eduardo. Ele foi o último, a saber. Quando falei para ele que estava grávida, ele ficou surpreso e demonstrou alegria. Mas eu não confiava nele. Lia nas entrelinhas e evitava o assunto, não queria partilhar com ele uma coisa que era tão minha e tão importante para mim.
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45 O parto e a serenata stava grávida, mas continuei trabalhando e E viajando sozinha. Ele não se manifestava a respeito de nossa segu-
rança, minha e do bebê. Sequer procurava saber se tínhamos corrido algum risco durante as viagens; nada, nada. O importante era eu continuar trabalhando e produzindo. Quando estava no sétimo mês de gravidez, me preparava para fazer mais uma viagem de negócios. Aproveitaria para fazer uma ultrassonografia. Queria confirmar o sexo do bebê, embora já tivesse quase certeza de que era um menino, e também saber se estava tudo bem com meu filho. Nessa viagem ele se propôs ir junto. Antes não tivesse ido. A companhia foi um vexame. Estava sempre com pressa e de mau humor, reclamava de tudo e de todos, quase me deixava louca. Larguei-o pra lá e fui fazer minha ultrassonografia sozinha. Na sala, o médico disse: – Mãe, está tudo bem. Vai querer saber o sexo do bebê? – Só confirmar, porque já sei. – Como você sabe? Experiência popular? – Não, só sei! – E qual é? Diga você primeiro, para ver se sabe mesmo. – É um menino – Parabéns, você acertou. É um bebê do sexo masculino e está tudo bem com ele. Pelo previsto, nascerá até o dia 15 do mês que vem. 353
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Não cabia em mim de tanta alegria. Esperava ansiosa para vê-lo e abraçá-lo de encontro ao meu peito. Queria tanto poder viver em paz aquele momento. Dia 12, ele chegou! Era um lindo menino calmo e sossegado. Quando peguei meu filho no colo, perguntei logo se era perfeito e sadio. Minha preocupação tinha motivo. É que durante toda a gravidez, tinha uma cisma: ele fora gerado quando tínhamos bastante álcool no sangue e isso me enchia de dúvidas. Nunca quis perguntar aos médicos se tinha sentido os meus temores. – Sadio e perfeito. É um lido bebê! Veja como é forte. Peguei meu filho nos braços e chorei. Será que eu merecia tanta felicidade? Mais tarde, quando o pai apareceu para uma visita, senti um forte aperto no coração. Pela movimentação do parto e tudo mais, até tinha me esquecido dele. Para mim, aquele era um mundo do qual ele não fazia mais parte. Mas como me livrar de passar por tudo aquilo novamente? Não queria sua presença. Pensava que seria ruim para mim e para a criança. Não queria passar por tudo que havia passado no parto anterior. Naquele, não, ele não tinha mais nenhum direito sobre mim. Cumprimentou-me de longe, mesmo. Chegou perto do berço, demorou-se um pouco, tocou na criança e de lá saiu em direção à porta e foi embora. E para minha alegria nem se aproximou de mim, mas vi lágrimas descerem pelo seu rosto. A presença dele já me causou grande depressão. Estava com uma cara de tristeza e já bastante embriagado. Aquela visita foi o suficiente para quebrar o encanto do momento; para me deixar mal e sentindo culpa, pois ele sofria muito por se sentir excluído de nossas vidas. Mas era um in354
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corrigível, um grosseiro. Não tinha mais como salvá-lo dos seus próprios erros. Não era mais aquele homem que um dia eu conheci e pelo qual me apaixonei. Era agora um estranho para mim. Sentia muito por toda a situação, mas não podia fazer mais nada; era um caso perdido. Eu só queria que ele não aparecesse mais na maternidade. Mas nem tudo que se quer acontece. Quando de uma segunda visita que nos fez, meu filho estava chorando e a enfermeira tentava acalmá-lo. Aí ele perguntou: – Não está com fome? – Não. Ele mamou tem apenas uns dez minutos – respondeu a moça. – Mamou? Onde? – Na mãe. É claro, senhor. – Na mãe? – perguntou em tom agressivo. A enfermeira não entendeu nada e perguntou se tinha algo errado com ele. Novamente o assunto de não dar o peito para a criança. Olhou para mim e estava com cara de louco agressivo. Agora vou ter que enfrentar esse maníaco, vou colocá-lo no seu devido lugar, nem que eu morra por isso. Se não tenho mais nada com ele, por que pensa que ainda é meu dono? E sem pensar nas consequências, sequer esperei a enfermeira se retirar do quarto. Ali mesmo, na presença dela, eu desabei. Fiz um sinal pra ele se aproximar de mim e com todo o ódio que tinha guardado dentro de mim, falei: – Quero te falar e pela última vez. Não te dou o direito de me cobrar nada, de me obrigar a nada, de me molestar. Não pertenço a você e nem às suas loucuras! Não vou permitir que me enlouqueça. Desapareça da minha frente, me deixe em paz! Vou amamentar meu filho, sim! Saia da minha vida: você já me causou todo mal que podia. Ainda não lhe basta? O que mais quer de mim, seu infeliz? 355
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Falava num tom alterado e todo o meu corpo tremia. A enfermeira correu em meu auxílio. Com jeito, pediu para que ele se retirasse. O que ele fez prontamente, não por educação e respeito e sim porque era muito covarde. Sabia que eu falaria mais coisas na presença dela. Coisas que ele não queria que fossem reveladas. – Calma, calma, mãe! O que está acontecendo? – É este projeto do mal que me deixa assim, desesperada. Imagina você, que ele me proibiu de amamentar meus filhos? A primeira foi um desespero e não consegui mesmo, de tanto que ele me perturbou. Agora me vem com esse assunto novamente. – É cada uma que se vê nesta vida. Já vi de tudo, mas isso é monstruoso. Isso é caso de polícia. Meu Deus! Para mim é demais – disse a enfermeira. – Também acho, e é à lei que vou recorrer se ele não me deixar em paz. – Já devia ter feito isso. É seu direito amamentar seu filho. Um direito sagrado. Que absurdo o deste homem... Comecei a passar mal. Sentia dores e, pelo fato ocorrido, veio um forte sangramento, um mal-estar horrível, como se fosse desmaiar. Ela correu e chamou um médico. Disse-lhe que eu tinha passado por um sério aborrecimento e descreveu a cena rapidamente para o doutor. O médico ficou impressionado e tentou me acalmar com palavras e atenção. Mandou a enfermeira fazer um medicamento e saiu deixando ordem para eu não receber visitas, por um bom tempo. – Ela precisa descansar bastante. – Sim, doutor. – Meu Deus, que loucura! – eu disse. – Mas agora está tudo bem, tente se acalmar e não pense mais no assunto. 356
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– Como se fosse possível, aquela criatura me leva ao desespero. – Se ele aparecer novamente, me desculpe, mas chamarei um guarda. – Um só? Não, chame todos. Faça-me esse favor. Estou muito cansada das tiranias daquele homem e como estou não posso me defender. Desta vez, foi a enfermeira que se tornou minha aliada na batalha de amamentar, enquanto permaneci na clínica. Minha sogra não estava quando do segundo parto. Ao regressar a minha casa, contratei uma enfermeira particular, pois não queria nem podia ficar só. Tinha um corte de uma cesariana e um bebê para cuidar, e com aquela figura decididamente eu não podia contar. Mas me surpreendi quando cheguei. Ele, como que querendo se desculpar das grosserias lá da clínica, já tinha providenciado de tudo que se fazia necessário naquele momento. Coisas como: remédios e fraldas descartáveis. Abasteceu o freezer, a geladeira e na despensa também não faltava nada. A casa estava limpa e arrumada. Portas e janelas abertas deixavam o ambiente fresco e arejado. Minhas auxiliares domésticas me receberam, alegres e festivas, mas com uma interrogação estampada em cada rosto. E, para completar a recepção, um grande buquê de rosas vermelhas com um cartão de boas-vindas me esperava na sala de estar. Depois que me instalei, ele foi saindo de mansinho e desapareceu o dia todo e parte da noite. Lá pelas três horas da manhã, tive mais uma boa surpresa. Estava cochilando e acordei com uma bela serenata. Alguém cantava e tocava violão, maravilhosamente bem. Recitava algumas poesias que enaltecia a mulher e a mãe. Por fim, algumas músicas românticas que despertaria qualquer pessoa para uma paixão. De dentro de casa, deu para perceber que ele estava presente durante a serenata. Dava dicas para o seresteiro e conduzia tudo. 357
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Terminada a serenata, ouvi que entraram no carro e saíram. Confesso que fiquei muito emocionada e pensando: “Por que é tão difícil ser feliz? Como seria bom se pudesse amá-lo novamente”. Quem sabe, eu não reconsideraria tudo dali em diante? Com aquelas pequenas atitudes talvez ele estivesse tentando ser aceito. A serenata me comoveu muito e cheguei a sonhar e a imaginar uma nova oportunidade para nós dois. Não aguentava mais de tanta solidão. Tanto ódio que me corroía a alma. Tinha agora, dois filhos tão pequeninos ainda para criar. Precisava viver um pouco. Aquele ódio destruía a minha vida. Ah! Se pudesse esquecer tudo e amá-lo novamente. Sabia que ele ainda me amava; bem ao seu modo grosseiro, mas amava. Era mesmo uma paixão. Era físico. Era pele. Não aceitava me perder, mas também não sabia me ganhar. Queria, pelo menos, estar por perto, mesmo sofrendo e me fazendo sofrer também. Não se dava uma nova chance de viver. Estava tudo parado no meio do caminho. Tudo mal resolvido; tudo sem sentido. E, pelo visto, passaria o resto de sua vida me pastoreando, como um cão de guarda, para que ninguém se aproximasse de mim. Depois da serenata, adormeci novamente. E, com uma grande sensação de bem-estar, pensava comigo mesma: “Pelo menos hoje ele está tentando se mostrar gentil. Quem sabe?” Algumas pessoas têm facilidade de perdoar e eu tinha. Mas as magoas que sentia dele não conseguia mais esquecer e o ódio que dominava minha vida tinha me transformado numa pessoa rancorosa. Porém, aquele pequeno gesto de carinho me falou fundo. Comecei a pensar no passado e fiquei com intenção de esquecer as magoas e perdoar. Bem cedo, acordei com o movimento da enfermeira. Eram os primeiros cuidados do dia, para o bebê e para mim. 358
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– Bom-dia! – Bom-dia. Hora do remédio, do banho e do curativo. O rapaz já está pronto, falta você... Eu estava muito cansada e ainda com sono. Não tinha dormido direito, mas lembrei-me da serenata e me animei toda com o que havia pensado antes de dormir. Entreguei-me aos cuidados da enfermeira e me deixei embalar pelos sonhos. Depois do banho, vesti-me e saí a andar dentro de casa. Fui ao quarto dele e constatei que não havia chegado até àquela hora; passara a noite fora. A enfermeira ficou um pouco embaraçada, achando que eu tinha ficado decepcionada. Devia estar achando tudo aquilo muito estranho. Como é que ele tinha passado a noite fora, enquanto a mulher estava recém-operada e com um bebê para cuidar? E a serenata? Por que a serenata, se se comportava assim? Ela não estava entendendo nada, e perguntou: – Não te preocupa o fato de ele não ter dormido em casa? Senti as faces corarem e desviei o olhar. – Desculpe. Que estupidez a minha. – Tudo bem, me preocupa sim, mas já não temos mais nada um com o outro, faz tempo. Ele é livre e, como você mesma vê, ele tem seu próprio quarto separado. O fato de ter tido mais um filho é uma história à parte. – Talvez ele esteja tentando uma reaproximação, pela serenata tão bonita que lhe fez ontem. Foi um recado, não? – Pois é. Quem sabe, ele não está preparando um clima? Pelo que estou vendo... Estava tentando me iludir e fiquei emocionada. – Não convém se emocionar. Deite-se. Deitada, fiquei a pensar numa reconciliação. Meu filho me fazia tão feliz que me sentia mais maleável. 359
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Sentia-me mais disposta a perdoar. Seria possível? Se ele continuasse melhorando... Mas que reconciliação que nada. Que clima que nada, que melhorando que nada... Ele não era mesmo capaz de conduzir as coisas de modo diferente. Sempre metia os pés pelas mãos. Era um inconsequente. Só sabia matar qualquer sentimento bom que se criasse ao seu respeito. Quando chegou, por volta das 10h da manhã, estava bastante embriagado e se queixava de um ombro e um tornozelo machucados. Dizia que doía muito. Notei que o tornozelo estava bastante inchado e com hematomas azulados. Quando tirou a camisa, vi também que tinha escoriações na parte superior do braço. – O que foi isso, Eduardo? Como se machucou desse jeito? – Escorreguei, com esta sandália que é muito lisa. E machuquei-me. Não deu mais assunto. Foi para o quarto dele e vi que logo caiu no sono. Por causa desse “acidente” pediu mais alguns dias de dispensa no trabalho, mas lá alegou que eu não estava passando bem, mentindo sobre o verdadeiro motivo pelo qual não podia ir trabalhar A dispensa lhe foi concedida mediante este forte argumento e assim ficou mais sete dias em casa, causando incomodo e trabalho ao invés de ajuda. Aborreci-me com ele novamente e arrisquei a perguntar: – Por que não falou a verdade quando pediu a dispensa? Por que mentiu? Eu e meu filho estamos bem e estaríamos melhores se não fosse pela sua presença. Deveria ter falado que caiu e se machucou seriamente. Precisava mentir? Precisava me usar para mentir? – É assunto meu! 360
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– O que de fato está acontecendo, Eduardo? Não me disse que caiu? Ou não foi isso o que aconteceu? Andou brigando? Não me respondeu, e estava muito estranho. Alguns dias depois, fiquei sabendo como ele realmente havia se machucado. Contou-me a mulher do seresteiro o que de fato aconteceu. Ao terminar a serenata em nossa casa, os dois voltaram aos bares. E ele continuou bebendo e convidou o amigo para lhe fazer companhia. Dizia que era para comemorar a chegada do filho e insistia para que ele bebesse também. Mas o outro bebia bem menos e estava lúcido na hora que aconteceu o fato. Mais tarde, quando o seresteiro resolveu ir embora, ele ofereceu carona e o mesmo aceitou. Só que durante o percurso o condutor do veículo começou a desviar o caminho que ele tão bem conhecia. Ficou a andar sem rumo e parou num lugar deserto e pouco iluminado. Pediu ao do violão que descesse para tocar e cantar mais um pouco. Iria apreciar o céu que estava muito bonito e coisa e tal. O outro não se faz de rogado e atendeu-o até em solidariedade à sua euforia. O local era um antigo parque e estava abandonado. O rapaz achou o que restava de um velho banco, sentou-se e começou a tocar. Cantava e cantava... Foi aí que logo em seguida os dois entraram num confronto e depois numa luta corporal. Motivo: o seresteiro foi abordado, por ele, com propostas ilícitas. Mediante a recusa, o proponente se exaltou e partiu para agarrá-lo à força. O agredido lutou ferozmente e em determinado momento deu-lhe um forte empurrão, fazendo-o estender-se no chão e bater com o ombro numa quina de meio-fio. O Seresteiro só contou vitória por que o agressor estava completamente embriagado, pois os dois tinham bastante dife361
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rença física. O seresteiro era miúdo e franzino, mas conseguiu se livrar dele. O cara era mesmo doente, um psicopata, um desequilibrado, um demente. E eu ao lado dele perdendo os melhores anos de minha vida. Só fiquei sabendo disso por que a própria esposa do seresteiro me procurou e me contou tudo. Sentimentos ruins tomaram conta de mim outra vez e, ao mesmo tempo, sentia pena dele. E o que era pior: ficar dividida. Ele me parecia não ser de todo uma pessoa ruim, apenas tinha um caráter mal formado. E, no mais, me lembrava um animal ferido que vivia a se esconder, que vivia a se embrenhar nos seus próprios desatinos. Vivia tentando ser uma pessoa que não era e que nunca conseguiria ser. Eu não tive coragem de conversar com a vítima. A conversa com a mulher dele foi o bastante para me deixar em parafuso. Disse a ela que sentia muito pelos dois, que tomassem as providências cabíveis e não se restringissem a nada por minha causa. Mas, novamente, o assunto não foi tratado com a devida importância. Acho que temos muito medo de enfrentar algo assim. Como da primeira vez, com o caso de minha irmã, desta vez também o assunto ficou em segredo. Isso é muito negativo, pois dar uma maior liberdade a quem quer agir de maneira criminosa é como lhe dar a certeza do silêncio da vítima e, consequentemente, a impunidade. Fiquei só a me perguntar: a quem ele atacaria se tivéssemos o terceiro filho? O que mais me faltava ver para reagir? Nada. Só que estava acontecendo algo comigo que eu não sabia explicar. Parece que tinha me tornado uma espécie de observadora dos psicopatas. Parece que eu tentava entender o que se passa na mente de uma pessoa doente como aquela. 362
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É algo assim como você ter medo dos trovões, dos relâmpagos e dos raios que matam. Mas, ao mesmo tempo, se pudesse, chegaria bem perto para ver como eles acontecem. Pois é, eu vivia assim. Cada uma que ele aprontava era pior que a outra. Mas eu ficava esperando para ver se, na próxima, ele conseguiria se superar. E ele se superava sempre. Acostumei-me com o desafio? Ou seria eu como uma espécie de videira que não gosta da terra boa e fértil, prefere o solo seco e ruim para nele fincar suas raízes e ir buscar no mais distante da superfície de uma terra pobre, ricos nutrientes e com eles produzir bons frutos? Não dava para entender que tipo de distúrbio me acometia naquele tempo. Ou seria aquela outra versão: gostar de conviver com o inferior para se sentir superior? Só podia ser isso. Que outra explicação teria? Mas um dia acordei.
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46 Comecei a luta pela separação 1ª tentativa O medo omo se vê, não parti logo para a separação C depois do casamento, como havia planejado. Também nem procurei saber se isso era possível, pois antes de começar a peleja veio:
A VOLTA DE MEU PAI PARA BRASÍLIA. A DOENÇA DE EDUARDO. A MORTE DE MEU PAI. A PROMESSA DE TER MAIS UM FILHO. O NASCIMENTO DO FILHO.
Foram fatos consecutivos; e o tempo foi passando, de repente, tinha muito mais coisas em jogo do que se podia supor. Mas depois do monstruoso caso do seresteiro, não tinha mais o que esperar. Comecei então a luta pela separação. Só não imaginava quantas dificuldades ia encontrar, não só da parte dele, como também das leis que regem o casamento e a separação. São tantas coisas, tantas regras e uma burocracia que quase faz a gente desistir. Encontrei uma barreira enorme quando parti para esta luta. Primeiro, senti desamparo nas leis. 365
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Segundo, o “cara” entrou em parafuso total. Não aceitava a ideia. Corria de um lado para o outro, se humilhava, prometia tudo, dizia que ia mudar. Dizia que vivo não saía de casa, se matava primeiro. Ameaçava a mim e às crianças. Dizia coisas horríveis que me amedrontaram demais. Fiquei muito abalada e, por MEDO, acabei desistindo e parei temporariamente com o processo da separação, pois fiquei arrasada e mais perdida ainda. Ele, mais covarde do que nunca, por algum tempo ficou quieto e calado. E eu sentia mais ódio e desprezo por ele. Como é que alguém conseguia ser tão pequeno? Das promessas que fizera, quando da minha tentativa da separação nada ficou, nada cumpriu. Logo, logo começou tudo de novo, digo, tudo a respeito das brigas horríveis, pois, além de não vivermos como um casal, ainda havia as brigas que eram grandes e constantes. Ou, melhor dizendo, eram diárias. Chovia xingamentos, agressões verbais, desmoralizações, acusações, alegações, cobranças, desrespeitos e humilhações. As brigas se tornaram mais violentas e acontecia de tudo. Objetos eram arremessados contra as paredes, coisas eram quebradas, era uma gritaria total. As crianças viviam abaladas e choravam muito. Mas eu não me importava com mais nada e seguia no mesmo nível. Conclusão: rebaixei-me, fui ao pó. Brigávamos por tudo e eu enfrentava cada provocação respondendo a altura da ofensa. Lembro-me de que uma vez peguei um dos carros e saí, para levar ao hospital uma amiga que estava passando mal. Ao retornar, ele me agrediu com palavrões e proibiu de eu usar o carro novamente. Mas desta vez eu lhe disse: – Mostro-lhe se não uso. Enfurecida peguei o carro, rodei a esmo, indo parar num lixão. Lá coloquei o mesmo de forma que eu pudesse empurrá-lo no despenhadeiro, e assim o fiz. Empurrei e ele despencou na ladeira, indo chocar-se num barranco lá em baixo e só saiu de lá guinchado e bem danificado. 366
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Só que novamente levei a pior. Além de andar uns bons quilômetros a pé naquele dia, até chegar a minha casa, ele ainda me tirou o carro de vez, vendendo-o. Sei que era um verdadeiro pandemônio, uma pouca vergonha, coisa de gente desclassificada e de baixo nível. Nessa podridão em que eu vivia, tentava “criar” meus filhos. Sorte que ele sumia para o trabalho e só aparecia de vez em quando, nessas ausências eu podia tocar a vida e descansar um pouco. Mas era só entrar pelo portão que tudo recomeçava. Não saía ele, nem saía eu. Eu não saía sem antes definir minha situação perante a justiça. Sabia que ele nos deixaria a passar fome e a sofrer outras penalidades que advém de uma separação mal resolvida. Depois da primeira tentativa fracassada, eu voltaria a tentar outras vezes, mas antes...
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47 De quando Eduardo se reformou e veio morar de vez em casa
E agora? Não consegui a separação e ele es-
tava chegando para ficar de vez dentro de casa, pois estava se reformando (se aposentando). E o pior é que ainda era um homem jovem, forte e cheio de energia para se impor e aterrorizar. Em idade ele era mais velho que eu, uma diferença de quase 10 anos, mas se mostrava muito bem disposto e tinha um preparo físico invejável. Quando ele se reformou, nosso segundo filho tinha apenas dois anos e poucos meses de idade; era ainda um bebê e exigia todo cuidado. Sabrina, já na escola, requeria acompanhamento constante devido à fase de alfabetização e tudo mais. Assim, pode-se juntar somar tudo e ver, eu já tinha um enorme esgotamento físico e mental causado por anos de brigas e trabalho sem descanso algum. Praticamente não parei nem para ter meus filhos e, àquela altura dos fatos, não me sobrava mais energia nem disposição para nada. Tinha adquirido um cansaço constante. Para outra pessoa seria compreensível o meu estado, mas para ele, não. O carrasco não dava descanso e agora, morando dentro de casa, era o fim da picada. 369
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Ele, sim, tinha direito a todo o descanso possível e imaginável; o que para mim representava mais trabalho e aborrecimento, pois a presença dele era sinônimo de barulho, sono perdido, brigas, desavenças e tumulto. Mas, falar de quando ele se reformou e veio direto para dentro de casa, meu Deus, não dá nem para descrever o que senti. Como eu conseguiria conciliar mais aquela realidade? Que agonia! Que desespero! Toda a vida de casa foi abalada, ficou afetada. Toda a rotina e organização foram alteradas. Trabalhos domésticos, boutique, filhos, compromissos, tudo, tudo perdeu o rumo. Não conseguia por mais nada em ordem. Horários? Nunca mais tivemos. Perdi a orientação, perdi o rumo, perdi o controle de minha própria vida. Foi invasão total. Foi tudo jogado num triturador e feito em pedacinhos. Minha vida ficou que mais parecia o naufrágio do TITANIC, tamanha a desordem causada pela presença dele. E agora? O que fazer com aquele estranho dentro de casa? Aquele estranho e de hábitos mais estranhos ainda? Um estranho que só sabia dar ordens absurdas e desconexas. Um estranho que se achava no direito de agredir e ferir a dignidade das pessoas que trabalhavam em nossa casa, de exigir atendimento fora de hora, de perturbar o sono e o descanso delas altas horas da madrugada, com gritos e xingamentos. A nossa empregada era obrigada a lhe servir incondicionalmente, não importava o quanto ela tinha trabalhado durante o dia. Ela tinha que levantar e atender suas imposições na hora que ele quisesse. Por isso comecei a perder as pessoas que trabalhavam em minha casa. Ninguém queria ficar. 370
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Ele não tinha a menor ideia da vida em família, dos horários e limites a serem respeitados. Tudo era muito estranho para ele, que só sabia mandar, falar mal, exigir e impor. E assim ele veio com tudo para cima de mim, que era seu alvo favorito, seu grande objetivo de perseguição. Por ser eu uma presença muito forte, incomodava-o loucamente. Ele não ia aceitar alguém assim no mesmo espaço ocupado por ele, que veio para limpar o terreno e habitá-lo. Quando aterrissou nesse terreno, parece que disse a si mesmo: – Bem, agora tenho que transferir para cá o meu posto de comando. Tenho aqui um inimigo perigoso. Vou combatê-lo e tomar a tropa a meu serviço. Rebaixarei mulher, filhos e empregados a soldados rasos e aplicar-lhes-ei minha disciplina, pois tenho que continuar meus exercícios de guerra. Este era seu intento. Era guerra. Ele não sabia ser outra coisa a não ser militar, não no primeiro sentido da palavra, mas um “militarão”. Chegou como um comandante de tropa quando vai atacar o inimigo. Chega, monta acampamento, planeja o ataque e vai à luta. Se ele vence ou não, não sabe, mas um bom estrago consegue fazer. E foi assim que ele se instalou dentro de casa, com ares de superior. Casa esta que foi erguida graças a minha luta, determinação e coragem. Mas nada disso ele respeitava. Era agora uma questão de vida ou morte, pois já sentia por ele um ódio incalculável, uma mágoa sem tamanho. Estava bem armada com todos esses sentimentos que impulsionavam a violência e o desejo de vingança. Contava com essas armas para abatê-lo rapidamente e talvez chegasse à minha tão sonhada liberdade. Assim como estava, lutaria ferozmente. Lutaria por um espaço físico, dentro de casa, para mim e meus filhos. 371
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Eu já me sentia tão descaracterizada que não me importaria nem mesmo com os escândalos. Imaginava que ele não teria cacife para uma longa batalha comigo. Já sabia bem do seu mau caráter e não mais o temia e muito menos o respeitava. Mas a minha valentia não durou muito, ele conseguiu me abater bem primeiro. Como disse antes a palavra, horário ele riscara completamente de nossas vidas. Dizia que estava cansado de regras de quartel, que de agora em diante viveria a seu modo; quem não gostasse que se danasse. Se já era assim antes, quando de passagem em casa, agora então se achava com carta branca para atuar. Dizia ser o homem da casa e tinha que impor “respeito”. Estabeleceu-se então um clima de ódio e tensão. Sua presença causava um grande desconforto e mal-estar a todos, desde as crianças até quem trabalhava em casa, para mim. Não dá nem para descrever: ficou tudo pelo o avesso. E assim seguiam os dias e as noites também. Quando às seis da manhã estávamos nos levantando para iniciar o dia, ele estava chegando para dormir. Quando tirávamos a mesa do almoço, ele estava se sentando para o desjejum. E lá se ia a moça preparar outro cardápio à base de sucos gelados, vitaminas de frutas, queijo, ovos fritos e chás amargos para reforçar o fígado. A estória dos dejetos, do mau cheiro, etc., redobrou... Um horror! O quarto em que dormia adquiriu um cheiro insuportável de couro podre. Por causa da constante embriaguês, melhor dizendo, por estar com o corpo constantemente encharcado de álcool, parece que seu organismo estava em estado de putrefação. Era um odor fétido, que causava náuseas a quem se aproximasse da porta do quarto. E o que era pior: o mau cheiro se espalhava por toda a casa; e a impres372
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são que se tinha é que tudo estava impregnado por aquele cheiro. Ficava o dia inteiro dormindo, atrapalhando o andamento das coisas e as tarefas domésticas. O que de bom eu havia implantado e ensinado aos meus filhos, ele, com certeza, iria levar na enxurrada de lama que estava preparando. Esse quadro me desesperava. Eu sabia que era impossível mudar hábitos tão antigos numa pessoa. Mas como ia conseguir me livrar daquele intruso? Minhas armas se tornaram muito pequenas mediante as dele, pois ele não usava de justiça nem respeitava valores. Como lutar com uma pessoa que tem ausência de consciência? Passou a beber dia e noite e abandonou qualquer tipo de cuidado pessoal. Não cortava mais o cabelo, não fazia a barba, não trocava a roupa com a devida freqüência, não calçava mais um sapato. Andava sempre arrastando um chinelo velho e sujo, do qual emanava um cheiro de curtume. Não se alimentava como as outras pessoas. De vez em quando, apresentava-se à mesa. Jurema lhe servia algo, mas ele se comportava como um bicho acuado. Estava sempre de cabeça baixa, com o rosto vermelho e empapuçado. Enquanto mastigava, fazia um barulho horrível com um chiado molhado e dava para se ver que a comida se acumulava em cada canto da boca. Seu aspecto era de um forasteiro, um andarilho, a quem você oferece um prato feito e frio, e ao qual ele se agarra, encolhe-se num canto, come sem prazer e se vai novamente. Não adiantava servir uma mesa decente e organizada, se nunca se sabia a que horas ele ia aparecer para comer. Comia muito pouco do prato que lhe era servido. Só beliscava, remexia de um lado para o outro, deixava tudo pela metade e saía outra vez a perambular de bar em bar. Com esse comportamento, foi perdendo a arrogância. As pessoas olhavam-no com certo desprezo e receio. Mesmo assim ele preferia se entregar a esse caminho, viver no abandono total; prefe373
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ria isso que procurar ajuda e se ajustar aos costumes de uma família. Nunca ia saber enxergar o lado bom da vida. Destruía a dele e a dos outros com seu comportamento grosseiro e nojento. Eu sentia um grande constrangimento, por mim e por meus filhos. O que sobraria de uma vida assim? Não estava mais conseguindo viver. Suas atitudes atingiamme em cheio, não dava para escapar delas. Não existia imunidade para aquilo; tudo nos afetava diretamente. E eu sentia muita vergonha de todos. Assim fui me isolando mais e mais. Afastando-me de tudo, pois me sentia tão desesperada e sem horizontes que tinha ímpetos de matá-lo com minhas próprias mãos, matá-lo sem nem pensar no que me aconteceria depois. Queria matá-lo, esmagá-lo e reduzi-lo a cinzas literalmente falando, para que não restasse um só fragmento daquele verme que tanto mal me fazia. Mas, ao mesmo tempo, pensava: “Matando-o não vou conseguir tirá-lo da minha memória, não vou conseguir tirar de minha mente nada do que já havia sofrido por causa dele”. Mas, matando-o, só conseguiria me causar mais um irreversível trauma e acabar de vez com minha vida, e numa cadeia. E assim, com o coração cheio de ódio, desejava que um dia alguém fizesse aquilo por mim, porque procurar ele procurava, e muito. Pena que ninguém levava a sério as provocações dele. As pessoas encaravam aquilo como coisa de bêbado. Mesmo assim, eu torcia para que um dia, uma hora, na calada da noite, o telefone tocasse e alguém do outro lado da linha me desse a boa notícia. Chegava até a imaginar a cena e, como prova do meu desprezo, lá não poria os pés, nem para recolher o corpo. Nem mesmo choraria por ele. Como poderia uma pessoa viver assim? Mas eu vivia e cheia destes sentimentos. Involuntariamente transmitia isto para meus filhos, não de viva voz, mas nas minhas atitudes. Por mais que eu tentasse, não poderia transmitir a eles bons sentimentos com relação à aquela criatura que eles conheciam como pai. 374
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Não tínhamos mais como suportar aquele mar de decepção, mas também não tinha mais para onde fugir. Onde quer que eu fosse, elas me acompanhariam, me tirariam a alegria de viver, me roubariam a paz. Que coisa ruim de sentir! Que sentimentos terríveis que nos transformam em pessoas frias e vazias! Tanto tempo estava vivendo assim, que comecei a ficar doente e pensava: “Por que algumas pessoas têm o dom de destruir tudo que encontram pela frente?” Por causa dele minha vida estava acabada. Por causa dele tive que sufocar meu lado bom como esposa e mulher. Tive que juntar todo meu amor, carinho, dedicação, paixão, companheirismo, sexualidade e sentimentos os mais diversos. Juntei tudo e aprisionei dentro de um ser triste e magoado. Deixei-me morrer, secar, atrofiar e fui soterrando qualquer tipo de sentimento para não sofrer mais, pois a vida ainda gritava dentro de mim. Estava presa, mas ainda gritava, como qualquer ser normal. Meus desejos existiam independentemente da minha vontade e de tanto me reprimir, veio a solidão, que é quase um suicídio. Pedia a Deus que me tirasse tudo: alegria, feminilidade, paixão, romantismo; que me tirasse tudo para eu não sofrer tanto, pois sentia muita falta de ser feliz, de ser amada. Falta de sentir um abraço forte e carinhoso, de poder externar meus bons sentimentos, de poder dar e receber. Sentia muita falta de ser eu mesma. Enfim, sentia muita falta da proteção de um homem, de um homem que não matou em si o seu lado feminino; pois somente o homem que sabe viver esse lado, com certeza vai saber entender uma mulher. O machão não, ele nunca vai entender. Ele é muito MACHO para entender o feminino, para entender a beleza de uma mulher amiga e amante, de uma mulher feminina, frágil e forte ao mesmo tempo. Ele não entenderá jamais. Ele não pratica qualquer gesto de bondade. Ele se fecha, se protege. Agride e maltrata, e com isso entende que será respeitado. 375
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Pobre idiota. Será ODIADO, sim; mas respeitado jamais. Às vezes saio a vagar em pensamentos, e sofro com as lembranças deste começo que tanto idealizei. Então tento apagá-las, pois lembrar me faz muito mal, porque é grande a saudade daqueles tempos, dos encontros emocionantes. Daquele amor fértil e vigoroso, do amor que me completava e me dava vida. Mas aquela vida me foi cortada assim bruscamente, sem um prévio aviso. De repente, parou tudo, tudo me foi tirado e não me sobrou nada. Não me restou nem mais forças para lutar, pois devia continuar lutando mesmo sob todas as ameaças, porque foi por medo de morrer que deixei de viver. Foi assim que um dia me vi perdida e sem rumo. Então me entreguei. O que eu tenho vivido FORMA UM QUADRO assim: Imagine que você esteja andando, anda e anda muito. Sem querer, se perde e vai parar num deserto. Começa a andar em círculos procurando um caminho, uma saída. Anda mais e mais até se ver completamente perdido. Perdido chega ao desespero pela fome e pela sede. Imagine também que depois de muito andar, você pare numa tenda e dentro dela há uma mesa posta com bastante comida e água fresca. Mas uma voz interior te avisa: “Não arisque, nada disso é confiável; não coma, não beba nem permaneça nesta tenda.” Pela lógica, se é que a lógica existe, você só tem três opções: Primeira: Comer e beber mesmo sabendo que poderá morrer. Segunda: Não comer nem beber e esperar morrer, mas à “sombra” da tenda. Terceira: Largar tudo, fazer de conta que foi só uma miragem e sair à procura de ajuda. Acho que é só isso que se pode fazer. Como sei também que no deserto da vida ajuda é coisa rara, talvez a maioria faça como eu fiz: fique e espere morrer. Eu fiquei com a segunda opção. Sair seria mais penoso, já estava muito perdida naquele deserto e pouca ajuda encontraria. 376
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Quanto mais procurei, mais me perdi; quanto mais andei, mais difícil ficou para voltar. Neste processo, fechei-me mais e mais para a vida. Fiquei sentada à sombra da tenta e olhando um deserto sem fim à minha volta. Ali eu só queria esquecer tudo, me isolar do mundo, sofrer uma amnésia e poder recomeçar do zero. Foi assim que fechei meu coração para qualquer sonho. Deixei que um vazio tomasse conta de mim. Era cada vez maior o deserto que se estendia à minha frente, e nele tudo se perdia. Naquele deserto fui perdendo meus planos e sonhos de uma vida feliz. Já tinha brigado muito por ela e ela não vinha. Não queria mais brigar. Não queria mais a vida, não queria mais coisa alguma. Não queria mais trabalhar, crescer, nem ser dona de casa caprichosa. Não queria mais enfeitar minha casa, bordar lindas toalhas, nem fazer arranjos de flores. Telas eu não pintava mais. Não queria mais construir nada nem cultivar a terra do meu jardim. Não queria mais ler nem ouvir música. Não queria mais ser amiga, conversar, participar, nem passear. Não queria mais ser filha e tampouco queria ser mãe. Não queria mais ser solidária nem boa ouvinte. Não visitava e nem queria mais ser visitada. Não queria mais ser vizinha; por isso tranquei meu portão. Religião, não praticava mais. Ceia de Natal e Réveillons foram esquecidos. Enfim, só queria me isolar do mundo e pensar. Mas pensar em quê? Se não neste passado tão recente, onde estava tudo de ruim? No meu passado mais distante estava tudo de bonito, mas 377
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ele estava ficando cada vez mais distante e apagado, cada vez mais longe. Mesmo assim eu ainda tentava puxá-lo para perto de mim como se puxa a linha de uma pipa que voa muito alto. Você puxa, puxa e ela não vem mais, pois já está muito longe e perdeu a força. A instabilidade estava tomando conta de mim e minha vida estava pontilhada por grandes e terríveis erros. Erros que só levavam a outros erros. De tanto lutar para me encaixar num casamento errado, já não sabia mais quem eu era. Não tinha mais identidade própria. Por isso me escondi naquela tenda. Por isso me fechei para qualquer apelo, bom ou ruim. Resistia a toda e qualquer forma de mudança, e fazia isso quase que involuntariamente. Estava com medo, pois meu caminho, um dia, parece, estava muito bem traçado e eu mudei o rumo dele. Aquele caminho poderia ter me levado ao lugar certo da vida. Poderia? Talvez? Quem sabe. Mas o outro que tomei com certeza me levou ao deserto, onde me perdi. E para onde você vai nesse deserto? Para frente ou pra trás? Para a direita ou para a esquerda? Tanto faz, você já está perdido. Como tanto faz, achei melhor ficar parada. Parada à sombra de uma tenda que não me oferecia nada.
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48 Segunda tentativa de separação (judicial) (As ameaças)
Estava parada e fragilizada. Mas, um dia, li-
guei pro meu advogado para reaver alguns documentos que eu havia deixado no escritório dele. E, em conversa, ele me disse que eu poderia tentar a separação litigiosa. Segundo meu advogado, isso já era mais do que certo. Qualquer juiz daria parecer favorável a essa separação. Então me animei com essa esperança na lei e voltei a tentar pela segunda vez. Mas, como da primeira, essa também foi inútil. Ele foi convidado para conversar com o advogado e quando voltou da entrevista ficou de deboche, fazendo piadas pela possibilidade de uma separação litigiosa. Dizia que eu não passava de uma palhaça e queria ver até onde aquilo iria chegar. Mesmo assim, toquei o processo pra frente. Quando ele viu que tudo ia ser mesmo resolvido pela lei, deixou as piadas e voltou a se humilhar vergonhosamente. Como também não dei importância à sua covardia, mudou de tática e veio com ameaças novamente. E em carga total, falava de extermínio em família. Eram ameaças tão sérias que tentei falar com ele para fazer a separação amigável, sem dramas, sem tragédias. Ao que ele me respondeu: 379
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– Vai você, sai você! Daqui não saio. Ninguém nem lei alguma me obrigarão a fazer isso. E, se me obrigar, farei um estrago tão grande que você não terá tempo nem para se arrepender. Mato você, as crianças e me mato também. Quem me impedirá? A bela justiça, de que tanto você fala? Não é para lá que você corre? Para seu advogado, para a polícia, grande coisa. O que eles conseguiram fazer quando você foi lá fazer fofocas? Nada. Não te avisei que eles não podiam comigo. – Cala essa boca, seu covarde! Seu verme! – Você e eles são uns palhaços, uns idiotas. Quem manda em mim sou eu. E onde você for te perseguirei e eles não me impedirão. Seu lugar é aqui! Mas se quiser ir... Saí da presença dele correndo. O imbecil me aplicava verdadeiro terrorismo e, depois dessa conversa, mais travada fiquei. Amedrontada, cedi novamente. Não tinha como saber se eram só AMEAÇAS ou se ele poderia mesmo chegar às vias de fatos. Tinha muito medo, medo de uma represália, num momento de descuido. Por onde eu tentava fugir, ele fechava a saída; por onde eu tentava recomeçar, ele atacava e destruía tudo. Onde eu encontrasse uma esperança ele ia e sabotava. Enfim, era uma perseguição constante, sem tréguas. Fiquei enlouquecida, porque vi escapar minha única chance de me livrar dele. O medo de uma tragédia me deixou paralisada. Tornei-me sua refém. Fiquei ainda mais perdida e sem dignidade para viver. Pelos cantos vivia a chorar; e o pior é que não via como sair daquele inferno. Minha vida tornou-se uma réplica fiel do filme MORANDO COM O INIMIGO Por estas e outras, certa noite tivemos uma grande discussão. Foram sérias ameaças físicas, agressões morais, coisa muito 380
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pesada mesmo e na presença das crianças e para quem estivesse passando na rua ouvir também. Subitamente me enchi de coragem e chamei a polícia, antes que acontecesse o pior. Ele estava me levando à loucura e, num momento de ausência da razão, eu poderia chegar ao extremo; poderia perder a cabeça e matá-lo, pois era só no que eu pensava. Mas por sorte a polícia chegou rápida e, depois de uma curta conversa, ele foi convidado a entrar na viatura. E assim foi conduzido ao quartel como um bandido, como um delinquente. Ainda quis reagir alegando ser um militar e que tinha superioridade e coisa e tal, mas os policiais não se deixaram impressionar por que já o conheciam de lugares não muito dignos para o honrado cidadão que ele alegava ser naquele momento. Foi e de lá a polícia comunicou o fato ao comandante do quartel a que ele pertencia e que tinha base noutra cidade. Assim ele foi seriamente advertido por sua má conduta e pela primeira vez recebeu um pequeno castigo por tudo que me havia feito. A cena foi chocante para mim e as crianças, mas foi impossível evitá-la. Ele já tinha passado e muito dos limites: estava absoluto e sem rédea alguma; estava se achando acima da lei, acima de tudo e de todos. Lavei meu peito quando o vi passar por aquela bela humilhação. Mas, no dia seguinte, quando voltou para casa, estava quieto, calado e me olhava com desprezo e rancor. Fiquei com mais medo dele. Mas me consolava, pensando que o fato ia ser uma boa correção. Porém pelo visto, a lição foi pequena, pois logo, logo começaram as agressões novamente e agora com mais uma acusação contra mim. Dizia ter eu desmoralizado seu nome perante seus colegas de farda e seu comandante. Ele não entendia que eram suas próprias atitudes que sujavam seu nome e não eu. 381
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Depois da visita da polícia, a batalha ficou mais séria. O ódio de Eduardo por mim ficou maior e suas ameaças adquiriram um vocabulário mais cruel. Ele dizia coisas impróprias de serem citadas aqui. Com o ato heróico de ter chamado a polícia, sentia-me mais protegida e amparada pela lei. Mas amparada até que ponto? Com quanto disso eu podia contar numa briga sem regras e sem fim? Ele mesmo dizia que ninguém o seguraria e se vingaria de qualquer jeito e que do dinheiro dele eu jamais me beneficiaria. Pensava desesperada: do que viveria eu e as crianças, até resolver a questão na justiça? Se tudo que tinha feito estava no poder dele? A boutique era só o que tinha em meu nome, mais já não ia tão bem. Estava descapitalizada e falida. Eu não tinha mais condições emocionais para trabalhar. Sequer conseguia sair à rua para resolver qualquer assunto. Depois do incidente da polícia, fiquei muito mais envergonhada. Não conseguia mais tocar a boutique com o mesmo zelo e desempenho de antes. Faltava-me auto-estima para isso. Muitas vezes passava constrangimento na presença de alguns clientes, quando por qualquer motivo ele resolvia fazer escândalos. Por isso até da minha boutique eu vivia fugindo. Ela também foi ficando sem graça, triste, decaindo; não dava mais lucro e estava caminhando para dar prejuízo.
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49 Fechei a boutique
Tentava levantar a BOUTIQUE, mas não tinha
mais força nem saúde. Havia desenvolvido uma espécie de pânico e também me esquecia facilmente das coisas. Eram uns “brancos” passageiros. Por duas vezes passei mal durante as viagens. Certa vez, em São Paulo, desmaiei numa loja. Sorte que estava num ambiente conhecido e fui socorrida. Foi só um desmaio, mas fiquei preocupada. E se estivesse em plena rua, quem me socorreria? Na segunda vez que desmaiei, tive uma espécie de amnésia e fiquei por um bom tempo perdida, sem saber onde estava. Era um branco, um vazio na consciência, uma sensação horrível. Tentava e tentava, mas a memória não vinha. Quando recobrei os sentidos, estava sentada numa barraquinha de cachorro quente. E vi umas pessoas estranhas ao meu redor tentando me socorrer. Depois desta segunda vez, quando cheguei a minha casa, vi meus filhos tão pequeninos e indefesos e fiquei a me perguntar se valia a pena perder a vida ou coisa parecida. Sabia que era esgotamento, mas não tinha como descansar. Foi aí que tomei uma decisão inadiável. Já havia falado para ele que fecharia a boutique caso ele não me deixasse trabalhar em paz. É claro que ele não ia permitir nunca. Assim, eu era obrigada a continuar trabalhando. Não podia parar nem para me tratar. 383
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De certa forma, era obrigada a trabalhar, querendo ou não, pois era eu que arcava com todas as despesas da casa. Ele sequer sabia quanto custava um litro de leite. Mas agora tinha que parar por uma questão de saúde. Então, certa manhã, depois de ter chorado a noite inteira, decidi fechar a boutique. Não dava mais, não aguentava mais o trabalho. Estava sendo muito penoso o que antes era um prazer. Estava triste e vazia. Chorava porque sabia quanto falta ela ia me fazer. Chorava porque sabia do carinho com que tinha conduzido até então o meu trabalho. E de uma hora para outra ver tudo destruído, tudo acabado. Sabia quanta falta também ia sentir do meu próprio dinheiro, da minha independência financeira. Mas nada mais fazia sentido na minha vida. Por isso preparei tudo para fechar, sem que ele soubesse. Quando estava tudo em ordem com a contabilidade, peguei a mercadoria que restava e embalei em caixas de papelão, deixei de lado, para depois dar um destino a ela. Por telefone, comecei a avisar às minhas clientes que, penalizadas, não queriam que eu fechasse a loja. Para as pessoas mais amigas, contei a verdade. Falei que estava com sérios problemas e que precisava parar. Elas não questionaram, pois sabiam de tudo que eu tinha vivido. Deram-me apoio e me tranquilizaram dizendo que eu estava certa, devia fazer isso mesmo e que não me deixasse explorar mais. Mesmo muito triste, fui em frente com meu plano. Como na época do restaurante, tudo se repetia: doía-me muito, mas só via aquela saída. Antes eu ainda havia conversado com ele e lhe disse que se ele concordasse com a separação, sem brigas, eu não fecharia a boutique. Vejam o que ele me respondeu: – Não quero saber deste assunto. Não aceito a separação 384
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nem você fecha, pois você só tem preguiça. Deixa que eu toco o negócio, já que você não quer trabalhar. É mesmo uma incompetente, uma inútil. O infeliz sabia como matar uma pessoa sem lhe encostar um dedo. Isso é o que eu classifico de matar a sangue frio. – Pois vamos ver se eu não fecho! Fechei. Passei chave e cadeado. Ele quase me esbofeteou quando viu tudo acabado; mas eu o encarei. – Arrume outra otária para trabalhar para você. – Viverá do quê? – Viverei do seu dinheiro. É obrigação sua me sustentar. É meu direito e disso não abro mão. Só voltarei a trabalhar se tiver minha liberdade. Do contrário serei um peso nas suas costas. – Não sustentarei vagabunda que não trabalha. – Como pensa evitar isso? Você não está acima da lei. – Grande lei. Vá para o inferno. – Só mais um lembrete: se você continuar me faltando com o respeito, me agredindo com esse tipo de palavreado, chamo a polícia e você vai se entender com ela novamente. Não sou sua escrava e já tenho bastante crédito para receber de você. – Saberei dar um jeito nisso, mas do meu dinheiro você não viverá. – Que ninguém duvide disso. De você não espero uma atitude digna. Sua covardia não me surpreende mais. Vá em frente. O indivíduo era tão pequeno de atitudes, que eu não ia perder mais tempo discutindo aquilo com ele. Além do mais, eu sabia que aquela ameaça era verdadeira; era só esperar para ver. Esperei pouco e vi horrorizada que ele realmente ia conseguir. Enquanto eu tinha o que me restou do meu trabalho, fui levando. Mas quando acabou e passei a depender dele foi horrível, foi ultrajante. Para começar, eu nem sabia como fazer aquilo. Eu não 385
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tinha o costume de pedir nada para ele. Querendo ou não, sempre fui muito independente. Quando comecei a precisar de alguma coisa, ele não deixou barato e jogou duro mesmo. Dificultou-me a vida o quanto pôde. Começou o ataque pela cozinha. Nosso médio padrão de vida foi reduzido quase ao zero. Só não nos deixou passar fome, para não ser denunciado. Mas comprava só o básico, o estritamente básico, ou o grosso como se costuma dizer no interior. Era arroz, feijão, sal, óleo, macarrão e batata inglesa. Nada, além disso, eu precisava esperar. Comprava o que de pior encontrasse e em grande quantidade, assim como se compra ração para animal. Sabia eu que ele fazia aquilo de propósito e também pelo costume de ser um ignorante, um grosseiro, pois nunca valorizou o bom-gosto, o fino trato, a qualidade. Se ele já era assim por natureza, o que dizer então da situação em jogo? Ter acesso ao dinheiro dele para ir às compras? Que piada. Roupas para mim, salão, remédios e outras despesas, nem em sonho eu teria coragem de pedir. E muito menos ele oferecia, é claro. As crianças também foram afetadas e castigadas. Já não tinham mais suas boas roupas e os bons calçados de antes. Os quartos também não foram mais pintados nem redecorados. Suas roupas de cama estavam velhas e descoradas. Para o lazer não tínhamos mais dinheiro. Festa de aniversário nunca mais. E cada dia ele se tornava mais mesquinho e agressivo. E dizia bem claro que não esperasse dele mais que aquilo. E então? Não resolvi um problema fechando a boutique e ainda criei mais um. Lembra da história de que cada mudança que eu fazia dava tudo errado, e eu me perdia mais? Pois é, novamente deu errado e muito errado, porque a mu386
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dança que eu precisava fazer não era aquela e sim tirá-lo da minha vida. Mas, como? Além de tudo, agora iria passar uma vida de privação. Revoltada, torcia para que acontecesse algo que o tirasse de minha vida. Um dia, parece que um anjo me ouviu e veio em meu socorro, proporcionando-me um pequeno alívio.
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50 A recaída (Eduardo fica doente outra vez)
E assim, quando menos se esperava, voltou o
problema da garganta de Eduardo e, desta vez, com maior intensidade. O organismo debilitado por causa da bebedeira estava com baixa resistência e mais propenso a infecções, e a recaída veio com tudo. Certa noite, ele chegou em casa ofegante e respirava com dificuldade. Entrou, atirou-se numa cama e por lá ficou. Vi então que ele não estava bem. Daquela hora em diante, ele se prostrou. A doença tomava conta dele rapidamente. Não se levantava, não comia, dormia muito pouco e, quando isso acontecia, seus roncos eram ouvidos a longa distância. Eram roncos que pareciam coisa de filme de terror. As pessoas chegavam até a perguntar o que era aquilo; e quem roncava daquele jeito. Nossa casa se tornou alvo de curiosidade e gracinhas, tamanha era a estranheza causada por aqueles roncos. Todos estavam incomodados, a ponto de um dia um vizinho chegar para mim e dizer que gostaria de falar com ele, porque há dias vinha ouvindo aquele barulho estranho e estava se sentindo incomodado. Queria saber se podia fazer alguma coisa para ajudálo, pois estava impressionado com a situação. – Ele já foi ao médico? – perguntou-me. – Já tentei senhor, Joaquim; mas ele se recusa. 389
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– Por que isso? A senhora devia insistir; ele não pode continuar assim. – Desculpe-me a franqueza, seu Joaquim, mas para mim tanto faz. Estou cansada de lutar com esta criatura. Desculpe-me. – Meu Deus, que situação. – Pois é, entendo que o senhor se espante. Com a minha atitude, o visitante ficou até um pouco sem graça de falar com o doente, mas eu o encorajei. – Fale com ele, senhor Joaquim, quem sabe ele não lhe escuta? Tudo é possível. Convidei-o a entrar e o acompanhei até o quarto onde estava o doente. Quando ele se aproximou de Eduardo, vi espanto e repulsa estampados em seu rosto. Eu, por minha vez, fiquei mais embaraçada, mas esperei para dar apoio a ele. Aproximei-me de Eduardo e anunciei a visita. Ele abriu os olhos, que estavam horrivelmente congestionados, e olhou para o visitante com cara de poucos amigos. O outro, mesmo percebendo sua animosidade, ainda falou: – E aí, Eduardo, parece que não está muito bem, não é? – Eh, não estou bem; creio que é a garganta novamente. – Lá de casa tenho ouvido que passa mal todos os dias. Você está com problemas para respirar? Simples pergunta, pois era visível sua falta de ar. – Está bem difícil, estou para ficar asfixiado. – E qual é o motivo de não procurar um médico? – Não gosto de médicos, hospitais. De remédios, então nem me fale. Estou cansado... Cansado de tudo... – Mas não percebe que não pode ficar assim? Tenha ânimo, não se entregue, rapaz. A doença trabalha rápido. Além do mais, tem seus filhos ainda pequenos, sua mulher, enfim, sua família... Lute por ela. O homem falava de família, como se ele desse a menor importância a isso. Mas valia o argumento. 390
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– É. Disse este “é” e não deu mais assunto. O visitante ainda tentou argumentar, mas não teve chance. Então tratou de ir embora. Mas, antes de sair, ainda se prontificou para ajudar. O teimoso ficou mais alguns dias tentando ganhar tempo e vencer a doença, mas ela foi mais forte que ele e quase o derrotou. Porém, na última hora, quando percebeu o feio da coisa parou de birrinha. Teve que sair às pressas para Brasília novamente e de lá ele foi encaminhado para São Paulo. E por lá ele ficou uns 21 dias. Desta vez não o acompanhei e sequer queria saber de como estava passando. Se não voltasse mais, seria melhor para todos. Mas voltou, pois “vaso ruim não quebra”. Que decepção quando o vi de volta. Disse para ele: – Que pena que você voltou! Esta foi a recepção que ele teve de mim, depois de 21 dias que passou fora. Em São Paulo ele foi operado e ficou curado dos roncos e também da complicação na garganta. Depois deste segundo susto, passou uma boa temporada sem beber.
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51 De férias
A abstemia do álcool duraria por mais de
um ano. Curado da garganta, do ronco, e sem a bebida, ele melhorou um pouco. Em casa a gente sentia um pequeno clima, uma trégua, coisinha acanhada, mas já servia. Para quem nunca tinha tido nem um pouquinho de paz, aquela mudança era sentida fortemente. Ele já conversava com as crianças e para Jurema pedia as coisas, por favor. Entre nós dois continuava tudo do mesmo jeito, ou seja, o mesmo impasse de afeição. Só que as discussões diminuíram naquele período. Sem a bebida, ele era, não vou dizer, uma pessoa amiga, mas vivia tão calado e distante que não provocava brigas nem tampouco eu dava importância. E assim passamos um pequeno período diferente, menos atribulado, graças, talvez, a ausência do álcool. Sua família, alheia a quase tudo que se passava conosco, sempre nos convidava para ir visitá-la. Porém eu nunca tinha coragem para tanto, como viajar e visitar parentes num clima de eterno conflito? Então, a cada convite eu ia enrolando e dando desculpas, mas eles também não desistiam de convidar. Analisando a suposta cura do vício e minha vontade de passear um pouco, já que as crianças estavam bem crescidas, um dia achei por bem aceitar o convite e ele também concordou. 393
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Preparei-me, emocionalmente, para aguentar tudo que viesse a acontecer. Eu não podia deixar que nada estragasse os nossos planos, o nosso passeio, que, àquela altura, era pelos filhos e não mais por mim. Com a expectativa das férias eles estavam que era só alegria. Nunca tínhamos feito um passeio em família. Passamos o segundo semestre daquele ano só planejando e sonhando. Foram dias de uma quase felicidade. Chegando o grande momento, no dia anterior fui ao supermercado com as crianças. Eduardo liberou uma pequena verba para tal. Felizes, fomos às compras, cada uma queria fazer a sua. Compraram água, sucos, biscoitos, doces, material para sanduíches e salgadinhos. Depois compramos roupas, calçados, chapéus, bonés, óculos e protetor solar. Chegando em casa, cada uma das crianças preparava sua bagagem de viagem. Elas enfiavam de tudo naquelas malas e mochilas, pois as deixei bem à vontade. Depois, só dei uma conferida. Arrumaram tudo como bem quiseram. Deixei que elas aproveitassem bem o clima, pois viviam tão reprimidas que só de ver a alegria delas me enchia a alma. No dia marcado, bem cedinho partimos para a tão sonhada viagem. Ainda estava escuro: os galos a cantar e a brisa da madrugada a nos envolver. As crianças sonolentas se aconchegaram no banco de trás. E Maria a cuidar delas. Não se separavam da nossa Maria para nada, ela era como uma segunda mãe para todos nós. As férias tinham tudo para serem bastante agradáveis, não fosse pela animosidade entre mim e Eduardo. Mas tudo bem, eu já estava acostumada a renúncias. Fizemos o percurso em três dias. Paramos bastante para conhecer tudo que as crianças queriam e até dormimos em pousadinhas de beira de estrada. E foi bem divertido. 394
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Aproveitamos bem o trajeto. De início eu estava tensa, com medo que Eduardo não tivesse a devida paciência e estragasse tudo. Mas não, ele parecia outra pessoa, calmo gentil e prestativo. Chegando lá foi uma festa, uma alegria. Seus familiares nos receberam muito bem. Para a mãe dele, foi uma alegria maior ver a mim e aos seus netos. E, tínhamos muita coisa para conversarmos. Eu e ela. Ela, como mãe, estava mais ciente das coisas e temia muito que eu me separasse dele. Dizia saber que ele não resistiria, pois era muito dependente de mim. Os pedidos que ela me fazia foram também, fortes motivos pelos quais tolerei tanto abuso da parte dele. Sempre foi atenciosa e agradecida. Ela sabia da pessoa difícil que era o filho e me pedia que tivesse paciência. Por lá passaríamos 32 dias. Mas logo na chegada se estabeleceu um clima de paz e alegria. Só com ele que meu coração não se abria completamente. Os parentes mais próximos entendiam e percebiam que era um casamento só de fachada. Mas se mantinham discretos e nunca comentavam nada. Nunca tocaram no assunto e nem faziam perguntas; para eles o importante era estarmos ali. Ele, por sua vez, comportava-se como eu nunca tinha visto. Era só atenção para comigo e as crianças. Tratava-me muito bem e com respeito. Quem o via assim, jamais podia imaginar o tirano que ele era. Deixava-me presa e sem jeito para expor aos seus parentes o que de fato tínhamos vivido. Ele criava um clima tal que nem de longe eu teria chance de falar mal dele para ninguém. Outra faceta dele que eu desconhecia. Ele tinha um instinto de autodefesa que causaria inveja a mais astuta das serpentes. O que eu poderia criticar em um homem daquele e que se comportava tão bem com a mulher e os filhos? Seria eu louca para pôr em dúvida a generosidade daquela pessoa perante seus parentes mais queridos? 395
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E assim eu perdi a chance de contar tudo e, quem sabe, até conseguir um aliado para ajudar a me defender dele, embora não tenha ido lá com esta intenção. Mas seria uma boa oportunidade. Era tão grande a mudança, que um dia perguntei-lhe: – Por que você esta tão diferente, Eduardo? Por que se mostra tão amável? Está até parecendo aquele pelo qual um dia eu me apaixonei. Disse-me que queria mudar porque as crianças precisavam dele e por estar mais tempo em casa estava se apegando a elas. Vale a pena dizer que lá ele voltou a beber, fato que me deixou muito preocupada. Mas, como estava bem controlado e continuava gentil e cheio de atenções comigo, aos poucos fui entrando no clima. Afinal, ninguém é de ferro para passar umas férias daquelas só observando comportamento de marido. Portanto, já o acompanhava em alguns passeios e nesses passeios foi pintando um clima. Uma cervejinha aqui, outra ali. Um passeio pelas lindas praias de um mar azul e infinito. Passeio de bugre pelas dunas brancas. Um petisco de camarão numa barraquinha distante e romântica. Uma semana na casa de praia com toda a família. Era para mais de trinta pessoas. Pura festa e animação. Veio o Natal, veio o Ano-Novo, e tudo foi comemorado em grande estilo. Depois fomos visitar pontos turísticos e históricos, parques, jardins, fazendas e povoados. Cinema, lojas e feiras de artesanato. Excursão para serra, sertões e agreste. A família dele tinha preparado uma agenda incrível. Dividiramse em grupos para melhor nos atender e cada grupo tinha uma programação diferente a oferecer. Eles eram de uma gentileza sem igual. Meus filhos estavam felizes e se divertiam pra valer, na companhia de muitos primos da mesma idade deles e que até então não os conheciam. Era muita animação. Era muita alegria. Meu coração 396
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estava em festa, embora incompleto. Tudo estava tão bonito e convidativo para se viver o amor. Ah, se eu pudesse pelo menos sonhar com uma vida feliz! Quem resistiria a tudo aquilo? Passei a sonhar e a fantasiar. Além do mais, sentia muita falta da vida a dois, em família. Queria tanto ter um marido, um pai presente para os meus filhos. Estava também cansada de sofrer a dor da solidão, de me manter em guarda, de me segurar, de me reprimir. Era estressante, era castrante. Como uma romântica incorrigível, passei a receber e a retribuir as gentilezas de Eduardo, até que ele se encorajou e começou a jogar confetes. Deixei. Começou se sentindo mais confiante e percebeu que eu estava mais aberta para uma conversa. Então veio e me convidou para um passeio, só nós dois. Queria conversar comigo. Aceitei. Fomos para uma praia distante, uma linda praia. Lá, durante a conversa, ouvi propostas muito bonitas e sonhei. Durante aquelas férias estávamos vivendo num ambiente neutro de todas as decepções que eu já havia sofrido, e convivendo com pessoas diferentes e felizes. Os homens daquela família eram muito amáveis com suas mulheres. Eduardo, por sua vez, se sentia deslocado e diferente com relação a mim. Talvez por isso, ele passou a adotar o comportamento dos demais. Para nós era tudo muito novo e tinha um clima de harmonia, que me deixava em plena paz e sonhando acordada. Durante a conversa, estávamos sentados numa cabana e de frente para o mar. Um mar de um azul profundo, que brilhava e se perdia no horizonte. Areia branquinha e macia sob meus pés. Coqueiros que balançavam ao vento. Jangadas que sumiam no infinito do mar. 397
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Gaivotas que cantavam longe e solitárias. Um casal que passeava a namorar. Uma cerveja gelada e todo um clima. E cá, perto de nós, um rádio ligado numa FM qualquer trazia belas canções de amor, que embalavam meu coração cansado e sofrido. Deixei-me levar ao sabor daquela liberdade, das recordações do passado, dos bons momentos já vividos e dos castelos projetados. Fui me deixando viver um pouquinho. Por que negar a mim mesma pelo menos o direito de sonhar? Pelo menos um dia de descanso para o meu coração? Por que negar a mim mesma a esperança de ser feliz? Pelo menos queria sonhar mais um pouco. Mas seria forte o bastante para esquecer tudo de ruim que se passou entre Eduardo e eu? Pensava comigo mesma. Talvez tenha sido só uma fase ruim e que já estava passando. Seria? E, como no dia da serenata, novamente eu comecei a sonhar. Dali em diante, seria tudo diferente? Quantas perguntas sem respostas. Só tentando para ver. Olhava para ele e via uma boa mudança física. Estava mais magro. Uma aparência mais sadia e bonita: não tinha mais o aspecto do alcoólatra e obeso. Estava se cuidando melhor e, por um instante, consegui vislumbrar aquela pessoa do passado, que tanto amei e que tanto me fez sonhar. Relembrei alguns de nossos encontros e um pouco de nossa vida de alguns anos atrás e me emocionei até as lágrimas. Cheguei a vê-lo novamente naquela farda verde-oliva, impecável. Cheguei a vê-lo novamente como um militar alinhado e exemplar. Desde criança, a imagem do militar me fascinava. Acho que 398
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pelo meu jeito de ser, de gostar do limpo, do forte, da obediência, da disciplina, da conduta exemplar. Acho que a imagem do militar me inspirava tudo isso. Mas o meu “militar” tinha fugido a todos aqueles adjetivos. Ele simplesmente me decepcionou em tudo. E pensar que da minha parte havia motivos de sobra para ter sido uma união perfeita, por que tinha que terminar assim tão mal? Eu sabia que tinha perdido meus sonhos, perdido tudo que planejei e não me conformava. Meu subconsciente não aceitava e ali, na minha frente, ainda estava a maquete daquele projeto que fora condenado pelo arquiteto maior: nosso destino. As lágrimas teimavam em rolar pelo meu rosto, mas as contive. Mantive-me por muito tempo analisando tudo em silêncio, pensativa e distante dali. Quando ele falou comigo novamente, assustei-me e voltei à realidade. Mas não queria discutir o assunto, era forte demais para mim. Apenas disse: – Vamos? – Mas assim? Não vai me dizer nada? – O que você esperava? Que me atirasse aos seus pés? – Será que não consegue esquecer? Já te demonstrei que quero mudar... – Aqui, não é, Eduardo. Quero ver quando você chegar à liberdade de sua casa; lá onde você se acha o rei. Por enquanto você está ótimo, é verdade, mas lá, sei que tudo voltará à estaca zero. Não, meu amigo, não dá para esquecer tudo e confiar em você. Sinto muito. Já fiz isso e só me dei mal. Está muito bom assim como estamos. – Não vou desistir de tentar – ele disse. – Tempo perdido. Já conheço seu jogo, não me engana mais. Vamos? Quando chegamos em casa, as crianças correram ao nosso encontro, e uma delas perguntou? – Onde você foi com o papai? 399
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A outra respondeu por nós: – Eles foram conversar seu bobo. Você não entende? – Não! Não quero que eles conversem. Meu pai é ruim e ele briga com minha mãe. Eu tenho medo. Não quero... – Ele não vai mais brigar. Agora ele está bonzinho. Deixa? – disse a outra. Ela já havia percebido a mudança do pai, sem que tivéssemos falado nada. – N Ã O! Não deixo. Ele briga, sim. – Papai não vai mais brigar com mamãe, está bem? – dizia a mais velha. – Não! Não quero – dizia o caçula, agarrado às minhas pernas. Os adultos que estavam presentes, se olharam, disfarçaram e sumiram. Da nossa conversa na praia, ficou um clima de suspense. Mas na segunda tentativa, concordei em pelo menos pensar no assunto. Só que era tão difícil, tinha muito ódio guardado, muita mágoa, coisas que não se esquece nunca, ainda mais assim tão de repente. Não era justo ele me confundir outra vez. Seria tudo artificial, nada daquilo se encaixava mais na minha cabeça. Era apenas pelo clima das férias, não devia me arriscar, já estava tudo mais ou menos acomodado. Para que mexer na ferida? Mas ele, como da primeira vez, continuava a tentar, continuava atencioso, educado, amável, gentil, generoso e romântico. Quem não cede? Quem resiste? Eu cedi. Dei outra chance, mas muito rapidamente me arrependi. Foi um fracasso total. Enquanto lá, tudo bem, mas de volta para casa... Ele não tinha se curado do vício da bebida, nem tampouco do seu mau caráter. Era só fita para a família e uma reserva desleal para com eles. Chegando a nossa casa, tudo dava sinais de que ia voltar à moda antiga. De fato, voltou e um dia as brigas voltaram também e com 400
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maior intensidade. Eu fiquei revoltada e quase maluca quando ele começou, quando ele tirou a máscara novamente. Outra vez ele jogou um balde de água fria nos meus sonhos, na minha esperança. E eu o odiei ainda mais por isso. Tinha pavor até de olhar para aquela criatura e, além do mais, me sentia fraca e ridícula. Foi horrível a decepção que passei. Odiei a mim mesma por aquela fraqueza e estupidez. É ser muito idiota – dizia para mim mesma. As crianças que estavam esperançosas pela nossa união, ficaram mais chocadas e tristes quando viram que ia começar tudo de novo. O infeliz só queria deixar pronto o terreno para que eu nunca pudesse desmascará-lo perante seus familiares, pois lá, como disse antes, ele se comportava com a maior dignidade, não só comigo, mas com todos era a mais decente das criaturas. Era bom marido, bom filho, bom irmão, bom tio, bom sobrinho, bom primo, bom amigo. Amigo dos empregados domésticos. Tratava a todos com educação. Era outra pessoa, sem sombra de dúvida, e fazia de tudo para ser bem aceito no seio da família. Em nada se parecia com o doente mental com o qual eu convivia. Eu ficava impressionada com a facilidade com que ele se transformava se camuflava. Lá, ninguém podia imaginar o caso de Laura, o caso do seresteiro, da não-amamentação, do casamento com separação de bens, das camas separadas e de todas as negações que eu já tinha passado ao lado dele. De todo, o desajuste daquele homem; não dava para imaginá-lo diferente daquele que eles viram. Deixou uma boa imagem como pai, como marido e cidadão. Isso ficou tão bem marcado que depois, quando eu tentei falar a verdade para a família e abrir o jogo, não achei o menor apoio. Simplesmente as pessoas não acreditavam mais em mim. E ele ainda ligava às escondidas pra me difamar, dizendo que eu era uma louca, 401
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uma pobretona com mania de grandeza e que ele sofria muito por ter se casado com uma pessoa de conduta tão duvidosa. E o pior era ter que viver se segurando para levar uma vida normal, porque eu em nada contribuía para o casamento dar certo. Diziam para ele: – “Por que você não se separa, se sua mulher é assim tão ruim?” E emendavam: – “Se ela tem duas caras, deixe-a, porque aqui nos pareceu uma pessoa decente e muito consciente.” Ele dizia: – Que nada, aquilo era só fingimento, para enganar toda a minha família. Imagina se eu vou me separar e deixar meus filhos nas mãos de uma pessoa desse nível; ela não é uma boa mãe. Sequer se importa com a casa. Se não sou eu a cuidar de tudo, não sei o que seria... Ela não sabe o que quer da vida: é uma pessoa perdida. Fazia-se de vítima e mentia muito. Mentia sobre meu jeito de ser, dizia que eu nunca quis trabalhar, nunca ajudava em nada. Enfim, distorcia tudo. Quem não o conhecia tinha até pena dele. Fiquei desacreditada e difamada, pois ainda levei a fama. Dizia a boca grande que eu era daquele jeito com ele porque meu negócio era com mulher e não me relacionava bem com os homens. Tanto ele fez depois, que o levei novamente à justiça. Veio a responder processo por calúnia, difamação e outras coisas, mas não se separava de mim. Difamava-me, falava coisas horríveis. Eu era a pior pessoa do mundo. Mas não se separava. E mais uma vez eu voltaria a tentar a separação.
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52 Tentei a separação pela terceira vez (As regras)
D epois das férias e da reconciliação frustra-
da, entrei num total desequilíbrio, fiquei completamente desorientada, queria morrer, mas não ia cometer suicídio, pensei então: Vou-me embora para bem longe com meus filhos, onde ele nunca possa nos encontrar. Ia, mas cadê o dinheiro? Vou matar este infeliz. Não. Não mereço mofar numa cadeia, a lei ao me julgar não consideraria meus motivos. Vou tentar a separação novamente. Tentei, ficou só na tentativa, em vão sofri tudo de novo e acabei desistindo. Mas, antes de desistir, fiz de tudo e me lembro que era muito estranho o que acontecia quando da minha peleja. Apelei para a lei, justiça e igreja; polícia e exército; família e amigos. Mas nada, nada tinha uma resposta rápida, nada era de imediato. Dentro das leis então foi onde mais encontrei dificuldades. Tudo era de uma morosidade enervante. 403
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O engraçado é que, na hora de casar, tem lei para tudo, tem lei que resolve tudo. Mas depois, quando você precisa se separar, o que ouvimos até parece piada com relação às leis que definem o ato do casamento. E é no cumprimento destas leis que muitas mulheres perdem a vida. Que coisa mais estúpida, às vezes, são as leis. Se houvesse mais liberdade para a desistência de um casamento, como há na hora do SIM, seria bem mais interessante. A lei deveria dizer: “Vocês são adultos, maiores de idade, responsáveis e civilmente capazes para se casarem hoje, mas precisam saber de antemão que, se o casamento não der certo, e se tornar algo perigoso, cada um deverá devolver a liberdade ao outro, sem brigas, sem agressões. Cada um é livre para se casar hoje como também é livre para obter a separação, caso desejar num futuro próximo ou distante.” Isso sim deveria constar no acordo pré-nupcial, nas leis que regem o casamento, como também na doutrina da igreja. Tudo deveria ser bem claro e transparente no ato da assinatura; porque quantas vezes fazemos algo e nos arrependemos depois? Por que não prever que isso é perfeitamente possível também no casamento? É uma grande hipocrisia achar que não. O relacionamento é complicado, principalmente entre um homem e uma mulher, que são seres diferentes, que sentem diferente, que pensam diferente. A tradicional frase “ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE” deveria ser o contrário. “ATÉ QUE A VIDA OS SEPARE” seria mais correto e menos demagógico, pois é na vida de tormenta que a real separação acontece. A separação dos objetivos e dos sentimentos. Portanto acho terrível que seja o extremo da morte que decida sobre a felicidade do casal, sobre a edificação da família, pois a vida não é uma eterna inquisição. 404
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Se houvesse este pré-acordo, garanto que o mundo seria bem mais alegre, porque o que tem de mulher (e por que não dizer de homens também?) sofrendo com um mau casamento, só Deus é capaz de contar. E maior parte desse sofrimento atribui-se ao cumprimento de regras e de leis que já não condizem com a atual realidade do matrimônio. Quem nega isso? Será que com toda esta evolução ainda sejamos obrigados a conviver com essa falsa realidade? Vivemos apegados a normas tão antigas que nos impedem de direcionarmos nossa visão para o outro lado, pois as leis podem ser mudadas ou acrescidas de novas regras que se harmonizem melhor com a evolução da humanidade. Por que não fazer isso? Já que o ser humano precisa delas atadas ao seu pescoço, para se orientar? As atuais leis do casamento são muito contraditórias, visto que aconteceu uma grande mudança no comportamento homem e mulher. Aconteceu, porém não houvi base, preparo cultural nem legislativo para tanta mudança, por consequência o relacionamento só tende a piorar. O homem talvez por se sentir desfocado em certas situações, esta se tornando menos responsável pela família e se valendo cada vez mais da violência para resolver seus impasses. Há, portanto uma grande tendência em culpar o homem. Em criar leis e mais leis para punir o homem. Será essa a providência a ser tomada? Será esse o caminho a ser seguido? Não. Isso só está gerando mais demanda entre os dois, levando-se em conta os valores atuais e sem esquecer que estamos falando de sentimento, de afeto e compatibilidade. Tantas mudanças aconteceram e isso só gerou mais conflitos na vida do casal. Daí a importância da transparência e da objetividade das 405
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leis, dos ensinamentos da igreja e de como nós, os pais, criamos e formamos nossos filhos. Isso sim deve ser visto com mais atenção e responsabilidade. Sabemos também que a maioria das mulheres entrou nesta sem pedir, ninguém chegou e lhe perguntou: – Você quer ser feminista ou feminina? Moderna ou conservadora? Não, ninguém perguntou se todas nós queríamos essas mudanças. Mas elas chegaram e foram invadindo nossas vidas, mudando hábitos e ensinamentos. Até aí, tudo bem. Que haja mudanças, desde que elas venham acompanhadas de seus ajustes. Temos convivido com elas sem antes ter havido uma preparação. Ainda hoje, no que se refere ao casamento, principalmente para a mulher, parece que é a sentença final. Será que a mulher só evoluiu, só é inteligente para trabalhar, para conduzir um mundo inteiro nas costas se preciso for? Mas não é livre nem inteligente para decidir se seu casamento foi um erro e sair fora dele sem tantos aborrecimentos? Certos casamentos são piores que uma cela de cadeia. Há homens que oprimem suas mulheres até levá-las à loucura ou à morte. Elas morrem por desgosto, por desespero, por desencanto e desilusão. O apoio que elas encontram na lei é tão pequeno, que acabam caindo na mais baixa insignificância e se perdem cada vez mais. Em toda porta que elas batem alguém lhes fala mui convictamente de certas REGRAS a serem cumpridas. Sempre me pergunto: Por que é tão difícil o descasar? Por que nos sentimos tão ridicularizadas e culpadas quando nosso casamento não dá certo? Por que a culpa recai sempre sobre a mulher? Será que é porque ela tende a esconder mais a podridão que 406
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existe por trás de certos casamentos? Por que sofremos tanto quando precisamos de ajuda neste sentido? Por que nunca encontramos um apoio rápido e decisivo? Por que é tão demorado para se obter uma resposta da justiça? Quando começamos a procurar a dissolução de um casamento, por mais errado que ele esteja você ainda ouve coisas que são cômicas e patéticas. Dizem para você:
– O casamento é indissolúvel, segundo as leis de Deus. Volte para casa, tente outra vez. Você precisa ser mais humilde e aprender a perdoar. Tenha mais paciência, pois o casamento é feito de doação e sacrifício (a Igreja). Mas o padre não se casa para viver na prática essas renúncias que a igreja prega. – Tente mudar, ser mais tolerante, mais flexível; a mulher deve ser submissa ao marido (o amigo da Igreja; só que o casamento dele está apodrecido e escondido). – É feio uma mulher separada. Ela fica mal falada (a amiga íntima, que vive mal no casamento, mas tem um amante bem pertinho de casa). – Se você sair antes da justiça decidir, perde direito esse, direito aquele, perde inclusive a guarda dos filhos (a Lei). – Não podemos prendê-lo, não houve morte (a Polícia). Não seria mais coerente prender antes e evitar o crime? – Não dá para interferir; foi só uma briga de marido e mulher, não fere as leis do quartel (o Exército). – A culpada é você. Para que foi se separar do marido? (A Família, quando não quer ajudar aquela mulher.) E por aí vai. É um sem-fim de restrições, cobranças e proibições, que a mulher fica paralisada de medo. Ela vai lutar contra quem? Pedir ajuda a quem? As regras precisam ser respeitadas, mas a vida não. A vida de uma mulher aflita, de uma pessoa em pânico não, não merece atenção; todos estão cumprindo a lei e as orientações da Igreja ao “pé da letra”. 407
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E para onde ela vai agora? Para um mundo triste e escuro, o qual ela não pediu. E, neste mundo triste, muitas mulheres morrem. E quando elas morrem, aquele marido paga pelo crime? Não, não paga e é a maneira mais fácil de matar. Esse tipo de crime não está previsto nas leis, mas deveria estar. Para ele não haverá julgamento. Não haverá tribunal do júri. Para todos os efeitos, ele (o marido) não a matou. Ele não deu um tiro nela, não deu uma paulada certeira e mortal. Não usou arma branca nem atropelamento. Não a estrangulou, não usou veneno químico. Não fez nada disso. Apenas usou o meio mais letal para o ser humano. Tirou-lhe a liberdade de viver, reduziu a zero sua autoestima, destruiu seus sonhos, sugou toda sua energia, fez dela um trapo. Ele usou como arma, o medo, a opressão, a agressão moral, a humilhação, a angústia, a dúvida, o constrangimento, a desilusão, a solidão, a não-realização de seus planos. Ele só usou essas armas para matá-la. Mas isso é crime perante as leis? Não. Há prova material do crime? Não, não há, portanto... Ela morre porque a justiça, a sociedade, a igreja, de certa forma, também determinaram isso. Determinaram com suas leis, ensinamentos, preconceitos e regras ultrapassados. Mas aí fica tudo bem. Ela (a mulher) simplesmente morreu, onde está o culpado? Todos nós sabemos onde ele está. Está muito bem escondido e camuflado atrás da figura de um porco machista. Não sou feminista, como já disse. Muito pelo contrário, adoro ser feminina. Por ser feminina e romântica é que não aceito esse jogo sujo e nojento. Sei que nada me daria mais prazer e alegria do que poder exercer livremente todos meus caprichos de mulher, todos meus dotes femininos. Nada me deixaria mais feliz. Mas como ser mulher 408
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e feminina com tantos “homens” a nos impedirem? Todas as mulheres que brigam e lutam por uma vida digna no casamento devem saber o quanto é importante poder amar um homem que esteja à altura desse sentimento. Porque é o amor da mulher que constrói o mundo; que edifica a família; que conduz o homem e que o impulsiona para frente. Mesmo sabendo disso, por que a maioria dos homens não se permite serem amados? Por que eles se fazem tão repulsivos? Do que eles têm tanto medo? É tão bom, principalmente para a mulher, ter a quem amar. Alguém a quem possamos nos dedicar com tranquilidade, sabendo que esta dedicação tem um endereço certo: um coração bom e generoso. O coração daquele homem que conservou em si a sensibilidade para entender e retribuir o carinho e o amor. Então, por que não ensinar desde cedo, aos nossos filhos, que o casamento é uma coisa bonita e que precisa ser vivida de forma sadia e livre? Por que não ensinar aos nossos filhos a serem homens sensíveis e amáveis. Ser sensível e amável não tira a autoridade nem a masculinidade de nenhum homem. Muito pelo contrário. Mas a maioria dos pais hoje ensina para os seus filhos que é: bateu, levou. Ensinam a intolerância, o egoísmo e o machismo. Devemos ensinar, desde cedo, que, se o casamento não deu certo, cada um procure, de forma educada, oferecer uma nova chance para quem não está se sentindo bem, mas fazer isso sem culpa e sem cobrança. Ensinar que nunca devemos culpar o outro pelos nossos erros, nem tampouco roubar o mérito de ninguém. Ensinar que Deus não exige de nós tamanho sacrifício, pois não somos onipotentes. Ensinar que uma má convivência pode levar ao ódio ou a 409
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consequências piores e não a edificação de uma família. Ensinar que não é justo que um casal que vive se matando, se estrangulando, seja obrigado a permanecer junto, porque assim determina as leis e a Igreja. Ou porque eles aprenderem que separação é coisa feia. Ensinam-nos que separação é coisa feia, mas não dizem que um casal que não se entende faz coisas bem piores. Muitas vezes mais danosas do que a própria separação. Ensinar que coisa alguma se edificará entre duas pessoas que se odeiam, que se detestam, que se mutilam, que se agridem o tempo todo. Ensinar que em cima de uma imagem negativa, nada de bom se constrói. Ensinar que é melhor uma boa separação, que um mau casamento. Ensinar que não devemos nos deixar iludir por ensinamentos feitos e direcionados para arrebanhar e manter sempre crescente o número de adeptos, que muitas vezes, cegos e carentes de uma resposta, se deixam levar por promessas de mudanças que nunca virão. Ensinar que o amor, a união e a boa convivência de um casal estão baseados principalmente na verdade, na convicção e na transparência. Bem, mas mesmo sabendo eu de todas essas verdades, não podia pô-las em prática, pois não dependia só de mim; o outro lado não sabia delas, não lhe ensinaram; portanto, ele não sabia. E deixei o lixo crescer debaixo do tapete até virar esta montanha que me soterrou. Mas continuava a preparar a papelada para a tal separação. Aí surge outra coluna de itens engraçados, que vou ter que respeitar. Vem a separação de corpos (parece coisa de IML). Vem a espera pelo levantamento dos bens. Vem a espera pela notificação do reclamado. 410
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Vem a espera para a primeira audiência (e que ainda leva o nome de audiência de conciliação). Vem a questão das testemunhas, que é o mais desagradável. Espera isso, espera aquilo. Espera o divórcio em si, que demora um horror. A requerente às vezes larga tudo e vai viver de forma irregular. Não é mais casada, nem solteira, nem viúva, nem divorciada, mas fica presa do mesmo jeito. Agora, ainda seguindo a nossa cultura, se é o homem o ofendido, o interessado na separação, se é ele quem está magoado ou até mesmo interessado em outra pessoa, aí, sim, tudo muda de figura, é tudo resolvido rapidamente. Pelo próprio. Ele não espera o divórcio nem respeita regra alguma, larga mulher e filhos chorando sem saber por que estão sendo abandonados. Larga despensa vazia e contas a pagar. Larga mulher doente e inválida. Larga filhos pequenos e adolescentes. Larga tudo para trás, como entulhos imprestáveis. Não existe força para detê-lo quando ele resolve largar um casamento. E ainda há aqueles homens que não têm coragem de sair. Então se matam, cometem suicídio, mas deixam cartas justificando seu ato e culpando a mulher pela sua morte, deixando esse peso pra ela carregar. E há os que se matam e a elas também para que elas não possam desfrutar de sua liberdade. São desajustes que não conseguimos mudar, pois isso vem da criação, vem da infância. Daí a importância de como um pai e uma mãe educam seus filhos; a importância do exemplo, a importância de estarmos sempre atentos a toda e qualquer necessidade de conversarmos com um filho, de nunca deixar em branco uma situação que exija atenção. 411
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Quando digo “atentos”, não estou dizendo INVASIVOS. A invasão inoportuna é pior do que a omissão. Desaprovo conversas muito francas, muito abertas, muito diretas com uma criança. Desaprovo o amadurecimento forçado. O amadurecimento precoce. Sempre reprovo aquelas cenas em que os pais invadem de forma vergonhosa a privacidade de uma criança, de um adolescente, de um ser que tem vida própria. Às escondidas, reviram aposentos, mexem em gavetas, bolsos, bolsas e mochilas. Escutam atrás das portas e ouvem conversas pelo telefone. Hoje, com o celular e a internet, é ridículo o que eles fazem com a falsa ideia de que estão “controlando e educando” os filhos. E depois ainda dizem: “– Não sei onde foi que errei. Não dou mais conta deste menino. Vou entregá-lo para as autoridades, vou levá-lo para o psicólogo.” Quem precisa da psicologia são os pais, estes, sim, deveriam recorrer aos profissionais para saber como educar, já que seus pais também não foram capazes... E assim por diante. Ora! Não seria bem mais simples conversar claramente, sem exceder nem omitir, mas respeitando cada idade, cada fase? Não proibir e sim conscientizar. Não escancarar e sim acompanhar. Acompanhe, oriente, ajude, mas permita que a criança viva. Não faça do filho um refém de suas frustrações. Não projete nele tudo que você não “teve”. É a melhor forma para que, amanhã, quando adulto, essa pessoa não venha destruir a vida de muitas outras pessoas.
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53 Não teve separação inda não foi desta vez que saiu a separação A na forma da lei, pois com tanta demora acabei largando tudo pelo
meio do caminho novamente. Quando fui convocada para a primeira audiência, já tinha se passado tanto tempo que perdi a vontade de ir. Larguei tudo pela metade. Só tive prejuízo e mais constrangimento. Fiquei enfastiada de tanto relatar porcarias para os: advogado, juiz e delegado, era a terceira vez que isso acontecia, a terceira e última, pois não voltaria a tentar esse recurso. Pedia a Deus força para continuar vivendo. Aquilo estava muito difícil e eu tentava desesperadamente encontrar um sentido de viver. Adorava trabalhar, mas não via condições nem razões para isso. Eu passava os dias, sentada num sofá, olhando para o teto. Dentro de casa eu não podia mover uma palha sem a permissão dele. Não tinha direito de tocar em nada. Em situação normal eu gostava muito de cuidar de minha casa. Por causa deste fato, um dia me voltei para isso novamente. Já que não podia trabalhar e estava completamente sem dinheiro, até para cuidar de mim, resolvi me dedicar às tarefas domésticas para preencher meu tempo. Mas nem isso eu pude fazer em paz, porque ele me atacava, perturbava, criticava o tempo todo. Ele desvalorizava tudo que eu fazia. Distorcia o sentido das coisas e tudo era motivo para me magoar e humilhar. 413
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Se eu cuidava bem da casa e das crianças, era loucura, mania de limpeza. Pra que viver “lambendo” casa ao invés de ir trabalhar para ganhar dinheiro? Se eu procurasse fazer tudo bem feito, bem bonito, era porque queria manter as aparências, queria ser boa, metida a besta. Se eu me mostrasse inteligente, dinâmica e resolvesse alguma coisa, sem consultá-lo, era a sargentão, a sabe-tudo. Se eu recebesse bem a um amigo, estava me exibindo para os homens. Se eu me aproximasse de uma mulher e fizesse amizade, ele já dizia que era para fazer fofocas. Se a minha família me acolhia bem, era porque queriam se meter em nossas vidas. Se eu tentasse conviver com qualquer outro grupo de pessoas, dizia que elas só queriam me explorar, tirar proveito. Se eu matinha distância e as pessoas se afastavam, dizia que era porque ninguém gostava de mim e que eu ia morrer sozinha. Se eu tratasse bem uma pessoa, já me taxava de bajuladora. Se eu mantivesse uma conduta mais altiva, era porque só sabia dar ordens. Se eu conversasse com alguém da minha conzinha, estava me misturando, era falta de hierarquia. Se eu fizesse um prato mais fino, era porcaria; aquilo não era comida para ele. Se eu dissesse “não” para um filho, ele dizia sim imediatamente. Se eu os repreendesse com mais severidade, logo ele dizia: – Liga não, ela é louca, não sabe o que diz. Não suportando mais aquilo, larguei a administração da casa e me encolhi novamente. Meus filhos estavam ficando cada vez mais divididos e sofriam muito por me ver passar tanta humilhação. Mas o pior drama foi quando vi o que tinha acontecido com eles. Eles tinham perdido a infância, os sonhos de criança e a adolescência prometia ser traumática. 414
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Minha filha, já adolescente, vivia prisioneira como eu, ou até pior, pois tinha medo dele e de me causar mais aborrecimentos. Ele tinha um ciúme doentio dela, pois achava que todo homem tinha uma cabeça pervertida, como a dele. E ao filho, na pré-adolescência, incentivava a ser descortês com as garotas. Vivia agora um sofrimento maior, pois tentava desesperadamente defender meus filhos, mas era impossível e um pouco tarde. Ele era o demônio personificado, disso eu não tinha mais dúvidas. Nunca conseguiria me livrar dele. Eu sempre tive uma conduta muito bem definida de como criar meus filhos. Mas tudo foi por água abaixo. Ele me cercava de todos os lados. Tornei-me então uma mãe fraca e sem definição na criação. Pelo fato deles já viverem tão oprimidos, quase sempre dizia “sim” para tudo, ou nunca sabia como conduzir uma situação com medo de ferir ainda mais os sentimentos deles. O cômico é que depois de tudo isso e muito mais, muitas pessoas ainda se mostram contra a separação e ainda dizem que é por causa dos filhos que o casal deve permanecer casado, para dar “bom exemplo”. Santa ignorância. Um erro monstruoso, pois é justamente por causa dos filhos que a separação tem que ser mais urgente, quando ela se fizer necessária. Poucas pessoas fazem ideia do poder devastador que tem um casamento errado. Ninguém é capaz de avaliar o tamanho do buraco, do vazio que fica na cabeça de uma criança que vive esse drama na família. Outros dizem que o filho precisa da presença de um pai. Pois é. Mas isso também é mal interpretado e usado para acobertar muitos bandidos com nome de pai. Discordando plenamente desses ensinamentos feitos sem critério de emprego, pois como se diz também que o “pai é o exemplo para o filho”, então me pergunto: 415
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Como se sairá o filho criado assim? Imagino quantos filhos são gerados dentro de casamentos desequilibrados e como desequilibrados eles seguirão gerando mais e mais seres humanos indesejáveis. Conheço muitas mulheres que, sozinhas, criam e criaram filhos, de forma exemplar, como também conheço alguns homens que fazem e fizeram o mesmo. A questão não é ser o homem ou a mulher quem vai criar esses filhos depois da separação e, sim, QUEM É ESTE HOMEM e QUEM É ESTA MULHER. Isto sim é importante. Fico pensando, hoje, quantos anos faz que meus pais se separaram e lembro da dignidade com que fizeram aquilo. Só posso dizer que cada dia que passa cresce mais o meu respeito por eles, porque não dá para pensar o que teria sido de nossas vidas se eles tivessem enveredado pelo caminho da briga e da desordem. Não dá nem para imaginar ter vivido na minha infância o que meus filhos estão vivendo hoje. Por isso digo e sempre direi: não é a separação que traz problemas para os filhos e sim a forma como ela acontece. Porque tem sempre um lado que complica as coisas, por puro egoísmo e desrespeito. Quando duas pessoas se propõem ao casamento, isso não é feito de pleno acordo? Por que, na separação, não acontece assim também?
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54 Pesquisando comportamento comportamento daquele homem me impresO sionava profundamente. Jamais conhecera outra pessoa daquele jeito.
A essa altura dos acontecimentos, já sabia que ele era uma pessoa complexa e extremista. Era terrivelmente egoísta, mesquinho, explorador, negativo, desconfiado, dissimulado, depressivo, angustiado, mal agradecido, opressor, ditador, dominador, invejoso, invasivo e com mania de perseguição. Sob o efeito do álcool, soltava todos esses monstros que viviam presos dentro dele. E, quando não estava bêbado, vinha o outro lado que era igual ou pior. O lado do mau humor, da agressividade, da intolerância, do isolamento... Dizem que todos nós temos dois lados, um bom e o outro ruim, mas os dois lados dele eram um pior que o outro. Vivia tão impressionada com aquilo, que comecei a investigar a vida dele, porque, na realidade, pouca coisa eu sabia dela. Ele escondia tudo que podia, não sei por que, mas escondia. Pouca coisa eu sabia do seu passado. Tudo que vi, naquelas férias, não foi real, foi só uma boa dissimulação da parte dele. Enfim... Comecei a investigar a vida daquele que um dia eu havia elegido para ser a pessoa mais íntima da minha vida. Perguntei daqui, dali e, aos poucos, fui descobrindo como tinha sido seu convívio familiar, sua infância, sua adolescência, a convivência com os amigos e das primeiras namoradas. Conversei com várias pessoas da cidade onde ele foi criado. 417
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Então alguns fatos me chamaram muito a atenção e comecei a entender porque aquela pessoa era tão fora do padrão. Disse-me alguém que ele perdera o pai quando a mãe ainda estava grávida dele. Fato este, e o único, que eu já sabia, pois ele sempre contava isso com ares de autopiedade. Disse-me também a tal pessoa da tragédia que foi para a mãe grávida. Sentiu muito a viuvez, a perda do marido, pois era totalmente dependente dele, e com isso não se importou muito com o filho que carregava no ventre. Cobriu-se de luto fechado e caiu numa depressão durante todo o resto da gravidez. Quando a criança nasceu, e de um parto muito difícil, ela ficou doente e totalmente abatida. A criança foi entregue às tias, enquanto a mãe tentava se recuperar. Mas nesse intervalo, veio a falecer também o pai dela, que havia substituído e em muito a falta do marido. Foi outra decepção, outro fato difícil de superar. Enquanto isso ele ficava tempo numa casa, tempo noutra, de um lado pro outro, de mão em mão. Quando ela, a mãe, ainda sofrendo as perdas do segundo luto que carregava, veio o terceiro: certa noite, durante uma chuva muito forte, caiu um raio, matando uma de suas filhas e derrubando parte da casa em que moravam. Outra tragédia. Outro abandono. Foram perdas grandes e muito próximas uma das outras. Segundo me contaram, ela sofria muito e se entregava a cada tragédia, ficando muito perdida para enfrentar a vida. Por consequência disso, ela também não cuidou dos bens da família, deixando entregue nas mãos de empregados, sem direção alguma. E os mesmos se encarregaram de depenar rapidamente o patrimônio, deixando a viúva e os filhos praticamente na miséria. Enquanto isso, Eduardo crescia sem referência e, com certeza, se sentindo um rejeitado, pois a mãe, envolvida com suas próprias tristezas, foi deixando ele de lado, esquecido, abandonado. 418
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Mas o pior, eu acho, aconteceu depois. Quando a mãe se refez e tentou voltar à vida normal, ele já estava, pelo que consta, com sete anos de idade e naquela de vai para as tias, vai para os avós; vai para um lado, vai para o outro. Quando a mãe assumiu o filho novamente, foi com um grande sentimento de culpa no coração. De repente, voltou-se para aquela criança que estivera abandonada e passou a lhe dar uma proteção exagerada. De repente, ele passou a ser o centro das atenções e começou a ser tratado como o coitadinho, o pobrezinho. Todos só queriam lhe fazer as vontades. As tias, também viúvas, dispensavam a ele um “carinho” além do necessário, um carinho exagerado. E assim, ele passou parte de sua vida convivendo mais com as mulheres da família do que com a presença masculina. E todas elas só queriam lhe paparicar, uma mais que a outra. E o “pobrezinho” foi crescendo, sem um pai ou uma mãe de pulso forte para lhe ensinar que na vida há limites. Então, do menino inexpressivo, passou a ser o todo-poderoso, o queridinho, o pode tudo. E, quando homem feito, acostumouse a levar as coisas no peito e no grito. De quando ainda solteiro e morando com a mãe, a coitada tinha que levantar altas horas da madrugada quando ele chegava da rua. Levantava para lhe preparar o prato, mas, se ele não gostasse do que estava pronto, tinha ela que providenciar outra comida. Se resolvesse levar os amigos fora de hora para casa, estava tudo bem, levava e ninguém podia reclamar. Tornou-se um rapaz arrogante, abusado. Quando começou a namorar, foi sempre agressivo com as garotas, nunca respeitando os limites. Aos 18 anos, ingressou no exército e lá ele encontrou regras e limites, o que fez com que nunca gostasse da farda. Dizia não gostar de ser militar. Era revoltado com as normas 419
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e regras impostas. Mas, dentro de uma farda, era o tal, o “brabão”, o mandão, que aterrorizava os que estavam sob seu comando. Depois do meu trabalho de pesquisa de comportamento, pude me acalmar um pouco e até entender melhor o seu desequilíbrio. Encontrei algumas respostas e sei o porquê dele não se relacionar bem com as mulheres e nem confiar quando o assunto é dinheiro. Só não dava para passar por cima de tudo e conviver de forma espontânea com uma pessoa assim e que não aceita ajuda. Então, apesar de ser leiga quando o assunto é psicologia, sinto-me no dever de dizer, embora de forma metafórica, que, antes do casamento, deveríamos conhecer melhor, investigar melhor como foi a CONSTRUÇÃO daquela pessoa com a qual estamos envolvidos, pois é, com certeza, na elaboração deste projeto que encontraremos todos os erros e acertos de uma criação. Estou dizendo alguma novidade que muitos já não disseram? Não, não estou. Apenas chamo a atenção para esta verdade tão esquecida e pouco respeitada.
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55 Um presente de Natal para mim sentindo uma sensação de leveza na alma, E pelas descobertas que havia feito, fui tocando a vida e procurava me
livrar da culpa e da obrigação de resolver um conflito que não era meu. Não queria mais brigas. Tinha agora no meu peito um sentimento de dó e aceitação. Dizer que eu vivia completamente triste e desiludida, acho até redundância, mas como o assunto tem sido tristeza... Dezembro chegou e, com a aproximação do NATAL, tudo estava mais triste para mim. Porém, mesmo com um coração triste, de vez em quando, muito de vez em quando, uma pequena esperança ainda surgia e eu, de tanto pensar, via uma luz que clareava minha mente. Uma fenda que se abria e por onde eu podia ver o outro lado; e, olhando por aquela fenda e vagando sem rumo, senti que ainda vivia em mim alguma esperança. Lembrei-me de que, por muito tempo, fui amante da arte, da vida, dos sonhos e da justiça. Será que não encontraria no meu passado alguma força que me libertasse daquela tristeza que estava me consumindo? Afinal, sou uma libriana e libriana que se presa não se deixa morrer facilmente. Os nascidos sob este signo não morrem sem lutar. Custam a reagir, é verdade, mas não se entregam e não se deixam vencer pela injustiça. Por isso sentia que algo ainda resistia dentro de mim e me dizia: “Tente outra vez! Deve haver uma saída! Não morra agora! 421
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Você vai conseguir! Você merece ser feliz! Olha para o outro lado! Olha para frente!” Aquela voz me falava forte e objetivamente; e me dizia também: “Ignore esta criatura, isola, risque de sua mente, apague de sua memória. Você sabe como fazer isso. Ele se sentirá cada vez mais fortalecido enquanto te ver chorando.” Ele é doente, não tem noção do quanto magoa, do quanto destrói. Ele vai exigir sempre mais e mais: é um poço sem fundo. Portanto, não chore mais, seja altiva, seja superior. Lembra daquela menina alegre e sonhadora? Volte a ser ela. Aquela menina ainda existe dentro de você. Lembrei. E lembrei também de um ex-namorado. Coisa de adolescente. Namoro curto, minha mãe não gostava do rapaz. Como estaria ele agora? Esta lembrança dele, de certa forma, não veio por um acaso. É que uns meses antes da morte de meu pai, ele, o ex-namorado, me havia telefonado. Como? Explico. É que certo dia, numa dessas coincidências da vida, durante uma viagem, ele conversando com uma pessoa descobriu que a mesma me conhecia e que era minha amiga há anos. E como era de se esperar, ele começou a indagar. Ela falou muito de mim e lhe disse inclusive que meu casamento era um fracasso. A minha amiga lhe contou muito do que sabia. Daí ele teve a ideia de telefonar algum tempo depois. Naquele dia, quando ele me ligou pela primeira vez, não se identificou de imediato. Nem eu reconheci sua voz, porque anos haviam se passado desde a ultima vez que nos vimos, quando ainda éramos muito jovens. Mas durante a conversa ele se identificou e eu fiquei surpresa e sem graça, pelo fato dele saber tantas coisas ao meu respeito. E já naquele primeiro telefonema se mostrara muito interessado em me ver. 422
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Depois desse primeiro contato, ele continuou ligando e eu recebendo suas ligações. Conversávamos muito. Estava me deixando cortejar por aquela pessoa que vivia distante e fora do meu mundo de conflitos. Ele mostrava muito interesse, de forma sutil e paciente, e já estava ciente de tudo, inclusive dos meus traumas e fantasmas. Mesmo sabendo que eu não estava de fato separada, ele insistia que deveríamos nos ver, que deveríamos nos dar uma nova chance. Ele também estava só. Mas eu ia enrolando e levando na conversa. Como saber se não estaria cometendo outro grande erro? Eu não tinha vontade de me comprometer, mesmo assim nossas conversas estavam me fazendo bem. Mas foi bem nesse período que perdi meu pai e depois veio a gravidez. Com estes fatos tão sérios desisti daquela conquista, inclusive deixei de falar com ele. Não recebia mais seus telefonemas e também fiquei embaraçada pelo fato de estar grávida, naquela minha situação de casada e separada. Ele não iria entender nada. Além do mais não macularia a já existência de meu filho. Parei, desisti, não recebia mais seus telefonemas e também não dava explicações. Ele ainda insistiu, tentou muito, mas foi inútil. Eu estava fechada novamente e, por fim, ele desistiu. Mas deixou recado que, se eu mudasse de ideia, ligasse para ele. Não liguei. Parei. Tinha agora outro objetivo, que era minha gravidez, que era meu filho, e não queria mais nada para me confundir a cabeça. Então, alguns anos se passaram e como eu estava falando, mais um NATAL estava chegando. Dezembro é festa, alegria, família, presente, enfeite nas casas e nas cidades. Mas nossa árvore de natal continuava esquecida na despensa numa caixa empoeirada, e eu não queria montá-la. 423
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Eu não queria natal, não queria nada que me lembrasse uma família feliz. Não abriria aquela caixa, não montaria aquela árvore e nem enfeitaria minha casa. Mas as crianças não se conformavam e não me davam trégua. Queriam a árvore. Insistiram tanto até que eu não tive mais desculpas. – Está bem, vamos montar esta árvore! – disse finalmente. – OBA! – gritaram Pegamos a grande caixa na despensa, limpamos a poeira e realizamos a tarefa. Nela colocamos bolinhas coloridas, papai Noel, renas e trenós, fitas e sinos, gnomos, fadas e uma linda estrela bem no topo. Por fim, ligamos o pisca-pisca e foi aquela alegria. Pronto, estava criado o clima para aquelas cabecinhas puras e inocentes. Como eu as invejava. Enquanto isso, elas sonhavam, faziam planos para o Natal, formulando seus pedidos para o papai Noel. Cantavam e pulavam ao redor da árvore. Contavam uma para a outra, o que queriam ganhar. Enquanto elas viajavam, eu permanecia ali e olhava com tristeza para aquela árvore que outrora tanto encanto me trazia. Mas agora ela estava ali, triste e sem brilho. Meu vazio era tão grande que ela já não me dizia mais nada. Não conseguia captar dela sequer um pequeno sonho. Só olhava para ela e ainda tentava encontrar a magia do clima de Natal. Mas como encontrar? Ela não me transmitia mais nada, nem mais uma palavra. Ela não falava mais comigo. Em outros tempos, aquela árvore que brilhava na sala, me fascinava. Ela me falava de paz, aconchego, amor, família, perdão, esperança e vida nova. Mas agora não. Ela estava ali, com todos aqueles símbolos 424
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pendurados, porém sem sentido algum para mim. Era tudo inexpressivo; apenas um amontoado de matéria insignificante e sem vida, tal e qual como eu me sentia. Um ser inútil. Percebi então o quanto precisamos de nossos sonhos, de nossas lendas e castelos para poder viver. Não viveremos bem, não seremos completos, se não tivermos direito ao amor, à fantasia, aos sonhos e à liberdade. Como poderemos viver sem isso? Gostaria de saber. Olhava para aquela árvore e sentia uma tristeza, um vazio. Um calafrio percorreu meu corpo e uma enorme sensação de abandono tomou conta de mim. Senti falta de um abraço forte e carinhoso naquele momento, como nunca senti antes. Um abraço onde eu pudesse encontrar toda a minha alegria perdida. Um abraço que me dissesse que ainda estava viva. Um abraço que me fizesse soltar tudo que estava encolhido e preso dentro de mim. Todos esses sentimentos me queimavam por dentro como o fogo queima a lenha seca. Sentia grande tristeza em pensar no tempo perdido, em pensar que tinha jogado toda a minha vida fora no acidente de ter conhecido aquele homem. Permaneci sentada em silêncio no tapete da sala. As crianças saíram para brincar e então eu pude chorar. Chorei por tudo que não tinha mais. Chorei porque sabia que para mim não tinha mais Natal nem Ano-Novo. Doía-me muito e pensava: “Por que não aceito tudo isso com resignação? Por que não aceito como mera banalidade do destino?” Por que não aceito sem sofrer tanto? Sem me questionar até não poder mais? Eu mesma sabia a resposta. 425
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Não aceitava porque eu amava a vida e só o AMOR poderia me aliviar de tanta dor. E foi aí que me lembrei do ex-namorado. Ele havia deixado o pedido que, caso eu mudasse de ideia, ligasse para ele... E eu nunca mais havia ligado. Mas já fazia uns cinco anos da ultima ligação. Teria isso ainda algum sentido? Não analisei mais nada e pensei: “Chega de pensar e pesar tudo”. Sequei as lagrimas e me decidi: vou desmontar a guarda. Vou me dar um presente. Quem sabe no próximo Natal não possa eu ver na minha árvore tudo o que não consigo ver agora? Resolvida, mas não muito convicta, fui para o meu quarto, tranquei-me por dentro, procurei a agenda, onde havia anotado o número. Disquei e aguardei já com vergonha e torcendo para que ninguém atendesse. Atenderam. – Pronto? – do outro lado da linha uma voz desconhecida. – Gostaria de falar com o senhor Renato. – No momento ele não está. Quer deixar recado ou seu número, por favor? – Sim, gostaria. Diga-lhe para ligar no número... Obrigada. – Seu nome, por favor? – Desculpe, mas não precisa, só diga-lhe o número que ele saberá quem é. – Pois não, darei seu recado. – Obrigada. Desliguei o telefone já me sentindo péssima e pessimista. Sentia-me culpada. Pronto, fiz bobagem. O cara nem se lembra mais de mim, já deve ter alguém. Melhor que não se lembre mesmo, assim não correrei o risco de “pecar”. Além do mais, isso é besteira, loucura da minha mente cansada. Nem me sinto mais em condições de ter um romance. 426
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Quando me olhava no espelho à procura daquela figura de outrora, o que via me apavorava. Não via mais uma silhueta perfeita. Estava gorda e disforme. Pele seca e sem viço. Os cabelos? Quanta diferença! Os fios brancos teimavam em surgir e, por mais recursos que eu usasse, não conseguia detê-los. As noites perdidas e mal dormidas contribuíram e muito para uma velhice precoce. Sentia-me velha e inútil. Eu que sempre fora tão vaidosa estava entregue ao nada, mas, sabia que não conseguiria mais viver aquele drama, sozinha. Meu Deus! Não posso mais continuar assim; sei que vou enlouquecer. Preciso de alguém que me ajude a juntar tudo que perdi ao longo dessa tormenta. Alguém que tenha a sensibilidade de um poeta com o qual eu possa dividir meus medos e temores e que me ajude a viver. Mas como partir para a vida sem correr sérios riscos? Por que continuava refém de uma pessoa desajustada. Sempre que eu procurava uma saída, era ameaçada de morte. Depois do telefonema sentia muito medo. Estava dando início a uma coisa perigosa para quem vivia como eu. Fiquei apavorada só de pensar na possibilidade de Eduardo desconfiar. De repente, já me vi estirada no chão numa poça de sangue. Vivia presa ao medo. Bati três vezes na madeira e já ia desistir de esperar o retorno do telefonema. Todavia, antes de sair do quarto, onde permaneci por muito tempo, o telefone toca. Deixei tocar várias vezes, com medo de atender. Depois, retirei o aparelho da base, levei ao ouvido e não falei nada. – Alô, alô? Reconheci sua voz. Falo ou não? O que faço agora? Fiquei embaraçada e as faces ardendo de vergonha e medo – Alô? – tentavam do outro lado. Desliguei, não tive coragem de falar e me encolhi toda. Novamente a campainha do telefone toca insistentemente. 427
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Uma, duas, três vezes. Na quarta, atendi e esperei um pouco controlando a respiração e falei. – Pronto... – Alô, é você, Celeste? – Sim... – Recebi seu recado. Que prazer. – Pois é, liguei, será que devia? Já faz tanto tempo. – Claro. Claro que devia. Como está? Eu andava morrendo de saudades de falar com você. – Desculpe, é que tive outros problemas. Como você deve ter imaginado, não deu mais para ficar alimentando qualquer esperança. – Entendo. Mas que bom que você ligou. Não imagina como fiquei feliz ao receber seu recado. – É, relutei muito antes de ligar, não me sentia à vontade. – Imagina, ligue sempre que quiser. É uma alegria, como já disse. – Está bem. – Tem alguma novidade? – Tenho, sim. Podemos marcar um encontro para conversar? – Podemos, é claro. Mas me fala tudo que estiver precisando falar. Fale agora se você quiser. Tenho tempo para lhe ouvir. Não se preocupe em ser breve, fique à vontade. – Não vou falar nada por telefone. Você nem sabe como eu estou, fisicamente falando. Portanto, não fique idealizando. – Sempre cautelosa. Mas, por acaso, resolveu nos dar uma chance? – Você é bem teimoso e direto, não? – Teimoso? Você nem sabe como tenho esperado ouvir você dizer que voltou para a vida, e eu gostaria que esta volta fosse comigo. – Não é tão fácil assim. É só no que tenho pensado: na volta para a vida, mas é quase impossível. 428
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– Entendo. – Mas se você quiser, vamos conversar. Vou tentar. Só não sei como, porque ainda continuo presa, impedida. – Quero, sim. Irei aí e conversaremos pessoalmente. – Como e onde conversaremos? Não posso fazer isso aqui, na cidade; é perigoso. – Dá-se um jeito. – Está bem, vou esperar. – Estarei aí no domingo bem cedo, bem cedinho. Chegando aí te ligo e marcaremos um lugar para conversar. – Combinado. Foi uma expectativa medonha. Na manhã do domingo, ao primeiro toque do telefone, atendi já imaginado quem era. Marcamos e fui ao seu encontro fora da cidade. Quando me aproximei do local combinado, avistei-o de longe. Diminuí a velocidade para poder vê-lo melhor. Pude reconhecêlo imediatamente. Parei, cumprimentei-o de dentro do carro mesmo e o convidei a entrar. Não foi nada romântico nem educado. Foi tudo muito frio e sem emoção; melhor dizendo, foi uma grande emoção, porém reprimida, mas era o medo, a falta de hábito que me deixou totalmente embaraçada. Estava com tanto medo e vergonha, que não parei nem desci do carro para conversarmos. Ficamos os dois, estrada acima estrada abaixo, conversando dentro do carro e eu dirigindo ao mesmo tempo. O medo era tanto que me faltava o raciocínio e a expectativa do encontro ficou prejudicada, não rendeu muito. Ele ria do meu embaraço, mesmo assim conversamos. Foi um encontro muito agradável, muito bom. Ao menos pude falar com alguém. Falar de coisas boas, coisas que há muito tempo havia esquecido. 429
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Foi maravilhoso poder sentir o toque de sua mão na minha, um toque simples e discreto. Ele parecia não querer me assustar. Sabia que eu estava traumatizada. Eu continuava tensa e receosa. Ele, por sua vez, se matinha calmo e sereno. Enquanto conversávamos, ele tocou minha mão pela segunda vez. Ao sentir sua mão acariciar a minha, quase me joguei nos seus braços. Por pouco não lhe pedi que me abraçasse forte, muito forte. Que me aquecesse junto ao seu corpo. Que me protegesse de tudo que eu estava vivendo. Que me curasse da dor da solidão. Como seria bom se tivesse tido coragem, mas não tive. Tive cautela e prudência. Antes queria saber qual sua opinião sobre minha pessoa. Queria saber se tinha despertado algum interesse mais profundo, se não era apenas pura curiosidade em me ver. O que sentiria depois daquele encontro. Queria esperar e fazer tudo de modo a não me arrepender depois, a não me expor de forma ridícula. Minha autoestima estava em baixa. O que eu ouvia diariamente de Eduardo era de fazer desabar a pessoa mais segura. Embora sabendo qual o verdadeiro motivo de seu despeito, fui ficando fragilizada e desconfiada; e cada vez me entregando mais ao desleixo. Àquela altura dos acontecimentos, tinha consciência da minha perda no item beleza. Portanto, direcionei a conversa para esse lado, pois queria ouvir um elogio mesmo que fosse falso. – E então, feliz ou decepcionado? – Como decepcionado? Estar aqui com você é maravilhoso. Foi com o que mais sonhei durante todos esses anos. – “O que mais tenho sonhado” – falei. 430
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Repeti, lembrando-me que alguém tinha me falado esta mesma frase, algum tempo atrás. – O quê – perguntou Renato. – Nada, esquece. – O que se passa com você? Parece tão transtornada e desconfiada? Eu vim porque queria te ver de verdade; sempre tive um pressentimento que ia te encontrar um dia. – Ora. Não me faça rir nem crer que você não tem alguém mais jovem e disponível. Não me leve a pensar também que este momento tem maior importância para você. Veja, já não sou mais uma garota, aquela que você talvez ainda guarde na memória. O tempo passa e deixa um bom estrago nas pessoas. – Passou para mim também e não vejo estrago algum em você. Continua bela e adorável, e um pouco madura, é claro, o que lhe fica muito bem. Vejo-te e verei sempre como aquela pessoa alegre e cheia de vida. Aquela pessoa que tanto amei um dia e que pelo capricho do destino eu perdi, mas guardei este amor em silêncio e sabia que um dia ele voltaria. – Não conte tanto com isso. – Certo, mas hoje sei que na vida vale a pena saber esperar. Este sonho me acompanhou noites e dias. Por toda a minha vida te procurei. Em todos os lugares bonitos pensava te encontrar e aqui hoje te encontrei. Aqui estou eu ao teu lado e sei que vou poder te amar. Que vou poder ser feliz contigo, não importa o que tenha de enfrentar. – “O que tenha de enfrentar” – novamente pensei comigo mesma. Lembrei-me de outra cena. Era tudo igual e falei igual também, só que com outras palavras. – Eu também quero isso. Também quero viver este sonho. Não jogarei fora este presente da vida. Este PRESENTE DE NATAL. Agora sei que posso recomeçar. Vou jogar fora a culpa: ela não é minha, se tudo chegou aonde chegou. 431
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– Não, não se culpe. Vamos culpar o destino mesmo. Foi ele que nos pregou esta peça. – É verdade. É mais fácil culpar o destino (que ironia ele também me falar de destino!). Pois ele é meu velho conhecido. E sei que às vezes age de forma covarde. Seguimos conversando por algum tempo. Depois, parei no mesmo lugar onde eu o havia encontrado e, ao nos despedirmos, ele falou que ligaria novamente para combinarmos um encontro mais tranquilo. Concordei e voltei para casa. Na estrada me lembrava de cada palavra, de cada cena e sentia meu coração pulsar diferente. Senti-me ressuscitada. Precisava desesperadamente voltar para a vida e a possibilidade de poder amar me deu ânimo e determinação. Senti que bastava amar novamente para me sentir forte e invencível. Entro em casa correndo e abraço meus filhos com muita força. Queria-os perto de mim para ter a certeza que não os perderia caso fizesse algo errado. Errado? Não, Celeste! Você estará errada se não tentar, se não sair deste buraco sem fundo. Todos perderão se você não sair – falei pra mim mesma. No dia seguinte, Renato me ligou bem cedinho, para me dar bom-dia. Coisa que eu nunca ouvia em casa era sequer um bom-dia. Disse-lhe um bom-dia com muito prazer. Conversamos tranquilamente e marcamos um outro encontro para dali a algumas semanas. Queria tempo para me preparar. No segundo encontro ficamos mais tempo juntos. Encontramos um lugar seguro, onde ficamos mais à vontade. Foi um momento aconchegante e proveitoso. Conversamos tanto que senti um grande alívio. O fato de ter alguém para me ouvir, para conversar, para me dar atenção, para dar valor às minhas opiniões, alguém que me res432
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peitasse. Enfim, alguém que me enxergasse, porque eu me sentia como um objeto totalmente transparente, ninguém mais olhava para mim, só isso já me fazia feliz, muito feliz. Almoçamos juntos. Durante muitos anos, não sabia o que era almoçar na companhia de um homem. Não sabia o que era levantar de uma mesa sem ter eu mesma que pagar minha própria conta. Achei fantástico aquele cavalheirismo. Depois encontramos uma sombra agradável, sentamos e conversamos mais. O dia passou e eu nem percebi. Já era noite. Sentia-me leve e queria voltar a ser amada. Por consequência ele tentou um beijo. Um abraço. Um abraço, pelo menos. Resisti, pois ainda tinha medo. Medo também de estragar nosso reinício de relacionamento. – Desculpe-me... – Calma, eu te entendo e te amarei mesmo assim; te amarei mesmo sem o contato físico. Meu amor vai muito, além disso. – Como é bom poder ouvir isso, mesmo que cercada de dúvidas. – Tudo isso vai passar, se você quiser. Não destrua sua vida por algo que não vale a pena. Aliás, nada merece tanta renúncia quanto você tem feito. – É. Como eu gostaria de poder sair desta sem correr tantos perigos. – Juntos, tentaremos sair desta. Confie em mim. Ele sabia ser amável, seguro e convincente, e nem era preciso, tamanha a carência em que eu vivia. Mas ele era extremamente amável. Cada gesto, cada palavra sua denunciava o homem que existia dentro dele. Um homem realizado e consciente do seu papel. Falava com tanta calma e paciência que em pouco tempo ele estava conseguindo conquistar meu coração. Já sentia ternura por ele, já direcionava para ele uma esperança de reviver. Não resistiria por muito mais tempo à sua calma, segurança 433
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e determinação. Num outro encontro, outra tentativa. Deixei-me abraçar. Entreguei-me àquele momento de ternura. Um beijo discreto. Senti seu beijo como algo doce e tranquilo. Fiquei bastante encabulada, mas feliz. Pensava em como seria amar novamente? AMAR? Esta palavra me assustou e me retraí. AMAR! Por que tenho de ser tão sonhadora? Já não basta tudo que passei? Para, Celeste, viva agora sem grandes expectativas para não se machucar outra vez. Tente dar menos importância às coisas. Você é correta demais e isso não é bom. Não devemos ser tão perfeitos. Viva, só viva, não fique o tempo todo tentando traçar seu próprio caminho, tentando segurar os remos do seu barco. Deixe-o um pouquinho ao sabor do acaso. Pare de planejar o tempo todo. E foi assim que passei a viver aquele romance secreto. Sem grandes expectativas. Queria apenas viver. Viver irresponsavelmente aquele amor. Viver ao sabor do descompromisso, ao sabor do vento e do acaso. Não me apegaria a mais ninguém. Seria uma presa arisca e difícil. Receberia tudo e não daria nada. Não retribuiria nada? Então não seria completa a minha felicidade, se não pudesse dar ao receber. Mas que fosse assim. Que fosse incompleta, mas que fosse. Parece que no amor nada é completo mesmo. O telefone tocava sempre às 21h, nosso horário combinado. Eu já sabia quem era. Às vezes não dava para conversar, tinha alguém por perto, 434
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obstruindo a liberdade. Mas tínhamos um código que ele entendia. E, antes de desligar, dizia: – Certo, certo, mas lembre-se que eu te amo. Ligarei amanhã. Ligava-me sempre. Não podíamos nos ver com frequência e aqueles telefonemas foram me dando novo ânimo, nova alegria e um brilho no olhar. De repente já sentia vontade de me arrumar, de emagrecer, de ficar bonita, de conversar, de sair e passear. Aquele amor era algo muito bom para mim. Restabeleceume a alegria e a vida. Era uma ternura, um sonho bom. As pessoas notavam essa mudança em mim e começaram a me enxergar de novo. Às vezes comentavam e perguntavam se eu havia feito cirurgia plástica, pois estava rejuvenescida. Esses eram os comentários positivos que recebia. Mas nada eu falava, mantinha o mistério. Não tinha certeza até onde ia; portanto, mantinha o segredo. Sabíamos, ele e eu, que teríamos encontros furtivos, pois eu não era livre para uma união mais sólida. No entanto, ele me dizia que não devíamos nos preocupar e fazer planos. O que tivesse de ser seria. O importante era vivermos cada momento com alegria e tranquilidade. Manter-se a vida toda preso a planos e projetos é muito cansativo. Algumas vezes podemos agir sem tanto planejar. – Não tema, não se preocupe. Deixe-me tomar conta de você. Era assim que ele me tranquilizava. Dizia também que deveríamos preencher cada lacuna, cada vazio. Preencher nossos corações com muito carinho e aos poucos, quem sabe, a vida não retornaria mais bonita? Ele me encantava mais e mais. Sua sensibilidade e maturidade me envolviam e me faziam sentir muita segurança. Estava sempre calmo e sereno. Nunca perdia o controle. Por outro lado, não me cobrava nada, não me condenava por nada, não me culpava por nada. 435
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Fui ficando e me apegando a esta esperança. E assim esquecia pouco a pouco minha solidão, embora não estivéssemos sempre juntos fisicamente falando. Mas só a lembrança dele, daquele homem carinhoso e gentil, só a certeza de que em algum lugar ele estava e zelava por mim, e mesmo de longe tentava me proteger, só isso contribuía para o início de uma transformação. Eu já dormia melhor. Já não comia compulsivamente. Estava sempre bem humorada. Voltei a me cuidar e novamente me sentia bonita. Mas um pensamento me atormentava. Aquilo tudo era apenas um paliativo, pura utopia. Na realidade continuava quase na mesma solidão. Mas, como se diz, “antes pouco do que nada”. Com esse pouco me conformava e ia vivendo ao sabor da aventura. Mas um belo dia até esse pouco me foi roubado, me foi tirado bruscamente, covardemente, pois o CARRASCO que vivia de plantão dentro de casa, e não dava trégua, acabou descobrindo os telefonemas. Descobriu até mesmo porque eu não fazia mais questão de esconder. Não estava mais me importando se ele ia descobrir ou não. Talvez descobrindo, tomaria uma atitude: desapareceria da minha vida e me deixaria viver em paz. Mas que esperança! Ele jamais ia me deixar. Quando descobriu, aprontou todas. Foi o maior escândalo, a maior confusão. Aproveitou do pouco que ficou sabendo, do pouco que ouviu para me difamar, desmoralizar e ridicularizar. Fazia questão de contar tudo de forma aumentativa. Fazia questão de contar para todos que eu tinha um caso, um amante, que eu era desavergonhada com cara de santa. Dizia que ia acabar comigo, que ia me cobrar muito caro. Dizia que eu não tinha mais uma semana de vida, que já estava providenciando para isso, pois sua honra ele lavaria. Mulher que não 436
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presta tem que morrer. Comportava-se de forma que, se algo me acontecesse, ele poderia alegar legítima defesa, questão de honra. Escandalizou, barbarizou, emporcalhou ainda mais a minha vida. Chamava aquelas pessoas com as quais eu tinha um relacionamento mais estreito e contava para elas com riquezas de detalhes só para diminuir meu conceito perante elas. Dizia que ia tirar a guarda dos meus filhos, porque nem a eles eu respeitava. Dizia que ia colocar escuta no telefone para gravar tudo e provar na justiça quem eu era de fato, pois provando meu adultério eu perderia todo o meu direito na partilha dos bens. Encarregou-se desesperadamente de provar para todos que ele era um homem traído. Só faltou fazer faixas e cartazes e espalhar pela cidade. Fazia e acontecia como se eu estivesse negando alguma coisa. Mas eu não neguei nada. Queria provocar o infeliz. Para a família dele, então, fez uma festa com o assunto. O cara ficou frenético. Fazia fofocas e mais fofocas. Só que ele “esquecia-se” de dizer uma coisa muito importante: não falava de nossas camas separadas há mais de 15 anos. Não falava o que ele queria encobrir me mantendo sua refém. Não dizia que eu era sua prisioneira e não sua mulher. Não, nada disso ele falava, pois era para todos entenderem que eu o traía – de ordinária que era. O jogador sabia mesmo como reverter qualquer jogo a seu favor. Sabia bem como incriminar uma pessoa e reduzi-la a nada. Porém não me importei, deixei que ele seguisse no seu próprio desatino. Que se fartasse com o veneno do seu egoísmo. Deixei... Mas como sempre acreditei nos sonhos, como sempre confiei nos anjos, resolvi aceitar ajuda. Ajuda de um anjo chamado Renato. 437
Resolvi sair de vez da tenda do meu deserto e aceitar ajuda para fugir daquele jogo sujo, sem fim e mortal.
56 A vida em Mato Grosso Renato estou em apuros. — – Que aconteceu?
– O que era previsto. Eduardo descobriu tudo e promete uma boa confusão. – O que você pensa fazer? – Não sei, não tenho como sair desta, sozinha. – Mas você não está sozinha. Se me permitir, juntos resolveremos essa situação. – Como? – Me responda, Celeste: Quer vir para perto de mim? Quer assumir nosso relacionamento? Quer minha proteção para sua vida? Se quiser estou pronto para isso. – Mas tenho meus filhos, não os deixarei. – Nem quero que seja assim. Se estiverem de acordo, nada mudará entre você e eles. – Mas, Renato... – Celeste, tem algum sentimento por mim? Não digo amor, mas algo que nos aproxime mais e torne isso possível? – Creio que sim. – Então, está disposta a morar em Mato Grosso? – Mato Grosso?! – É. Tenho fazenda na região pantaneira, comércio e casa na cidade. Você decidirá onde quer morar, na cidade ou no campo. – Meu Deus. Não tenho cabeça para tamanha mudança. E meus filhos? 439
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– Traga-os. Eles serão muito bem-vindos. – Vou pensar. Vamos ver no que vai dar. Mediante o acontecido, não tenho muito que ponderar. Só não posso prever quanto tempo levarei para desenrolar tudo por aqui. – Tudo o quê? – Tudo como dinheiro, separação, colégio. Como vou sair daqui? Renato riu e disse: – Preocupe-se apenas com o que for relacionado ao colégio de seus filhos, o resto deixe por minha conta. – Renato, isso não é brincadeira. – Não é mesmo, é serio. Não confia? Não está disposta a uma mudança de vida? – Estou. – Então escute bem o que vou lhe falar: prepare seus filhos, exponha tudo a eles e veja se estão de acordo. Depois, me informe sobre o que decidiram. Segunda semana de julho. O pequeno avião sobrevoa a cidade; meu corpo treme, não sinto o chão sob meus pés, meu coração parece não caber dentro do peito. Meus filhos estão assustados, mas decididos. Esta é a lembrança que ficou daquele dia. – Vamos? Vamos tentar a vida longe daqui? Se vocês estiverem do meu lado poderei ser forte. Abraçamos-nos e choramos compulsivamente. O táxi estacionou em frente a nossa querida casa e nele entramos sem olhar para trás. Partimos rumo ao pequeno aeroporto da cidade. Ali, Renato recebeu-nos com um forte abraço. 440
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Afastamo-nos um pouco, Renato e eu, para conversar antes de partir. – Que loucura, Renato? Pensei que viria de carro. Quando me avisou que havia fretado o avião, entrei em pânico. Tenho pavor de alturas, pavor só pensar na necessidade de entrar num avião e aqui estou... – Preferi assim. Por enquanto é melhor não deixar muita pista e também para você não sentir a viagem. De carro, poderia lhe trazer recordações sofridas. – Com certeza. – E como estão seus filhos? Preparados? – Preparados, não diria, mas dispostos a me ajudar, sim. – São jovens, vão superar. – Espero que sim. Nem sei bem o que estou fazendo, mas vou tentar. – Então vamos? – disse Renato apontando em direção ao avião. Naquele momento o pânico quase tomou conta de mim novamente, mas ele me confortou e eu pude enfrentar a viagem. Avião em terra, motor desligado, o capataz se aproxima e nos recebe calorosamente. Entramos naquele outro transporte e seguimos. Olhava para meus filhos e via tristeza e dúvida. – Será que vou conseguir meu Deus? – exclamei. – Celeste, para seu conforto, quero lhe pedir que não veja isso como definitivo. Aqui você será livre para ficar ou não; nunca se sinta presa a nada. Isso te ajudará? – Obrigada, Renato. Tenho medo de me sentir acorrentada novamente – disse, agarrando-me aos meus filhos. – Não pense assim, por favor. A vida aqui, mais do que em qualquer outro lugar, só inspira liberdade, e no que depender de mim, esteja tranquila. Fiz o resto do percurso com a cabeça a mil e o coração apertado, mas Renato era tão envolvente que logo atraiu a atenção para si novamente, tirando-me daquela angústia. 441
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Estacionamos em frente à sede da fazenda. Ele desceu, abriu a porta do carro para nós e disse: – sejam bem-vindos. A casa era linda, maravilhosa. Gente animada. Movimento de campo. Os empregados, atenciosos, nos receberam com muito carinho. Depois da chegada passamos alguns dias de festa e muitos amigos dele vieram nos prestigiar e fazer os primeiros contatos. Alguns dias depois, Renato me convidou para irmos conhecer a outra casa e a cidade onde pretendíamos morar. A casa era grande e bonita. Estava recém-pintada e redecorada por um profissional de muito bom-gosto. Além da fazenda, muito gado, a bela casa da cidade, bons carros. Renato também é do comércio, no ramo de produtos agrícola e pecuário. Um homem bem relacionado e bem estruturado financeiramente falando. Foi uma agradável surpresa, sem falar da pessoa generosa que ele é. Daquele dia em diante, minha vida saiu da contramão. Renato assumiu a nós três completamente e sem a menor diferença. Sabrina e Leonardo, me vendo tão sossegada e bem cuidada, logo trataram de se acostumar. Quando voltaram às aulas, eles entraram no ritmo e aos poucos se adaptaram. Além do mais, aqui eles não conheceram as palavras: ódio, discórdia e nem repressão. Ricas descobertas eles fizeram e puderam viver uma adolescência feliz. Cresceram, cursaram suas respectivas faculdades, mudaram-se para a Alemanha e me visitam periodicamente. São jovens de atitude e cabeça aberta. Alegres e felizes, apesar de tudo que passaram. Eu voltei a trabalhar e ajudo Renato. Ele confia plenamente em mim e em minha opinião, sempre acatando com respeito as minhas decisões. Viajamos muito, a negócios e principalmente a passeio. Sinto-me valorizada e útil. Sou hoje uma autêntica mulher. Sinto-me plenamente femi442
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nina. Cuido com toda liberdade de minha casa, como também sou presente na vida de Renato. Temos muitos amigos e uma vida social maravilhosa. Participo de tudo sem me sentir intrusa. Respeito e sou respeitada. Cresço e faço crescer os que estão perto de mim. Custo a crer no que estou vivendo. Parece um sonho. Ou será que é?
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Pela Contramão da Vida foi composto em tipologia Cambria, corpo 14pts, entrelinha 15,8, e impresso em papel AP 75g nas oficinas da Alpha Editora. Acabou-se de imprimir em setembro de 2010, nono mês do décimo ano do Terceiro Milênio.
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