Marcuschi, Luiz Antônio (2005). “Gêneros textuais: definição e funcionalidade” in Dionísio, Ângela P. e outros (org.) Gêneros Textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna. 1. Géneros textuais como práticas históricas É ideia assente que os géneros textuais são fenómenos históricos, com vínculo profundo à vida cultural e social, presentes em qualquer situação de comunicação. Assumindo-‐se como práticas sócio-‐discursivas, são de difícil definição formal. Não sendo estanques, caracterizam-‐ se muito mais pelas suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais, pelo seu dinamismo e maleabilidade do que pelos seus aspectos linguísticos e estruturais. Surgem sob várias formas e assim como aparecem, podem desaparecer. Hoje em dia, com as novas tecnologias e a internet, assistimos a uma explosão de novos géneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita.
2. Novos géneros e velhas bases Com os media e a internet, surgem novos géneros textuais como os editoriais, artigos de fundo, notícias, telefonemas, telegramas, mensagens, videoconferência, reportagem ao vivo, e-‐mails, chat, etc. Bakhin (1997) considera-‐os transmutações de géneros anteriores, i.e., a assimilação de um género por outro. Por exemplo, um telefonema tem como antecessor a conversa cara-‐a-‐cara; o e-‐mail, a carta; a mensagem, o bilhete. No entanto, as cartas electrónicas constituem géneros novos com identidades próprias tais como outros géneros emergentes dos media em suporte electrónico, onde se faz um uso diferente da linguagem (cada vez mais plástica) e se verifica um certo hibridismo entre oralidade e escrita. Por outro lado, estes novos géneros apresentam vários tipos de semiose: signos verbais, sons, imagens e formas em movimento. Embora os géneros textuais se caracterizem por aspectos sócio-‐comunicativos, não quer dizer que se despreze a forma. Em muitos casos, é a forma que determina o género, noutros serão a suas funções. Noutros ainda, será o próprio suporte ou ambiente em que o texto aparece que determinam o género presente. Pode acontecer que “mesmo texto” e “mesmo género” não sejam expressões automaticamente equivalentes, quando não estão no mesmo suporte. É o caso do “artigo científico” (publicado numa revista científica) que se transforma em “artigo de divulgação científica” aquando publicado num jornal.
3. Definição de tipo e género textual Em geral, a expressão “tipo de texto” é equivocadamente empregada e não designa um tipo, mas sim um género textual. É, pois, importante distinguir o que se convencionou chamar tipo textual e género textual. Bakhin (1997) e Bronckart (1999) (tal como Biber, Swales e Adam) defendem a ideia de que só é possível comunicar verbalmente através de um género
textual. «Esta visão segue uma noção de língua como actividade social, histórica e cognitiva. Privilegia a natureza funcional e interactiva e não o aspecto formal e estrutural da língua. Afirma o carácter de indeterminação e ao mesmo tempo de actividade constitutiva da língua, o que equivale dizer que a língua não é vista como um espelho da realidade, nem como um instrumento de representação dos factos». Trata-‐se de uma visão sócio-‐interactiva da língua, não subjectivista, em que os géneros textuais se constituem como acções sócio-‐discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-‐o de algum modo. Além do tipo textual e do género textual, é de referir o domínio discursivo que não é texto nem discurso, mas propicia o aparecimento de discursos específicos. No que concerne aos domínios, fala-‐se de discurso jurídico, jornalístico, religioso, etc, em que se situam vários géneros textuais que, por vezes, lhes são próprios ou mesmo exclusivos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas.
TIPOS TEXTUAIS
GÉNEROS TEXTUAIS
1. Constructos teóricos definidos por propriedades linguísticas intrínsecas; 2. Constituem sequências linguísticas ou sequências de enunciados no interior dos géneros e não são textos empíricos. 3. A sua nomeação abrange um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintácticos, relações lógicas, tempo verbal; 4. Designações teóricas dos tipos: narração, argumentação, descrição, injunção e exposição.
1. Realizações linguísticas concretas definidas por propriedades sócio-‐comunicativas; 2. Constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em situações comunicativas; 3. A sua nomeação abrange um conjunto aberto e praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composição e função; 4. Exemplos de géneros: telefonema, carta comercial, romance, bilhete, aula expositiva, reunião de condomínio, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, chat, aulas virtuais, etc.
Um mesmo género pode abranger vários tipos textuais. Por exemplo, uma carta pessoal pode conter uma injunção (Olá, Júlia!), uma sequência narrativa (Ontem, fui a Aveiro com o Zé) uma argumentação (Há anos que queria lá ir, mas nunca houve tempo nem disponibilidade), uma descrição (É uma cidade muito bonita, plana e com muitos canais, parece Veneza), etc.
4. Observações sobre géneros textuais Quando se domina um género textual, não se domina uma forma linguística, mas uma forma de realizar linguisticamente objectivos específicos em situações sócio-‐comunicativas determinadas. Como afirmou Bronckart (1999), «a apropriação dos géneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas actividades comunicativas humanas». De facto, os géneros textuais operam, em certos contextos, como formas de legitimação discursiva, já que se situam numa relação sócio-‐histórica com outros géneros anteriores que lhes dão sustentação muito além da justificativa individual. Os géneros são o reflexo de estruturas sociais recorrentes e típicas de cada cultura.
A expressão “género” esteve sempre ligada aos géneros literários, mas hoje já remete para um discurso de qualquer tipo, oral ou escrito, literário ou não literário. Não podemos definir os géneros consoante certas propriedades que lhes devam ser necessárias e suficientes. Um género pode não ter uma determinada propriedade e continuar a ser esse género. Por outro lado, pode existir uma intertextualidade inter-‐géneros (Úrsula Fix: 1997) que designa uma estrutura de natureza híbrida em que um género assume a função de outro (Ex.: função de um artigo de opinião na forma de um poema). A função, a intenção, o interesse predomina e supera a forma na determinação de género, evidenciando a plasticidade, a maleabilidade, a capacidade de adaptação e a ausência de rigidez dos géneros. Miller (1984) considera o género como “acção social” afirmando que uma definição correcta de género «não deve centrar-‐se na substância nem na forma do discurso, mas na acção em que ele aparece para se realizar». Não se deve confundir com heterogeneidade tipológica do género que se refere ao facto de um género poder apresentar sequências de tipos textuais diversos:
intertextualidade inter-‐géneros -‐> um género com a função de outro heterogeneidade tipológica -‐> um género com a presença de vários tipos 5. Géneros textuais e ensino É importante um maior conhecimento do funcionamento dos géneros textuais tanto para a produção como para a compreensão, dado que todos os textos se realizam num ou noutro género. Por outro lado, é bom ter cuidado com a ideia de géneros orais e escritos, pois trata-‐se de uma distinção complexa que deve ser feita com clareza. Uma notícia, por exemplo, apesar de, originalmente, ser produzida na forma escrita, ouvimo-‐la na forma oral na rádio ou na televisão. Na verdade, os géneros são modelos comunicativos que servem, frequentemente, para criar uma expectativa no interlocutor e prepará-‐lo para uma determinada reacção. Elizabeth Gülich (1986) diz que os interlocutores seguem, em geral, três critérios para designarem os seus textos: a) Canal / meio de comunicação (telefonema, carta, telegrama) b) Critérios formais (conto, discussão, debate, contrato, acta, poema) c) Natureza do conteúdo (piada, prefácio de um livro, receita de culinária, bula de medicamento) No entanto, isto não é suficiente para formar uma classificação. Douglas Biber (1988), por seu lado, defende que os géneros são determinados pelos objectivos dos falantes e pela natureza do conteúdo, pelo uso e não pela forma. Em suma, os géneros textuais assentam em critérios externos (sócio-‐comunicativos e discursivos) enquanto os tipos textuais fundam-‐se em critérios internos (linguísticos e formais). Elizabeth Gülich (1986) chama a atenção para as situações e os contextos em que são designados os géneros textuais, de acordo com regras sociais determinadas. Contar uma anedota fora de contexto é um caso de inadequação ou violação das normas sociais relativas aos géneros textuais. Assim, o que está em causa não é só a produção adequada do género, mas também um uso adequado. Daí que, na produção de cada género textual, deva ser tida em conta a relação entre os seguintes aspectos:
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Natureza da informação ou do conteúdo veiculado; Nível da linguagem (formal, informal, dialectal, corrente, cuidada, etc) Tipo de situação em que o género se situa (pública, privada, corriqueira, solene, etc.) Relação entre os participantes (conhecidos, desconhecidos, nível social, formação, etc.) Natureza dos objectivos das actividades desenvolvidas.
Na realidade, os géneros, embora dinâmicos e maleáveis, são relativamente estáveis, porque são não são fruto de invenções individuais, mas de formas socialmente assimiladas e recorrentes nas práticas comunicativas, que promovem a compreensão mútua. Na sala de aula, podemos levar os alunos a analisarem e/ou produzirem textos orais e escritos, identificando as características de género de cada um. Por exemplo, pedir-‐lhes que identifiquem os géneros textuais presentes num jornal diário, referindo as suas características em termos de conteúdo, composição, estilo, nível linguístico e objectivos.
7. Observações finais Em suma, o trabalho com os géneros é uma óptima oportunidade de se lidar com a língua, nos seus mais variados usos no quotidiano, pois todo o texto oral ou escrito está integrado num género. Os manuais escolares apresentam uma relativa variedade de géneros que não corresponde, no entanto, a uma variedade analítica. De facto, os que são analisados a fundo são sempre do mesmo género. Deve-‐se aproveitar a oportunidade da sala de aula, para trabalhar tanto a oralidade como a escrita nos seus usos culturais mais autênticos sem forçar a criação de géneros textuais que circulam apenas no universo escolar.