Texto: Renato Mendonça (renato.mendon@gmail.com) Projeto gráfico e diagramação: Carolina Porto Ruwer (carolina.ruwer@impressionedigital.com.br) Impressão: Gráfica Pallotti Revisão: Margarete Schlatter Capa sobre desenho criado por Theo Tássilo Schlatter
Dados Internacionais de catalogação na Publicação (CIP) M539h
Mendonça, Renato Hospital Schlatter: A Trajetória de Gabriel, Doris José e Theo Tássilo / Renato Mendonça. – Porto Alegre : Edição Independente, 2010. 160p.
1. Biografias – Médicos 2. História do Rio Grande do Sul (Feliz) I. Schlatter, Gabriel II. Schlatter, Doris José III. Schlatter, Theo Tássilo IV. Título CDU 61–051(816.5)(092) Ficha elaborada pela bibliotecária Cristiane Dias (CRB 10/1029)
Sumário
Prefácio ............................................................................................................................. 05 O Hospital .........................................................................................................................11 Gabriel ...............................................................................................................................25 Doris José ..........................................................................................................................51 Theo Tássilo .....................................................................................................................93 Galeria de Fotos .............................................................................................................143 Índice Onomástico .......................................................................................................153 Créditos das Fotos .........................................................................................................158
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Prefรกcio
Prefácio
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screver um livro narrando mais de cem anos de existência do Hospital Schlatter é como empreender uma viagem no tempo. Não é uma jornada qualquer. O normal é que o viajante inicie sua caminhada já de posse de sua bagagem definitiva. Mas, aqui, é como se o viajante/ autor fosse recolhendo a bagagem ao longo da viagem, em sucessivas paradas onde ele vai pedindo informações sobre como chegar a seu destino – o final do livro. As peças que vão sendo reunidas são de vários tipos e tamanhos. Na bagagem do escritor há lugar para uma cena ou um diálogo que se reconstrói na imaginação dos entrevistados, e sempre se arranja espaço para uma lembrança que se realiza às vezes de surpresa, lançando luz e arejando os distantes corredores da memória. Na verdade, cada uma das 19 pessoas entrevistadas para este livro serviu
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como companheiro de viagem por algum tempo. É como um jogo de sedução, que normalmente obedece aos seguintes passos: você se aproxima do entrevistado, ele se aproxima de você, e os dois se aproximam do passado conscientes de que estão produzindo um registro histórico que irá perpetuar a todos no futuro. É indispensável nominar meus companheiros de viagem neste livro, e o faço na ordem em que foram entrevistados: Maria Romana Winter Selbach, Dulce Gums Jotz, Liceta Schroer Müller, Carmen Ursula Schlatter Gieler, Pio Renato Schlatter, Walkir Zeno Bohrer, Erica Schlatter Bohrer, Liceu Paulo Caye, Adela Müller (Cela), Ana Maria Müller Rücker, Carlos Otto Rücker, Sigesfredo Rücker, José Brugger, Carlos Huberto Wallau, José Jonas Alves Machado, Marli Catarina Buchmann Machado, Denise Schlatter, Gilberto Schlatter e Olga Nedel Schlatter.
rótulos de refrigerantes As imagens reue cervejas, olhares penidas para se concluir culiares, figurinos de um livro desse tipo são vestidos, talheres finos um capítulo à parte. e decorações de époObjetivamente, reuni ca. Nos tempos idos, um universo de mais se exigiam fisionomias de 320 imagens, entre circunspectas de quem fotos, reproduções de posava para as fotos – documentos, de partiregistrar a imagem de turas e de jornais. Gealguém era algo muito nerosamente, os meus sério. Mesmo assim, companheiros de viamuitas das fotografias gem abriram seus álque reunimos provam buns, submetendo-se que a humanidade ao misto de euforia e sempre acha um jeisaudade que se combito de se insinuar – e nam indistintamente de encantar. Saberiam quando revisitamos aqueles rostos sisudos nossa memória. Subjeque no século 21 eles tivamente, cada foto inestariam estampados cendiava a imaginação, em papel couché a enprovocando o olho a carar leitores que se coatentar para seu estado municam por meio de de conservação, para O vitral acima e o da página anterior telefones celulares? aquele detalhe esconforam instalados quando o Hospital Cabem alguns dido, para sua teimosia foi reformado em 1950 agradecimentos espeem sustentar o fôlego ciais. Carmen Ursula e do passado. A tecnoloPio Renato, filhos de Doris José e Erica, tivegia de agora, especialmente graças ao escaram uma colaboração decisiva na conclusão neamento em alta definição, proporcionou deste livro, emprestando fotografias e informomentos de encantamento ao ampliar demações indispensáveis. Também importantalhes antes invisíveis – surgiram do passado
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te foi a colaboração do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (Muhm), cedendo imagens valiosas de seu acervo. Olga Nedel Schlatter assumiu vários papeis: foi dela a ideia de reunirmos em livro as histórias de três gerações da Família Schlatter, coube a ela a tarefa de traduzir vários textos escritos originalmente em Alemão, e veio dela, enfim, o entusiasmo para que esse projeto fosse concluído. Ao cabo da viagem, devo dizer que as bagagens que recolhi foram tornando a jornada cada vez mais leve. Se, por um lado, foram se sucedendo conflitos, perdas e dificuldades, por outro se ergueram conciliações, superações e conquistas. Viajando ao longo de várias vidas, viajei também dentro de mim, e descobri que a solução de tudo estava revelada por coincidência na última palavra do texto do livro. Está lá: amor. E a leitura da palavra, em se tratando do Hospital e da Família Schlatter, aceita múltiplos sentidos: amor por outra pessoa, pela família, pela arte, pela profissão, pelos valores morais, pela tradição. Tantos sentidos quanto forem os sentimentos. Mas esses sentimentos todos só fizeram sentido para mim no dia em que eu e Margarete Schlatter, filha de Theo Tássilo e Olga, fomos até Feliz para captar imagens recentes do Hospital. Como fica claro no livro, o Hospital Schlatter, agora de proprie-
dade da prefeitura felizense e administrado por uma fundação própria, luta para retomar seu velho espaço em um novo tempo. Se vai conseguir ou não, o futuro vai responder. Mas o passado não hesitou em dar suas respostas. Ao descer uma das escadarias do Hospital, percebi dois grandes vitrais instalados ainda nos anos 1950, um deles lembrando a fundação do Hospital, outro estampando o brasão de Doris José. A primeira impressão foi objetiva, causada especialmente pela qualidade do vidro, pela perfeição da transparência, pela delicadeza da ideia. A segunda impressão foi mais marcante. Parecia que a luz vinha do passado, filtrava pelos vitrais e tatuava a pele moderna de Margarete e de Renato. Um lance de escadas acima, o Hospital ainda expõe uma mistura de caliça e de caos característica de uma reforma tão profunda como a que o Hospital segue sendo submetido. Mas a luz que cruzava os vitrais era limpa, pura, absolutamente organizada em sua viagem até nosso olhos. Foi como se dissesse: "Um livro como o que vocês estão fazendo vai servir para iluminar o passado. Mas o mais importante é manter o coração iluminado pelo amor". Pensando bem, acho que não foi coincidência. Nas palavras do próprio Hospital Schlatter, "O melhor remédio contra o tempo é o amor".
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O Hospital
O Hospital
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uem escreve estas linhas é o Hospital Schlatter. Você está espantado? Nunca viu um prédio escrever um livro? Pois se prepare que este velho com mais de cem anos de idade tem muito o que contar. E vamos começar já por essa história de idade. A idade de alguém não se mensura em anos. A idade de alguém é medida pelos sonhos que a habitaram, não importando se concretizados ou não – o caminho que se toma é mais essencial do que o destino a que se quer chegar. Na verdade, os sonhos servem antes para remoçar do que para envelhecer. Talvez por isso, mesmo tendo sido erguido ainda na década de 1890, poucos anos depois de Picada Feliz ser elevada à condição de vila, me sinto como fosse um jovem. Me sinto jovem porque acolhi, embalei e protegi sonhos de milhares de pessoas, algumas delas enfrentando a finitude da existência,
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outras retemperando suas forças para encarar a vida, sem falar dos tantos bebês cujos primeiros vagidos ecoaram por meus quartos e corredores, anunciando que a roda da vida não tem tempo de parar. E acolhi e protegi também os sonhos de três gerações de médicos – Gabriel, Doris José e Theo Tássilo –, mas isso é assunto para mais adiante, que a trajetória desses três representantes da família Schlatter vale a pena ser contada com mais detalhes. Minha infância foi ligada ao comércio. No início do século 20, nossa Vila era Feliz e era também próspera. Os felizenses ostentavam o título de maiores produtores vinícolas do Rio Grande do Sul – não custa lembrar que a história da uva no Estado teve início em 1878, quando o clã felizense dos Ruschel forneceu as primeiras mudas de uva do gênero Isabel para os colonos italianos, que depois espalharam seus parreirais pela Serra gaúcha. Além disso, os na-
Vista da Rua Santa Catarina em direção ao Morro da Batata nos anos 1940 e hoje em dia
turais de Feliz orgulhavam-se do fato de a cidade sediar a primeira cervejaria de alta fermentação do Brasil, fundada por João Ruschel, em 1893. Eu levava uma vida agitada, mas sem maiores emoções, oferecendo meus salões para armazenagem de víveres e ferramentas que alimentariam as barrigas e moveriam os braços dos colonos, a grande maioria deles descendentes de alemães da região do Rio Reno, na Alemanha. Minha localização era privilegiada: construído numa elevação, vislumbrava o centro de nossa cidade com o Rio Caí como pano de fundo. Podia me entreter com o movimento diário da nossa progressiva comunidade: carretas puxadas a boi, a cavalo e a burro acomodando-se para acessar a balsa que as faria superar a correnteza e os pedregulhos do Rio Caí, viajantes envolvidos no entrae-sai dos hotéis, homens divertindo-se nas canchas de bocha, nos estandes de tiro ao alvo e no jogo de cartas, gente que matava o tempo e a sede nos bares improvisados da cidade, a largos goles do vinho tinto Golden Drepfhen, mais conhecido pelos que não falavam Alemão pelo faiscante nome de Gotas de Ouro. Os tempos mais duros, marcados pela conquista de espaço junto à floresta cerrada das margens dos rios e pela resistência aos
Acima, acesso ao Hospital em foto dos anos 1970. Abaixo, visão atual do acesso ao Hospital Schlatter
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Visão a partir do segundo andar do Hospital no ano de 1950 e agora
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ataques dos Caingangues e Botocudos, já haviam passado, embora muita gente ainda hoje comente, não sem razão, que os maiores inimigos da colonização eram mesmo as promessas feitas e jamais cumpridas pelo poder público – há coisas que não mudam, não importa quanto tempo passe ou quantos sonhos tenham sido vividos. A virada do século 19 para o 20, no entanto, marca ao menos três acontecimentos decisivos na minha história e na história de Feliz. Foi por essa época que os colonos foram forçados a abandonar quase completamente a cultura do feijão, que era a grande riqueza de nossa região, muitos deles colocando suas terras a serviço do plantio da alfafa. Os culpados por essa mudança foram a concorrência de outros estados do Brasil e uma devastadora praga de ferrugem, que inviabilizou economicamente o cultivo do feijão. Houve coisas boas também. Em 1900, finalmente se inaugurou uma ponte de ferro sobre o Rio Caí. Alguns incrédulos brincavam que a ponte, trazida desmontada da Bélgica, não passava de uma pinguela metida a besta. Quem sabia olhar ao longe, entretanto, percebia que os pouco mais de 50 metros de ferro e rebites eram a garantia de que nossa cidade faria sua travessia para o futuro. Mas não existe futuro sem saúde. E a saúde de Feliz começou a melhorar em
1909, quando o austríaco Gabriel Schlatter me comprou. Depois de uma ampla reforma, deixei de ser depósito de mantimentos e víveres para ser depósito de sonhos. Submetido à tenacidade e à capacidade inventiva de Gabriel, um ex-sapateiro e ex-pastor de ovelhas que tinha encontrado sua vocação na Medicina, transformei-me de armazém colonial em um hospital que abrigaria 12 leitos. Gabriel tinha chegado ao Brasil em 1898, e clinicou em Caí, Lajeado e Estrela até radicar-se em Feliz. Em pouco tempo, tive de arranjar lugares para os mais de 2 mil volumes de literatura médica da coleção de Herr Doktor, enquanto assistia aos filhos de Gabriel e de sua mulher, Anne Marie, crescerem junto com nossa cidade. Como diziam os antigos, o fruto não cai longe da árvore. Ou seja, os pequenos Doris José e Bruno acabaram seguindo a carreira do pai, enquanto as filhas Hedwig e Anna Francisca voltaram-se para o Magistério. A carreira de Bruno, não pude acompanhar de perto, já que ele tornou-se importante cirurgião com base em Porto Alegre. Mas Doris José, este eu segui de perto. Em 1950, ele assumiu o Hospital Schlatter – que nome bonito eu ganhei, não é? – e me fez crescer de tamanho e de ambição. Depois de custosas obras, virei um hospital com capacidade para 25 leitos, e meu perfil ficou mais vistoso, assumindo as formas tradicionais da arquitetura enxaimel.
Acima, Gabriel em frente à farmácia do Hospital. Abaixo, visão atual do prédio
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Doris JosĂŠ, Erica e filhos posam com seu Ford 36 em frente Ă casa/Hospital. Imagem de 1937
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Acima, Doris José, Erica e Ula entre escolares em frente à Igreja Católica de Feliz na Semana da Pátria em foto da década de 1940. Ao lado, visão atual da entrada da Igreja
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Panorâmicas da cidade de Feliz em foto feita em dezembro de 1934 e em imagem atual
Os frutos não pararam de cair. Doris José e Erica geraram três deles – Theo Tássilo, Pio Renato e Carmen Ursula, a Ula. Um dos frutos caiu perto da árvore: Theo formou-se médico e assumiu o hospital em 1966, logo depois da morte de seu pai. De novo, os Schlatter acharam que eu estava pequeno para o tamanho de Feliz, e, em 1978, novamente minhas paredes se moveram para que eu pudesse abrigar 50 leitos. O final dos anos 1970 e início dos anos 1980 foram de felicidade em nossa cidade. No campo, cresciam que dava gosto (e que gosto) as nossas plantações de moranguinhos, e começava a se implantar o cultivo da amora-preta. Na cidade, a atividade industrial era puxada por dois destaques: a unidade cervejeira da Antárctica, que teve
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origem na cervejaria Polka, e a usina de processamento de leite, nascida do Lacticínio Feliz, comprada em 1974 pela Lacesa, mais tarde adquirida pela Parmalat. O Hospital Schlatter refletia essa euforia: nos meus quartos, sempre asseados e tinindo de limpinhos, atingimos 300 internações por mês nos anos 1980. Entre partos naturais e cesáreas, eu cheguei a assistir a 35 por mês. O coroamento dessa fase foi em 1998, quando nossa cidade conquistou o primeiro lugar no ranking dos municípios brasileiros com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Feliz foi a primeira comunidade brasileira a representar o Brasil no seleto grupo de países com alto IDH – ficamos com o 62º lugar no ranking mundial.
Rio Caí, tendo por moldura a ponte metálica de Feliz, servia de balneário ao jovem Theo e irmãos
Ao longo de mais de cem anos, aprendi que o mundo progride em ciclos, alternando fases de alegria com momentos de dor, crescimento e estabilidade. Assim são as pessoas que conheci, assim são as terras que cultivamos, assim é a cidade que construímos. Em janeiro de 1997, ocorreu o fechamento das portas da Antárctica, seguido, três anos depois, pela interrupção das atividades da Parmalat. Os apuros econômicos que atingiram os felizenses afligiram, naturalmente, o casarão do velho Gabriel Schlatter. E foram agravados pela política federal de incentivar a criação de hospitais regionais e, principalmente, pelo atraso crônico nos repasses do SUS. "Mein", essa conversa está ficando
complicada demais. O fato é que, em 1998, a administração do Hospital Schlatter passou para a Unimed do Vale do Caí, e acabei mudando de nome: queriam que eu fosse chamado de Hospital Unimed de Feliz, embora, na boca do povo, eu seguisse sendo o tradicional Hospital Schlatter. Em dezembro de 2001, fui desapropriado pela prefeitura de Feliz. E, agora, chegamos à parte mais triste de minha história: entre março de 2002 e setembro de 2004, meus corredores e quartos se esvaziaram, minha cozinha perdeu a agitação das panelas e o cheiro dos temperos, meu pátio ficou maior na falta de pessoas – é impressão minha ou até os ciprestes plantados por Doris José ficaram mais acabrunhados e escassearam de número?
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Agora, estou me aprumando de novo, tentando reassumir progressivamente o papel que eu tinha quando era olhado com esperança e respeito pelos que subiam até mim em busca de saúde e bem-estar. Tudo na vida se move em ciclos, eu sei. Mas não vejo a hora de retomar os bons tempos, em que eu me rejuvenescia com o sorriso das mães, com a gratidão dos que se curavam, com o respeito dos que sabiam que aqui receberiam nada menos do que o máximo de atenção, de carinho e de capacidade profissional. "Na ja". Quem sabe lembrar como foi minha existência, transformar isso em fotos e em histórias impressas nas páginas de um livro poderá fazer o tempo voltar atrás? Ou andar em frente – afinal, a existência não se resume a ciclos?
A história que vou contar tem como fio condutor as trajetórias dos médicos da família Schlatter – Gabriel, Doris José e Theo Tássilo –, mas a vida e a prática desses médicos não seriam possíveis sem a presença de várias pessoas que construíram a minha vida com eles, especialmente as esposas, que, cada uma a seu modo, participaram do dia a dia do hospital, administrando e ajudando a administrar, coordenando enfermeiras e funcionários, lidando com a minha necessidade de crescer e com minhas demandas diárias, e que em casa sempre deram o apoio necessário para que os médicos pudessem estar aqui levando adiante a minha vida, a vida deles e de tantos outros. Nas próximas páginas, você poderá ser meu companheiro de viagem e reviver comigo essa jornada de mais de um século.
Construído em 1938, o Centro Catequético sediou a primeira escola primária de Feliz 24
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Gabriel
Gabriel
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primeira vez que vi Gabriel Schlatter, percebi logo que ele não era como os tantos colonos que vinham me procurar para adquirir mantimentos, sementes e ferramentas ou buscar informações sobre a região do Vale do Caí. De onde veio essa impressão? Certamente não foi porque ele caminhava de uma maneira peculiar, parecendo ter uma perna maior que a outra. Nem mesmo pelo jeito seco, quase turrão, que ele usava ao se expressar. Também não se devia ao jeito de ele falar, que nem bem soava aquele Alemão caprichado, nem bem seguia o dialeto Hunsrückisch, usado pela grande maioria dos colonos alemães no Rio Grande do Sul. O que impressionava em Gabriel era a reverência que a população tinha por ele. Se eu soubesse de antemão que ele era médico, até não ficaria surpreso com a aura de respeito que inspirava. Quem conhece
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a história da colonização alemã no Brasil sabe do que estou falando. Aqui, no desamparo das colônias, um médico pode significar a diferença entre vida e morte, luto e futuro. A iniciativa do Império brasileiro de atrair imigrantes europeus para o Brasil se manifestou pela primeira vez de maneira incisiva em 1824. A motivação mais nobre e mais aparente era a de ocupar as amplidões de nosso território, garantir o afluxo de colonizadores qualificados ou, ao menos, com disposição e conhecimento para constituir um arremedo de classe média, seja abrindo picadas para estabelecer colônias no sertão, seja abrindo pequenos negócios nas cidades. Além disso, a Côrte não escondia o objetivo de alocar os imigrantes em áreas disputadas com outros países – no caso mais crítico, as fronteiras gaúchas, que se redesenhavam a cada novo equilíbrio de forças entre Brasil e Argentina.
A motivação menos visível do Poder Central era recrutar, entre os imigrantes, soldados para integrarem os chamados Batalhões de Estrangeiros, que estavam sendo contingenciados às pressas para enfrentar uma possível tentativa portuguesa de reintegrar sua ex-colônia a força de armas. As promessas até que eram tentadoras: os colonos tinham direito a 50 hectares de terra, algumas vacas, bois e cavalos, isenção de impostos e serviços nos primeiros dez anos e algum auxílio financeiro. A Guerra dos Farrapos (1835 – 1845) interrompeu o fluxo migratório, só retomado por volta de 1846, desta vez elegendo o Vale do Caí como um dos destinos principais dos imigrantes alemães. Sobravam mato fechado e dificuldades para quem cruzava o Atlântico: o governo brasileiro não honrava suas promessas, a religião protestante não podia ser professada abertamente pelas limitações impostas pela Constituição imperial, as doenças do Novo Mundo eram uma novidade nociva para os colonos. Faltava saneamento básico, inexistiam hospitais, médicos eram escassos, especialmente aqueles que soubessem falar Alemão ou o dialeto Hunsrückisch e pudessem entender os queixumes dos doentes. E, convenhamos, qual o “alemão” que iria confiar em um médico “brasileiro”? Mas naquele médico
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austríaco que vinha subindo a lomba da Estrada Velha de Vila Feliz, aparentemente tratando de negócios com meu então dono, os colonos certamente confiariam. Ele sabia falar a língua dos que lutavam para sobreviver. Gabriel Schlatter chegou a Porto Alegre em 1898, dois anos depois de se formar médico naturalista em Viena. Naturalista era o termo técnico usado para indicar os clínicos que recebiam uma formação mais expedita e direcionada para o atendimento dos milhares de emigrantes alemães que deixavam seu país em busca de terra, trabalho e oportunidades em continentes ultramar. Inicialmente, ele deveria embarcar para Birmânia (atual Myanmar), na Indochina, mas atendeu ao convite de outro médico, doutor Rudolfo Maximiliano Czermak, e rumaram juntos para o extremo-sul do Brasil. Czermak se radicou em Taquara, onde abriu uma clínica de hidroterapia, mas Gabriel peregrinou um pouco pelo Interior gaúcho, clinicando em Lajeado, em São Sebastião do Caí e em Estrela. As andanças de Schlatter podem ser explicadas pelo esforço em encontrar uma colônia alemã que ainda estivesse carente dos préstimos de um médico com bagagem germânica, mas quem conhece sua história percebe logo que eram apenas a mani-
festação física de um impulso interior de manter-se sempre em movimento. Movimento que começou quando Karolina Schlatter deu a luz a Gabriel no dia 19 de novembro de 1865, em Lahnbach, no Tirol austríaco. Aos 10 anos, o menino foi indelevelmente marcado pelo falecimento do pai, Johann Georg. A causa principal da morte teria sido tuberculose, agravada por problemas de alcoolismo. Esse trauma acompanhou o pequeno por toda a vida, explicando por que Gabriel moveu incansável cruzada antietílica ao longo de toda a sua carreira de médico. Depois da morte de Johann Georg, a família teve de abandonar propriedade e gado em Lahnbach para saldar dívidas – restando de patrimônio apenas alguns colchões, panelas amassadas e a ajuda de uma irmã de Karolina que trabalhava de governanta na comunidade de Zams. Em seu diário, o futuro fundador do Hospital Schlatter conta que sua vida na nova cidade não era das mais fáceis: Além de ser o único estranho na aldeia, minha aparência causava estranheza e repulsa nos meus colegas de escola. Afinal, os tempos duros em Lahnbach tinham me deixado muito magro, quase esquálido. Além disso meu nariz aquilino e meus pés varos [voltados para dentro] fizeram com que me tornasse motivo de troça para a criançada.
O martírio da escola ficava para os meses de inverno. No outono, verão e primavera, o desafio para Gabriel era o de pastorear cabras, ovelhas, bezerros e vacas nos Alpes. Tratava-se de uma atividade desgastante e perigosa, dificultada ainda mais porque era praticamente impossível encontrar sapatos apropriados aos pés tão especiais do filho de Karolina e Johann Georg. Quem pastoreava nos ermos alpinos, convivendo com animais, vento e frio, contava com ainda mais uma companhia indesejável: a fome. Gabriel lembrava que, por vezes, em desespero, chegava a se ajoelhar nas rochas da cordilheira, desesperado para conseguir o que comer, gritando pela presença de sua mãe. A única resposta era o eco de sua voz, repetindo que resistir era preciso. Um episódio na infância de Gabriel ajuda a entender que a principal arma que aquele menino magro e narigudo contava para sobreviver era sua imaginação – mesmo que isso às vezes lhe custasse caro. Entre os pequenos trabalhos que ele desempenhou em Zams quando era garoto, estava o de tocar os sinos da igreja ao meio-dia e às 17h45min. O problema é que, às vezes, um sol cálido se erguia sobre a região, propondo um convite irresistível para nadar no rio, correr nos campos, brincar na floresta.
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