EDUARDO RODRIGUES
Negras melodias VOL. II
MÚSICAS DE FEITICEIRAS E SANTOS PECADORES
NEGRAS MELODIAS Músicas de Feiticeiras e Santos Pecadores Vol. II
EDUARDO RODRIGUES
NEGRAS MELODIAS Músicas de Feiticeiras e Santos Pecadores Vol. II
PORTO ALEGRE, 2019
Copyright © Eduardo Rodrigues, 2019 Coordenação editorial: Cláudia Coutinho Preparação de texto e revisão: Diego Figueira Capa, projeto gráfico e diagramação: Carolina Ruwer Imagens utilizadas nesta edição: arquivo pessoal do autor – divulgação e reprodução de capas de livros, discos de vinil, CDs e DVDs do próprio acervo Ícones: Flaticon Todos os direitos desta edição reservados à
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Rodrigues, Eduardo. Negras melodias: músicas de feiticeiras e santos pecadores; v.2. / Eduardo Rodrigues. -- Porto Alegre: Capítulo 1, 2019. 108 p.; il.; 14x21 cm. Contém encarte com fotografias.
1. Música: personalidades. 2. Jazz. 3. Blues. 4. Soul. 5. Folk. 6. Samba Jazz. I. Título. CDU 78.03 782/785
“O melhor que os negros disseram sobre a alma foi dito num sax tenor”. Ornette Coleman, saxofonista norte-americano.
“Um azul claro é como a flauta; um azul um pouco mais escuro, é um cello; mais escuro ainda torna-se um retumbante contrabaixo; e o azul escuro de todos, o órgão”. Kandinsky, pintor russo — seus pais tocavam piano e cítara. Ele, violoncelo.
SUMÁRIO Impressões, improvisos e composições..............................................................13 Música para ouvir (e ver).................................................................................15 LADO A – QUADROS FORA DA PAREDE Desça ao porão para se encontrar com o trompetista Freeman Lee..........19 Se Miles foi o Picasso do Jazz, Monk foi o cubista do piano....................24 Prazer, meu nome é Gildo Mahones.................................................... 27 O anjo da anunciação da pureza e da graça no Jazz...............................31 Dexter Gordon, gigante na altura e no talento...................................... 35 Sammy Davis, Jr., fotógrafo............................................................... 37 Vibrafonistas, santificados sejam os vossos nomes................................ 39 O Soul sinfônico e psicodélico de Isaac Hayes....................................... 43 Solos, flashes, beijos e sopapos na história de Frances e Miles................45 De Clark para Justin: humanismo em tempos obscuros...........................47 Uísque barato, mulheres, boas canções e Ray Crawford......................... 48 Muddy Waters desplugado e genial..................................................... 50
Harvey Fuqua e Cholly Atkins, muito além de coadjuvantes.................... 53 Bob Dylan, quem diria, flertou com o Jazz........................................... 55 LADO B – TELAS PARA PENDURAR Ethel é o miau do gato.......................................................................59 Uma obra do acaso imersa em suspense hitchcockiano......................... 62 Loucura amorosa contra as burrices do coração..................................... 65 Tabelinhas mágicas: Pelés e Coutinhos nos estúdios...............................67 Sopros de beleza sem igual para eternizar canções............................... 70 O dia em que Miles quase tornou seu um disco de Cannonball............... 71 Uma mulher chamada… Naima........................................................ 72 Monk olhou para a vaca e disse: “Mu-u-u-u-u-u-u-u”..............................74 Samba Jazz: armados com saxes, trompetes e trombones......................75 Ella ri, Sinatra sofre, Billie despreza..................................................... 77 Jazz, um caso de polícia ....................................................................81 Meus discos preferidos não são iguais aos teus..................................... 84 Lover Man segundo Jackie McLean..................................................... 85 SOBRAS DE ESTÚDIO – ESBOÇOS James Brown, um dínamo com cabeça, tronco e membros.................... 89 Melba’s Mood está à altura da mulher que a criou................................ 90 Matt Dennis, autor de Everything Happens to Me...................................91 As três musas do monge que devotou sua vida à música ...................... 92 Ouvindo Michael Jackson em uma tarde de sol ................................... 93 Tim Maia 1972 .................................................................................94 Sessentona — e agora em livro!........................................................94
Amigos no uísque e na dor................................................................. 95 JOE WILLIAMS — A voz à frente de uma senhora orquestra......... 95 JOHNNY HARTMAN, a emissão perfeita, a dicção talhada em pedra........96 JIMMY RUSHING — O trovão de Oklahoma.................................96 OSCAR BROWN, JR. — Cult até dizer chega................................ 97 E Deus criou… CHARLIE PARKER ............................................... 97 Soprando intimidades........................................................................ 98 BETTY “Bebop” CARTER.............................................................. 98 MARGE DODSON e seu timbre quente e sensual............................. 99 ERNESTINE ANDERSON — Uma ótima cantora subestimada........... 99 CHET BAKER, o grão da voz, a luz do trompete, o fundo do poço........100 BETTY ROCHÉ — Cantou, gravou e saiu à francesa......................101 A última dança................................................................................101 Referências.............................................................................................103 Trilha do livro .........................................................................................105 Agradecimentos ...................................................................................... 107
~ Para Marci ~
Impressões, improvisos e composições Pensei neste livro como o pintor que prepara uma exposição. E logo veio a pergunta inevitável: o que salvar do incêndio e o que esquecer para sempre no fundo da gaveta? Sempre associei o termo “cartesiano” a algo ou a alguém sistemático, regrado e racionalista. Esqueça. Em mim, a anatomia ficou louca. Primeiro, derramei um olhar crítico sobre os textos selecionados. Depois, sentindo o peso do que foi longamente gestado, dei aquela mirada amorosa de quem mobiliza o cérebro e o coração para realizar obras de valor. Desse cotejamento surgiu a seleta que compõe a mostra Negras Melodias – Músicas de Feiticeiras e Santos Pecadores – Vol. II. Impressões, improvisos e composições sobre artistas do Jazz, do Soul, do Blues, do Folk e do Samba Jazz, com perspectiva de gratificante maturação. Os perfis, notas e artigos publicados nesta edição estão expostos em várias galerias na internet. Uma parte foi pendurada no site da AmaJazz (www.amajazz.com.br) —
confraria de amantes desse gênero musical em Porto Alegre e alhures; outra parte está fixada no varal imaginário do blog Negras Melodias (negrasmelodias.wordpress.com); por fim, uma terceira e última leva, menor, mas não menos importante, ilustra a página Feiticeiras e Santos Pecadores que mantenho no Facebook. Como um pintor detalhista, voltei às telas originais para dar os últimos retoques. Revisei, cortei, poli e ilustrei a matéria-prima que tinha em mãos até chegar ao resultado que aí está. Espero que consigam ver por entre as molduras destas páginas algo que justifique a visita e recomende outras tantas. E.R.
Música para ouvir (e ver) Márcio Pinheiro*
A música – talvez a mais abstrata das artes – produz imagens. O Jazz – talvez o mais abstrato dos estilos musicais – revela novas imagens muitas vezes escondidas atrás de imagens já conhecidas. Negras Melodias – Música de Feiticeiras e Santos Pecadores, que chega ao segundo volume, é uma jam session e também uma exposição artística. Aguça os sentidos, transcende as fronteiras do Jazz e se espalha por outros estilos próximos: o Funk, o Soul, o Blues, a Blaxploitation do começo dos anos 1970 do século passado. Eduardo Rodrigues gosta de sons e imagens. Tenho o prazer e a alegria de tê-lo ao meu lado como um dos conselheiros da AmaJazz, site que edito há quase dois anos e do qual Eduardo se colocou como colaborador desde os primeiros dias. O que ele revelou aos leitores do site vem revelar aqui também: seu gosto pelos personagens, alguns por demais co-
nhecidos (Miles Davis, Thelonious Monk, Dexter Gordon, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Isaac Hayes…), outros íntimos de apenas alguns iniciados (Ray Crawford, Charles Freeman Lee, Harvey Fuqua…) e até algumas surpresas com alguns nomes conhecidos fora de seu habitat natural – como a paixão de Sammy Davis, Jr. pela fotografia. Um artista tão genial atrás das lentes quanto foi atrás dos microfones. Eduardo Rodrigues também gosta de “viajar” e de fazer listas. Prova disso é o texto dedicado ao Samba Jazz, em que ele sonha com uma viagem no tempo em que aterrissa nos becos de Copacabana da primeira metade da década de 60. Lá, ele lista algumas de suas admirações da música instrumental feita no Brasil: Raul de Souza, Dom Salvador, Os Cobras, Sergio Mendes e Dom Um Romão. Sons de um Brasil que sonhava grande. O que Eduardo Rodrigues nos convida a partir de agora é afinar os ouvidos (e também os olhos) para passear com ele por esta galeria musical. Este marchand musical faz uma seleção original e extremamente pessoal de suas preferências sonoras. Quadros que num primeiro momento causam estranhamento, mas que no final se completam – como deve ser o Jazz. *Jornalista, autor das biografias de Renato Borghetti e de Ayrton “Patineti” dos Anjos (com Roger Lerina) e CEO/Diretor-Presidente da AmaJazz, onde Eduardo Osório Rodrigues é nobre conselheiro.
LADO A ~
QUADROS FORA DA PAREDE
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Desça ao porão para se encontrar com o trompetista Freeman Lee Vou logo de saída dizendo que o Jazz tal como conhecemos é mesmo um museu de grandes novidades, mas alguns quadros permanecem escondidos, condenados ao esquecimento em galerias subterrâneas de difícil acesso. Se quiser encontrá-los, o ouvinte terá de agir como um curador atento e curioso. Ignorar a ala principal, onde reluzem os artistas famosos, e descer até o porão. É no subsolo úmido, sob o varal de teias com a densidade menor que a do algodão, que mofam as telas desprezadas. Entre essas pinturas, chutando por baixo, restarão uma ou duas obras de valor. A moldura com a imagem do trompetista e pianista Charles Freeman Lee pode ser uma delas. Os críticos dizem que não. Segundo eles, os “especialistas”, seu quadro jamais poderia figurar nas paredes ilustres do Jazz. Free-
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man Lee, como ficou conhecido, era visto como um músico limitado “cujo trabalho não guardava relação alguma com as ambições elevadas da arte”. Embora soe exagerada, a comparação faz sentido. Música e pintura são dois universos que se completam. Metáforas que servem para uma se encaixam perfeitamente noutra, como explica o pintor e ilustrador Marcio R. Gotland em artigo sobre o tema: “Compare o silêncio ao espaço vazio. Ambos estão à disposição do artista que poderá preenchê-los, respectivamente, com sons ou formas gráficas”, afirmou, evocando analogias de Kandinsky. Se, por um lado, músicos não sentem a angústia dos pintores diante da tela em branco, por outro, precisam preencher a partitura vazia. E Freeman Lee fez a lição de casa. Escreveu belas notas na sua pauta musical e tocou o mais bonito que pôde, mas sua obra se resume a meia dúzia de discos. Nenhum como líder. Além de gravar pouco, e sempre como músico acompanhante, ele deu um azar danado. Surgiu quando Dizzy Gillespie e Miles Davis já eram os reis da cena que logo depois seria dominada por outros trompetistas excepcionais, como Clifford Brown, Freddie Hubbard e Lee Morgan, três mitos do Jazz moderno; estilistas que empilhavam clássicos, um após o outro. Terá sido essa uma das razões para a crítica esnobá-lo? Provavelmente sim. Seu nome só era lembrado por 20
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músicos, amigos e familiares. Em 2017, vinte anos após sua morte, um dos spots mais potentes da indústria do entretenimento finalmente iluminou essa escuridão. Escrito por Annette Johnson, o livro A Jazzman’s Tale lhe trouxe de volta ao noticiário, mas não significou exatamente sua redenção. Uma história fascinante que me fez encomendar o livro e antecipar algumas impressões antes mesmo de sua chegada. Segundo as resenhas que li sobre a obra, Annette narra a trajetória do músico a partir de entrevistas que fez com o personagem e com uma de suas irmãs, além das pesquisas habituais. Há, como sempre, as armadilhas no caminho, o contato inevitável com as drogas e muitas, muitas gírias. O trecho de uma crítica estimula o leitor a ter o trompetista em seu acervo: “Annette escreveu uma obra de leitura rápida, altamente divertida e visualmente evocativa, demonstrando a desordem de uma vida do Jazz com uma linguagem que ecoa o espírito da improvisação”. Charles Freeman Lee nasceu em Nova York em 1927. Não foi um menino prodígio, mas começou cedo. No 21
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final da década de 1940, já integrava a banda dos irmãos Horace e Fletcher Henderson na Wilberforce University, em Ohio, Estados Unidos. Por essa orquestra também passaram pesos-pesados como Frank Foster, Benny Carter, Ben Webster, George Russell, Snooky Young e Billy Strayhorn, entre outros. Na mesma época, Freeman dividia suas noites entre o Paradise Club e o Minton’s Playhouse, ambos no Harlem, em Nova York. No Minton’s, participou das longas e famosas jam sessions que entraram para o lendário do Jazz. Tocou com Thelonious Monk, James Moody e Sonny Stitt, e gravou dois discos com o pianista Elmo Hope e Frank Foster, um dos saxes da linha de frente da orquestra de Count Basie. Confira o sopro quente e melódico do trompetista em Maybe So, Vaun Ex e So Nice, três faixas do disco Elmo Hope Quintet Vol. 2. É uma preciosidade na linha do Hard Bop. Freeman também aparece em coletâneas, ora como compositor, ora como membro do grupo vocal The Modern Sounds. E só. A Jazzman’s Tale pode até não alçar Freeman Lee do subsolo, mas abre a porta desse aposento soturno para entendermos os mistérios que levam artistas como ele a seguirem fora do circuito das grandes exposições do Jazz ou de qualquer outra arte. Só me resta ler o livro para saber o tamanho do buraco em que ele se enfiou ou foi jogado. 22
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DISCOGRAFIA DE UM SIDEMAN Wail Frank Wail (Esquire): Freeman Lee (trompete), Frank Foster (saxofone), Elmo Hope (piano), John Ore (baixo) e Arthur Taylor (bateria). 1956 Elmo Hope Quintet Vol. 2 (Blue Note): Elmo Hope (piano), Frank Foster (saxofone), Freeman Lee (trompete), Percy Heath (baixo) e Art Blakey (bateria). 1954-1959 Elmo Hope Trio and Quintet (Blue Note): Percy Heath (baixo), Leroy Vinnegar (baixo), Art Blakey (bateria), “Philly” Joe Jones (bateria), Frank Butler e Elmo Hope (piano), Frank Foster (saxofone), Harold Land (saxofone), Freeman Lee (trompete) e Stu Williamson (trompete). 1953-1957 Hope Meets Foster (Prestige): Freeman Lee (trompete), Frank Foster (saxofone), Elmo Hope (piano), Arthur Taylor (bateria) e John Ore (baixo). 1955 A Story of Modern Jazz – vários artistas (Blue Note): Freeman na faixa Crazy com Elmo Hope Quintet. 1997 Bebop It Began in the Big Apple (BHM Productions GmbH): Freeman Lee (trompete) com Elmo Hope Quintet. 1943 New York Is Our Home (Blue Note): Freeman Lee (trompete) com Elmo Hope Quintet. 2008
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Swings the Blues by Bennie Green (Blue Moon): faixa Love at Last. Freeman Lee creditado como compositor. 1960 Shades of Blue (Black Lion Recording) Howard McGhee. faixa My Delight – composta por Freeman Lee. 1961 Voilà: The Preacher (Esquire): álbum de Babs Gonzales, Freeman nos vocais, fazendo scat como integrante do Modern Sounds. 1958
Se Miles foi o Picasso do Jazz, Monk foi o cubista do piano Ao contrário do que muitos pensam, Thelonious Monk tinha mãos pequenas. Seus dedos, porém, eram longos como pincéis a martelar as teclas do piano com tonalidades que só existiam na sua cabeça. Sua obra representa uma ruptura radical da composição tradicional e da perspectiva na música. Vê-lo tocar é o equivalente jazzístico a ter visto Picasso pintar. 24
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Em comum, o número elevado de obras-primas. Round Midnight, um dos standards mais executados da história do Jazz, e Les Demoiselles d’Avignon, quadro icônico do gênio espanhol, são marcos incontornáveis da música e da pintura no século 20. Picasso e outros mestres cubistas não tinham compromisso com a aparência real dos objetos que pintavam, Monk – o pianista de imagens fortes – ignorou os padrões musicais existentes para criar um repertório original feito de dissonâncias inesperadas, ritmos quebrados e uso criativo do silêncio. Os dois revolucionaram a arte moderna, cada um a seu modo. Monk reinventou o piano, alargando suas fronteiras com poucas notas e intervalos duradouros. “Não toque tudo (ou o tempo todo). Deixe algumas coisas acontecerem. Improvise. O que você não toca pode ser mais importante do que o que você toca”, ensinou o pianista. Picasso, utilizando-se de técnicas diferentes, criou uma obra volumosa, inovadora e genial. Monk era um minimalista. Picasso, um artista polivalente: exibia igual talento em pinturas, esculturas, desenhos, cerâmicas e gravuras. Picasso gestou a revolução estética do cubismo, trabalhando a decomposição de objetos e figuras humanas. Monk concentrou toda a sua energia e imaginação na busca pela essência da música, tocando meia dúzia de notas; as notas certas, segundo a sua concepção. 25
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Há, no entanto, um lirismo que aproxima os dois. A música Ruby, My Dear, composta por volta de 1945, mas gravada dois anos depois, e o quadro Mulher Sentada, pintado por Picasso em 1949, são exemplos que evocam, por motivos diferentes, a importância da presença feminina em suas vidas. Acima de tudo, a celebração da mulher amada. Ruby é uma declaração derramada e amorosa à primeira namorada de Monk, Rubie Richardson. A mulher na tela retrata a amante e musa do pintor, Françoise Gilot, que à época estava grávida de sua filha Paloma. Analogias desse tipo ajudam a entender a gênese de uma criação, mas não explicam, em detalhes, a origem do talento de quem as criou. A essa altura, que importa? Se Miles, com suas fases e revoluções, foi o Picasso do Jazz, Monk foi o cubista do piano. Ouvir ao acaso um disco como Alone in San Francisco, preciosidade lançada em 1959 pela Riverside Records, é como pegar uma estradinha do interior e desembocar de repente em Giverny, Pienza ou Carmel.
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Prazer, meu nome é Gildo Mahones A grande história não está no ambiente festivo dos vencedores, mas no vestiário ferido dos derrotados. Do abraço dos afogados emergem os dramas que dão sentido à vida, ensina Gay Talese. Uma lição óbvia, mas nem sempre seguida, que aprendi e aplico no Jazz. Afinal, o que é mais difícil: jogar confetes sobre figuras consagradas ou retirar do anonimato artistas injustiçados pela história? O bom jornalismo recomenda a segunda opção, claro. Músicos como Gildo Mahones, Ray Crawford e Jutta Hipp trafegaram nas amplas avenidas do Jazz, mas foram condenados à solidão no acostamento. Se não cruzaram a ponte que leva ao paraíso, tampouco merecem o inferno a que foram relegados. Às vezes, é preciso lançar um pouco de luz sobre suas trajetórias. E, ao iluminá-las, a música e os ouvintes agradecem. Gildo Mahones morreu em abril de 2018, aos 88 anos. Você sabia? Provavelmente não. Nem a imprensa especializada, que ignorou a sua morte. Mas, apesar da cegueira da crítica, seus fãs não podem se queixar. A indústria fonográfica continua de olhos e ouvidos abertos e receptivos a obras de valor sem prazo de validade. De vez em quando, uma gravadora desconhecida abastece o mercado com reedições primorosas de grandes discos do passado. Em 2011, Gildo Mahones e seus admirado27