Fotografia e Identidade: do Crime à redenção

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Fotografia e Identidade: do crime à redenção Caroline Rebeca Comin Silva Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Resumo: O presente artigo tem como objetivo rever o papel social da fotografia na formação da identidade de indivíduos em três diferentes momentos. O primeiro desdobra-se nos finais do século XIX, quando a fotografia passa a integrar o Sistema de Identificação da Prefeitura de Polícia de Paris, o segundo, quando a imagem criminal, nos mesmos moldes da sua primeira aparição, suporta as ideologias de raça presentes no nazismo, e a terceira, quando o artista Manfred Bockelmann, na atualidade, revisa as imagens de “criminosos” da Alemanha do Terceiro Reich e envolve-se na missão de devolver às crianças judias sua verdadeira identidade, que se distancia completamente das ideologias sobre a raça criminosa. Cumpre-nos o papel de identificar o poder que a fotografia p ossui ao tipificar indivíduos e assim, suplantar suas reais identidades. Palavras-chave: fotografia criminal, fotografia documental, identidade, identificação, tipificação, nazismo, desenho e fotografia. 1 Introdução O que permitiu à fotografia poder ser considerada imagem científica? Sua relação de verossimilhança com o real: a objetividade. Embora esta seja uma afirmação sobre a qual muitas discussões já decorreram, em finais do século XIX não era raro a idealização da imagem fotográfica enquanto cópia mimética da realidade, uma espécie de “atestado de presença”1. Esta crença na exatidão da imagem fotográfica, ainda que ingénua, foi o sustentáculo para a utilização da fotografia enquanto meio de estudo em campos científicos. A eficiência técnica em capturar instantaneamente aspetos da vida natural, de espécies, de etnias, de partes do corpo possibilitou à arqueologia, à geografia, à antropologia, à criminologia, à medicina, e a muitas

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Fabris, A. (2002). Atestado de presença: a fotografia como instrumento científico. Locus-Revista de História, 8(1), páginas 29 – 40, p. 30. Disponível em https://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2438/1735. Acesso a 14 de outubro de 2016.


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outras ciências a utilização das imagens fotográficas para estudo, catalogação e arquivamento de importantes informações. Essa objetividade, entretanto, precisou ser normatizada nos diversos campos em que sua verdade era um benefício, pois apenas a objetividade não garantia um sistema científico apropriado para as devidas pesquisas e investigações. Normatizar é premissa para identificar e catalogar. Sem uma tipificação dos objetos e corpos, não é possível organizá-los em sistemas. Nosso ponto de discussão é justamente sobre como essa tipificação repercute na própria identidade dos indivíduos, sobretudo no campo da criminologia, onde o uso da fotografia científica fundamentou uma série de estudos sobre o tipo do “homem criminal”. A repercussão destas ideias em finais do século que originou todo o aparato fotográfico se estende para os campos do domínio e do controle, cooperando com diversas ideologias. Neste ponto, qual foi o papel da fotografia na criação e disseminação de novas identidades? Para podermos responder a esta questão será necessário, primeiramente, compreender como a fotografia passou a integrar o sistema criminal de identificação, reconhecer as suas pretensões e perceber como a sua normatização fortaleceu o ideal do tipo criminoso para, em seguida, compreender como a sua utilização se sobrepôs as singularidades que pretendia verificar, suplantando a identidade de diversos indivíduos ao tipifica-los. Em um segundo momento olharemos para a fotografia enquanto documento social caracterizador de indivíduos, sobretudo pelo trabalho de August Sander, e, depois, pelo governo nacional-socialista alemão para o qual, principalmente a fotografia criminal, se tornou em um meio eficaz para obter as “provas” necessárias para o aprisionamento, tortura e morte de milhões de pessoas. Finalmente, propomos uma outra imagem fotográfica, resignificada pelo desenho de Manfred Bocklemann2, que visa recuperar a verdadeira identidade de crianças judias, não sobreviventes de Auschwitz. Uma missão que o artista adotou e que desenvolve com base em diversas fotografias da Schutzstaffel (SS)3 e das famílias judias, cujas fotos foram recolhidas pelos nazistas e atualmente estão arquivadas no Memorial e Museu Auschwitz - Birkenau4. Desta forma será possível perceber o quão importante é pensar a imagem fotográfica enquanto formadora de identidade, muito mais do que apenas um suporte representativo da 2

Artista austríaco contemporâneo. Nasceu em Klagenfurt no ano de 1943. http://manfred-bockelmann.de/ A Schutzstaffel (SS), fundada em 1925 pelo partido nacional-socialista (NSDAP), consistiu inicialmente em um sistema de proteção do partido que ganhou proporções de guarda de elite quando Hitler assume o poder em 1933. In: The SS. Himmelr’s Schutzstaffel “Loyalty is my Honor”. Disponível em http://www.holocaustre searchproject.org/holoprelude/aboutthess.html. Acesso a 10 de janeiro de 2018. 4 http://auschwitz.org/en/ 3


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mesma. É preciso notar que, no passado ou no presente, nunca houve uma objetividade e sua invocação é, na maioria das vezes, motivada pela necessidade de controle sobre o mundo e os indivíduos. 2 A Fotografia Criminal e suas implicações sobre a Identidade Nos crescentes centros urbanos dos finais do século XIX, a objetividade da imagem fotográfica surgiu como dispositivo ideal para controle das massas pelo Estado e no seu poder outorgado às organizações policiais. Recordemos que em 1871 foi a fotografia de um grupo de communards5 que possibilitou a identificação dos “rebeldes” e a aplicação da devida correção6. Ainda mais eficaz será, na história da criminologia, a normatização da fotografia judiciária que instaura uma nova era da identificação e catalogação de criminosos. Durante o desenvolvimento dos departamentos de polícia e de reconhecimento de infratores, vários sistemas de identificação foram testados, desde marcas na pele por carimbos com ferro quente (cuja abolição ocorreu na França em 1832) até a recompensa de policiais que fossem capazes de identificar criminosos reincidentes (ineficaz pela sua constatação duvidosa)7. A necessidade de um sistema eficiente se justificava nas leis que conferiam o aumento da pena de um arguido caso este fosse reincidente, sendo o reconhecimento de sua identidade indispensável para a aplicação das devidas correções. Neste cenário frutuoso, mas um tanto quanto desorganizado surge a figura de Alphonse Bertillon, responsável pelo primeiro sistema científico de identificação criminal, o Sistema Antropométrico, aceito pela Prefeitura de Polícia de Paris em 1883. A antropometria de Bertillon desenvolveu-se a partir do sistema de medições que seu pai, o antropólogo Louis-Adolphe Bertillon, utilizava para catalogar esqueletos8, e consistia em um sistema de identificação fundamentado nas medidas humanas e suas marcas corporais. A base da antropometria se encontra em “duas premissas básicas: a fixidez quase absoluta da ossatura humana a partir do vigésimo ano de idade e a variabilidade extrema das dimensões

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Communards foram os membros e apoiantes da Comuna de Paris em 1871, o primeiro governo de operários que surgiu em resistência a invasão do Reino da Prússia. 6 Freund, G. (1980). Photography and Society. Boston: David R. Godine Pub, p. 108. 7 Galeano, D. (2012). Identidade cifrada no corpo: o bertillonnage e o gabinete antropométrico na polícia do Rio de Janeiro, 1894 – 1903. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(3), páginas 721 – 742, p. 726. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v7n3/a07v7n3.pdf. Acesso em 15 de outubro de 2017. 8 Turvey, B. E. (2011). Criminal profiling: An introduction to behavioral evidence analysis. Academic press, p. 96.


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entre dois indivíduos diferentes”9. Para Bertillon estes eram os dados que singularizavam um indivíduo em relação aos demais constituindo-se nas melhores informações para normatizar o sistema de reconhecimento. O sistema antropométrico, portanto, constava de uma ficha criminal onde se inscreviam as medidas de nove partes do corpo: “estatura, envergadura, altura do busto, comprimento e largura da cabeça, comprimento da orelha direita, comprimento do pé, dedo médio e antebraço esquerdo”10 a partir de instrumentos científicos já utilizados pela medicina. A precisão métrica era fundamental para o êxito do sistema de Bertillon, pois era a partir destas medidas que se podia classificar os criminosos, em um esquema matemático que reduzia todo o corpo do arguido a números. Dessa maneira, o próprio corpo humano oferecia os dados necessários para estabelecer rigorosamente a “identidade”, entendida aqui como uma qualidade do indivíduo que o faz absolutamente singular; característica com a qual se pode reconhecê-lo sempre como o mesmo, e como diferente de qualquer outro indivíduo.11 Para completar o processo de identificação, Bertillon acrescentou à ficha criminal, um “retrato falado”, da fisionomia e das marcas corporais, para o qual o criminologista também impos métodos de descrição específicos que ajudassem na identificação do arguido a partir de dados morfológicos e fisionómicos. Por fim, e para que a identificação fosse incontestada, a ficha criminal constava ainda de duas fotografias, frontal e de perfil (frontal por ser o modo que melhor se reconhecem os traços principais para reconhecimento, e de perfil por apresentar o desenho da cabeça que não se modificará com o passar dos anos)12, uma prova inequívoca da identidade. A fotografia tornou-se parte importante no sistema de Bertillon, ao ponto de este instalar no Departamento de Investigação um estúdio fotográfico e estabelecer normas estritas para a fotografia criminal13, pois um sistema fiável não poderia lidar com qualquer tipo de variação. Segundo Bertillon, a imagem fotográfica deveria ser a “mais mecânica possível”, desviando-se da linguagem considerada artística ao proporcionar uma reprodução do rosto humano na qual as suas medidas pudessem ser convertidas em um “plano arquitetural”14. Para tal, normatiza todo o processo fotográfico ao determinar a distância que a câmara deve estar do retratado, o

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García Ferrari, M.; Galeano, D. (2016). Polícia, antropometria e datiloscopia: história transnacional dos sistemas de identificação, do rio da Prata ao Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, (23), páginas 171-194, p. 172. 10 Galeano, D. op. cit., p. 728. 11 Ibidem., p. 729. 12 Fabris, A. op. cit., p. 32. 13 Hannavy, J. (Ed.). (2013). Encyclopedia of Nineteenth-Century Photography. Vol I: A-I Index. London: Rotleged, p. 1143. 14 Tomellini, L. (1908). Metric Fotography: Bertillon system. Lyon: A Rey & Cie, Imprimeurs – Éditeurs, p. 6.


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tipo de iluminação, o tipo de lentes que deve ser utilizada no processo, a pose e o tamanho do suporte. A partir da regulamentação da imagem, o sistema de Bertillon possibilitou a criação de um tipo através do qual seria possível arquivar e reconhecer determinados rostos. A análise deste sistema permite-nos perceber uma certa ambiguidade quanto as suas pretensões onde, por um lado, requer-se a singularidade do rosto e do corpo humano, mas por outro tipifica-o em uma imagem uniforme a fim de catalogá-lo. O que se caracteriza como único passa a ser universal na criação do tipo criminal. A tipificação de indivíduos a partir de suas medidas e imagem normatizada vai ao encontro de diversos estudos dos campos da antropologia, da psicologia e da medicina que, nas últimas décadas do século XIX, visavam o corpo como “index of interior states and dispositions of suspected individuals, a sing of the evolutionary status of groups, and more or less reliable indicator of present and future risks to society.”15. O principal difusor da ideia de um “corpo criminoso”, cujas características físicas podem indicar vestígios de delinquência, foi Cesare Lombroso16 que, a partir das teorias de Darwin, Drude, Kolm, Ries e Will sobre atitudes de “violência” do mundo animal e das plantas carnívoras17 desenvolve uma série de pesquisas para determinar qual seja o tipo d' “O homem delinquente”, publicado em 1876. Os arquivos criminais, estão intimamente conectados com o ideal positivista do século XIX, em que a fotografia, recebida enquanto cópia mimética da realidade, apresentaria o mundo natural “em linguagem matemática”18 pronta a ser medida e decodificada pelos peritos. As medidas do crânio, os traços fisionómicos, ou os sinais corporais, tudo poderia ser reduzido a números, cálculos e resultados. Então, “the archive could provide a standard physiognomic gauge of the criminal, could assign each criminal body a relative and quantitative position within a larger ensemble”19. Tanto no trabalho de Lombroso, como no de Bertillon, a fotografia é sinalética, ou seja, um suporte que torna visível os traços e sinais do tipo delinquente. A diferença entre os dois reside no fato de Bertillon focar-se nas questões de identificação dos indivíduos, enquanto que

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Horn, D.G. (2003). The criminal body: Lombroso and the anatomy of desviance. New York: Routledge, p. 1. Cesare Lombroso (1835-1909) foi médico, criminologista, cientista e antropólogo italiano. 17 Lombroso, C. (2007). O homem delinquente (S.J. Roque, Trad.). São Paulo: Ícone, p 22. 18 Sekula, A. (1986). The body and the archive. October, vol. 39 (Winter, 1986), pp. 3-64, p. 17. Disponível em http://www.jstor.org/stable/778312?seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso a 10 de janeiro de 2018. 19 Ibidem. 16


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Lombroso pretendia um “reconhecimento do perigo”, da face comum da delinquência20. Em uma sociedade em crescimento e desejosa de marcar estritamente as diferenças de classe e de tipo, este retrato do criminoso entra em contraste com aquele do burguês, fortalecendo uma identidade nova e destoante da normalidade, como nos elucida Annateresa Fabris: “A prova pela imagem é um dispositivo de que o século XIX lança mão para criar um poderoso sistema de defesa numa sociedade que estava se confrontando com um fenômeno inédito: a massa. Paralela à definição do corpo burguês, do corpo que respeitava a lei, é a definição do corpo criminoso, do corpo que colocava em risco a sociedade. Reduzido a um biótipo, esse corpo será passível de arquivamento e classificação, propiciando uma identificação alicerçada nos desvios da média. Nesse contexto, a fotografia confere um novo significado à definição de identidade…”21 A construção desta nova identidade é operada por todas as diretrizes que se impõem sobre a imagem fotográfica: sua iluminação, a pose preordenada, as diretrizes técnicas, o local. Todas estas características colaboram para a origem do tipo criminoso, do rosto e do corpo delinquente, do qual a sociedade precisa se proteger. A fotografia criminal, portanto, deixa de ser o suporte para representação do indivíduo. Carregado de intenções, o olhar que passa pela câmara e enquadra o rosto do criminoso procura mais do que uma mera imagem do real, antes inscreve sobre aquele rosto e corpo uma nova identidade. O aparelho técnico cria o afastamento necessário para que esta personalização não seja tão fortemente sentida, mas o disparo providenciado pela mão do fotógrafo é certeiro: nunca mais aquele rosto se distanciará da sua condição de delinquente, ele permanecerá arquivado ao lado de outros inúmeros rostos que partilham a mesma tipificação. 2. Fotografia e Tipificação Social A modernidade englobou dois eventos importantes que revolucionaram as formas de existência em sociedade. Tanto a Revolução Francesa quanto a Revolução Industrial, com suas proposições políticas e económicas, ocasionaram mutações significativas na coletividade principalmente por proporcionarem a emergência do fenómeno das massas e de uma nova estratificação social que apresentava, por um lado, a classe dominante denominada burguesa, e por outro, a classe operária ou proletariado. Segundo Annateresa Fabris, a formação desta “massa anónima no território da cidade” despertou o interesse científico sobre a interpretação social, originando diversos estudos, cuja

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Horn, D.G. op. cit., p. 20. Fabris, A. op. cit., p. 33.


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base eram os diferentes tipos de sujeitos que, desde o século XVIII, deslocavam-se para os centros urbanos. No século XIX as propostas de apropriação da fisionomia humana como meio de identificações socias era uma prática corrente. Fabris cita alguns casos de destaque que se desenvolvem até o seu culminar na obra de Charles Darwin “A expressão das emoções no homem e no animal” publicada em 187422. Unidas a estes estudos podemos ainda acrescentar outras abordagens, não apenas fisionómicas, mas também antropométricas que igualmente pretendiam a abordagem do indivíduo na sua esfera social. São exemplos as obras de Franz Joseph Gall e Johann Spurzheim “A anatomia e fisiologia do sistema nervoso em geral, e do cérebro em particular” de 1809 onde fundamentam os princípios da frenologia, a do criminologista Cesare Lombroso, já citado anteriormente, “O homem delinquente” de 1876, a de Adolphe Quetelet “Sobre o homem e o desenvolvimento das suas faculdades ou Ensaio de Física Social” de 1835, entre muitas outras. Quetelet é considerado o pai da antropometria, ou da “Física social” como o próprio autor se referia a este campo das ciências sociais23. Com base em alguns estudos de astronomia na medição de corpos celestes, Quetelet propôs a sua teoria do “homem médio, nas suas dimensões física, intelectual e moral”, o qual seria definido a partir de “um grande número de medições de casos representativos de uma população”24. Neste momento o corpo deixa a sua esfera individual e assume sua posição enquanto parte de um grupo social, de onde derivam os estudos científicos sobre o mesmo. É preciso ter em consideração que o pensamento queteletiano se desenvolve a partir de uma crença no determinismo divino da existência humana, fundamentado no protestantismo que permeou toda a formação académica de Quetelet e sobre o qual teve forte influência. Para o estudioso a ciência era a maior dádiva divina entregue ao homem para que este desvendasse os mistérios da sua própria existência. A construção do “homem médio”, portanto, assume uma vertente religiosa, na qual a “normalidade” é definida a partir de desígnios divinos revelados pela ciência métrica do homem e tudo que não se enquadrasse neste padrão deveria ser considerado desviante. Ao estudar certos textos de Quetelet, Santiago Pich descreve alguns dos princípios que regem estes estudos científicos: “… as leis que regem o funcionamento da realidade agem, não sobre o homem individual, mas sobre o homem enquanto espécie, sobre a população; em segundo lugar, essas leis atuam sobre todas as dimensões do ser humano, sobre o ser físico, moral e intelectual; em terceiro 22

Fabris, A. (2004). Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 43-45. 23 Pich, S. (2013). Adolphe Quetelet e a biopolítica como teologia secularizada. História, ciências e saúde – Manguinhos, 20 (3), páginas 849-864, p. 850. Disponível em http://www.redalyc.org/html/3861/3861 38078007/. Acesso em 19 de novembro de 2017. 24 Ibidem, p. 852.


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lugar, elas regulam a vida da espécie sem que possa haver interferência da vontade (individual) do ser humano e são fruto do Criador; e, por fim, as leis são ‘exatas’ e, portanto, estão sujeitas à calculabilidade e são de caráter universal.”25[grifo nosso] A fotografia envolve-se muito cedo neste cenário de estudos do ser social. Sua aparição pública em 1839 coincide com o desenvolvimento destes diversos campos de exploração científica da sociedade do século XIX e, como já referimos anteriormente, a credibilidade na objetividade técnica da imagem fotográfica garante-lhe um espaço privilegiado enquanto instrumento de avaliação da realidade. É a partir deste contexto que a função social da fotografia deve ser entendida. Se nas décadas subsequentes a sua aparição, diversos campos científicos já haviam aderido a imagem fotográfica e normatizado a sua utilização a fim de classificar os tipos socias, como no caso da criminologia, no cotidiano das sociedades oitocentistas a popularização do retrato fotográfico caminhava na mesma direção da tipificação social, embora com menor consciência científica e normatizada sobre este ato. Gisèle Freund descreve em seu livro “Photography and Society” como decorreram as primeiras décadas no comércio da fotografia, sobretudo na França. Embora a economia local não tenha permitido um acesso imediato à imagem fotográfica nos primeiros 15 anos de sua existência, mesmo para a burguesia, na década de 1850 este cenário se modificará drasticamente por causa da ascensão económica de que se beneficia a classe burguesa neste período. Segundo Freund, “This group provided a new clientele for portrait photography. Having achieved financial security, they sought to display their new-found prosperity and photography ideal vehicle.”26. Neste ponto a necessidade de idealização27 exposta por Fabris é uma constante no retrato fotográfico. Sua função não é apenas a de criar a imagem que satisfaça o gosto burguês, mas, e principalmente, que apresente a distinção de sua posição social como alguém perfeitamente enquadrado no tipo médio: honrado, sábio, de boa moral, excelente nos diversos papéis que desempenha. Se a pintura havia sido, por excelência, a arte da representação aristocrática, a fotografia ocupou este lugar para a burguesia, embora com algumas ressalvas. O retrato aristocrático visava “inscrever um indivíduo na continuidade das gerações”, enquanto que o retrato burguês simbolizava “o gesto inaugural da criação de uma linhagem em virtude do êxito do seu fundador”28. A idealização, portanto, diz respeito a uma construção imagética que

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Ibidem, p. 854. Freund, G. Op. Cit., p. 53. 27 Fabris, A. Op. Cit., p. 27. 28 Ibidem, p. 29. 26


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representasse o poder económico e posição social da classe burguesa, enquanto essa tentava afirmar-se socialmente através da imagem. Esta representação encontrará o seu auge no momento em que Disderi apresenta o carte de visite, através de um negativo em vidro que possibilitava ao fotógrafo oferecer algumas cópias do retrato por um preço bem menor do que aqueles produzidos em placa metálica29. Ao baixar os custos e aumentar o número de cópias da imagem fotográfica Disderi atraiu um público bastante diverso que requeria igualmente o seu direito à imagem ideal. Esta imagem não procurava pela “verdade” do sujeito, mas o subjugava aos estereótipos sociais que Disderi começou a vender aos seus clientes. Poses, gestos, roupas e cenários criavam uma ilusão do tipo burguês (nas suas mais diversas ocupações: o cantor de ópera, o artista, o intelectual), ainda que o sujeito fotografado não se encaixasse em nenhuma destas representações verdadeiramente. Walter Benjamin considera que é neste momento de industrialização da imagem fotográfica que ela experimenta a sua decadência aurática30. Para Benjamin, as primeiras décadas da fotografia (que se desenvolvia sobretudo pelos retratos), conservavam na imagem a sua áurea, pois conseguiam, ainda que por um meio de reprodução técnica, apresentar originalidade tanto no sujeito fotografado – na busca pela sua personalidade, individualidade, quanto na imagem enquanto projeto do olhar atento do fotógrafo – na sua perspicácia e talento em posicionar, iluminar e enquadrar o seu objeto de forma a fazer ressaltar seus aspetos mais intimistas. Neste momento, embora houvesse uma construção idealizada da realidade, ela não era normatizada e reproduzida socialmente de maneira a forçar todos os indivíduas a se encaixarem nas suas representações. O invento de Disderi atraiu muitos indivíduos e democratizou o acesso à imagem fotográfica, mas acarretou uma imensa perda neste processo, ao produzir uma representação onde “por detrás das imagens estereotipadas, as personalidades desaparecem quase por completo”31 fazendo emergir o tipo social em detrimento do individual. Neste momento tudo se torna réplica, tanto a imagem do sujeito enquanto cópia do tipo burguês, quanto a própria reprodução técnica da imagem – cópias da cópia, perdendo toda a sua originalidade.

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Freund, G. Op. Cit., p. 69. Benjamin, W. (1992). Pequena história da fotografia. In: Benjamin, W. (1992). Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’água, p. 116. 31 Ibidem, p. 73. 30


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Os tipos sociais comercializados por Disderi (e por outros que o seguiram), demostram essa capacidade inerente a fotografia de criar identidades sociais, subvertendo as individualidades às representações de estereótipos sociais. “Representação honorífica do eu burguês, o retrato fotográfico populariza e transforma uma função tradicional, ao subverter os privilégios inerentes ao retrato pictórico. Mas o retrato fotográfico faz bem mais. Contribui para a afirmação moderna do indivíduo, na medida em que participa da configuração de sua identidade como identidade social. Todo retrato é simultaneamente um ato social e um ato de sociabilidade: nos diversos momentos de sua história obedece a determinadas normas de representação do modelo, a ostentação que ele faz de si mesmo e as múltiplas percepções simbólicas suscitadas no intercâmbio social.”32 Na passagem do século XIX para o XX, a fotografia mantém a sua função social já que o primeiro grande conflito mundial acarreta, ao seu término, certos sobressaltos identitários – “a general psychological insecurity”33. O trauma da guerra e as condições turbulentas que se seguiram ao confronto despertaram questões sobre a natureza da sociedade e o futuro da nação, que em momentos de ordem social e segurança nacional não fariam sentido, mas que no caos nacional se auto propõem: “Quem somos nós, e para onde vamos? O que nos espera?”. Os photo-books ganham, neste contexto, uma função social ideológica fortemente marcada pelo uso da imagem enquanto reconstrutora da identidade nacional. São exemplos destes trabalhos “This is peace: the revolution of time in 300 pictures” (1928) de Franz Schauwecker, “The face of the age” (1930) e “People at work: Fifty-six photographic portraits from German industrial cities” (1931) de Erich Retzlaff e “Everyday heads” (1931) de Helmar Lersky. As incertezas políticas, económicas e sociais, unidas à já antiga questão da “massa anônima”, transformam-se em território profícuo de estudos dos homens daquele século. Entre estes fotógrafos também se destaca August Sander que publica em 1929 “Antlitz der Zeit” (Faces of the time), uma mostra reduzida (de 60 fotografias) do que seria um projeto muito mais ambicioso de Sander: um photo-book dos rostos do seu tempo divididos em 46 álbuns, cada um contendo 12 fotografias34. Infelizmente o projeto final nunca foi publicado por Sander, sendo que contamos atualmente com duas versões do que seria o original: a primeira foi editada por seu filho Gunther Sander em 1980 sob o título original “August Sander: Menschen des 20.

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Fabris, A. Op. Cit., p. 38. Keller, U. (1986) In. Sander, A. (1986). August Sander: citizens of the twentieth century. Portrait Photographs 1892-1952 (Edited by Gunther Sander). The MIT Press: Cambridge, MA, p. 8. 34 Lange, S. (1999). A testimony to Photography: reflections on the life and work of August Sander. In: Lange, S., Döblin, A. & Heiting, M. (Ed.). (1999). August Sander 1876-1964. Köln, Madrid, London, New York, Paris, Tokio: TASCHEN, p. 109. Apenas para apresentar as divergências que podem surgir em uma publicação póstuma, Keller defende um trabalho original com 45 ábuns (na versão editada por Gunther Sander), enquanto que Lange nos apresenta 46 álbuns. VER Keller, U. Op. Cit., p. 23. 33


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Jahrhunderts” e a segunda é publicada em 2002 em uma edição organizada por Susanne Lange35. Ambas encontraram dificuldades em reconstruir o trabalho inicial do fotógrafo visto que boa parte de seus negativos foram destruídos pelos nazis e por um bombardeio que incendiou seu estúdio em 194436. Nascido na zona rural de Herdorf, na Alemanha, Sander começou a fotografar na juventude, com uma câmara pessoal que obteve com a ajuda financeira do tio37. Quando se desloca para a cidade de Trier em 1897, enquanto cumpria o serviço militar, inicia sua formação técnica ao trabalhar como assistente do fotógrafo George Jung em um estúdio local38. Uma viagem de três anos garante-lhe passar por outros estúdios nos quais desenvolve suas habilidades enquanto fotógrafo e alcança uma maturidade profissional de que necessitava para, finalmente, fazer sua própria fama na cidade de Linz. Seu trabalho nestes anos, estrutura-se sobre o género do retrato e é através dele que Sander encanta a burguesia local, o que, unido ao seu casamento com filha de um oficial da corte, possibilita a sua ascensão social. Enquanto retratista Sander percebe o valor que a imagem possui para a burguesia e os seus retratos desta época revelam sua procura por uma pose, um gesto, um cenário que fossem interpretados pela elegância, requinte e comedimento, tudo que pudesse ser lido como a perfeita imagem do típico burguês. Em 1909, quando Sander transfere-se com a família para Cologne, a falta de clientes regulares no estúdio força-o a dividir-se entre os poucos pedidos de Lindenthal e alguns projetos nas quintas de Westerwald. É neste novo local de trabalho que Sander passa a ter uma visão mais clara sobre as estruturas sociais tão divergentes em seu país. Entre a antiga burguesia de Linz e a atual zona rural de Westerwald, Sander reconhece as qualidades únicas desta última e passa a fotografar seus habitantes. Neste ponto, seu trabalho começa, pouco a pouco, a desenvolver um caracter documental incitado igualmente pela sua adesão ao “Group of Progressive Artists” que colaborou para um entendimento formal da fotografia enquanto documento objetivo da realidade, a partir do qual Sander desenvolve um novo método de impressão para atingir o que definia como “pure photography”39. Segundo Andy Jones “he

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Sander, A., Lange, S., Conrath-Scholl, G., Sander, G., Murer, B., & Carrion, C. (2002). Menschen des 20. Jahrhunderts: ein Kulturwerk in Lichtbildern eingeteilt in sieben Gruppen; People of the 20th century: a cultural work of photographs divided into seven groups; Hommes du XXe siècle: une œuvre culturelle divisée en sept groups. Müchen: Schimer/Mosel. 36 Keller, U. Op. Cit., p. 20. 37 Lange, S. Op. Cit., p. 106. 38 Ibidem, p. 107. 39 “In order to achieve a clear pure photography, I use Zeiss lenses, an orthochromatic plate with corresponding light filter, and clear fine-grained glossy paper.” In: Letter dated 21 July 1925, REWE- Library in the August


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[Sander] saw his work as a search for truth, a search which was registered aesthetically in his abandonment of the pictorialist techniques which had been his stock-in-trade as a commercial portraitist, and his tur towards a ‘straight’ photographic style”40. Desde, pelo menos, 1911 que Sander iniciou o projeto “Menschen des 20. Jahrhunderts” enquanto esboço documental da sua época, ao perceber nas imagens de Westerwald e arredores um tipo de homem natural que lhe agradava e cujas fraquezas e hábitos conhecia desde a juventude41. Sander iniciou um processo de organização e seleção em seu arquivo de negativos, onde reservou diversas fotografias dos seus anos em Linz e depois em Westerwald, para observá-las a partir de seu valor enquanto documento, mais do que pelo seu valor estético (técnico/formal). As fotografias produzidas no meio rural eram comparadas com aquelas imagens da classe burguesa e Sander começa a perceber aqueles indivíduos, não como seres singulares, mas como tipos de uma sociedade germânica do século XX. É o início de um estudo da sociedade a partir da imagem, assumida como documento social. Produzido durante um extenso período que abarcou os dois conflitos mundiais, o projeto de Sander, publicado postumamente pelo seu filho (falamos da primeira edição de 1980), divide-se em sete grupos: “The Farmer ‘Germinal Group’”, “The craftsman”, “The woman”, “The professions”, “The artist”, “The metropolis”, “The last people”42. Esta estrutura foi aplicada de acordo com diretrizes do próprio Sander que já aparecem na publicação de 1929 (“Antlitz der Zeit”) e reflete o entendimento que ele possui da própria estrutura social de seu tempo. Ao iniciar pelo tipo que considera “o original”, apresenta ao leitor aqueles indivíduos que considera estarem no topo desta estrutura (provavelmente pela sua condição de homens ligados à terra que é anterior aos processos de industrialização da sociedade – anterior a decadência social que culmina com os horrores da guerra), e termina com “os inferiores”, os últimos dos homens (idiotas, doentes, insanos), em uma clara “filosofia da decadência”43, onde Sander Archiv. In: Lange, S. Op. Cit., p. 108. Quanto a este tema de ordem formal da fotografia de Sander, Keller faz notar a influência de Laszlo Moholy-Nagy que, na década de 1920, propõe a “functionalist photography”, no qual os fotógrafos deveriam abdicar de uma estética fotográfica subjugada à pintura e explorar as capacidades inerentes à técnica da fotografia. Esta proposta refletiu-se não apenas sobre a estética fotográfica, como também colocava a câmara a serviço da realidade tal qual ela se apresentava ao fotógrafo. In: Keller, U., Op Cit., p. 7. Susanne Lange, acrescenta: “the three [Sander, Blossfeldt e Renger-Pazsch] ushered in a redefinition of the medium as a technically and aesthetically independent means of expression, signaling a fundamental change of direction in the history of photography… they created in the twenties and early thirties the now so familiar icons of the New Objectivity.” In: Lange, S. Op. Cit., p. 105. 40 Jones, A. (2000). Reading August Sander’s Archive. Oxford Art Journal, 23(1), pp. 3-21, p. 3. Disponível em https://www.jstor.org/stable/3600459?seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em 23 de novembro de 2017. 41 Lange, S. Op. Cit., p. 109. 42 Keller, U. Op. Cit., p. 36. 43 Ibidem, p. 23. Keller propõe também, nas páginas 38-39, a aproximação desta estruturação com a teoria de George Hansen apresentada em seu livro “The three levels of population” (1889) onde divide a sociedade em três


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os indivíduos fotografados assumem posições mais ou menos honradas, de acordo com a tipificação social que recebem por parte do seu retratador. A partir deste momento não é apenas como fotógrafo que Sander desenvolve seu trabalho, mas também como um atento observador e classificador social, sendo que este último não pode ser esquecido na leitura que fazemos da sua obra. Ulrich Keller distingue a abordagem deste fotógrafo por não ser “a sentimental kaleidoscope of humanity, but rather a systematic inventory of society”44, portanto, a ação de Sander não pode ser vista com imparcialidade, como se o seu olhar sobre a sociedade alemã do século XX fosse uma abordagem meramente descritiva, embora a sua busca por uma “verdade” assim o quisesse. Esta verdade é, em parte, uma construção que o fotógrafo desenvolve ao escolher o local onde encontrar e fotografar os indivíduos45, ao definir qual sujeito representa melhor determinada classe, e também decidir quais grupos serão representados e quais serão privilegiados em sua abordagem. Todo o processo de “Menschen des 20. Jahrhunderts” é uma leitura muito particular da sociedade, na qual o enquadramento e escolhas de Sander não são neutras, mas assumem suas próprias ideologias de tipo sociais. Seu método de eleger e classificar certos tipos em detrimentos de outros demonstra a quantidade de pré-conceitos que acompanham o fotógrafo em sua ambição documental. Suzanne Lange parece defender uma abordagem menos ideológica do trabalho de Sander. Seu pensamento desenvolve-se a partir do fato de que o fotógrafo faz ressaltar as individualidades do sujeito, para depois tomar certas particularidades enquanto características próprias de um grupo, sem reduzi-los a “mere clichés or stereotypes”46. Mas seria isto possível? Como alguém se propõem a fotografar e classificar sujeitos sem reduzi-los aos tipos de sua classificação? Mesmo que Sander, como exímio fotógrafo que era, conseguisse ressaltar todas as características que tornam aquele sujeito único, o ato de tipificação universaliza estas características e subjuga todos os outros sujeitos da mesma posição as suas condições. Na era em que os estudos sobre o homem se desenvolvem, sobretudo na sua esfera social, um trabalho como o de Sander apresenta uma possibilidade de leitura da sociedade, ainda que ele não tivesse a intenção de propor uma teoria sociológica. escalões: “the ‘landowners’, from the farmer to the aristocrata; the ‘middle class’, from the craftsman to the professor; and the ‘class of the propertyless worker and proletarian”. 44 Ibidem, p. 1. 45 Keller nos alerta para a reduzida geografia que Sander elegeu para o seu projeto a partir de 1924, quando começa a fotografar exclusivamente para “Menschen des 20. Jahrhunderts”. O fotógrafo demonstra uma preferência notável pela sua terra natal, marcada pelos territórios de Bergisches Land, Koblenz, Rhine e Westerwald. uma reduzida abrangência para um projeto que se pretendia documentar as faces de todo um século. In: Keller, U., Op. Cit, p. 17. 46 Lange, S. Op. Cit., p. 110.


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Enquanto documento a fotografia apresenta alguns problemas. Elas nos servem na medida em que pretendem nos dar a conhecer certa realidade, mas este conhecimento, não raro, está cercado por diversas teias de engano. A fotografia criminal, por exemplo, cuja função principal era a identificação de infratores reincidentes resultou em um conhecimento que se pretendeu universal e universalizador do tipo criminal. O perigo envolvente desta tipificação revela-se no fato de a fotografia, ainda que com um referente verdadeiro – o ser fotografado -, apresente-se cheia de significados duplos pautados pela construção da imagem através das técnicas e regras sobre as quais ela se constrói. No caso da leitura social, o engano também está na visão parcial e ideológica da sociedade, que igualmente se pretende universal. Esta construção da imagem reflete-se na construção do tipo, que está verdadeiramente presente naquele cenário, mas que não é verdadeiramente retratado devido às condições impostas para a sua retratação e posterior classificação. Ambos os géneros fotográficos, criminal ou documental, assentam-se sobre a crença da exatidão da imagem, a sua “objetividade”, e partilham igualmente a pretensão de tornarem-se fontes de conhecimento e informações sobre os motivos que retratam, entretanto incorrem no risco de criar realidades outras que não aquelas que se pretende retratar, propondo leituras dúbias e perpassadas de preconceitos que, frequentemente, acabam por se generalizarem no inconsciente coletivo, propondo diversas identificações e identidades. 3. A Fotografia na Alemanha Nazista e a raça criminosa No ano de 1934, August Sander é surpreendido pela sentença do Ministério da Cultura Nazi que ordenava a destruição de todas as cópias do seu photobook Antlitz der Zeit e dos negativos que a ele correspondessem47. O trabalho de Sander em procurar pelas faces do seu tempo que representassem a Alemanha (neste caso correspondente ao período da República de Wemair) através dos seus diversos tipos sociais apresentou-se como um problema para a nova política cultural nazista. Durante o Terceiro Reich, Dr. Joseph Goebbles foi nomeado Ministro para Educação Pública e Propaganda48 e Diretor da Câmara de Cultura do Reich49, tornando-se um dos 47

Baker, J. (1996). Photography between Narrativity and Stasis: August Sander, Degeneration, and the Decay of the Portrait. October, vol.76 (Spring, 1996), pp. 72-113. Disponível em https://www.jstor.org/stable/778773. Acesso a 8 de janeiro de 2018, p. 78. 48 Reichsminister für Volksaufklärung und Propaganda In: Welch, D. (1993). The Third Reich: Politics and Propaganda. London and New York: Routledge, p. 18. 49 Reichskulturkammer (RKK), estruturado em sete departamentos (imprensa, rádio, filme, literatura, teatro, música e belas artes), para os quais foram nomeados diferentes presidentes. In: Welch, D., Op. Cit., p. 26.


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principais responsáveis pela Kulturpolitik (política cultural) do nazismo. O principal objetivo destes órgãos de poder era a educação moral da nação de acordo com os princípios e valores elevados da raça ariana definidos pelo Führer. Goebbles, portanto, possuía a importante missão de conduzir o espírito nacional a sua elevada moral, o que significava proceder com ações de propaganda a favor destes princípios e valores e com o controle acirrado das produções artísticas nacionais, bem como da imprensa, em ações de censura e perseguição àqueles que não se enquadrassem nestes novos padrões da cultura alemã. Kulturpolitik in the Third Reich had a ‘revolutionary’ role in an attempt to create a ‘people’s culture’ which would express the new art forms of the National Socialist Revolution. Government statistics regularly purported to show the increasing number of ‘people’s theatres’, ‘people’s films’, ‘people’s sculpture’, ‘people’s radio’, etc., all off which were intended to reflect the manner in which art was being brought to the people and expressing the ‘national community’.50 Volksgemeinschaft, a comunidade nacional, requeria uma imagem de nação unida pelos propósitos nacional-socialistas, "a single transcendent cultur”51, na qual todos os cidadãos suplantassem as suas individualidades e posições sociais para apoiar a nação, a raça, o Führer. É neste sentido que o trabalho de Sander torna-se em um problema político nacional. Sua abordagem da sociedade alemã é percebida pela lógica da estratificação social, onde os adjetivos que acompanham os sujeitos fotografados, como proletário, camponês ou político, vinham ressaltar as questões de luta de classes promovidas pelos ideais marxistas52, que, na década de 1930, configura-se em um dos piores inimigos do fascismo: o comunismo da URSS53. A maior ameaça que os nacional-socialistas temiam era uma revolta judaicobolchevista, nos moldes da Revolução Russa de 1917. Não faltavam para a época relatos e estudos que comprovassem a ligação entre o povo judeu ao partido bolchevique da URSS, bem como da sua intenção última de domínio mundial54. Verdadeiros ou falsos, a verdade é que

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Welch, D., Op. Cit., p. 29. Kasher, S. (1992). The art of Hitler. October, vol.59 (Winter, 1992), pp. 48-85, p. 50. Disponível em http://www.jstor.org/stable/pdf/778831.pdf. Acesso a 6 de janeiro de 2018. 52 Baker, J. (1996). Op. Cit., p. 87. Baker defende neste artigo que Sander não trabalha para “Menschen des 20. Jahrhunderts” embasado por ideologias políticas marxistas, antes disso, possui uma noção clara de decadência do homem, cujo ciclo inicia pela figura do camponês como tipo originário que se corrompe no mesmo ritmo em que a sociedade se moderniza. Entretanto, não deixa de referir as leituras políticas que são possíveis a partir do trabalho de Sander, principalmente pela sua ligação ao grupo de Pintores Progressistas de Colônia durante a década de 1920. 53 Note-se que Erich Sander, filho mais velho do fotógrafo, é preso também em 1934 pelo crime de “alta traição”, devido a sua participação em grupos e partidos revolucionários antinazistas. In: Baker, J. Op. Cit., p. 78. 54 Luz, E. (2006). O eterno judeu: anti-semitismo e antibolchevismo nos cartazes de propaganda política nacionalsocialista. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, p. 60. 51


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estes formam os principais motivos pelos quais a propaganda nacional-socialista se encarregava da missão de propagar o sentimento anti semitista. O antissemitismo tem sua origem no anti judaísmo da Idade Média, como faz notar Enrique Luz, em sua pesquisa de mestrado intitulada “O eterno judeu” (2006). Luz, refere os intensos esforços dos líderes cristãos (católicos e protestantes) em criar uma imagem dos judeus como povo herege, que não reconhecia a Jesus como “O Cristo”, ímpios e zombadores de Deus. As diferenças religiosas foram palco para uma rivalidade crescente, acrescidas por lendas onde os judeus eram precursores de males como a peste bubônica, ou de rituais satânicos, faziam aumentar o ódio e violência contra os mesmos. Um dos argumentos contra os judeus utilizados por Lutero, um dos mais proeminentes teólogos protestantes do século XVI, era a forte ligação que este povo tinha com o trabalho e o dinheiro, aspetos “mundanos” que os caracterizavam como dignos de repulsa55. No processo de secularização das sociedades modernas, o anti judaísmo passa a ser antissemitismo, cujo fundamento é justamente acusações de ordem económica e política, nas quais os judeus eram acusados de enriquecerem às custas do trabalho e riqueza natural dos países onde se encontravam. Sua significativa presença na sociedade alemã fazia supor, no início do século XX, que a falta de empregos e oportunidades de negócios devia-se à crescente presença dos judeus que, paulatinamente, conquistavam o lugar dos alemães em sua própria terra. “eles [os judeus] mantém a nós, cristãos, cativos em nossa própria terra. Eles tomaram nossos bens pela sua maldita usura, eles zombam de nós e nos insultam porque trabalhamos. Eles são nossos senhores, e nós e nossos bens pertencemos a eles”56 Entre os séculos XVIII e XIX, as questões raciais foram plataforma para estudos científicos como os de Conde Joseph Arthur de Gobineau em “Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas”, publicado entre 1853 e 1854 em quatro volumes, nos quais ressaltava a existência de três raças principais, sendo, naturalmente, a raça branca – ariana - superior as demais – os semitas57. Ainda no século XIX, a teoria de Charles Darwin, do seu estudo “A origem das espécies” (1859) sobre o conceito de seleção natural, elabora a ideia de que na luta pela vida, os seres mais aptos superarão os mais frágeis. O “social-darwinismo”, elaborado por Herbert Spencer, traz os princípios de Darwin para o campo da política, com uma diferença significativa: para Darwin a seleção natural se desenvolvia a partir de modificações do espaço natural, enquanto que o social-darwinismo encarrilou pela ideia de hereditariedade, a raça que 55

Ibidem, p. 40. Trecho do discurso de Lutero utilizado em um panfleto dos nacional-socialistas. In: Luz, E. Op. Cit., p. 40. 57 Ibidem, p.45. 56


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se mantém mais forte ao longo da história58. Embora não desejassem o extermínio de nenhuma raça, nem mesmo a escravatura de nenhuma delas, Gobineau e Spencer elaboraram um sumário de princípios que aturam como legitimadores de uma série de ações políticas e sociais principalmente na Alemanha nazista. O ponto alto dos estudos e discursos sobre raça na Alemanha apresentam-se nos escritos de Eugen Dühring, que afronta diretamente aos judeus em “A questão judaica como questão racial, comportamental e cultural” de 1881. Dühring argumenta que os judeus são uma espécie de “parasitas socias” que corrompem a nação alemã desde o seu interior. Alimentado pela ideia de uma conspiração judia de domínio global pela extinção dos outros povos, Dühring apela a uma política que erradique de vez o problema social que são os judeus na Alemanha59. Depois de Dühring, segue-se Theodor Fritsh com “Catequismo Anti-semita” (1887) e “Manual da questão judaica”60, ambas apresentando os judeus como os causadores dos problemas socias e económicos do país, além de inferiorizarem a sua raça na medida em que sobrelevam os arianos. O cientificismo sobre as questões de raça são parte de uma cultura que enaltecia o saber científico no século XIX e se conectam com os diversos estudos que citamos nas secções 1 e 2 do presente artigo, quais sejam, os estudos da frenologia, da fisiognomonia, da criminologia, onde as questões estéticas da medida do crânio ou da cor da pele são determinantes para a identidade e identificação dos indivíduos. Na Alemanha do Terceiro Reich, estes estudos ganharam maior projeção nas políticas de erradicação dos judeus e de fundamentação para uma consciência nacionalista geral. Mas para legitimar tais ações, era necessário a construção no imaginário popular da imagem do judeu enquanto criminoso, este ser abominável que corrompia a moral e a sociedade ariana, cuja superioridade era cientificamente comprovada. A criminalização da raça judia, portanto, é uma das armas mais poderosas da propaganda nazista. Neste sentido a fotografia ganhará um importante espaço social e político na Alemanha do Terceiro Reich. Enrique Luz, expõe um dos cartazes apresentado pelo partido nacionalsocialista para as eleições de 1932, cujo conteúdo é depreciativo da estética facial judia. No topo do cartaz, escrito em alemão, mas com uma grafia que faz alusão ao alfabeto judaico, lêse “Nós votamos em Hinderburg” e, a seguir, surgem 10 fotografias de rostos judeus. Abaixo delas, outra inscrição, agora com a típica grafia alemã, “Nós votamos em Hitler”, seguida por outras dez fotografias de rostos alemães, todos pertencentes ao partido nacional-socialista. Para 58

Ibidem, p. 48. Ibidem, p. 50-52. 60 Ibidem, p. 52. 59


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finalizar, “Olhe para estas cabeças e você saberá as quais você pertence”61. Luz ressalta que as fotografias escolhidas para os dois grupos tendem a projetar as características físicas que distinguem alemães, “com feições retas, narizes e lábios finos, cabelos curtos e bem penteados62” e judeus, pejorativamente com “narizes proeminentes, cabeças arredondadas, muitos eram carecas e usavam óculos”63. Embora não faça nenhuma referência a superioridade ariana de forma direta, a propaganda demonstra que o partido de Hinderburg promoveria os interesses de uma raça estrangeira, cuja estética comprovava a sua não participação entre os verdadeiros arianos. A nível de propaganda, além da sua estética, os judeus são sempre apresentados como seres abastados, ligados à ganância comercial e ao capitalismo, fazendo emergir uma tipificação generalizada da raça judia, estigmatizada pela sua aparência física, que as imagens – devidamente selecionadas – vinham a caracterizar de forma universalizadora, fazendo com que todos os alemães correspondessem a um determinado estereótipo e os judeus a outro, inferior e repulsivo. Imagens recuperadas e mantidas pelo Museu Auschwitz – Birkenau, também revelam a capacidade da imagem em sugestionar a inferioridade de uma raça, legitimando a sua extinção. A utilização do método de Bertillon pelos fotógrafos64 da Erkennungsdienst, departamento de identificação de prisioneiros criado dentro do campo de Auschwitz – Birkenau supervisionado pela SS para a catalogação dos judeus presos em campos de concentração65 (Figura 1) seguem o intuito da construção do tipo delinquente, utilizada como método de dominação e legitimação de políticas de segurança pública na França dos finais do século XIX, que durante a Segunda Guerra Mundial são empregues pelos nazistas para a criação da raça criminosa, delinquente, inferior, novamente comprovadas pela imagem fotográfica.

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Ibidem, p. 101. Ibidem, p. 102. 63 Ibidem, p. 101. 64 Geralmente prisioneiros que trabalhavam como fotógrafos antes de serem presos em campos de concentração. In: Mourato, P. (2012, outubro 24). Morreu Wilhelm Brasse, fotógrafo dos horrores de Auschwitz. Diário de Notícias, publicação online. Disponível em https://www.dn.pt/artes/interior/morreu-wilhelm-brasse-fotografodos-horrores-de-auschwitz-2843571.html. Acesso a 9 de janeiro de 2018. 65 Ibidem. 62


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Figura 1- "A boy from Ukraine with camp number 58076, arrested in KL Auschwitz as Ukrainian political prisoner". Autor desconhecido. Disponível em http://auschwitz.org.

A utilização da fotografia pela propaganda nazista e nos campos de concentração, ressalta novamente o poder legitimador que este meio possui. A construção de identidades forçadas por imagens previamente selecionadas e interiorizadas em discursos anti semitistas surgem como uma “verdade” exposta ao olhar público que, informado por estas imagens, apoia e legaliza os crimes cometidos pelo governo do Führer. 4. A redenção: da fotografia ao desenho São justamente as imagens como da Figura 1 que sensibilizam o artista plástico Manfred Bockelmann, ao ponto de, em 2013, iniciar a série “Zeichnen Gegen das Vergessen”, em português conhecida por “Desenhar para nunca mais esquecer”. O projeto consiste em diversos desenhos a carvão de retratos de crianças judias que não resistiram aos trabalhos forçados em Auschwitz. Com um formato de 150 por 110 cm, os retratos são considerados pelo próprio artista “work of feeling shame”66, pois requerem da consciência contemporânea um sentimento de empatia e um estado de alerta, para que a história, pelo menos neste ponto, não volte a se repetir. Ao apresentar-nos estes rostos, ainda sem marcas do que viriam a ser seus próximos dias em um campo de trabalhos forçados, Bockelmann fornece-nos um meio de identificação com estas vítimas: eram apenas crianças, como qualquer uma daquelas que conhecemos, tinham família, iam à escola, divertiam-se, embirravam, possuíam futuro, eram humanas. Como foi

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Manfred Bockelman In: http://drawing-against-oblivion.com/en/the-work.html.


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possível o seu extermínio diante dos olhos passivos de inúmeras pessoas? Seríamos nós capazes disto? Em 2015, sob a direção de Bärbel Jacks, foi produzido um documentário com o mesmo nome da série de desenhos, onde Bockelmann divide sua trajetória de pesquisa e produção artística para este projeto. Com a colaboração de alguns sobreviventes de Auschwitz, e com cenas do próprio campo, o documentário nos permite compreender qual é a luta pessoal e artística de Bockelmann. Ele se pergunta: “O que sucedeu a todas as crianças que nasceram no lugar errado?”67. Bockelmann confronta-se com o ano de seu próprio nascimento, 1943. Como deixar escapar que no ano em que nascera, milhares de pessoas morriam diariamente, simplesmente pelo fato de serem judias, incluindo crianças? Filho de um integrante do partido nazista, Bockelmann também carrega a vergonha deste envolvimento tão próximo com a história que pretende contar. Embora não entre em julgamentos desnecessários sobre as decisões do pai, compreende que foi aquela geração quem fez “Hitler possível”68. Por isso, sente-se na obrigação deste trabalho de resgate das vítimas, para que ninguém se esqueça delas e para, em um desejo de subversão, falhar com o projeto nazista de extermínio total. A vergonha pela participação de sua própria família, e por perceberse como parte desta história, a dor de pensar no sofrimento e angústia daquelas crianças, levou Bockelmann a uma intensa busca pelos rostos infantis, extinguidos em campos de concentração, que não tiveram a oportunidade de serem choradas, nem pelos pais, nem pelos amigos, nem pela nação que a condenou. No documentário sobre a série Bockelmann ressalta a importância da utilização do carvão para os desenhos, material que se aproxima do que são as cinzas e, para o artista, aquelas crianças tinham sido transformadas em cinzas, desde a sua subjugação a uma tipificação cruel de raça criminosa até a sua completa extinção. A partir de fotografias feitas pela Erkennungsdienst (departamento de identificação) de diversas crianças em imagens semelhantes a que apresentamos acima, Manfred Bockelmann encontrou um material significativo com o qual trabalhar. Para ele estas fotografias possuíam um emotividade particular. Os jovens estavam desenraizados quando tiraram as fotografias. Sentados numa cadeira, sem cabelo e com uniforme da prisão, os seus olhos expressam o seu desconcerto…

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Manfred Bockelmann In: Jacks, B. (Director) & Kunac, D. (Produtor). (2015). Drawing Against Oblivion [Filme]. Áustria: George M. Fischer (Editor). 68 Ibidem.


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contemplam os seus assassinos. Estão no campo de concentração, a serem fotografadas pela Gestapo, e nos seus olhares lê-se uma interrogação. Porquê eu? Que mal eu fiz?69 A leitura que Bockelmann apresenta como “desenraizamento” da imagem fotográfica refere-se a falta de uma identidade genuína no sujeito retratado. A fotografiapode apresentarnos um sujeito, mas isso não significa que aquela imagem corresponda a quem ele é verdadeiramente. Portanto, procurar pelas raízes, pela imagem verdadeira, “capturar” aquele rosto, eram importantes para Bockelmann, por que seu projeto, antes de tudo, é um resgate da identidade destas crianças, a fim de trazê-las de volta em um suporte onde elas possam ser vistas, relembradas e choradas. Em um momento do documentário, enquanto desenha uma menina, Bockelmann faz o seguinte comentário: “Para mim, é importante captar a Ruth de uma maneira fidedigna”70. “Desenhar para nunca esquecer”, requeria esta aproximação com as feições mais representativas do retratado. Mas, apesar da nobre intenção do artista, tanto a fotografia que suportava o seu trabalho plástico, quanto o próprio desenho em si, são meras representações. A imagem, por mais fiel que tente ser ao seu referente, possui inúmeras construções de outras ordens que se sobrepõem ao que verdadeiramente é. Na fotografia, mesmo naquelas do álbum de família, a roupa, a pose, o local, o momento e o enquadramento influenciam a leitura que fazemos da imagem. No desenho, a perceção do artista, sua leitura da fotografia, o sentimentalismo que envolve seu trabalho, a carga histórica que se sobrepõem a estas imagens, a dramaticidade conquistada pelo carvão, pelas sombras mais ou menos aprofundadas, tudo isso sobrecarrega a caracterização dos rostos expostos e oferecem ao expectador nada mais que uma identidade construída. Não queremos, em nenhum momento sugerir que um trabalho como o de Manfred Bockelmann, não possui valor pela sua autenticidade e temática. Sua reflexão pessoal, exposta nestes retratos, são importantes na contemporaneidade não apenas pelo teor das questões colocadas por Bockelmann, mas também pelo alerta que estas imagens nos proporcionam em nos relembrar dos horrores de que são capazes os humanos. Entretanto, é preciso compreender que este trabalho é também uma posição política, onde o artista nos apresenta o seu ponto de vista e insere as imagens dentro do seu próprio discurso. Neste sentido, as identidades resgatadas serão sempre as identidades que Manfred Bockelmann escreveu.. Considerações finais

69 70

Ibidem. Ibidem.


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O enorme interesse do século XIX em estudar as massas populacionais e suas consequências, sobretudo nos campos da sociologia e da criminologia, apontam para a origem daquilo que Michel Foucault denomina biopolítica71. As mudanças governamentais que se sucederam à Revolução Francesa colocaram em causa os meios de vigilância e punição, onde se faziam necessário que o Estado assumisse o domínio sobre os indivíduos sem por em causa o sentimento de liberdade que os cidadãos deveriam gozar em suas novas sociedades. Para o Estado, transformar os inúmeros indivíduos em um grande grupo, mais ou menos uniforme, enquadrados em tipologias, facilitaria o trabalho de intendência social. A partir do século 19 já não importava apenas disciplinar as condutas individuais, mas, sobretudo, implantar um gerenciamento planificado da vida das populações. Assim, o que se produzia por meio da atuação específica do biopoder não era mais apenas o indivíduo dócil e útil, mas era a própria gestão da vida do corpo social.72 De um poder soberano que “mata a vida” para servir como exemplo de punição para os outros indivíduos, a sociedade moderna passou para um poder, também soberano, que “gere a vida”73, onde o corpo individual torna-se lugar de ação política que objetiva o saneamento social. Em contrapartida, é justamente nesta dedicação à preservação da vida que os poderes instituídos tendem a uma violência colossal contra todos que representem uma ameaça a pureza dos seus. Foucault analisa como a guerra torna-se, dentro da biopolítica, um mal necessário. As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens.74 O modo de operação da biopolítica, portanto, refere-se a esta dedicação total à erradicação do mal social, que encontra seu ápice nos confrontos mundiais, como é o caso do genocídio dos judeus pelos nazistas. Entretanto, também opera diariamente em instituições estatais, como são os casos das delegacias de polícia da França em finais do século XIX, para

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Duarte, A. (2008). Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. Revista Cinética, 1, pp. 1-16. Disponível em http://www.observatoriodeseguranca.org/files/sobre%20a%20biopolitica.pdf. Acesso a 10 de janeiro de 2018. O autor do artigo faz referência a alguns títulos de Michel Foucault como “Vigia e punir”, “História da sexualidade. Vol.1 Vontade de Saber” e “Naissance de la biopolitique”, para explanar o conceito de biopolítica dentro do pensamento do filósofo. 72 Duarte, A. Op. Cit., p. 3. 73 Ibidem, p. 4. 74 Foucault, M. (1999). História da Sexualidade, vol. I A vontade de saber. 13a ed. Rio de Janeiro: Graal, p. 129. In: Duarte, A., Op. Cit., p. 5.


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as quais, encontrar, identificar e catalogar os rostos da delinquência, significava ter o controle sobre a segurança pública nacional. A fotografia, neste campo de ação política, é extremamente importante, porque torna-se em objeto de identificação dos corpos a serem defendidos, dos corpos a serem punidos, dos corpos a serem extintos. A prova da criminalidade do sujeito, da sua posição social, da sua raça, ou mesmo da sua absolvição, provém da imagem fotográfica, que, embora apresente-nos um indivíduo singular, tende, a partir de suas características particulares, enquadrá-lo em grupos sociais. Allan Sekula, em seu artigo “The Body and the archive” (1986), comenta sobre a eficácia que a imagem fotográfica possui em contruir uma espécie de “arquivo-sombra”, no qual o imaginário coletivo aprende a classificar os indivíduos de acordo com uma “social and moral hierarchy”75. Segundo Sekula “the general, all-inclusive archive necessarily contains both the traces of visible bodies of heroes, leaders, moral exemplars, celebrities, and those of the poor, the diseased, the insane, the criminal, the nonwhite, the female, and all other embodiments of the unworthy”76. Fazemos notar, a partir da presente pesquisa, que a fotografia não é imagem fidedigna, objetiva, imparcial como a partida se faz crer. As formatações a que são impostas, bem como os discursos que as suportam são construções que servem a interesses de poder e domínio, onde as identidades reveladas, são igualmente construídas. Desde Bertillon a Bockelmann, percebemos como sua utilização social é capaz de criar uma série de estereótipos e tipificações que nem sempre correspondentes com a realidade, mas que tendem a construir um imaginário coletivo, para o bem ou para o mal. Referências Bibliográficas Baker, J. (1996). Photography between Narrativity and Stasis: August Sander, Degeneration, and the Decay of the Portrait. October, vol.76 (Spring, 1996), pp. 72-113. Disponível em https://www.jstor.org/stable/778773. Acesso a 8 de janeiro de 2018. Benjamin, W. (1992). Pequena história da fotografia. In: Benjamin, W. (1992). Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’água.

75 76

Sekula, A. Op. Cit., p. 10. Ibidem, p. 10.


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Duarte, A. (2008). Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. Revista Cinética, 1, pp. 116. Disponível em http://www.observatoriodeseguranca.org/files/sobre%20a%20biopolitica. pdf. Acesso a 10 de janeiro de 2018. Fabris, A. (2002). Atestado de presença: a fotografia como instrumento científico. LocusRevista de História, 8(1), páginas 29 – 40, p. 30. Disponível em https://locus.ufjf.emnuvens. com.br/locus/article/ view/2438/1735. Acesso a 14 de outubro de 2016. ________. (2004). Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG. Freund, G. (1980). Photography and Society. Boston: David R. Godine Pub. Galeano, D. (2012). Identidade cifrada no corpo: o bertillonnage e o gabinete antropométrico na polícia do Rio de Janeiro, 1894 – 1903. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(3), páginas 721 – 74. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/ v7n3/a07v7n3.pdf. Acesso em 15 de outubro de 2017. García Ferrari, M.; Galeano, D. (2016). Polícia, antropometria e datiloscopia: história transnacional dos sistemas de identificação, do rio da Prata ao Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, (23), páginas 171-194. Hannavy, J. (Ed.). (2013). Encyclopedia of Nineteenth-Century Photography. Vol I: A-I Index. London: Rotleged. Horn, D.G. (2003). The criminal body: Lombroso and the anatomy of desviance. New York: Routledge. Jacks, B. (Director) & Kunac, D. (Produtor). (2015). Drawing Against Oblivion [Filme]. Áustria: George M. Fischer (Editor). Jones, A. (2000). Reading August Sander’s Archive. Oxford Art Journal, 23(1), pp. 3-21. Disponível em https://www.jstor.org/stable/3600459?seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em 23 de novembro de 2017. Kasher, S. (1992). The art of Hitler. October, vol.59 (Winter, 1992), pp. 48-85. Disponível em http://www.jstor.org/stable/pdf/778831.pdf. Acesso a 6 de janeiro de 2018. Keller, U. (1986). In Sander, A. (1986). August Sander: citizens of the twentieth century. Portrait Photographs 1892-1952 (Edited by Gunther Sander). The MIT Press: Cambridge, MA. Lange, S. (1999). A testimony to Photography: reflections on the life and work of August Sander. In: Lange, S., Döblin, A. & Heiting, M. (Ed.). (1999). August Sander 1876-1964. Köln, Madrid, London, New York, Paris, Tokio: TASCHEN. Lombroso, C. (2007). O homem delinquente (S.J. Roque, Trad.). São Paulo: Ícone.


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