ano XIII número 155 fevereiro 2010 R$ 9,90
Rio: esperança da favela nas obras do PAC
Eleições de 2010
O que está em jogo
Direita ataca para esconder crimes da ditadura militar
A arte social
de pixadores e grafiteiros
São Paulo: o protesto dos
movimentos culturais
Crise econômica:
acabou ou continua?
ENTREVISTA
Moacir Gadotti
“Educação é o maior entrave do desenvolvimento brasileiro”
ANA MIRANDA BRUNO GARIBALDI CARLOS LATUFF CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA IGOR OJEDA JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU TATIANA MERLINO
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CHEGOU O FASCÍCULO Nº 5
GRANDES CIENTISTAS Brasileiros
Já nas bancas! A nova série de fascículos da Editora Casa Amarela conta a trajetória de vida e as descobertas de 24 grandes cientistas brasileiros, homens e mulheres que contribuíram para a ciência e para a construção de um mundo melhor – são cientistas e humanistas, biografados em 12 fascículos, dois personagens a cada número quinzenal, formando, ao final da coleção, uma obra de referência de 384 páginas.
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CAROS AMIGOS ANO XIII 155 FEVEREIRO 2010 ano XIII número 155 fevereiro 2010 R$ 9,90
Rio: esperança da favela nas obras do PAC
Foto de capa JESUS CARLOS
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Eleições de 2010
O que está em jogo
Direita ataca para esconder crimes da ditadura militar
A arte social
de pixadores e grafiteiros
São Paulo: o protesto dos movimentos culturais
Crise econômica:
acabou ou continua?
sumário
ENTREVISTA
ANA MIRANDA BRUNO GARIBALDI CARLOS LATUFF CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA IGOR OJEDA JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU TATIANA MERLINO
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Caros Leitores. Marcos Bagno comenta a “insegurança linguística” e a chamada hipercorreção. Mc Leonardo critica a Unidade de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro.
Moacir Gadotti
“Educação é o maior entrave do desenvolvimento brasileiro”
Guto Lacaz.
EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO
07 08
José Arbex Jr. denuncia a ofensiva da direita para controlar a memória histórica. Joel Rufino dos Santos: torturadores comuns e da ditadura são irmãos siameses. Guilherme Scalzilli aponta o descrédito público do Congresso Nacional.
Avançar com dignidade O Brasil não pode mais continuar refém da direita. Toda vez que o país, governo e sociedade tentam avançar na democracia participativa, igualdade de direitos, distribuição da renda e da riqueza, justiça para todos, os setores mais reacionários, saudosos da ditadura civil-militar, empresários do agronegócio, donos da grande imprensa oligárquica e os privilegiados do neoliberalismo em geral, partem para o ataque. O último alvo foi o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, bombardeado em várias frentes – a tal ponto que obrigou o governo federal a recuar no objetivo principal da proposta, que era o de investigar e esclarecer os crimes praticados pelo Estado de 1964 a 1985. A Caros Amigos ouviu intelectuais e defensores dos direitos humanos sobre os significados desses ataques. Está na cara a existência de uma poderosa articulação contra a emancipação política do povo. Em entrevista exclusiva para a revista, o professor e educador Moacir Gadotti, diretor do Instituto Paulo Freire, também responsabiliza a atuação nefasta dos setores da direita pelo atraso educacional, já que o modelo de escola predominante não tem compromisso com a construção da democracia participativa e nem com a formação da cidadania. Segundo Gadotti, a situação da educação ainda é o maior entrave para o desenvolvimento brasileiro. Outras duas reportagens, recheadas com excelentes entrevistas, procuram antecipar para os leitores os cenários político e econômico de 2010: o que está em jogo nas eleições, quais as análises e propostas das esquerdas, qual o risco de retrocesso; e, no campo econômico, interessa desvendar se a crise do capitalismo – iniciada em 2008 – ainda vai perdurar ao longo deste ano ou se está realmente superada, como afirmam muitos economistas. As duas matérias fornecem elementos de reflexão e algumas pistas para que cada um tire as suas próprias conclusões. Ainda nesta edição temos uma boa análise sobre o segundo mandato de Evo Morales, na Bolívia; a expectativa dos moradores das favelas do Rio de Janeiro sobre as obras do PAC; a arte social dos “pixadores” e grafiteiros dos grandes centros urbanos; e a mobilização dos artistas de São Paulo para defender critérios mais justos na lei de fomento à cultura. Enfim, um trabalho jornalístico quentíssimo. Vá em frente!
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Ferréz observa o crescimento caótico da cidade e a visão do paraíso. Glauco Mattoso Porca Miséria: soneto e crítica da bagunça arquitetônica. Eduardo Matarazzo Suplicy fala sobre a Campanha da Fraternidade deste ano.
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Pedro Alexandre Sanches Paçoca: os talentos sufocados por maldição.
Entrevista com Moacir Gadotti: uma avaliação crítica da educação no Brasil. Hamilton Octavio de Souza Entrelinhas: a recaída da imprensa liberal. Cesar Cardoso não conseguiu autorização para se suicidar.
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Frei Betto defende o direito de o Brasil conhecer o que aconteceu na Ditadura. Fidel Castro destaca que o Haiti coloca à prova o espírito de cooperação.
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João Pedro Stedile relaciona o modelo econômico com as reações da natureza. Gilberto Felisberto Vasconcellos denuncia a destruição ambiental.
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Tatiana Merlino Os ataques da direita contra a democracia e os direitos humanos. Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo. Ana Miranda recolhe paráfrases daqui e de lá para Raduan.
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Ensaio Fotográfico de Bruno Garibaldi: personagens de uma vida improvisada. Lúcia Rodrigues Economistas analisam o que vai acontecer com a crise em 2010. Marcelo Salles Esperança e crítica às obras do PAC nas favelas do Rio de Janeiro. Tatiana Merlino Eleições de 2010: disputa de projetos ou falsa polarização? Gershon Knispel comenta a intenção do Itamaraty em dialogar com o Hamas. Igor Ojeda Bolívia: Evo Morales inicia segundo mandato com maior base social. Gabriela Moncau relata a mobilização dos artistas em defesa da lei de fomento. Juliana Sada debate o papel social das arte urbana de pixadores e grafiteiros. Emir Sader destaca as mudanças nos dez anos do Fórum Social Mundial. Renato Pompeu Ideias de Botequim. Claudius.
EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITORES ESPECIAIS: José Arbex Jr e Renato Pompeu EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann PUBLICIDADE: Melissa Rigo CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Ingrid Hentschel, Elisângela Santana CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon SÍTIO: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Priscila Nunes, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO
CAROS AMIGOS, ano XIII, nº 155, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP
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Caros leitores
“Imperialismo cria o seu universal soldier” faz com que todos percebam como o capitalismo faz, ainda, a população de trouxa. A grande festa que o mundo fez por Obama mostra como cada um “deve ficar no seu território”. As promessas criadas em torno do atual presidente estadunidense de acabar com o embargo a Cuba e fazer com que os palestinos saíssem da desgraça que vivem não foram até o momento nem colocadas como teoria. Todos criaram expectativas no homem Obama por ele ser negro e ter Hussein no nome, mas esqueceram que ele era candidato à presidência do país mais imperialista do mundo: Estados Unidos da América. Como confiar em alguém que foi moldado pelo Capitalismo? Heitor Mazzoco – São José do Rio Preto / SP.
SUGESTÃO DE PAUTA Gostaria de indicar uma pessoa a ser entrevistado pela nobre revista. Trata-se do médico norteamericano Pacht Adams. Ele é um gênio, um anticapitalista convicto que nos dá muito ânimo na luta por uma sociedade mais justa. Se os senhores tiverem alguma dúvida sobre a reversa ideológica que representa essa figura, vejam a entrevista dada pelo senhor Adams ao programa Roda Viva da TV Cultura, é genial e extremamente estimulante; eu já vi várias vezes essa entrevista, principalmente, quando estou mais desestimulado. Vocês irão adorar... Abraços. Ary Pereira dos Santos Junior.
DEFESA DA HISTÓRIA Ao comprar a revista número 152, de novembro passado, tive o prazer de ler nas páginas 32 e 33 uma excelente matéria sobre a destruição da importância da URSS escrita pelo senhor Gershon Knispel. Falar com seriedade sobre a Segunda Grande Guerra Mundial é mencionar a importância do povo soviético, da URSS, do PCUS e da liderança firme do camarada Stálin, e isso foi escrito com maestria em poucas palavras pelo artis-
ta plástico. Por isso quero parabenizar a revista e o escritor do artigo! Sou estudante da cadeira de História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a minha monografia será sobre a importância do Exército Vermelho para a vitória aliada. João Claudio Platenik Pitillo – Rio de Janeiro / RJ.
LUTA DOS CATADORES Eu quero dizer que gostei de ler a entrevista de Carlos Nelson Coutinho e o seu artigo sobre as catadoras e catadores de lixo. Ambos colocam a questão da classe proletária em cena. Quem são os coveiros da burguesia no século XXI? Quem fará a revolução socialista? Os povos originários? Os Chiapas? Quem sabe... Como você diz “eles não têm outra alternativa” a não ser catar lixo. Então não há escolha. É triste considerar a catação de lixo como uma profissão. Eu respeito as catadoras, mas o trabalho não muito, poderia ser melhor. Elas merecem um trabalho menos penoso, com mais qualidade.
COVEIRO DA BURGUESIA Eu concordo com parte das conclusões que o professor Carlos Nelson tirou do Manifesto Comunista. A grande questão é: “Quem será o coveiro da burguesia”? Quem será o sujeito histórico que fará a revolução socialista no século XXI? Carlos Marx e F. Engels não poderiam pensar no povo de Chiapas, de Guerrero, de Oaxaca e muito menos nos índios e índias de Cochabamba. Estão em uma clara luta anticapitalista, em defesa da la madre naturaleza, pachamama, y de los Ejidos. Lutam por uma outra cultura, emancipada do capital. Serão lutas socialistas? Felipe Luiz Gomes e Silva/SP. felipeluizgomes@terra.com.br
CONCEPÇÕES DO BRASIL É o de sempre, e é bom. Marcos Bagno desafia. E sacode sem medo a poeira dos conceitos e preconceitos. Faz repensar sobre as concepções de um Brasil Nação “unido pela língua”. Unido, talvez, mas não uniforme. Pois, como ele mesmo lembra,
a diversidade é grande nesse dito “caldeirão de raças”, bem mais complexo do que a simples mescla de negro, branco e índio. Tem muito tempero nesse cozido. Concordo com Bagno quanto ao respeito à nossa multiculturalidade étnica, regional etc. Mas pergunto: devemos respeitar também o vocabulário imposto pela globalização capitalista que espalha feito praga um palavrório que pouquíssimos entendem e mais raros ainda sabem pronunciar? Noemi Osna.
VENENO NA COMIDA – 1 Tatiana Merlino, parabéns pela matéria, pela denúncia. Sabemos que tão imprudente quanto se contaminar com os defensivos (ou agressivos, esse termo é complicado de se definir) é ingerir tais substâncias mortais. Em breve estaremos definhando de subnutrição, mas a nossa despensa, fruteira e gaveta da geladeira estarão cheias. Que paradoxo! Vá em frente nessa luta. Não sei se isto que vou dizer é válido, mas tem meu apoio! Fernando Ramos de Carvalho.
VENENO NA COMIDA – 2 Cumprimento-os pela publicação, no último número, da reportagem “O veneno no pão nosso de cada dia”, dado que este é um dos inúmeros assuntos tabus na mídia nacional, resultado do imenso poder econômico das empresas transnacionais produtoras e comercializadoras dos venenos. No VI Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), acontecido de 9 a 12 de novembro passado, em Curitiba (PR), a diretoria da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) deliberou pela reativação da Campanha Nacional Contra o Uso dos Agrotóxicos, ação essa que assume caráter de “urgência nacional” tendo em vista o país passar a ostentar o trágico primeiro lugar, no mundo, no consumo de venenos para a agricultura. Saudações e energia para fortalecer em 2010 o jornalismo que “coloca o outro lado dos assuntos” para a sociedade! Altino Bomfim - professor da UFBA.
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OBAMA DO IMPÉRIO
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falar brasileiro Marcos Bagno
Uma tarde no
Trago ou trazido? O tempo dirá!
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Morro Santa Marta Tarde nublada no dia 27 de dezembro de
net: “Isso é uma asneira que é ouvida por aí entre alguns beócios”. Que meigo, não? Agora pergunto ao caro leitor: você acha certo ou errado dizer “o corrupto foi pego em flagrante”? Acha certo? Pois veja o que dizia o conhecido dicionário Caldas Aulete (na 5a ed., 1964) no verbete pego: “Só os incultos empregam este termo”. E agora veja o que diz o dicionário Houaiss (1999): “pegar apresenta duplo particípio: pegado, pego (ê ou é)”. Como as coisas mudaram em 35 anos, não? De uma análise preconceituosa para uma apresentação neutra, sem nenhum juízo de valor. Por isso, em vez de sair por aí esbravejando contra o que é novo na língua, melhor procurar entender serenamente os processos de mudança linguística. Assim, daqui a 50 anos, ninguém vai rir da sua cara ao ver que você condenava um uso que se tornou absolutamente normal, corriqueiro e bem aceito por todos os falantes, inclusive os que se acham muito cultos e letrados! Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br
2009. Cheguei ao Morro Santa Marta para prestigiar e cantar na décima sexta edição do Hip HopSanta Marta em comemoração aos 12 anos do Mano Fiell no movimento Hip Hop. Junto comigo estavam meu irmão e parceiro Mc Junior e Mc Teko (vice-presidente da APAFunk). Fomos abordados logo na chegada a uma praça que fica na rua São Clemente, uma das principais de Botafogo e que dá aceso à favela. Dois policiais aparentando ter 25 anos, no máximo, nos perguntaram o que queríamos ali. Eu lhes respondi: trabalhando. Antes que ele terminasse a segunda pergunta eu disse que o Morro Santa Marta faz parte da cidade e que a lei da cidade vale pra ele também, não fazia sentido a tal pergunta e muito menos as armas para nossa cara em plena tarde de domingo. Só o fato de a gente subir o morro não podia fazer da gente elementos suspeitos. Vendo que a gente sabia defender nossos direitos eles recuaram, mas com um olhar de quem não nos queria ali. Lá em cima a mesma coisa. Em um evento onde a maioria era criança não fazia sentido a presença de tantos fuzis e pistolas fora do coldre e tanta intimidação. A chamada UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) não foi discutida pela comunidade, ela foi elaborada pela polícia juntamente com a Secretaria de Segurança Pública do Estado, deixando de fora a opinião e os anseios de cada comunidade. Eu, como qualquer outro morador do Rio de Janeiro (sendo ele favelado ou não), sou a favor do fim do comércio varejista de drogas nas favelas que vem matando tanta gente em nossa cidade há décadas, mas não posso aceitar que o preço seja uma ditadura militar imposta sem discussão com a população favelada, pois acredito que o troco será mais revoltoso e violento.
Mc Leonardo é presidente da APAFUNK, cantor e compositor.
Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
Um dos mais interessantes vetores da mudança linguística é a chamada hipercorreção, a atitude do falante que aplica certas regras gramaticais onde, em princípio, elas não se aplicariam. Em sociedades com uma pesada tradição normativa, como a nossa, impera também uma forte insegurança linguística na maioria da população. Acostumados a ouvir que “brasileiro não sabe português” (porque só os portugueses “falam certo” a língua que, afinal, “é deles”) ou que “português é uma das línguas mais difíceis do mundo”, somos levados a querer acertar demais, isto é, exageramos na aplicação das regras gramaticais. Bom exemplo é a flexão no plural do verbo haver, impessoal (“Houveram muitos problemas”), ou a concordância indevida com a expressão “trata-se de” (“Tratavam-se de casos excepcionais”), por pressão da regra estapafúrdia que manda ir para o plural os verbos acompanhados do pronome “se” (“Alugam-se casas”, como se casas pudessem alugar-se a si mesmas!). Outro caso clássico de hipercorreção é a famigerada “colocação pronominal”, que tira o sono dos brasileiros há século e meio. Como o uso do pronome depois do verbo (ênclise) é totalmente estranho ao português brasileiro (onde o pronome oblíquo antes do verbo é a colocação intuitiva, natural e espontânea), as pessoas tendem a usar exclusivamente essa colocação, inclusive onde a gramática normativa proíbe (“Não lembrome”, “Já telefonei-lhe”, “Espero que sinta-se bem”, “Eu tinha mandado-a embora”). Também ocorre hipercorreção com os chamados “verbos abundantes”, que têm mais de um particípio. Muita gente acha que só existem as formas “ganho”, “entregue”, “pago” etc. e que é errado dizer ou escrever “eu tinha ganhado”, “tinha entregado”, “tinha pagado” etc. Por analogia e hipercorreção, surgiram novos particípios irregulares que, só porque são novos, sofrem o combate sistemático dos patrulheiros gramaticais de plantão. Estou falando dos particípios “trago” (“Ele tinha trago os livros”) e “chego” (“Ela tinha chego atrasada”) que, a julgar pelo combate violento que sofrem, já devem estar muito bem instalados na gramática intuitiva da maioria dos brasileiros. Sobre “trago”, por exemplo, encontrei essa belezura na inter-
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José Arbex Jr.
Lula recua e dá mais fôlego à ofensiva da direita A divulgação da terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva no final de dezembro, provocou uma imensa gritaria da direita. Dos militares saudosos de 1964 até os jornalistas financiados pelo capital, passando pela CNBB e por ministros do próprio governo (incluindo Nelson Jobim, da Defesa e Reinhold Stephanes, da Agricultura) todos qualificaram o plano como “monstruoso”, “revanchista”, “autoritário”. Depois de um festival de ameaças e chantagens, Lula recuou, cedeu à direita. O plano revisado, anunciado pelo Planalto no dia 13, substitui a caracterização de “crimes cometidos pela repressão política” (durante o regime de 1964) pela expressão genérica “violações de direitos humanos”. A nova formulação, típica do governo Lula, deixa aberto o campo para a pizza, por satisfazer tanto aos que querem punir os torturadores da ditadura quanto aos que acusam a esquerda de ter cometido atos terroristas, como se os dois lados pudessem ser equiparados. Em síntese, a batalha em torno do plano explicita, por um lado, a ferocidade de uma direita saudosa de 1964 e, por outro, as oscilações de um governo incapaz de enterrar definitivamente o entulho autoritário que ronda e ameaça as combalidas instituições democráticas nacionais. É óbvio que a ofensiva da direita tem como endereço as eleições de 2010. Também é óbvio que a ofensiva não começou agora. Ela ficou bem evidente com o famoso editorial da Folha de S. Paulo que qualificava como “branda” a ditadura militar, e depois com as calúnias assacadas pela mesma Folha contra Dilma Roussef, atual chefe da Casa Civil e a “candidata de Lula” em 2010. Todos os ataques ao plano, amplamente reverberados pela mídia, “esquecem” de mencionar o singelo fato de que ele foi o resultado de pelo menos 50 conferências públicas realizadas em todo o país, envolvendo a participação de algo como 15 mil pessoas. Não por acaso, aliás, algumas das organizações da mídia que mais atacaram o plano (incluindo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão - Abert e Associação Nacional de Jornais - ANJ ) foram as mesmas que se ausentaram da recente Conferência Nacional de Comunicação, cujo objetivo central era estabelecer regras democráticas e impor limites ao monopólio praticado no Brasil. Também “esquecem” que o plano prevê a elaboração de leis que devem ser submetidas ao
Congresso. Não se trata, portanto, de nenhuma “imposição ditatorial”. Mas não há como resumir a ofensiva da direita a uma simples estratégia eleitoral. Há muito mais em jogo. Trata-se de uma disputa para saber quem controla a memória histórica nacional, assim como as relações que devem ser estabelecidas entre o Estado e a “sociedade civil”, tanto no que se refere ao regime da propriedade privada quanto à demarcação clara das fronteiras entre as esferas pública e privada. Num país em que o Estado e a esfera pública sempre foram tratados como posse de um grupo de escravistas (ou, na versão contemporânea, de empresários como Daniel Dantas, devidamente blindado pelos donos do sistema judiciário), qualquer tentativa de regulamentar as relações entre Estado e sociedade é percebida como ameaça. A Igreja Católica, historicamente encarregada de abençoar o patrimonialismo, dele vivendo como parasita, tampouco pode suportar um plano que, talvez pela primeira vez na história do Brasil, pretende eliminar dos lugares públicos a ostentação de símbolos religiosos. Uma breve listagem dos setores que mais espernearam e o resumo de seus motivos são suficientes para esclarecer tudo: Militares – Rejeitam a Criação da Comissão Nacional da Verdade, responsável por apurar crimes durante o regime militar (1964-1985), a divulgação da estrutura dos porões empregada na prática sistemática de torturas e a criação de uma legislação que proíbe homenagens em locais públicos a pessoas que tenham praticado crimes de lesa-humanidade. E execram qualquer tentativa de revisão da Lei de Anistia de 1979. Igreja Católica – Veta o apoio a iniciativas que proponham a descriminalização do aborto e da união civil entre pessoas do mesmo sexo, da garantia do direito de adoção por casais homoafetivos e da proibição à ostentação de símbolos religiosos em locais públicos. Agronegócio – Qualifica como “estímulo a invasões” a proposta de mudança nas regras de cumprimento de mandados de reintegração de posse em invasões agrárias, dando prioridade ao diálogo como forma de evitar o conflito, bem como a exigência de que haja realização de audiências públicas antes de um juiz decidir sobre concessão de liminar para reintegração de posse. Mídia – Os “barões” da comunicação rejeitam a
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proposta de mudança da regra constitucional sobre renovação e outorga de serviços de radiodifusão (rádio e TV) com base em marco legal que respeite os direitos humanos. Tampouco toleram a instituição de critérios de acompanhamento editorial, com o objetivo de detectar os veículos que defendem e os que violam os direitos humanos. Vários setores – O plano prevê, ainda, entre outras providências, a regulamentação da taxação de grandes fortunas, a fiscalização da rotulagem de alimentos transgênicos (estabelecida em lei, mas jamais praticada), fiscalização e controle sobre o impacto de biotecnologia, reformulação da Lei de Execução Penal e a revisão das regras dos planos de saúde. Em cínica inversão de valores, os críticos do plano qualificam-no como “antidemocrático”. Qualquer ser dotado de pelo menos dois neurônios saudáveis percebe que é o oposto: o plano, pelo menos em sua versão original, buscava acertar as contas com um passado de quinhentos anos de escravidão, autoritarismo, obscurantismo religioso e preconceitos. Ao assinar o plano, em dezembro, Lula abriu a possibilidade de o Brasil abandonar sua roupagem feudal e ingressar no mundo contemporâneo; ao recuar, em janeiro, deu nova vida e brilho à espada que as viúvas de 1964 – às quais agora se soma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – mantêm sobre o pescoço da república tupiniquim. Para aqueles que acreditam que golpes estão “fora de moda”, basta mencionar o exemplo recente e ainda em curso em Honduras, ou as tentativas fracassadas na Venezuela (2002) e Bolívia (2008). Não, ninguém está dizendo que, em breve, uma coluna de militares babões tomará o Planalto de assalto. O golpe é bem mais sutil do que isso: ele aglutina setores que “fazem a cabeça” (incluindo integrantes da mídia, da Igreja, da OAB etc.) e o capital financeiro, industrial e agrário para brecar o avanço democrático. O recuo de Lula já é uma óbvia demonstração de sua eficácia. A ofensiva atual é uma pequena amostra do que se prepara nos próximos meses. Se Lula quisesse preservar o pouco de democracia que há no país, deveria eliminar aqueles que, dentro de seu governo, representam os interesses dos golpistas. Mas o presidente se mostra incapaz de fazer isso. Deveria se lembrar do trágico destino de Salvador Allende. José Arbex Jr. é jornalista. fevereiro 2010
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Guilherme Scalzilli
Herói de nossa gente
Por uma Assembleia
Como tantos de nós, tenho umas estantes horrorosas de livros sobre torturas no mundo e aqui. O terror está ali, desde Roma ao Iraque, do Estado Novo ao DOI-CODI e DOPS, aliás, um pouco esquecido ultimamente. Não devia: seu diretor na época áurea é, hoje, senador da República. Um dos mais antigos torturadores brasileiros foi o fundador da Casa da Torre, o primeiro da dinastia Garcia D’Ávila, Bahia, inventor do pau-de-arara com pimenta no rabo, lá por 1650. Garcia, cujas terras ocupavam a metade da Bahia, chegando ao atual Piauí, é herói da nossa expansão territorial. Não sabemos se era um sádico, mas sabemos que a Coroa portuguesa não legaria ao Brasil o território que tem hoje se Garcia não torturasse. Guardadas todas as proporções, a tortura praticada por aquele pai da pátria contra servos, escravos e agregados foi política de estado. A tortura tem duas vertentes principais: desvio de personalidade, de fundo sexual como o seu aparente oposto, o masoquismo; e forma de dominação social, como a praticada pelo Barão da Torre e seus herdeiros, os carcereiros e investigadores das delegacias comuns. Em certo sentido, é irrelevante que sejam desviantes ou normais. Os torturadores dos DOPS e DOI-CODIS não começaram nesses órgãos. Vieram quase todos da polícia comum. Sua escola foram os presos “correcionais”, os “corrós” que algumas vezes nós, os presos políticos, tentávamos defender: ladrões, traficantes, trambiqueiros e infratores sem advogado. Para cada preso torturado, naqueles anos, se contariam cem, talvez mais, detidos comuns. Não tem, até hoje, quem proteste por eles, quem os represente na Justiça. Só isso demonstra que a tortura brasileira é forma de dominação social. Ou política de estado, que é a mesma coisa. Odeio torturadores, por experiência própria. Esse ódio não leva a grande coisa, a não ser o gozo de vê-los apontados, exonerados, envergonhados para sempre diante de filhos e netos. O gozo de vê-los confessar que infligiram dor máxima a outros por amor à pátria: a mãe-pátria. Acontece que política não se faz com ódios. Eis aqui o governo Lula atrapalhado.
O sistema democrático brasileiro jamais será plenamente consolidado enquanto o Legislativo continuar atolado na imoralidade e no descrédito público. A crise é tamanha que exige uma completa modificação de paradigmas. Evitemos tentar resumir esboços viáveis para um projeto dessa complexidade, que exige debates extensos e embasamento técnico. Parece indiscutível, porém, que uma reforma política eficaz envolve a amplo espectro temático, atingindo desde a atividade parlamentar às regras eleitorais, passando pela própria administração das Casas. Tendo em vista a magnitude das transformações necessárias, os congressistas possuem motivos de sobra para evitar empreendê-las. Portanto, a reforma só poderia nascer por iniciativa da sociedade, através de mecanismo criado exclusivamente para desenvolver um plano de atuação pré-estabelecido. Esse instrumento chama-se Assembleia Constituinte. Em qualquer dos muitos formatos possíveis, sua principal característica será a legitimidade das decisões, consagradas no processo de escolha dos representantes. Para facilitar as deliberações e o acompanhamento público, o colegiado deverá ser pouco numeroso, com pauta restrita e plataformas inequívocas. É crucial salientar o foco especificamente político, pois circulam no Congresso propostas de plebiscito para referendar a convocação de Constituintes com poderes múltiplos demais, o que pode acarretar dispersão e desvios de finalidade. Encaminhada com responsabilidade, a ideia conquistará pleno embasamento constitucional e sólido apoio da população, cujo anseio por mudanças é incontestável. Mas, além desses requisitos básicos, a democracia participativa depende também de contextos históricos propícios – e a oportunidade, se realmente existe agora, talvez demore muitos anos para renascer com a mesma força.
No decreto de direitos humanos, que criou a Comissão de Verdade, ministros militares o ameaçaram, ele capitulou. A capitulação tem dois significados, pelo menos. Pode significar covardia, medo de ser derrubado, embora hoje não haja clima para golpes de estado na América Latina. A cerimônia de assinatura do decreto, em que abraçou Inês Etienne Romeu, irritou “profundamente” os chefes militares. Mas a capitulação pode significar sagacidade política. Lula recuou na forma para manter o conteúdo, a saber, a exposição televisiva da tortura pela Comissão da Verdade. Serão convocados alguns torturados, é o de menos. Pode ser até eficaz para mais encurralar os torturadores. Esses mostrarão a cara; se não falarem, pior. Caberá então a nós, os que não fazemos política apenas com ódio, mostrar que os torturadores comuns, os das delegacias, são irmãos siameses dos torturadores da ditadura. Ambos descendem daquele glorioso Garcia D’Ávila. Joel Rufino é historiador e escritor.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com
Ilustração: hke...
reformista
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Ferréz
Muro Cinza Quando Ellen G. White iniciou seu mi-
Shunji Nishimura, nascido em Kioto, estu-
nistério que daria origem aos Adventistas do Sétimo dia, ela não imaginaria o muro cinza. São Paulo, Capão Redondo, 1914. Chegava à região um pastor adventista chamado John Lipke e um obreiro de nacionalidade russo-alemã chamado John Böehn. Em abril de 1915, John Böehn fechou negócio com os irmãos Pantaleão e Antônio Theisen, comprando uma fazenda com 300 acres por 20 contos de réis em uma das colinas do Capão Redondo. Em 1925 eles importaram dos Estados Unidos algumas cabeças de gado holteinfrisien (gado holandês) das fazendas Carnation. Até 1984 o rebanho de gado holandês permaneceu na fazenda do Instituto Adventista de Ensino, tendo participado de várias competições com dezenas de premiações e recordes nacionais na produção de leite. Todo o I.A.E. era cercado por cercas simples, de arame. Enquanto isso, favelas iam se formando em volta da área, barracos iam sendo construídos, terrenos cercados e vendidos a terceiros, na maioria, vindos da Bahia, Ceará, Piauí, Minas Gerais e várias outras regiões, além de pessoas que, pela valorização dos lugares onde moravam, foram sendo jogadas para o bairro que começava a tomar forma. A Light and Power Co instalou força e luz no Capão, a pedido do Colégio Adventista, que até então vinha produzindo sua energia através de dínamo instalado em açudes.
dou no Colégio Adventista , foi o fundador da maior fabricante de máquinas agriculas da América Latina, a Jacto; em 1994 o governador de São Paulo conferiu-lhe o título de empresário do ano. Fabinho, estudou na Escola Adventista do Jardim Lilah e anos depois era conhecido como um dos maiores traficantes da região. Morreu assassinado na rua onde nasceu. A alguns metros do mesmo colégio, moradores são detidos pela polícia, eles fizeram um protesto por uma lombada, pois houve o atropelamento de uma criança, a polícia chegou, agrediu e prendeu alguns moradores. Em 1997, a Fundação do Colégio Adventista Ellen G. White é a primeira escola secundária particular no Brasil a obter o certificado de qualidade ISO 9000. Enquanto isso, uma chacina devasta o cotidiano do jardim Ângela, o sangue no bar dá arrepios a quem passa pelo local.
Crime Alguns meses depois, era cometido o primeiro assassinato no bairro Jardim Comercial. Por uma discussão de rede elétrica, um morador matou o outro a facadas na frente do recém-colocado poste de madeira. Em 1969 é implantada a primeira faculdade no bairro do Capão, o curso de enfermagem no Instituto Adventista de Ensino. Alguns anos depois o hospital público Piratininga ficou conhecido por servir o famoso “chazinho da meia-noite”, e segundo pacientes, o líquido acabava com a chance de recuperação, e causava o óbito.
Moradia Em 1983 o I.A.E. teve 80% da área desapropriada pela municipalidade da cidade, hoje essa área chama-se Cohab Adventista. Moradores de várias favelas foram retirados de seus lugares, perderam seus amigos, vizinhos e história, suas casas foram derrubadas e foram todos transferidos para a Cohab Adventista, ninguém escolheu sua casa, ninguém foi ouvido sobre a futura vizinhança e hoje o bairro que abriga os prédios é chamado de favela vertical, tem um grande problema de criminalidade e uso de drogas. Falar que os adventistas e os moradores cresceram com o bairro seria generosidade, afinal, o bairro não cresceu, principalmente no que eles são especialistas, que é o ensino. Se a informação e a cultura são tudo, por que onde tem a maior rede de ensino do mundo é um dos lugares mais violentos? Mais pobre? Mais desorganizado? O muro cinza foi construído pelo I.A.E, tem mais de 200 metros de comprimento e 3 de altura, e divide a rua dos Mutirantes do espaço adventista. Dentro do I.A.E. meus livros são lidos, mas hoje eu
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não posso entrar, só queria um daqueles bancos, com uma sombra, para poder ler um pouco. O lugar parece a Europa, tem casas rústicas, ruas pequenas, bancos confortáveis em volta de árvores, parece o paraíso, e tudo isso ao lado da minha casa. Os moradores que não estudam no lugar, para levar seus filhos para brincar no pequeno espaço para crianças, pediam para o segurança, que às vezes deixava. Depois cercaram o playground e proibiram a entrada.
Paraíso Continuamos querendo entrar no paraíso e na portaria. Dizíamos que íamos a biblioteca, mas hoje essa desculpa não serve, pois eles falam que fecharam a biblioteca para visitas. Uma das mais modernas academias de ginástica está lá dentro, mas não para a senhora que tem problema de circulação. A orquestra completa que eles têm já pegou verbas, mas nunca se apresentou do outro lado do muro. No muro cinza tem uma placa triste da prefeitura, nela está escrito que é proibido jogar lixo e entulho, informa o número do decreto para quem não sabe ler, para quem só passa pelo muro cinza. Cachorro morto, resto de feira, móveis usados demais, todo tipo de lixo beira o muro, como se fosse uma vingança da população. De vez em quando um morador põe fogo em tudo e ficam manchas negras no muro cinza. Alguém tenta pixar o muro, deixar uma assinatura, homens cinzas chegam e batem no pixador. Logo após o muro começa a Cohab Adventista, as três casas seguintes ao muro também são cinzas, talvez seja uma tendência. Uma senhora cata latinhas na extensão do muro, pisa num cachorro morto e apodrecido, esbraveja que não aguenta mais aquela vida, quer ir para o céu logo, mal ela sabe que ele está do outro lado daquele muro cinza. Ferréz é escritor, e morador na periferia de São Paulo. fevereiro 2010
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Eduardo Matarazzo Suplicy
porca miséria! Glauco Mattoso
Soneto da bagunça architectonica [1484]
Um “campus” brasileiro, genuino, seria construido, ao que imagino, no estylo duma taba dos tupys... A menos que uma tenda americana, dalgum pelle-vermelha, essa choupana imite, mas ninguem tal coisa quiz...
para adoptar um estylo, seja na architectura, na esculptura, na pintura ou na litteratura, sem que por isso seja discriminado como direitista ou esquerdista. Não me interessa si o Niemeyer e a Lina são communistas. Si forem considerados humanistas, tanto melhor. São grandes architectos, independentemente da cor politica. Apenas digo que, pessoalmente, prefiro a fachada do museu do Ypiranga à do MASP, prefiro o Martinelli ao Copan. E não admitto ser chamado de fascista por causa disso. Na minha casa só entra poltrona entalhada e capitonada, mas não accuso de “equivocado” quem compra uma cadeira recta ou lisa. Ademais, que seria um estylo brasileiro ou contemporaneo? O barroco mineiro? As ocas indigenas? Os barracos da favella? Os caixotes de vidro da Paulista? Os conjunctos habitacionaes planejados pelos jovens urbanistas? Que tal tudo juncto, e a diversidade anthropophagicamente respeitada? Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.
rência Nacional dos Bispos do Brasil lançará em 17 de fevereiro terá o lema “Economia e Vida”. O objetivo é promover uma economia a serviço da vida, sem exclusões e com vista a criar uma cultura de solidariedade e paz. Segundo o Reverendo Luiz Alberto Barbosa, do CONIC, “a proposta é trabalhar no conceito de inclusão social em favor de uma economia que gere a vida e não a morte”. A propósito, recomendo os livros de Paul Davidson e Greg Davidson, “Economics for a Civilized Society”, W.W.Norton & Co., 1988, e de Amartya Sen, “Development as Freedom”, Alfred A. Knopf, New York, 1999, traduzido para o português, “Desenvolvimento como Liberdade”, Companhia das Letras, 2000, os quais me levaram a oferecer a disciplina que leciono na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Como construir uma sociedade civilizada? Como caminhar na direção de uma sociedade mais justa? Ao escolher os instrumentos de política econômica devemos levar em conta valores que não sejam exclusivamente do interesse próprio. É claro que todos desejamos progredir, mas devemos também considerar outros valores que são próprios dos seres humanos, como a ética, a verdade, a solidariedade, a fraternidade, a justiça, a equidade, a eficiência, a liberdade e a democracia. E quais são os instrumentos de política pública e econômica compatíveis com esses valores? São, por exemplo, a universalização da educação para todos – crianças, jovens e adultos que não tiveram oportunidade de estudar na infância – e a universalização da assistência à saúde. Num país com tamanha disparidade de renda e de riqueza também são necessárias a reforma agrária, o estímulo às formas cooperativas de produção, a expansão do microcrédito – acesso a pequenas somas com taxas de juros razoáveis; o orçamento participativo – em que a comunidade decide o destino do dinheiro público e a renda básica de cidadania, que é o direito de todas as pessoas participarem da riqueza da nação. Ao colocarmos em prática esses instrumentos colocaremos a Economia em favor da vida.
Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.
Ilustração: Debora Borba/deboraborba@gmail.com
Si for “colonial”, alguem ja berra que está muito “europeu”. De vez em quando, tolera-se algo “eclectico” e se encerra o papo, si o projecto vae andando...
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Favor da Vida A Campanha da Fraternidade que a Confe-
As universidades, na Inglaterra e nos “Esteites”, gothico normando adoptam como estylo. Aqui se emperra o “antigo” no “barroco” e no quejando...
Odeio a architectura dicta “moderna”, estylo Niemeyer. Gosto do neogothico da cathedral da Sé, da falsa mansarda do predio Martinelli e da mansarda verdadeira da Casa das Rosas. Tenho meu direito à preferencia esthetica. Mas o que eu mais odeio é o patrulhamento ideologico feito pelos “modernos” architectos, typo Lina Bo Bardi, quando ella affirma que a Sé e o Martinelli são inacceitaveis numa metropole como a nossa, na medida em que reflectem uma tendencia fascista, só porque o Mussolini tinha gosto pelos estylos tradicionaes. Ora, vão plantar batata! Fascista é essa mania de classificar tudo que não seja “typicamente” brasileiro ou “authenticamente” contemporaneo como “errado” e “equivocado”. Si dependesse da Lina, obras “pharaonicas” que nos orgulham seriam, provavelmente, demolidas para que, em seu logar, se construissem predios “limpos” de ornamentos “anachronicos”... Acho que cada um tem liberdade artistica
A Economia em
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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches
Talentos sufocados, Maricenne Costa tornou-se cantora de bossa nova em 1959. E lançou seu primeiro álbum de bossa nova em 2009. Uma mistura de motivos particulares e públicos talvez explique o hiato de prosaicos 50 anos, e o título do CD recém-publicado dá uma pista sobre uma das razões do segundo grupo. Chama-se Bossa.SP. É um trabalho que honra compositores nascidos e/ou estacionados nesse estado (Johnny Alf, Theo de Barros, Walter Santos e Tereza Souza, Geraldo Vandré, Vera Brasil, Paulinho Nogueira...). E fazer bossa em São Paulo tornouse, em algum momento, uma espécie misteriosa de maldição. Cascatinha & Inhana existiram, como casal & dupla caipira, entre 1941 e a morte dela, em 1982. Paulistas interioranos, ele de Araraquara & ela de Araras, foram popularíssimos nas rádios desde 1952 (quando gravaram os clássicos caipiras Índia e Meu Primeiro Amor). Mas paulatinamente seus nomes foram apartados daquilo que se convencionou chamar “grande” mídia – da morte de Cascatinha (em 1996) até hoje, por exemplo, o nome da dupla foi citado ridículas 26 vezes na Folha de S.Paulo. Por incrível que pareça, cantar música caipira nas campinas de São Paulo às vezes se converte também em misteriosa maldição. “Foi uma época muito legal, uma música moderna surgindo, reuniões em casa de pessoas ricas que convidavam a gente para cantar”, Maricenne relembra o advento da bossa paulista. “Colocamos a bossa nova em andamento, pelas casas de quem gostava de música e na noite paulista. Maysa, Alaíde Costa, Claudette Soares, Marisa Gata Mansa... Eu não fui muito firme depois.” Paulista interiorana de Cruzeiro e também professora, ela menciona um dos porquês dessa ou daquela firmeza: “Meu pai exigiu que eu fizesse faculdade. Durante todo o processo da bossa nova eu estudei serviço social”. Quando se reaproximou da música, nos anos 80, deixou a bossa de banda
e foi gravar afinada com a chamada vanguarda paulista e o punk-rock do grupo Inocentes. Joelma Costa mora em Araraquara e é presidente da Associação de Famílias e Artistas Circenses (Asfaci). Itinerante, passou a infância mudando de escola de mês em mês. Seus pais, donos do Circo Disparada, quiseram tirála dos estudos quando estava na quinta série. “Foi aí que meus padrinhos conversaram seriamente com eles e foram firmes na argumentação de que a continuidade dos meus estudos seria importante para a vida toda”, ela conta. Seguiu estudando, formou-se em ciências sociais, reencontrou-se com as origens circenses e por elas iniciou a militância. Os amados padrinhos cantavam rotineiramente no Disparada. Chamavam-se Cascatinha & Inhana.
Algumas das canções reunidas na Bossa.SP de Maricenne foram compostas por mulheres – Tereza Souza, Vera Brasil e... Maricenne Costa. Ela afirma que sua relação inconstante com a música “pode ter sido da minha cabeça mesmo”, mas certamente sabe que machismo e cercanias são forças atuantes na música brasileira, sim, senhor. “O machismo existe por existir, naturalmente. Mulher tinha que ter mais coragem, antes de tudo. Você tinha que se esconder, não podia aparecer muito.” Na faixa Tristeza de Amar, Maricenne divide vocais com Alaíde Costa, mulher, negra (como Cascatinha & Inhana), cantora de bossa. No livro Solistas Dissonantes – História (Oral) de Cantoras Negras, publicado em 2009, Ricardo Santhiago relaciona os percalços e dificuldades de mulheres negras que buscaram cantar e compor no Brasil sem se adequar aos estereótipos do samba – praticando bossa nova, por exemplo, como fez Alaíde Costa. “O que Alaíde tem de história... Ela está se preparando para cantar as composições dela ao piano, como uma lady americana faz”, revela Maricenne, entusiasmada. “Johnny Alf também sofreu muito, mas conseguiu estar na primeira linha”, diz, sobre um dos pais inventores
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da bossa (negra), carioca que preferiu viver em São Paulo e hoje vive num hotel-residência para idosos em Santo André. Alaíde poderia ser festejada como “lady” (norte-)americana, Maricenne também. Cascatinha & Inhana foram brasileiríssimos ao cantar maravilhas como Mulher Rendeira, Chuá... Chuá, Triste Caboclo, Flor do Cafezal, O Menino e o Circo, O Canto da Jaçanã... A um só tempo negros, índios e brancos, cantaram lindamente de guarânias paraguaias (Recordações de Ypacaraí, Noites do Paraguai) a sambas (Sonho Meu, de Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho) e romantismo popular brasileiro (Eu Quero Apenas, de Roberto e Erasmo carlos). É fácil supor que, se fossem (norte-)americanos, seriam celebrados como um Louis Armstrong e uma Ella Fitzgerald. Mas eram brasileiros, paulistas, interioranos e... caipiras. Não duvide que eles possuam até hoje uma imensa multidão de seguidores anônimos, invisíveis aos olhos da “grande” mídia. Ao menos no que diz respeito aos nichos de supostos (de-)formadores de opinião e “intelectuais”, nem a terra natal os trata com o devido respeito e a devida justiça. “Foi ao cabeleireiro, fez manicure, pedicure e morreu lindona, porque passou mal na fila de um banco e o farmacêutico balconista aplicou uma injeção que ela não podia tomar”, a afilhada Joelma relembra a partida precoce da formidável Inhana. É uma situação-limite corriqueira para pretos, pobres, índios, circenses, ciganos, interioranos etc. Estranhamente, estágios equivalentes de abandono podem ser experimentados por cantores de bossa nova, mulheres, homossexuais, jornalistas, músicos “famosos”, paulistas da capital. São retratos de (auto) estima corroída que fez e faz estragos abaixo e acima da linha do Equador. No mundo aparentemente visível e vistoso do ribeirão de baixa auto-estima chamado São Paulo 2010, ainda não há ar livre, leve e fresco para Cascatinha & Maricenne Costa, ou para Johnny Alf & Inhana. Pedro Alexandre Sanches é jornalista.
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caros amigos
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uma misteriosa maldição
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entrevista
Moacir Gadotti
“Educação é o maior entrave do
desenvolvimento brasileiro”
Participaram: Bárbara Mengardo, Hamilton Octavio de Souza e Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.
o
professor Moacir Gadotti é um dos mais respeitados educadores brasileiros. Lecionou nos vários níveis do ensino e nas principais universidades do país. Aposentou-se pela USP, depois de 46 anos de magistério. Autor de muitos livros, inclusive em parceria com Paulo Freire – com quem estudou nos anos 70, na Suíça. Foi assessor de Freire na Secretaria de Educação de São Paulo, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). Atualmente é diretor do Instituto Paulo Freire, que desenvolve inúmeros projetos de educação popular. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, Gadotti analisa a situação da educação no Brasil, aponta por que o país não conseguiu erradicar o analfabetismo, indica os pontos de avanço e de atraso no sistema educacional.
Caros Amigos - Fale sobre a sua trajetória,
como se tornou educador, quando passou a trabalhar com Paulo Freire. Moacir Gadotti - É muita responsabilidade falar de si mesmo, não é muito fácil. Mas eu acho que eu sou um professor, simplesmente. Tenho 46 anos de magistério. Trabalhei desde a pré-escola até a pós-graduação, hoje ainda continuo na USP. Está na USP ou na Unicamp? Na USP. Aposentado no ano passado, mas continuo dando aula e orientação na pós-graduação. Como começou na área da educação? Eu comecei como professor de Matemática, quando eu estava fazendo o curso de Pedagogia. Terminei em 67. Iniciei também um curso de Filosofia, mas demorei dez anos para terminar, porque estava trabalhando e estudava, foi difícil. Então eu comecei dando aula de Matemática, porque o curso de Pedagogia daquela época dava uma licença para ensinar Matemática nas séries iniciais, não era Matemática avançada. Trabalhei em creches, em pré-escolas, dei aula de Filosofia depois do curso de Pedagogia.
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Professor Moacir Gadotti, diretor do Instituto Paulo Freire, defende política educacional voltada para a formação da cidadania.
Em São Paulo? Em São Paulo. Eu cheguei a dar aula em oito escolas ao mesmo tempo. No ensino público? Ensino público e privado. Havia uma aula minha de Filosofia que, depois de 69, o meu programa foi substituído por Educação Moral e Cívica, foi proibida a Filosofia. Eu me lembro muito bem, nesse dia eu estava lecionando no Colégio Sagrado Coração de Jesus e a diretora me falou assim: “Olha, a partir de hoje você não é mais professor de Filosofia, você é professor de Moral e Cívica, e aqui está o programa”. Ai eu disse: “Bom, então eu vou passar a ser professor de Educação Moral e Cívica, mas não vou mudar o programa”, o programa já estava em andamento. Uma história daquele período difícil. Depois eu terminei meu curso de Filosofia. Comecei a dar aula de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira, na Avenida Paulista, enquanto concluía na PUC o mestrado. O mestrado conclui
em 73, e no mesmo ano fui para Genebra fazer o doutorado a convite de uma associação de Filosofia de lá. Participei de um concurso em 73, havia uma só vaga de bolsista e consegui ganhar essa única vaga. Eu também queria muito ir à Genebra porque o Paulo Freire, em 70, tinha mudado para lá, e eu tinha trabalhado em 67 com o primeiro livro que saiu do Paulo Freire, que era “Educação como prática da liberdade”, foi no trabalho de conclusão de curso de Pedagogia.
Ele estava exilado nessa época? Ele foi pra Genebra em 70, o exílio começou em 64. Ele foi primeiro para a Bolívia, depois para o Chile, fez uma rápida passagem nos Estados Unidos, em 69, em 70 ele foi pra Genebra e de lá voltou ao Brasil em 1980. Então eu peguei esse período até 77 com ele, voltei ao Brasil a convite da Unicamp, em 77. O Paulo conseguiu voltar, definitivamente em 80 como professor da Unicamp e da PUC. Eu lecionei na PUC São Paulo, na PUCCamp e tam-
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bém na USP, mas eu comecei na Unicamp. Então isso é um pouco a minha trajetória. E nesse período também me envolvi na fundação do PT, fui um dos dirigentes da Fundação Wilson Pinheiro, que era a fundação do Partido dos Trabalhadores na época, um grupo extraordinário, foi uma grande escola para mim. Tinha a Marilena Chauí, o Paul Singer, o Florestan Fernandes, o Perseu Abramo. Então para mim foi uma vivência muito bonita, de participar da executiva do partido como membro da fundação. Foi lá que eu escrevi o livro “Pra quê PT”, sobre a origem do PT. Foi lançado na campanha presidencial de 89.
Você participou também da gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo? Na época da fundação do PT o pessoal estava muito envolvido com educação. Então a gente tinha um pé na escola, um pé na militância. E para mim o Paulo Freire também foi uma grande escola, uma escola de formação mesmo como ser humano, como educador. Então, em 89, fui ser assessor de gabinete na prefeitura. Acho que o Paulo deu para a educação brasileira uma contribuição enorme, por várias razões: primeira, a fundação do Mova, movimento de alfabetização, para mostrar que a superação do analfabetismo brasileiro precisa que a sociedade se envolva. O Estado não dá conta sozinho, a luta contra o analfabetismo exige a mobilização da sociedade. Nós tivemos 97 convênios de uma vez só e não é só para alfabetizar, ele queria fazer uma alteração social. Eu lembro que algumas entidades não tinham condição alguma de fazer convênio com a prefeitura mais burocrática do planeta. Então o que ele fazia? Tinha um departamento jurídico para ajudar as entidades a se estruturarem, terem um estatuto, gerarem uma diretoria, terem uma sede, e assim fazerem o convênio. A ideia era a de que a educação não era só ensinar o be a bá, era ensinar a população a ser soberana. E para ser soberana precisa ter organização social. A educação tem esse papel, não tem que ficar só na questão do letramento, precisa conscientizar. O Paulo nunca abandonou a ideia da emancipação, da luta pela libertação, a educação como caminho para a libertação do ser humano como um direito. A emancipação é um direito. É um direito de quem vai à escola. A emancipação humana tem a formação da consciência. Então, o Mova foi algo extraordinário que devia ter sido assumido como política pública no governo Lula, que nós, movimento social, propomos como um avanço da sociedade brasileira nesse sentido. Por que o Brasil não conseguiu até hoje erradicar o analfabetismo? Bom, primeiro existe um atraso secular de décadas, um atraso crônico na educação brasileira, que vem desde os jesuítas, a colônia, o império, a república. Nós despertamos para a educação no século XX, na década de 30, já que na década de 20
tivemos as primeiras formações de educadores. Então, esse atraso é crônico, o esforço é muito maior do que o esforço de dois governos. Nós tivemos um dado muito negativo que saiu no dia 19 de setembro de 2009, do Pnad. Eu me lembro dessa data porque dia 19 é o dia do nascimento de Paulo Freire, ele completaria 88 anos nesse dia. O dado é que aumentou o número oficial de analfabetos no Brasil de 2007 para 2008, foram dados do IBGE de 2009. Aumentou o número. Nós temos hoje o mesmo número de analfabetos que tinha quando Paulo Freire deixou o Brasil para ir para o exílio: 15 milhões. Continua e aumentou. Quer dizer, essa pergunta procede. Aumentou em número absoluto e diminuiu a taxa de analfabetismo, de 9,9% para 9,8%, a taxa caiu 0,1%.
Mas aumentou a população. Aumentou a população. O Estado de São Paulo deu uma grande contribuição para isso. No Estado de São Paulo nós temos mais de 600 mil analfabetos, só na região da Grande São Paulo, em torno de 600 mil. Na Grande São Paulo? Na Grande São Paulo. Então, o analfabetismo é a negação de um direito. O analfabetismo tem a ver com um conjunto do bem viver das pessoas. Imagina agora: chegamos a ter mais de 300 classes de catadores de produtos recicláveis de lixo. Imagina que a pessoa está na rua das 5 horas da manhã até as 7 horas da noite, catando lixo, e às 7 horas da noite vai para uma sala de aula. É muito difícil essa pessoa ter condições, depois de um dia passando fome, de se alfabetizar. Então, as condições sociais são determinantes. Condições sociais de moradia, de trabalho, de emprego, de saúde, fora a educação. A educação não está desligada, não é um problema setorial, é um problema estrutural com os outros condicionantes. Então, a qualidade da educação tem a ver com esses outros fatores, está ligada. Não estou dizendo que precisa primeiro resolver o problema da moradia, do emprego, do transporte, para depois resolver a educação. Isso vai ser junto. O nosso analfabetismo é muito maior do que de outros países da América Latina. O do Mercosul, por exemplo, é 2,5%, 3%, o nosso é 9,8%, são 15 milhões de pessoas. Vou dar dois pontos onde o atraso continua, em que nós paramos, simplesmente estacionamos: educação de adultos, nós praticamente estacionamos nos analfabetos. E a outra é na creche, de 0 a 4 anos, onde 34% das vagas são pagas e apenas 14 em cada 100 crianças de 0 a 4 têm acesso à creche. O que isso representa? Bom, claro que não vamos considerar que nasceu e já vamos colocar em uma creche, mas quando eu vejo, principalmente em São Paulo, que uma mãe trabalhadora, empregada doméstica, sai lá da zona
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leste para trabalhar nos Jardins e amarra, acorrenta uma criança de quatro anos e ela é responsabilizada criminalmente por isso, quem deve ser responsabilizado é o Estado. A prefeitura aqui tem 84 mil pedidos de vagas em creche que não são atendidos. É um crime que se faz com essa criança e com essa mãe. Como é que está uma mãe que vai trabalhar em uma casa, é de chorar isso aí, é de chorar, é de arrepiar. Eu me coloco na pele dessa mãe que deixa uma criança em casa, que não tem onde deixar, ou que deixa com uma outra de sete anos. Essa criança teria que estar na escola, caramba! Não pode. E é isso que nós sustentamos ainda. Não podemos ficar com 84 mil crianças esperando em São Paulo para ter uma vaga em creche. Está certo que tem muitos problemas, mas eu acho que começa na base. E quando se fala em ensino fundamental, por que a Unesco coloca a gente lá em 88º lugar? É porque há muita evasão. A gente matricula as crianças, mas a média de evasão de primeira a oitava série está em torno de 20%.
É uma quebra de 20%? É uma quebra de 20%, e se mantém. E há 40% de defasagem em torno da questão idade-série. Então, a criança está fora da série que deveria estar. Isso causa, primeiro, um custo muito elevado, porque você paga duas, três vezes a mesma matrícula. Então, a evasão custa caro para o Brasil. Eu sei que o governo federal avançou muito, não só nas últimas décadas, eu diria até, fazendo jus ao que o FHC fez há oito anos, ele deixou uma boa legislação. Deixou um plano nacional de educação, que bem ou mal faz um diagnóstico; deixou uma lei de atividades, bem ou mal, se fossem cumpridas, dão uma boa base; deixou o sistema nacional de avaliação de educação básica; do ponto de vista legal, deixou o Fundeb; deixou os parâmetros curriculares nacionais. E Lula avançou mais ainda. Os três ministros de Lula avançaram. Mas que há um avanço é reconhecido, há avanço. Mas aqueles dois pontos, para mim, acho que nós ainda precisamos avançar muito. Vamos retomar um pouco o ponto do analfabetismo. Você não concluiu a resposta do analfabetismo. Então, a resposta do analfabetismo é que, no caso, é muito mais difícil você zerar no ensino básico, o analfabetismo zero, tem que ter cuidado com esse slogan, eu vi isso em outros países, na Venezuela, nos Estados Unidos. Cuidado, porque não é só saber ler, só saber assinar o nome, é muito mais que isso. Mas haverá, sempre haverá, mesmo nos países mais avançados, sempre tem lá 0,1%, 0,5% ou 1%. Não é zerar. Mas digamos, o índice de analfabetismo razoável de 2%, 2,5% têm muitos municípios que conseguem. Eu mesmo nasci em um município que, na minha época, não havia nenhum analfabeto, município pobre de Santa Catarina. Você é de onde? De Rodeio, em Santa Catarina, e hoje tem analfabetos lá. Na minha época não tinha, não existiam analfabetos porque existiam escolas paroquiais, criadas pela comunidade, não havia nem escola púfevereiro 2010
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Tem uma força muito grande. E nós não temos correlação de forças para conseguir diretamente. O que nós avançamos foi nas conferências. E precisaria que a mídia alternativa e os demais veículos de comunicação apoiassem as conferências. Que elas estejam mais presentes nas conferências, porque é a única porta que se abre para a democracia direta. A educação tem papel importante para se educar para a democracia direta. Então, quando nós insistirmos nisso na primeira escola, no projeto pedagógico, na participação da comunidade, na escolha direta dos dirigentes da escola. Não é porque é mais eficaz no que é específico da educação, que é o ensinoaprendizagem, mas porque forma para a cidadania. Se fosse só para se formar não precisaria do ensino da cidadania, mas através de mecanismos concretos. Está na Constituição isso. Quando a conferência nacional da comunicação fala que é preciso criar uma comissão para poder analisar os casos de desrespeito aos direitos humanos, não é uma intervenção na liberdade de expressão e imprensa. É um exercício de cidadania.
blica, mas escolas das igrejas. Não havia de 0 a 3 anos, apenas de 3 a 4 para a escolaridade. Mas então, há dificuldade muito grande porque o Estado não chega em certos lugares, por isso que precisaria mais de prestação das ONGs e movimentos sociais, comprometidos, das igrejas comprometidas. Para chegar lá nesses territórios da cidadania que é difícil de chegar.
Quais foram os erros que o Brasil cometeu para não baixar os índices do analfabetismo? Olha, claro que a escolarização é um fator importante. A escolarização, você pôr a criança na escola é importante, porque vai manter e depois a taxa de analfabetismo vai diminuir. Vou dar um dado: hoje, se nós considerássemos os Estados brasileiros, excluindo os Estados do Nordeste, nós teríamos 2,6% de analfabetismo no Brasil. Infantil? Não, não. Adulto, a partir dos 15 anos. E 2,6% é uma taxa bem baixa. A maior contribuição para o analfabetismo está no Nordeste, tem município que tem 30%, 40% de analfabetos. O Estado do Maranhão tem em torno de 19%, hoje está com 800 mil analfabetos. É o Estado que tem mais analfabetismo, ao lado de Alagoas. Em números de analfabetos a Bahia também contribui muito. Então, porque não houve a mesma taxa de escolarização que o Sul teve, que o Sudeste teve. Demos um passo atrás no processo de envolver a sociedade? Eu acho que a sociedade, e toda vez que o governo quer envolver a sociedade, há uma reação muito forte da direita desse país. Quando ele quer envolver. Agora, nas conferências nacionais, na definição das políticas públicas se vê toda a carga da elite brasileira, que quer impedir que a população tenha mecanismos de controle deixados ao mercado. No caso recente agora do Plano Nacional de Direitos Humanos está claro. Da Conferência Nacional de Cultura, da Conferênica Nacional de Comunicação. A direita está muito atenta, ela lê nos detalhes. Porque ela foi buscar uma expressãozinha lá de um documento. A gente pensa que ela não está viva, mas ela está muito viva, muito atuante, muito articulada e reprime qualquer tentativa de uma democracia direta, por exemplo. É constitucional a democracia participativa, está na Constituição, caramba! É um direito da população, é um direito constitucional de eu poder manifestar a minha opinião em uma conferência. Então, o governo avançou muito nos compromissos, portanto ele encontrou um caminho. O Luiz Dulci é um dos caras que discute para encontrar esse caminho das conferências. Milhões de pessoas, mais de quatro milhões de pessoas participando das mais de 30, 40 conferências. Houve uma ação estratégica da mobilização de participação popular que foi a das conferências. E que, quando avança um pouquinho, existe um movimento de repressão. Como define o que é direita no Brasil? Eu acho que aí é: o momento que você toca em alguns pontos, ela se manifesta. Nessa questão, por
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exemplo, eu estava gostando muito do Plano de Direitos Humanos, eu acho que ele ainda vai dar um grande avanço. Mas, por exemplo, ela se manifesta por meio da mídia, do impacto da mídia, que é raivosa com a situação, é brava. Não vou dar nem exemplos aqui. No debate que houve sobre os direitos humanos, é mexer com o capital privado. Ela se manifesta aí nesse controle da informação. Sob o pretexto da liberdade de expressão se constrói o monopólio da expressão. Eu acho que o MST quando mostrou que o governo gasta muito mais com a imagem dele do que com a alfabetização, no boletim do MST que eu vi, deixa claro como a mídia ainda controla as verbas do governo em relação à publicidade. Então, Lenin dizia que análise de conjuntura é análise de correlação de forças. Conjuntura significa correlação de forças. Eu acho que nós não conseguimos implantar a democracia participativa como está na Constituição. Nós temos algo em democracia representativa, nós avançamos, bem ou mal, nós avançamos. Mas não avançamos no mesmo ritmo com a democracia participativa. Porque no artigo primeiro da Constituição fala exatamente isso, que todo o poder emana do povo, seja por meio de representantes ou diretamente nos termos dessa Constituição. Diretamente. Esse “diretamente” é uma palavrinha tão pequena na Constituição, mas está no parágrafo 1 do artigo primeiro.
Qual a avaliação que faz da situação da educação formal? Como sempre a questão é complexa e não vou me ater a apenas um fator. Vou dar dados, que eu gosto muito de dar: em 96, no final do ano, foi promulgada a LDB, que amplia de 180 para 200 dias letivos. Qual era intenção da lei? Era melhorar a qualidade do ensino. Em 2004, saia a primeira avaliação do desempenho do aluno, que havia tido um desempenho menor depois de aumentar de 180 para 200 dias letivos. Não funcionou. Eu até mandei uma carta para o Tarso Genro porque me questionava disso. Então escrevi para ele, se aumentando o número de dias letivos piorou, vamos voltar a 180 dias, que tem a chance de melhorar. Aí, a questão da progressão continuada piorou, porque se passa sem saber. E aí o Lula falou que agora depende da formação dos professores. Tentando achar o culpado dessa questão. E não há culpado, há fatores diretos. É um castigo para a criança ficar mais tempo na escola se ela não gosta da escola, e mais de 80% das crianças não gostam de ir à escola. Tem estatística sobre isso. Alguma coisa está errada na escola também, que não consegue acolher essas crianças. Eu sou favorável à educação integral, o tempo todo na escola. A criança tem que ter educação integradora, em tempo integral na escola. Por exemplo, a classe privilegiada tem educação integral, mas ela tem quatro, cinco horas na escola, depois tem o ballet, a piscina, depois tem esportes, depois tem o judô, tem cinema, tem teatro e isso é educação integral. É um direito de cidadania, todos terem educação integral, e não só os mais ricos. A formação do professor tem que ter outro paradigma, que não é o de ser um lecionador, ele tem que ser um organizador da aprendizagem, despertar o desejo de aprender.
“Nós precisamos avançar com a democracia participativa, que está prevista na Constituição.”
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Os educadores não estão preparados? Há educadores que estão mostrando seus novos paradigmas de formação. Mas não adianta aumentar a qualidade do professor num paradigma em que ele vira um mero instrutor de um programa que está aí. Ele precisa continuar com a alma de professor. Isso tem a ver também muito com o Banco Mundial, que não utiliza nenhum dinheiro com a gente. É um banco sem dinheiro, mas com ideias. E esse banco de ideias é um banco de soluções entre aspas. E as soluções sempre foram dadas a instrucionistas, numa visão de que era possível todo mundo saber a mesma coisa ao mesmo tempo, e o professor não tinha o que fazer a não ser virar páginas. “Hoje nós vamos tratar da página 3 e da página 15”. O Brasil segue essas orientações do Banco Mundial? Veja bem, o Brasil é um país que tem uma enorme variedade de sistemas, tem autonomia nos Estados e municípios. Então não dá para dizer que o Brasil segue só esse modelo. Mas predomina ainda o instrucionismo, que ainda limita a educação e não é uma educação emancipadora, que desperta primeiro a pessoa para o ser, para a sua vida, para o seu bem viver. É uma visão que ainda acha que você tem certos conteúdos, sabendo passar, você consegue ter êxito nas coisas, você não tem êxito porque você tem isso ou aquilo, a informação não é poder, o poder está em como se usa a informação. Então, o instrucionismo reduz a educação à simulação de uma informação e não à criação. Nós precisamos de gente que pense, que crie, que não repita o já dito, o já feito, o já realizado. Os manuais... Os manuais são importantes. Paulo Freire, embora tenha sido contra as cartilhas, não desprezava as cartilhas. Mas é formar gente para pensar. Eu acho que a educação da era da indústria, que era para formar gente em série não dá para ser transportada para hoje, época em que nós precisamos de gente mais autônoma, o sucesso ou fracasso depende muito da capacidade da pessoa ter iniciativa, saber falar, saber defender seus direitos e também defender o que eu falo, através da participação, através da criação. Eu não estou muito preocupado com o ranking, estou preocupado em formar cidadão. Tirar o cidadão da miséria que está aí, a educação pode ajudar e transformá-lo em cidadão. Isso depende de programa de treinamento dos professores? Sim, mas eu acho que se você desperta na criança, no jovem, o desejo de aprender, ele vai entrar muito mais rapidamente num ensino de matemática, de língua portuguesa, de inglês, que é exigência básica para viver na sociedade. Ele avança muito mais. É preciso que o que eu sei tenha sentido para mim. E quantas crianças não vão para a escola e se perguntam que sentido tem aprender isso? A formação do professor tem que ser numa direção dele ser um orientador da aprendizagem, incentivador. Tem dados que mostram
res, nós estaríamos sem essa limitação, nós estaríamos melhor, até iria mais gente para o ensino. Você sabe que existem muitas vagas nas universidades públicas nas áreas de pedagogia e licenciatura que não são preenchidas, muitas ainda, acho que são umas quatro mil vagas, que não são preenchidas. Por quê? Porque não há um estímulo salarial para professor. Tem dados terríveis: em torno de 20% apenas dos professores de química são formados em química. Há falta de professor de química, de física. Por quê? Há falta porque não atrai. Então, falta sim, recurso para educação. Então, aprovar o piso é um bom começo para a melhoria do salário. Há professores que ganham bem? Poucos, pouquíssimos.
que, quando um professor aprende com o aluno, pesquisa com o aluno, está com o aluno, gosta do que está ensinando, as crianças se interessam mais em aprender. É só não fechar essa torneirinha da aprendizagem. Eles dependem muito da criação de um professor, estimulador, que encontre boas condições de aprendizagem, que dialogue. Diálogo é fundamental. Que dialogue com a comunidade, com os pais, que seja um gestor do conhecimento, um animador cultural. Então, depende muito dele ser um dirigente, o professor precisa ser um dirigente, não um burocrata, executor de programa. Ele precisa ser um dirigente, um intelectual orgânico, que tenha ideia, que estimule a participação política. Não precisa ter faculdade, só instrução da política da escola, da política da comunidade. Só uma liderança, só uma liderança democrática.
A remuneração do professor é investimento na educação? Está no Supremo Tribunal Federal o piso salarial. Enquanto eles estão discutindo o teto deles, não estão liberando o nosso piso. Os professores ganham bem no Brasil? Acho que tem professores que ganham bem, mas a maioria dos professores não ganha bem. O piso de 950 reais... Vai ser aprovado ainda? Foi aprovado em várias instâncias, mas houve prefeituras e Estados que entraram no Supremo para não cumprir a lei. Então, o Supremo não se manifestou ainda, precisaria até cobrar dele. Eu acho que é uma limitação histórica dos professo-
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Quanto que o Brasil investe em educação? O Plano Nacional de Educação pedia 7% do PIB, aliás está aprovado no Plano Nacional de Educação, 7%. Nos países desenvolvidos fala-se em 7% do PIB, e a Unesco fala em 6% do PIB, como uma necessidade mínima. Os dados não são difíceis de achar. Mas houve um avanço na questão do Fundeb. O Fundeb aumentou em 1 bilhão por ano, mas se considerarmos que o orçamento era de 60 bilhões do governo federal, 80% iam para o ensino superior, não para a educação básica. Eu acho que aí também há um problema dessa diversidade de sistemas, tem o municipal, o estadual, o nacional, e não trabalha o plano oficial. As pessoas têm um plano e não trabalham o plano articulado com o governo federal. Não trabalham. Eles têm o seu sistema, inclusive de ensino superior, e trabalham de forma mais autônoma. No Estado de São Paulo piorou nos últimos anos a qualidade da educação. Piorou no Estado de São Paulo? Piorou, considerando aí dados que saíram aí, houve uma piora. O que explica isso? No Estado de São Paulo há um sistema com seis milhões de alunos. É um sistema gigantesco, em primeiro lugar, incontrolável. E muito burocratizado. Não tenho dados do que explica essa piora nos dados, no desempenho do Estado. Eu não tenho dados específicos, seria fazer uma análise... Eu acho até que os recursos aumentaram, porque diminuiu a matrícula. Qual é a sua opinião sobre a progressão continuada? Não sou tolerável à progressão automática, mas à progressão continuada, que são duas coisas diferentes. A automática é quando você opera sem avaliação. Paulo Freire instituiu a progressão continuada em São Paulo, em programas de ciclos, por várias razões: uma, para manter a criança na escola, que já é um ganho, ter uma criança na escola é melhor do que ter abandonada na rua. Segundo, porque acreditava que se fosse bem implantada, em forma de ciclos, estaria associada a um programa de formação. Porque, se você não explica para as partes direitinho o que é progressão continuada, elas vão dizer claramente que é promoção fevereiro 2010
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as escolas do MST sejam mercantilistas, embora elas não sejam estatais. A disputa maior não é entre o privado e o público, é entre o mercantil e o público, porque tem escolas que tem uma visão mercantil, mesmo sendo estatais, financiadas pelo Estado. A educação é um direito, e não um serviço. A educação é um direito.
automática. Porque não tem provas, não se passa por análises. A promoção continuada, através de ciclos, exige outro sistema de avaliação, que é um sistema de acompanhamento, é o que se faz no mundo inteiro. Você tem uma escola que tem um projeto pedagógico, então ela precisa funcionar como um coletivo, e não só o professor de português vai lá, dá aula e vai embora. O professor tem que estar em tempo integral naquela escola, não pode dar aula em cinco escolas. Não adianta só baixar um decreto da progressão continuada, tem que ter todo um acompanhamento, é uma nova proposta da educação.
O Paulo Freire é referência mundial em educação. Mas às vezes parece que ele é quase ignorado no Brasil. Acontece isso mesmo? Olha, ele está presente na educação popular, nos movimentos sociais. O MST é um bom exemplo de como está aplicando Paulo Freire, acho que o melhor exemplo são as escolas do MST. O Muda Brasil, por exemplo, tem um programa importante com a Frente dos Petroleiros, o Instituto Paulo Freire e outros movimentos sociais e populares. Então, em todo o Brasil temos exemplos importantes da adoção da filosofia educacional de Paulo Freire, que era uma filosofia de uma educação democrática, emancipadora, muito apropriada para os nossos dias, eu diria. Tem toda vantagem de você formar uma pessoa emancipada, ela precisa ser emancipada. A educação pode ser oferecida, a educação tem que ser o espaço da formação da liberdade da pessoa. E Paulo Freire tinha isso, da educação como prática para a liberdade. Mas isso ainda não é nacional, está mais associada a movimentos. Você pega, por exemplo, o documento final da conferência de educação de 2010, você não encontra Paulo Freire, não existe. Essa escola brasileira que não é emancipadora, forma para quê? Eu acho que a cidadania no Brasil é ainda muito consumista, uma cidadania restrita. Você não discute política na escola, até hoje. Onde se aprende a política? Onde aprende a ser cidadão? Nos movimentos, na política. A escola não discute política, não discute o país. A escola precisa dizer que país queremos. A cara da escola tem que ser a cara do país que queremos. E aí, isso não é discutir política no sentido partidário, de eleição, não é para discutir eleições na escola, é para discutir que país seremos, essa questão é importante. Que país queremos? Nós somos o país das Olimpíadas, do Rio de Janeiro, do futebol. Queremos um país sem miséria, sem fome, país participativo, país onde a vida seja distribuída, onde o Estado tenha distribuição de renda, não doada, como adoção de uma política elitista. Buscar o seu direito de ter o todo desse país distribuído, mais dele repartido. A distribui-
Nos últimos anos cresceu muito o número de instituições privadas no ensino superior. Por que você acha que houve esse crescimento? Aí você fala em demanda, né? Porque existe muita demanda, que não é atendida pelas vagas no ensino público, do ensino médio para o superior, e com as escolas técnicas. Tem hoje muita gente com um ensino muito bom nos cursos federais de tecnologia, formação profissional. Então, essa demanda hoje é muito grande, que é muito importante e que a base do desenvolvimento nacional está aí. E o ensino superior tradicional. Como a demanda pública não é sempre a oferta pública, então, há essa demanda por ensino superior, porque hoje sem o ensino superior você também não tem um ensino de qualidade. Eu não sou contra que prolifere, eu sou muito mais que tenham ensino melhor, até privado, quem pode pagar, que pague lá. Eu acho que nós precisamos aumentar a oferta no ensino público, acho que é dever do Estado, a educação, deveria ser gratuita. ção de renda caminha a passos lentos, mas está caminhando. Houve distribuição de renda nesse país durante esse governo? Houve, mas nós queremos mais. Então, é isso que deve vir da escola.
No ensino superior, o ProUni é transferência de dinheiro público para escola privada? Tem esse problema, mas além disso existe um lado que salvou algumas escolas de falirem, porque elas tiveram com esse recurso que pagar menos imposto. Eu acho que essa é uma questão conjuntural. Eu não sou contra o ProUni. Agora tem que aperfeiçoar o ProUni, não adianta você só dar a matrícula para ele, se você não dar condição, tem que ter material didático, acesso a computador. Eu acho que toda educação deve ser pública e gratuita. Logicamente que a privatização da educação é uma grande ameaça. Mas a mercantilização da educação é diferente da privatização. A iniciativa privada é um direito, em uma sociedade democrática, e eu não sou contra a iniciativa privada, eu acho que o problema está na mercantilização, porque se tem também instituições estatais que têm uma mentalidade mercantilista, que promove uma visão capitalista do mundo. E existem escolas privadas que não são mercantis, que são públicas, assim como você tem as que são estatais, tem as privadas, mas são públicas no sentido não estatal. Não se pode dizer que
“A escola precisa dizer que país queremos. A cara da escola tem que ser a cara do país que queremos.” 16
Numa visão geral da educação no Brasil, como a classifica? A mesma da Unesco. Se não mudar, o projeto não sai do lugar, a educação não sai do lugar como em outros países. Piorou 18 lugares, e outros tiveram forças maiores do que nós. Segundo o governo, a prioridade está em três coisas: crescimento econômico, distribuição de renda e educação. Mas eu acho que o governo brasileiro vai ter que priorizar o sistema educacional, não está havendo esforço especial na educação. Não é pessimismo, mas eu acho que distribuição de renda hoje precisa ter crescimento, e você só cresce se tem conhecimento. Esse tripé, concordo com ele que essas são três prioridades, distribuição de renda, crescimento e educação. Só que com a educação se atinge um patamar muito maior. Então, onde se pode aproveitar isso, esse tripé? A educação vem muito lentamente. Existe um movimento chamado Todos pela Educação, mas ainda está muito no campo do marketing. Promove a educação, porque é importante. Eu gostaria que o anúncio fosse assim: quem é lá da Cidade Tiradentes vai encontrar vaga para estudar. Aí muda completamente, é preciso indicar. E tem que ter investimento. Então, no “Todos pela Educação” tem que ter papel também a iniciativa privada de incentivar, tem que defender a educação, temos que trabalhar pela educação. Eu acho que nesse BRIC que nós temos aí, de países emergentes, a educação é o maior entrave na condição brasileira para o desenvolvimento. E a educação depende de mobilização social, precisa de todo mundo, da empresa privada, da empresa pública, da mídia, como vocês estão fazendo agora, é uma questão de cidadania.
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entrelinhas a mídia como ela é Hamilton Octavio de Souza
Cesar Cardoso
UM HERÓI
BRASIL: ANISTIA IGUAL PARA OS DOIS LADOS
15/3 Saiu o plano de reestruturação da empresa. Eles explicaram que não houve demissões e sim realocamentos de vínculos. Não sei qual é o meu vínculo, mas tenho que fazer alguma coisa para ele não ser realocado.
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Recebi a avaliação da reorganização cambiante. Que alívio: eu atingi as metas! Há um mês que me telefonam pela manhã dizendo qual é a minha tarefa do dia e em qual dos escritórios ela deve ser feita. Isso é moderno, sim, mas acabou com o meu sono.
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A maior parte da imprensa brasileira apoiou a derrubada do governo constitucional de João Goulart e o golpe civil-militar de 1964. A maior parte, também, paulatinamente, na medida em que o movimento social aumentou a pressão, engrossou as fileiras do processo de abertura democrática, em defesa das liberdades de expressão, de manifestação, estudantil, sindical e partidária. Entre 1978 e 1985, vários veículos abriram espaço para as campanhas da anistia e das eleições diretas. A imprensa empresarial-burguesa atuou com força na Constituinte e na primeira campanha eleitoral para a Presidência da República após a ditadura. Por isso mesmo representa um grande retrocesso político-editorial entre os setores liberais e conservadores a reação ultradireitista contra o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. A nação precisa conhecer toda a verdade sobre a tortura, o assassinato e o desaparecimento dos perseguidos políticos da ditadura, assim como o Judiciário tem o dever de julgar os crimes de lesa-humanidade. O Brasil não pode seguir adiante, com dignidade, sem o completo esclarecimento daquele terrível período.
ATRASO MIDIÁTICO Num país com baixo índice de leitura de jornais, revistas e livros, o surgimento de um novo jornal diário deveria ser comemorado. Mas não é esse o caso do jornal Mais, lançado em São Paulo no dia 20, que procura conquistar os setores populares (R$0,50 o exemplar) com conteúdo superficial e chupado de outros veículos da mídia neoliberal, sem ofere-
cer aos leitores material que contribua para elevar o nível de conhecimento da realidade. Mais uma droga na praça!
QUEDA DO GUERREIRO Depois de 10 anos e seis meses de resistência, o jornal Tribuna, de Vargem Grande do Sul (SP), decidiu suspender suas atividades. Ao contrário de muitas porcarias espalhadas pelo interior do Brasil, o semanário insistia em fazer boas reportagens, veicular material crítico e prestar serviço para os moradores dos bairros mais carentes da cidade. Sofreu perseguição da direita e sufoco econômico. Um retrocesso na democratização da mídia.
DIFAMAÇÃO NÃO É CRIME O banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, inventou uma história cheia de fatos não comprovados (mentiras?) sobre seus concorrentes e repassou para o pitbull da Veja. Como a historinha era do interesse do pitbull, ele a espalhou para mais de um milhão de leitores da revista da Editora Abril. Processados, editora e pitbull, acabaram livres de qualquer punição: a juiza Ana Lucia Vieira do Carmo, da 19ª Vara Cível do Rio de Janeiro, entendeu que reproduzir informações de terceiros não compromete quem tornou o assunto público. É o fim do crime de difamação e a promoção da fofoca ao status de informação verdadeira! Hamilton Octavio de Souza é jornalista. hamilton@uol.com.br
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Mudei de cidade pela quarta vez. Minha mulher decidiu se separar. Mas pela alínea b da cláusula 5 do novo contrato de troca de serviços ela é obrigada a me acompanhar. Eu devia estar feliz. Mas continuo sem dormir. E o médico da empresa garantiu que o tremor nas mãos é da idade.
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Tenho bebido muito ao chegar em casa. Foi o que eles disseram.
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Contei ao psiquiatra do departamento de felicidade que estou abandonando o emprego, que estou abandonando tudo. Isso mesmo, vou me matar.
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Estive com o psiquiatra ontem à noite e hoje cedo recebi em casa um Olá Amigo avisando que pelo meu padrão de desempenho interpessoal não estou autorizado a me suicidar. Minha família pagará pesadas multas se isso acontecer. Fiquei impressionado com a velocidade da resposta. Bem que eles disseram que o dinamismo era um dos principais pontos do plano de reestruturação da empresa. Ilustração: latuff
Imprensa e direitos democráticos
Com a flexibilização de cargos não sabemos mais quem são os gerentes. Alguém disse que eles vão controlar quantas vezes vamos ao banheiro. Mas um novo Boletim Alô Amigo explicou que não haverá controle e sim uma medição higiênica reabrangente de saúde. Deixei para mijar em casa.
Cesar Cardoso foi dispensado de lutar o bom combate por ter pé chato. E montou o blogue PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com) fevereiro 2010
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Frei Betto
Jobim, Vannuchi
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Fidel Castro
O Haiti coloca à prova
E A MEMÓRIA BRASILEIRA
o espírito de cooperação
Indignados com o Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado por Lula, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes das Forças Armadas teriam apresentado suas renúncias, recusadas pelo presidente. Lula teria prometido rever pontos do programa, como os que exigem a instalação de uma Comissão da Verdade, a abertura dos arquivos militares e a retirada, de vias públicas, de nomes de pessoas coniventes com a repressão da ditadura. O ministro Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos, cumpre seu dever de cidadão e autoridade. O Brasil é o único país da América Latina, assolado no passado por ditadura militar, que prefere manter debaixo do tapete crimes cometidos por agentes públicos. A lei da anistia, aprovada pelo governo Figueiredo, é uma aberração. Anistia se aplica a quem foi investigado, julgado e punido. O que jamais ocorreu, no Brasil, com os responsáveis por torturas, assassinatos e desaparecimentos. Aqueles que lutaram contra o regime militar e pela redemocratização do país foram, sim, severamente castigados. Que o digam Vladimir Herzog e Frei Tito de Alencar Lima. Tortura é crime hediondo, inafiançável e imprescritível. Ao exigir que se apure a verdade sobre o período ditatorial, o ministro Vannuchi e todos nós que o apoiamos não somos movidos por revanchismo. Jamais pretendemos fazer a eles o que eles fizeram a nós. Trata-se de justiça: descobrir o paradeiro dos desaparecidos; entregar às suas famílias os restos mortais dos que foram assassinados e enterrados clandestinamente; comprovar que nem todos os militares foram coniventes com as atrocidades cometidas pelo regime; livrar as Forças Armadas da influência de figuras antidemocráticas que exaltam a ditadura e acobertam a memória de seus criminosos. O presidente Lula não merece tornar-se refém dos saudosistas da ditadura. É a impunidade que favorece, hoje, a prática de torturas por parte de policiais civis e militares, como ocorre em blitzen, delegacias e cadeias Brasil afora. Inútil os militares tentarem encobrir a verdade sobre o nosso passado. Até no filme de Fábio Barreto, “Lula, o filho do Brasil”, a truculência da ditadura é exposta em cenas reais e fictícias. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton – o filme mais realista sobre o período militar – revela como jovens estudantes idealistas eram tratados com uma crueldade de fazer inveja aos nazistas. Participei, com Paulo Vannuchi, do projeto que resultou no livro “Brasil, Nunca Mais” (Vozes), assinado por Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright. Todas as informações contidas na obra foram obtidas na documentação encontrada no Superior Tribunal Militar. E, em data recente, o major Curió, que comandou a repressão à guerrilha do Araguaia, abriu uma mala de documentos. Anistia não é amnésia. O Brasil tem o direito de conhecer a verdade sobre a guerra do Paraguai, Canudos e a ditadura instalada em 1964. Bisneto e neto de militares, sobrinho de general e filho de juiz de tribunal militar (anterior ao golpe de 64), gostaria que os nossos Exército, Marinha e Aeronáutica fossem forças mais amadas que armadas.
As notícias procedentes do Haiti configuram o grande caos que se esperava, devido à situação excepcional criada pela catástrofe. Surpresa, espanto, abatimento nos primeiros instantes, vontade de prestar ajuda imediata nos cantos mais afastados da Terra. O quê enviar e como fazê-lo para um canto do Caribe, a partir da China, Índia, Vietnã e de outros pontos localizados a dezenas de milhares de quilômetros? A magnitude do terremoto e da pobreza do país gera nos primeiros momentos ideias de necessidades imaginárias, que dão azo a todo tipo de promessas possíveis que depois tentam fazer chegar por qualquer via. Os cubanos compreendemos que o mais importante nesse momento era salvar vidas, para o qual estávamos treinados, não apenas diante de catástrofes como essa, mas também de outras catástrofes naturais relacionadas com a saúde. Ali estavam centenas de médicos cubanos e, além disso, um número considerável de jovens haitianos de origem humilde, convertidos em profissionais da saúde bem treinados, uma tarefa para a qual contribuímos durante muitos anos com esse país irmão e vizinho. Uma parte dos nossos compatriotas estava de férias e outra, de origem haitiana, treinava ou estudava em Cuba. O terremoto ultrapassou qualquer estimativa; as casas humildes de adobe e barro — de uma cidade com quase dois milhões de habitantes — não podiam resistir. Instalações governamentais sólidas desabaram; quarteirões completos de moradias desmoronaram sobre os habitantes que, nessa hora, ao anoitecer, estavam em seus lares, ficando sepultados abaixo das ruínas, vivos ou mortos. As ruas estavam repletas de pessoas feridas que clamavam auxílio. A MINUSTAH, força das Nações Unidas, o governo e a polícia ficaram sem chefia nem posto de comando. No primeiro momento, a tarefa dessas instituições com milhares de pessoas foi saber quem estava com vida e onde. A decisão imediata dos nossos abnegados médicos que trabalhavam no Haiti, bem como dos jovens especialistas da saúde formados em Cuba, foi comunicarem-se entre si, e saberem com que pessoal se contava para socorrer o povo haitiano. Os que estavam de férias em Cuba aprontaram-se logo para partir, assim como os médicos haitianos que se especializavam em nossa Pátria. Outros especialistas cubanos em cirurgia que já cumpriram missões difíceis se ofereceram para partir com eles. Basta dizer que, antes de 24 horas, os nossos médicos já tinham atendido a centenas de pacientes. Hoje, 16 de janeiro, apenas três dias e meio depois da tragédia, o número de pessoas com lesões já auxiliadas por eles elevava-se a vários milhares. Os países acompanham de perto tudo o que acontece no Haiti. A opinião mundial e os povos serão cada vez mais severos e implacáveis em suas críticas.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros.
Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.
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João Pedro Stedile
Agressões ao meio ambiente e as reações DA NATUREZA A natureza começou 2010 vingando-se das agressões que vem sofrendo há décadas. O modelo capitalista de sociedade é predador da natureza por sua lógica de funcionamento. Muitos capitalistas ganham dinheiro difundindo o consumo de bens supérfluos, mas que precisam de matérias-primas da natureza para serem produzidos. Outros capitalistas atacam diretamente os bens da natureza, como minérios, madeira, rios, peixes, terra. Na produção agrícola foram implantadas grandes áreas com pecuária extensiva, derrubando florestas e desequilibrando o meio ambiente ao impor apenas o pasto. A concentração de rebanhos se transformou num dos maiores poluentes, pelo gás exalado pelos animais. Se aplicam cada vez mais anabolizantes, hormônios, etc. Em aves e suínos, com efeito perverso na saúde dos humanos. Na produção de grãos, o Brasil se transformou no maior consumidor mundial de venenos agrícolas. Não são biodegradáveis e, além de destruir as pragas e insetos, destroem a fertilidade do solo, contaminam as águas, e ao serem ingeridos pelas pessoas, induzem ao surgimento cada vez maior de câncer. Estamos assistindo todos os dias às reações da natureza. As pessoas pagam o preço desse desequilíbrio. Mas os capitalistas não se importam. Temos as alterações climáticas, de temperatura e chuvas. Os fortes ventos que destroem tudo. Os desmoronamentos nas cidades e estradas são também a reação às construções inadequadas que as pessoas fazem por serem empurradas pela especulação imobiliária, que os obriga subir os morros ou ir para as beiras de rios, se quiserem sobreviver. Nos alimentos, a reação da natureza está nas alterações de nosso organismo pela proliferação do câncer, que é, segundo os médicos, a destruição das células por esses venenos do agronegócio que só pensa em lucros. E agora, a tragédia do Haiti. Claro que é muito difícil se proteger de terremotos. Na China, por exemplo, há controles científicos que permitem perceber terremotos com horas de antecedência e transferir parte da população. Mas os políticos não gostam de investir em ciência e tecnologia. Não dá voto. Por outro lado, ninguém pode admitir que num país de oito milhões de pessoas, três milhões deles estivessem amontoados em favelas numa só cidade. Se houvesse outro modelo econômico, o desastre e as consequências sociais não seriam as mesmas. Vejam a comparação com a vizinha Cuba, que praticamente não perde vidas humanas com o verdadeiro açoite anual que sofre dos terríveis furacões e tornados. Que as lições do meio ambiente nos sirvam para refletir e debater a necessidade de mudar esse modelo predador, irracional e irresponsável, que está cobrando um alto preço em vidas humanas para se manter. E sempre os mais pobres é que começam pagando a conta.
João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.
Gilberto Felisberto Vasconcellos
Capitalismo Sujeira Foi um cocô Copenhaguen. Cocopenhaguen.
Não se discutiu a causa do descalabro ecológico. Nem a so-
lução. A causa é o CO2 lançado na atmosfera, a petroquímica movida por combustíveis fósseis: carvão mineral e petróleo. Esses combustíveis fazem a economia de escala capitalista. A petroquímica está tanto na fábrica quanto no adubo nitrogenado da agricultura, sobretudo dessa coisa medonha chamada agrobiuzinis. O sistema de comida em nossa mesa depende da química de origem fóssil com fertilizantes sintéticos fabricados pelas multinacionais. Disso decorrem o efeito estufa, chuva ácida, desertificação, águas contaminadas e comida envenenada. É o câncer gastrocapitalista, dizia o doutor Silva Mello, sobre quem acabei de escrever um livro pela editora do Rolim em Floripa. A mesma multinacional que produz comida, produz adubo, remédio, inseticida, automóvel, Monsanto, Cargill, Mitsubishi e Du Pont. São essas corporações sinistras que financiam a engenharia genética e a biotecnologia para fazer transgênicos e a bomba étnica com DNA que só mata árabe e africano. A verdade é que o capitalismo sempre foi inimigo da natureza: o capitalismo arruína a terra e envenena as pessoas. O imperialismo das corporações multinacionais é o regime da destruição ecológica. Ingenuidade é pedir para o Eike Batista: - gente boa, dá um alívio na poluição, reduza a emissão em 20 por cento por causa do CO2 na atmosfera. O capitalista gosta é de lucro, e não de vaga-lume. Idiotice é pedir para que se diminua a taxa de acumulação de capital. O capitalismo não é estacionário. Não existe capitalismo paradão. O capitalismo se expande freneticamente, mas há limites na natureza. Silva Mello dizia com o raciocínio dialético, embora não fosse marxista: a natureza não foi feita para ser habitada pelo homem. A sociedade não pode usar a natureza como se fosse sua escrava, mas o capitalismo escraviza o homem e destrói a terra. Marx virou comunista porque ficou injuriado com a exploração capitalista do trabalho e a depredação da natureza. É insuprimível o metabolismo entre a força de trabalho e os recursos naturais. A acumulação de capital depende da emissão de CO2, portanto a poluição vai continuar se o capitalismo não for destruído. O problema é que a natureza pode pifar antes de o capitalismo ser destruído. É o que eu perguntei para o joaçabanildouriques: a natureza é o proletariado do século XXI? Movimento ecológico que não seja anticapitalista e anti-imperialista é telenovela da Globo com Gabeira e Marina. O único movimento ecológico é o MST. Sol + socialismo. Solcialismo. Microdestilaria de álcool e não usineiros latifundiários. Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.
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Tatiana Merlino
O coro da direita
contra os direitos humanos Recuo do governo Lula diante da ofensiva conservadora contra Programa Nacional de Direitos Humanos desvela tradição conciliatória da cultura política e “continuísmo ditatorial” no Brasil. Fotos Jesus Carlos
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omo há tempos não se via no país, quase todos os setores conservadores da sociedade brasileira uniram-se no fim de dezembro e, de forma orquestrada, atacaram. O alvo foi o 3° Programa Nacional de Direitos Humanos, duramente criticado pelas Forças Armadas, empresários do agronegócio, setores da Igreja Católica e proprietários de meios de comunicação. Lançado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 21 de dezembro, o texto é a terceira versão de um programa do governo federal para a área. O PNDH-I e o PNDH-II foram elaborados em 1996 e 2002, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. A virulência das críticas ao programa que apareceram na imprensa comercial relembra o período ditatorial. Editoriais e artigos assinados acusaram o plano de querer revogar a Lei de Anistia, chamando os militantes que combateram a ditadura de revanchistas, e alertando para possíveis iniciativas “comunistas”. Os principais ataques partiram dos militares, que, às vésperas do ano novo, por meio de seu porta-voz, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, criticaram o ponto do plano que instituía a Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Jobim ameaçou pedir demissão juntamente com os três comandantes das Forças Armadas, que disseram que a busca da verdade não pode significar “revanchismo”. A principal causa da discórdia foi a existência do termo “repressão política”: os militares temiam que a expressão pudesse indicar uma investigação dos órgãos repressivos da época. Assim, pressionaram para substituir o termo para “conflito político”, dando margem para se ampliar a investigação também sobre os supostos crimes cometidos por militantes da esquerda. O ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, protestou, afirmando que colocar no mesmo patamar torturadores e torturados não é uma questão negociável. Declarou ainda que, se as vítimas da ditadura também passassem a ser alvo de investigação, ele pediria demissão.
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Demais reações Já a presidente da Confederação Nacional da Agricultura, a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), afirmou que o programa discrimina o setor ruralista. O trecho do plano criticado é o que prevê a realização de audiências públicas antes que um juiz decida se concede liminar de reintegração de posse de uma fazenda ocupada. O ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, também atacou. Segundo ele, o decreto vai trazer instabilidade jurídica para o campo. O documento ainda recebeu críticas de bispos da Igreja Católica, que reagiram a artigos que propõem ações para apoiar um “projeto de lei que descriminaliza o aborto”, “mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos”, a “união civil entre pessoas do mesmo sexo” e o “direito de adoção por casais homoafetivos”. As entidades patronais de meios de comunicação também se manifestaram contra pontos do programa. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) e a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) divulgaram uma nota conjunta na qual afirmam que o texto do decreto do governo contém ameaças à liberdade de expressão. Nessa área, um dos objetivos do plano é regular os meios de comunicação para que mantenham uma linha editorial de acordo com os direitos humanos, com sanções para os que desrespeitarem as normas. Curiosamente, parte desses pontos que foram criticados já constava nos dois programas anteriores, aprovados na gestão tucana de FHC. “Esse programa é uma continuidade natural dos outros, é coerente com os anteriores. É surpreendente que a crise mobilizada agora não tenha ocorrido durante o lançamento do segundo programa”, comenta a professora da faculdade de educação da USP, Maria Victória Benevides. Ela questiona o fato das reações virem apenas no fim do ano, apesar do plano já estar disponível na internet há tempos. “Quando houve o lançamento do programa [em 21 de dezembro de 2009], os jornais também não deram muito destaque ao conteúdo. Só deram atenção para o novo visual da ministra Dilma Rousseff, o que me deixou impressionada”. O que também foi pouco divulgado pela imprensa coorporativa é que a criação da Comissão da Verdade já havia sido recomendada durante a 11ª Conferência de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, em Brasília.
Recuo presidencial Para acalmar os ânimos dos militares, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um novo decreto, em 13 de janeiro, que suprime o trecho que dizia que a Comissão da Verdade iria promover a apuração das “violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política”. Assim, o leque de violadores dos direitos humanos ficou am-
Manifestação de familiares e militantes de direitos humanos em defesa da Comissão da Verdade.
plo, deixando “no ar” quem seriam os investigados. A medida também prevê a criação de um grupo de trabalho para “elaborar anteprojeto que institua a Comissão Nacional da Verdade (...) para examinar as violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Tal período proposto pelo decreto presidencial vai de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, e não mais o que compreende a ditadura civil militar, conforme o texto original. Para entidades e defensores de direitos humanos, o novo decreto representa um grande recuo de Lula. “O presidente da República, seguindo seus hábitos consolidados, resolveu abafar as disputas e negociar um acordo. Esqueceu-se, porém, que nenhum acordo político decente pode ser feito à custa da dignidade da pessoa humana”, criticou Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito, em artigo publicado na página da internet da Caros Amigos. O acordo foi “lamentável”, e faz parte de uma “tradição conciliatória da política brasileira”, acredita Maria Victoria. “Acho muito complicado tirar a expressão ‘repressão política’. Torturas, assassinatos e prisões ilegais são repressão política abusiva e criminosa”, critica. Além disso, opina, “não tem o menor cabimento jogar o início do período examinado para 1946”. Afinal, “o período da repressão política é de 64 a 85”, indigna-se. Para Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, “o governo recua em nome de uma pseudogovernabilidade e abre mão de esclarecer o que ocorreu durante a ditadura. Essa supressão das expressões é muito séria, descontextualiza historicamente e tira a responsabilidade do Estado. Esse decreto é uma coisa escandalosa, vergonhosa”.
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O que os setores militares vêm tentando fazer, com a ajuda da grande imprensa, é defender a tese de que “houve excesso dos dois lados”, tanto do regime autoritário como dos militantes de esquerda que pegaram em armas, o que justificaria um “vale-tudo”. “Com isso, tenta-se produzir a teoria dos dois demônios”, alerta Cecília.
Derrota Também tem sido propalada a ideia de que os defensores da Comissão da Verdade e militantes de direitos humanos são revanchistas. “Seríamos revanchistas se estivéssemos reivindicando que quem torturou deva ser torturado, que quem matou deva ser morto, que quem estuprou, vai ser estuprado. O que absolutamente não é o objetivo de ninguém”, ressalta Maria Victoria. “Eu sou favorável à responsabilização dos autores diretos desses crimes assim como de seus mandantes e responsáveis. Uma punição dentro da lei. Mas isso é com o Judiciário, não vai ser um programa do Executivo que será responsável por punição. O objetivo da Comissão tem que ser tornar público o resultado dessa investigação. Depois é com o Judiciário”. Assim, a professora considera a mudança no texto do 3° Programa Nacional de Direitos Humanos uma derrota, “principalmente quando a gente vê que uma aliada natural da causa dos direitos humanos como a Igreja se somou de uma maneira bastante infeliz ao que existe de pior na direita”. No entanto, ela enfatiza que a derrota é de “batalha e não da guerra”. Outra questão levantada pelos militares e divulgada com o apoio da imprensa corporativa é a de que, com a Comissão da Verdade, o ministro Paulo Vannuchi e as entidades de direitos humanos pretendem revogar a Lei de Anistia de 1979, que prevê, em seu primeiro artigo, “anistia a todos quantos (...) cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. fevereiro 2010
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Apesar de ter sido publicado nos meios de comunicação que o programa pretendia revogar a lei, inclusive em manchete do jornal O Estado de S. Paulo, em nenhum momento o Programa Nacional de Direitos Humanos cita alguma intenção nesse sentido. “Ninguém falou em revogação. A questão é colocar a lei nos trilhos porque ela foi deturpada, desviada para abranger o perdão para torturadores e assassinos que obviamente são culpados de crimes comuns, bárbaros. Nenhum país onde vigora o Estado de Direito pode deixar de considerar isso crime comum, principalmente os que estabeleceram Comissões da Verdade”, alerta Cecília.
Tradição conciliatória Segundo Maria Victoria, uma das razões de o Brasil caminhar na contramão em relação aos países vizinhos que também tiveram regimes autoritários e que hoje já julgaram e puniram torturadores e assassinos, como Argentina, Chile e Uruguai, é a tradição conciliatória da política brasileira. “Essa característica não é só de pessoas que eventualmente estejam no governo hoje. É um dado da cultura política brasileira. Basta olhar o que aconteceu com as nossas rebeliões e crises políticas, sempre marcadas pela conciliação”, analisa. Para ela, o pior é que “essa conciliação é valorizada como algo positivo, como sendo a coisa do brasileiro cordial”. Ainda de acordo com Maria Victoria, tal característica da sociedade brasileira é herança da “nossa tradição da escravidão, em que tudo era permitido. Afinal, tratava-se de uma raça inferior. E, por analogia, isso passa para outros setores, como aqueles que pegaram em armas, que não podem ser vistos como seres humanos com os mesmos direitos”, completa. Essa dificuldade do Brasil acertar as contas do passado também seria resultado do “medo que os civis sempre tiveram das crises militares”, comenta a professora. Mesmo agora, opina, “muita gente tem dito: ‘vocês não precisavam cutucar a onça com vara curta, vocês querem um outro 64?’. Ou seja: esse é um medo atávico que, se não for enfrentado, nunca vamos realmente aprender com nossa história”.
Direita rearticulada Embora acredite que os ataques simultâneos aos direitos humanos sejam resultado da direita estar “se rearticulando com muita força”, Maria Victoria Benevides considera que a virulência contra o plano também se dá em decorrência da proximidade com o ano eleitoral. “Dá para imaginar como será uma campanha dura contra a candidatura do governo, com recursos baixos de todos os tipos. Já há na imprensa matérias extremamente acusatórias e distorcidas em relação à candidatura de Dilma, que é chamada de guerrilheira”, ressalta. O filósofo e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Arantes, também acha que parte da reação ao plano pode ser explicada pela
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corrida eleitoral. “O ano é eleitoral e a oposição, embora em vantagem nas pesquisas, sabe que se trata de mero resíduo de campanhas anteriores. Mas, sobretudo, sabe que o atual governo não só lhe roubou o discurso da modernização capitalista, como também [roubou] o seu grande eleitor cativo”. Já Cecília Coimbra acredita que o coro da direita contra os direitos humanos é um termômetro que indica que estamos vivendo uma “onda conservadora”. “Isso não acontece só no Brasil, é um fenômeno mundial. Mas as reações ao PNDH revelam todo o conservadorismo de alguns grandes grupos econômicos e daqueles que dominam os grandes meios de massa. É preocupante e temos que alertar as pessoas”. Para ela, ao invés de avançar, em nome da governabilidade o governo abriu mão desses pontos fundamentais do plano e “compôs com as forças conservadoras, que saem fortalecidas”. Paulo Arantes e Maria Vitória Benevides identificam uma semelhança entre a postura da direita brasileira nesse recente episódio com a assumida durante as eleições presidenciais de 1989, quando os candidatos eram Lula e o ex-presidente Fernando Collor de Melo. “Sempre que há alguma incerteza eleitoral, eles se sentem desproporcionalmente ameaçados e a primeira reação é ganhar no grito”, explica Arantes. “Naquele momento, houve a união de militares com os meios de comunicação liderados pela Rede Globo e do capital contra o Lula”, completa Maria Victoria. Ela explica que a atual mobilização contra os direitos humanos existe desde que se iniciou o debate sobre a interpretação da Lei de Anistia. “Não resta dúvida que o ponto crucial do ataque foi esse. Isso somado a uma profunda insatisfação com o que eles consideram uma leniência do governo em relação às ações do MST. É impressionante como há uma crítica fortíssima ao MST mesmo por parte das pessoas que não têm nem dois centímetros de uma hortinha”, critica.
Família e propriedade A força de mobilização da direita e a dificuldade do país em avançar em termos de conquistas sociais em um Estado democrático e republicano devem-se, na avaliação de Paulo Arantes, à “União Sagrada desses setores, em torno de Deus, da Família, da Propriedade (e desde então, da Impunidade)”, que desde o golpe militar de 1964 “nunca se desfez”. Ou seja, embora tais setores pudessem estar aparentemente desmobilizados, “basta cutucar para a fera mostrar a cara. A procuradora Flávia Piovesan costuma falar em ‘continuísmo ditatorial’”, completa. Ou seja, como o país não conseguiu fazer uma política justa de transição da ditadura para a redemocratização, ainda padece com resquícios autoritários. Assim, questionado sobre a possibilidade dos conservadores estarem ganhando força e voltando a se rearticular, Arantes rebate: “Voltando a ganhar uma força que nunca perderam? Salvo o já mencionado
monopólio eleitoral, que talvez teimem em recuperar por uma questão de princípio”.
Comissão da Verdade Em outros países que passaram por regimes de exceção, como a Argentina e o Chile, assolados por ditaduras militares, e a África do Sul, vítima do apartheid, comissões da verdade auxiliaram a sociedade a esclarecer crimes de tortura, assassinato e desaparecimento e a conhecer seus responsáveis. “Todos os países que passaram por comissões da verdade conseguiram consolidar o que se chama de construção da nação”, explica Maria Victoria Benevides. “É impossível pensar que somos uma nação quando há esse esquecimento forçado de fatos importantes da história. Não há democracia nem República que consigam se consolidar e se desenvolver com uma parte de sua história escondida”, ressalta a professora da USP. Cecília Coimbra afirma que o grupo Tortura Nunca Mais apóia o Plano Nacional de Direitos Humanos, mas “não incondicionalmente, porque a Comissão de Verdade e Justiça que ele apresenta ficou aquém do que tínhamos apresentado na Conferencia Nacional de Direitos Humanos”. Entidades e militantes de direitos humanos organizaram manifestações e atos em repúdio às críticas ao plano e em suporte integral ao programa lançado pelo governo federal. O Movimento Nacional de Direitos Humanos, organização que reúne 400 entidades de direitos humanos, emitiu nota de repúdio ao que considera “inverdades” proferidas por posições contrárias ao documento. As organizações também aguardam o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da abrangência da Lei de Anistia. A Arguição de Descumprimento de Preceito Federal (ADPF 153) ajuizada pelo professor Fábio Konder Comparato via Ordem dos Advogados do Brasil em outubro de 2008 – que contesta a validade do artigo 1º da Lei 6.683, segundo o qual são anistiados “todos quantos, no período entre 2/9/1961 e 15/8/1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, está à espera do parecer da Procuradoria Geral da República desde fevereiro, para então poder ser julgada pelo plenário do STF. Para pressionar o STF em relação ao julgamento da ADPF, uma série de entidades de direitos humanos, entre elas a Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), lançaram, em dezembro, uma campanha “contra a anistia aos torturadores”. Como primeira ação, divulgaram um manifesto online destinado ao presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e aos ministros do STF. Mais de 15 mil pessoas já assinaram o documento, entre elas, intelectuais, artistas, juristas, parlamentares e defensores de direitos humanos, como Chico Buarque de Holanda, João Pedro Stedile, José Celso Martinez Correa, Hélio Bicudo, Frei Betto, Marilena Chauí e Aloysio Nunes Ferreira. Tatiana Merlino é jornalista. tatianamerlino@carosamigos.com.br
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Memórias De um jornalista não investigativo Renato Pompeu
Ana Miranda
Paráfrases para Raduan
“Eu sou do tempo em que ainda havia no Brasil alguns carros com a direção do lado direito”
Há em todas as cousas um sentido filosófico. (Machado de Assis) ... tua filosofia, doce bálsamo contra a desventura. (Shakespeare)
Tua língua é uma razão humana que tem tuas razões. (Lévy-Strauss) Romance: destelhar casas sem que os passantes percebam. (Drummond)
Algumas reflexões
... o poeta é um ser alado e sagrado... (Platão)
... não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne. (Eclesiastes) E a palavra, uma vez lançada, voa irrevogável. (Horácio)
J. Reis. Hoje ainda existem alguns especialistas em ciência que nos dão informações de qualidade, mas já faz décadas reina um “terrorismo científico” em que o que vale é o caráter chamativo da notícia e não sua exatidão. Por exemplo, nos anos 1990, eu trabalhava no “Jornal da Tarde”, o vespertino de “O Estado de S. Paulo”, e, diante da profusão de notícias das agências internacionais sobre a descoberta de genes disso e daquilo, por exemplo, o gene que causava a esquizofrenia, fui encarregado de fazer uma pesquisa sobre o assunto. Descobri que são raríssimas as condições causadas por um gene só; as características genéticas são na prática totalidade dos casos provocadas por complexas combinações de genes, sempre mutáveis, de modo que nem sempre a presença das mesmas combinações de genes coincidia com a presença da mesma característica, e vice-versa, nem sempre a mesma característica coincidia com as mesmas combinações de genes. Meu artigo foi publicado com algum destaque na última página do primeiro caderno, mas não mereceu chamada de capa. Em compensação, naquele mesmo dia, na primeira página, foi dada com destaque a notícia: “Descoberto o gene da obesidade”. Renato Pompeu é jornalista e escritor. rrpompeu@uol.com.br
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O mundo:
comédia para os que pensam, tragédia para os que sentem. (Walpole)
... memória: uma espécie de farmácia... onde ao acaso se põe a mão ora sobre uma droga calmante, ora sobre um veneno perigoso. (Proust)
Que me quereis, perpétuas saudades? (Camões) O amor é sede depois de se ter bem bebido. (Guimarães Rosa)
... todos não passamos de fantasmas ou de uma sombra leve. (Sófocles) Nada do que é humano reputo alheio a mim. (Terêncio)
Relembrai
vossa origem, vossa essência...
(Dante)
Ele é um homem, tomando-o como um todo. Temo nunca encontrar alguém igual. (Shakespeare) Ilustração: HKE...
Quando comecei a trabalhar no jornalismo profissional, em 1960 – em março serão 50 anos – cada atropelamento na já grande cidade de São Paulo era noticiado com rigor, resultasse ou não em morte. Dava-se o nome da vítima e, quando fosse possível, a marca, o modelo, a cor e a chapa do carro e o nome de seu motorista. Naquele tempo, a grande maioria dos ônibus da cidade eram de uma estatal da Prefeitura, a Companhia Municipal dos Transportes Coletivos – CMTC, fundada na segunda metade dos anos 1940, e que só foi ter o seu primeiro desastre com vítima fatal no começo dos anos 1970, fato que teve enorme repercussão e causou um trauma na CMTC. Hoje os jornais e emissoras de televisão praticamente não noticiam atropelamentos e as rádios, sem citar nomes, só noticiam os atropelamentos quando se tornam motivos de congestionamento e de aconselhamento aos motoristas para não passarem por ali. O que antes era uma homenagem a pessoas feridas ou mortas passou a ser agora um motivo de incômodos aos proprietários de carros. As notícias de atropelamento, cuja leitura era um momento de meditação sobre a precariedade da existência humana, agora são um momento de ainda mais irritação com a inacreditável bagunça do trânsito. Quanto aos ônibus, tornaram-se todos particulares e os desastres com mortos são tantos que os nomes das vítimas nunca são noticiados e, do mesmo modo que os atropelamentos, os desastres são mais noticiados como focos de problemas no trânsito do que como tragédias em si. Também, quando comecei a trabalhar, as notícias sobre ciência eram sempre submetidas a especialistas na área, como, na “Folha”,
Poesia é uma religião sem esperança. (Cocteau)
Nenhum grande homem vive em vão. (Carlyle). Ana Miranda é escritora.
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ensaio BRUNO GARIBALDI Cenas de uma metrópole nem sempre acolhedora, com seus ambientes inadequados e degradados, nos quais a vida insiste e resiste, na esperança alegre e ingênua das crianças e nas marcas sóbrias e desvairadas que o tempo gravou. A demanda por moradias dignas e a disponibilidade por espaços públicos democráticos fornecem o pano de fundo das questões sociais de uma urbanização desigual. O olhar não busca necessariamente a estética da miséria; reage quando as imagens da exclusão tentam passar indiferentes aos olhos de quem observa – não apenas o concreto da cidade, mas, sobretudo, e antes de tudo – a vida. É dever moral e ético olhar, registrar e anunciar: está aí um pedaço da nossa realidade. Alguém se habilita em transformá-la?
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Lúcia Rodrigues
CRISE ECONÔMICA
Acabou mesmo ou vai continuar As análises dos economistas ouvidos pela Caros Amigos apontam para um cenário de recuperação. em 2010? O crescimento econômico deve ser retomado, apesar de ainda estar muito baseado no consumo.
“A crise pôs a nu a fragilidade da teoria ortodoxa, que vê no comportamento do mercado a solução para todos os problemas.” LEDA PAULANI
e
ntrevistamos a professora Leda Paulani, da Faculdade de Economia e Administração da USP; o professor Valdir Quadros, do Instituto de Economia da Unicamp, e o líder da bancada do PT no Senado, Aloizio Mercadante, para saber como a economia brasileira deverá se comportar em 2010. Acompanhe a seguir os principais trechos da conversa com os três economistas.
Qual é a sua expectativa para 2010? Leda Paulani - Espero que o resultado de 2010 em termos de crescimento seja melhor do que o do ano passado, 2009 recebeu todo o impacto da crise seja em termos de emprego, produto e investimento. Por isso, 2010 deve ser melhor. No entanto, ainda podemos sentir os desdobramentos da crise. Por que a crise que atingiu o Brasil foi diferente da que assolou os países desenvolvidos? A razão fundamental é que a matriz das operações financeiras, que provocaram essa crise, estava no centro do sistema, justamente nos Estados Unidos e países mais desenvolvidos. No Brasil não existia muito esse tipo de operação. Como os países emergentes sofreram a rebarba dessa crise, depende muito da política econômica de cada país. Foi se criando ao longo dos últimos 25 anos uma
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coisa que se convencionou chamar de sistema bancário sombra. É um sistema que não tem banco de varejo, ninguém tem talão de cheque. Ele opera principalmente na área de investimento, são bancos de investimento, corretoras, fundos de pensão, fundos hedge, fundos mútuos, sociedade de investimentos, criando moeda, criando crédito, mas que não estavam sob o abrigo do sistema regulatório, que atinge apenas o sistema bancário. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve (banco central norteamericano) atinge apenas o sistema bancário convencional, com suas regulações. Mas o banco com os correntistas também sentiu as consequências das operações do sistema bancário sombra. Qual a diferença do Brasil? Aqui o sistema bancário sombra é muito pequeno, o nosso sistema financeiro é fundamentalmente um sistema bancário convencional. Em segundo lugar, os nossos bancos são mais conservadores e o Banco Central tem exigências de compulsórios muito mais elevados. Pelo Acordo da Basileia, a relação entre o patrimônio do banco e a quantidade de recursos que ele pode emprestar tem de ser no mínimo 8% e, no caso dos bancos brasileiros, pelo menos dos grandes bancos, é acima de 15%.
Houve um ponto de inflexão na política econômica do governo Lula pós-crise. Desse ponto de vista a crise foi positiva?
Essa tendência já existia. É evidente que a crise deu um empurrãozinho. A crise pôs a nu a fragilidade da teoria ortodoxa e que a economia financeirizada apoia, que vê no comportamento do mercado a solução para todos os problemas ao passo que a visão mais desenvolvimentista não acredita nessas virtudes do mercado. A crise reforçou essa estratégia desenvolvimentista que eu acredito que já estava traçada no segundo governo Lula.
Como vê as candidaturas presidenciais Dilma e Serra, do ponto de vista da política econômica? Não há nenhuma diferença de projeto entre as duas candidaturas. Do ponto de vista econômico, o governo Lula simplesmente reproduziu o que o governo Fernando Henrique já fazia. As pessoas dizem: mas ele não privatizou. Bom, mas também... sobrou a Petrobras, que já está privatizada de uma certa forma. Mas se quiserem tirar o controle do Estado, acho que dá uma confusão muito grande e ninguém quer comprar essa briga. Então não ti-
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nha muito mais o que privatizar. Mudou muita coisa com a crise, mas no Banco Central ninguém mexeu, a turma do Meireles continua lá. A tendência é, se continuar na estratégia desenvolvimentista, mudar também o Banco Central.
Como deve ser o crescimento econômico brasileiro em 2010? Vai ser melhor. Acho que 2009 terá um crescimento negativo. Se for zero será um ótimo resultado. Portanto, o crescimento de 2010 deverá ser melhor que o do ano passado, em torno de 4%, até porque é ano eleitoral. E em relação ao desemprego? O Brasil vinha em uma trajetória de aumentar o número de empregos, inclusive formais, e deu uma segurada, mas acho que retoma de alguma maneira em 2010. Em relação à distribuição de renda a tendência também é melhorar. A melhora do nível de emprego, melhora a distribuição de renda. Outro fator que vai pesar é o novo aumento do salário mínimo. O aumento do salário mínimo real implica nessa melhora na distribuição de renda que observamos e não o bolsa família, como estão dizendo. O salário mínimo é direito. O Bolsa Família é uma liberalidade do governo que pode dar em uma hora e em outra não. Então o salário mínimo é muito mais importante para explicar essa distribuição da renda do que o Bolsa Família. Que setores devem crescer? O crescimento está sendo puxado basicamente pelo consumo doméstico e isso acaba afetando setores convencionais, como a indústria de transformação leve: roupa, alimento, remédio etc. e que normalmente tem uma quantidade de emprego formal maior que em outros setores, como o de serviços. Portanto, o emprego formal deve crescer. Os investimentos crescem menos, mas por conta dos investimentos governamentais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) também deve crescer um pouco devido ao programa Minha Casa, Minha Vida, embora a construção civil já seja um pouco mais complicada, porque tem uma parte que não é formal. Os serviços crescem por tabela, porque quando cresce a indústria crescem os serviços. Vai ter um impacto positivo em todos os setores, menos no de investimentos. Estou falando da relação de formação bruta de capital fixo (máquinas, ferramentas, tratores etc.) em relação ao PIB que estava se recuperando desde 2005. Mas a crise deu um baque e recuou. E as projeções que foram feitas demonstram que a crise pode ter causado um retrocesso de dois a três anos. A indústria vai produzir mais, mas os investimentos ainda vão levar um tempo para serem retomados. O que os trabalhadores podem esperar da economia em 2010? Um pouco de recuperação do emprego, não sei se dá para esperar um aumento de salário médio real, a não ser o do próprio salário mínimo. Mas quando a economia está crescendo os sindicatos podem na luta recuperar esse panorama.
“É preciso derrotar o conservadorismo do Banco Central e o rentismo”. VALDIR QUADROS Como a crise econômica atingiu o emprego brasileiro? Valdir Quadros – A Pesquisa Mensal de Emprego (PME) demonstra que a crise não foi tão séria. Mas essa pesquisa só pega as metrópoles, as regiões metropolitanas. Mas temos de esperar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) para verificar o conjunto do país. De 2004 a 2008 o desemprego nas metrópoles realmente caiu significativamente, mas no conjunto do país não. Portanto, não dá para saber o que aconteceu em 2009. A minha intuição é de que houve um impacto significativo. De que maneira a crise impactou na distribuição da renda? Aquele progresso que vinha ocorrendo na base da pirâmide, com redução da miséria, aumento da massa trabalhadora, aumento da baixa classe média, deve ter se reduzido. Felizmente a crise não foi tão séria. O país está crescendo, mas teve mortos e feridos. E quem são esses mortos e feridos? Só dá para saber quando sair a PNAD (no segundo semestre). A minha intuição é de que o impacto maior deve ter ocorrido justamente na baixa classe média e na massa trabalhadora, que foram as duas que mais se beneficiaram com esse tipo de crescimento. E também porque essas duas camadas são as que concentram a maior massa de desemprego: 76% dos desempregados. Isso antes da crise. E quais ocupações tiveram o maior crescimento de emprego? As atividades que mais cresceram foram as ocupações urbanas assalariadas tanto de trabalhadores como de colarinhos brancos, concentrados no padrão de vida de baixa classe média e massa trabalhadora. Quando o senhor fala em massa trabalhadora a que está se referindo? É o padrão de vida que define, porque tem operário e até colarinho branco. Quando eu chamo baixa classe média e massa trabalhadora é por estrato de renda. A faixa de renda que trabalhamos é a da PNAD, que é a renda declarada pelo entrevistado, não é a renda efetiva. Quando estratifico é que dá a massa trabalhadora, a classe média, os miseráveis. Na estrutura individual, miserável é quem ganha até R$ 317, em valores de outubro de 2008. O grau de miserabilidade teve uma queda no governo Lula? Sim, e foi grande. Em termos de famílias, o que inclui toda a população e não só os trabalhadores,
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Valdir Quadros
ocorreu uma redução de 29, quase 30 milhões. É gente pra caramba. Isso sem contar o crescimento populacional. Contando o crescimento populacional, caiu de 47 milhões para 18 milhões. E a baixa classe média, que é a coqueluche da classe C, cresceu 12,6 milhões. Diminuiu 29 milhões entre os miseráveis e cresceu 21 na baixa classe média e na massa trabalhadora. Ficou tudo aí praticamente. O grosso da mobilidade ficou concentrado nessas camadas, que não são nenhuma Brastemp. Baixa classe média é padrão de vida de professor primário, balconista, auxiliar de escritório.
Mas para quem vivia em um nível de miserabilidade foi uma ascensão. Provavelmente os miseráveis foram para a situação de pobres, de massa trabalhadora e os de massa trabalhadora é que devem ter ido para baixa classe média. Dificilmente a pessoa sai lá de baixo e ascende rapidamente. De qualquer forma, em cinco anos foi uma coisa significativa. Realmente é magnífico. Mas isso foi fruto do quê? Crescimento econômico e aumento do salário mínimo, principalmente lá embaixo, além do aumento do emprego formal. Porque quem tem emprego formal ganha pelo menos o salário mínimo. O crescimento econômico foi fruto de uma política econômica acertada do governo ou se deveu ao contexto internacional? A política econômica, principalmente a política de juros e de câmbio, só atrapalhou, mas como a economia mundial, principalmente a China, e nós engatamos na China, teve um crescimento espetacular, por isso, apesar da política econômica, o país cresceu. Isso em si não é ruim. Mas onde está o fevereiro 2010
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problema? O problema é que esse crescimento é de baixa performance. A gente está crescendo fundamentalmente baseado em commodities e indústria de baixo conteúdo tecnológico. Petróleo, mineração, exportação de produtos primários. Obviamente esse câmbio e esses juros são totalmente danosos em relação à indústria e aos serviços, que geram empregos de melhor remuneração. Por isso, a mobilidade social que ocorreu foi intensa, mas se limitou à baixa classe média. Porque as empresas geram emprego de baixa remuneração, não de baixa qualificação. Exige qualificação, mas paga pouco. Isso por dois motivos: um deles é a situação defensiva por causa do câmbio, dos juros e da concorrência interna, o outro são as empresas que vão bem devido ao comportamento rentista. Como elas vão bem, arrocham o salário para aplicar no financeiro. Não é porque a empresa está indo bem que vai pagar melhor salário, vai querer aplicar no financeiro e arrochar o salário do mesmo jeito. Qual é o mecanismo fundamental para arrochar os salários? Rotatividade.
Como o senhor vê as candidaturas Dilma e Serra que estão à frente nas pesquisas? Com certo otimismo, embora existam diferença entre os dois, no fundamental, no que diz respeito à política econômica há uma semelhança muito grande. Ambos são industrializantes, produtivistas e não financistas, ambos vão reforçar a política industrial, infraestrutura, vão usar o pré-sal de uma forma correta. Porque ambos têm uma formação boa. São economistas com tradição desenvolvimentista, sabem a importância do papel ativo do Estado, da inserção internacional soberana. Claro, existem diferenças políticas, sociais, não estou falando que é a mesma coisa. Mas do ponto de vista da política econômica os dois representam uma possibilidade de avanço. São bastante semelhantes, mas são mais avançados que o Lula e o Fernando Henrique. Se as condições do país são favoráveis por que não houve uma pressão sindical para se avançar na conquista de direitos? De uma maneira geral as lideranças sindicais estavam de acordo com o que ocorria, por isso não ocorreram grandes mobilizações. Há uma identificação das lideranças das centrais sindicais, não só da Central Única dos Trabalhadores (CUT), mas de outras centrais também com o governo de um trabalhador. Tem também a atitude do Lula de contenção do movimento sindical, de diálogo e de manobra, é claro. Ele consegue, os outros também queriam manobrar, mas como ele tem mais legitimidade, manobra mais e melhor. Precisou ocorrer a crise para o governo tomar uma posição mais intervencionista. Há uma ruptura significativa na política econômica e na conduta do governo antes da crise e pós-crise. A ortodoxia foi posta em segundo plano, reduziu superávit, aumentou gasto, fez política industrial, reforçou o Bndes (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), voltou os bancos públicos para trabalhar firme no crédito, fez programa habitacional, crédito habitacional. Exatamente
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o que devia ter feito nos dois mandatos, fez diante da crise. Isso é um mérito do Lula que ninguém vai tirar. Só que a disputa hoje é voltar para a política anterior. O discurso conservador é de ‘já foi feito o que era necessário, já se debelou a crise e agora vamos retomar superávit, aumentar os juros.’ É uma disputa que será resolvida na próxima eleição.
retomar o emprego? Mudar o padrão de crescimento estrutural, industrial e de serviços. Por isso, tem de se atacar o rentismo. Está tudo ligado. A baixa performance econômica e que tem uma baixa performance social, tanto no desemprego quanto nessa ascensão social expressiva, porém limitada.
Foi pragmatismo puro. Puro, mas tudo bem. O importante foi que fez e que continue fazendo.
E qual foi o crescimento do nível de emprego no período de 2004 a 2008? A massa trabalhadora cresceu 8,3 milhões.
Mas não dá para desconsiderar o fato de que Meireles continua puxando a corda para o outro lado. Essa é a contradição do governo Lula. A força que o Meireles tem é a que o mercado e o Lula dão. O Lula o defende o tempo inteiro. É uma ambiguidade do Lula, que eu espero que o próximo presidente resolva.
Com carteira assinada? Não. Tudo com carteira assinada, autônomo, tudo.
E de quanto deve ser o crescimento econômico para 2010? Ah, não sei. Não tenho a menor ideia. Todo começo de ano fazem as projeções, depois fura tudo. Essas projeções não têm nem pé nem cabeça. É um exercício de futurologia. E o desemprego deve continuar no mesmo patamar? Isso é uma incógnita. A economia pode se recuperar e não recuperar o emprego de forma significativa. Vai depender muito da composição do investimento, da produção. Se a indústria reage o emprego recupera mais. Eu não vejo um cenário rosa. Embora a economia tenha crescido bastante de 2004 a 2008, o desemprego não se reduziu significativamente. O desemprego que aparentemente tinha saído da pauta, os sindicatos não falavam mais. Quando fui fazer o estudo levei um susto, achava que tinha caído. Que medidas o governo deveria tomar para
O que os trabalhadores podem esperar de 2010? Será melhor do que 2009. O importante é os trabalhadores, por meio de suas lideranças, devem envolver os candidatos ao máximo. Obrigatoriamente os candidatos vão estar envolvidos, mas tem de pressionar para fazer avançar. Tem centrais ligadas ao Serra e ao Lula. Os trabalhadores têm de ir para a rua? Sem dúvida. Não é com o voto. Por isso, é importante os sindicatos, centrais se mobilizarem nesta eleição em torno da bandeira do desenvolvimento, da industrialização. A crise foi boa porque enterrou o neoliberalismo, tanto em termos de política econômica quanto do ponto de vista ideológico. Por isso, os sindicatos precisam fazer avançar. Como deve se comportar a distribuição de renda até o final de 2010? Aquilo que houve de piora em 2009, e que vamos verificar com a Pnad, deve estancar, porque o comportamento da economia em 2010, segundo vários economistas deve retomar ao patamar que estava em 2004 a 2008, então o prejuízo de 2009 começará a ser recuperado em 2010. A perspectiva de 2010 é melhor do que a de 2009.
“Vamos crescer mais de 5%, gerar mais de dois milhões de empregos, consolidar investimentos.” ALOIZIO MERCADANTE Senador, como a crise econômica de 2009 atingiu o Brasil? Aloísio Mercadante – Nós enfrentamos a mais grave crise internacional desde 1929. Começou como uma crise no mercado imobiliário, mas rapidamente se transformou em uma crise financeira global e imediatamente em uma crise econômica global. Os dados demonstram que houve uma recessão muito forte nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, principais economias do mundo. Só nos Estados Unidos o volume de desemprego foi da ordem de quatro milhões e duzentos mil trabalhadores. A Europa não voltará a ter o nível de emprego pré-crise pelo menos em três,
cinco anos. Além disso, fizeram um esforço fiscal brutal de mais de 10% do PIB para tentar amenizar os efeitos da crise de crédito, da crise financeira. O Brasil foi atingido tardiamente, mas foi atingido. Tivemos uma redução no primeiro semestre de 2009, mas o governo foi prudente, tínhamos reservas em dólares, um volume de reservas em reais no Banco Central que também permitiu amenizar a crise, e com isso conseguimos estabilizar o câmbio. Não tivemos nenhum problema grave no sistema financeiro. Algumas empresas que aplicaram no mercado de derivativos sofreram danos importantes, mas foram equacionados. O governo deu uma pronta
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resposta acionando os bancos públicos, o Banco do Brasil em 2009 emprestou mais do que todos os bancos do Brasil em 2003. O que demonstra a sua importância, uma carteira de crédito de mais de R$ 300 bilhões. A Caixa Econômica Federal foi fundamental na resposta à crise, especialmente no programa habitacional, estamos liberando R$ 40 bilhões, praticamente dobramos o volume de crédito imobiliário, com quase 700 mil unidades construídas. E o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) que no ano passado tinha uma carteira de crédito de R$ 100 bilhões, é um banco que hoje é maior do que o Banco Mundial, e foi muito importante para prover crédito, estimular fusões, alavancar investimentos. Além disso, o governo usou a política fiscal para desonerar os setores automotivo, de linha branca, construção civil e agora o imobiliário. E a resposta foi muito positiva. O setor automotivo bateu recorde de produção e venda, mais de três milhões de veículos. Com tudo isso nós amenizamos, revertemos o quadro recessivo. Mantivemos a taxa de juros ainda em um padrão maior do que economias importantes do mundo, mas com menor taxa de juros dos últimos 30 anos, 8,5%. Se nós não tivéssemos tomado essas medidas, teríamos uma recessão de menos 3,7% do Produto Interno Bruto (PIB), a soma de tudo que é produzido no país. A redução dos juros, o provimento de crédito, a desoneração tributária, a manutenção dos investimentos públicos e algumas empresas estatais, como a Petrobras, que alavancaram investimentos na crise fazendo uma política anticíclica. O Brasil emerge do cenário pós-crise como uma das economias mais promissoras do mundo. E isso se deve fundamentalmente a alguns aspectos. Primeiro porque nós tivemos um grande mercado interno de massas. O governo Lula colocou o social como eixo do desenvolvimento econômico. Conseguimos o Bolsa Família para mais 12 milhões de famílias, o salário mínimo que vem tendo um ganho real significativo e injeta R$ 27 bilhões na economia, o crédito con-
signado, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e algumas outras políticas públicas, como Minha Casa, Minha Vida, que está construindo casas para quem ganha até três salários mínimos, de R$ 42 mil, e essas famílias vão pagar R$ 6 mil em 10 anos. São programas de distribuição de renda que permitiram que inclusive durante a crise se reduzisse a pobreza pela primeira vez na história. Em 60 anos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é a maior distribuição de renda documentada no Brasil. O mercado interno foi o que permitiu o Brasil sair da crise. Temos a terceira agricultura do mundo. A descoberta do pré-sal muda a história econômica do Brasil. O cenário pós crise é muito favorável.
Podemos considerar então que a crise foi positiva para que a política econômica do governo Lula tivesse esse ponto de inflexão? No primeiro governo Lula não havia margem de manobra na política econômica. Tivemos de fazer uma política de transição e criar bases sólidas preservando a estabilidade para colocar o social como eixo do desenvolvimento econômico, que era o compromisso do governo. Já no segundo governo com maior margem de manobra, pudemos fazer uma política anti cíclica, fortalecer o Estado como planejador, articulador dos grandes investimentos estratégicos e fizemos isso reduzindo a dívida pública ao contrário da oposição. Não abrimos mão da regulação do sistema financeiro, não nos rendemos à tese da autonomia do Banco Central e construímos uma política econômica consistente. Eu acho que essa crise foi uma derrota para do projeto neoliberal e consolidou a nossa visão de desenvolvimentismo. Mas a economia ser puxada pelo consumo não fragiliza esse crescimento, não deveria ser puxada pelo investimento? O que vinha sustentando o crescimento econômico eram os investimentos, mas na crise não dava para crescer para fora, porque o mercado internacional desabou e só era possível crescer para dentro, com o mercado interno de massa. O Brasil representa 2% da economia mundial. Por isso, China, Índia e Brasil emergem da crise como países com futuro mais promissor. Quais são as perspectivas de crescimento econômico para 2010? Vamos crescer mais de 5%, gerar mais de dois milhões de empregos, consolidar investimentos, inaugurar empreendimentos estratégicos, as contas públicas são extremamente favoráveis e com indicadores sociais que representam a maior distribuição de renda de toda a história do IBGE. Se mantivermos essa estratégia, em seis anos nós acabamos com a pobreza e a miséria absoluta no Brasil, como demonstra o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Acho que o pré-sal é um fator decisivo de mudança para o Brasil.
Aloizio Mercadante
O senhor considera que o fator decisivo para a melhoria da condição de vida da população
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foi o aumento do salário mínimo ou a concessão da Bolsa Família? O salário mínimo e a bolsa família são instrumentos complementares. A Bolsa Família e algumas outras políticas sociais como o estatuto da terceira idade, Lei Orgânica da Assistência Social permitiram que nós aumentássemos em R$ 20 bilhões a transferência de renda para a população mais pobre. O Bolsa Família atinge uma parcela da população ainda mais carente do que aquela de 24 milhões que recebem um salário mínimo. O salário mínimo injeta em torno de R$ 27 bilhões na economia. Então é um instrumento muito forte junto com o bolsa família, além do crédito consignado, que é a primeira vez que a população tem acesso ao crédito popular, e o Pronaf na agricultura, mais do que triplicamos a verba. É um conjunto de medidas que criou o mercado de consumo de massa. Qual o cenário que o senhor vislumbra para 2010 em termos de emprego? O nível de desemprego já está em patamar semelhante ao da pré-crise. Nós geramos em torno de um milhão de empregos com carteira assinada em 2009. Acho que vamos dobrar esse número em 2010, pelo menos mais dois milhões de empregos com carteira assinada, isso se não tiver nenhum fato novo, relevante. Me parece que o cenário nacional começa a melhorar, então as perspectivas são muito promissoras. Que setores vão crescer mais com o surgimento desses dois milhões de empregos com carteira assinada? Os setores que estão puxando a geração de emprego são as obras do PAC, política habitacional, saneamento, principalmente ligados ao Minha Casa, Minha Vida, e setores da indústria e serviços mais voltados para o consumo de massa. Mais alimento, mais vestuário? Alimentos, vestuário, bebidas, serviços. É esse mercado que se expandiu no governo Lula a um ritmo chinês. Todos os setores obtiveram ganhos de renda no Brasil, o PIB per capita cresceu, a economia cresceu em torno de 4,7% ao ano. O que demonstra que houve uma redistribuição de renda. O consumo popular é que está liderando, o crescimento econômico se dá nos setores populares, de baixa renda. É aí que está o novo mercado emergente. O que o trabalhador pode esperar de 2010 em termos econômicos? Estabilidade econômica, inflação sob controle, melhora na massa salarial, portanto, participação nos resultados da empresa, aumento de salários. Um mercado aquecido ajuda na negociação sindical e na melhora da renda e acesso ao crédito, inclusive de longo prazo, imobiliário. Vamos continuar com a trajetória de bem-estar e o melhor retrato disso é o governo ter mais de 60% de apoio popular e o presidente mais de 80%. Lúcia Rodrigues é jornalista. fevereiro 2010
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Marcelo Salles
Obras do PAC nas favelas do Rio geram esperança, medo e críticas
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squina da Estrada do Itararé com a Avenida Central, Zona Norte do Rio de Janeiro. Estamos na subida do Morro do Alemão e faz um calor insuportável no antepenúltimo dia de 2009. Ainda nem começamos a subir a Serra da Misericórdia e a camisa já está ensopada de suor. A paisagem não mudou nos últimos anos e o principal cartão de visitas da favela vem na forma de um profundo contraste visual: do lado esquerdo, lixo de todo tipo, empilhado, jogado de qualquer jeito no chão, à espera que um dia alguém venha, finalmente, recolhê-lo; do lado oposto, uma preciosidade: artistas locais cobriram um muro – mais ou menos três metros de altura
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por quatro de comprimento – com uma inteligente charge que critica a manipulação da mídia. Eu e Eduardo Sá viemos aqui para visitar as obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e saber o que os moradores estão achando. Além do Complexo do Alemão, a reportagem foi até a Rocinha e Manguinhos, favelas que reúnem, juntas, cerca de 500 mil pessoas e estão sendo alvo de investimentos gigantescos, na ordem de R$ 1 bilhão, a maior parte injetada pelo governo federal. É a maior intervenção da história feita pelo Estado na infraestrutura dos espaços populares do Rio. Ouvimos, no total 300 moradores, cem em cada favela. Procuramos equilibrar as entrevistas
entre jovens, adultos e idosos, assim como variando o sexo. Também tivemos o cuidado de ouvir as pessoas em diferentes pontos das comunidades, de modo a garantir maior diversidade de opiniões. O resultado foi o seguinte: o PAC tem uma aprovação média de 81% dos moradores dessas três favelas. No Alemão, 81 pessoas manifestaram-se a favor da realização das obra e 19 foram contra. Na Rocinha, 85 x 15; em Manguinhos, 77 x 23. A boa receptividade às obras do PAC pode ser melhor entendida à medida em que se caminha pelas favelas. No Complexo do Alemão, por exemplo, não há hospitais, creches, bibliotecas, livrarias, teatros ou cinemas. Apenas três escolas
foto Maycom Brum/Grupo Sócio Cultural Raízes Em Movimento
Grande intervenção do Estado na infraestrutura dos espaços populares do Rio de Janeiro, as obras do Plano de Aceleração do Crescimento nas favelas seguem com apoio e desconfiança dos moradores das comunidades.
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atendem os 200 mil moradores, que se dividem em doze favelas; o saneamento básico é escasso e em vários trechos o esgoto corre a céu aberto. Num dos pontos que visitamos, o cheiro é indescritível. Ali, debaixo de uma grande pedra, a água corre imunda, repleta de sacos plásticos, pacotes de biscoito, restos de comida. Moradores reclamam que tanto lixo atrai, além de baratas, ratos e lacraias. Uma senhora tenta, em vão, desobstruir a passagem da água com uma vassoura velha, que se parte em duas. Vestindo uma saia rasgada, de cor escura, e uma camisa rosa e branca da Hello Kitty, suas costas estão sujas o suficiente para se confundirem com a cor dos degraus da escada que percorre a comunidade – aqui o limo e a lama já cobriram o cimento, revelando que o “córrego” já faz parte da paisagem há um bom tempo. Antes de sairmos ela reclama que o PAC não chegou ali. Por outro lado, apesar do largo apoio às obras, os moradores dos três conjuntos habitacionais (Alemão, Rocinha e Manguinhos) fizeram uma série de críticas à maneira como as intervenções estão sendo tocadas. As principais reclamações são com relação às constantes e prolongadas quedas de energia elétrica – há quem tenha ficado até cinco dias sem luz –, falta de água e os famigerados despejos. Esses, conduzidos pelo governo estadual, seguem a velha lógica da pressão psicológica. “Diarreia, alterações na pressão arterial, distúrbios psiquiátricos, descontrole emocional e até suicídio” são as consequências identificadas por Wagner Souza, agente de saúde que atua na região pelo Programa de Saúde da Família. Vários moradores comentaram o despreparo para lidar com as pessoas que precisam ser remanejadas de suas casas. Essa função está a cargo da Empresa de Obras Públicas do Rio de Janeiro (EMOP), cujo objetivo é abrir o caminho para os tratores do Consórcio Rio Melhor, compostos por Odebrecht, OAS e Delta. O presidente da EMOP, Ícaro Moreno Júnior, declarou: “Agimos de forma extremamente democrática, num trabalho de convencimento feito por equipes especializadas de Diagnóstico Social, para obter a compreensão da população atingida” (ver quadro). “O morador está sendo tratado como um estorvo”, disse D. Emília, uma pequena comerciante. Sua venda está há 19 anos na metade da Av. Central, no Morro do Alemão. Ela disse que o valor do ponto não está sendo considerado. Seu imóvel, de pé, contrasta com os restos das casas derrubadas para o alargamento da via. “Não estou com pressa”, diz ela, mal conseguindo disfarçar o incômodo com a pressão para que saia. Ela também opinou a respeito das intervenções, discordando da prioridade definida pelo governo. “Devia jogar o dinheiro do teleférico nos hospitais. Outro dia no Getúlio Vargas [hospital de referência mais próximo] não tinha nem seringa pra dar injeção”. A essa crítica se somam outras, como a de David da Silva, que também criticou a prioridade dada ao teleférico. David, que é um dos coordenadores do Instituto Raízes em Movimento, organização fundada e dirigida por pesquisadores que vivem no Alemão e que atua há dez anos na região, comentou que um belo dia acordou com uma retroesca-
vadeira na sua porta. Estava demolindo uma casa vizinha e levantou enorme quantidade de poeira, prejudicando a filha, que sofre de problemas respiratórios. “Tinham que ter avisado com antecedência”, ponderou. No Alemão, as obras do PAC preveem a construção de três centros culturais – um para artes cênicas, outro para artes visuais e o terceiro ligado à educação. Haverá um centro de referência para a juventude, uma escola de ensino médio, uma creche, um centro de saúde, um centro poliesportivo e as unidades habitacionais. A obra principal será o teleférico – já em estágio avançado –, que terá cinco estações e fará a ligação entre as diversas favelas que ocupam a Serra da Misericórdia. Uma agência de emprego já foi inaugurada e alguns prédios já foram entregues aos moradores.
Manguinhos No dia 21 de dezembro do ano passado foram inauguradas algumas obras do PAC em Manguinhos, com a presença do presidente Lula, de ministros, do governador e do prefeito do Rio de Janeiro. Das quinze favelas que compõem o complexo, onze serão beneficiadas pelas intervenções. A maior parte está concentrada na Av. Dom Hélder Câmara, no Depósito de Suprimentos do Exército, que estava desativado, e onde foi construído um conjunto habitacional com cinco blocos de quatro andares cada e apartamentos de dois quartos. Para os moradores, a prioridade é que os primeiros andares sejam destinados aos idosos e portadores de deficiências, em função da ausência de elevadores. Lá estão sendo realocadas pessoas das comunidades Embratel e Mandela de Pedra que tiveram suas casas derrubadas por estarem em área de risco ou no caminho da construção de novas vias de acesso. Ao entrarem nos apartamentos inaugurados, alguns moradores criticaram o tamanho das unidades. Ao contrário do que foi divulgado, 42m², alguns afirmam que os apartamentos têm algo em torno de 30m². Uma senhora se queixou: “Onde vamos estender as roupas?”. Teve morador que disse que com esse tamanho as pessoas não terão espaço para intimidade, e assim a população pobre não aumenta. A casa-modelo que foi apresentada no início do projeto, que ficava na entrada do conjunto, foi demolida. Por outro lado, para as pessoas que moravam em casas de palafita na beira dos rios, como acontece na Mandela de Pedra, trata-se de uma melhoria de vida considerável. Além das moradias, também já foram entregues uma unidade de saúde, uma escola estadual, um parque aquático, quadras poliesportivas, uma biblioteca pública multifuncional, um Centro de Geração de Renda, o Centro de Apoio Jurídico e o Centro de Referência da Juventude. As três creches em construção, uma delas pronta, mas não inaugurada, também se encontram espalhadas nos arredores do Complexo de Manguinhos. Segundo o professor de geografia dessa escola estadual, Gilson Alves, morador e integrante da Comissão de Moradores da comunidade Vila Turismo, o novo espaço já beneficia muitos jovens com seus três turnos para os ensinos fun-
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damental e médio. Mas Gilson tem várias críticas ao PAC, principalmente no que diz respeito à ineficiência na aplicação das verbas e na realização das obras em relação ao que foi proposto no início do projeto. Comerciantes de Manguinhos criticaram as obras do PAC, principalmente devido aos critérios de avaliação do governo – que não levam em conta o tempo do ponto no local. É o caso de Luiz Fernando, no Parque João Goulart, que está negociando para não perder sua venda por um valor que não compensa. O projeto inicial do PAC anuncia áreas para o comércio popular, mas até agora muitos comerciantes não têm nenhuma informação a respeito. Quanto à saúde, muitos moradores se queixam da falta de médicos na unidade de saúde recéminaugurada, que é uma das maiores no estado. A instalação, segundo informações da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil, está equipada com consultórios de pediatria, clínica médica e odontológica, farmácia, laboratório para a realização de exames e salas de raios-X, sutura, medicação e nebulização, além de 24 leitos. A reportagem testemunhou um pai saindo com o filho no colo sem atendimento, às 20h, por falta de pediatras. A obra principal será a elevação da via férrea que corta a comunidade ao meio: a mão dupla da Av. Leopoldo Bulhões será divida em duas pista, para a construção de um Parque Metropolitano com áreas de lazer por debaixo dos trilhos entre a Av. Leopoldo Bulhões e a Rua Uranos. Outros serviços, como asfaltamento das ruas e saneamento, também estão em andamento. A principal crítica dos moradores foi a instalação dos esgotos, que reaproveitou o sistema de água construído pelos moradores na formação da comunidade: vai tudo para o mesmo lugar, exceto os rios que também estão em obras. Quando chove, disseram, continua entupindo tudo. Moradores que trabalham em obras apontaram inadequações no projeto, como a utilização de canos pequenos, o que deverá apenas postergar os problemas. A falta de informação e diálogo foi constante nos relatos, pois muitos não sabem o que vai acontecer, apesar do Comitê de Acompanhamento das Obras criado pelo governo com algumas lideranças locais se reunir com freqüência; para alguns, é um instrumento de cooptação, chapa branca. Algumas comunidades estão articuladas, criaram Comissões de Moradores, além das associações, todas as terças se reúnem na Fundação Oswaldo Cruz, vizinha de Manguinhos, para debater o PAC. Para muitos, pior não poderia ficar, já que Manguinhos nunca foi alvo de políticas públicas. O principal elogio foi à geração de empregos – o PAC empregou cerca de duas mil pessoas nas obras, com remuneração entre um e três salários mínimos, incluindo muitas mulheres. A diminuição de operações policiais na região, por conta das obras, foi outra avaliação positiva recorrente. As pessoas que moram na beira dos rios Timbó e no Canal do Cunha, por exemplo, vão ter uma moradia decente em comparação com às que moravam. fevereiro 2010
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Rocinha A favela da Rocinha é considerada uma das maiores da América Latina, senão a maior. Ao contrário do Alemão e de Manguinhos, aqui, até agora, nenhuma obra do PAC foi entregue à comunidade. Fomos aos locais em construção e visitamos as localidades conhecidas como Via Ápia, Curva do S, Largo do Boiadeiro, Valão, Rua 1 e Rua 4. A intervenção mais expressiva será a Vila Olímpica, que não fica dentro da favela – uma passarela fará a ligação. No local haverá áreas esportivas com judô, futebol, natação, skate, bicicleta, etc., além de assessoria jurídica e comércio com lojas de materiais de surf. A primeira obra visível dentro da Rocinha é a unidade de saúde, que no início do projeto havia sido anunciada como hospital. Está localizada na Curva do S, numa garagem desativada, onde aconteciam os grandes eventos da comunidade. A expectativa é grande por parte dos moradores; outros ficam com o pé atrás, pois não sabem se ela conseguirá oferecer condições dignas de atendimento a longo prazo. Uma creche-modelo também está prevista para os arredores, além de um elevador em plano inclinado que vai ligar o pé ao topo do morro. Está prevista a construção de um centro de cultura e cidadania pouco acima da unidade de saúde. O projeto inclui uma biblioteca e outros serviços. Ali perto, quase em frente à “Soreg” – estacionamento de ônibus desativado – estão previstos nove blocos com 144 apartamentos, segundo um engenheiro das obras. Esse local é colado na “Rua 4”, via que será alargada para dar acesso aos automóveis até a parte inferior da Rocinha, no Largo do Boiadeiro. O objetivo é dinamizar o trânsito (além dos ônibus que circulam entre a Gávea e São Conrado, trafegam muitos mototáxis e automóveis de moradores na favela). No Portal Vermelho, está previsto o reflorestamento de uma região degradada.
Muitas famílias estão sendo realocadas da Rua 4 por conta das obras, outras por viverem em áreas consideradas de risco. Os relatos indicaram que, em geral, ninguém está sendo prejudicado no processo de indenizações. No entanto, houve quem criticasse os critérios utilizados para avaliação dos imóveis. Segundo o vendedor Ribeiro da Costa, os parâmetros são inadequados. Seu negócio está na “Rua 4”, ao lado das casas demolidas, área das remoções, mas ele está insatisfeito com a oferta. Uma equipe foi à sua casa, que fica em cima da sua venda de roupas e materiais de beleza, e desconsiderou no padrão de metragem alguns aspectos: nenhum engenheiro fez o estudo do local, não levaram em conta a dificuldade do acesso pelas vielas estreitas, o que aumentou o gasto da obra, que está em plano inclinado. Só o primeiro dos três andares é passível de compra assistida e o resto é indenizado por valores muito abaixo do que lhe parece justo. Para Ribeiro, essas negociações estão beneficiando as empreiteiras associadas à Empresa de Obras Públicas das Obras do Rio de Janeiro no projeto; no caso da Rocinha a Queiroz Galvão e a Carioca Engenharia. O lixo produzido pelas obras e não recolhido é a principal queixa dos moradores entrevistados, pois atraem ratos, lacraias e outros bichos. Assim como nas outras favelas, falta de luz e de água também foram reclamações constantes. E o principal elogio foi à geração de empregos. O alargamento das vias, que têm constante circulação de veículos, é outro benefício significativo apontado por quem vive aqui, inclusive por motivo de saúde pública com a ventilação das antigas vielas. Todos estão na expectativa de ver as obras prontas e os equipamentos em pleno funcionamento. Mas a grande maioria dos moradores da Rocinha, do Alemão e de Manguinhos avisa: só vendo pra crer.
“Em apenas 10 meses, conseguimos a relocação de quatro mil famílias” Declaração de Ícaro Moreno Júnior, presidente da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (EMOP): Sempre tivemos consciência de que, para atingirmos o objetivo do PAC nas favelas, que é promover a inclusão social de populações que vivem em situações de risco e/ou extrema pobreza, teríamos que enfrentar o grave problema das relocações, necessárias à execução do programa. Mas temos convicção, também, que superamos essas dificuldades, quebrando tabus com inteligência, provando que é possível a relocação de moradores acompanhada da redução de desigualdades. Para isso, agimos de forma extremamente democrática, num trabalho de convencimento feito por equipes especializadas de Diagnóstico Social, para obter a compreensão da população atingida.
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Esse trabalho foi desenvolvido em duas vertentes principais: primeiro, que era necessária a relocação, para benefício de toda a comunidade, com a construção de equipamentos sociais. Segundo que, para isso, o Estado oferecia três opções para nova moradia – a transferência para novas unidades, indenização ou compra assistida. Em apenas dez meses, conseguimos a relocação de quatro mil famílias, o equivalente a 24 mil pessoas, para que pudéssemos realizar as intervenções do PAC nas favelas da Rocinha, Manguinhos e Complexo do Alemão. É um universo extremamente grande, representativo de que houve lisura e acerto em nosso trabalho, como revelam as primeiras inaugurações do PAC, mostrando famílias inteiras felizes com as melhorias.
“A população fica ao Deus-dará” Entrevista com Alan Brum, 40 anos, cientista social, coordenador-geral do Instituto Raízes em Movimento e gerente técnico do trabalho social no PAC (de abril de 2008 até maio de 2009) do Complexo do Alemão, onde nasceu e foi criado.
Como você foi parar no trabalho social do PAC? O trabalho desenvolvido no PAC começa no dia 1º de abril de 2008. Alguns meses antes eu vinha tentando abrir alguns canais na Caixa Econômica e outros lugares para discutir o plano de trabalho social do PAC no Rio de Janeiro como um todo, então fui estabelecendo relações enquanto uma pessoa que atua no território há mais de 10 anos, através do Raízes em Movimento. Então quando eles foram contratar uma pessoa as características eram ter uma experiência técnica e ao mesmo tempo conhecer bem o território. Como era o seu dia a dia? O dia a dia do trabalho social consistia em estarmos atentos a duas vertentes: uma é a gestão de impacto, cuja proposta de trabalho é diminuir o máximo os impactos negativos, que toda obra tem, e potencializar os impactos positivos. E a outra vertente é a construção do projeto de desenvolvimento sustentável e participativo. Na gestão de impacto, a gente trabalhava nas aberturas das novas frentes de obras. No início houve uma negociação com o consórcio [Rio Melhor, composto pelas empreiteiras OAS, Delta e Odebrecht], que se comprometeu a nos avisar com o mínimo de três semanas de antecedência sobre a realização de novas obras. E dali a gente tomava as providências para diminuir impactos. E a segunda parte do trabalho social? A outra vertente do trabalho social é a construção do plano de desenvolvimento sustentável. Trabalhamos durante um ano e três meses com o foco principal de abrir o campo de participação e disputa da comunidade. O Censo ainda não fechou o número, mas essa região do Complexo do Alemão, 12 comunidades, é de mais de 100 mil habitantes. Como a gente poderia conseguir o envolvimento dessa população para discutir a qualidade de vida no Complexo do Alemão? Então a gente traçou um plano e uma estratégia para desenvolver esse plano. Num primeiro momento, começamos a identificar a diversidade de atores sociais, como de equipamentos públicos, educação, saúde, mapeamos as instituições sociais, ONGs, igrejas, associações de mulheres, tudo isso foi mapeado pelo trabalho social. Selecionamos, entre 100 jovens, 15 para serem capacitados como jovens comunicadores e pesquisadores. Se em determinado local a gente precisava, a gente buscava esses jovens que já tinham tido uma preparação para lidar com o público, para entender a lógica do PAC etc. Marcelo Salles é jornalista. Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo.
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Gershon Knispel
Celso Amorim e o Oriente Médio Minha resposta ao jornal “O Estado de S. Paulo” sobre se eu era contra ou a favor o diálogo do Brasil com o Hamas, a fim de o Itamaraty intermediar um processo de paz na região.
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xiste um consenso absoluto de que o que provocou a subida impressionante do Hamas foram os últimos governos de Israel, horrorizados com a aproximação da paz entre Israel e a Palestina, por causa dos Entendimentos de Oslo, vinte anos atrás, enquanto a OLP, encabeçada por Arafat, desde 1993, estava de acordo com reconhecer Israel em troca de se pôr fim à ocupação e de se instalar um Estado palestino segundo as fronteiras de 1967. Ao se concretizarem os Acordos de Camp David, o que significava o fim do sonho dourado do Grande Israel, entre o Mediterrâneo e a Jordânia, era necessário urgentemente fortalecer os movimentos palestinos da negação, isto é, que não se dispunham a reconhecer Israel, para legitimar a posição dos israelenses contra o acordo. Essa situação permitiria manter o status quo da continuação da ocupação, a expansão das colônias judaicas dentro dos territórios palestinos. A liquidação do primeiro-ministro de Israel, Itzhak Rabin, seguida do cerco ao quartel-general da Autoridade Nacional Palestino, com Arafat primeiro isolado lá dentro e depois também liquidado, deram os resultados desejados. Obama prometeu dar prioridade ao estabelecimento de um Estado palestino como única condição de se conseguir uma paz viável. Um ano depois de Obama na Casa Branca, Washington virou Obama de cabeça para baixo. Por outro lado, não bastasse o não cumprimento da promessa de Obama de trazer de volta seus fuzileiros navais do Iraque para casa em poucos meses, o presidente dos EUA abriu um terceiro fronte: além do Afeganistão, no Paquistão, 50 mil novos fuzileiros recém-recrutados foram enviados ao inferno do Oriente Médio, e os EUA já ameaçam afundar o Iêmen num mar de sangue. Nessas condições, Obama não pode resistir aos desígnios da “potência militar” israelense. Só assim se pode entender a sua rendição em relação à expansão das colônias judaicas, que cria fatos consumados na Palestina ocupada. A curto prazo parece uma vitória do governo de Bibi Netanyahu. Mas, e a longo prazo? Os demógrafos israelenses estão de acordo que a anexação da Cisjordânia por Israel, em quinze ou vinte anos, representará a perda da maioria judaica no Grande Israel. Será que a liderança vai escolher a escalada do apartheid, de não dar direito de voto à maioria árabe nesse Grande Israel?
Enquanto o muro enorme da separação que divide Israel dos vizinhos do Oriente Médio no lado oriental completa centenas de quilômetros, os egípcios começam a afundar um muro debaixo da terra, no lado sul, isolando a Faixa de Gaza, com o pretexto de pôr fim aos túneis palestinos, que são o único meio de combater o cerco que está liquidando 1,5 milhão de habitantes de Gaza. Aqui temos um exemplo muito claro sobre o isolamento total de Israel provocado por ele mesmo. Afinal, o muro separa e aprisiona quem? Quem nos garante quantos dias vão durar Mubarak no Egito e Abdullah na Jordânia? Parece que começa o apetite de expansão. Com essa questão demográfica, vai se entregar Israel. à maioria palestina sem o disparo de uma única bala, nas décadas que virão. Todos esses fatos não são suficientes para alterar as posições do governo mais extremista que Israel já teve em seus 60 anos. Como vai interferir nisso o chanceler Celso Amorim?
Carta aberta aos amigos que me perguntam se amigos brasileiros deles que estão criticando Israel são antissemitas
Lamento concordar com teus amigos que tiveram a coragem de expressar abertamente sua opinião em relação às últimas ações intoleráveis dos governos de Israel. Toda a comunidade internacional pensa o mesmo que teus amigos, mas não expressa publicamente. Dois meses depois da Guerra dos Seis Dias, que resultou na ocupação do território palestino, um abaixo-assinado de 12 intelectuais, incluindo minha assinatura, foi publicado em 18 de setembro de 1967, no mais importante diário do pais, o “Haaretz”: “O nosso direito de nos defender não nos dá o direito de oprimir outros; a ocupação obriga à revolta. A revolta leva ao esmagamento do povo revoltado, o esmagamento leva ao terror, que leva ao contraterror. As vítimas do terror são em geral pessoas inocentes. A manutenção dos territórios ocupados nos torna um povo de assassinos a serem assassinados, Vamos devolver o território ocupado imediatamente”. Na euforia que se espalhou como fogo num palheiro, o abaixo-assinado não teve repercussão,
mas hoje em dia centenas de cidadãos colocaram o texto em moldura, pendurado nas casas e nos escritórios como ícone. Restaram poucos da geração dos pioneiros. Estes se sentem traídos pelos governos israelenses, que são acusados com razão pelos 186 países membros da ONU pelos crimes de guerra nos territórios palestinos, os 1.500 mortos palestinos vítimas da última guerra em Gaza e sete soldados israelenses, quatro deles mortos por fogo amigo um ano atrás. Chamar esses críticos de antissemitas é uma ironia. Governos desse tipo de Israel provocam antissemitismo e obrigam os judeus de todo o mundo a defender esses crimes, justificando esta ocupação que já demora 42 anos. Os mais famosos intelectuais, artistas plásticos e poetas de Israel, como o maestro Daniel Barenboim, o cineasta Amos Gitai, os escritores Amos Oz, e David Grossman, estão apelando para que os judeus da Diáspora contribuam para pôr fim a essa ocupação vergonhosa, destruir esse muro enorme e terminar com o crescimento dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, que na realidade viram uma espécie de apartheid, política que levou a África do Sul à beira do colapso. Veja no noticiário a ordem de prisão contra a ex-chanceler Tzipi Livini, decisão do tribunal britânico contra os líderes de Israel, conforme o último relatório da ONU, que acusou o país de crime de guerra, relatório assinado pelo juiz judeu Goldenberg, da África do Sul, confirmado na Assembleia da ONU pelas 186 nações do mundo. Na mesma notícia foi mencionado que, temerosos do exemplo do Tribunal Londrino, personalidades, políticos e militares de Israel começam a limitar suas viagens internacionais, para não serem presos. Será que só Israel está acima da Lei? Estou lembrando nossas atividades contra o apartheid, quando perguntamos, para o visitante da África do Sul, se ele era a favor ou contra o apartheid. Imagine o que sentimos quando ele defendeu o apartheid. Imagine hoje se alguém perguntasse para nós se estamos a favor ou contra as últimas atitudes do governo de Israel e nos defendêssemos, como ele se sentiria? Muitos dos meus amigos, como o arquiteto Artur Goldireich de Joanesburgo, que fugiu para Israel em abril de 1964, acusado de ser colaborador do grupo de Mandel – e eu cheguei no mesmo dia fugindo da perseguição do Dops –, trocamos experiências sobre esses regimes criminosos. A tragédia é que este governo atual transformou o regime de Israel num apartheid ainda exige que todos os judeus da Diáspora o defendam, e com isso virem sócios desse crime. Como podemos defender uma coisa que está completamente contra nossa educação humanitária de ser israelita, como judeu de valores humanos nobres? Eu lamento, mas estou admirando os esforços de teus amigos para chegarem até a verdade. Gershon Knispel é artista plástico. fevereiro 2010
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José Eduardo Dutra (PT)
Ivan Valente (Psol)
Luiza Erundina (PSB)
Tatiana Merlino
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Disputa de projetos ou falsa polarização? Representantes de sete partidos do campo democrático-popular e da esquerda debatem rumos e perspectivas da disputa presidencial.
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m outubro acontecerão as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960 sem Lula como candidato. A ditadura impediu qualquer pleito direto até 1989. Lula concorreu em todas as eleições presidenciais desde então, perdendo três (1989, 1994 e 1998) e ganhando duas (2002 e 2006). Portanto, há muita expectativa quanto ao próximo pleito. Parte da esquerda acredita que estão em jogo dois projetos: o do PT e o do PSDB. Para outros, o que existe é uma falsa polarização, já que os dois principais partidos do país não representariam os verdadeiros interesses dos trabalhadores. Para tentar estimular esse debate, a Caros Amigos ouviu a opinião de sete representantes de partidos do campo da esquerda (quatro da base governista e três da oposição de esquerda) para saber quais são suas expectativas em relação à disputa. José Eduardo Dutra, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores; Ivan Valente, deputado federal pelo Psol; Luiza Erundina, deputada federal pelo PSB; José Maria de Almeida, pré-candidato à presidência pelo PSTU; Ivan Pinheiro, secretário-geral do PCB; Brizola Neto, deputado federal pelo PDT, e Renato Rabelo, presidente nacional do PC do B, discutem os rumos, perspectivas e projetos das esquerdas para o país.
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O que está em jogo nessas eleições? José Eduardo Dutra (PT) - O que está em jogo é o futuro do Brasil. O resultado das eleições determinará se o país vai aprofundar o projeto de mudanças iniciado em 2003 – que levou ao fortalecimento do Estado, ao crescimento com distribuição de renda, à redução das desigualdades, à geração de milhões empregos e a uma nova percepção do país no cenário internacional – ou se iremos retroceder à época em que quase toda ação governamental era orientada pelo interesse de uns poucos grupos privados.
Ivan Valente (Psol) - Não há, até o momento, uma disputa de projetos, mas sim diferenças tópicas no mesmo projeto político de continuidade, em essência, do modelo neoliberal. A política econômica não está posta em questão, os fundamentos ortodoxos de corte dos gastos públicos, aumento de juros e liberdade total de movimento de capitais farão parte tanto do programa da candidatura governista quanto da oposição de direita. O monumental impacto do pagamento de juros e amortizações da dívida pública para a área social não serão debatidos.
Luiza Erundina (PSB) - É uma eleição geral que vai definir os novos rumos do país e verificar quanto aquilo que foi construído e conquistado no curso desses dois últimos governos será preservado. Mas também há outras exigências a serem satisfeitas e atendidas do ponto de vista da política econômica e social. A política social avançou com o Bolsa Família, mas é preciso muito mais que isso. Além da política econômica, que a meu ver ainda se faz com bases no neoliberalismo econômico. No momento em que o país acumula conquistas importantes com uma liderança nas relações internacionais no continente, é preciso pensar no desenvolvimento interno do país, no crescimento mais autônomo, que não dependa tanto da dinâmica econômica mundial.
José Maria de Almeida (PSTU) - O que está em jogo é o controle da administração do Estado, localização que permitirá ao vencedor definir as políticas econômicas, ou seja, qual setor da sociedade será privilegiado com a distribuição dos recursos do país. É preciso registrar que as duas alternativas que se apresentam como favoritas na disputa eleitoral defendem o mesmo modelo econômico para o país. No governo FHC, privilegiou-se banqueiros e grandes empresários, e no governo Lula também. Para os trabalhadores, como sempre, ficaram as migalhas das políticas sociais compensatórias.
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Ivan Pinheiro (PCB) - Deveria estar em jogo um intenso debate sobre os grandes problemas nacionais, uma discussão ideológica, o confronto de projetos, a política externa brasileira, a integração da América Latina, a soberania nacional, a reestatização da Petrobras, a redução da jornada de trabalho, a reforma agrária e outros temas sobre o presente e o futuro do país. Infelizmente, as oligarquias e a mídia podem, com a força que têm, fazer desta eleição um par ou ímpar entre dois projetos de administração do capital, um capitaneado pelo PT e outro pelo PSDB. Há um risco de os candidatos desse campo, que disputam quem é mais eficiente para alavancar o capitalismo brasileiro, ficarem disputando qual mandato de oito anos (FHC ou Lula) apresentaram os melhores indicadores macroeconômicos.
Brizola Neto (PDT) - O que se joga nestas eleições é o direito que tem o Brasil – e o povo brasileiro – a ter um destino próprio. Vamos escolher se somos um país que, pelo seu tamanho, riqueza e capacidade, pode e deve participar da construção de uma nova ordem mundial ou se, simplesmente, seremos dóceis caudatários de uma inevitável transformação da velha ordem, que está visivelmente se desmanchando. O que está em jogo são inclusão e soberania, coisas que, em minha visão, não se separam. Não pode haver inclusão se não há mercado interno, salários ao menos decentes, boa educação, redução das desigualdades sociais e regionais, acesso pleno à informação e aos serviços públicos. Nada disso pode existir se não houver uma política de defesa do país, do aproveitamento interno de suas riquezas e dos frutos do seu trabalho, de um modelo de desenvolvimento que ao menos transite da natureza neocolonial que assumiu nas últimas décadas do século 20, para um projeto de autonomia, justiça e sustentabilidade.
Renato Rabelo (PC do B) - Para o PCdoB, estas eleições de 2010 têm uma importância estratégica especial. Até agora, o partido seguiu a diretriz de im-
Brizola Neto (PDT)
pulsionar o governo a efetivar a transição do domínio neoliberal para um projeto nacional progressista, defendendo-o, ao mesmo tempo, das investidas desestabilizadoras da oposição neoliberal e pró-imperialista. Dessa maneira, o PCdoB pôde guardarse de acompanhar o “cordão dos desiludidos”, que acabou sem alternativa política e tacitamente reforçando o campo oposicionista de direita. Hoje, quem não compreender que estamos diante de uma disjuntiva política central – prosseguir a “Era Lula” desenvolvendo-a, ou truncá-la com a volta da dupla demo-tucano de matriz neoliberal e alinhada ao imperialismo – ficará refém dos discursos contritos, de boas intenções, mas não contribuindo em nada para a efetiva transformação do país.
O que pode mudar no cenário político do país? José Eduardo Dutra (PT) - O cenário político nacional, hoje, está bem definido em torno de dois grandes grupos. Um, a coalizão de governo encabeçada pelo PT e coordenada pelo presidente Lula, numa aliança de centro-esquerda que envolve parceiros históricos (PCdoB, PSB, PDT) e partidos que se somaram ao projeto e garantem a necessária governabilidade, com destaque para o PMDB. Do outro lado, está a oposição representada por PSDB, DEM, PPS e seus aliados na grande imprensa. Não há indícios de que esse cenário sofrerá grandes alterações até outubro. O resultado das eleições pode mexer as peças pra lá ou pra cá, mas acredito que qualquer mudança de fundo só acontecerá se conseguirmos fazer a reforma política, instituindo o financiamento público de campanhas eleitorais e o voto em lista fechada para os parlamentos. Ivan Valente (Psol) - A persistir esse cenário, não haverá grandes mudanças. As eleições no Chile são um parâmetro interessante. O primeiro compromisso assumido pelo presidente eleito, que representa lá o espectro mais à direita da sociedade, foi se com-
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Renato Rabelo (PC do B)
prometer a dar continuidade à política econômica do governo de centro-esquerda de Michelle Bachelet.
Luiza Erundina (PSB) - Há temas estruturais estratégicos que precisam ser contemplados nos programas, e não basta ter nomes, sinalizar que fulano e beltrano são candidatos dessa ou daquela força política. É preciso que antes mesmo que se definam tais nomes, se apontem saídas e soluções e caminhos não só para atenuar esses problemas, mas para enfrentar o desenvolvimento e soberania do país. A democracia participativa tem que ser viabilizada através de uma reforma política que regulamente os dispositivos da Constituição de 1988. José Maria de Almeida (PSTU) - Depende da evolução da situação política neste próximo período, não apenas das eleições. Mudanças que possam implicar em melhoria significativa e sustentada para os trabalhadores dependerão fundamentalmente do crescimento da resistência e da mobilização das massas, seja para enfrentar os efeitos da crise econômica que segue em curso, seja para defender melhorias em suas condições de vida. O debate eleitoral para a esquerda socialista, portanto, para além da apresentação de candidaturas e programas, deverá estar centrado no esforço para fortalecer a luta direta e a organização dos trabalhadores. Ivan Pinheiro (PCB) - Se o debate for centrado na administração do capital, vai mudar muito pouco. Podem mudar os comandantes da máquina pública, do balcão de empregos e interesses. No mundo todo, a burguesia força a barra para estabelecer um bipartidarismo no campo da ordem, para afastar o risco de uma alternativa de esquerda. O que pode determinar mudanças no Brasil são fatores externos, como os desdobramentos da crise do capitalismo, a tendência do imperialismo a potencializar sua agressividade e outros fatores. As mudanças serão pequenas até porque Lula, na questão principal (a política econômica) manteve a orientação do governo FHC. fevereiro 2010
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fotos: Ivan Pinheiro: Arquivo PCB/Renato Rabelo: Maurício Moraes./Ivan Valente: Vera Jursys/Luiza Erundina: Arquivo Pessoal/José Eduardo Dutra: Paulino Menezes/PT-DN/ ZE MARIA: KIT GAION/brizola neto: flavio melgarejo
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O que pode provocar alguma mudança, na realidade, é o fato de Lula não ser o Presidente a partir de 2011. Ninguém, como ele, tem a capacidade de fazer a conciliação entre o capital e o trabalho.
lia o tempo todo, que não enfrenta o agronegócio, que faz genuflexão aos interesses dos ruralistas, como na questão do código florestal, que é um enorme retrocesso na questão ambiental no país.
Brizola Neto (PDT) - Acho que já mudou. O nos-
Luiza Erundina (PSB) - O crescimento econômi-
so quadro partidário está desfeito, para não dizer arruinado. As identidades de pensamento, em maior ou menor grau, espalham-se pelos partidos. O que está em jogo é se os frutos da riqueza vão ser apropriados pelo país, de forma social ou se serão apropriados pelas empresas, na forma de lucros.
co, a questão da segurança pública, a questão urbana precisam ser enfrentados. É preciso melhorar a qualidade de vida nas cidades. A questão dos direitos humanos, das comunicações. É preciso superar esse estágio de atraso, de monopólio, de oligopólio das comunicações do país. Precisamos enfrentar a questão da reforma política, e fazer uma reforma tributária que de fato corrija a injustiça fiscal do Brasil.
Renato Rabelo (PC do B) - Segundo um estudo divulgado pelo IPEA há alguns dias, o Brasil pode acabar com a pobreza extrema em um curto espaço de tempo desde que mantenhamos as políticas sociais e façamos correções no nosso regime tributário. Esse é um quadro inédito no país, e que foi construído ao longo dos últimos sete anos com as políticas do governo Lula. Hoje, o nosso povo tem perspectivas reais e concretas de melhoria de vida. Isso se reflete no cenário político. Se os tucanos voltarem ao poder, eles certamente irão tentar desmontar as políticas construídas neste governo, e também irão tentar atacar as conquistas sociais. Podemos ter um quadro de aguda crise entre o povo e o governo. Quais são as principais questões em debate? José Eduardo Dutra (PT) - De nossa parte, queremos debater soberania nacional, integração latinoamericana, fortalecimento do Estado, aprofundamento da democracia, políticas de recuperação de salário e renda, geração de empregos, combate às desigualdades socioeconômicas e garantia dos direitos fundamentais. Acredito que essas sejam as grandes questões pelas quais passam todas as outras.
Ivan Valente (PSol) - Corremos o risco de ficar na superficialidade da falsa polarização. O problema aqui é que a direita é tão truculenta, preconceituosa e protofascista – principalmente a que está à frente de alguns veículos da chamada grande imprensa e é aliada do tucanato, como a Veja, por exemplo –, que acaba por realçar os poucos elementos progressistas do governo Lula. É o caso da recém-polêmica do Plano Nacional de Direitos Humanos, quando o governo foi tensionado e optou pela linha de menor resistência, recuou e fez acordo com os setores mais conservadores de dentro do próprio governo. A lógica que predomina é a de acobertamento das diferenças, assim, quem dá linha do governo são os setores mais conservadores, a base aliada mais fisiológica (como no caso da crise do Sarney) e o grande capital, que tem seus interesses intocados. É o governo que conci-
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José Maria de Almeida (PSTU) - Por um lado, veremos cada um com a sua linguagem, tanto Dilma como Serra defenderem a continuidade do modelo que aí está, sem emprego, sem reforma agrária, baseado na eliminação de direitos trabalhistas e sociais, na entrega das riquezas e recursos naturais do nosso país, para privilegiar os interesses das multinacionais e dos bancos. De outro, estará a esquerda socialista, defendendo as mudanças que nosso país precisa para que o povo trabalhador possa ter uma vida digna. Um programa apoiado na defesa de emprego e salário digno para todos; da reforma agrária e urbana; de serviços públicos de qualidade, gratuitos e acessíveis a toda a população na área de educação, saúde, moradia, transporte e outras e; por outro lado, na defesa da estatização do sistema financeiro e de todas as grandes empresas, colocando-as sob controle dos trabalhadores; do fim do latifúndio e do agronegócio; da reestatização de todas as empresas privatizadas; da apropriação pelo Estado de toda a riqueza do Pré-Sal e outros recursos naturais que nosso país tem; o fim de toda forma de discriminação racial, sexista e homofóbica; o fim de toda forma de exploração do homem pelo homem, ou seja, uma sociedade socialista. Brizola Neto (PDT) - A questão central é: de quem é este país, para quem é este país, o que almejamos para este país? São essas as questões mais difíceis de serem claramente respondidas pelas nossas elites. O resto é tecnocracia ou marketing. Talvez até mais que na eleição de Lula, a primeira, em sua ascensão dependeu de uma certa “carta de intenções” que o tornasse palatável. Agora, não, acho que as mudanças de rumo tomaram esse debate. Há uma base real sobre a qual a discussão da distribuição de renda, mercado interno, intervenção do Estado na economia, estatais e, sobretudo, a autonomia política e econômica do Brasil pode ser percebida pelas pessoas. Renato Rabelo (PC do B) - A tendência mais provável é que o pleito de 2010 se desenrole numa polariza-
ção centrada na disputa entre os dois blocos políticos predominantes. A existência de mais de uma candidatura no campo lulista tenderá a ser efêmera sem o seu apoio. A candidatura de Marina Silva, pelo PV, terá mais influência em setores das camadas médias, podendo subtrair votos dos dois lados, sem, contudo, alcançar a dimensão de uma terceira via. O centro do debate deve ser o projeto para o país que cada candidatura representa. No campo da candidatura da ministra Dilma Rousseff, estão claros os compromissos com o crescimento do país, com o desenvolvimento e com o combate à pobreza e à desigualdade.
O que deve ser defendido pelas esquerdas? José Eduardo Dutra (PT) - Partidos e lideranças de esquerda têm, como compromisso histórico a defesa da justiça social, da democracia e da cidadania plena. São essas bases que orientam a ação do PT desde sua fundação e, acredito, das demais representações de esquerda no Brasil. Mas cada qual tem seu próprio programa, sua própria análise da conjuntura política e suas próprias estratégias. Evidentemente, não cabe a mim dizer o que elas devem ou não defender nesse momento histórico específico. O PT tem um programa de esquerda para o Brasil e está aberto a críticas e colaborações.
Ivan Valente (Psol) - A mudança no modelo econômico. O combate real à desigualdade social com o fortalecimento do Estado como provedor de serviços públicos básicos que sejam universalizados e de qualidade. A luta pelo aprofundamento da democracia e da participação popular como elemento central para promover a inclusão social. O combate à corrupção, sem cair no viés moralista, mas que de fato é um modo de operação intrínseco ao sistema capitalista e que compromete a administração pública e a disputa política democrática, a exemplo do financiamento privado das campanhas eleitorais. A luta ambiental, que coloca em questão o próprio padrão de desenvolvimento capitalista e as forças destruidoras do livre mercado. Enfim, o enfrentamento desse modelo concentrador de renda e riqueza apontando para uma perspectiva socialista.
Luiza Erundina (PSB) - A reforma agrária e urbana não foi resolvida, a reforma política também não. A reforma tributária também não, portanto, temos que enfrentar essas questões estruturais que estão intocadas mesmo nesses últimos governos. Com certeza, o campo democrático popular deve reafirmar esses princípios. Veja a celeuma que se levantou com esse plano de direitos humanos que não é outra coisa senão a sistematização das decisões das propostas que a sociedade brasileira vem construindo ao longo dos anos nas conferências nacionais, seja nos direitos hu-
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manos, educação, saúde. De repente há uma celeuma em torno de aspectos que são privilégios de uma minoria que continua os mantendo e os reproduzindo.
José Maria de Almeida (PSTU) - A esquerda socialista tem a obrigação de se apresentar para combater as alternativas que representam os interesses do capital nas eleições. Isso inclui tanto a candidata de Lula, Dilma Rousseff, como o candidato Serra, do PSDB/ DEM. Implica em lutar também contra candidaturas como a de Marina Silva, que se travestem de novas, mas que não são nada mais que parte do velho. A própria candidata Marina já tratou de esclarecer que o modelo econômico que ela defende é “o mesmo que vem sendo implantado no país desde 1995”. A esquerda precisa fazer da campanha eleitoral um meio para fortalecer as lutas e as organizações dos trabalhadores. Sabemos que não será via eleições e sim pela luta direta que criaremos as condições para realizar uma transformação socialista em nosso país. A melhor forma de dar conta dessa tarefa seria através de uma frente de esquerda, que reunisse os partidos da esquerda socialista brasileira que estão na oposição de esquerda ao governo Lula.
Ivan Pinheiro (PCB) - Primeiro, temos que precisar o que significa esquerda hoje, nesta diluição ideológica e nesta manipulação de conceitos. Os sociais-democratas e sociais-liberais que apoiam incondicional e sistematicamente o governo Lula se consideram “de esquerda”. Vou falar, portanto, do que considero como esquerda, um campo político que, à falta de definição melhor, posso chamar de esquerda revolucionária ou esquerda socialista, aquela que não quer reformar o capitalismo, mas superá-lo. Portanto, penso que a verdadeira esquerda no Brasil deve envidar esforços no sentido de criar uma frente, de caráter anticapitalista e anti-imperialista, permanente, para além das eleições, voltada para a luta de massas. Essa frente deve incorporar, além dos partidos políticos registrados no TSE, todas as organizações políticas, político-sociais e movimentos populares que se coloquem no campo da superação do capitalismo, na perspectiva do socialismo.
Brizola Neto (PDT) - Está claro que é essa visão de país. Veja o caso da educação, por exemplo: se você tem uma visão de desenvolvimento nacional soberano e ama as pessoas, não pode deixar de encarar como um desafio natural escolarizar, com qualidade e atenção total, todas as crianças e jovens brasileiros. É uma conclusão quase automática, flui naturalmente dessa ideia de amor, respeito e atenção ao povo brasileiro. O nosso desafio será dar a base política para se fazer muito do que Lula fez e muito do que não pôde fazer. E sei que o próprio presidente pensa assim, senão não teria escolhido a candidata que escolheu, com a história que Dilma traz. Para não ir além, tinha outras pessoas para optar.
Renato Rabelo (PC do B) - A esquerda deve defender o avanço do crescimento e do desenvolvimento. Essa posição balizou este governo e nos permitiu ser um dos últimos países a entrar na grave crise mundial e um dos primeiros a sair dela. Nós defendemos que as conquistas devem ser defendidas e apoiadas, mas devemos ir além. É necessário que o Brasil discuta a carga tributária que onera a produção e penaliza os mais pobres. É necessário também que discutamos o aprofundamento da nossa democracia enfrentado temas como a democratização das comunicações, a necessidade de uma reforma educacional, o avanço da reforma agrária, e também a importância de realizarmos uma reforma urbana.
Como os movimentos sociais podem interferir? José Eduardo Dutra (PT) - Mobilizando suas bases, formulando propostas e pressionando os governos. O movimento social é um dos pilares da democracia. No Brasil, movimentos como a CUT, o MST e a UNE – só para citar alguns – têm sido determinantes na construção de políticas públicas voltadas para a maioria da população e para grupos historicamente marginalizados.
Ivan Pinheiro (PCB) - Os movimentos sociais têm um papel fundamental a desempenhar no processo de mudanças sociais, desde que não se limitem à esfera de sua atuação específica, à parcialidade da luta. O MST é um excelente exemplo de um movimento social, a meu ver o mais importante do Brasil, que soube compreender isso. Hoje, o MST não é apenas um movimento social, mas incide na questão política, como a luta em defesa da Petrobras e até na solidariedade internacional. Por isso, temos defendido que os movimentos populares participem da frente anticapitalista e anti-imperialista, no mesmo espaço com organizações políticas.
Brizola Neto (PDT) - A pior coisa que pode aconIvan Valente (Psol) - Uma parte considerável dos movimentos sociais foi cooptada pelo poder do bloco governista. Houve um rebaixamento programático do conjunto de suas reivindicações e projetos. Outra parte sofreu um duro combate da grande mídia, do Poder Judiciário e da repressão estatal. O ideal seria a retomada de uma postura mais combativa e autônoma em relação ao governo federal, que recolocasse a pauta dos movimentos que ficou congelada nos oitos anos de governo Lula. Há espaço político para a retomada de um movimento mais combativo, a própria articulação de vários setores pela construção de uma nova central, a resistência do MST e de movimentos de luta contra a opressão de gênero e raça, a luta ambiental.
tecer em um governo de esquerda é que eles se acomodem, assumam a condição de chapa-branca e se desqualifiquem como representações múltiplas da sociedade. Não se tornarem simples correias de transmissão do governo e ter a coragem e o equilíbrio de dizer e enfrentar aquilo que está errado, sem a cegueira de uma oposição que esquece os avanços e as dificuldades encontradas. Porque quanto mais fortes e lúcidos estiverem esses movimentos, mais podem dar ao governo as condições políticas para avançar e mais podem, na contramão, proteger o governo contra as ofensivas da direita.
Renato Rabelo (PC do B) - É fundamental para o
Luiza Erundina (PSB) - Lamentavelmente, a partir de um certo momento, até pela conquista do governo federal e de alguns estaduais e municipais, houve um certo recuo dos movimentos. Imaginou-se o seguinte: “o governo federal é nosso”, mas isso é insuficiente. É preciso haver soberania popular, democracia direta e organização autônoma independente de quem esteja no governo. Precisa-se ter um plano estratégico de desenvolvimento nacional, que tem que estar no centro do debate. A sociedade civil poderia dar uma contribuição importante nisso, como está dando em certas áreas. O MST com a luta pela reforma agrária, é exemplo disso.
êxito do empreendimento liderado por Lula o protagonismo crescente dos movimentos sociais. Esses, por sua vez, também têm total interesse na vitória desse bloco político. Nesse sentido, merece nossa atenção o redobrado apoio às articulações unitárias das centrais sindicais dos trabalhadores em torno de suas bandeiras mais candentes, como a diminuição da jornada de trabalho sem redução de salário, a formalização plena do mercado de trabalho e a proposta da CTB de convocação de uma conferência nacional da classe trabalhadora (CONCLAT). Alavancar os movimentos sociais na sua pluralidade e variedade de setores e funções é o meio para que possam exercer o papel de força motriz das mudanças de fundo do país.
José Maria de Almeida (PSTU) - Os movimentos sociais, apesar de serem instituições diferentes dos
Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br
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partidos políticos, e de terem tarefas diferentes junto aos trabalhadores, também têm responsabilidade e tarefas mediante os processos eleitorais. É da natureza da sociedade capitalista essa concentração da riqueza que condena a maioria da população, aqueles que trabalham, a viver em situação cada vez mais precária. Por isso, os movimentos sociais, na medida em que lutam pelo atendimento das demandas dos trabalhadores que representam, precisam também lutar contra o capitalismo e colocar nas suas lutas a construção de uma sociedade socialista.
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Igor Ojeda Boliviana carrega a whipala, bandeira multicolorida sagrada para os indígenas do ocidente do país.
Descolonizar o Estado,
a mente, os valores...
O presidente da Bolívia, Evo Morales, inicia o segundo mandato com hegemonia consolidada e com os desafios de criar um novo Estado e industrializar seu país.
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ções do Estado e atacava instalações de fornecimento de gás para o Brasil, deixando a Bolívia à beira de uma guerra civil. Mas, habilmente, o governo apostou no desgaste natural das ações, evitou o enfrentamento, segurou como pôde a reação dos movimentos sociais que o apoiavam e saiu do episódio fortalecido, “ajudado” pelo massacre do departamento (o equivalente ao nosso estado) de Pando, que o obrigou a decretar estado de sítio na região e prender o governador, Leopoldo Fernández, considerado o responsável pelo assassinato de 16 camponeses pró- Evo no dia 11 de setembro.
Hegemonia consolidada Agora, o presidente reeleito prepara-se para um novo mandato, desta vez sob os marcos da nova Constituição do país, elaborada entre 2006 e 2007 e aprovada em referendo em janeiro de 2009. E mais: com os dois terços das cadeiras no Congresso (agora, chamado de Assembleia Plurinacional) necessários para aprovar leis fundamentais e reformas constitucionais. “A nova gestão do presidente Evo Morales se inicia com uma importante vantagem qualitativa em relação à primeira. Não somente porque a experiência de quatro anos de governo na administração estatal lhe permite conhecer os ‘segredos interiores’ da gestão pública, mas também porque, agora, a oposição e a conspiração foram praticamente arrasadas e desbaratadas, e as forças populares consolidaram o controle territorial em todas as regiões do país”, avalia o sociólogo Eduardo Paz Rada, professor na Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz, para
quem as eleições de dezembro são uma mostra clara da consolidação da hegemonia dos movimentos populares liderados por Evo. A também socióloga Ximena Soruco Sologuren concorda. Para ela, embora a transformação da estrutura agrária do oriente do país – baseada em grandes propriedades monocultoras, diferentemente do que acontece no ocidente – levará ainda um bom tempo, “o latifúndio se tornou impotente: não é mais o cenário de controle político dessa região nem como autonomia de poucos nem como separatismo”. Mas o “caminho livre” pavimentado pela habilidade política de Evo e do MAS não vem sem obstáculos dantescos a serem transpostos. Depois de quatro anos de importantes avanços, como o aumento da participação estatal na renda proveniente da exploração do gás e na condução da economia nacional, a elaboração da nova Carta Magna, a execução de inúmeros programas sociais e a eliminação do analfabetismo, entre outros, resta ao líder aimara cumprir suas promessas de campanha para o segundo mandato, ou seja, dar um novo e mais decisivo impulso àqueles temas que ainda não foram satisfatoriamente contemplados, como o próprio mandatário reconhece. Entre eles, a chamada “descolonização” do Estado boliviano e a industrialização do país.
Estado plurinacional Em 22 de janeiro, durante a cerimônia de sua nova posse, Evo afirmou que naquele momento nascia o Estado plurinacional, “autonômico e solidário”, para ocupar o lugar do Estado colonial, “que nos deixou em penúltimo lugar [em termos de desenvolvimento] da América Latina”. Tarefa que a princípio parece impossível dian-
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o Chile, Sebastián Piñera, um magnata comparável a Silvio Berlusconi (guardadas, claro, as devidas proporções), acaba de devolver a presidência do país à direita, depois de 20 anos seguidos de centro-esquerda no comando. Na Argentina, recentemente, os Kirchner perderam a maioria parlamentar e correm sérios riscos de saírem derrotados das eleições presidenciais de 2011. Fernando Lugo, do Paraguai, sofre constantes ameaças de impeachment por parte de opositores. No Brasil, a vitória de Dilma Rousseff está muito longe de estar garantida. Até na Venezuela, de Hugo Chávez, a situação não é das melhores: a expectativa para o pleito legislativo deste ano não vem sendo muito otimista. Por isso, pode-se afirmar, sem medo de errar, que, hoje, de todos os governos considerados de esquerda ou de linha progressista na América do Sul, o de Evo Morales é o que se encontra na situação interna mais confortável. O que parecia extremamente improvável há até não muito tempo se materializou com contundência em dezembro do ano passado. Evo ganhava as eleições presidenciais da Bolívia com 64,22% dos votos, seu partido/sindicato/movimento (MASIPSP) conquistava mais de dois terços das cadeiras do Parlamento e a direita continuava seu caminho rumo à quase total incapacidade de realizar qualquer ação política efetiva na conjuntura nacional. Uma realidade surpreendente se levarmos em conta que, 15 meses antes, em setembro de 2008, um verdadeiro levante da oposição empresarial e latifundiária – auxiliada pelo então embaixador estadunidense, Philip Goldberg, depois expulso por Evo – bloqueava rodovias, tomava instituicaros amigos fevereiro 2010
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te dos mais de 500 anos de imposição e naturalização forçada dos símbolos, valores, costumes e práticas institucionais do Ocidente. Mas, na própria cerimônia de posse, a nova realidade já se mostrou, pelo menos, simbolicamente. Elementos da república “liberal-burguesa”, como a Bíblia e o crucifixo, desapareceram. Na faixa presidencial, além do tradicional brasão nacional, foi bordada uma whipala, bandeira multicolor considerada sagrada para os indígenas andinos da Bolívia e incorporada como símbolo nacional na nova Constituição do país. Na opinião de Paz Rada, a descolonização do Estado teve início, na realidade, desde o primeiro mandato, em 2006, “com a forte presença dos setores antes discriminados e excluídos das decisões nas esferas do governo local, regional e nacional. A recuperação da autoestima de camponeses, mulheres populares, moradores da periferia, indígenas e marginalizados é evidente na vida cotidiana. Uma prova disso é a adesão eleitoral de mais de 90% nos distritos mais pobres. Outra, a presença permanente nos atos oficiais da Presidência da República e da Assembleia Legislativa de rituais, símbolos, retratos de líderes indígenas e orações ancestrais andinos”. Mas, no plano institucional, os avanços ainda são bastante incipientes. A nova Constituição, por exemplo, considerada o documento-base para descolonizar o Estado, só foi aprovada em referendo há um ano, justamente por causa das ferrenhas disputas políticas entre governo e oposição desde 2006. Além disso, muitas das estruturas legais e regulamentárias que o neoliberalismo deixou como herança continuam vigentes, como a exigência burocrática de garantias que pequenos produtores não podem cumprir para aceder a linhas de créditos.
Nova institucionalidade Por isso, na avaliação de Ximena, “é preciso construir esse esqueleto institucional complexo do Estado plurinacional. A Constituição reconhece que a soberania do povo se exerce de maneira direta e delegada [ao Estado plurinacional]. Direta na medida em que os povos, nações e regiões se autodeterminam no território que habitam, com suas próprias instituições políticas, sistemas jurídicos, e aproveitamento de recursos naturais renováveis, ou seja, na medida em que vivem seu próprio tempo e espaço, desenvolvem sua cultura: isso é a autonomia indígena, regional e departamental”. Para tanto, o governo do MAS determinou como prioritária para o segundo mandato a elaboração de leis e normas que estabeleçam tais autonomias, além das funções e a estrutura do novo Estado, processo que, na opinião de Paz Rada, deve ser realizado sob a fiscalização dos principais movimentos sociais do país. O sociólogo da UMSA lembra que uma das prioridades do governo Evo, por exemplo, é garantir a obrigatoriedade do uso dos idiomas indígenas na administração pública. No entanto, pondera Rada, “a força de uma cultura institucional tradicional e valores for-
temente impregnados na sociedade são travas que o processo de mudanças de mentalidade e valores na Bolívia deverá enfrentar”. Ele lista como obstáculos a enorme influência dos meios de comunicação, principalmente a televisão, sobre os bolivianos, e o forte consumismo como valor difundido por esses meios. Por isso mesmo, para ele, a realização de uma reforma educativa é central no processo de descolonização, “incluindo um novo plano de estudos desde a escola, com a inclusão das visões, conhecimentos e saberes próprios dos povos indígenas”. Um primeiro passo nesse sentido já está sendo dado, com a criação, em agosto de 2008, de três universidades indígenas (quéchua, aimara e guarani, os três maiores grupos étnicos da Bolívia), mas que, justamente por seu pouco tempo de vida, ainda não deram resultados.
Desenvolvimentismo A outra prioridade central para o segundo mandato de Evo Morales é o desenvolvimento e a diversificação da estrutura produtiva do país, ainda extremamente dependente da exportação de produtos primários. No discurso de posse, o presidente reeleito reconheceu que uma das debilidades de seu governo foi não ter conseguido levar adiante a industrialização do setor produtivo, sobretudo dos hidrocarbonetos. “O principal desafio é dar continuidade à estabilidade financeira e ao crescimento econômico dos últimos anos, junto a uma redistribuição da riqueza que se baseie no investimento produtivo dos excedentes procedentes da exportação de matérias-primas. Isso está relacionado com a necessidade de impulsionar a industrialização dessas matérias-primas para mudar o modelo de crescimento”, analisa Eduardo Paz Rada. Tal intenção ficou clara já antes das eleições de dezembro passado, quando o MAS apresentou seu programa de governo. O documento dava ênfase à proposta de um modelo de produção desenvolvimentista, com substituição das importações por meio da industrialização interna. “O potencial dos recursos naturais, como as reservas de lítio, prata, estanho, cobre e gás, poderia ser a base dessa tentativa”, destaca o sociólogo da UMSA. Segundo Rada, o programa da nova gestão do presidente Evo Morales estabelece o papel fundamental do Estado como guia e condutor do processo econômico, deixando um papel complementar à economia comunitária, cooperativa e privada. “Os traços de um nacionalismo com longa história na Bolívia parecem renascer com força sob a hegemonia dos setores indígenas e camponeses”, diz, ressalvando, no entanto, que a incapacidade administrativa do Estado boliviano herdada de duas décadas de neoliberalismo – traduzida, por exemplo, nos casos de corrupção e ineficiência técnica na YPFB, a estatal de petróleo e gás – pode configurar um importante obstáculo para uma efetiva industrialização do país.
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Boliviano mostra a nova Constituição boliviana, a base para se refundar o Estado.
Viver bem Já Ximena pondera sobre o objetivo a ser alcançado pelo MAS com a industrialização. “Se o governo lê o processo político boliviano, a descolonização, como uma transição à modernidade, ao capitalismo, ao desenvolvimento, à uniglobalização (porque existem muitas maneiras de ser global), nada mudou. Estaríamos pondo novos nomes em velhas e fracassadas histórias, com toda a frustração que isso poderia implicar”, alerta. De acordo com ela, sua visão não é uma defesa da não industrialização e da não geração de melhores condições materiais de vida para a população, mas um debate necessário sobre o modo mais adequado de fazê-lo. “Os tempos de reprodução do ser humano e da natureza não coincidem com o tempo do capital, por isso a defasagem e consequente destruição. É necessário subordinar (e não anular) o tempo da eficiência capitalista – industrialização, extração de matérias-primas, exportação, desenvolvimento de tecnologias – ao tempo da vida, da renovação da natureza e das culturas. Esse é o Viver Bem”, conclui, fazendo referência à filosofia de vida dos povos indígenas da América Latina, cujos princípios fundamentais são o cuidado e o respeito à Mãe Terra, a democracia comunitária e a plena vigência de seus usos e costumes. Tarefa para um Estado descolonizado. Igor Ojeda é editor do jornal Brasil de Fato, foi correspondente na Bolívia entre outubro de 2007 e outubro de 2008. fevereiro 2010
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Gabriela Moncau
Artistas se mobilizam
para defender lei do fomento cultural
Interesses políticos e econômicos da Prefeitura de São Paulo tentam restringir os projetos de teatro oferecidos para a população.
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Kassab está tentando, inconstitucionalmente. As consequências são catastróficas”, indigna-se Iná Camargo Costa, professora aposentada e pesquisadora da FFLCH/USP e autora, entre outros, do livro A Hora do Teatro Épico no Brasil. Além da obrigação dos grupos de se transformarem em PJ, produzindo uma desorganização monstruosa, o legítimo representante político deles junto ao poder público, a Cooperativa, perderia a legitimidade. E mais, o edital que estava para ser publicado dava à comissão julgadora a autonomia para decidir o valor que cada projeto receberia, sendo estabelecido pela lei o limite de 50% de corte do orçamento requisitado no projeto, como forma de evitar o desvirtuamento das propostas artísticas em questão. Há interesses políticos e econômicos claros na medida do Prefeito e na política cultural inteira tocada tanto pelo governo do município quanto pelo Estado de São Paulo. Por que estabelecer que as prestações de serviços culturais sejam feitas apenas por PJ? Consiste em o Estado estabelecer uma “flexibilidade”, não ter compromisso propriamente dito com a produção cultural e transferi-lo à iniciativa privada: o dinheiro, a decisão, os critérios. Um bom exemplo disso é a Sala São Paulo, remodelada em 1999, durante o governo estadual de Mário Covas (PSDB). Administrada por OSCIP, a sala de concerto é sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). “A Sala São Paulo mantém com dinheiro público uma orquestra que contrata um maestro francês por R$100 mil por mês. Que esquizofrenia é essa? Por que não tem gritaria nem nada? Porque é uma OSCIP que administra. Se fosse uma divisão do Estado, não teria essa flexibilidade”, argumenta Iná. “Essa é a cultura que interessa aos neoliberais do PSDB e do DEM. Afinal, ONG é uma inven-
ção do Banco Mundial. ONG e OSCIP são a mesma coisa, a diferença é que ONG é Organização Não Governamental que presta serviço pro Estado e a OSCIP é melhor ainda, porque é uma Organização Não Governamental governamental” ironiza a professora. Diante do embate jurídico, a classe artística paulistana vem se organizando em assembleias permanentes, cartas abertas e mobilizações, tanto para garantir que a Lei do Fomento mantenha o seu molde original, como para ampliar publicamente o debate sobre as políticas públicas para a cultura. “Trata-se de um momento propício para denunciar esse processo de privatização que avança a passos largos, e que se esconde atrás de um discurso de transparência e eficiência, mas que representa de fato o sucateamento dos serviços oferecidos à população e uma interferência nociva no modo histórico da classe de trabalhadores de cultura se organizar”, declara o documento elaborado em assembléia realizada no mês de janeiro. Foi por meio da organização e mobilização da categoria dos artistas de São Paulo, emplacando a bandeira de reais políticas públicas à cultura e contra a mercantilização da arte, que se obteve em 2002 a conquista do então Movimento Arte contra a Barbárie com a implementação da Lei do Fomento ao Teatro.
Fomento X Rouanet A partir dos anos 1990, os governos estadual e municipal de São Paulo, controlados pelo PSDB, entraram de cabeça no programa do capital financeiro para a atividade cultural. Fizeram o vínculo entre investimento e equipamentos culturais com empréstimos do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre outros. Não por aca-
fotos Gabriela Moncau
o
mecanismo de maior incentivo à produção artística da cidade de São Paulo, a Lei de Fomento ao Teatro, sofre hoje grave ataque. Desde o início de sua existência, em 2002, até o 13º edital em 2008, o programa de incentivo beneficiou 192 projetos, aos quais foram destinados aproximadamente 48 milhões de reais, atraindo um público de 5 milhões de pessoas aos teatros paulistanos. No início de 2010, na publicação de seu 16º edital, porém, instituiu-se um impasse. Rapidamente a categoria dos trabalhadores da cultura começou a se mobilizar. Em maio do ano passado, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) baixou o decreto nº 49.539, referente a transferências de recursos do governo. De acordo com o decreto, os serviços prestados ao município teriam agora de ser feitos somente por pessoas jurídicas (PJ), ou seja, por empresas, Organizações Não Governamentais (ONGs) ou Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Por definição, o decreto atropela, entre outras, a Lei de Fomento ao Teatro, pois a legislação estabelece que núcleos artísticos fomentados sejam intermediados e recebam as verbas por meio da instituição que atualmente os representa: a Cooperativa Paulista de Teatro. O 16º edital da Lei de Fomento ao Teatro, enquadrado nos moldes do decreto de Kassab, teve promulgação vetada temporariamente pela classe artística, que entrou a partir daí em negociação com Carlos Augusto Calil, Secretário da Cultura de São Paulo. A proposição da Secretaria vai contra a lei original de 2002, que é por princípio auto-regulamentada e não permite uma intervenção do executivo. “Nós não estamos numa democracia burguesa? Pois bem, uma lei votada no legislativo não pode ser modificada por decreto. E é o que o caros amigos fevereiro 2010
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so, nessa década surgiram a Lei Rouanet e outras leis de renúncia fiscal para o patrocínio da cultura. Nada mais são do que a transferência ao próprio capital da prerrogativa de definir políticas para a arte e a cultura. As leis de renúncia fiscal fazem parte do processo de encobrir, por meio de discursos de eficiência administrativa e “Estado mínimo”, a transferência de responsabilidades do Estado de garantir direitos básicos assegurados na Constituição de 1988 – como saúde, educação, cultura – para a iniciativa privada, redirecionando verbas públicas para a livre exploração do capital financeiro. Para Marco Antônio Rodrigues, integrante do teatro de grupo Folias D’Arte, a lei de renúncia fiscal é um estelionato legalizado. “O Cirque du Soleil, por exemplo, ganhou R$9 milhões de patrocínio do Banco Bradesco da primeira vez que veio ao Brasil em 2006 e vendia ingresso a R$200,00. Ou seja, ele ganhou a mesma coisa duas vezes, em cima de dinheiro público. Ninguém foi em cana”, opina. A título de comparação, o programa de fomento em 2009 recebeu R$11 milhões para atender 30 companhias atuando sobre a cidade inteira. A exoneração de impostos de grandes empresas e marcas para o patrocínio da área cultural logicamente fará com que o destino da verba cumpra o papel de marketing e propaganda dessas empresas. O patrocínio de pomposos eventos de alta bilheteria como o Circo de Soleil jamais será substituído por financiamento a um projeto artístico que não tenha grande porte, muito menos que seja voltado a um público com menos renda e, portanto, não o alvo consumidor das grandes empresas. Diferentemente da lei de renúncia fiscal, que se direciona a um produto cultural terminado, a lei de fomento permite o financiamento de projetos mais longos, tanto de pesquisa quanto produção artística, além de ser uma transferência de verba direta do Estado ao grupo fomentado e ter a abertura de editais de modo democrático e de livre acesso. “O fomento é um programa de Estado que se prolonga no tempo. De 2002 pra cá possibilitou que vários núcleos de criação se estruturassem porque há um horizonte de trabalho continuado. Algo impensável na lei do mercado ou em leis como a Rouanet, porque existem algumas iniciativas que se renovam, mas essa iniciativa está focada dentro da linha de desenvolvimento de marketing, do posicionamento de uma empresa dentro do mercado”, explica Pedro Pires, integrante do grupo teatral Companhia do Feijão e integrante, com Marco, da atual articulação dos grupos diante do ataque à Lei de Fomento. “A cultura não é uma área de interesse dos que hoje controlam o Estado, do ponto de vista de uma política de conhecimento, reflexão e crítica. A concepção das políticas culturais do Estado é estrategicamente fascista porque visa deixar a massa na ignorância para que possa ser manipulada de lá pra cá”, completa Marco Antônio. “Qual a especificidade do fomento? É uma lei que inverte a política pública do país. Trata-se de uma lei que o Executivo não formula, mas executa. É preciso criar uma pavimentação para leis decentes de fomento às artes do país, pois não existe praticamente nada para isso hoje”, ressalta Marco.
Arte contra a Barbárie No intuito de criar um fórum de discussão das relações entre arte e entretenimento e disputar o pensamento sobre a cultura e a sua função social no Brasil, as primeiras reuniões do que passaria a ser o Movimento Arte contra a Barbárie foram realizadas no recém-remodelado Galpão do Folias, na Santa Cecília. “O movimento surgiu como uma tentativa de criar paradigmas alternativos diante da inundação avassaladora de lixo cultural patrocinado por renúncia fiscal. Esse é o espírito do primeiro manifesto, em 1999”, relata Iná. Com o objetivo de envolver a sociedade civil nos assuntos latentes para o movimento, de modo a não cair nos vícios de posicionamentos políticos imediatistas, o primeiro manifesto do Arte contra a Barbárie foi assinado pelos grupos Cia do Latão, Parlapatões, União e Olho Vivo, Folias, Tapa, entre outros. “Uma visão mercadológica transforma a obra de arte em ‘produto cultural’. E cria uma série de ilusões que mascaram a produção cultural no Brasil de hoje. A atual política oficial, que transfere a responsabilidade do fomento da produção cultural para a iniciativa privada, mascara a omissão que transforma os órgãos públicos em meros intermediários de negócios”, explicitava o documento. Alguns meses depois, no segundo manifesto, o movimento já ampliado exigia 1% dos orçamentos públicos, maior regulação dos benefícios fiscais e a recuperação de programas públicos de apoio às artes cênicas. Em junho de 2000, apresenta-se o terceiro manifesto, reafirmando o teatro como elemento insubstituível para um país registrar, difundir e refletir o imaginário de seu povo e a cultura como prioridade do Estado, por fundamentar o exercício crítico na construção de uma sociedade democrática. “Com debates tanto amplos, com convidados como Milton Santos, quanto mais restritos, é que se pinta a ideia de formulação de uma lei de fomento”, descreve Iná Camargo. Em seu livro escrito em conjunto com Dorberto Carvalho, A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura, Iná explica que a proposta da Lei de Fomento representava uma estratégia de luta com três objetivos: assegurar a sobrevivência física e organizada de grupos teatrais; quebrar a ditadura do pensamento neoliberal sobre o papel do Estado em relação à cultura e, consequentemente, propor alternativas às leis de incentivo fiscal; e, finalmente, instaurar e aprofundar o debate sobre a função social da arte. O Movimento Arte contra a Barbárie representou a primeira articulação das artes cênicas como um setor social. Em entrevista ao Estado de S. Paulo, o filósofo Paulo Arantes ressalta: “Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciência artística em protagonismo político. Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetáculos”.
A disputa atual Com o adiamento do edital de janeiro da Lei de Fomento ao Teatro, iniciaram-se as negociações entre os grupos teatrais e Carlos Augusto Calil (secretário da Cultura de São Paulo), mediadas pelos
vereadores petistas José Américo e Antônio Donato. “O Calil não toma uma posição política e, atrelado ao parecer da Secretaria de Negócios Jurídicos de São Paulo, concordou quando dissemos que traríamos um parecer de algum jurista que diga que o edital do fomento constitucionalmente não deve se adequar ao decreto do Kassab”, expõe Pedro Pires. O parecer jurídico, formulado pelo movimento da classe artística, em conjunto com os advogados da Cooperativa Paulista de Teatro, foi entregue em 18 de janeiro ao secretário municipal de Negócios Jurídicos de São Paulo, Cláudio Lembo (DEM). Enquanto Lembo se reunia com uma comissão formada pelo presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, Ney Piacentini, a vice-presidente Cenne Gots, os vereadores Donato e Américo, Pedro Pires, o cofundador do Teatro de Arena, Zé Renato, a jurista Marília Baracat, entre outros, cerca de 300 pessoas dos movimentos e grupos de teatro e dança realizavam um ato em frente à prefeitura. A comissão entregou, além do parecer, uma carta redigida pelo conjunto dos movimentos e entidades envolvidas na atual mobilização da classe artística (Movimentos de Teatro de Grupos de São Paulo, Movimento 27 de março, Roda do Fomento, Movimento de Teatro de Rua, Movimento Mobilização Dança, Cooperativa Paulista de Teatro). A primeira vitória foi conquistada. Na reunião com Cláudio Lembo, houve um recuo referente às áreas em que a aplicação do decreto do Kassab entrará em vigor. O secretário de Negócios Jurídicos concordou que o decreto não se implementaria à cultura e que a Cooperativa poderia continuar sendo a legítima representante dos grupos artísticos. A Lei do Fomento ao Teatro, porém, ainda está longe de voltar a ser executada do modo como foi concebida. O movimento agora luta para que o edital seja redigido nos moldes em que era até a 10ª edição, a partir do qual diversas burocracias foram incorporadas às exigências das prestações de contas. “A partir da 11ª edição, a Lei de Fomento começa a ser tratada como um patrocínio. Começaram a misturar esses terrenos e dificultar, por meio da burocratização de várias questões, que a lei por si só já resolveria por ser autorregulamentada, para dificultar a viabilização do fomento”, explica Pires. Os artistas continuam em assembleia permanente e voltarão a se reunir com Calil e Lembo para dar continuidade às negociações. “Queremos a ampliação de políticas que ao longo do tempo se provaram responsáveis, e não o seu desmanche, seu saqueio, sua privatização disfarçada, como toda a sociedade tem acompanhado nas áreas mais diversas das administrações públicas de todo o país”, exige a carta elaborada pelo movimento. Em uma reunião após o ato do dia 18, um dos artistas conclama: “Enquanto as questões referentes à Lei do Fomento interessarem só para os trabalhadores de teatro e cultura, continuaremos isolados. Temos que ampliar esse debate para a sociedade. Abrir as portas dos teatros, para a população entrar e ver por que a Lei do Fomento interessa à cidade de São Paulo”. Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo
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A metrópole pulsa com
a
A grafia com “x” se refere à pichação contemporânea, que é alvo desta matéria. Fruto de um provável erro de escrita, essa grafia é reivindicada pelos pixadores para se diferenciar das pichações políticas (mais comuns durante a ditadura), do movimento punk e de propaganda.
cada noite, grupos de jovens saem da periferia em direção ao centro da cidade. Assustam pela agressividade da escrita, pela impossibilidade de compreensão, pela proximidade que chegam às janelas de lares que se consideravam protegidos e pela capacidade de subverter sistemas de segurança. Nada levam, só deixam sua marca. Tratada sempre como vandalismo, a pixação resolveu invadir o circuito de arte para dizer que esse é seu lugar – queiram ou não. A partir da iniciativa de um pequeno grupo de pixadores que adotou a concepção de pixo como intervenção
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pixação e arte
estética, ocorreu uma série de ações que tinha como objetivo questionar a arte contemporânea e cobrar reconhecimento. Presente em São Paulo há cerca de 30 anos e com uma quantidade de intervenções enorme, pode se dizer que a pixação é onipresente. No entanto, os debates acerca de seus significados e causas são escassos. Tida como um problema social, crime previsto no código penal, ela é reflexo da aguda desigualdade social da cidade mais rica do país. O jovem da periferia que sai para pixar carece de infraestrutura onde mora, educação básica, lazer e comumente tem problemas na famí-
lia – motivos que leva os levam a ter em seus colegas uma segunda família e a pixação como lazer e válvula de escape. De acordo com Choque, fotojornalista que prepara um livro sobre o tema, “os pixadores preferem ser odiados pela sociedade a serem ignorados. É um desespero sem fim”.
Entrando em cena O cenário mudou em 2008, quando ocorreram ataques de pixadores a instituições de arte, gerando ampla repercussão na mídia. O estranhamento e o medo que a prática causa na maioria da sociedade foram as armas utilizadas para despertar o debate sobre a intervenção. “Se não chocar, o protesto não tem o mesmo impacto”, explica Cripta Djan, pixador há 13 anos e um dos mentores das ações: “A pixação em sí já choca, e usá-la junto com protesto é uma combinação perfeita. Provamos isso ao virarmos pauta nacional.” Os alvos das intervenções foram o Centro Universitário Belas Artes, a Galeria Choque Cultural e a Bienal de Arte de São Paulo. Antes das ações, uma convocação foi distribuída nos points (locais de en-
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Neste ano acontecerá em São Paulo a 1ª Bienal Internacional de Arte de Rua, com obras de pixadores – um tema polêmico e pouco compreendido pela população.
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contro de pixadores) pedindo que se resgatasse frases de protesto. No convite, lia-se a célebre frase “arte como crime, crime como arte” do escritor estadunidense Hakim Bey. Foi assim que, em média, 40 jovens compareceram e invadiram as instituições culturais, pixando o máximo possível. Para Sérgio Franco, sociólogo com mestrado pela Faculdade de Urbanismo e Arquitetura da USP, as ações foram muito significativas, uma vez que atacaram “os três campos que definem o que pode ser considerado arte e garantem a sobrevivência do artista: galeria, lugar da comercialização; faculdade, local da formação e Bienal, que é o lugar da consagração”. No caso da Bienal, Franco aponta que a ação dos pixadores recebeu mais atenção da mídia que o próprio evento em si e mobilizou mais setores do que ele poderia ter feito. Os ataques contaram com o registro de Choque, que explica dois objetivos das ações: “legitimar a pixação de São Paulo como a maior intervenção urbana artística que já existiu neste planeta, em termos sócio-políticos e de abrangência espacial” e “mostrar como os modelos de instituições artísticas brasileiras estão ultrapassados”. O fotógrafo compara tais espaços com museus “que vivem somente do passado” e que estão “em descompasso com a realidade do país e por isso não são mais capazes de reconhecer novos tipos de expressões artísticas e nem de analisar seus contextos”. Como prova disso, aponta a reação das instituições “ao entrarem em contato com uma intervenção artística que não compreendem”. Nos três casos, as instituições moveram ações contra os pixadores, todas ainda em aberto na Justiça. A Belas Artes expulsou Rafael Pixobomb, estudante que estava envolvido no ataque e tido como o principal mentor. A ação fazia parte do seu trabalho de conclusão de curso. Durante a intervenção da Bienal, apenas Caroline Pivetta foi presa, ficou encarcerada por 52 dias – o período mais longo que um pixador ficou detido no país – e agora aguarda julgamento em liberdade. Tanto Rafael quanto Caroline não falam à imprensa, por orientação de seus advogados.
Ainda que nem todos os pixadores compartilhem tal concepção sobre arte e pixo o que Djan atribui a uma limitação no repertório cultural desses jovens um manifesto lançado por um grupo de pixadores esclarece: “de tudo que estudamos até hoje sobre arte, a melhor definição que escutamos veio da boca de um maloqueiro: arte é nada mais nada menos que um diálogo transposto para um suporte físico” e adiciona: “na atual configuração social, a verdadeira manifestação artística é aquela que é em prol do social, que retrata a experiência dos excluídos, uma experiência coletiva que atualmente é global”. O diálogo desenvolvido pela pixação é fechado e sua compreensão só é possível por membros do movimento, que além de entenderem o que se escreve, são capazes de identificar o autor. Choque chama atenção para a tipografia criada por eles, que considera “muito original, sofisticada, de complexo entendimento e, acima de tudo, marginal”, tendo como autores jovens “que não possuem um repertório de conhecimento vasto e mui-
Pixo-arte As intervenções ocorridas no ano de 2008 não são a primeira tentativa de legitimar o pixo enquanto arte, mas certamente representam o episódio que teve maior repercussão na sociedade, avaliam os próprios pixadores. Entretanto, nem todos eles têm a mesma visão sobre o assunto. A intervenção feita na cidade não tem pretensões artísticas. Os pixadores são movidos pela adrenalina da transgressão e pela disputa de espaço na cidade. Para Djan, “a verdadeira arte tem que ser feita de coração, sem pretensão financeira e com o papel de transgredir, de contestar”. Sua visão vai ao encontro da visão de Mundano, grafiteiro conhecido por frases de protesto pela cidade, para quem “já faz muitos anos que o concreto virou suporte para uma nova modalidade de pintura” e crê que há décadas não surge um “movimento artístico tão forte, original e nacional”. Assim como Djan, Mundano cobra uma postura dos artistas que atualmente “fazem pouco ou nada pelo bem coletivo”.
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to menos tiveram educação formal”. Na gênese dessa criação, estão trabalhos feitos nos anos 80 com nomes de bandas de heavy metal e punk, que, por sua vez, utilizavam caracteres criados a partir do alfabeto rúnico dos povos bárbaros europeus. “É intrigante pensar que esta escrita de milhares de anos atrás ressurgiu aqui em São Paulo, através de seus próprios povos bárbaros: os pixadores”, comenta Choque. A escrita chega a ser incompreensível para quem está de fora, mas Djan conta um caso inverso: um pixador que é analfabeto mas que escreve e lê o pixo. A classificação da iniciativa como manifestação artística causa estranhamento na maioria das pessoas, uma vez que é comumente associada ao vandalismo. Entretanto, já atrai atenção de designers gráficos pela complexidade da tipografia criada, de artistas plásticos e de interessados em arte de rua – campo em geral monopolizado pelo graffiti. Em 2009, a Fundação Cartier, de Paris, fez uma retrospectiva do graffiti mundial e abriu espaço para a pixação paulistana – inclusive com intervenções de Djan nas paredes. No final deste ano acontecerá em São Paulo a 1ª Bienal Internacional de Arte de Rua de São Paulo, com a participação de pixadores como Pinguim do grupo 8º Batalhão, Tatei do Túmulos e Ivan do Trolhas. Sob a coordenação do artista plástico Rui Amaral, um grupo de oito artistas de rua formarão a curadoria da Bienal, que terá exposição no Museu de Arte Contemporânea e intervenções na cidade, além de oficinas, debates e exposição de vídeos.
Linguagem própria A resistência da sociedade e de grande parte do meio artístico à pixação é considerada por Sérgio Franco fundamental para romper paradigmas e estabelecer um novo dilema: “sem essa insatisfação, ela não teria capacidade de ser uma ruptura [na arte]”. Para o estudioso, a pixação é a possibilidade na história da arte ocidental do povo ser autor, criando uma linguagem própria. Entretanto, ele aponta que é necessário que surja um sujeito que venha da pixação, agregue capital cultural para elaborar um projeto autoral e se insira nos debates que ocorrem dentro do meio artístico. Franco aponta que, até onde tem conhecimento, Rafael Pixobomb é o único que possui um projeto e por isso tem condições de dar um passo em relação a tudo que foi feito e estabelecer um marco. A possibilidade do pixador se tornar um artista reconhecido traz incertezas para quem acompanha a questão. O pixo para ser reconhecido enquanto tal, se associa a um determinado universo, e, se estivesse dentro do museu ou galeria, estaria descolado de seu contexto. A iniciativa envolve uma série de características: “rolês” (saídas) pela noite para pixar; disputa por espaço na cidade; conduta, em especial o respeito, que devem seguir; grupos que se formam para pixar; points e festas onde se reúnem; e, sobretudo, o caráter transgressor da prática. Mundano resume: “graffiti e pixo é só ilegal na rua”, fora disso é outra coisa. Franco crê que “uma vez dentro do circuito de arte, não seria mais um pixador, e sim alguém que se apropriou daquele repertófevereiro 2010
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rio para criar algo novo”. Entrar no meio artístico, para Djan, é algo muito perigoso pelo risco de cooptação. “Os pixadores devem ter postura, não se vender para conservar sua essência e devem usar o pixo para contestar sempre”.
Graffiti de hoje O debate sobre a participação da pixação nas artes se acirra ao analisar a trajetória recorrida do graffiti. Ambas práticas, o pixo em São Paulo e o graffiti em Nova Iorque, nasceram como manifestações urbanas ilegais, praticadas por jovens pobres. Entretanto, no Brasil, o graffiti atualmente é praticado pela classe média e classe média alta, que tem acesso a tintas e cursou faculdade. Sérgio Franco explica que o graffiti foi facilmente absorvido pelo sistema de arte e desde 2006 já percorreu praticamente todas as instituições da cidade. No entanto, faz a ressalva de que quando entra na galeria “se torna uma obra fragmentada” pois está “descolada de todos os outros processos que fazem parte, incluindo a transgressão”. Para ele, “o graffiti acrescenta algo quanto está no espaço urbano, fora daí eles nem tem técnica para isso”. O manifesto dos pixadores denuncia a cooptação ocorrida com os grafiteiros paulistanos que teriam adaptado “a linguagem transgressora e agressiva do graffiti ao gosto da burguesia”, de modo que atualmente “reproduz os valores e estilo de vida” dessa camada social. Esse entendimento tem levado a realização de “atropelos” (pintar em cima de outra obra) de graffitis autorizados pela prefeitura ou classificados como “graffiti burguês contaminado pela linguagem da exclusão e pela cultura de massa”. O acirramento entre os dois grupos se agrava à medida que o graffiti, na leitura dos pixadores, vem sendo utilizado pela prefeitura de São Paulo e por ONGs como antídoto da pixação, por uma política de valorização do graffiti em detrimento do pixo. Djan explica que a disputa por espaço na cidade se tornou covarde por parte dos grafiteiros, já que pixações históricas estariam sendo apagadas pela prefeitura para dar lugar ao graffiti. Apagar ou “atropelar” o trabalho de alguém é tido como uma séria agressão e ofensa, uma vez
que para realizá-lo o pixador colocou sua vida em perigo, correu o risco de ser fichado ou, como é mais comum, ser humilhado pela polícia. Djan conta um caso corrente na pixação: quando saiu para pixar pela primeira vez, aos doze anos, levou um banho de tinta ao ser pego pela polícia que “adora pegar pixador para esculachar”.
O pixo e a cidade Um dos principais aspectos que chama atenção no pixo é capacidade de interagir com a cidade, assim como sua abrangência. Para fazer suas intervenções, os pixadores percorrem grandes distâncias: saem das periferias para circular pela região central da cidade, passando por bairros e pela região metropolitana da cidade. Percurso feito a pé ou de ônibus na maioria das vezes, que permite uma percepção diferenciada da cidade. Isso leva Sérgio Franco a considerar que os pixadores são “um dos poucos que dominam a escala da metrópole”. Eles aumentam sua interação na medida em que a cidade é o suporte para suas intervenções, Choque crê que a pixação é a linguagem de rua que ocupa com mais eficácia o espaço urbano e que para os pixadores a cidade seria “um grande caderno de caligrafia a ser preenchido”. Isto também explica a verticalidade das letras do pixo, como se correspondessem à própria verticalidade da cidade praticamente dominada por prédios. Por meio da pixação, jovens da periferia chegam a locais que só chegariam prestando serviços: “é uma retomada simbólica de tudo aquilo que também deveria fazer parte de suas vidas”, diz Choque. Para ele a pixação surge como uma “doença de pele” na cidade que “põe suas entranhas para fora”. “Compreendendo a pixação, a sociedade estará compreendendo a si própria”, pois toda manifestação artística “é reflexo direto dos acontecimentos e valores da sua época”. Choque vê nisso a explicação para o silêncio da sociedade acerca dessa prática “olhar para ela é olhar para dentro de si própria, e com certeza verão muitas coisas que não irão agradar”. Juliana Sada é jornalista.
Emir Sader
Dez anos do outro mundo POSSÍVEL Dez anos de Seattle e dez anos do primeiro Fórum Social Mundial. Como fazer um balanço dessa década? Não tem sentido fazer um balanço do FSM. Ele nasceu para a luta de resistência ao neoliberalismo e pela construção de um outro mundo possível, um mundo antineoliberal. O FSM tem sua história interna, mas o seu sentido tem que se referir ao objetivo para o qual ele foi criado: a superação do neoliberalismo. Quando começamos a organizar o primeiro FSM, a hegemonia neoliberal parecia consolidada. A passagem da dupla de mandatários que tinham personificado inicialmente esse modelo – Reagan/Thatcher, para seus sucessores – Clinton/Blair – parecia confirmar a solidez do Consenso de Washington. Mudavam as forças políticas, o modelo se mantinha. Na América Latina também, apenas Hugo Chávez e Cuba destoavam. O neoliberalismo agregava presidentes aparentemente distintos, como Fujimori, FHC, Carlos Menem, Carlos Andrés Pérez. A luta era de resistência, protagonizada centralmente por movimentos sociais. Mas aquele sintoma inicial – o governo de Hugo Chávez – era a ponta do iceberg que logo revelaria seu potencial pela multiplicação de governos eleitos pela rejeição do neoliberalismo. Enquanto se reproduziam os FSMs, um novo cenário político passou a caracterizar a primeira década deste século. Com o esgotamento do modelo – expresso nas crises do México de 1994, do Brasil de 1999 e da Argentina de 2001-02 -, se saiu da fase de resistência à de disputa de alternativas. Os movimentos que não se deram conta dessa mudança e mantiveram a teoria da “autonomia dos movimentos sociais”, adaptada para a resistência, praticamente desapareceram da cena política. Foram se constituindo governos – cujos representantes estavam no FSM de Belém. O balanço é o dos avanços, dos problemas, dos desafios da construção do “outro mundo possível” e não simplesmente do FSM. sugestões de leitura A POTÊNCIA PLEBEIA
Álvaro García Linera (Boitempo Editorial) O ÚLTIMO SUSPIRO
Luis Buñuel (Editora CosacNaif} PADRE CÍCERO
Lira Neto (Editora Cia. das Letras) Emir Sader é cientista político.
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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu
A OBRA-PRIMA BRASILEIRA que
praticamente só Portugal reconhece O grande romance “O rastro do jaguar”, do mineiro Murilo
Carvalho, lançado pela Leya no Brasil em 2009, tem várias coisas em comum com o grande romance “Um defeito de cor”, da também mineira Ana Maria Gonçalves, da Record, de 2006: ambos são os únicos romances brasileiros do século 21 que retomam as alturas de “Grande sertão: veredas”, do também mineiro Guimarães Rosa. Ambos receberam prêmios internacionais importantes: Carvalho, o Prêmio Leya, em Portugal, em 2008 – nada menos de 300 mil euros! –, e Gonçalves o Prêmio Casa de las Américas, em Cuba, em 2006. E ambos foram praticamente ignorados, pelo menos em sua verdadeira dimensão estética e cultural, pela grande mídia brasileira. Talvez tudo isso se explique por outro ponto em comum entre os dois livros: ambos retratam etnias que, se são dominantes na formação da Nação, não são dominantes na grande mídia: os negros, no caso de Gonçalves, e os índios, no caso de Carvalho. Mais: ambos romanceiam, fantasiando livremente, mas baseados em pesquisas muito bem documentadas, a partir da vida de pessoas que realmente existiram: Gonçalves, a mãe africana do abolicionista brasileiro Luís Gama; Carvalho, um índio brasileiro levado em menino para a França pelo sábio Saint’-Hilaire, menino que foi educado como francês e que, já adulto, redescobre as suas origens indígenas, ao retornar ao Brasil. Finalmente, os dois romances se passam no século 19. O livro de Murilo Carvalho, jornalista que foi do semanário “Movimento”, de oposição ao regime militar, e da “Folha de S. Paulo”, levou trinta anos para ser escrito e é uma obra-prima épica de mais de 560 páginas, que retrata a busca pela mítica Terra Sem Males, em meio aos horrores da Guerra do Paraguai. Portugal já reconheceu esse grande autor brasileiro, que lá surge até em anúncios de televisão – resta que seu próprio povo o reconheça como um de seus grandes filhos.
A Polop às vésperas de seu cinquentenário Daqui a um ano, a Organização Revolucionária Marxista Política Operária estará comemorando seu cinquentenário de fundação, em janeiro de 1961. Para marcar a data, o Centro de Estudos Victor Meyer, de Salvador (cvmbahia@gmail.com note-se que é sem o br) lançou o volume “Polop – Uma trajetória de luta pela organização independente da classe operária no Brasil”. Do livro constam artigos de alguns dos mais importantes militantes da organização, como Ceici Kameya-
ma, os já falecidos Eric Czaczkes Sachs, também conhecido como Ernesto Martins, e Victor Meyer, além de Eduardo Stotz e documentos que marcaram a história do grupo, como a “Convocatória para o 1º Congresso da Polop” e o “Programa socialista para o Brasil”. Duas palavras de ordem caracterizaram toda a história do grupo, que formou alguns dos principais quadros políticos e intelectuais da história recente do país, como Eder Simão Sader, hoje nome de praça no bairro da Vila Madalena, em São Paulo; Emir Sader, Theotônio dos Santos Júnior, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Ruy Mauro Marini, Nilmário Miranda e Dilma Rousseff. Uma delas: “Por um partido independente da classe operária”; a outra, “Por um governo dos trabalhadores da cidade e do campo”. O grupo se dissolveu ao ser fundado o PT, ao qual aderiu. Se a Polop nunca teve maiores ligações com as massas, a sua importância como importante referência teórica para os quadros políticos mais intelectualizados e de maior formação teórica da esquerda brasileira nunca deixará de ser marcante. De Luiz Alberto Moniz Bandeira, temos, pela Civilização Brasileira, a 3a edição, revista e atualizada, de “Formação do império americano – da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque”. Trata-se de uma obra de grande abrangência – são mais de 850 páginas –, que combina o rigor teórico com um detalhamento empírico exaustivo, sobre a maior potência imperialista da história. Diz a apresentação que o livro demonstra que a história não comprovou a posição do revolucionário Vladimir Lenin de que o imperialismo, pelas suas contradições internas, só poderia desembocar no socialismo comandado pelo proletariado, mas confirmou a posição do reformista Karl Kautsky de que os vários imperialismos deixariam de ser rivais e se fundiriam num ultraimperialismo único, deixando de guerrear entre si e só guerreando contra países mais atrasados e periféricos em relação ao capitalismo. Pelo menos por enquanto, é o que podemos constatar. No entanto, devemos lembrar que, em russo, o famoso livro de Lenin se chamava na edição original “O imperialismo, o estágio mais recente do capitalismo” e não “O imperialismo, o último estágio do capitalismo”, como passou a ser mais conhecido.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.
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UM CONTRAPONTO INTELIGENTE À MÍDIA CONSERVADORA
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