Entrevista
Jaqueline Moll: o ensino integral é o melhor caminho pág 15
Reportagem
Como o PNE transformou uma escola em Campinas, no interior paulista pág 18
ESCOLA INTEGRAL Berço da educação transformadora pág 08
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Especial Educação Índice
Editorial
02_ Editorial
A nova escola brasileira
A nova escola brasileira
03_ Projetos educacionais
Construindo um Brasil com mais escolas
04_ Plano Nacional de Educação Ensino público e mercado
08_ Educação integral Sem muros, sem grades
12_ Educação como negócio Salários e formação dignos
15_ Entrevista
Jaqueline Moll - Uma revolução silenciosa
18_ Cultura e valorização nas escolas Parque Oziel: revolução cultural
23_ Artigo
Marcos Cordiolli - Por uma política pública para a cultura na educação escolar
Editor: Wagner Nabuco Editor-Executivo: Aray Nabuco Editora Assistente: Nina Fideles Repórteres: Lilian Primi, Lúcia Rodrigues e Fania Rodrigues Arte: Simone Riqueira Revisor: Luciano Gaubatz Marketing: André Herrmann (Diretor) e Pedro Nabuco (Gerente) Relações Institucionais: Cecília Figueira de Mello Administrativo e Financeiro: Lúcia Benito Ricco Controle e Processos: Wanderley Alves e Douglas Jerônimo Livros e Projetos Especiais: Clarice Alvon Apoio: Neidivaldo dos Anjos, Zélia Coelho e Renato Borges de Faria
Produção Editorial Coordenação de produção: Anaí Nabuco/Lettera Comunicação Coordenação de reportagem e revisão: Lucien Luiz/Lettera Comunicação Repórter e redator: Luís Paulo Cesari Domingues Projeto gráfico e edição de arte: Gustavo Domingues Ilustrações: Luciano Tasso
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educação pública no Brasil é um tema difícil de ser tratado adequadamente. O senso comum costuma julgar que nosso sistema público de ensino é ruim e ponto final. Sem distinguir municípios, estados e o governo federal, esse julgamento negativo fortalece a descrença na escola como elemento essencial da formação crítica e da emancipação dos brasileiros e contribui para que a própria população que utiliza a educação pública no geral a desqualifique. As consequências dessa realidade equivocada são trágicas para a maioria, mas interessam muito a alguns. Neste encarte especial da revista Caros Amigos, o futuro da educação no país é debatido de maneira franca, longe das opiniões comuns e com argumentos ancorados no trabalho de alguns dos maiores especialistas da área. O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela presidente Dilma ousse em junho de 2014, traz uma nova visão da escola, com um modelo possível, similar ao que há de mais moderno sendo utilizado hoje no mundo. Preservando as identidades culturais de cada local e região, o novo PNE permite que a sociedade veja a escola com outros olhos, inserida no dia a dia de cada bairro, traduzindo os problemas e os sonhos da comunidade que vive em seu entorno, buscando melhorar sua qualidade de vida. Aqui, a Caros Amigos aborda as regras e a estrutura do PNE, os desafios políticos a serem vencidos para que seja implantado com sucesso, incluindo aí a superação do l ob b y das instituições de ensino particulares, com forte representação no Congresso Nacional. A reportagem também contemplou as questões de orçamento para que o PNE seja conduzido com êxito, a aprovação dos 10 do PIB Produto Interno Bruto revertidos para a área do ensino público, bem como os papéis imprescindíveis da cultura e da educação integral nessa nova realidade escolar - que já são potencializados pelos programas Mais Educação e Mais Cultura nas Escolas. O encarte traz ainda artigo de Marcos Cordiolli, secretário da Cultura da cidade de Curitiba, que trabalhou com afinco os aspectos relevantes com relação à cultura e à educação integral durante os debates que permitiram a construção do Plano Nacional de Educação; além de entrevista com a professora Jaqueline Moll, uma das maiores especialistas do país nesta área. O leitor também poderá conhecer um caso de grande sucesso educacional na cidade de Campinas, acompanhando a reportagem sobre a Escola Municipal de Ensino Fundamental Emef Oziel Alves Pereira, que vem conseguindo despertar o interesse dos alunos e de toda a comunidade local por meio da descoberta de uma identidade cultural própria. Boa leitura!
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Especial Educação Projetos Educacionais Por Luis Paulo Domingues
Construindo um Brasil com mais escolas “Mais presídios, menos escolas!”
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os últimos tempos, com o acirramento da disputa política na direção central do país, quando muitas opiniões são constantemente forjadas no calor das emoções e das conveniências pessoais, até mesmo frases como essa escrita acima querem fazer sentido em mentes equivocadas. A turbulência que aflorou das campanhas e das eleições de 2014 foi tamanha, que conseguiu criar em alguns setores conservadores a ideia errada de que a escola é um projeto que não deu certo no Brasil, e de que investir mais em educação seria jogar dinheiro fora. É verdade que podemos creditar uma boa dose de ignorância, algo de teatral e certa má intenção sobre quem comunga de tal desilusão com os brasileiros e com o ensino - e principalmente com o ensino público -, mas não faltam pessoas que se prestam a sair por aí dizendo tais bobagens, inclusive na imprensa e em redes sociais. Milhas e milhas distantes dessas opiniões verborrágicas estão os profissionais do ensino das mais diferentes formações e matizes, trabalhando para que a educação seja melhor e para todos. Dentre eles, há um grupo de especialistas que se dedica a incrementar e ampliar a educação integral em todo o território nacional, para torná-la progressivamente, em um futuro programado, o padrão e a norma do ensino brasileiro. Não se trata de um devaneio utópico de professores sonhadores. A educação integral é a regra em todos os países desenvolvidos e com alta qualidade de vida. De fato, o Brasil é extenso e plural como um continente e essa é uma tarefa muito difícil, mas não impossível de ser realizada. É importante também entender que o termo integral , presente com recorrência neste encarte especial da Caros Amigos, não é apenas uma referência ao tempo de dois turnos que os alunos
ficam na escola quando ela é integral. É essencial que os alunos permaneçam na escola de manhã e à tarde, mas também que a educação oferecida integre o aluno à sociedade. E de fato, o ensino público como um todo deve oferecer oportunidades e ferramentas para que a criança, o jovem, o adolescente e o adulto possam ler o mundo de uma maneira mais emancipada e atuar, para si e para a sociedade, de forma positiva e agregadora. A contrapartida é garantida. Nos locais onde já há escolas públicas funcionando de forma integral - quanto aos períodos e também na concepção de ensino -, os índices de evasão caem. Mas para que uma educação de excelência seja aplicada em larga escala, antes de tudo, é imprescindível que os desafios do Plano Nacional de Educação sejam encarados corajosamente por todos e que suas metas sejam alcançadas. Buscando esse objetivo, está em curso um amplo trabalho de conexão entre diversos ministérios, secretarias estaduais e municipais. Programas como o Mais Educação (MEC) e o Mais Cultura nas Escolas (Minc) ganham força, com ótimos resultados e a adesão de um número crescente de escolas. Também será necessário vencer as difíceis barreiras políticas no Congresso, estados e municípios, superar a demanda de orçamentos que essa transformação requer, combater os interesses de grupos poderosos que apoiam a privataria – trabalhando pela decadência do ensino público - e, principalmente, envolver a sociedade nessa construção. A escola pública brasileira ideal não pode ser um edifício inerte, um conjunto de salas de aula fechado entre muros. Ela deve transitar, deve estar presente em toda a comunidade, interagindo com a sociedade, no bairro, na cidade, no pequeno povoado e também no campo. Essa nova escola precisa da participação de todos os atores sociais, não só dos profissionais da educação, do administrativo, da segurança e da limpeza do prédio escolar. A família, a vizinhança, os amigos, os colegas, todos são fundamentais para a concepção da escola integral pública, gratuita e para todos.
A escola pública brasileira ideal não pode ser um edifício inerte. Ela deve transitar, deve estar presente em toda a comunidade, interagindo com a sociedade, no bairro, na cidade, no pequeno povoado e também no campo. E há mais a fazer. Esse salto na educação só poderá acontecer se existir uma formação adequada para os professores, com capacitação contínua e salários dignos, que possam atrair os novos talentos para o universo do ensino público. É preciso também que os conteúdos sejam revistos, para que a escola seja mais atrativa, mais identificada com o quotidiano e com a realidade dos estudantes, e que haja ainda uma estrutura adequada para oferecer essa nova educação. É um projeto ousado e caro. Contudo, não há como o Brasil alcançar desenvolvimento e qualidade de vida melhores, sem que a ampla maioria da população receba uma educação que atraia, desperte, encante, emancipe. A escola integral pública, gratuita e para todos é uma obra que demanda imensa energia, mas é o caminho mais certeiro para chegarmos ao país que almejamos. Afinal, no frigir dos ovos, para além das identidades caricatas, forjadas na onda do conservadorismo excêntrico de nossos tempos, é claro que todo brasileiro consciente e são prefere um Brasil com mais escolas e com menos prisões, e não o contrário.
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Especial Educação
Plano Nacional de Educação Por Luis Paulo Domingues
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Ensino público e mercado
As concepções e os interesses que envolvem o Plano Nacional de Educação
“Quantos aqui vão prestar medicina?”
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cena já é um clássico no cotidiano escolar das instituições privadas. A grande maioria vai prestar medicina, direito, engenharia e poucas outras profissões que, o senso comum entende, permitem ao indivíduo viver segundo nossa exigente lógica de consumo. Poucos vão se aventurar nas ciências políticas, por exemplo. Mas será que todos os alunos que levantaram a mão para o professor querem mesmo ser médicos Ou ainda, qual o motivo que levou tanta gente a optar por medicina, engenharia ou direito? “Temos em curso na sociedade um projeto em que as pessoas são educadas para serem cidadãs do consumo. É a inclusão pelo consumo”, diz a professora Eliene Novaes, doutora em Educação pela UnB, especialista em políticas públicas e educação do campo. “Dessa forma, somos incluídos na sociedade à medida que temos as condições de consumir o que o mercado nos oferece. A formação ofertada nas escolas, também em algumas instituições públicas, acaba por reforçar a ideia de que é preciso garantir a inclusão para manter ou ter padrões de consumo”, explica ela. Partindo do pressuposto da pedagoga, a competição por postos “inclusivos” no mercado de trabalho segue nossa filosofia de vida dos tempos modernos e alimenta grandes instituições privadas, já perfeitamente adequadas dentro das cirandas financeiras, e que dividem os lucros da mercantilização do ensino. A educação como negócio é mesmo extremamente lucrativa. Em 2013, o faturamento das instituições privadas de ensino superior no Brasil batia nos R$ 32 bilhões. A soma atrai muita gente disposta a ganhar dinheiro, mas o grosso desse mercado abastece os cofres de poucos. Um grupo de apenas 13 grandes conglomerados controlava a educação superior em 2013. Segundo levantamento da Hoper, consultoria especializada na área, juntos eles representavam 36,2% do ensino superior privado no país, reunindo 1,8 milhão de
estudantes - o que garante por volta de 2 de todos os alunos do ensino superior no Brasil. Por meio de fusões de grandes instituições de ensino que já atuavam largamente no país, com grupos de investimentos estrangeiros, a educação privada concentra cada vez mais dinheiro, com poder de barganha e pressão diante de governos e parlamentares na garantia de seus interesses. Essa visão míope da educação é profundamente nociva para o que se pretende de um ensino emancipador e para todos, e é intensificada com as regras de gestão ultraliberais. “Cada vez mais secundariza-se a formação humana, social, política, artístico-cultural para o ser, e privilegia-se o ter para conseguir acesso ao emprego, aos melhores salários, às melhores condições , afirma Eliene. “Grande parte da sociedade, especialmente os pobres, os negros, as pessoas do campo, os quilombolas, os indígenas e tantos outros grupos socialmente excluídos, pouco terá direito a essa inclusão pelo consumo”, complementa. A disputa de modelo que Eliene apresenta reflete um mecanismo cruel da luta de classes no Brasil. Trata-se, portanto, de um processo de negligência à diversidade cultural atrelada ao sucateamento da educação pública brasileira. A lógica quantitativa e tecnicista não apenas exclui historicamente esses grupos, como subvaloriza a reflexão de toda a sociedade sobre a realidade social e política do país. O sucateamento dos cursos de ciências humanas e das licenciaturas mostra que a formação dos professores está sendo reduzida apenas à reprodução e transmissão dos conteúdos. Mas o que se pretende com uma educação de qualidade é, claro, garantir um olhar crítico ao aluno e uma postura propositiva de novos caminhos para uma sociedade em construção. Em seu sentido profundo, a educação pode gerar um cidadão que vislumbre, não apenas a sociedade de consumo, mas para além dela, um campo aberto para as invenções de um caminho de vida pública nos espaços de convivência cotidiana, sejam eles comunitários ou institucionais. Programas como o Bolsa Família foram essenciais para diminuir a desigualdade no país e oferecer condições mínimas para o exercício de
Entendendo o PNE No dia 25 de junho de 2014, foi sancionado o Plano Nacional de Educação no Brasil. Entre as ações previstas estão: - Determina que o governo federal, todos os governos estaduais e também os municípios elevem a 10% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional os investimentos em educação no Brasil até o ano de 2024, o décimo ano de sua aprovação. Atualmente, os governos investem apenas 6,5% do PIB na área. - Fixa 20 metas e diversas estratégias para a melhoria da educação, que os municípios, estados e o governo federal são obrigados a cumprir em um prazo de dez anos, como a erradicação do analfabetismo, a universalização da educação infantil, da educação primária e da educação secundária, garantindo que a partir de 2024 todos os brasileiros com até 17 anos terão acesso à escola; e que todos com até seis anos estarão alfabetizados. Além disso, ao menos metade das escolas públicas do país deverá oferecer educação em tempo integral e a escolaridade média da população entre 18 e 29 anos de idade tem que ser elevada para 12 anos de estudo. - Concessão de benefícios às escolas que melhorarem o desempenho dos alunos nos exames usados para determinar o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
O que se pretende com uma educação de qualidade é incluir o aluno na sociedade em seu sentido profundo, não apenas na sociedade de consumo. OUT 2015 > 05
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Especial Educação
Plano Nacional de Educação Cada vez mais forte, há um mercado da educação usando os mecanismos e brechas das leis para estruturar-se a partir dos recursos públicos. Eliene Novaes
seus direitos e possibilidades de uma vida com mais conforto material a milhões de brasileiros. É verdade que a relação entre a política de assistência e a política de educação mostrou a potência das classes mais desfavorecidas. Ao condicionar o recebimento do benefício à permanência na escola, o Bolsa Família foi capaz de alterar a situação da educação no país em termos quantitativos. Por exemplo, o número de crianças e jovens na idade escolar adequada mais que dobrou de 2001 para cá. O percentual, que era de 24,4% (na faixa dos 20% mais pobres da população), elevou-se para 54,8% em 2013. Essa melhora no quadro, entretanto, ainda não é suficiente. E quase a metade das escolas que atendem a maioria de alunos desse programa conta com educação integral. Por outro lado, cerca de 70% delas têm estrutura física ainda distante do minimamente adequado. Por isso, os educadores mais conceituados me atuantes ainda travam uma longa e árdua jornada com destino a uma educação pública para todos, “gratuita”, integral e de qualidade. O Plano Nacional de Educação, sancionado em julho do ano passado, representa uma oportunidade ímpar para que o ensino público atinja esse patamar. O PNE prevê o cumprimento estrito de metas, de 10 em 10 anos, cujo sucesso pode garantir uma verdadeira evolução nos índices sociais brasileiros. Infelizmente, há muitos obstáculos para que o debate em torno da educação pública frutifique. O mercado só tem a perder com a melhoria do ensino público e seus representantes políticos batalham sempre no sentido contrário aos avanços plenos que poderiam estar contidos desde já no Plano. “Se por um lado temos os movimentos históricos que lutam pela garantia do direito à educação como elemento da formação plena do sujeito, temos por outro um mercado cada vez mais estruturado para tratar a formação e a educação como nichos de mercado a serem explorados em nome do lucro”, acrescenta Eliene. O problema recai no educando, que em um projeto de educação popular e pública buscaria enxergar-se como sujeito social. No entanto, desse modo passa a ser tratado como cliente a quem se oferece um serviço. “O que está em disputa, então, é o sentido da formação: cidadã ou para consumo”, destaca.
Público X Gratuito Há muita falta de informação no que diz respeito ao ensino público. Antes de tudo, é necessário que o cidadão entenda que a educação pública não é gratuita. Todos os brasileiros pagam muito por ela. Com o que se paga, espera-se que o estado ofereça e garanta uma educação pública, gratuita (no que diz respeito ao aluno), laica e para todos, como está explícito na Constituição de 1988. Porém, vivemos sob uma tendência cada vez mais crescente de deslocar essa visão pública, presente em nossa Constituição, em direção à ideia do ensino gratuito, pura e simplesmente. “O enfrentamento que estamos vivendo é uma tentativa de camuflar a concepção de público, tanto para o financiamento da educação quanto para a construção de propostas de educação”, diz Eliene Novaes, doutora em Educação pela UnB. “A educação pública deve ser acessível a todas as pessoas, que já pagam por ela. Quando recorremos a escolas particulares, estamos pagando dupla ou triplamente, pois essa conta pagamos antes de usufruir”, garante a educadora. Mas aquilo que era um paliativo foi se tornando regra. A transferência de dinheiro público para instituições privadas de ensino, principalmente no ensino superior, seria uma boa saída enquanto o governo não conseguisse investir mais na ampliação de ofertas de vagas e na melhoria de sua rede pública de ensino superior. O serviço, então, seria oferecido por grupos privados em suas instituições, com as mensalidades pagas pelo governo, para garantir o acesso ao ensino - se não o melhor, pelo menos “algum” ensino - àqueles que não conseguiram ingressar nas universidades públicas. Os grupos privados da educação, é claro, adoraram o paliativo, e a boa intenção foi driblada pela irresistível ótica do lucro e do capital. Desse modo, os modelos de financiamento público em instituições privadas, na esteira do Fies e do ProUni, encontram-se em franca ampliação por parte dos interesses privados. Os seus representantes no Congresso lutam para aumentar sua participação na educação paga pelo estado, com a intenção de fazer o modelo chegar até o ensino básico. Para isso, é de substancial importância que a rede pública feneça no sucateamento e tenha cada vez menos recursos destinados a ela.
“O que temos assistido no Congresso Nacional é uma busca de apropriação do público pelo privado. São os recursos públicos que devem ser investidos pelo Estado na garantia dos direitos, sendo disputados pelos nichos de mercado da educação”, explica Eliene Novaes. “Cada vez mais forte, há um mercado da educação usando os mecanismos e brechas das leis, com fortes articulações de deputados e senadores para estruturar-se a partir dos recursos públicos”, garante a pedagoga. O caráter nocivo da visão primordial do lucro na área da educação escancara a inversão de papéis entre o público e o privado, permitindo que as instituições de ensino particulares ofereçam um serviço pífio, sem compromisso, desprovido de qualidade no que diz respeito a conteúdos e modelos pedagógicos emancipadores e críticos. O advento do PNE deve agora colocar a questão em pauta e é uma boa chance para a sociedade retomar o poder conferido pela Constituição, no sentido dos recursos públicos serem destinados ao ensino público, e não às instituições privadas. Ainda na opinião de Eliene Novaes, “o desafio agora é debater até onde vai o papel do estado no subsídio à educação do mercado, em nome da garantia do direito à educação. Desafiamos a debater a qualidade ofertada em muitos cursos financiados com recursos públicos, pois muitas instituições de ensino particulares atuam apenas para buscar garantia de acesso a esses recursos, sem contudo, garantir as concepções de formação e a qualidade”, conclui.
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As ações concretas previstas no PNE não foram colocadas em prática até hoje porque não havia dinheiro. Agora estão corrigindo o rumo. Em cinco anos chegará aos 7% do PIB e, em 10 anos, atingiremos os 10%. Heleno Araújo
A equação dos 10% O que está em disputa no atual projeto de educação no Brasil? Os especialistas acreditam que esse é o ponto mais caro a ser debatido, pois a questão revela a natureza da guerra a ser enfrentada e as fronteiras que terão de ser rompidas para que haja um avanço concreto. A educação pública, de qualidade e para todos é uma ameaça para os que defendem as gestões neoliberais, para os grandes conglomerados privados de ensino e para a ala da classe política apoiada por eles no Congresso. Afinal, por que o governo teria que gastar tanto dinheiro com instituições privadas, se houvesse uma estrutura de excelência atendendo largamente a população? Sem falar na questão trabalhista, profundamente ameaçada com as investidas de terceirização, que já estão em curso há tempos em muitos Estados e municípios, com a contratação de professores temporários, sem efetividade e sem os custos da Previdência Social. Quem defende a continuidade dos programas de transferência de recursos para instituições privadas diz que essa estrutura pública ideal ainda não existe e que os programas já garantiram o acesso de mais de 2 milhões de jovens de baixa renda ao ensino superior. Sem dúvida um avanço. rata-se agora de se avaliar e qualificar esse acesso a cursos de qualidade, sem diminuir a oferta à rede pública de ensino. É bom que os dois argumentos sejam levados em conta, mas não dá para fechar os olhos para o lobby hoje bem estruturado no meio político, encarregado de garantir dinheiro para as contas das instituições privadas, algumas já devidamente fundidas com grupos de investimentos internacionais, que privilegiam o lucro em detrimento da qualidade. O governo federal teve que ouvir os dois lados e as duas casas Câmara e Senado. No início das votações sobre o tema, em abril do ano passado, a Câmara chegou a aprovar uma proposta com os 10 destinados totalmente ao ensino público sem colocar na conta os repasses para o Prouni, o Fies, o Pronatec e outros programas, como Ciência Sem Fronteiras. Era o que todos os educadores que lutam por uma evolução real da educação almejavam. Porém, o Senado queria colocar as transferências para as instituições privadas dentro
da conta dos 10 , o que empobreceria o PNE, no que diz respeito ao ensino puramente público. O governo cedeu e concordou com a inclusão dos programas de transferência dentro dos 10 , como de fato foi aprovado em junho do ano passado. Um claro retrocesso, na opinião da maioria dos especialistas entrevistados pela Caros Amigos nesta reportagem. Mas a batalha continua. Segundo Heleno Araújo, professor de ensino básico em Pernambuco, dirigente sindical da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e membro do Fórum Nacional de Educação, o problema recai sempre no financiamento empresarial nas campanhas políticas. Há uma forte influência do financiamento privado. As campanhas políticas dos deputados e senadores são financiadas por empresas interessadas nessa conta, então os parlamentares passam a pressionar o governo federal para que inclua o Prouni, o Fies e outros programas nos 10 . Aí o governo acaba cedendo , discorre ele. Araújo ressalta que esse é um problema que ocorre fortemente no ensino superior, mas também no Pronatec, na educação básica e na infantil, por meio dos convênios. São escolas mantidas pelo dinheiro público, mas seus educadores não são contratados pelo município. Nós temos exemplos de cargos temporários que pagam R$ 60,00 a pessoas sem formação, com dinheiro repassado por ONG’s, com o argumento de que o Estado não tem dinheiro”, diz ele. “Então, acaba tudo caindo no interesse político, com esses grupos privados tentando até vender apostilas para as escolas públicas. Tudo isso tem que ser corrigido”, ressalta o pedagogo. Porém, nem tudo é obstáculo no caminho da educação pública. Mesmo com as instituições privadas participando desses recursos, o PNE garantirá o repasse de mais dinheiro para a estrutura pública. As ações concretas previstas no PNE são as que o ensino público necessita para ter qualidade, mas é preciso de dinheiro para realizar isso”, diz Araújo. Não foram colocadas em prática até hoje porque não havia dinheiro. Agora, estão corrigindo o rumo. Em cinco anos chegará aos do PIB e, em 10 anos, atingiremos os 10 . E mesmo com a derrota dos 10 exclusivos para a educação pública, a regra pode ser alterada ainda. O Congresso pode mudar no sentido de privilegiar mais o ensino público”, conclui.
Os recursos favorecerão também a convergência e ampliação de políticas públicas de Educação com as políticas de outras áreas, como saúde, esporte e cultura como forma de ampliar e qualificar o alcance, otimizando a utilização de recursos. O MEC já tem um acordo de cooperação com o Ministério da Cultura desde 2011, recentemente ampliado, que já atua conjuntamente em cinco mil escolas de ensino básico de educação integral, e em universidades públicas de todas as regiões. Existe um diálogo entre gestores da educação, artistas, professores e alunos, com ênfase no reconhecimento da diversidade cultural brasileira. O acordo MEC/MinC ensejou um movimento estrutural, de aproximação entre o Plano Nacional de Cultura, atualmente em processo de revisão, e o PNE.
Mais demandas De fato, não é nada simples colocar em prática um plano da envergadura do PNE, levando-se em conta o tamanho do país, o montante de alunos e os interesses em jogo. Dentro dessa disputa entre a visão pública e a visão privatista existem temas específicos, igualmente polarizados, a serem debatidos. Para Jamil Cury, professor do Depatamento de Educação da FM e ex-presidente da Capes, o que está em disputa hoje é o sentido da qualidade da educação, cuja premissa é a incorporação dos saberes populares e cotidianos na interlocução com a construção de conhecimentos científicos. Ele ressalta a importância das avaliações e da obtenção de melhores salários por parte dos professores, temas que também são vistos como concorrentes. “Com os atuais salários e planos de carreira, não há atratividade do talento. E sem avaliação, a população que paga os impostos vinculados fica sem um quadro de referências , diz ele. Alegados economistas da educação, com grande acesso à mídia tradicional, tendem ao lado da avaliação ranqueada como critério de qualidade. E as associações profissionais e sindicais, com movimentos de greve, tendem aos salários”, destaca o professor. “Pelo menos, do ponto de vista do PNE, há uma tentativa de buscar pontos que atendam aos dois polos. Os gestores públicos, hoje, estão pressionados por esses dois polos e a efetivação do PNE parece-me ser a saída possível”, conclui Cury.
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Sem muros, sem grades Uma escola livre pressupõe que transcenda territorialmente, que seja reconhecida e se reconheça na comunidade onde está inserida
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ma sociedade evoluída, livre e emancipada pressupõe a existência de programas, instituições e princípios democráticos. Nossa história é recheada de obstáculos que foram colocados entre o desenvolvimento do país e a construção da sua sociedade. Porém, nas últimas décadas experimentamos uma série de avanços provocados por uma combinação de fatores, que vão desde a presença de uma economia mais forte, passando pelo acesso da população a novas tecnologias e a mais informação, e pela ampliação do padrão de consumo das classes menos favorecidas, por meio dos programas sociais do Estado. A educação também avançou, pelo menos mais recentemente, no que diz respeito à ampliação da oferta de vagas no ensino superior, por meio da construção de novas universidades federais e dos programas como ProUni e Fies. Mas, para que encontremos o caminho efetivo do desenvolvimento, falta ainda atingir em profundidade a educação pública, desde o ensino básico (infantil, fundamental e médio) até o universitário. A construção de um sistema de ensino público de qualidade, unificado e acessível em todo o território, em um país extenso e plural como o Brasil, exige repensar os pontos de vista da educação e da cultura, bem como aprender a enxergar a sociedade a partir desses pontos de vista. Um desses obstáculos que a história nos colocou foi a implantação de um modelo de ensino autoritário nos anos da ditadura militar pós-64, que infelizmente não foi desconstruído com a abertura política e a volta da democracia. O PNE é a primeira oportunidade real, depois dos anos de chumbo, para que o Brasil coloque em prática uma educação eficiente, crítica e acessível a todos os brasileiros. Um dos especialistas que muito contribuiu para o debate que permeou a construção do PNE é o professor Jamil Cury, do Depar-
tamento de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e ex-presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Ele defende o novo Plano de Educação e acredita que o cumprimento das metas e estratégias apresentadas é primordial para que obtenhamos os avanços necessários na área. “O grande legado do regime militar em educação foi o de se opor ao capítulo de educação da Constituição Federal de 1 , afirma ele. Por contraste com o autoritarismo, foi possível escrever aquele capítulo. Então, somos bons em desconstruir ditaduras e formalizar a democracia, mas agora o grande desafio é construir a democracia que está na Constituição”, explica o educador. Segundo Cury, para que a educação almejada no PNE seja, de fato, mais democrática, é preciso transformar o formato e o conteúdo que são oferecidos nas escolas. Além disso, como muitos especialistas, ele também acredita ser necessário que a escola transcenda seus muros e seja reconhecida, assim como se reconheça como parte da comunidade. Para que a escola seja significativa, ela precisa escutar a comunidade. Daí que a articulação com a cultura, ou melhor, com as culturas, é fundamental para tal”, ressalta. “A valorização de nossas heranças culturais é também um princípio constitucional que tem que estar no cotidiano das escolas. E por outro lado, temos heranças menos benéficas que precisam ser desconstruídas, como as discriminações, por exemplo”, pontua o professor.
Integral e integrada Foi nesse sentido que o PNE foi estruturado, a fim de privilegiar a educação integral e a cultura como elementos-chave, capazes de despertar os alunos e a sociedade dentro de uma nova visão integrada do ensino e do próprio papel que a escola deve desempenhar. Para compreender esse aspecto, voltamos às dimensões continentais do nosso país: é uma longa e dura tarefa integrar todo o ensino público brasileiro nessa nova concepção e nesses novos papéis, mas enganam-se aqueles que pensam que não temos exemplos de sucesso já em curso. Na
verdade, todas as capitais do Brasil possuem casos emancipadores no ensino público, com escolas que conseguiram romper as barreiras do seu espaço físico e integrar-se como algo existente e atuante nos ambientes da comunidade. E onde isso ocorre, o resultado é evidente (ver matéria na pág 18). Contemplando essa perspectiva, é que foi criado, em 2007, o Mais Educação, o programa de Educação Integral do MEC. Para o professor Cury, o projeto não é apenas a extensão da jornada escolar, mas tem um sentido de aproveitamento do contraturno para o qual concorrem tutores, professores e outros agentes, visando às atividades culturais e esportivas, além de visitas a locais fora da escola. O Mais Educação dialoga diretamente com a meta seis do PNE, que trata da educação integral. á está previsto que até o fim da vigência deste PNE (no ano de 2024), o Estado deverá oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender pelo menos 25% dos alunos da educação básica. Mas a jornada ampliada, como já enfatizado, é apenas uma face da educação integral. A professora Jaqueline Moll, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi uma das idealizadoras do Mais Educação, e pontua a importância do tempo contínuo como uma questão de direito. Segundo ela, todos os países desenvolvidos do mundo têm uma educação pública de, no mínimo, seis horas diárias. Mas o mais relevante, em sua opinião, está no âmbito do conteúdo, na necessidade de reinventar a escola e qualificar seus processos. É preciso repensar o tempo, o espaço, o entorno da escola. Não é possível mais resolver o problema da violência levantando mais muros, colocando mais grades nas escolas. Você fica em uma situação em que vai ter que fazer um muro cada vez mais alto e não vai resolver. A solução é exatamente o contrário. É preciso destruir os muros da escola. A escola tem que ser um espaço livre, de livre acesso a todo mundo”, discorre Jaqueline. “A educação integral pressupõe que a cidade, como um todo, é uma grande sala de aula”, acrescenta. Essa é uma ideia que vem em destaque no trabalho intitulado “Caminhos para elaborar uma proposta de educação integral em jornada ampliada”, organi-
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Especial Educação Educação integral
Na escola os estudantes são, simultaneamente, consumidores e produtores de cultura. Do ponto de vista escolar, é impossível separar os dois processos Marcos Cordiolli zado pela professora Jaqueline Moll e publicado em 2011 pela Secretaria de Educação Básica do MEC, já na expectativa da aprovação do Plano Nacional de Educação. Na implantação da educação integral em larga escala no Brasil, portanto, os papéis e a realidade da cidade e do bairro devem ser indissociáveis da sala de aula.
Cultura cidadã Mas para que a escola ultrapasse os limites autocráticos expressos pelos métodos e a disposição de seu espaço físico, o conhecimento, a posse e a vivência dos aspectos culturais do bairro, da cidade, da região e do Estado em que ela se localiza tornam-se imprescindíveis. A cultura é reconhecida como política pública, fomentadora do acesso à cidadania, em que o cidadão é consumidor e produtor. Por isso, em uma nova concepção de escola pública, a participação da comunidade, a jornada ampliada e o ensino integral (e integrado) são aspectos centrais na consolidação de uma educação cidadã. Nela o interesse de conhecer supera a heteronomia e potencializa os caminhos para uma transformação profunda nos sujeitos, que se descobrem capazes de criar e inventar o futuro de modo compartilhado, reconhecendo os saberes do seu lugar e construindo um caminhar promissor e livre das amarras ideológicas do consumismo. “Na escola os estudantes são, simultaneamente, consumidores e produtores de cultura. Do ponto de vista escolar, é impossível separar os dois processos”, diz Marcos Cordiolli, que colaborou diretamente na elaboração do PNE como consultor técnico. O Plano aponta explicitamente que educação e cultura, em particular no ensino básico, vão caminhar juntas”, diz ele, ao ressaltar a importância da jornada ampliada e integral. Cordiolli destaca, ainda, que a extensão da jornada escolar não será apenas de mais conteúdo das disciplinas escolares existentes. Outras atividades focadas nesse público deverão estar presentes, com prioridade para cultura e esporte. O corpo deve ser reconsiderado no processo educativo. Há que se abrir brechas para que a escolaridade incorpore os mitos, os saberes populares, os gestos e manifestações provenientes do território. Contudo, o faça plenamente, refletindo sobre suas vivências. Isso remonta o caráter extensionista dos processos educacionais, trazendo em foco a cultura presentificada nos olhares, nas
emoções, nos entendimentos e posicionamentos historicamente construídos. Sobre o papel preponderante da cultura no plano de educação, Cordiolli aponta que o PNE é composto de dois documentos legais: uma minuta, que é o projeto de lei, e um conjunto de 20 metas e diversas estratégias em anexo. A minuta contém as orientações sobre o que a educação deverá cumprir. Nela, as questões relativas à cultura estão com uma ênfase e dimensão como nunca ocorreu na história educacional do Brasil. E no anexo, em todas as etapas constam metas que determinam explicitamente a necessidade de que a escola seja um espaço de cultura, no sentido de fruição da cultura, de produção cultural e de acesso aos bens culturais. Isto está presente na educação infantil, no ensino fundamental, na educação profissionalizante, na educação de jovens e adultos e também nos programas de alfabetização de adultos”, diz ele. De fato, a amplitude do PNE abarca até mesmo aquelas áreas que costumeiramente são deixadas à deriva em um projeto nacional, como a educação no campo, os E A s Centros de Educação de ovens e Adultos e outras áreas em que a multiculturalidade presente no país deve ser contemplada. “O PNE avançou muito em fortalecer o reconhecimento de que a educação no campo, a educação dos quilombolas e a educação indígena são necessariamente formas de educação multicultural. Isso significa que você tem que ter formação específica para os professores, material didático específico e, mais do que isso, que essas escolas têm que ter autonomia no seu sistema de ensino, que sua gestão tem que ter a participação das respectivas comunidades , afirma Cordiolli. “No caso da educação no campo, o governo federal já trabalha com o reconhecimento de ampla multiculturalidade, como as comunidades de pescadores, de castanheiros, de seringueiros e outras, como está previsto nas diretrizes operacionais que o Conselho Nacional de Educação aprovou, mas é necessário ter políticas específicas sólidas para cada um desses segmentos”.
Nova concepção em educação O modelo defendido por Cordiolli e outros especialistas já teve iniciativas de peso. São experiências em que as práticas e os métodos de ensino foram transformados pela visão de bons educa-
dores e de políticas públicas comprometidas com uma nova concepção de educação (ver quadro). A escola pretendida no PNE retoma essas experiências do passado e se apropria das que estão em curso no presente com o desafio de implantar, agora em larga escala, um sistema de ensino realmente democrático, envolvente e emancipador. Para isso, faz-se necessária a articulação de todo o sistema de ensino, vários ministérios e secretarias trabalhando para o êxito do PNE. Nesse sentido, e já em decorrência do PNE, foi fixado um Acordo de Cooperação, em 2011, entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação , explica Cordiolli. O acordo estabeleceu, em todos os níveis de ensino, ações e programas que fortalecem a educação como processo cultural. Nesse sentido, merece destaque o programa Mais Cultura nas Escolas, que promove o encontro de iniciativas culturais e projetos pedagógicos de escolas públicas, reconhecendo os fazeres culturais dos diferentes territórios. O programa contempla a inserção de conteúdos artísticos, na escola, que abrangem a diversidade cultural na vivência escolar, assim como o acesso a diversas formas das linguagens artísticas. A iniciativa marcou o início da intersecção estratégica entre o Plano Nacional de Cultura (PNC) e o Plano Nacional de Educação (PNE) ao relacionar metas em comum dos dois planos. Cordiolli acredita que o Ministério da Cultura vem provocando uma aproximação entre secretarias municipais de educação e as secretarias municipais de cultura. “O que, seguramente, produzirá bons resultados nas redes municpais de ensino”, destaca. Para o secretário, é perceptível a atuação do MinC em duas situações A primeira delas é mobilizar os artistas e os grupos culturais para que possam atender as escolas adequadamente; e a segunda é mobilizar as instituições culturais, os espaços culturais e os movimentos culturais das cidades para também receberem as escolas”. Educação e Cultura são direitos historicamente conquistados pela sociedade brasileira. Faz-se necessário superar a compreensão de que ter oficinas de linguagens nas escolas é ter cultura na educação. Trata-se de uma falsa dicotomia, uma vez que a cultura remete aos saberes, fazeres, valores, modos de ser e conviver. Há que se acentuar essa proposição, ainda que contra os muros e grades da hegemonia, a fim de reconhecer e valorizar a diversidade cultural brasileira.
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Mais cultura nas escolas
O programa Mais Cultura nas Escolas é uma das ações do governo federal para que a cultura seja integrada fortemente à realidade escolar dos brasileiros, flexibilizando a grade de disciplinas tradicionais e criando um ambiente mais atrativo para os alunos das escolas públicas. Dessa forma, crianças e jovens podem enxergar a escola como algo mais próximo ao seu cotidiano e à realidade da comunidade em que vivem. A multiculturalidade, bem como o sentido regional de cada cultura presente no país, estão presentes tanto no PNE quanto no Mais Cultura nas Escolas. No ano passado, foram selecionados para o Mais Cultura nas Escolas cinco mil projetos de escolas públicas inscritas no Simec (Sistema de Monitoramento e Controle do Ministério da Educação) e cada um recebeu entre R$ 20 mil e R$ 22 mil para sua execução. O programa é uma parceria do MEC e do Minc, podendo articular de forma ideal as novas diretrizes de ensino do PNE nas escolas que já participam do programa Mais Educação. Ele prevê as seguintes ações:
01/
04/
06/
09/
Reconhecer e promover a escola como espaço de circulação e produção da diversidade cultural brasileira.
Promover, fortalecer e consolidar territórios educativos, valorizando o diálogo entre saberes comunitários e escolares, integrando na realidade escolar as potencialidades educativas do território em que a escola está inserida
Ampliar e aprofundar a inserção de repertórios e práticas que contemplem a diversidade artística e cultural brasileira na vivência escolar
Contribuir para a ampliação do número dos agentes sociais responsáveis pela educação no território, envolvendo iniciativas culturais dos territórios nos processos educativos em curso nas escolas
02/ Contribuir com a formação de público para as artes e ampliar o repertório cultural da comunidade escolar
03/ Desenvolver atividades que promovam a interlocução entre experiências culturais e artísticas e o projeto pedagógico de escolas públicas de Educação Integral
05/ Proporcionar encontro entre vivências escolares e manifestações artísticas e culturais fora do contexto escolar
07/ Promover o reconhecimento do processo educativo como construção cultural em constante formação e transformação
08/ Fomentar o comprometimento de professores e estudantes com os saberes culturais locais
10/ Proporcionar aos estudantes vivências artísticas e culturais promovendo a afetividade e a criatividade existentes no processo de ensino e aprendizagem
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Especial Educação Educação como negócio Por Luis Paulo Domingues
Salários e formação dignos Um dos grandes desafios presente nas metas do PNE é garantir bons salários e formação adequada e de qualidade aos professores do ensino público
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ara formar um veterinário exige-se ao menos dez períodos de estudos na faculdade, ou seja, cinco anos. Por que então, para licenciatura ou pedagogia, bastam apenas cinco ou seis períodos? A pergunta é do professor Jamil Cury, professor do departamento de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e ex-presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Ele ainda ressalta que hoje, mais de 80% das licenciaturas estão nas mãos da iniciativa privada e no período noturno. “A formação de professores para o ensino público não renderá frutos se não houver dignificação salarial dos docentes”, diz Cury. “Além disso, é necessário construir um atrativo plano de carreira. Daí a importância de que sejam cumpridas as metas do PNE, essa nossa verdadeira tábua de salvação , reflete o educador. De fato, um dos grandes desafios financeiros do PNE é pagar bons salários aos professores do ensino público e garantir recursos para a formação adequada desses profissionais. Por isso, o Plano tem seis de suas 20 metas visando direta ou indiretamente aos profissionais do ensino público e a formação de especialistas. Os professores estão no cerne dos objetivos do PNE, mas a preocupação com a implantação das medidas em relação ao ensino das crianças
também é vista com extremo zelo. Não por acaso, as três primeiras metas do plano dizem respeito à educação básica - e a primeira delas é específica para a educação infantil. É uma forma de garantir que as novas gerações recebam um bom acréscimo na qualidade de ensino desde cedo e não se percam nos meandros do sucateamento do ensino. No momento em que a sociedade debate o avanço do país nos últimos anos, as dificuldades econômicas e as possibilidades para se alcançar um novo crescimento é imprescindível, independentemente de posturas ideológicas, que as crianças de hoje recebam educação de qualidade desde o início da idade escolar, pois isso irá garantir a formação de uma população mais desperta, consciente e preparada para os avanços almejados para o Brasil a médio e a longo prazo. Porém, a disputa por esse mercado, cuja oferta por parte das redes privadas é cada vez mais subsidiada por recursos públicos, é fundamental garantir o papel e a importância da educação pública, para que não se comprometa a formação das próximas gerações, deixando-a a cargo das grandes corporações e dos interesses do mercado. “Para a aprovação do PNE foi necessário chegarmos a um amplo consenso dentro da sociedade e também na política”, diz Marcos Cordiolli, secretário de Cultura de Curitiba e um dos especialistas que atuou fortemente nos debates sobre
as pautas culturais do PNE. “O PNE é um documento republicano, que exigiu um pacto nacional sobre a educação para ser aprovado, e continua exigindo o mesmo agora, para ser colocado em prática”, diz ele. Apesar do consenso em torno do PNE, Cordiolli alerta que os espectros ideológicos e as lutas políticas continuam em pauta. m exemplo é o financiamento de campanha, que passa por negociação no Congresso e tem seus desdobramentos que incidem sobre a educação pública e o Plano”, diz ele. “Mas de qualquer forma, trata-se do maior plano de educação do mundo e ele tem o mérito de atacar todos os problemas centrais referentes ao ensino público”.
Voltando aos 10% Cordiolli discorre sobre a questão da disputa de poderes relativa aos 10% da educação: os 10% do PIB nacional que, até o décimo ano deste PNE, têm que entrar anualmente nos cofres da educação - são R$ 360 bilhões por ano. “Eu defendo os 10% exclusivamente para o ensino público, mas além da questão política, o cenário hoje é de uma grande defasagem na estrutura pública. Ela não consegue atender a todos”, diz ele. “Portanto, é aceitável que este PNE tenha incluído nos 10% os recursos para os programas (Fies, ProUni e outros), enquanto não há estrutura no setor público.
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O PNE é um documento republicano, que exigiu um pacto nacional sobre a educação para ser aprovado, e continua exigindo o mesmo agora, para ser colocado em prática. Marcos Cordiolli
Pois mesmo não sendo a formação ideal, é melhor do que não ter formação alguma”, garante Cordiolli. “Mas talvez, no plano do próximo decênio, isso já seja corrigido”. O ministério está priorizando a transferência de recursos para cursos nas áreas de ciências da saúde, engenharia e formação de professores, bem como os investimentos destinados às regiões Norte e Nordeste. Além de focar os bons cursos nos programas de transferência de recursos para instituições privadas de ensino, o MEC está punindo as instituições consideradas ruins. Em julho, por exemplo, foram desvinculadas quatro instituições privadas que participavam do Prouni, por não terem conseguido comprovar a quitação de tributos e contribuições federais. A qualificação da formação dos futuros formadores é elemento estratégico para impulsionar o desenvolvimento do país a partir da educação, o que leva ao empoderamento dos sujeitos historicamente alijados dos processos formais de formação, que passam a contribuir no debate. O dinheiro gasto em educação, se bem gasto, sempre traz um grande retorno. De acordo com o relatório de monitoramento global divulgado pela Unesco no ano passado, o investimento em educação de qualidade pode elevar o PIB per capita de um país em até 23% num período de 40 anos.
Educação e igualdade social O Censo Escolar de Educação Básica de 2012, realizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), revelou que a taxa de abandono escolar no ensino médio é de 9,1%. A de reprovação é de 12,2% e a de distorção idade-série, de 31,1%. São médias bastante elevadas e que precisam ser atenuadas, uma vez que os adolescentes representam hoje 11% da população brasileira. Porém, essas taxas incidem de forma muito mais forte sobre as populações mais carentes, e é por isso que o PNE articula-se com diversas áreas da administração pública, além da educação, para garantir o cumprimento de suas metas. Quando se fala em educação de qualidade, fala-se também
da saúde da população, das suas condições materiais, da infraestrutura dos bairros. Tudo isso envolve e influencia o ambiente educacional, os professores, os alunos e todos os outros atores sociais da comunidade, que precisam estar engajados no ensino público de qualidade e acessível a todos, que o PNE almeja construir. O programa Bolsa Família, portanto, visto conjuntamente com o PNE, é tratado pelos especialistas como ponto fundamental para o futuro da educação e o avanço do país. Os resultados dessa cooperação entre os ministérios e suas áreas de atuação já estão aparecendo. Um estudo do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome publicado em 2014 revela que o número de jovens de baixa renda, na faixa dos 19 anos, que deixaram a escola sem concluir o ensino médio, caiu 15 pontos em oito anos - de 55% em 2004, para 40% em 2011. Os números refletem a aplicação das condicionalidades do Bolsa Família, e revelam como a pobreza é um fator determinante da evasão escolar, prejudicando a aprendizagem. Outro resultado positivo apontado pelo estudo (do ponto de vista da diminuição da evasão escolar em consequência da redução da pobreza) é o índice de jovens de baixa renda entre 19 e 24 anos que concluíram o ciclo do ensino básico: aumentou de 11%, em 2001, para 32% em 2012. No ensino fundamental, o percentual de alunos de baixa renda que chegaram até o final dessa etapa subiu de 2 para 58% no mesmo período. Os bons resultados da ação conjunta da Educação com o Bolsa-Família influenciaram também uma faixa da população que está ligada ao benefício indiretamente. Mais de 4 milhões de estudantes de famílias beneficiárias do programa estão matriculados na rede de pública de ensino, em decorrência da própria estrutura do programa e das exigências feitas às famílias. Ao todo, são mais de 17 milhões de estudantes nas escolas públicas, uma média oscilante de 60% do geral, advindos dos 20% mais pobres da população. Outro dado importante é que a frequência escolar no ensino fundamental do segmento mais pobre, que cresceu em mais de 30 pontos, chegando a 96% na média geral nacional em
2013, em constante crescimento desde os anos 1990. Maior crescimento se observou no ensino médio, com alta de 4% para 43% na frequência entre jovens de 15 a 17 anos, desde 1992, com grande aumento nas taxas a partir do primeiro governo Lula. Educação de qualidade é , portanto, uma condição para a diminiuição da pobreza. Em termos orçamentários, portanto, o sucesso do atual PNE depende dos recursos da educação, mas também depende de recursos destinados a outras áreas, como o desenvolvimento social e o combate à fome. Não é possível pensar a educação de qualidade, o futuro do Brasil com ensino público integral e para todos, se não houver uma evolução nos índices sociais nacionais, principalmente onde esses índices são mais precários. Os resultados relacionados à Educação mostram que o caminho é viável, mas que a redução da desigualdade social no Brasil dependerá de ações estrategicamente voltadas para qualificar os serviços ofertados às populações menos favorecidas, e, principalmente, da sempre necessária luta política pela conquista de um modelo educacional mais humano e universalizante no acesso, mas sem abrir mão da diversidade social e cultural do país, ao invés de um modelo mais tecnicista, que trabalha com a lógica da competitividade e não com a da cooperação entre os grupos e as classes sociais. Apesar de todas as disputas que enseja, o PNE é um importante fôlego na luta pela transformação da educação pública brasileira.
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Especial Educação Educação como negócio
Conheça abaixo as metas do PNE vigente : 1 - Educação Infantil
8 - Escolaridade média
15 - Formação de professores
Até 2016, todas as crianças de 4 a 5 anos de idade devem estar matriculadas na pré-escola. A meta estabelece, também, que a oferta de Educação Infantil em creches deve ser ampliada de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até o final da vigência deste PNE.
Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos, de modo a alcançar no mínimo 12 anos de estudo no último ano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade no País e dos 25% mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 ano de vigência do PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação, assegurando que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.
2 - Ensino Fundamental Até o último ano de vigência do PNE, toda a população de 6 a 14 anos deve ser matriculada no Ensino Fundamental de 9 anos, e pelo menos 95% dos alunos devem concluir essa etapa na idade recomendada.
3 - Ensino Médio Até 2016, o atendimento escolar deve ser universalizado para toda a população de 15 a 17 anos. A meta é também elevar, até o final da vigência do PNE, a taxa líquida de matrículas no Ensino Médio para 85%.
4 - Educação Especial/Inclusiva Toda a população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação deve ter acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, de preferência na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados.
5 - Alfabetização Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do Ensino Fundamental. Atualmente, segundo dados de 2012, a porcentagem de crianças do 3º ano do Ensino Fundamental com aprendizagem adequada em leitura é de 44,5%. Em escrita, 30,1% delas estão aptas, e apenas 33,3% têm aprendizagem adequada em matemática.
6 - Educação integral Até o fim da vigência do PNE, oferecer Educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos(as) alunos(as) da Educação Básica.
7 - Aprendizado adequado na idade certa Estimular a qualidade da educação básica em todas etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as médias nacionais para o Ideb.
9 - Alfabetização e alfabetismo de jovens e adultos Elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e, até o final da vigência do PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional.
10 - EJA integrada à Educação Profissional Oferecer, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) das matrículas de educação de jovens e adultos, nos ensinos fundamental e médio, na forma integrada à educação profissional. Os dados de 2012 apontam que apenas 0,7% dos alunos do EJA de Ensino Fundamental têm esta integração. No Ensino Médio, a porcentagem sobe para 2,7%.
11 - Educação Profissional Triplicar as matrículas da Educação Profissional Técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% da expansão no segmento público. Em 2012, houve 1.362.200 matrículas nesta modalidade de ensino. A meta é atingir o número de 4.086.600 de alunos matriculados.
12 - Educação Superior Elevar a taxa bruta de matrícula na Educação Superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% das novas matrículas, no segmento público.
13 - Titulação de professores da Educação Superior Elevar a qualidade da Educação Superior pela ampliação da proporção de mestres e doutores do corpo docente em efetivo exercício no conjunto do sistema de Educação Superior para 75%, sendo, do total, no mínimo, 35% doutores.
14 - Pós-graduação Elevar gradualmente o número de matrículas na pós-graduação stricto sensu, de modo a atingir a titulação anual de 60 mil mestres e 25 mil doutores.
16 - Formação continuada e pós-graduação de professores Formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da Educação Básica, até o último ano de vigência do PNE, e garantir a todos os(as) profissionais da Educação Básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino.
17 - Valorização do professor Valorizar os(as) profissionais do magistério das redes públicas da Educação Básica, a fim de equiparar o rendimento médio dos(as) demais profissionais com escolaridade equivalente, até o final do 6º ano da vigência do PNE.
18 - Plano de carreira docente Assegurar, no prazo de dois anos, a existência de planos de carreira para os(as) profissionais da Educação Básica e Superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira dos(as) profissionais da Educação Básica pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, definido na Constituição Federal.
19 - Gestão democrática Assegurar condições, no prazo de dois anos, para a efetivação da gestão democrática da Educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto.
20 - Financiamento da Educação Ampliar o investimento público em Educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do País no quinto ano de vigência da lei do PNE e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio.
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Especial Educação Entrevista Com Jaqueline Moll
Uma revolução silenciosa A educação integral como agente indutor de um ensino público de qualidade
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aqueline Moll é professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Conselho Estadual de Educação do mesmo estado. Fez seu mestrado em Educação pela PUC-RS e o doutorado, também em Educação, pela UFRGS. Esteve no Ministério da Educação entre 2005 e 2013 e, nos últimos 7 anos, como diretora na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, e na Secretaria de Educação Básica. Coordenou o processo de implementação do programa Mais Educação, estratégia indutora para uma agenda de educação escolar em tempo integral. É autora de vários estudos sobre o tema e, entre seus trabalhos, está a organização, no MEC, de textos desencadeadores do debate nacional: “Texto referência para o debate da educação integral”, “Caminhos para elaborar uma proposta de educação integral em jornada ampliada”, entre outros, além do livro “Caminhos da Educação Integral no Brasil”, que se tornou uma publicação de referência na área. Entre suas ideias mais pontuais sobre a educação pública e integral, Jaqueline defende que o debate da escola de tempo integral é, no seu conteúdo, o debate da escola republicana, de qualidade e universal, tarefa sempre adiada pelo Estado brasileiro e, ainda, que a escola deve ser um espaço articulado a outras políticas sociais e a outros espaços formativos na comunidade e na cidade onde está inserida. Para ela, a escola precisa ser um exercício de viver e não de preparar para a vida”. Do contrário, segundo a educadora, a escola seguirá distante das crianças e jovens, permanecendo um simulacro da vida real, ensinando para verificar se ensinou, em um ciclo de exclusões e de eterna separação do mundo da vida.
EE: Por que a educação integral é o melhor
para o ensino público no Brasil?
JM: Primeiro é preciso dizer que estamos falando de tempo integral, ou seja, de ampliação da jornada escolar, conforme a LDBEN, e de formação humana integral. Não se trata de aumentar o tempo para fazer “mais do mesmo”, mas de repensar, com profundidade, a qualidade do que se faz no cotidiano da escola. Todos os países desenvolvidos oferecem, no mínimo, seis ou sete horas diárias de educação na escola. No Brasil, nos habituamos a uma escola encurtada, inventamos a escola de turnos e nos convencemos de que este é o jeito natural de fazer escola. Quando a escola era para poucos e ricos, em meados dos séculos 19 e 20, ela já foi mais do que integral. Foi praticamente total. Os alunos viviam “internos” nas escolas. Na medida em que o acesso à escola popularizou-se, democratizou-se, a escola foi encurtada no seu tempo para caber mais gente nos mesmos espaços. E, com isso, a amplitude do trabalho escolar também foi diminuída, com ênfase em atividades disciplinares e de memorização. No cotidiano de nossa sociedade vemos como as camadas médias e altas organizam, para seus filhos, uma agenda ampliada, e às vezes exagerada, de atividades que complementam o trabalho da escola. Oferecem atividades esportivas, artísticas, de aprendizado de línguas, de informática, porque sabem que é preciso ir além daquilo que a escola tem tradicionalmente oferecido. Esta situação aprofunda as desigualdades sociais e educacionais, que em nosso país são indecentes, mantendo os filhos das classes populares em um patamar muito inferior em relação ao acesso a bens culturais e saberes. Isto posto, pensar uma escola de tempo integral deve vir junto, com o exercício de pensar uma escola que ofereça a todos um ponto de partida comum e ao mesmo tempo diferenciado, considerando as condições concretas de vida de nossos estudantes. De alguma forma este debate da escola pública e de tempo integral, pouco levado a sério por aqui, nos remete à perspectiva trazida pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, de que temos, todos, o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. E temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza.
EE: Qual é o caminho para termos a educação
integral em larga escala no país?
JM É claro que não adiantaria nada decretarmos a educação integral, a jornada de dia completo e ponto final. A ampliação da jornada deve ser entendida como uma questão de direito dos nossos meninos e meninas, uma questão de “justiça educacional”. Mas não basta esticar a corda do tempo, como dizem alguns especialistas no tema. A escola tem que ser reinventada na organização de seus tempos, de seus espaços e no modo de propor as áreas do conhecimento e os processos de conhecer. Os saberes produzidos nas diferentes áreas precisam ser historicizados, relacionados com o mundo em que vivemos e conectados, na medida do possível, aos temas e dilemas do nosso mundo comum. Conhecer o entorno, o bairro, a comunidade, a cidade, deve ser um exercício permanente da escola, que pode sim ajudar os alunos a pensarem nos problemas e a construírem saídas e alternativas. Saberes conectados com as questões que nos interpelam como sociedade, deve ser um foco im-
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Especial Educação Entrevista
A escola segue apresentando os conteúdos programáticos como se eles não tivessem história, consequência e validez na vida cotidiana. Não se trata de reduzir este valioso debate a uma frase comumente repetida: “Só se ensina o que for útil ou de uso”. É evidente que não!
portante quando pensamos em tempo e formação humana integral. Saberes que se vão produzindo também na vivência de situações significativas, de projetos instigadores do pensamento, de inserções que disponibilizem aos nossos estudantes experienciar espaços consagrados pela nossa cultura como o cinema, o teatro, a música, pela política, pelos esportes, entre outros. Como já disse em outras ocasiões, o gestor que acha que educar é colocar os alunos em frente à lousa e fazê-los copiar, nunca fará educação integral. Portanto, há uma dimensão político-epistemológico-pedagógica que deverá ser objeto de estudos, debates, reflexões sobre o trabalho escolar e que nos levará - diria que já há uma revolução silenciosa em curso - para outro paradigma educacional, rupturador da visão vertical, enciclopédica, propedêutica que ainda prepondera no cenário educacional brasileiro. Mas há que se mencionar os desafios materiais para a construção da escola de tempo integral em larga escala. Entre estes desafios estão os prédios escolares, insuficientes e desqualificados na sua maioria para um projeto educacional que busque a integralidade da formação humana. No ano de 201 , concluímos com o FNDE MEC um projeto-base para pensar escolas para estudantes de ensino médio, com estas premissas. E há outros exemplos na história da educação brasileira vindos, sobretudo, da obra de Anísio eixeira e Darc ibeiro. Os prédios escolares não são apenas prospecções técnicas, pois expressam diferentes visões de conhecimento e de educação. Além disso, não se pode deixar de mencionar a questão dos profissionais da educação. Há um grande desafio para que estejam mais tempo em uma mesma escola e tenham uma carreira condizente com o papel que desempenham. Sobre isso, nunca é demais lembrar que o baixo nível salarial do professorado brasileiro, com variações entre estados e municípios, corresponde, também, ao não-lugar da educação pública entre os grandes debates nacionais.
EE: Mas como isso pode ser trabalhado sem que a escola perca substância nos conteúdos tradicionais, acadêmicos e científicos?
JM: Não se trata de descartar ou querer diluir as disciplinas no currículo escolar. rata-se de compreender que estas disciplinas não nasceram na escola, foram transpostas ao longo da modernidade para o currículo escolar. Portanto, o desafio é pensá-las com os estudantes, desde a história que cada uma encerra e nas relações que existem entre elas e os processos que vivemos no nosso cotidiano. Sem a revolução microeletrônica, que tem sua origem e força nas descobertas matemáticas e de outras áreas, não teríamos todos aparatos tecnológicos, populares, que ganham, cada vez mais força na vida de todos. A escola segue apresentando os conteúdos programáticos como se eles não tivessem história, consequência e validez na vida cotidiana. Não se trata de reduzir este valioso debate a uma frase comumente repetida: Só se ensina o que for útil ou de uso . É evidente que não Cito a poesia, tão importante para a alma humana, cuja utilidade não será sua função primordial. As atividades, hoje entendidas como extracurriculares ou postas no chamado contraturno, devem ser pensadas como pontes de relação com as diferentes áreas de conhecimento. O aluno que está aprendendo a jogar xadrez também está aprendendo a pensar matematicamente e a organizar-se com foco e objetivos, o que seguramente terá importância no processo geral de conhecimento e na organização de sua vida. A escola de tempo e formação humana integral será interpelada por estas reflexões. Para que isso ocorra é necessária uma tomada de consciência, no sentido de revisar profundamente a visão encurtada da educação, que naturalizou a escola de turnos e a lista de conteúdos como centro do processo. Educar as crianças e os jovens vai muito além de repassar conteúdos, embora a escola seja o l ocu s para determinadas aprendizagens. No relatório Delors, apresentado pela nesco para pensar a educação no terceiro milênio, apostava-se no aprender a ser, aprender a conviver, aprender a conhecer e aprender a fazer. A estas premissas gosto de acrescentar o aprender a cuidar , inspirado na obra de eonardo Bo . Evidentemente de que estamos falando de outra educação, que
desfoca seu centro dos processos de avaliação e os considera como resultado das condições e proposições intencionalmente dispostas no cenário escolar. ma educação que pensa a perspectiva da nossa vida em sociedade com seus desafios estruturais acerca da preservação do ambiente natural e da construção do respeito à diversidade humana. Este debate não é só interno das escolas ou das redes de ensino, mas é um debate de toda a sociedade, pois o mod u s op e rand i escolar tem forte repercussão na organização e no futuro das sociedades.
EE: Por que a escola pública brasileira, geralmente, está tão distante dessa realidade que os especialistas defendem? JM: Acredito que temos que aprender com o que já vivemos. Em primeiro lugar, como já mencionei, a escola de turnos, de quatro horas diárias, não é natural, é uma invenção que se desenvolveu ao longo do século 20. Nós já tivemos experiências de sucesso na educação brasileira, experiências que primavam pelo tempo ampliado, como as Escolas Parque Escolas Classe de Anísio eixeira, na Bahia e no Distrito Federal, os inásios Vocacionais de São Paulo, os CIEP s do governador eonel Brizola e de Darc ibeiro, os CE s em São Paulo, que apesar de não terem sido pensados como escolas de tempo integral, possibilitam uma articulação fantástica das escolas para ampliação do tempo formativo. E temos inúmeras experiências positivas em curso, hoje, no país. O Programa Mais Educação, como estratégia indutora desta agenda, já atingiu 0 mil escolas brasileiras, que iniciam processos de aumento significativa da jornada escolar. emos exemplos interessantes de ampliação e redesenho do tempo escolar em inúmeras cidades brasileiras a partir deste programa, que apesar das descontinuidades que vem sofrendo, mantém o animu s . Mas, o senso comum na educação brasileira ainda está no passado, na rígida e compartimentada organização disciplinar, na assepsia dos saberes, na repetição e reprodução como método, no modo autoritário e silenciador, que dilui e silencia os sujeitos, impe-
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Em relação aos professores é preciso ter coragem de reinventar sua formação, que deve ser melhor do que é hoje. A formação propedêutica e distanciada das realidades educativas, que prepondera nos percursos de formação docente, precisa ser superada.
dindo processos reais de construção de conhecimentos significativos. Em relação aos milhares de estudantes que vivem situações de pobreza, o mod u s op e rand i da escola é ainda mais incisivo no sentido de classificar e discriminar, sequer possibilitando perspectivas no horizonte deste jovens. Como se saberes mínimos fossem suficientes para este não-lugar que devem ocupar na sociedade. Nossa alma escravocrata ainda opera. A educação integral, própria da escola republicana, tende a romper com esse pensamento e é uma das estratégias para que a sociedade se transforme e seja possível construir um mundo onde todos caibam. E é por isso, também, que a educação em tempo integral está contemplada na meta do PNE, com suas estratégias, prevendo ainda timidamente que 50 das escolas públicas brasileiras ofereça educação em tempo integral até 2024 para no mínimo 25 dos estudantes da educação básica.
EE: Quais são os maiores desafios para que a escola pública seja integral em todo o país?
JM: O elemento de fundo é a construção da consciência acerca do sentido e das possibilidades de uma escola de dia inteiro e de formação integral - cognitiva, ética, estética, política. A partir desta consciência podem produzir-se novos arranjos, que ajudarão a sustentar novas materialidades para este processo. É preciso que as escolas de turnos de quatro horas sejam fisicamente adaptadas para a perspectiva da jornada ampliada e da educação integral. E isso é mais difícil exatamente onde há maior déficit de qualidade, sobretudo nas periferias das grandes e médias cidades e no campo. Isto implica rever a concepção de espaço físico, pensando as escolas como territórios educativos, com espaços diferenciados e significativos para as artes, os esportes, as ciências ou articular a escola a outros espaços de modo orgânico. É preciso repensar e valorizar a carreira do professor, pois uma escola de qualidade tem que atrair talentos, com bons salários, que façam valer o esforço desses profissionais na construção de uma nova educação. A ampliação do tempo do professor em uma mesma escola coloca-se
como condição importante no sentido do tempo integral. Em relação aos professores é preciso ter coragem de reinventar sua formação, que deve ser melhor do que é hoje. A formação propedêutica e distanciada das realidades educativas, que prepondera nos percursos de formação docente, precisa ser superada. Políticas como o PIBID CAPES MEC , pensadas para a aproximação universidade-escola devem ganhar fôlego e investimentos maiores se levarmos a sério o debate da educação pública no Brasil. Com igual importância, temos a questão dos currículos escolares. Não podemos mais sustentar uma escola conteudista, recheada de testes e provas, que pouco contribui para a formação efetiva dos estudantes, ao longo dos 14 anos da educação básica obrigatória. Fala-se muito da Finlândia, pelo reconhecimento mundial de sua excelência e resultados. Pois bem, na Finlândia cada conteúdo, cada área, têm seu próprio e th os , mas dialoga com as outras áreas, para construir um saber integrado à realidade dos estudantes. Há muita autonomia para a organização da escola e há uma jornada que ultrapassa horas diárias, sem falar na valorização dos professores. O debate dos conteúdos, da chamada base nacional comum, não passará de um mito se efetivamente não modificarmos a base material sobre a qual operam as escolas no seu cotidiano. A homogeneização decorrente de uma visão centrada nas listagens de conteúdos, alimentará um mercado de produção de mais testes e materiais instrucionais para professores e estudantes e não terá a repercussão anunciada nos resultados dos estudantes.
EE: O que atrapalha o caminho para que o Brasil tenha a educação pública integral em todo o território? Há dinheiro para fazer essas transformações? JM: O dinheiro é importante sim, é claro. O PNE avançou muito nisso, nas suas intenções, que esperamos ver transformadas em gestos nos próximos anos. O percentual de 10 do PIB nacional destinado à educação vai, a médio prazo, melhorar a educação pública, desde que seja efe-
tivamente investido nas questões estruturais. E mesmo que tenham entrado na conta dos 10% os recursos para os programas de transferência para instituições privadas, como Fies Financiamento Estudantil , haverá mais recursos para a educação pública. Dentro da realidade política atual, foi o arranjo possível. Como disse Anísio eixeira, quando da aprovação da primeira DBEN, em 1 4 , meia vitória, mas vitória . As maiores barreiras são mesmo a falta de consciência e a sinuosidade das vontades políticas que têm, sistematicamente, descontinuado iniciativas e processos. Precisamos construir a consciência acerca da importância da educação pública para o projeto nacional. Precisamos construir a consciência de que estes temas afetam toda a sociedade e que, portanto, sua defesa e empenho devem envolver a todos. Ao invés de mais cadeias, como alguns estão pedindo, nós precisamos de mais teatros, museus, bibliotecas, quadras esportivas e de mais escolas. Precisamos que a população, principalmente a das áreas marginalizadas e esvaziadas de espaços públicos, tenha a oportunidade de viver em espaços dignos. ue nossas crianças e jovens cresçam com dignidade. Não dá mais para levantarmos muros e colocarmos grades em volta da escola porque o bairro onde ela está é violento, pois isso não resolve nada. O que precisamos é o contrário. emos que quebrar os muros e retirar as grades, pois a escola tem que estar aberta e em diálogo permanente com a comunidade. Paulo Freire dizia que só existe presente se o futuro for transformado. A construção de futuro no Brasil passa por reconstruir a escola pública, tarefa tantas vezes adiada ou interrompida, como decorrência, também, da ausência da premissa de igualdade social. Em outras palavras, cada menino e cada menina deste país, independentemente de berço ou sobrenome, deve ter assegurado o direito de fazer um percurso escolar de qualidade. Para tanto, o tempo diário de escola deverá ser maior e de outra qualidade. Ou enfrentamos isto, ou, mais uma vez, nossa indecisão congênita em relação a escola pública afetará a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
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Cultura e valorização nas escolas Por Luis Paulo Domingues
Antes, quando a gente ia a algum lugar em Campinas, ninguém falava que era do Parque Oziel. Falavam que eram do Jardim do Lago, de outro bairro mais arrumado... Se fosse para entregar currículo, também diziam que era de outro bairro, porque quem recebia ia pensar que a gente ia chegar atrasada, toda suja, que era favelada. Hoje é diferente, a gente fala que é daqui, porque nós acreditamos no nosso potencial. Esse é o ponto principal que a escola traz: acreditar em si mesmo.
Miriam Cristina Lima Moreira aluna da 8º C da Emef Oziel Alves Pereira, em Campinas - SP, comentando o artigo da colega Beatriz Feitosa, no jornal da escola
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Parque Oziel: revolução cultural
A
aluna Miriam Cristina Lima Moreira é um caso de sucesso na Emef Oziel Alves Pereira, em Campinas. Depois da implantação dos programas federais e municipal, que privilegiaram a visão cultural local, suas notas melhoraram em quase todas as disciplinas e ela passou a se envolver de maneira profunda nas atividades escolares. Deixou de ser uma aluna introspectiva na sala de aula e começou a se expressar com confiança e desprendimento. Hoje ela é a representante da mulher negra na escola. De fato, um dos aspectos mais positivos do novo PNE é trazer uma visão maior da cultura, para que ela seja compreendida e aplicada como um elemento chave da educação. A aproximação entre as políticas culturais e as de ensino é uma estratégia de extremo destaque do Plano Nacional de Educação (PNE), concretizada por parcerias estabelecidas entre o MEC e o MinC. A intercessão entre as duas áreas contribui para que as identidades regionais e locais sejam consideradas em sua imprescindível relevância e possam atuar como foco de atração, despertando o interesse e promovendo o envolvimento dos estudantes com o universo escolar. Esse é o escopo principal dos programas Mais Educação e Mais Cultura nas Escolas, dois dos maiores catalisadores do PNE, que estão intimamente comprometidos com a valorização e a transmissão dos bens culturais autênticos de cada localidade, como mecanismos de enriquecimento dos conteúdos oferecidos. A escola torna-se assim um espaço ideal para a circulação e a produção de novos conteúdos, incluindo artes, danças, esportes, tecnologias, manifestações culturais locais e identidade, que devem ser consumidos e produzidos por todos os atores sociais, criando a
oportunidade da construção de um diálogo entre as disciplinas, a realidade de cada um e o mundo. O programa Mais Cultura nas Escolas foi criado com o objetivo de representar um salto qualitativo das atividades artísticas e culturais que já eram desenvolvidas nos Programas Mais Educação desde o ano de 200 e Ensino Médio Inovador (desde 2011) pelo Ministério da Educação. Puderam se inscrever na primeira edição do programa cerca de 34 mil escolas, marcando o início da interação estratégica entre o Plano Nacional de Cultura (PNC) e o Plano Nacional de Educação (PNE). Desse modo, o Mais Cultura nas Escolas promove o encontro de iniciativas culturais e projetos pedagógicos de escolas públicas de todo o Brasil. Assim, reconhece os fazeres culturais dos diferentes territórios, reconhece a escola como espaço de circulação e promoção da diversidade cultural brasileira, oferecendo aos alunos, em contraturno, vivências artísticas e culturais que estimulam a criatividade no processo de ensino e aprendizagem. A meta é fazer da escola e da universidade espaços prioritários de promoção de competências criativas, produção e circulação da cultura brasileira, promovendo a aproximação entre o saber escolar e os saberes comunitários no currículo e na vivência da escola. Muitas iniciativas culturais parceiras já atuavam nas escolas de diferentes formas - algumas vezes como voluntários do Mais Educação. Com o Mais Cultura, puderam receber remuneração especificamente para desenvolver as atividades, além de construir o Plano de Atividade Cultural conjuntamente com a escola, dinamizando o caráter (que antes era complementar) das atividades artísticas e culturais no modelo de educação integral do Mais Educação. Uma dessas escolas que aderiu tanto ao Mais Educação quanto ao Mais Cultura nas Escolas é a Emef Oziel Alves Pereira, de Campinas, retratada nesta reportagem. *
A escola acolhedora Em fevereiro de 1997, uma grande área no município de Campinas foi ocupada por pessoas que não tinham onde morar. O terreno pertencia a particulares que estavam em débito com o fisco e uma empresa almejava o espaço para a construção de um shopping center. Os ocupantes ficaram lá, construíram suas casas, trouxeram suas famílias - ou formaram novas - e hoje existem três
bairros, onde vivem cerca de 30 mil pessoas, naquela que foi considerada uma das maiores ocupações da América atina. Economicamente, socialmente e estruturalmente, os bairros Parque Oziel, Monte Cristo e Gleba B são parecidos com grande parte das localidades periféricas das cidades brasileiras. Há carência de estrutura, muitas ruas sem asfalto, pouca opção de lazer e nenhuma praça. Mas há uma escola. A Emef Oziel Alves Pereira está no alto, situada em uma elevação, bem no coração da comunidade. A escola trabalha interferindo diretamente no dia a dia dos moradores, consegue despertar o interesse dos estudantes, melhorar o desempenho, envolver os familiares dos alunos nas atividades escolares e, por meio de um trabalho de descoberta da cultura, fortalecer a identidade dos que vivem lá. Os problemas do bairro existem, estão aí. E a função da escola é permanente, o tempo todo interferindo na realidade do local , diz Aziz ulio Salles amos, diretor da Emef. O papel da educação é social e isso é fundamental. Não podemos mudar o pensamento das famílias, mas podemos debater com elas, trazê-las para dentro, orientar, incluir na realidade da escola , afirma ele. Aziz ressalta que as atividades culturais, desenvolvidas a partir dos programas federais e do município de Campinas, estimulam a participação de todos dentro da comunidade, de modo que a população local vê a escola como um canal de comunicação, como um espaço que ela deve ocupar, da mesma forma que os alunos são levados a ocupar e a interagir com os espaços do bairro. “O
Em 2013, R$ 100 milhões foram destinados para financiar 5 mil projetos contemplados na primeira fase do programa. Cada um deles receberá, em duas parcelas, valores entre R$ 20 mil e R$ 22 mil, calculados conforme o número de alunos matriculados na escola, que poderão ser gastos também na contratação de serviços culturais necessários às atividades artísticas e pedagógicas. Os recursos serão repassados direto às escolas via PDDE/ FNDE (Programa Dinheiro Direto na Escola/Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). *
* fonte das informações: Ministério da Cultura
Escola municipal de Campinas desperta alunos para a cidadania e a valorização da identidade por meio da descoberta de uma cultura local
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Cultura e valorização nas escolas Quando dizemos que temos 1.500 alunos aqui sustentando esse diálogo, é porque nós temos 1.500 alunos que têm alguma coisa a dizer sobre sua cultura. É porque, efetivamente, eu não me contento em tirar a foto da casa deles e estar com o reboco. Essa é a minha indignação. Então, o que essas crianças podem desencadear, com comprometimento, que poderá transformar essa realidade? Professor Wilson Queiroz Oziel tem uma característica muito própria, que é ser acolhedor. Quando você chega aqui, você se sente parte do Oziel, pertencente à escola”, diz o diretor. “Então, a pergunta que a gente faz aqui é: como você pode ajudar? Como você pode participar dentro das políticas públicas que são debatidas aqui? E isso se transforma em uma ação direta da escola com a comunidade , afirma Aziz. Essa ação direta apontada pelo diretor da Emef acaba envolvendo os membros da comunidade e a escola em quase todos os aspectos importantes para o cotidiano do bairro. “Por exemplo, no ano passado, nós tivemos uma troca de períodos aqui. E aí a comunidade foi chamada para discutir isso em uma assembleia. Nós temos eleições, a Igreja usa a escola, a comunidade usa a escola, todos os sábados têm as atividades do Mais Educação”, enfatiza o diretor. “Então, a escola está sempre aberta para a comunidade e isso reverte positivamente no envolvimento dos pais e de toda a população do bairro. Nós fazemos uma reunião de pais aqui, em dia de semana, e comparecem 400 pais”, destaca. “Comparecem 400 pais que querem ouvir sobre seus filhos, que querem saber sobre seus filhos, que estão preocupados em entender quais são as alternativas que eles têm. E isso acontece porque esta é uma escola inclusiva, para todos, que existe para incluir o aluno e a família dele”, completa.
Do quilombo à ocupação Quem circula pelos corredores da escola do Parque Oziel nota rapidamente a importância dispensada às raízes africanas. Em um bairro majoritariamente habitado por pessoas negras, a questão das origens e do preconceito é tratada de forma especial e emancipadora. A Emef tem dois jornais produzidos pelos alunos, que circulam dentro do prédio e nos três bairros que ficam em volta dele, tratando de temas inerentes à realidade da comunidade, aos problemas e aos pontos de vista dos habitantes. Um dos jornais é especificamente sobre a cultura negra - ou a matriz africana. “Nós percebemos a relevância e o retorno desses projetos quando os pais vêm até nós perguntando por que a nova edição do jornal não chegou na casa deles , comenta o diretor Aziz. Isso é
muito positivo, porque se fosse uma publicação para debater só com o aluno, não adiantaria. Tem que ser com toda a comunidade , afirma. E de fato, a comunidade respondeu positivamente quando se viu retratada, com sua cultura e realidade, nos jornais da escola. As duas publicações têm larga penetração entre os moradores, pois trazem matérias assinadas pelos alunos que moram lá, que são conhecidos de todos no bairro, abordando assuntos que dizem respeito à vida deles. Discute-se muito a criação do currículo oficial, mas nós aqui precisamos de um currículo que oficialize as pessoas como cidadãs, que autorize as pessoas a serem cidadãs, o que é um direito delas”, diz o professor de matemática Wilson Queiroz, responsável pelo Informafricativo, o jornal que trata da cultura africana e das africanidades na escola. “E aqui a realidade é esta. Não dá para a gente discutir todo o processo desta escola sem entender o que foi o navio negreiro. Eles precisam saber por que hoje a gente ocupa e no passado a gente fazia quilombo”, enfatiza o professor. O grande diferencial da Emef de Campinas é ter um projeto que considera o histórico local anterior à escola. Essas referências são incorporadas em um processo que fortalece a comunidade. Segundo o professor Wilson, “o Mais Cultura é a qualificação desse processo, ampliando o entendimento de uma realidade histórica. Existe uma relação da escola com a comunidade que não é dita, mas é sentida, e é por isso que esta escola consegue mobilizar 400 pais em uma reunião e outras não”, diz Wilson. O professor também enfatiza o progresso desse modelo pedagógico na garantia da lei: “Nós temos a Lei Federal 10.639, de 2003, tornando obrigatório o ensino da história da África. Para a nossa relação com a comunidade isso é fundamental, dá muita força para o campo das relações raciais. Pois, até 2003, as escolas faziam isso por hobby, mas com a lei, o Mais Cultura e o Mais Educação, podemos ter uma escola que não seja personalista, que seja de responsabilidade de todos e que de fato seja universal”, detalha ele, destacando ainda a importância do conteúdo Agora é possível trazer para a escola a população que o país nunca quis. Mas não é trazer o aluno copista, é para trazer toda a cultura dessa população ”.
A comunidade mapeando o bairro O trabalho de descoberta e conscientização desenvolvido na Emef Oziel Pereira Alves tem um importante foco na cultura negra e nas africanidades, mas as leituras possíveis diante da comunidade local são ainda mais amplas. Reconhecendo as manifestações culturais e as identidades específicas do Parque Oziel, os programas Mais Educação e Mais Cultura nas Escolas promoveram a incorporação do que já existia atuando com êxito no bairro. Um bom exemplo disso é o Instituto Baobá de Cultura e Arte, uma instituição parceira da escola, que bem antes da criação desses programas já trabalhava voluntariamente com diversas questões culturais inerentes àquela comunidade. Promove cursos de capoeira, valoriza a identidade dos moradores e possui uma sede em Campinas, reconhecida como um ponto de cultura e memória do município. “Sendo um bairro que nasceu de uma ocupação, nós temos um histórico de nordestinos e de pessoas que vieram de muitas outras regiões longínquas do país , afirma Alessandra ama, que trabalha no Instituto Baobá e é coordenadora do programa Mais Cultura nas Escolas na Emef do Parque Oziel. “Essas raízes também precisam ser valorizadas. Quando começamos a falar de música com eles, eram mais tímidos os alunos que citavam o forró, o baião e outros estilos que são de lá e não estão muito presentes na grande mídia aqui na nossa região”, conta ela. “Então, fomos debater a comida inserida no aspecto cultural. Perguntávamos que tipo de comida se faz na casa dos alunos e o pessoal foi se soltando. Um relata que a avó faz cuscuz, o outro que a mãe sabe fazer baião de dois e assim a cultura nordestina está muito presente aqui na comunidade. É preciso que eles reconheçam essa presença , discorre Alessandra. Um dos trabalhos que eles estão desenvolvendo nesse sentido é o mapeamento das referências culturais do bairro. Os alunos são levados a percorrer as ruas, ressaltando a presença da escola na comunidade, para fotografar, reconhecer e debater sobre o local. “Esse é um projeto que envolve os estudantes, os pais, os funcionários e toda a nossa comunidade. En-
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Este é um projeto e um processo de brasilidade, de entender a educação não como escolarização, mas sim como um processo civilizatório, de relações cotidianas. Um processo que considera o histórico anterior da escola e do bairro. Professor Luiz Carlos Cappellano Professor de história e coordenador dos programas Mais Educação e Mais Cultura nas Escolas
volve também os lugares que existem aqui, as ruas, a arquitetura das casas, as expressões, as histórias. Em um primeiro momento fizemos debates, exibimos vídeos sobre patrimônio e fomos a campo registrar. Conseguimos pinçar tudo. No segundo momento nós vamos apresentar para a sociedade , explica Alessandra. A coordenadora também enfatiza as dificuldades e as descobertas que surgiram nesse processo de debater a identidade local: “Foi muito interessante quando estávamos mostrando imagens de comunidades reconhecidas no Brasil para explicar o que é patrimônio para eles. Então, mostramos imagens do Rio de Janeiro, de Ouro Preto, de diversos lugares que são reconhecidamente patrimônios culturais do país, e no meio delas começou a aparecer o Parque Oziel , afirma. O pessoal reagiu com espanto, dizendo ‘mas isso é aqui no bairro ; e então pudemos explicar a eles que há um patrimônio aqui também, que deve ser reconhecido e preservado. Por que qualquer outra região pode ser considerada patrimônio e a nossa comunidade não , argumenta Alessandra. Ela explica ainda que o tema patrimônio cultural é o eixo temático principal para que o conteúdo seja debatido. “O Mais Cultura nas Escolas, nesse caso, permitiu que pudéssemos trabalhar as perspectivas da oralidade, da matriz africana, da educação patrimonial, que é o eixo disparador dentro do projeto , diz ela. Pois até recentemente, considerávamos patrimônio apenas aquilo que era construído, que era físico, mas agora nós temos políticas públicas que colocam o imaterial também como patrimônio, que reconhece os saberes locais, as tradições, as manifestações, até a comida - ou a receita delas”, ressalta Alessandra. A amarração cultural, social e histórica que essa postura pedagógica traz para bairros como o Parque Oziel é de grande retorno, pois provoca novas descobertas, trazendo uma realidade que possui muito mais afinidade e identidade com quem frequenta a escola. David Souza osa, por exemplo, é professor de capoeira na Emef do Parque Oziel, trabalhando também no Instituto Baobá. Mas sua contribuição para aquela comunidade é mais antiga que a própria existência da Emef. Muitas dessas ações culturais já existiam antes dos programas federais serem criados”,
declara Rosa. “Eu mesmo tenho um histórico aqui no Parque Oziel, pois meu avô morava no bairro. Eu costumava trazer cesta básica para ele e era difícil até de subir aqui, de entrar com o carro, tinha que parar na rodovia. Nós começamos a desenvolver as atividades de maneira voluntária e depois os programas dos governos, federal e municipal, incorporaram o trabalho oficialmente no currículo , diz ele. Hoje, as coisas melhoraram, a gente vê um outro bairro, principalmente na escola”.
A escola fora da escola Uma das preocupações do trabalho cultural na Emef Oziel Alves Pereira é dar oportunidade para os alunos de conhecer e ocupar espaços. E isso considerando o bairro, a cidade de Campinas e, quando possível, outros municípios. A articulação dos programas federais com os de Campinas leva frequentemente os alunos para atividades fora da escola. Assim, os estudantes participaram este ano de eventos importantes na cidade, como o Seminário Fala Outra Escola, na nicamp, onde debateram o tema das africanidades. ambém visitaram a Sanasa - empresa que trata a água e abastece a cidade -, foram ao Teatro Castro Mendes assistir ao concerto da Orquestra Sinfônica de Campinas - no projeto dos concertos didáticos realizados pela orquestra - e os formandos de 2014 fizeram um passeio à Fazenda Solar das Andorinhas. Nesta propriedade tiveram momentos de lazer e de aprendizado histórico, por tratar-se de um lugar que mantém preservadas as edificações antigas da fazenda de café que funcionou no local desde o século 18. O êxito que nós conseguimos aqui no Oziel não é um fato isolado, é o resultado de uma política de rede que nós temos aqui em Campinas”, diz Luiz Carlos Cappellano, professor de história e coordenador dos programas Mais Educação e Mais Cultura nas Escolas em Campinas. Se você for ao São Cristóvão, que é outro bairro com a mesma conformação do Parque Oziel, vai encontrar uma comunidade tão atuante quanto esta. Dessa forma, tanto os projetos do município quanto a grande contribuição dos programas federais são imprescindíveis para que possamos dar esse salto de qualidade na educação”, ressalta ele.
O coordenador ainda destaca as possibilidades que os programas federais e municipais de resgate das culturas locais (e regionais) trazem para as comunidades que mais precisam. “Os programas dão uma grande abertura para a escola, pois afinal nós conseguimos sair do campo das ideias e concretizar ações efetivas , explica Cappellano. “Podemos, agora, dentro das possibilidades, criar um projeto e pagar por ele. Temos condições de pagar um professor para fazer isso acontecer, em uma relação com a cultura que antes dependia muito de trabalhos voluntários. Podemos levar os alunos para fazer uma visita em algum lugar importante da cidade, temos possibilidade de fazê-los descobrir um pouco mais os espaços e a cidade em que vivem”.
PME em Campinas A secretária municipal de Educação de Campinas, Solange Pelicer, ressalta o papel do trabalho desenvolvido pelo município no processo que dinamizou as atividades na Emef do Parque Oziel e em outras escolas da cidade. A nossa preocupação é oferecer qualidade aos alunos, pois queremos uma escola que realmente seja para todos , explica ela. Aqui mesmo no Oziel, nós temos a educação inclusiva, com 28 alunos com necessidades especiais, que estão respondendo às ações dos programas com um desempenho excelente. A educação alimentar que nós oferecemos é levada a sério, pois começa na horta, passa pelo consumo e vai até a destinação correta dos resíduos”, discorre a secretária. Solange também destaca a importância do diálogo entre os programas e governos. A adequação de nosso PME (Plano Municipal de Educação) ao PNE federal foi muito debatida”, conta a secretária. “Nós paramos a rede municipal por dois dias inteiros para debater o PME. O resultado foi que o plano nacional tem 20 metas e o nosso plano municipal de Campinas tem 22, pois incorporamos os objetivos federais e ainda avançamos um pouco mais. A meta 22, por exemplo, diz respeito às relações étnicas e raciais , afirma Solange. Mas além da questão da identidade e cultura africanas, nós consideramos os ciganos também, pois essa é uma comunidade muito presente em nossa cidade.”
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Cultura e valorização nas escolas
Depoimento da aluna Em meio a uma conversa sobre os refugiados do Haiti e sobre os imigrantes que chegam da África para trabalhar no Brasil, Miriam Cristina Lima Moreira, do oitavo ano, fala também de sua própria vida e do ambiente do bairro onde mora, o Parque Oziel.
Professores e alunos em frente à escola Oziel, em Campinas
I Love Maranhão
Jornalzinho Oziel
Texto de Tamiris R. Silva, funcionária da Emef Oziel Pereira Alves, publicado no jornal Informafricativo em julho de 2015.
Além do Informafricativo, os alunos, funcionários e toda a comunidade do Parque Oziel também participam do Jornalzinho Oziel. É uma publicação trimestral, organizada pelas professoras Luciana Batalha e Margarete Morgante. A publicação trata basicamente do dia a dia da escola e das atividades desenvolvidas dentro e fora do prédio escolar. “Eu trabalho aqui no Oziel há seis anos e vejo com muita satisfação as atividades do Mais Educação e do Mais Cultura nas Escolas sendo desenvolvidas e acrescentando tanto no cotidiano dos alunos”, diz a professora Luciana. “Nós percebemos o envolvimento dos alunos e da comunidade nas atividades dos programas do governo”, afirma Margarete. As educadoras explicam que o prédio atual foi construído pelo governo estadual, mas é uma escola municipal, atuando também como EJA (Escola de Jovens e Adultos). “As atividades no contraturno oferecidas pelos programas do governo transformaram a escola e envolveram a comunidade”, diz Luciana.
Olá!! Eu sou Tamiris, tenho 23 anos e sou maranhense com muito orgulho. Ser maranhense para mim é ter várias raças em um só ser. É adaptar-se a qualquer situação. É ser acolhedora, guerreira e principalmente ter muita humildade no coração! É ter muita fé, que tudo sempre vai dar certo. Eu, Tamiris, me sinto tão cabocla, cafuza, negra, branca e até mesmo índia. Sou praticamente uma camaleoa. Porque ser maranhense é se sentir diversificada. Me orgulho da cultura do meu Estado. Ainda lembro do meu tempo de adolescente em que brincava no bumbameu-boi, nas quadrilhas no Cacuriá. Possuímos uma das maiores variações culturais do Brasil, com atrações encontradas somente lá. Eu não poderia ser de outra parte do mundo! Se tivesse a oportunidade de nascer milhares de vezes, gostaria de nascer maranhense em todas elas!
“Quando o diretor Aziz chegou aqui na escola, ele colocou regras e fez as regras serem seguidas. O Aziz conversa com todo mundo, você pode vê-lo sempre nos corredores falando com os alunos, na porta da escola com os pais e até na rua. O diretor fez a gente entender que tem que conversar para tudo. Antes, os alunos viviam brigando, tratando mal um ao outro e hoje é tudo na conversa. Você não vê um gritando com o outro mais, como antes. Agora, até os pais vêm aqui na maior calmaria para conversar alguma coisa. Antes, vinham aqui dando barraco, mas agora todo mundo conversa para resolver tudo. Aprendi muito sobre as africanidades, porque sou negra e sofria preconceito, mas agora eu resolvo tudo isso também conversando. Eu não gostava da escola, por mim eu nem vinha. Agora eu gosto porque tem um motivo para eu vir. Estou interessada no resultado das minhas atividades, as minhas notas melhoraram, de história, português, matemática e ciências. Agora, a gente tem o Mais Educação, tem capoeira. No final de semana passado eu aprendi a fazer tererê. Isso chama a atenção da gente, não é toda escola que tem! Quando paramos para pensar, lembramos dos jornais da escola. Este jornal não é feito pela escola, a escola apenas publica, o texto é dos alunos, se os alunos não fazem, o jornal não sai. Então, aprendo a ter responsabilidade e a me interessar pelas coisas, pelas pessoas. Por exemplo, o professor Wilson, ele dava aula para mim antes, mas agora não, porque estou no oitavo ano. Mas, não é só porque eu não tenho mais aula com o Wilson que eu não tenho mais esse laço de africanidade com ele. E de responsabilidade também. Quando fui na Unicamp e sentei na mesa de debates sobre africanidades, me perguntaram o que a gente está buscando na escola, para onde estamos indo, e eu respondi que estamos indo para um futuro melhor. Nós ficamos muito felizes de ter participado dos seminários na Unicamp. Foi tão bom, que já fomos convidados para falar sobre isso na Unip (Universidade Paulista) e na Unisa (Universidade de Santo Amaro), em São Paulo. Prontamente, aceitamos o convite.”
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Especial Educação Artigo
Por Marcos Cordiolli
Por uma política pública para a Cultura na Educação Escolar A
educação é formação humana, é produtora de sentido, de valores e de conhecimentos, de gostos estéticos e de desenvolvimento cognitivo. Por isso, a escola é e sempre será uma das principais influências na formação de identidades das novas gerações. A cultura é por excelência o instrumento que qualifica os sentidos, os valores, as condutas, os gostos, as cognições, os conhecimentos da vida, da sociedade e da natureza. É constituinte de tecidos sociais e atua para a consolidação da democracia, do republicanismo e da diversidade. Portanto, a cultura é a dimensão central e estratégica da educação. Assim, não poderia haver dúvida, por minúscula que seja, sobre a importância da cultura na educação escolar. Ou mesmo sobre o caráter de grande influência da cultura sobre os processos educacionais. A formação cultural dos estudantes cabe ressaltar, dar-se-á proporcionalmente ao repertório cultural dos educadores, que em sua maioria são oriundos de segmentos sociais com reduzido acesso aos bens culturais. A formação do repertório cultural destes educadores é a condição necessária para a qualidade da educação e deve estar na centralidade das políticas públicas. Os produtores e gestores de espaços culturais do país poderiam, por exemplo, estabelecer cotas para os educadores ao modo de um vale-cultura. Hoje, em Curitiba, os profissionais municipais da educação já são beneficiados com esta cota, que lhes garante participação na grande maioria das ações culturais promovidas pela Fundação Cultural de Curitiba. Em 24 meses, mais de 150 mil ingressos foram distribuídos. Ações de formação cultural para educadores também devem ser organizadas em todas as linguagens artísticas em suas variadas perspectivas estéticas. A vivência artística é instrumento de grande potencial formativo, como nos mostra, por exemplo, a experiência da Cinemateca de Curitiba, onde grupos de educadores definem a temática de filmes de ficção, escrevem o roteiro; organizam as filmagens, escolhem atores, figurinos e cenários; captam as imagens e montam o filme. A imersão real na linguagem do cinema resulta em filmes de qualidade que poderiam frequentar, com competividade, qualquer festival de iniciantes.
Os projetos pedagógicos das escolas, por outro lado, poderiam prever e estimular a formação de grupos culturais autônomos de educadores, tais como: pontos de leitura, cineclubes, círculos literários e de pintura e grupos de teatro e dança. É recomendável que as ações que oferecem acesso aos bens culturais, enquanto processos formativos, repercutam em crescimento nos planos de carreira destes docentes. O acesso dos estudantes à produção artística também deve ser alvo de política pública, tanto no que se refere ao espaço escolar quanto nos espaços e equipamentos da cultura. A implantação plena dos Sistemas Municipais de Cultura é ação estratégica também para a educação, pois garantirá, ao menos, um museu, um centro de documentação e um espaço de exposições e espetáculos em todos os municípios. Projetos como o Programa Mais Cultura nas escolas do MEC e MinC, pensados justamente para ampliar o acesso e democratizar a cultura, precisam ser fortalecidos e fixados. O acesso dos educadores e estudantes à cultura é caminho de mão dupla: produtores, artistas e movimentos culturais serão parceiros da escola e a educação estará formando público e plateia, ampliando a visibilidade da produção artística e fortalecendo a cadeia produtiva da economia da cultura, geradora de trabalho e renda. A aproximação das escolas com os territórios culturais de seus entornos é mais uma dimensão da ação cultura-escola. A Cultura Viva é geralmente invisível aos olhos daqueles que dominam os meios culturais, mesmo nas pequenas cidades. Dar voz e cidadania cultural para as muitas culturas do nosso país é constituir identidades sólidas e consolidar memórias. As escolas são o principal instrumento para atingir este objetivo e precisam interagir com as culturas do entorno, tanto através de sua inclusão nos programas escolares, como atuando na organização destas culturas em articulação com os movimentos culturais e os pontos de cultura. Os Pontos de Cultura, que são a novidade recente e genial de organização cultural no Brasil, ainda estão pouco articulados com as escolas. A Base Curricular Comum Nacional em elaboração pelo MEC precisará garantir mais espaço e mudar o foco da aprendizagem das artes nos cur-
rículos escolares, bem como garantir a vivência da arte na escola. Hoje, de forma majoritária, os estudantes estão limitados a conteúdos da história das artes. Estes saberes, embora importantes, não podem ser hegemônicos nos currículos escolares. O nosso desafio é o de não mais reduzir a arte na escola ao papel de instrumento didático. Infelizmente, pesquisas mostram que canções são veiculadas quase que apenas para subsidiar o ensino da língua portuguesa e filmes, várias vezes mutilados por cortes abruptos, para não extrapolar os tempos das disciplinas, são reduzidos a instrumentos didáticos que contextualizam aulas de história ou de ciências. Canções, romances e filmes devem fluir no espaço escolar, sem coerção, formando o repertório cultural de base para que os estudantes tenham acesso àquilo que não está disponível nas mídias hegemônicas. A tarefa que gostaríamos de ver realizada pela escola é a de propiciar o acesso à diversidade dos bens culturais, a fim de contribuir significativamente na formação humana, estética e cognitiva de seus alunos, ampliando assim a suas possibilidades de escolha. Enfim, a educação e a cultura são meios efetivos para a plenitude da vida. Ou não. Depende fundamentalmente da escolha das políticas públicas.
Marcos Cordiolli é Secretário de Cultura de Curitiba. Mestre em educação pela PUC-SP. Foi consultor da relatoria do PNE no Congresso Nacional. Publicou “Currículo Escolar: teorias e práticas” e “Sistemas de Ensino e Políticas Educacionais no Brasil”.
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