EGITO Os enigmas da revolução árabe
CUBA Reforma ameaça o socialismo?
EDUCAÇÃO MST conquista formação superior
ano XIV nº 167 / 2011 R$ 9,90
Tom Entrevista
ZÉ
“Não faço música,
faço rebeldia” SIDERÚRGICA
TORTURA
Aliança com a direita impede avanço dos
direitos humanos
intoxica moradores do Rio de Janeiro
CASO BATTISTI
Injustiça à brasileira Exclusivo
RUDÁ RICCI
“O lulismo odeia a participação popular”
ANA MIRANDA CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ IGOR OJEDA JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO OTÁVIO NAGOYA PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO
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CAROS AMIGOS ANO XIV 167 FEVEREIRO 2011 EGITO Os enigmas da revolução árabe
CUBA Reforma ameaça o socialismo?
EDUCAÇÃO MST conquista formação superior
ano XIV nº 167 / 2011 R$ 9,90
Tom Entrevista
Foto de capa PAULO PEREIRA
ZÉ
“Não faço música,
faço rebeldia” SIDERÚRGICA
TORTURA
Aliança com a direita impede avanço dos
direitos humanos
intoxica moradores do Rio de Janeiro
CASO BATTISTI
Injustiça à brasileira Exclusivo
RUDÁ RICCI
“O lulismo odeia a participação popular”
ANA MIRANDA CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ IGOR OJEDA JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO OTÁVIO NAGOYA PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO
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EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO
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Sob as marcas do tropicalismo e do lulismo Fizemos uma entrevista inesquecível com Tom Zé. Aos 74 anos de idade, ele estava agitado, animado, eloquente e brincalhão. Sempre apoiado pela companheira Neusa, “a intelectual da casa”, o músico, compositor, cantor e multiartista deu um verdadeiro show – de três horas – para a equipe de Caros Amigos. Na edição, por limitação de espaço, tivemos de reduzir uma parte da conversa, mas, claro, o material publicado é riquíssimo, profundo e didático. Desde Irará, no interior da Bahia, até os palcos de São Paulo, Tom Zé consegue a proeza de manter um diálogo constante com a juventude. Na entrevista ele explica por que. Oferecemos aos leitores outra excelente entrevista com o cientista social Rudá Ricci, professor da PUC Minas, e considerado um dos mais brilhantes analistas da conjuntura nacional. Além de esmiuçar o modelo de gestão adotado pelo “lulismo”, marcado pela modernização conservadora, o processo de cooptação e institucionalização dos movimentos sociais e os sonhos de consumo dos pobres e das classes médias, ele prevê a volta de Lula, em 2014, “nos braços do povo”. A mudança de governo recolocou na ordem do dia várias questões que o governo anterior deixou em banho-maria ou empurrou com a barriga, entre as quais a criação da Comissão da Verdade encarregada de apurar os crimes do Estado durante a ditadura civilmilitar (1964-1985). Ouvimos a nova ministra Maria do Rosário e as entidades de parentes de vítimas e de defesa dos direitos humanos, sobre o impasse criado pelos setores de direita. O assunto, com certeza, ainda vai provocar muitos debates calientes – mesmo porque o Brasil é o único país do Cone Sul que não tem avançado no esclarecimento das mortes de presos políticos. Apresentamos ainda boas reportagens sobre o caso Battisti, o levante popular no Egito e em outros países árabes, o esforço do MST para colocar os jovens camponeses na universidade, a siderúrgica que está prejudicando a saúde de moradores do Rio de Janeiro e as mudanças econômicas no socialismo de Cuba. Além disso, como sempre, os leitores podem curtir as análises e as opiniões da equipe de colaboradores da revista. Vá em frente!
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Guto Lacaz. José Arbex Jr. analisa o estrago das chuvas e a violência do Estado brasileiro. Caros Leitores. Pedro Alexandre Sanches fala de Dona Ivone Lara e a raiz brasileira do samba. Marcos Bagno critica os gurus midiáticos das abobrinhas corporativas. Mc Leonardo aponta as falhas nas campanhas contra o consumo de drogas.
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Frei Betto faz tradução livre de Lorca para destacar a importância dos livros. Ana Miranda sai em defesa dos mandatos de Janete e João Capiberibe.
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Joel Rufino dos Santos lembra a luta de Dona Natureza contra Carlos Lacerda. Guilherme Scalzilli debate WikiLeaks e a força mobilizadora da Internet.
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João Pedro Stedile responsabiliza o agronegócio pelo aumento dos alimentos. Entrevista com Tom Zé: “Não faço música, faço rebeldia” Glauco Mattoso em Porca Miséria: alegorias do Carnaval e do Congresso. Eduardo Matarazzo Suplicy faz oba oba do discurso de Barack Obama.
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Débora Prado debate o processo contra o “eterno fugitivo” Cesare Battisti. Cesar Cardoso desce o cacete nos enredos financiados das escolas de samba. Ensaio Fotográfico de Igor Ojeda e Tatiana Merlino: o bucólico em Cuba. Entrevista com Rudá Ricci: “O lulismo odeia a participação popular”. Otávio Nagoya relata que trabalhadores rurais conquistam a universidade. Lúcia Rodrigues: aliança com a direita impede o avanço dos direitos humanos. Tatiana Merlino denuncia os crimes ambientais de siderúrgica no Rio de Janeiro. José Arbex Jr. mostra que a “revolução árabe” aponta novas tragédias. Lúcia Rodrigues: reformas econômicas ameaçam socialismo em Cuba. Fidel Castro relembra alguns aspectos da história de Cuba (Parte 1). Emir Sader debate a alternativa da esfera pública diante do estado privatizado.
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Gershon Knispel analisa a traição dos social-democratas em Israel. Sérgio Vaz faz a louvação do que existe de mais quente na cidade de São Paulo. Gilberto Felisberto Vasconcellos fala do desenvolvimentismo sem emprego.
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Renato Pompeu indica livros que tratam da redescoberta do Brasil. Claudius * Por motivos técnicos, a seção Tacape não entrou nesta edição, mas voltará na próxima.
EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares DIAGRAMADOR: Ricardo Palamartchuk EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues, Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau e Otávio Nagoya CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu SÍTIO: Débora Prado de Oliveira e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO
CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 167, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP
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Associação Brasileira de Empresas e setembro 2009 caros amigos Empreendedores da Comunicação
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José Arbex Jr.
Chuva de
VAMPIROS A real catástrofe na região serrana do
Rio de Janeiro é apenas a contrapartida do falso triunfo militar do “combate ao narcotráfico” nos morros cariocas, vastamente celebrado, no final do ano, pela mídia e pelos governos fluminense e federal. Ambos, a catástrofe real e o falso triunfo, têm como denominador comum o absoluto e total desprezo do Estado brasileiro para com as populações de trabalhadores miseráveis, jogados como entulho e carne podre às condições mais aviltantes que o ser (ainda) humano pode suportar. Mas não se trata, aqui, de fazer uma condenação moral das elites responsáveis pela violência sistemática e pelas sucessivas tragédias que se abatem sobre a imensa maioria da população brasileira. Não basta desqualificar moralmente a Rede Globo e a vasta cadeia midiática que, cinicamente, descrevem a tragédia como um resultado “natural” das chuvas excessivas, assim como antes enalteceram o uso puro da força bruta como meio supostamente eficaz de erradicar o narcotráfico. Os barões da mídia não promovem a mistificação por serem “malvados” – talvez até sejam, mas não é o que importa -, mas por obedecerem a uma lógica que, há 500 anos, assegura uma tremenda acumulação de capital e a perpetuidade do controle do poder pelas elites. A lógica é simples: o Estado brasileiro funciona como um aparelho privado nas mãos de um grupo que controla e monopoliza o capital e o poder político, em detrimento absoluto dos interesses da imensa maioria da nação. Certo, OK: em traços bem gerais o mesmo poderia ser dito de qualquer Estado burguês. Mas, generalidades dessa amplitude não servem para nada, a não ser ocultar os fatos. Não há como comparar as condições de dominação do capital no Brasil com as que vigoram em outros países onde, por força de grandes acontecimentos históricos, os trabalhadores conseguiram consolidar importantes conquistas sociais (a começar da reforma agrária, passando pela universalização dos direitos elementares até a semana de 35 horas). Historicamente, as elites brasileiras, sempre subordinadas ao capital transnacional, utilizaram a máquina de guerra do Estado contra a nação, como
condição de acumulação de suas imensas fortunas. Um índice “puro”, matemático e inequívoco disso é a mundialmente conhecida e vergonhosa desigualdade social que impera no país. A pobreza subsiste e aumenta, não por falta de crescimento, como argumentam os cínicos economistas clássicos, agora secundados pelos novos gerentes lulistas do capital. Ao contrário. Estatísticas do IGBE mostram que entre 1900 e 2000, o PIB brasileiro foi multiplicado por 110, ao passo que a população foi multiplicada por 11. Seria apenas razoável supor que, em 2000, cada brasileiro estivesse bem melhor de vida (mesmo que não dez vezes mais rico, como sugere a aritmética) do que se vivesse em 1900, escassos 12 anos após a suposta abolição. Nada disso. A fome, as condições subumanas, a miséria e a falta de perspectiva persistem, ao passo que a riqueza dos mais ricos aumenta. É um equívoco completo, desse ponto de vista, afirmar que o Estado brasileiro “não tem políticas públicas para combater as enchentes”. Tem sim. São aquelas cujo resultado contemplamos todo começo de ano, invariavelmente, na forma de grandes espetáculos de sofrimento e angústia. Da mesma forma, tem sim uma política pública para a saúde: é a que condena os setores mais miseráveis a agonizar e a eventualmente morrer nas filas do SUS. Tem também uma política para a educação pública: é a que mantém a imensa maioria da população num estado de analfabetismo funcional. E tem, igualmente, uma política de segurança pública: é aquela que multiplica mandados coletivos de busca (um expediente de natureza fascista) nas favelas e bairros miseráveis, que trata como crime a mobilização dos movimentos sociais, que convive com ou mantém alguns dos mais altos índices de matança extrajudicial do planeta (cerca de 50 mil mortes por ano). São políticas de Estado, e não a sua ausência. Não há “bolsa família” – as migalhas que sobram após a farta remuneração do capital - que resolva a questão da natureza terrorista do Estado brasileiro. Trata-se de um terrorismo que se alastra, contamina e penetra de forma insidiosa até no universo dos hábitos e costumes, tornando “naturais” práticas que
em qualquer país mais ou menos civilizado causariam horror. Basta mencionar dois fatos: A extrema violência da guerra civil irlandesa, sempre e justamente lembrada com horror e consternação na Europa, causou 3 mil mortes em 30 anos; no Brasil, esse mesmo número morre de forma violenta em... três semanas. Ninguém mais se assusta nem se espanta com isso. Outro fato: na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos, é proibida, ou, pelo menos, extremamente controlada a publicidade de produtos infantis na TV, por uma série de razões, das quais duas são centrais. A criança não distingue bem a realidade da fantasia, e por isso, ao desejar um produto qualquer, demanda sua compra dos pais, sem levar em consideração as condições materiais da família, assim criando uma situação de chantagem emocional, frustração e angústia no lar. Além disso, a publicidade de produtos infantis tende a tratar a criança como um “adulto em miniatura”, o que, invariavelmente, produz a erotização precoce de seu mundo. No Brasil, não apenas esse tipo de publicidade não é controlada, como programas supostamente “infantis” estimulam a pedofilia em escala industrial. Isso tudo só acontece porque, historicamente, a extrema violência do Estado brasileiro logrou impedir o processo de construção e consolidação de partidos, organizações e movimentos sociais representativos dos trabalhadores e dos setores populares. Em geral, seus integrantes foram massacrados (como em Palmares e Canudos) ou cooptados (como agora acontece, em particular, mas, não só com os setores lulistas do PT e da CUT, sem desmerecer os demais militantes que ainda resistem no seu interior). E precisamente porque essa relação perversa entre Estado e nação permanece intocada é que nos próximos meses e anos novos desastres “naturais” ocorrerão, assim como novas matanças, novas mortes nas filas do SUS e novas cenas de barbárie alimentarão o circo de horrores de cada dia. A tragédia na região serrana é o retrato verdadeiro e sem retoques dos vampiros que monopolizam o poder no Brasil. José Arbex Jr. é jornalista. fevereiro 2011
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Caros LEITORES
MINHAS 'RATAS' Na honrosa entrevista que a cara (e barata, pela qualidade) Caros Amigos 166 me proporcionou, confirmei que a palavra dita, com o auxílio precioso de gestos e expressão facial, é diferente da palavra escrita, que precisa ser bem exata para possibilitar compreensão. Daí que me sinto obrigado a clarear alguns pontos que ficaram confusos, ao meu ler, na minha própria entrevista, por deficiência deste entrevistado na comunicação aos excelentes indagadores: 1) Um dos livros mais marcantes para minha formação política, que li ainda adolescente, presente de minha madrinha Magdala Ribeiro da Costa (irmã do urbanista Lúcio Costa), foi Socialismo Vivo. Seu autor, antigo dirigente do Partido Socialista Francês, é Jules Moch; 2) No Rio, nos anos 70 e 80 do século passado, pastorais populares da Igreja Católica não prosperaram muito, pelo caráter conservador e inibidor da alta hierarquia, mas na Baixada Fluminense, sob a liderança de D. Adriano Hipólito e de D.Mauro Moreli, como no Sul do estado, com D. Waldyr Calheiros, os movimentos inspirados pela Teologia da Libertação tiveram mais espaço; 3) A história brasileira comprova que, na República, todos os movimentos sociais transformadores com consistência e capacidade de interferência na realidade tiveram algum tipo de interlocução com a institucionalidade - não foram, nesse sentido, inteiramente alternativos e rupturistas; 4) Minha trajetória nesta institucionalidade, depois da maravilhosa ‘escola’ questionadora dos movimentos juvenis e comunitários, se deu através de duas eleições para a vereança no Rio, uma para a Assembléia Legislativa e três para a Câmara dos Deputados, além de duas disputas para a prefeitura carioca, estas sem êxito eleitoral; 5) Sair do PT para ingressar no PSB, no PV, no PDT ou no PC do B seria ‘trocar seis por meia dúzia’, na avaliação dos que fomos em 2005 ajudar na construção do PSOL, um par-
tido necessário, ainda pequeno mas com vocação de grandeza; 6) A frase de Delúbio Soares, quando eu era membro do Diretório Nacional do PT, onde ele exercia a função de tesoureiro, face à minha insistência para que inaugurássemos prestação de contas de campanha em tempo real, foi: “transparência demais é burrice!”; 7) Naquilo que chamei de “trilha sonora de minha vida”, a dolorosa saída do PT poderia ser emoldurada por versos de uma belíssima canção de Edu Lobo e Chico Buarque, composta para a peça ‘O Corsário do Rei’, do saudoso Augusto Boal: “Meu navio carregado de ideais/ que foram escorrendo feito grãos/ as estrelas que não voltam nunca mais/ e um oceano pra lavar as mãos”; 8) Para nós, do PSOL, a luta na elaboração do novo Plano Nacional de Educação é para que o setor - estratégico para o país justo que queremos construir - receba 10% do PIB, por uma educação pública, democrática e de qualidade, em todos os níveis. Chico Alencar, deputado federal (PSOL/RJ) e professor de História.
OPORTUNA Inicialmente, parabenizo a Caros Amigos por continuar sendo um dos raríssimos veículos de comunicação desse País comprometido com a verdade e com o respeito ao leitor. Aproveito para “dizer” ao Marcos Bagno que achei muito oportuna e bastante interessante a sua última coluna sobre “Ornaldo Rancor, cineastra”. Rilke Novato – Belo Horizonte – MG.
OUTRO LADO Olá Tatiana! Sou estudante de jornalismo e mando este e-mail para te parabenizar pela matéria Guerra aos pobres, da edição de dezembro da revista. Achei uma matéria muito boa e completa, e realmente dando o outro lado da notícia. Foi a minha matéria preferida da edição. Beijos e sucesso. Mariana C. Soares - Jornalismo ECA-USP.
MIDIÁTICO A pretexto de combater o crime organizado, o midiático governador do Rio de Janeiro armou um verdadeiro circo, cuja plateia foi todo o povo brasileiro. Atropelando os mais elementares princípios do direito, desrespeitou-se, naquela ação policial militar de ocupação das favelas Cruzeiro e Complexo do Alemão, a população pobre daqueles sítios, praticando-se inúmeras arbitrariedades. É pena que uma publicação do tipo Caros Amigos, ainda tenha um pequeno número de leitores. Da minha parte tenho me empenhado em tornar esse veículo de informação e formação o mais conhecido possível. Gilvan Rocha – Centro de Atividades e Estudos Políticos - www.gilvanrocha.blogspot.com
GAL COSTA Confesso que não tenho hábito de ler com frequência a revista Caros Amigos. Interesseime pela matéria relacionada ao aborto etc. Mas, logo de inicio, deparei-me com a abordagem feliz do jornalista Pedro Alexandre Sanches - “O nome dela é minoria”, sobre a cantora Gal Costa. Como ele sintetizou bem toda trajetória referente à época em que foram lançados os Cds, agora em uma caixa, TOTAL. Tinha 14 anos em 1967, e sei o impacto que gerou na época no Brasil, não apenas uma cantora de timbre raro e belíssimo (várias vozes em uma só), basta ouvir com atenção e constatar, de imensa extensão vocal. Não tive dúvida que ali nascia a “Maior cantora do Brasil”. No mais, o Pedro Sanches disse tudo, como vivenciasse tudo comigo. Como ela é uma mulher corajosa e, às vêzes, arrisca até demais, é provida de acertos e erros. Óbvio que tem coisa que gosto e outras, não - afinal, ninguém é perfeito. Cristóvam Madureira.
CORREÇÃO Na edição 166, na página 45, Oscar Boronat, autor do livro Quatro Caminhos, é consultor de empresas.
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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches
Samba de Rainha “Quando a voz do poeta calou/ a natureza chorou forte/ e o seu pranto, batendo no chão,/ parecia acompanhar a derradeira melodia/ que ainda pairava pelo ar/ era o samba a vibrar com pureza e magia.” Os versos acima, de Derradeira Melodia, foram escritos em 1972 por uma das duplas mais eloquentes da história do samba, Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho. Referiam-se a Silas de Oliveira, autor de sambas antológicos como Aquarela Brasileira, Heróis da Liberdade, Apoteose ao Samba e Meu Drama (Senhora Tentação), que havia acabado de morrer. Bodas de Coral no Samba Brasileiro representa a primeira reunião das vozes interligadas de Dona Ivone (hoje com 89 anos) e Delcio (71) num álbum só, recheado de composições históricas da dupla, como Sonho Meu, Acreditar, Candeeiro da Vovó, Alvorecer, Sorriso de Criança... A voz de Dona Ivone, já desgastada, é utilizada com parcimônia, entre convidados do naipe de Alcione, Wilson das Neves e Mart’nália. Cabe a Delcio portar a mensagem de uma das quatro composições inéditas do CD, O Tempo Passou: “E o tempo passou/ e a gente só sentiu/ quando a flor da manhã secou/ bem depois que a ilusão fugiu/ e depressa demais levou nossa alegria”. Adiante, a letra se queixa do que havia na música brasileira de outrora e hoje já não há: “Sambas novos e antigos/ encantando a multidão/ choros e canções/ enchendo o ar de emoção”. Pode ser que não existam mais, mas a retórica nostálgica de Delcio e Dona Ivone ali presente é a mesma de nove entre dez dos bambas de sua época, produtora do samba que “agoniza, mas não morre” de Nelson Sargento, dos “tempos idos” de Cartola ou do “tire seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor” de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. O poeta que acabou de morrer e o gênero musical sempre à beira da extinção consti-
tuem, ao longo de nossa história, um poderoso artifício de marketing, que rende belezas musicais e linhas poéticas pungentes, mas refletem, também, um modo negativo e pessimista de encarar o mundo (e o próprio samba). “Tá legal, eu aceito o argumento/ mas não me altere o samba tanto assim”, sinalizava Paulinho da Viola em Argumento, em 1975, referindo-se provavelmente às sucessivas e ininterruptas ondas de “modernização” do samba, que no passado haviam rendido a sofisticação elitista da bossa nova e do samba-jazz e, nos anos 70, suscitavam experiências diversas como o samba eletrificado dos Novos Baianos, o “samba joia” popularzão de Benito di Paula e dos Originais do Samba, o samba-soul de Jorge Ben e Tim Maia, o samba-rock de Ben, Bebeto e Luis Vagner... Como bem sabem os bambas, o samba agoniza, não morre e, mais que qualquer coisa, nunca para quieto no lugar. Hoje, como no passado, Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho têm de conviver com o samba-rock bastardo de Bebeto, que ressurge renovado em Prazer, Eu Sou Bebeto. Esse artista peculiar fez uma história de intenso sucesso entre os anos 70 e 80 calcando-se nas sonoridades de samba, soul, blues e rock desenvolvidas pelo mestre híbrido Jorge Ben. No retorno, Bebeto não deixa de beber na fonte, extravasando carinho maior que nunca. Tudo Bem (Big Ben) é explícito e perspicaz, embora ligeiramente nostálgico (como convém aos mitos do samba, seja o “puro” ou os “impuros”): “Fui pra terra da rainha/ e conheci o outro lado/ onde tudo funciona/ a grana soluciona até medo de atentado/ (...) mas tudo bem/ ah, tudo bem/ eles não têm Jorge Ben/ o deles é big, o nosso é Jorge/ mas tá tudo bem/ estamos bem”. A brincadeira inocente fixa alvo na dicotomia brasileiro/estrangeiro, mas pega fundo ao refletir sobre o próprio rótulo nacional/internacional no qual Bebeto e outros artistas se viram aprisionados – o samba-rock. Outro exemplo é o mineiro Marku Ribas, outro egresso dos 70 que está de
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volta, com o CD Loas. Loas segue nessa loa samba-roqueira, mas o jazz é valor particularmente inestimável para o Marku maduro. A suposta “impureza” dos sambas de Bebeto e Marku colaborou para deixá-los à margem num imaginário dominado pela tradição carioca e pela retórica (de marginalidade) daquele estilo sempre moribundo e indefeso frente aos ataques à sua nobreza. O que costuma ficar desdito em relação ao samba-rock e a outros tributários não-cariocas é que artistas brasileiros mestiços tendem a produzir música mestiça, seja o samba-reggae da Bahia, a música italiana-japonesa-norte-americana do paulistano (do Brás) Bebeto ou o samba tingido pelos quilombos, congadas e minas de ouro da terra do mineiro (de Pirapora) Marku. O relógio dá tantas voltas que em 2011 as bodas perto de centenárias de Dona Ivone podem conviver com o som “de raiz” do grupo Samba de Rainha, 100% feminino. À primeira vista, Contrariando a Regra, o terceiro disco do septeto se assemelha a mais uma animada viagem de meninas paulistas brancas de classe média à moda do samba. Mas, como de hábito, a realidade é mais complexa, e divertida. A mestiçagem também está impressa no código genético do Samba de Rainha e permite a elas recorrer simultanteamente ao samba capixaba de Sérgio Sampaio (no clássico Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua), compor um samba-rock (Que Mal Que Tem?) e apresentar composições “de raiz” próprias de várias das integrantes. O que se retoma, aqui, é a tradição nobre (e sofrida) das sambistas-autoras, que remonta a Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra e.... Dona Ivone Lara. Nessa vertigem, a mais antiga composição da matriarca e de Delcio Carvalho penetra nos sulcos do tempo e se comunica quase sobrenaturalmente com o ontem, o hoje e o amanhã. “O sambista tombou/ causando tanta emoção/ mas sua arte há de ficar de pé/ dentro do nosso coração”, conclui a letra triste de Derradeira Melodia. “Não me amarra, não,/ que eu não gosto de amarração”, respondem as sete mulheres de 2011, como se encarnassem elas próprias o samba – ou melhor, A samba.
ilustração: murilo silva
A “raiz” brasileira, de Dona Ivone Lara ao
Pedro Alexandre Sanches é jornalista. fevereiro 2011
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falar brasileiro Marcos Bagno
Mc Leonardo
O poder das
drogas
ABOBRINHAS CORPORATIVAS
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Trilogia: Terceira e última parte
velou o entrevistado da semana. O gostoso é que as entrevistas ficam todas disponíveis na página da emissora na internet, o que nos dá a chance de fazer uma boa pesquisa linguística sobre como disfarçar abobrinhas debaixo de uma camada de anglicismos. Aliás, essas abobrinhas corporativas cheiram mesmo a coisa de americano. É de lá que vem esse discurso que despreza o histórico, o social e o político para se amparar numa psicologia barata em que tudo se resolve no plano do indivíduo. Nossos especialistas nativos falam de carreira, currículo, sucesso etc., mas nunca tocam em questões como as desigualdades raciais no nosso país, o machismo perseverante no mercado de trabalho, onde as mulheres continuam ganhando menos que os homens para exercer a mesma função, a homofobia impregnada no ambiente de trabalho, onde, para sobreviver um homossexual, tem que mascarar sua sexualidade e fingir que é hétero, o preconceito contra indivíduos provindos de regiões supostamente mais atrasadas, como o Nordeste e principalmente o Nordeste... Enfim, todos os conflitos sociais e ideológicos que caracterizam a ética trabalhista brasileira. Infelizmente, só nos resta agora seguir a errata: onde antes se lia Lair Ribeiro, leia-se agora... Conselheiro Acácio! Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br
As informações dadas nas poucas campanhas que se tem contra o consumo de drogas se tornaram ineficazes, pois além de dizer que droga é uma coisa ruim (o que não é verdade, se fosse assim não haveria tanta gente se drogando) elas dizem que um homem de boa aparência irá se aproximar de você e lhe oferecer uma droga. Se você aceitar, irá se viciar rapidamente e vai ter que roubar tudo o que você vê pela frente para poder comprar mais droga. Informação errada. A maioria das pessoas tem o primeiro contato com a droga perto de suas casa, com o seu melhor amigo, ou em muitos dos casos dentro de casa com um parente. Sabendo que esse método de viciar pessoas, do qual as campanhas falam não é verdade, o jovem recém chegado ao ambiente e a oportunidade do consumo, não irá acreditar na colocação de que a droga é ruim e vai embarcar nela. Esse papo de que você vai se desesperar para obter mais droga assim que usar, também não é verdade. Muita gente usa droga e outras são usadas por ela, é preciso informar de maneira clara. Se todas as pessoas do mundo que usam algum tipo de droga decidirem juntas não ir trabalhar, o mundo vai chegar perto da sua primeira greve geral mundial. Portanto, devemos derrubar o mito de quem usa droga não produz. Enquanto não se tem um debate internacional (pelo menos na América Latina) visando um novo tratamento para a compra e o consumo de drogas, temos que criminalizar certas riquezas para se combater os verdadeiros traficantes e começarmos a debater internamente pelos quatro cantos do nosso país o custo social da proibição e criminalização das drogas. Temos que ter campanhas mais sérias sobre o assunto e uma educação escolar que se comprometa com a verdade quando for falar com os jovens sobre o assunto. Finalizo com um slogan de campanha assim: DIGA NÃO ÀS DROGAS, SE FOR POSSÍVEL! SE NÃO FOR, EXIJA DO GOVERNO UM NOVO TRATAMENTO! Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.
Ilustração: debora borba
Que coisa impressionante! Basta alguém aparecer pontificando sobre qualquer coisa na rede de televisão mais poderosa do país para, imediatamente, se tornar o maior especialista do Brasil naquele assunto. E para brilhar em todos os meios de comunicação: no rádio, nos jornais, nas revistas, na internet... E, é claro, para publicar livros e DVDs que logo se tornam sucessos de venda e dar palestras a preços hollywoodianos. A bola da vez agora é de um senhor com nome alemão e sotaque inidentificável que profere as maiores platitudes do universo como se fossem o suprassumo da sabedoria humana. Suas análises, com perdão da palavra, proferidas com muita pompa e circunstância e um vibrar de “errrrres” muito pouco brasileiro, traduzem o que há de mais rasteiro e óbvio no campo da psicologia, uma disciplina que, ela também, muitas vezes se esmera na explicitação do senso comum disfarçado de “ciência”. Não é preciso buscar muito. É só abrir qualquer texto do nosso máximo especialista e ler um trecho, escolhido de olho fechado. Tipo assim: “[inveja] é o reconhecimento de que não dá para ser como o outro é. Isso tanto pode resultar em uma admiração quanto em um opressivo sentimento de que a outra pessoa não merece o que tem, o que é inveja. A partir dessa constatação, o invejoso pode guardar para si o que sente, uma atitude que só faz com que a inveja vá aumentando, ou tentar denegrir o que o invejado faz.” Pelas barbas de Freud, como foi que eu vivi até hoje sem saber disso? Mas ele não está só, embora brilhe acima dos demais por ter a bênção da mídia todopoderosa. Todo sábado pela manhã, na mesma estação de rádio onde o cineastra Jaburu verbaliza sua santa ira direitista, é possível ouvir um programa em que o entrevistador é sempre o mesmo — aquele que tem o nome do inseto que transmite a doença-de-chagas — e onde, a cada vez, um “especialista” dessa suposta área de conhecimento vaticina, prognostica, assevera, afiança e cauciona as mais saborosas tautologias. Todos falam de liderança e governança, são chamados de headhunter e coaching e cospem diamantes e esmeraldas como “assumir riscos é fundamental para crescer na carreira” ou “em muitas circunstâncias da vida, errar ensina”, como recaros amigos fevereiro 2011
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Ana Miranda
Frei Betto
MEIO PÃO e um livro
Perseguição aos
(Tradução Livre)
Quando alguém vai ao teatro, a um concerto ou a uma festa, se lhe
Capiberibe
Janete Capiberibe criou nossa primeira lei de proteção
PS: Minha homenagem à nova ministra da Cultura, Ana de Hollanda, e ao novo presidente da Biblioteca Nacional, Galeno Amorim.
e uso da biodiversidade, lutou por escola para todas as crianças de até três anos, pela legalização da profissão de parteira, pela construção de creches no Amapá, pelo manejo florestal sustentável do açaí, pela federalização de crimes contra os direitos humanos; estimulou a criação de fábricas para beneficiamento de mel silvestre, de pequenas indústrias de farinha, racionalizou a colheita de palmito de açaí, apoiou mulheres que passaram a explorar produtos da floresta, defendeu interesses de índios, pescadores, seringueiros, castanheiros, lutou por seu acesso a riquezas antes exploradas por companhias estrangeiras... João Capiberibe combateu projetos predadores e modernizou a gestão do Amapá; descentralizou o dinheiro, que passou a ir diretamente para a comunidade a ser beneficiada, criou um programa em que todos os gastos eram publicados via internet, em dados simplificados para que o contribuinte pudesse acompanhar o uso do dinheiro público; criou a lei Capiberibe que obriga todos os governos a divulgar pela internet seus orçamentos, como forma de evitar o mau uso do dinheiro público... O casal Capiberibe teve seu mandato cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral, após o Ministério Público do Amapá haver recusado, por falta de provas, denúncia contra o senador e sua esposa, deputada. Mandatos cassados por um processo fundamentado no testemunho de duas moças, de que uma correligionária teria comprado seus votos na eleição de 2002, por 26 reais. Nos anos em que Capiberibe foi afastado do Governo, o Amapá viu-se tomado pela corrupção. Operação Pororoca, com a prisão do prefeito de Macapá e de Santana e secretários de Estado; Operação Antídoto que levou secretários de Estado à prisão; Operação Mãos Limpas, presos o governador e um secretário de Estado, e tantos outros. Em 2010 Janete foi eleita novamente deputada federal, pela segunda vez a mais votada. E João, senador. Embora tenha cumprido seu mandato, Janete está sendo enquadrada na Lei da Ficha Limpa. E João, com o mandato proclamado pelo TRE do Amapá, teve sua candidatura excluída pelo Tribunal Superior. É a terceira vez que o casal tem seus direitos políticos cassados, a primeira nos tempos do regime militar. Participam de uma luta, escreveu o advogado Dalmo Dallari, em que se confrontam “o Brasil dos oligarcas, donos do patrimônio público e da lei, e, de outro lado, o Brasil novo, do respeito às instituições, às leis e ao patrimônio público, o Brasil do respeito pela dignidade humana e da busca da justiça social”. Vamos ver quem vencerá.
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
Ana Miranda é escritora.
agrada, lamenta que as pessoas de quem gosta não estejam ali. “Como minha irmã, meu pai iriam apreciar”, pensa, e desfruta tomado por leve melancolia. Esta é a melancolia que sinto, não pela minha família, e sim por todas as criaturas que, por falta de meios e por desgraça, não gozam do supremo bem da beleza, que é a vida com bondade, serenidade e paixão. Por isso nunca tenho livro, pois presenteio todos os que compro, que são muitíssimos, e portanto estou aqui honrado e contente por inaugurar esta biblioteca do povo, a primeira na região de Granada. Não só de pão vive o homem. Eu, se tivesse fome e estivesse abandonado na rua, não pediria um pão, pediria meio pão e um livro. Critico violentamente os que falam apenas de reivindicações econômicas, sem jamais ressaltar as culturais, que os povos pedem aos gritos. Ótimo que todos os homens comam; melhor que todos tenham saber. Que gozem todos os frutos do espírito humano, porque o contrário é serem transformados em máquinas a serviço do Estado, convertidos em escravos de uma terrível organização social. Lamento muito mais por um homem que deseja saber e não pode, do que por um faminto. Este aplaca a fome com um pedaço de pão ou algumas frutas. Mas um homem que tem ânsia de saber e não possui os meios, sofre uma profunda agonia, porque são livros, livros, muitos livros, de que necessita. E onde estão esses livros? Livros! Livros! Palavra mágica que equivale a dizer: “amor, amor”, e que os povos deviam pedir como pedem pão ou anseiam por chuva após semearem. Quando Dostoiévski, pai da revolução russa muito mais que Lenin, se encontrava prisioneiro na Sibéria, isolado do mundo, retido entre quatro paredes e cercado de desoladas extensões de neve infinita, em carta à sua família pedia que o socorressem: “Enviem-me livros, livros, muitos livros, para que minha alma não morra!” Tinha frio e não pedia fogo; sede e não pedia água; pedia livros, ou seja, horizontes, escadas para subir ao ápice do espírito e do coração. Porque a agonia física, biológica, natural de um corpo faminto, provocada pela fome, sede ou frio, dura pouco, muito pouco, mas a da alma insatisfeita dura toda a vida. Disse o grande Menéndez Pidal, um dos sábios mais autênticos da Europa, que o lema da República deveria ser: “Cultura”. Porque só através dela é possível solucionar as dificuldades que hoje enfrenta o povo cheio de fé, mas carente de luz. Palavras de Federico García Lorca ao inaugurar a biblioteca de Fuente de Vaqueros (Granada), em setembro de 1931.
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caros amigos
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amigos de papel Joel Rufino dos Santos
WikiLeaks e os
O castigo de Natureza
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mitos da democracia A notoriedade
ton Trevisan. Natureza (teria marido, netos, primas, vizinhas?) era antilacerdista por uma razão diferente da nossa, talvez mais consistente. Para nós, ele construíra o Aterro por interesse mercantil; para Natureza, o ser humano mau, que era Lacerda, violara a natureza – e o povo pagaria o custo da sua maldade em perigosas ressacas. Essas lembranças me vieram com as catástrofes de verão no Sudeste. Natureza, se fosse viva, andaria por aí denunciando autoridades e povo por desrespeito às leis elementares do mundo. Uma “velha maluca”. Eu gostaria de concordar com ela, mas tenho dificuldade. Ainda acho que governantes são capazes de grandes obras para valorizar suas propriedades – embora não acredite mais, como na juventude, que foi o caso de Lacerda e o Parque do Flamengo. Ou foi? Minha dificuldade é com as leis da natureza. Penso que a primeira delas é suportar os seres humanos, o que modifica todas as demais. Não há ela sem nós. A rigor, penso mesmo que natureza é um mito, minha saudosa Natureza. Joel Rufino é historiador e escritor.
conquistada pelo WikiLeaks teve inúmeros efeitos positivos, louvados à exaustão. Também conhecemos os questionamentos de seus adversários, alguns bem espinhosos e insolúveis, como os que debatem a necessidade de proteger dados governamentais estratégicos. Passado o furor das polêmicas iniciais, porém, é necessário apontar alguns equívocos menos evidentes de ambas as facções. As informações divulgadas trouxeram pouca novidade àquilo que o leitor atento de jornais já sabia há décadas. Mesmo a infame perseguição a Julian Assange é típica do regime político em vigor nos EUA, que sempre combateu antagonistas com os instrumentos usados pelas chamadas ditaduras contra seus dissidentes. Assange, indefeso como qualquer cidadão comum, jamais escaparia das armadilhas jurídicas, econômicas e jornalísticas que esmagam quem ousa confrontar o “sistema”. Apesar do discurso iconoclasta, ele precisou recorrer à mídia corporativa para legitimar-se e salvar a própria pele. Governos e empresas atingidos superaram o breve embaraço e voltaram às atividades obscuras de praxe. Assange serviu para elevar a audiência e aprimorar a blindagem de seus inimigos, e depois foi descartado. Pagou um preço demasiado apenas para confirmar que não existe liberdade de imprensa ou direito à informação no mundo real do poder, que esses princípios ocos alimentam fantasias convenientes à natureza totalitária da farsa democrática. A ilusória força mobilizadora da internet ameniza nossa amedrontada submissão às engrenagens que não podemos (e talvez não queiramos) destruir. É enganosamente confortável denunciar injustiças e violências no ambiente inofensivo da virtualidade. O ativismo eletrônico, ainda que necessário, não basta para operar mudanças efetivas no cotidiano das populações. E pode também levar a inúteis sacrifícios pessoais.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com
Ilustração: hke...
Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi um dos maiores adversários – para não dizer inimigo – que a esquerda brasileira já teve. Oriundo do PCB, mudou, radicalmente, de lado em 1939. A mudança terá sido, sem psicologismo, libertação do pai comunista que o batizou como Carlos Frederico, em memória de Marx e Engels. De 39 até o golpe de 64 – como deputado, dono de jornal e governador da antiga Guanabara – Lacerda não nos deu sossego. Era fascinante, agressivo, sem escrúpulos. Como principal mentor do golpe, esperava se eleger presidente, os militares não consentiram. Quando morreu, em 1977, pairou a mesma suspeita de assassinato que acompanha as mortes de Jango e Juscelino (com quem formara uma Frente Ampla). Hoje, costumam louvá-lo como administrador, esquecendo o político. Entre seus feitos, está o Parque do Flamengo, que se percorre vindo do aeroporto Santos-Dumont para a zona sul. Era ali a enseada em que São Sebastião, pujante sobre uma canoa, afundara centenas de igaras tupinambás. Essa intervenção do santo exterminou a “cidade” Urussumirim, sobre cuja ruína se edificou o Rio atual. O milagre acontecera há quatrocentos anos e, Lacerda, que nada tinha a ver com isso, aterrou o Flamengo para desfazer um nó do trânsito. Construiu pistas de rolamento, um jardim de Burle Marx, campos de pelada etc. Foi talvez a sua maior obra. Acontece que Lacerda tinha um apartamento de frente para o Aterro, nome popular do belo Parque. Denunciamos então que Lacerda o mandara construir para valorizar esse apartamento. Líderes estudantis berravam essa besteira em comício, eu, felizmente, só o caluniei a meia voz, em particular. A direita dizia também coisas muito feias e absurdas de nós, mas pouparei os leitores. O novo Flamengo ganhou uma praia artificial, avançando em direção ao mar. Por alguns anos aconteceu o inevitável: as águas tentaram retomar o espaço perdido. Os jornais noticiavam o espetáculo fascinante e aterrador das ondas furiosas. - É castigo da mãe natureza – dizia uma “velha maluca”. – Qualquer dia acaba com o Rio. Ganhou o apelido de Dona Natureza, duvido que alguém lhe soubesse o nome e a história. Parecia personagem de Dickens ou Dal-
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João Pedro Stedile
O AUMENTO DOS PREÇOS Fato 1. Os preços dos alimentos subiram em média 13% nos últimos doze meses. Alguns produtos chegaram a 30%. E todos sentimos a diferença, na caixa do supermercado e nas feiras. Essa foi a principal causa da volta da inflação atingindo 6% ao ano, e sendo superior ao aumento do salário mínimo que os parlamentares queriam dar. Portanto, esse custo está atingindo diretamente toda população na compra dos alimentos e indiretamente pelos índices inflacionários, que reajustam aluguéis, mensalidades, etc... Fato 2. Os porta-vozes de agências governamentais e dos setores do agronegócio publicaram, entusiasmados, que a produção agrícola no Brasil segue crescendo, e que na última safra atingimos a marca de 130 milhões de toneladas de grãos. Fato 3. A pauta de exportações do Brasil voltou a ser parecida com a década de 1960. Cinco produtos, apenas, matérias primas minerais e agrícolas (minério de ferro, petróleo bruto, soja, açúcar-etanol e carnes) representam a metade de todo valor das exportações. Voltamos a ser um país agroexportador, esse é o papel na divisão internacional da produção que o capitalismo nos impõe. Pergunta 1. As regras que regiam o capitalismo comercial determinavam que sempre que houvesse aumento da produção e da produtividade do trabalho (menos tempo de trabalho para maior produção) os preços das mercadorias cairiam. Maior oferta de um mesmo produto, para o mesmo número de consumidores, o preço cairia naturalmente, até que a produção se adequasse a demanda, explicavam os economistas. Então, por que aumentam a produção de produtos agrícolas, mas os preços não caem? Resposta 1. Porque atualmente o capitalis-
mo está organizado na sua fase imperialista, hegemonizado pelo capital financeiro e por grandes empresas transnacionais que controlam o mercado a nível mundial. Controlar o mercado significa controlar a produção - oferta de mercadorias - controlar os compradores e controlar os preços. Portanto, os preços não são mais fixados apenas pelo custo médio de produção das mercadorias, mas pelo controle oligopolizado dessas grandes empresas. Por exemplo, aqui no Brasil as 50 maiores empresas que atuam com mercadorias agrícolas controlam 80% de todo mercado. Resposta 2. A agricultura brasileira está sendo dominada pelos interesses da divisão internacional do trabalho, que destinou para nosso território a produção prioritária de soja, açúcar, etanol e carnes in natura (vendemos frango, carne bovina e suína, praticamente sem nenhum processo de industrialização). Cerca de 80% de todas as terras de lavoura no Brasil são ocupadas por esses três produtos: soja, cana e pecuária (e o milho para alimentar as aves e suínos). Ou seja, a sociedade brasileira paga um alto custo de disponibilidade de seu território para atender aos interesses do capital estrangeiro. E por isso o povo é empurrado para as periferias das grandes cidades. Porque o território é para as mercadorias que eles precisam, não para o povo ocupá-lo. Inverteu-se a prioridade. Primeiro a mercadoria, depois as pessoas. Resposta 3. As leis que regem o funcionamento do capitalismo na produção agrícola determinam que sempre haja uma renda da terra média, e depois uma renda extraordinária para aqueles que conseguem melhor fertilidade ou proximidade do mercado. Essa renda média é determinada por alguns produtos que puxam os demais. Como aqui no
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Brasil a soja tem um alto preço e a cana tem o produto do etanol referenciado nos altos preços do petróleo, o preço médio de todos os produtos agrícolas foram puxados para cima. Porque, se não subissem, todos os produtores migrariam do arroz, feijão, leite, etc. para a soja e cana. Resposta 4. Embora a maior parte dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro, seja produzida por agricultores familiares, se implantou no Brasil o modelo norte-americano do agronegócio, que controla também os agricultores familiares através das grandes empresas, fornecedoras de insumos, que controlam o mercado e impõem seus preços. Um exemplo claro é o leite. O agricultor entrega o leite a 0,60 centavos o litro, mas a Nestlé recebe, processa, faz os subprodutos e revende no mínimo a 1,80 na prateleira do supermercado... Quem ganha com o leite no Brasil? As grandes empresas que controlam o mercado! Conclusão: Os preços dos alimentos sobem no Brasil e no mundo, porque os alimentos foram transformados pelo modelo do agronegócio em simples mercadorias, sob controle oligopolizado de poucas empresas. E a sociedade como um todo, consumidores compulsórios de alimentos, paga a conta para manter as taxas de lucro das empresas. Ou seja, não aumentou o custo de produzir alimentos, nem diminuiu sua produção, o que aumentou foi o lucro das empresas, e todos nós temos que pagar. Sugiro que o Chico Buarque reescreva a música Fado Tropical sobre “imenso Portugal” dos tempos da ditadura, já que, agora, nos transformamos numa imensa “ fazenda colonial, administrada por alguma empresa transnacional”! João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil. fevereiro 2011
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Ilustração: carvall
dos alimentos e o agronegócio
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entrevista
TOM ZÉ
Participaram Cecília Luedemann, Débora Prado, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Lucia Tavares, Otávio Nagoya, Paula Salati, Tatiana Merlino. Fotos: Paulo Pereira.
“Não faço música, faço
m
ais uma vez a revista Caros Amigos faz entrevista com o músico, compositor, arranjador e cantor Tom Zé, considerado um dos mais criativos e originais da música popular brasileira. Nascido em Irará, interior da Bahia, integrante do movimento Tropicália, radicado em São Paulo há muitos anos, Tom Zé mantém uma fértil e excelente produção musical, está em plena forma artística aos 74 anos de idade e arrasta um grande público – especialmente entre os jovens. Nesta entrevista, divertida, irreverente e instigante, ele impressiona pela sagacidade e profundidade de suas análises. Fiquem com a arte, a cultura e a rebeldia de Tom Zé.
rebeldia”
Em seu apartamento, em São Paulo, Tom Zé dá show de versatilidade.
Cecília Luedemann – Você poderia começar falando do seu trabalho atual. Tom Zé – Eu queria pedir uma coisa a vocês. Como a minha práxis não é o discurso... Eu e a Neusa somos assinantes da Caros Amigos e lemos apaixonadamente tudo. Aí, eu falei com Neusa: “Nossa, se eu pudesse dar uma entrevista, não como se eu fosse um professor, como eu fosse o maluco que eu sou, mas que tivesse a capacidade de uma pessoa cuja a práxis é o discurso.” Isso não é o meu métier. Então, eu vou pedir a vocês que entremos num barato de seguir um certo leitmotiv e, nessa coisa, todas as inteligências aqui somam para tornar isso fácil para o leitor. Porque eu me preparei. Foi a única vez na minha vida que eu me preparei para uma entrevista. Ontem, eu estava trabalhando, parei para dizer: “Eu preciso ter uma coisa pelo menos organizada. E, aí, a gente poder entregar, honestamente, a essas pessoas que leem - vocês, como nós -, uma coisa razoável.” Cecília Luedemann – Como é a experiência de criação da sua música de raiz brasileira com o diálogo universal? Olha, você acabou de falar uma coisa que é o que eu aprendi com Neusa [esposa e empresária de Tom Zé] e com David Byrne, um compositor e multiartista, que tem certa sensibilidade internacional: “Para a sua música poder tocar no exterior, você precisa fazer música brasileira, mesmo.” Eles não compram o que eles já tocam bem. Eles não compram imitações. Tem um episódio que explica isso de uma maneira bem fácil. Nós estávamos em Londres para fazer o Barbican e o rapaz da Trama, o Kid Vinil, disse assim: “Puxa, vida, vocês sabem o que eles fizeram? Pagaram o dinheiro todo e mandaram embora.” Eles ouviam falar em DJs brasileiros. É claro que eles pensaram as-
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sim: “Puxa, DJs do Brasil. Aquele país onde a música é tão rica quanto dos Estados Unidos.” Porque hoje eles dizem isso na Inglaterra: “Olha, deve ser uma coisa curiosa.” Então, eles pegaram os DJs e contrataram para fazer quatro shows ali naquelas cidades, perto de Roma. Justamente o Kid Vinil chegou para gente e disse: “Eles viram o primeiro show, pagaram os quatro shows e mandaram embora.” Por que? Por que os DJs estavam tocan-
do uma versão mais diluída do que eles mesmos fazem. Isso é uma coisa incrível. Eles esperavam que os DJs fossem brasileiros e os DJs imitavam o americano e o inglês. Para mim, não foi dito diretamente. Mas a Neusa sempre dizia: “Isso quer dizer que você para poder tocar lá tem que ser brasi-lei-ro.” Esse é um dos segredos. Agora, isso puxa um assunto que a Neusa e eu calculamos como ia ser esta entrevista. {Risos} Tudo
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é possível de alguma forma. A gente calculou que vocês iam começar perguntando sobre o começo.
Neusa Santos – É por causa das entrevistas que vocês fazem.
Hamilton Octavio de Souza – As entrevistas da Caros Amigos são assim... Mas, no meu caso, o começo é o fim. Eu tô eternamente no começo. Então, eu queria propor uma ideia, se vocês toparem. É uma ideia que eu ponho na mesa. Se vocês aceitarem, apontem as antenas para essa ideia, porque vai ser uma coisa boa. Como se fosse um time de futebol. Hamilton Octavio de Souza – Qual é a proposta? A proposta é a seguinte. Como o meu começo é o meu fim, quando eu estou aqui no começo, eu estou aqui no fim. Toda hora que meu fim é posto em cheque, eu vou no começo saber o que tem de errado. Porque eu sou “vítima”... E é um episódio que, se eu conseguir tratar, vai mostrar como a música brasileira foi trabalhadora em desenvolvimento da virulência do país. Rapaz, só para dar uma pitada do que vai acontecer. Eu tava lá. Eu tava na Idade Média. Eu nasci em 1936, num lugar que era Idade Média, do ponto de vista de procedimento e tempo. As relações metafísicas, as relações religiosas, as relações de amor, as relações de trabalho, as relações de família, as relações de brincar, as relações de estudar. Tava tudo, metafisicamente, moçarebe, que é o tipo de infância dos nossos avós. Alain Resnais, um cineasta francês, diz que de 0 a 2 anos de idade é a fase em que a criatura humana, nós, carne e osso, cabeça, destino e tudo, mais aprendemos. Nunca se aprende com tanta intensidade nem com tantos dados que de 0 a 2 anos de idade. A gente é mais rápido que um computador de 0 a 2 anos de idade. O cineasta francês Alain Resnais fez um filme para provar isso, porque de 0 a 2 anos de idade a placa mental está completamente virgem. Qualquer coisa que bata ali faz um sinal, grava, e aí você pega um combustível que dificilmente vai ser deteriorado para o resto da vida. Rapazes e meninas, e eu com 0 a 2 anos de idade tive uma sorte. Eu, Caetano, Gil, Torquato Neto, Glauber Rocha. Olha o lugar que a gente nasceu. Cecília Luedemann – A creche tropicalista. Pode ser creche de tudo, mas como a presença da gente no mundo foi chamada de “tropicalista”... Pode ser creche de tudo. Veja bem, agora eu explico isso. Berçário dos “analfatóteles”. Nós fomos criados de 0 a 2 anos de idade sem Aristóteles. Meus senhores, vocês não podem pensar o que é
uma educação sem Aristóteles. É outra concepção de mundo. Aristóteles é uma maravilha, fez tudo o que a gente pratica até hoje, mas a gente foi educado num universo sem Aristóteles. Olha, é difícil você partilhar. Se a gente for ver, Aristóteles está aqui, assim ó, em cima da gente, está em cima, está por dentro e está por fora, para tirar não dá mais. Esses donos dessa outra concepção do mundo, em nosso caso foram os árabes. Olha, como nós temos cara de árabe e judeu, cristão novo. Com 0 anos de idade. Eu, filho de seu Everton e de Dona Helena, em 1936, tinha um amigo chamado Antonio José, cujo apelido era Toinzé. Como não se botava apelido como agora se bota nos filhos das pessoas, eles botaram Antonio José para chamar de Toinzé. Então, nasço eu lá. No meu tempo, a criança ficava no berço de 0 a 2 anos de idade. Quanto menos chorasse, melhor. Entretanto, a gente tinha uma roda de professores que circulavam entre nós, jogando no nosso ouvido atento todas essas coisas que estão aqui, essa banca de preceptores babás. Quem eram os professores? Os camaradas do nordeste. Quem me ensinou isto foi [Câmara] Cascudo. A gente nunca sabe as coisas direito. Cascudo, o escritor riograndense-do-norte, me ensinou sobre os cantadores. O que a gente ouvia dos cantadores de 0 a 2 anos de idade? A gente ouvia sobre Ética, era assunto de todo dia na nossa vida, porque a gente era 3 mil almas há cento e tantos anos. Irará, população 3 mil habitantes, ano 1840, 1900... sempre 3 mil almas. Quando morria um, chegava outro no lugar. A cidade nunca crescia uma casa. Era preciso haver uma solidariedade absoluta para essas 3 mil almas não diminuírem. É uma coisa intuitiva da coletividade. Outra coisa: lá era dois anos de seca e dois anos de chuva. Na seca...
Hamilton Octavio de Souza - Qual é a região? Entrada da região do Conselheiro, Irará, recôncavo, começo do sertão, perto de Feira de Santana e de Alagoinha, mais de 20 Km. Naquele tempo gastava meio dia para ir para Feira de Santana ou Alagoinha a cavalo nas estradas terríveis que tínhamos. Hoje, vai em 15 minutos.
Hamilton Octavio de Souza - E sua família era de classe média? Naquele tempo, que classe média? Minha família era chamada de rica. No nordeste não tem rico, tem remediado. Até o folclore cantava: “Você me chama de rico, mas rico é Benjamin. Na feira, Seu João Marinho, no Irará Seu Pompiu”. Meu avô. “Serrinha que é ponto grande, só se fala no coronel Nenenzinho.” Meu avô era chamado de rico até pelo folclore. O que é que ele tinha? Lá não tem latifúndio. Ele tinha uma fazendinha ainda
“Como o meu começo é o meu fim, quando eu estou aqui no começo, eu estou aqui no fim. Toda hora que meu fim é posto em cheque, eu vou no começo saber o que tem de errado.” Novo sítio: www.carosamigos.com.br
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dentro de Irará e outra perto. Hoje, para o que se chama de latifúndio, a fazenda dele era um roçado, mas era chamado de fazendeiro.
Neusa Santos - O que se chama de fazenda lá,
na Bahia, aqui é chamado de chácara. É gozado informar isso. Lá também, um dos maiores municípios do interior do país, em tudo quanto é canto todo mundo tem “duas tarefas” de terra, de seu fulano, de seu sicrano, de seu beltrano. Plantam mandioca, feijão, para comer e plantam fumo para vender no fim do ano. Isso no meu tempo, agora mudou a monocultura. Plantam fumo, o produto que ia exportar, que era para o dinheiro da festa, o dinheiro da compra grande e para tudo. Então, quando tinha seca, estava tudo esturricado. A loja de meu pai também estaria esturricada. Os negócios todos caíam 60%. Chegava a família para a compra anual. Essa loja foi onde eu frequentei a universidade mais sofisticada da minha vida, onde eu aprendi a falar a língua da roça. Eu não sei mais falar a língua da roça agora, mas é importante quando a gente conhece duas línguas, porque a capacidade de raciocínio fica tipificada. Todo mundo fala isso.
Hamilton Octavio de Souza - Você tinha tudo
para ter virado coronel lá? O Renan Calheiros de Irará? Não, não dava. Minha família se dividia no seguinte. Meu avô, 12 filhos, 10 vingaram. Naquele tempo, vingar 10 já era uma maravilha. 40% era comunista. Uma coisa que ninguém esperava que fosse aparecer naquele lugar. 40% era católico e uns ficavam lá e cá. E nós, crianças, assistíamos uma coisa maravilhosa: a discussão de todas essas correntes. O mundo sem televisão, sem luz elétrica, sem rádio, pouquíssimo rádio na cidade. Depois do jantar, na casa de meu avô, ficavam, como nós estamos aqui nesse prazeroso momento. As crianças não falam nada. Criança não se metia em conversa. Pode estar em qualquer lugar que ninguém liga, contanto que esteja quieto e calado. E na mesa se falava de tudo. Na mesa tinha um cara qualquer que tinha vindo do leste europeu para fazer alguma coisa no Brasil e que falava alguma coisa de português. Estava uma semana na mesa. Um comunista que estava viajando escondido de não sei aonde e que veio para fazer uma conferência na Faculdade de Direito de Salvador tava na mesa. O vaqueiro de meu avô – para ver como as coisas eram – tava na mesa. E, naquele universo, todo mundo tinha que prestar contas do mundo através da palavra. Em Irará, praticamente não havia dinheiro. Muita coisa era no escambo, mas é claro que dinheiro tinha. Mas a moeda importante que circulava no coração e no seio do povo era a PALAVRA ! A palavra era a riqueza!
Hamilton Octavio de Souza - Você diz que está no fim e no começo, e que sempre volta à origem. O que você faz de trabalho hoje que tem a ver com a sua origem? Cecília Luedemann - Você vai beber lá? fevereiro 2011
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É isso. A origem é Irará. Olha que coisa terrível aconteceu com a gente. Quando a gente era criança tinha uma banca de professores no berço. Comigo está Caetano, Torquato, Capinam, Gil, Glauber. Nossas cidades, principalmente eu, Caetano e Gil, eram em linha reta 20 km uma da outra. A educação era absolutamente igual. Um berço e a criança lá. Ninguém ia aporrinhar, ninguém dava brinquedo. Não tinha porra de brinquedo nenhum. Criança era um futuro investimento da família para trabalhar, não era consumidor de brinquedo. Aí a gente estava lá deitado e passava uma empregada que falava muita coisa, uma concepção de mundo que tinha a Provença do século XI e do século XII. O que é a Provença do século XI e do século XII e como é que ela foi parar na minha vida? Quando os árabes estavam nesse período, em Portugal e Espanha, com a tal cultura moçarabe, eles passaram a ser um aglutinador, porque enquanto a Europa, o Império Romano tinha sido derrubado pelos bárbaros, a península ibérica estava sendo educada pelo povo mais educado do momento, os árabes. Estavam inventando a pólvora, Deus que me perdoe, mas toda guerra ajudou muito a desenvolver a ciência, essa contradição terrível da vida humana. A loteria que tinha acontecido com as nossas vidas, lá no berço com as professoras. Os árabes chegaram no século VII ou VIII, nessa hora o Império Romano tinha caído, a cultura tinha falido, e a Europa estava sendo educada pelo povo bárbaro cristão, godos, visigodos, germanos, povo completamente chulo, não quer dizer que não tivesse uma força ali dentro, mas naquele momento completamente analfabetos, ignorantes. E a Europa estava sendo educada por eles, mas a península ibérica, que teve a felicidade de ser invadida pelos árabes, estava sendo educado pelo povo mais inteligente do planeta naquele momento. Dizem que foram os indianos que inventaram o zero, mas dizem também que foram os árabes. Agora, para, pensa, imagina o mundo sem o zero. Então, a empregada da minha casa era filha, neta, bisneta, tataraneta do povo que conviveu com os árabes e também se apaixonou pelos árabes. Então, ela, lá em casa, falava muita coisa de Provença sem sentir. Primeiro, não era aristotélica essa banca de preceptores babá, era no caso moçarabe. Por exemplo: “É um dia, é um dado, é um dedo, chapéu de dedo é dedal.” Olha que povo para brincar com as palavras ! Isso, os poetas concretos, aqui, cem anos depois viram que era uma coisa Provençal e falaram que isso influenciou a poesia deles. Aí dá para fazer da palavra um jogo, uma bola.
Tatiana Merlino – Como que essa banca de preceptores te influenciou e te transformou no artista que você é hoje? Sim, sim. Eu, Caetano, Gil e todo mundo. Hamilton Octavio de Souza - Você está falan-
do do Tropicalismo? Do Tropicalismo. Mudamos a política do nordes-
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te e do Brasil. É claro que isso é só uma tese. Aí acontecia uma coisa. Quando nós entrávamos na escola primária, tudo era Aristóteles. E nós éramos, Idade Média, Moçarabe. Aí o professor explicava uma coisa aristotelicamente. Aí vai mudar a política, aristotelicamente. A gente entendia. A gente era muito treinado em raciocinar. O mundo do nordestino, conforme diz o Euclides [da Cunha] é muito treinado em raciocinar. Era assim: Isso eu aprendi em Aristóteles. E como eu faria isso em moçarabe? Ah, muito bem. Mas, não dá o resultado completamente exato, dá uma sobrinha... Então, joga isso no hipotálamo. Tira isso do córtex, para não atrapalhar, porque a gente está trabalhando aqui, e joga no hipotálamo. Certo? Veja bem, como é o ser humano. No ginásio, milhões de coisas aristotélicas. Nós éramos 100% preparados para o mundo. Se não tivesse chegado Aristóteles, teríamos vivido sem ele. O hipotálamo vai ficando cheio de restos, de sobras, de lixo lógico. E aí vai o lixo lógico aumentando, aumentando, aumentando. Um belo dia, depois da universidade, estamos aqui, tendo que dar opinião sobre o Brasil, sobre o nordeste, aí uma pancada qualquer na cabeça de alguém, não foi na minha, bateu assim, aí o lixo lógico desavisadamente disparou para o córtex. E a pessoa disse assim: “Não, eu sou muita coisa, você não é só Aristóteles, não.” Muito bem, aí essa pessoa falou com outra e essa outra imediatamente ligou, e nós começamos a ver o Brasil e o nordeste com uma visão que não era aristotélica dominadora, mas que era, por enquanto, apenas aquela política do diferente. O diferente já é uma política perigosa.
Hamilton Octavio de Souza - Qual a relação da
cultura nordestina com a política? Eu não tô falando de outra coisa que não de política, de dominador e de explorador. Eu não tô falando de outra coisa, só to com outras palavras. É preciso que tenha aproche diferente. Eu não trabalho em política, eu trabalho em música. Se música não tiver de ir colateralmente com a exploração e tudo, a gente tá lenhado. Então, vocês viram esse negócio do lixo. Isso foi a ideia mais fantástica que eu tive em minha vida. Eu podia morrer só por causa dessa ideia. A gente chegava na escola, o professor explicava aristotelicamente, a gente comparava com a educação da gente e quando chegava aqui, dizia: “É, dá certo, mas sobra aqui... Joga prá lá, porque a escola é que está certa.” O ginásio joga uma porrada de coisa, o colégio joga uma porrada, a universidade joga tudo aqui. Aí um belo dia isso foi ficando tão pesado, feito uma aleijado, que a pessoa tem mais coisa no hipotálamo que no córtex. Aí deu uma pancada, pum, a coisa correu para
o cérebro: “Peraí, mas o Brasil, naquele tempo, era visto pela esquerda como um país que deveria permanecer bucólico. Isso é terrível.” Tem a capa da revista da Civilização Brasileira em que aparece um pescador de calça curta com peixe na mão, numa época em que o IBGE... Veja, bem como a esquerda pode ser filha da puta. Porque agora eu tenho que falar nome feio apenas para ser baiano. Não que filha da puta seja coisa demais, qualquer um está arriscado. Desculpem, mas eu preciso ser bem exato, agora, porque é a hora do gargalo. E isso precisa ficar claro. A minha profissão não é a arte maior, que é a política, a arte de trabalhar aonde vai o dinheiro, aonde vai a administração. Não, eu trabalho colateralmente. Os exploradores continuam explorando, mas a gente está destruindo ele, porque tanto no nordeste quanto na cidade está acontecendo um novo tipo de cabeça que não vai poder aceitar isso. Então, o lixo lógico está tentando pensar o Brasil. O que a gente achou do Brasil? A gente estava perto das esquerdas e, de repente, começou a dizer: “Isso não pode estar certo.” Veja como era terrível nossa situação. Não era como agora que tem a esquerda, a meia esquerda, o pensamento independente. Naquele tempo tinha a esquerda ou a ditadura. E foi naquele tempo que a gente teve que criar um terceiro canal. Aí é duro, meu compadre. Aí é preciso ter rabo. O que foi radicalmente importante na hora que o Tropicalismo surgia, no horizonte? Ora, minha gente, isso é bonito. No horizonte, surgia a segunda revolução industrial, que em cima de cada mesa havia uma máquina datilográfica. Bom, mas o que vinha, principalmente aqui, o processamento de dados, linguagem do cartaz, TV. A televisão ia influenciar a música. Vejam bem a grande política que aconteceu. A música era feita por um povo teoricamente não politizado, embora fosse pobre. Pobre parece que já é bom na política, mas não é. É servidor do chefão. Aqui, música era feita pelo boêmio e pelo homem do morro. Ninguém de família nenhuma queria isso. Aquela moça que fazia música em 1910, Chiquinha Gonzaga, foi um escândalo, mas ela entrou na estirpe dos músicos. Era ser pior do que prostituta, músico não valia nada. Acontece que apareceu aqui um objeto político terrível chamado TV. Isso era uma dominação de massa filho da mãe.
Débora Prado - Pior que Aristóteles. É, pior que Aristóteles. Aproveitando perfeitamente Aristóteles. Ele é importante na fundação desse negócio. Aqui, aconteceu um processo que entra o caipira paulista e Antonio Cândido com o livro Parceiros do Rio Bonito. Olha, veja como
“E nós começamos a ver o Brasil e o nordeste com uma visão que não era aristotélica dominadora, mas que era, por enquanto, apenas aquela política do diferente. O diferente já é uma política perigosa.”
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isso é bonito. O parceiro do Rio Bonito vem se equiparar ao nosso moçarabe. Aqui no interior de São Paulo tinha uma cultura maravilhosa. Eu nunca estudei, a minha, eu sei que é moçarabe. Pode ser que fosse também. Um povo vivo. A inteligência do Rio Bonito desencadeou em Roberto Carlos, em Erasmo Carlos e Wanderlea. Eles parecem alienação, né? Não, eles foram a força política que criou uma possibilidade de rebeldia na juventude para que viesse a aceitar o Tropicalismo. Então, foi o nascimento do poder da televisão. Quem foi que sabotou a televisão a favor do povo? Roberto Carlos. Se ele souber disso, ele chora. Ele nem sabe disso. E também o Erasmo Carlos. Agora, o Roberto Carlos só anda com o padre. Mas, ele fez: “Se você pensa que vai fazer de mim, o que faz com todo mundo que te ama... Daqui pra frente, tudo vai ser diferente.” Ora, amor está sendo o assunto. Tudo vai ser diferente é universal. Quem é que dizia que amava a gente? Era o poder instituído, também. “Se você pensa que vai fazer de mim...” Quando entra na cabeça uma ideia, ela começa a confrontar tudo o que está ao seu lado. “Daqui pra frente tudo vai ser diferente.” E outras coisas da ousadia da juventude. Tudo bem. Como, Roberto Carlos era engajado? É, sem saber. {Risos} Roberto Carlos é um lixo, mas acontece que além de ele ser lixo, ele estava aureoloado pelos parceiros do Rio Bonito. Um povo explorado...
Hamilton Octavio de Souza - Você acha que hoje tem remanescentes do Tropicalismo ou já
não existe mais, acabou? A ciência tem uma coisa para a gente não cometer bobagem com esse tipo de pensamento protetor. A ciência tem uma coisa chamada Teoria dos Quanta, de Max Planck. A ciência tem uma resposta calma e exata para isso. As coisas acontecem na vida com quantuns de energia, que por acaso se reúnem, ficam irritando uns aos outros e explodem, e depois tem uma certa placidez para ela reunir forças e ir para outro lugar fazer outra coisa. Nós não sabemos que outro lugar se fará outra coisa. Talvez não seja música. Por que música sempre vai ter o privilégio?
sica o dia inteiro. Não, eu tenho que dizer isso: “Eu tenho horror à música.”
Neusa Santos - Mas, como? Não é isso.
Tatiana Merlino - Então, a gente está vivendo esse momento de placidez? A gente está fazendo um momento de repouso. Em alguns lugares alguns continuam trabalhando. Eu, pelo menos, passo 12 horas por dia, aqui, trabalhando. Vocês veem a América do Norte...
Calma, calma. {Risos nossos.} Isso tem explicação. Neusa, deixe as minhas estratégias. Eu tenho horror à música. Sabe por que? Porque eu sou um dos piores músicos que tem no mundo. Quando eu vou ouvir rádio, eu sempre ouço pessoas que estão tendo o privilégio de tocar em rádio. Eu não sou capaz de conseguir tocar em rádio. Então, eu tenho ódio deles. Para mim, eles são uns filhos da puta. A rádio, pior ainda. Eu tenho horror à música. Agora, eu trabalho em música o dia inteiro, é outra coisa de terror. Porque o gênio, no trabalho, chega assim e diz: “Oba, binberobarabá...” Esse binberobarabá vai encantar o contemplativo das plateias durante um ano e meio e tem dinheiro dentro de casa.
Hamilton Octavio de Souza - Hoje, o que está
Hamilton Octavio de Souza - Quanto custa to-
agitando, que tem energia? Qual a tua avaliação da música? Eu não sei, não sei. O que é isso? Você está pensando que eu sou o quê?
Neusa Santos - Por que você deu os CDs do grupo Rumo para eles [da Caros Amigos]? Tatiana Merlino - O que você ouve, hoje? Eu não ouço música. Tenho horror a música.
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Neusa Santos - Mentira. Ele ouve música clás-
car nos programas de rádio e de TV? Agora, eu vou lhe dar uma resposta formidável. Um dia nós fizemos um disco que nós pensamos que fosse popular. Eu quis pagar jabá. Mandaram dizer que o meu disco não servia.
Otávio Nagoya - Nem com jabá? Hamilton Octavio de Souza - Nem pago? O meu não toca nem pago. {Risos.} fevereiro 2011
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Hamilton Octavio de Souza - Não toca por quê? O que eles disseram? Calma... Eles disseram que é muito novo, muito moderno, muito sofisticado, que eles não podiam tocar na rádio. Hamilton Octavio de Souza - Mas tem uma
lógica no sistema de consumo que é o seguinte: algo que agrada o consumidor, tem que ser veiculado pelos meios de comunicação. Você é um cara que agrada a juventude. Não agrada a juventude? É, meu público é principalmente juventude.
Hamilton Octavio de Souza - Então, por que as
rádios e TVs não tocam a sua música? Eles podem evitar, ainda... Desculpe, mas agora eu vou falar de uma coisa bem sutil. A rádio, a TV, o meio de comunicação, embora não seja uma censura, oficialmente recebendo dinheiro, ele tem uma noção do que é perigoso para a sociedade. E isso não é o motivo completo. Isso faz parte dos pigmentos. Ele tem uma coisa que sabe que vai continuar pagando ele sempre bem, que não vai sair dizendo que pagou. Talvez a minha gravadora era uma que não pagava, era a Trama, queria pagar só aquilo, e que pudesse traí-los depois. Olha, todo estúdio de gravação é um censor estético do sistema. Calma, para vocês entenderem. O estúdio só grava aquilo que tá na moda. As máquinas são feitas para só aceitar aquilo. Você leva uma estrutura diferente, os VU [equipamento de gravação] diz não. É impressionante. Vocês não vão acreditar. Acreditem em mim, porque não é possível acreditar nisso. Eu tenho vários exemplos de que o estúdio é um censor estético do sistema. Por que a rádio não pode [ser um censor] também? Ela pode ter noção do que pode debandar a sociedade, desfazer os laços que fazem a sociedade permanecer assim o tempo todo. Ela pode ter uma intuiçãozinha também. Eu não estou arriscando muito, eu só estou colocando 2 cruzeiros nessa ficha.
Lúcia Rodrigues - E o que tem que ser feito
para romper com esse sistema? Repare, amor. Eu posso continuar fazendo. Todo disco que eu faço é para tocar no rádio. Quando acaba, acaba sendo uma coisa curta. Mas, eu não posso me queixar disso. Eu tenho público em teatros, os teatros ficam cheios. Eu tenho público na Europa toda. Outro dia, uma pessoa do comércio exterior me disse: “Tom Zé, o comércio exterior tem que ter uma aula com você. A gente faz um congresso, vai para NovaYork para ter uma linha no New York Times e você tem páginas e páginas no Times. Eu preciso descobrir qual é o seu segredo. Então, eu tenho compensações, compreende?
Lúcia Rodrigues - Mas, por que a mídia impressa te dá destaque e a radiofônica não toca? A rádio não toca, mas eles têm carinho comigo. Eu não sei me tornar um Lobão. O Lobão, tudo bem, é um tipo de inteligência muito mais prática do que a minha, ele chega, briga, vai e luta. Mas, eu não sei, cada um com o seu caminho.
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Tatiana Merlino - O que é o Pirulito da Ciência?
Explica para a gente o seu último trabalho. Eu pensava que íamos fazer um vídeo do Estudando a Bossa, aquele CD que também foi lançado agora nos Estados Unidos. No Pirulito da Ciência não há nada de novo, os arranjos e os ritmos estão estranhos. O que há de novo são as coisas velhas.
Cecília Luedemann - É a sua trajetória? É a minha trajetória. Eu pensei que eu ia gravar o Estudando a Bossa, que tem coisas novas. Nos Estados Unidos foi lançado um box com Estudando a Bossa, Estudando o Pagode e Estudando o Samba e mais uma entrevista com David Byrne, uns números meus com a banda Tortoise, em Londres, no Barbican Theatre. O Barbican é um show, rapaz... Eu estava morrendo de medo, vi aquelas 2 mil cadeiras. Eu falei: “Se vier umas 500 pessoas aqui é uma tristeza.” Mas, aí a Neusa passou por mim e disse: “Ê, Tom Zé, desde ontem que isso aqui está vendido.” Eu disse: “Ô, Neusa, por que você não me disse isso antes para eu ficar com o meu coração descansado?” {Risos}
Otávio Nagoya – Esse box foi lançado só nos
Estados Unidos? Nos Estados Unidos, Europa, aqui quem vende é o Baratos e Afins.
Hamilton Octavio de Souza - Com o que você
ganha mais dinheiro: show, venda de CD ou outra fonte de renda? Hoje não vende. Eu sobrevivo com show. As coisas que saem do CD, de direitos autorais, eu procuro defender meu editor, sou carinhoso com ele e ele comigo, mas antigamente tudo isso era vendido. Hoje, a internet distribui, a não ser uma caixa, como os norte-americanos fizeram.
Hamilton Octavio de Souza - Você teve um CD que foi liberado pela Internet, não teve? Meu irmão, tanto faz liberar quanto não liberar. Um dia eu estava sentado na França com o meu gravador, digamos assim, era ele quem divulgava meus discos na França, o Henri. O Henri sentado conosco, fala um pouco de francês, de português. E aquelas hordas de jovens passando para assistir um festival na fazenda, tudo é Woodstock, agora. Numa fazenda, onde tem sete ou oito palcos, e lotado de jovens andando. Uma coisa linda de ver aquilo. Parece um exodus. E aí eu virei para ele e disse: “Henri, esse povo todo não compra mais disco?” Ele disse: “É.” Lúcia Rodrigues - Mas, Tom Zé, as pessoas não compram mais disco, porque os CDs eram vendidos a um preço que não é compatível com o
salário do brasileiro. Tudo isso faz parte. Um abacaxi que sai por 1 mil réis na hora da gravação, quer a capa, bota mais 1,50, vai ficar 2,50, vai ser vendido por 30 e na hora sai por 80. {Risos}
Lúcia Rodrigues - Então, não é isso que força ter mais piratas? Sim, querida, claro e várias outras coisas. Claro que é tudo, a usura.
Tatiana Merlino - Qual é a sua relação com Ca-
etano, Gil, com os tropicalistas? Vocês mantêm relações? Amor, paixão, ódio, inveja, o caralho.
Tatiana Merlino - Vocês se falam? Ah, geralmente, na maior parte da vida nos falamos. Sou fã deles, me tratam com o maior carinho. Mas, essas coisas todas, de minha parte, estão misturadas. Da parte deles, eu não sei, porque eles também são humanos, também devem ter uma parte não confessável. {Risos}
Hamilton Octavio de Souza – Para qual tipo
de causa você faz show de graça? Ah... bom, aqui tem maladragem que só Deus sabe, que eles chamam de homenagem: “Vou lhe fazer homenagem.” Não quero. {Risos} Quando falam em homenagem, eu já sei que é pra eu dançar. Mas, tem muita coisa que eu faço e gostaria de fazer muito mais. Gostaria de cantar para crianças com problemas de saúde em Ongs. Gostaria de sair desavisadamente para cantar. Gostaria de frequentar... Uma vez até chamei Frei Betto para me orientar, porque a minha vida, na minha idade... Agora, também tem outro lado: se eu continuar aqui, atendendo à cabeça dessa juventude que me acompanha, eu também to fazendo um serviço social, eles são poucos, eles compram o nosso disco barato no show, por 15 mil réis. Eles são poucos e eles também têm direito a uma coisa. Eu não posso fazer um disco, primeiro, que eu não saiba fazer, e, segundo, que seja uma coisa importante para essa sociedade que me compra. Não só para ela, para todo mundo, que eu não vou dividir como se fossem os escolhidos por Deus. Mas, eu, aqui, luto por eles, ano por ano. A minha única diversão é o trabalho. Vocês estão vendo aqui? 74 anos, esse corpo que ficou assim, porque ficou, essa cara, porque aos 40 anos eu estava cheio de doença, cheio de encrenca e aí o médico apareceu e disse: “Não coma mais açúcar, cachaça, nem café.” Naquele dia eu estava pronto: parei, isso é duro pra caramba. A cachaça era o quê? Reunir com os poetas concretos, ali, duas vezes por semana, tomar uma cerveja. Era essa a cachaça, a maneira de fa-
“A rádio, a TV, o meio de comunicação, embora não seja uma censura, oficialmente recebendo dinheiro, ele tem uma noção do que é perigoso para a sociedade.”
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lar. Paramos, tanto que eu fiquei meio desligado deles. Isso foi em 1976, depois em 1985, eu tive uma encrenca que só Deus. Fui fazer macrobiótica que me salvou e passei a viver macrobioticamente. Para quê? Para toda semana eu poder ir num palco, gritar feito um desgraçado, pular, virar, mexer, sacudir, brigar, deixar as pessoas felizes e vir para casa comer uma maçã e deitar. Então, eu sou uma espécie de monge. {Risos}
Hamilton Octavio de Souza - O seu público é basicamente jovem. É, é, basicamente.
Hamilton Octavio de Souza - Vai ficando mais
velho e vai deixando... É, pode ser que com certa idade, vá deixando, alguns permanecem. Agora, na Europa é só público adulto.
Hamilton Octavio de Souza - Com que políti-
Hamilton Octavio de Souza - Qual é a ligação que você tem com esse público jovem? Eu tenho uma ideia sobre isso. Eu acho que eu não faço música. Música é só o pretexto, eu faço rebeldia. Rebeldia. Aquela proteína que entre os 13 e os 50 anos se a geração não tiver rebeldia, ela entra em falência. Toda geração precisa de uma certa rebeldia. Primeiro, ela tem que compreender seu tempo e depois negar o seu tempo e cometer a rebeldia mesmo, dela, que ninguém controla.
co você sobe no palanque para dar apoio, no Brasil? Plinio de Arruda Sampaio. Posso subir para Gilberto Gil, que entra um pouco a amizade. Posso subir para a Marina. Se essa presidente continuar como ela está, eu posso subir para ela. Mas, agora, é melhor não subir para ninguém, porque daqui a pouco até para a salvar a nação, não é para fazer sujeira, não, eles têm que entrar num acordo, uma coisa ou outra, que a gente, aqui, em nossa pequenez, não sabe compreender.
Otávio Nagoya - Como foi a ligação do pessoal da Bahia com os Mutantes, aqui em São Paulo? Como vocês conheceram a Rita e os Mutantes? Olha, eu não sei, eu nunca tive conversa com eles naquele tempo. Agora, quando o Serginho me chamou para fazer parceria com eles, eu fui na casa dele, e ele me disse: “Eu to emocionado, Tom Zé, eu to nervoso. Eu nunca lhe conheci.”
Hamilton Octavio de Souza - O Ministério da
Cultura ajuda ou atrapalha? Olha, um órgão do governo que está se preocupando com a classe [dos artistas], a longo prazo, só pode dar à classe algum provento. Mas, o que ele faz hoje e amanhã é absolutamente sem importância, porque lá a influência dos grandes é muito grande. E ajudar os grandes é desajudar a classe. A classe, mesmo, que trabalha pequeno, como até eu mesmo posso me incluir, não pode chegar lá, porque não tem palavra. Quem tem palavra é quem recebe de lá por anos e anos recursos para fazer os seus trabalhos, que são bons, também.
Lúcia Rodrigues - Você faz muito show em
universidades, recentemente foi à USP para fazer aquele show em defesa da greve. A PUC, minha vizinha, se eu não for quando ocupam a reitoria, não vale.
Lúcia Rodrigues - Por que você participa des-
se tipo de shows? Ô, querida, na minha infância, a atuação do público estudantil era muito importante, o CPC que eu trabalhei com o Nemésio Salles, com Capinam, com Johnson, com Roberto Santana, era uma coisa muito importante naquele tempo. Tem críticas ao tipo de coisas que a gente fazia no CPC que são muito importantes, eu hoje compreendo. E hoje eu tento ir. Quando teve também a ocupação da Faculdade de Direito, eu procurei ir, aí eu tive o maior cartaz, lá, por causa da minha irmã Lúcia. Nunca eu imaginava. Minha irmã Lúcia Cerqueira, que mora no Rio, é casada com o Fernando, e trabalha na Pastoral da Terra. Aí quando eu cheguei lá, gritaram: “Ele é irmão de Lúcia.” E vieram todos em cima de mim. Passei a ter o maior cartaz lá por ser irmão de Lúcia. Eu virei gente.
Lúcia Rodrigues - Você acha que falta hoje um elemento agregador que faça com que a cultura efervescente no Brasil seja socializada e não
Hamilton Octavio de Souza - E nos festivais? fique centrado apenas em suas regiões? Olhe, não existe música concentrada em lugar nenhum. Nós não somos a fase da feijoada, somos a fase do garimpeiro. O garimpeiro é o que sai pelos lugares imprevisíveis, olhando se na terra tem brilhante. Se alguém sair pelo Brasil, como Mario de Andrade saiu nos anos 1920 para fazer aquele trabalho dele todo, vai achar milhões de coisas. Então, como a internet existe agora, é aquilo que eu já contei: o moleque faz a música com a banda e manda para a Europa. Aí, a Europa ouve, tem a banda tal, o que tem de melhor está no interior do Ceará, manda um dinheiro.
Lúcia Rodrigues - Mas, isso faz com que muitas bandas sejam conhecidas lá fora e no seu próprio país, não. Como você socializa isso, internamente? Digamos que no nordeste o Tropicalismo seja um orgulho. Aqui, em São Paulo, tem o grupo Rumo. Isto é um dialeto paulista praticado. A universidade, geralmente, só faz diletantismo, pose. Aqui, a universidade fez uma maravilha: Luiz Tatit e o grupo Rumo. Eu conheço eles desde 1977. Eu fui assistir a um show dele essa semana. Eu cheguei em casa, desesperado. É claro que música me comove. No caso deles, é excepcional. Eu sou macaco velho. {Risos} Não é uma cantora qualquer, vai, tá bom, canta muito bem. O grupo Rumo é uma coisa que é orgulho da espécie humana, orgulho do Brasil e orgulho de São Paulo.
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Sim, nós estávamos juntos, mas era um privilégio de Gil o amor e a amizade com os Mutantes. Nós passávamos por perto, abraça, beija, mas não tínhamos a menor intimidade. Eram estrangeiros.
Cecília Luedemann - E a Rita Lee usou a sua música lá no Festival, a 2001. Claro, querida.
Cecília Luedemann - Mas, ela não conversou
com você, na época? Não, não, foi assim. Eu tinha feito uma letra de 2001, antes do carnaval de 1968, e fiz uma música e cantei para eles. Outra vez passamos, Gil e eu, uma noite inteira tentando fazer uma música e não conseguimos. Aí, um dia na casa do nosso empresário Guilherme Araújo, perto do Festival, ele joga uma fita cassete e diz: “Olha aí a sua música.” Peguei a fita cassete e li: “2001?” Eu chamava de “Astronauta libertado” a música. Aí fui ouvir. Ave Maria... {Risos} Uma música caipira, a Rita percorreu o mesmo caminho do filme de Stanley Kubrick, 2001: uma odisseia no espaço. Kubrick quando foi fazer a música da estação espacial, ele tinha pedido a música mais... Quando Rita pegou a letra, de dar um choque, sensacional, que ganhou o Festival, aí ela percorreu o mesmo caminho: “Só fazendo a música caipira, só fazendo pelo avesso.” E fez a música caipira... Que bênção.
Cecília Luedemann - Com os concretistas você fevereiro 2011
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já tinha uma conversa mais íntima? Como era essa conversa? Sim. Torquato Neto dizia o seguinte: “Vocês pensam que esses concretos estão aí dormindo? Imagina você que naquela revista que entrevistou todos os cantores brasileiros jovens do começo dos anos 1960, o Caetano disse que é preciso retomar a linha evolutiva de João Gilberto. Pronto, os concretos disseram, é esse. Os concretos estão acesos, bicho. Vocês pensam que eles estão brincando?” E aí eles começaram a falar, procurar. Quando a gente foi ver, já estava amigo dos concretos.
Cecília Luedemann - Discutiam a qualidade da poesia das músicas? Nós vimos a poesia concreta, ficamos apaixonados, é claro. Ficamos muito amigos. Eles moravam todos aqui [em Perdizes], Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari. Duas ou três vezes por semana, a gente se encontrava no bar Krystal. De vez em quando vinha o filósofo Max Bense, os grandes intelectuais europeus, amigos dos concretistas, estavam lá com a gente. Eu me lembro de um dia, do escritor Julio Cortázar.
Tá assim, parece que não tem nada, de repente: PUF!
Otávio Nagoya - Está demorando para apare-
cer. A gente está esperando que venha o próximo boom, porque está difícil. O último foi o Chico Science, né? Mas, tenham calma, quando eu era da Tropicália, pensava: “Não aparece mais uma Tropicália.” Eu digo: “Tenha calma, seja garimpeiro, porque vai descobrir uma coisa boa aqui, outra acolá. Não fiquem procurando só feijoadas, almoços coletivos, vá comer seu lanchezinho de uma coisa boa que você mesmo descobriu.” E de vez em quando chega Chico Science, o grupo do Ceará também foi um grupo bom.
- E por falar em descoberta e garimpagem, como é que você descobriu a Neusa, intelectual da casa? Aí, foi uma puta garimpagem. {Risos} Aí foi uma sorte grande filha da puta. Hamilton Octavio de Souza
Neusa Santos - Eu fui entrevistar o Tom Zé.
Chico Science, do Mangue Beat. Ah, mais uma coisa que prova o que eu falo. Eu conheci Chico Science, sabe aonde? Na Europa. Eu tava na Alemanha, Colônia.
Foi uma sorte grande filha da puta. Ela fazia o papel de jornalista, às vezes, porque era uma moça que trabalhava no SESI e alguns amigos dela, jornalistas, sabiam que ela era muito interessada em tudo e tal, e disseram: “Entrevista o Zé para mim.”
Neusa Santos - E Chico Science estava lá?
Neusa Santos - “Entrevista o Tom Zé pra mim
Lucia Tavares - Eu queria perguntar sobre o
Não, estava lá a fama dele. Eu não conhecia ele, no Brasil. Estava lá o Yan, virou para mim e perguntou: “E o Chico Science?” Eu virei para a Neusa morrendo de vergonha, porque não sabia que diabo era aquilo, se era algum cientista, ou o que era. A Neusa explicou, porque Neusa é a intelectual de casa.
que eu te dou ingressos para ir aqui e ali nas peças de teatro.” E então eu tava lá no dia 6 de janeiro de 1969, dia de Reis, quando chega essa moça com o cabelo amarrado aqui, muito viçosa e muito bonita, como é até hoje.
Neusa Santos - Que intelectual ... Eu dou uma
Não, nós ficamos... uma moça tão interessante... Eu ainda não conhecia as qualidades fantásticas dela. Aí ficamos, nos vimos, contravimos e aí fomos ficando juntos, porque quando eu estava com Neusa eu estava confortável. É o negócio da coisa psicológica: “Olha lá, é isso aí.” O conforto é a maneira de dizer: “É isso aí.” E aí foi ficando, ficando, ficando. Para depois descobrir outras imensas capacidades, qualidades.
olhadinha no jornal. Ele só olha notícia política, viu? E esporte. {Risos} Eu fico torcendo para os governantes acertarem, é por isso. Mas, veja, aí, eu banquei o desonesto, disse que gosto [de Chico Science]. O nordeste está carregado de energia. De vez em quando uma pessoa capta aquilo, reúne um grupo com a força em torno dela, coisa que até toma nome, o movimento Mangue Beat. Veja como é incrível esse nordeste. Qualquer hora que um cara reuniu os outros em torno dele e PUF!
Lucia Tavares - Mundo Livre S/A, né? Mundo Livre S/A.
Lúcia Rodrigues - Era justamente isso que eu
Lúcia Rodrigues - Foi amor à primeira vista?
coisa verdadeiramente exotérica. Muitas vezes a mãe diz que fica ouvindo e dizendo com a criança na barriga: “Ouça, meu filho, ouça, meu filho.” {Risos}
Débora Prado - Qual time você torce? Galícia, na Bahia; aqui, eu sou Corinthians, profissionalmente, porque quando o Corinthians não está jogando ou quando está, eu torço para o time que me dá vontade, pelo que eu simpatizo e alguém que fez uma coisa simpática, do Filipão que veio para treinar o Palmeiras.
Lúcia Rodrigues - O arqui-inimigo? É todos. Eu não tenho inimigo nessa coisa de arte e de futebol que é uma arte. Antigamente eu ia até o campo do Palmeiras que era perto, com um amigo palmeirense, mas um dia o Palmeiras perdeu e ele me disse que eu era pé frio. Eu fiquei morrendo de vergonha. Nunca mais fui.
Otavio Nagoya - Mas, você gosta de ver jogo
de futebol? Eu vejo jogo de todo time. Quando o Corinthians não está jogando, eu torço para o outro time da cidade.
Hamilton Octavio de Souza – Vamos parar por aqui, então, pessoal? Olha, muito obrigado.
Hamilton Octavio de Souza – Nós é que agradecemos. Muito obrigado por essa tarde tão feliz, por esses rostos jovens. Débora Prado - Hoje você encheu a nossa ca-
beça de lixo lógico, hein? Sim, todo dia eu faço lixo lógico para eles e todo dia eles me dão vida. Eu troco lixo por vida.
Hamilton Octavio de Souza - Há mais de 40 anos vocês estão juntos? Vai fazer 41.
Hamilton Octavio de Souza - Parabéns. Obrigado, porque foi uma sorte de loteria.
estava falando com você. Olha, desculpe eu não ter entendido. Mas, agora ela ajudou. Tá sim, de vez em quando ela explode aqui e explode acolá.
Hamilton Octávio de Souza - Você é de onde,
Lúcia Rodrigues - E você conhece lá fora e não
blico vai diminuindo na idade. Agora, tem uma porrada de criança de 9 anos na porta do teatro querendo entrar. {Risos} E tem ainda uma
conhece aqui dentro. É sempre na base da Teoria dos Quanta.
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Lucia Tavares - Maracatu Atômico.
Neusa?
Neusa Santos - De Presidente Prudente, filha de portugueses, pai e mãe.
Tom Zé - Eu vou ficando mais velho e o pú-
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Eduardo Matarazzo Suplicy
porca miséria! Glauco Mattoso
Não é que carnaval seja o que odeio, mas uma coisa a Juppiter eu rogo: que o mez de fevereiro, inda no meio e mesmo que bissexto, passe logo. Quem foi ao litoral e anda a passeio ignora si inda treino ou si ja jogo. De ferias, o politico está alheio às dividas de vulto em que me affogo. As aulas ja voltaram, e o toró que está para cahir vae dar um nó no transito, chaotico por si... A mais, um feriadão de farra em nada refresca meu suffoco, pois, passada a terça, a cinza é preta por aqui...
Pela internet, um funkeiro dos mais sarristas me suggeriu: “Cego, tu tem que ouvir o som da UDR 666, tu vae goshtá!” De facto, me amarrei no sadismo desses mineiros, authenticos poetas da contracultura “prohibidona”, mas não consegui me communicar com o Aquaplay nem com o Carvão, cujos endereços estavam desactivados. A lettra de seu “Bonde do aleijado” me fez imaginar como seria um “Bonde do cego”... Mas, ao mesmo tempo, reflecti que o proprio sadomasochismo tem seu componente carnavalizado. Sem fallar no simulacro que envolve um pacto consensual privado ou uma scena clubistica, o facto é que o brasileiro é capaz de encarar as maiores barbaridades pelo lado anecdotico... E lettristas como os da UDR 666 captam toda a violencia do quotidiano com aquella impiedosa veia satirica da melhor poesia fescennina. Tudo, por signal, é passivel de carnavalização neste paiz. A thematica das marchinhas mais famosas é um verdadeiro theatro de revista, criticando episodios e personagens da nossa historia. Até sadismo explicito achamos nellas, como naquella do Lamartine Babo, “Boa bola”, ou naquella do
Noel Rosa com o Hervê Cordovil, “O que é que você fazia?”, cantada pela Carmen Miranda. Convenhamos: o proprio Congresso não passa dum baile de mascaras e a gravata é mais uma peça da phantasia para legitimar o faz-de-conta parlamentar. Elles fazem de conta que legislam e nós fazemos de conta que somos representados. A unica coisa que não é de mentirinha é o salario que ganham, sahido do enorme bolso da nossa phantasia de palhaço... E o peor é que, si para nós o feriadão carnavalesco cae em fevereiro (às vezes em março), para elles a farra dura o anno inteiro. Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.
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Uma tragédia atingiu os EUA em 8 de janeiro. Em Tucson, Arizona, a deputada Gabrielle Giffords – Gaby – do Partido Democrata, convidou seus constituintes para dialogar sobre os problemas de sua comunidade, ao lado de um supermercado. Muitos compareceram. De repente, um rapaz de 22 anos, com uma arma automática, começa a atirar. Antes de ser dominado, atinge gravemente a cabeça da congressista, mata seis pessoas e fere outras 13. Por sua combatividade, nas últimas eleições, Giffords foi colocada no site da Republicana Sarah Palin – com uma mira em sua cabeça – na lista dos candidatos que deveriam ser derrotados. Em 12 de janeiro, na Universidade do Arizona, o Presidente Barack Obama fez um comovente discurso. Perante 15 mil pessoas, destacou que Gaby e seus eleitores estavam exercendo o governo “do” e “para” o povo. A homenagem aos que morreram, o agradecimento ao heroísmo dos que contribuíram para salvar vidas, suas ações e desprendimento, além das orações e expressões de preocupação, “devem nos levar a perguntar: Como podemos ser verdadeiros à sua memória?” Numa clara alusão ao que se comentava sobre Sarah Palin – pois alguns afirmaram que ela instigou o crime – ponderou que quando uma tragédia nos atinge, é de nossa natureza demandar explicações – tentar colocar alguma ordem sobre o caos – e dar sentido ao que parece ser insensato. Muito desse processo, de debater o que pode ser feito para prevenir tragédias, é um ingrediente essencial em nosso exercício de governar para nós mesmos. Em sábia reflexão, Obama destacou que num tempo em que nosso discurso se tornou tão agudamente polarizado – num tempo em que estamos tão ansiosos por colocar a culpa de todos os males do mundo naqueles que pensam diferentemente de nós – é importante trabalharmos no sentido de dialogarmos para a construção de um mundo mais humano e menos violento, muito mais para curar do que para ferir. O presidente conseguiu unir a Nação ao concluir que mais do que estar apontando o dedo ou definindo culpas, devemos expandir nossa maneira de aceitar o próximo, ouvindo cada pessoa com mais cuidado, aumentando nossa empatia e trilhando caminhos para que nossas esperanças e sonhos se entrelacem.
Ilustração: bruno paes
O Comovente Discurso de Obama
SONETO PARA feverEIRO [2102]
Eduardo Matarazzo Suplicy é senador. fevereiro 2011
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Débora Prado
Cesare Battisti: Condenado num processo cheio de falhas, e até falsificações, que correu à sua revelia, o escritor italiano se tornou alvo do ódio da direita mundial e passou a vida sendo perseguido pelo Estado italiano e, nos últimos anos, pelo judiciário brasileiro. Conheça os detalhes do caso Battisti. Ilustrações Paloma Franca 20
a
o eterno fugitivo
mplamente divulgado na grande mídia de diversos países, o debate acerca da extradição de Cesare Battisti se tornou tema de discussão no Brasil e na comunidade internacional. O Estado e a justiça italiana, o judiciáio brasileiro, a extrema direita e os reacionários de plantão se empenham na campanha pela entrega dele ao sistema penitenciário italiano para que permaneça encarcerado até o fim de sua vida. No Brasil, a propaganda contra o escritor e ex-militante de extrema esquerda também é intensa e, apesar do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter decidido negar sua extradição no último dia de mandato, Battisti continua preso, ilegalmente, e vai passar por novo julgamento no Supremo Tribunal Federal. Condenado durante processo que correu à sua revelia por quatro assassinatos cometidos na década de 1970, o que pouca gente sabe é que Battisti já havia passado por um julgamento na Itália. Neste primeiro julgamento, sentenciado em 1981, foi condenado a 13 anos e alguns meses de prisão por suas atividades militantes, ou ‘crime
de subversão’ e por porte de armas. Não houve, no entanto, qualquer condenação ou sequer citação dos quatros assassinatos que lhe são atribuídos hoje em dia. Quase ninguém diz ainda que seu segundo julgamento na Itália está permeado de contradições (ver Box), assim como o relatório do STF brasileiro, de autoria do Ministro Cezar Peluso. Na verdade, a condenação a prisão perpétua - reivindicada agora pelo governo italiano para justificar a extradição – só aconteceu no segundo processo, de 1988, baseado numa prática chamada ‘delação premiada’. “Durante o primeiro processo, houve muitas torturas, são 13 casos declarados. Mas, mesmo sob a tortura, ninguém nunca pronunciou o nome de Battisti” explica Fred Vargas, historiadora, arqueóloga e escritora francesa, complementando: “Em troca das acusações no segundo processo, outros presos ganharam consideráveis reduções na pena. Nenhum dos arrependidos e dissociados teve prisão perpétua, o único membro do grupo com essa condenação foi o ausente: Battisti”.
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Em suas pesquisas sobre o caso, ela constatou ainda que as procurações supostamente assinadas por Battisti para os advogados que o representaram no segundo processo são falsas. “Ele foi representado falsamente durante os onze anos do processo. Isso já seria suficiente para anular sua condenação” diz. Com tanta sujeira embaixo do tapete, fica evidente que os motivos para a condenação de Battisti são muito mais políticos do que de fato judiciais. Dalmo de Abreu Dallari, jurista e professor emérito da USP (Universidade de São Paulo), explica que se fossem considerados apenas os aspectos legais, Battisti já deveria estar em liberdade. “A prisão de uma pessoa cuja extradição o foi pedida tem caráter preventivo, visando garantir a execução da decisão do Chefe do Executivo, caso este decida favoravelmente ao pedido. A partir do momento em que o Presidente decidiu não conceder a extradição, já não havia motivos para manter Cesare Battisti preso, não havendo qualquer fundamento legal para essa tremenda restrição de seus direitos fundamentais, avalia o jurista, concluindo: “Assim, não há dúvida de que a motivação não foi jurídica, mas influenciada por outras determinantes”. Para Carlos Alberto Lungarzo, professor titular da Unicamp aposentado e militante da Anistia Internacional (AI), é totalmente impossível que Battisti tenha cometido algum assassinato e, além de injustiçado, sua extradição pode representar uma sentença de morte. “Se ele voltar à Itália e ficar vivo durante um tempo seria um milagre. O sentimento de rancor contra ele já existia antes, mas a agitação do caso na França e no Brasil está deixando em evidência a enorme corrupção da justiça italiana e a falta de seriedade e dos políticos” afirma.
O professor conta que a perseguição tomou tamanha proporção que uma região da Itália está proibindo os livros de centenas de escritores que assinaram um manifesto pela não extradição de Battisti. “É necessário entender um ponto sensível da cultura italiana, pelo menos nos últimos dois séculos: o sentimento de vingança muito generalizado. O Tribunal precisava dar uma satisfação aos parentes e ter um culpado universal. Claro que também há interesses políticos fortes: ameaçar a pouca esquerda que resta na Itália, mas que vai crescendo, fazer o papel de vítima no cenário europeu e por aí vai” diz. Os estudiosos do caso apontam mais de uma justificativa para a perseguição de Battisti. Para Lungarzo, é simplista dizer que Berlusconi quer ocultar seu fracasso político e seus escândalos sexuais, uma vez que a campanha contra o escritor aumentou a medida que seus livros críticos ficaram mais conhecidos. “Inicialmente, tudo indica que os magistrados italianos carregaram todos os assassinatos em Battisti, porque ele estava longe e não poderia se defender. Ele foi apenas um bode expiatório. Quando ele voltou à França, em 1990, a Itália tentou extraditá-lo - ‘por que não mais um?’. Mas, a extradição foi recusada e não se fez nenhum alvoroço. Então surgiu a verdadeira razão: Battisti se tornou um escritor de sucesso, com 15 livros publicados antes de vir ao Brasil. Suas histórias sobre perseguição, exílio e fascismo são romances lidos por pessoas que nunca leriam um livro de história. Há uma prova que eu acho muito clara disso: em quase todas as mensagens e comentários de ódio de leitores de jornais que se publicam na Itália sempre se fala que ele é um ‘afrancesado’, um rebelde, um homem que pinta uma imagem horrível da Itália, que
não é católico, e coisas assim. Isso é muito duro para um país onde domina a Máfia, o fascismo e a Igreja” avalia Lungarzo. De acordo com o filósofo e professor da USP aposentado Paulo Arantes, no governo italiano a extradição de Battisti se tornou um ponto de honra, assim como um ponto de honra para o aparato repressivo brasileiro e seus aliados impedir qualquer tipo de julgamento público das atrocidades cometidas pela Ditadura Militar. “Óbvio que se trata de um ponto de honra para a magistratura e para o Estado italiano, porque ele é fugitivo há 20 anos. E na Itália há uma unanimidade sobre isso entre a direita e a esquerda, se é que essa distinção ainda faz sentido lá”, avalia. Ele explica que, apesar de seu passado glorioso, o Partido Comunista italiano sujou as mãos durante a repressão italiana. “Muitos dos magistrados implicados nos julgamentos, na tortura e na repressão ou eram filiados ou gravitaram na ordem do Partido Comunista”, complementa Arantes. Segundo a historiadora Fred Vargas, existe ainda uma relação importante entre o caso de Battisti e a participação italiana na Guerra do Iraque para preparar a população italiana - que era contra a entrada da Itália na Guerra. “O governo quer fabricar um amálgama entre os antigos ‘terroristas’ dos anos de chumbo, e o novo terrorismo” explica. Outros países já negaram a extradição de Battisti, como a Grécia, Suíça, França, Inglaterra, Canadá, Argentina, Nicarágua e Japão. “Talvez por causa dessas negativas e porque pretendem usar Cesare Battisti como um troféu, alguns Ministros do governo italiano agridem tão violentamente o Brasil”, analisa Dalmo Dallari. Ele identifica também uma forte motivação política, “bastando lembrar que o atual Ministro da Defesa da Itália,
As contradições no segundo julgamento Autor de um livro sobre a trajetória de Battisti e a perseguição sofrida pelo escritor, Carlos Alberto Lungarzo reuniu informações sobre os processos judiciais contra o italiano. Em entrevista a Caros Amigos, ele apontou algum elementos problemáticos , embora afirme:”Há muitos detalhes confusos e contraditórios, mas são tantos que não caberiam em nenhuma revista”. Veja abaixo algumas contradições levantadas pelo professor: - No parágrafo 8 da página 448, o relator diz que, no caso do homicídio do açougueiro Sabbadin, o escolta do atirador era Battisti. Para provar que foi Battisti, disse que, além de provas (que não mostra), estão as testemunhas daqueles que assistiram ao homicídio ou seja, os clientes do açougue. Entretanto, algumas páginas antes diz que os clientes não puderam reconhecer ninguém porque os assaltantes estavam disfarçados. - No caso do policial Andrea Campanha, o juiz toma como prova o fato de que, segundo a testemunha Manfredi, sogro do morto, o matador seria um homem loiro de uns 25 anos. Na página 522, o juiz reconhece que Battisti não é loiro, mas disse que pode ser ele, porque Battisti é castanho claro, e esta cor se parece com loiro. - No primeiro homicídio, o do carcereiro Antonio San-
toro, os magistrados mencionam várias testemunhas, todas pelo nome de família, sem indicar sexo, idade, profissão, domicílio nem nenhum outro dado. Entre as páginas 238 e 244, se mencionam Ronco, Menegon, Zampieri, Linassi, Pagano, Suriano, e na página 247, Ardizzone e Del Tosto. Nenhum deles foi jamais encontrado por jornalistas, nem aparecem em nenhuma outra lista. O que eles testemunharam foi que, num horário próximo ao do crime, havia um casal jovem que estava a uma pequena distância do local (não diz quanto). Ardizzone e Del Tosto descrevem apenas a mulher. Os outros descrevem ambos, mas os detalhes não coincidem. Ninguém descreve exatamente o corpo. O relatório disse ainda, numa parte, que o matador aplicou dois tiros pelas costas, e em outra parte, que aplicou três. Afirma-se que a arma usada era uma Glisenti, cuja propriedade foi atribuída a Battisti, porque teria sido encontrada na casa onde ele foi preso. Porém, na sentença de 1981, as 4 armas curtas encontradas na casa em que Battisti foi preso são descritas em detalhes: uma Berettam uma Browninge dois revólveres, um 38 e um 375. Nenhuma era uma Glisenti. Dalmo de Abreu Dallari, jurista, também indica problemas que comprometeram a realização de um julgamento
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justo e imparcial. Ele afirma: “Tive acesso a muitos dados relativos ao processo que culminou com a condenação de Battisti. Examinando esses dados, verifiquei a ocorrência de vários vícios extremamente graves, que contrariam a afirmação de que houve um julgamento imparcial e justo. Assim, por exemplo, não foi assegurado ao acusado o direito de defesa, pois atuou no processo, aparentemente fazendo a defesa de Battisti, um advogado que utilizou procuração comprovadamente falsa e que não denunciou a falsidade das alegações da acusação, nem a precariedade das provas. Assim, Battisti foi condenado por dois homicídios praticados no mesmo dia e quase na mesma hora, em Milão e Veneza Mestre, locais que estão separados um do outro por dezenas de quilômetros, sendo praticamente impossível que ele estivesse nos dois lugares na hora em que os homicídios foram cometidos. A par disso, não foi apresentada qualquer testemunha presencial e a base da acusação foi o depoimento de um ‘arrependido’ na verdade um dos líderes do grupo a que Battisti estava filiado como um personagem menor, que fez as a acusações usando o mecanismo da ‘delação premiada’, recebendo benefícios em troca da acusação de outros. Portanto, não foi um julgamento imparcial e justo”. fevereiro 2011
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Ignazio La Russa, foi militante ativo da Aliança Nacional, organização neofascista. A par disso, é público e notório que a Itália vem enfrentando uma crise política, tendo havido várias manobras legislativas e judiciárias, visando impedir que o Primeiro Ministro Silvio Berlusconi seja processado criminalmente. Battisti vem sendo usado também em manobra para distrair a atenção do povo”, diz.
Extradição A perseguição a Battisti na Itália respingou no STF, que ignorou as contradições no julgamento italiano que condenou Battisti. Na instância máxima da justiça brasileira, o pedido de extradição ganhou com 5 a favor e 4 contra, cabendo, então, ao presidente Lula dar a palavra final. Em sua cruzada para desfazer as contradições presentes no processo, Fred Vargas enviou uma carta com 13 perguntas ao ministro Cezar Peluso, apontando as falhas no processo italiano. Não obteve resposta. Em seu relatório, o ministro Peluso havia afirmado que a Itália e sua justiça seguiram escrupulosamente as regras da democracia e de um Estado de Direito durante os ‘anos de chumbo’. “Isto é falso, a justiça italiana desta época utilizou ameaças, pressões, arrependidos, torturas, sem falar nas procurações falsas”, contesta Vargas. Carlos Lungarzo também avalia que há uma perseguição de “ambos chefões” do STF (Cezar Peluso e Gilmar Mendes), por diferentes razões: “Por um lado, salvo para poucos casos, o poder judiciário da maior parte do mundo não se pre-
ocupa em prender inocentes. Isto é comum nos Estados Unidos e absolutamente comum no Brasil. Então, as pessoas que acompanharam o voto do relator, salvo Gilmar Mendes, podem ter simplesmente votado por conformismo, por medo de discordar, por banalização da vida humana”. Para ele, entretanto, Peluso e Mendes estão promovendo uma verdadeira perseguição política, pois são típicos representantes da direita- o primeiro do conservadorismo católico e o segundo do estilo da direita brasileira. “Mendes sempre votou contra réus da esquerda. No caso de Mendes, por seu histórico, sua relação com a oposição política e outros detalhes, não há dúvida que a perseguição contra Cesare foi uma maneira de enfraquecer o governo, colocando Genro e Lula no meio de um conflito. Peluso é um radical católico, e me parece que nele há o sentimento não político-ideológico, mas algo mais profundo, que eu chamo ‘ódio inquisitorial’. Battisti é não apenas de esquerda. É uma pessoa crítica do sistema social, que escreveu mais de 10 livros onde denuncia a situação da Itália”, caracteriza. O professor Paulo Arantes também avalia que a inclinação política dos magistrados influenciou na decisão pela extradição de Battisti: “É uma instituição majoritariamente conservadora, os ministros são visceralmente reacionários, portanto, a palavra de ordem deles aqui também ‘nada que saia fora da linha pode ser relevado’, desde um estudante que quebra uma vidraça numa ocupação de reitoria, até o caso de Battisti. É a política da tolerância zero, apoiada pela opinião publica, que abomina a junção de
Trajetória de uma fuga sem fim
Battisti nasceu em 1954, filho e neto de comunistas. Quando adolescente, cometeu alguns roubos, sendo preso em Udine, onde conheceu Arrigo Cavallina, um preso político do grupo de extrema esquerda, o PAC (Proletários Armados para o Comunismo). Battisti entrou para o PAC como um militante comum. Na Itália, assim como em toda Europa, os anos 1960-1970 foram marcados por lutas sociais, com o aumento das manifestações de ruas, ocupações e, inclusive, da luta armada e da via insurrecional. Conhecidos como os ‘anos de chumbo’, o movimento de revolta foi muito mais violento na Itália. “A extrema esquerda luta contra o poder, que é corrompido e associado à máfia e, em parte, extrema direita. O poder utiliza a extrema direita para pôr bombas e atribuir os atentados extrema esquerda, o que os historiadores chamam de ‘Estratégia de Tensão’. Então, a extrema esquerda cai na armadilha e recorre as armas também” explica Fred Vargas. Segundo a historiadora francesa, nos anos 1970, existiu cerca de 600 grupos armados na Itália. O PAC se forma no auge da ‘Estratégia de Tensão’, com a proliferação dos atentados praticados pela extrema direita com apoio da OTAN (Organiza-
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ção do Tratado do Atlântico Norte), de acordo com o professor Paulo Arantes. “O que se passou na Itália foi um maio de 1968 (momento de insurreição na França) que durou 10 anos. Houve várias tentativas de Golpe de Estado, nesse contexto, houve estouros violentos dos dois lados, tanto da extrema direita, como da extrema esquerda. O PAC era uma das muitas organizações e não chegou a ter mais de 60 militantes ativos. Não era nenhuma ameaça para o governo italiano”, caracteriza Arantes. Entre junho de 1978 e fevereiro de 1979, o PAC assumiu a autoria de quatro assassinatos: de um carcereiro chamado Antonio Santoro, do açougueiro Lino Sabbadin, membro do partido fascista MSI, do ourives Pierluigi Torregiani e do motorista do serviço secreto da polícia Andrea Campagna. Por suas atividades no PAC, em 1979, Battisti foi detido e julgado pelos crimes de possuir armas não registradas e associação para cometer atos subversivos. Ele foi condenado a mais de 12 anos de prisão, sentença considerada exagerada por Carlos Lungarzo. “Durante o julgamento terminado em 1981, o Tribunal do Jurí de Milão não tem nenhum plano contra Battisti, os magistrados ainda não tinham
luta política com gesto de força” define. Agora, o que está em jogo, segundo Arantes, é decidir se a autorização dada pelo STF para Lula decidir se iria aceitar ou recusar a extradição foi séria, ou foi apenas brincadeira. “Eu acho quase impossível que, além de Peluso e Mendes, alguém possa votar que foi ‘pura brincadeira’. Tudo indica que a decisão de Lula será mantida”, diz. Para Dalmo Dallari, a falha grave do STF foi a manutenção de Battisti na prisão mesmo depois de publicada a decisão do Presidente da Repúlica negando atendimento ao pedido de extradição. “A decisão do Presidente Lula foi absolutamente correta, do ponto de vista jurídico. Quanto aos fundamentos da decisão, também não cabe qualquer reparo. Com efeito, o Presidente decidiu no uso de suas competências constitucionais e tendo por base, quanto conveniência e oportunidade, disposições expressas do tratado de extradição assinado por Brasil e Itália em 1993. As condições concretas, a conveniência e oportunidade da extradição, isso fica no âmbito das competências exclusivas do Presidente”, explica. Para o jurista, a decisão de Lula deve ser mantida. “Apesar dessas grosseiras investidas, não acredito que haja a mínima possibilidade de modificação da decisão tomada regularmente pelo Presidente Lula. Embora alguns brasileiros se posicionem a favor da pretensão italiana, é preciso não perder de vista que o Brasil não pode ceder sua soberania para ser agradável a uma corrente política italiana” afirma.
decidido acusá-lo de nenhum homicídio. Ele foi julgado porque era conhecido como membro dos PAC, porém um membro pouco importante, e ele foi encontrado numa casa onde se guardavam algumas armas. O fato de que ele pegasse uma pena enorme (13 anos e 5 meses, depois reduzidos para 12 e 10 meses) se deve ao fato de que qualquer militante da esquerda armada tinha penas muito maiores que os autores de delitos comuns equivalentes”, afirma. Em 4 de outubro de 1978, o serviço de inteligência da polícia de Milão identifica Pietro Mutti, um dos líderes do PAC, como autor da morte de Santoro, junto com uma mulher que seria sua escolta. Mutti, procurado durante mais de um ano, é capturado em janeiro de 1982, quando Battisti já não estava na Itália. Nessa época, a sentença de 1981 estava sendo apreciada em segunda instância e depois foi parcialmente confirmada pelo tribunal de apelações. Ou seja, o caso de Cesare estava fechado. Por conta da presença de Mutti, e outros que foram capturados com ele, se abre um segundo processo, chamado PAC BIS, no qual Battisti é julgado de novo. Pelo acordo em que delata Battisti, Mutti teve sua pena reduzida de prisão perpétua para 8 anos.
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Cesar Cardoso
FOI UM RIO DE DINHEIRO QUE PASSOU EM MINHA VIDA O samba não vem do morro nem lá
Neste período, Battisti já estava longe da Itália. O escritor foge da prisão em outubro 1981, atravessando os Alpes a pé rumo França. Lá ele permanece por alguns meses até se refugiar no México. “Ele já está longe quando começa o segundo processo do PAC, em 1982, do qual ele seria informado apenas em 1990, quando retorna a França. Depois, ele vive durante 13 anos lá legalmente, sendo escritor e porteiro. Tem uma mulher e duas filhas”, conta Fred Vargas. Battisti vive na França durante os anos da chamada Doutrina Miterrand, quando em 1985, o presidente francês François Mitterrand oferece proteção aos militantes da esquerda armada italiana. O pacto foi rompido, entretanto, pelo governo de direita de Jaques Chirac, e atualmente também por Nicolas Sarkozy. Com isso, Battisti continua em sua fuga sem fim e, em 2005, se refugia no Brasil. A Itália pede a extradição do escritor e, em novembro de 2009, o Supremo Tribunal Federal decide por cinco votos a quatro pela extradição de Battisti, mas deixa palavra final para o presidente da República. Lula, no último dia de seu mandato, decide negar a extradi-
ção. A Itália contesta a decisão no STF, que voltará se manifestar sobre o tema. Enquanto isso, Battisti segue preso. Em uma carta divulgada recentemente no Brasil, Battisti afirma: “Depois de 14 anos de asilo, a França de Sarkozi me vendeu Itália de Berlusconi em troca do trembala [comboio de grande velocidade] de Lyon-Turin. Desde o ano 2000, estamos assistindo impiedosa tentativa do Estado italiano enterrar definitivamente a tragédia dos anos de chumbo, jogando na prisão e levando à morte o bode expiatório Cesare Battisti. Entre centenas de refugiados dos anos 1970 que se encontram em vários países do mundo, não fui escolhido eu por acaso nem pela importância do papel de militante, mas pela imagem pública que eu tinha enquanto escritor, o que me dava o acesso à grande mídia para denunciar os crimes de Estado naquela época e os atuais”.
Débora Prado é jornalista debora.prado@carosamigos.com.br
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da cidade. Vem da conta bancária. Com grana você sai até de rainha da bateria, mesmo que tenha 80 anos e seja homem. Eles te levam pra fazer uma cirurgia de troca de sexo e seis lipoesculturas, do CTI você vai de helicóptero pra avenida e já sai sambando e prontinho. Ou melhor: prontinha. E nas escolas de samba só dá enredo financiado. A Nenê de Vila Matilde aproveitou o nome e descolou o financiamento de uma maternidade. Desfilará com 2 mil mulheres grávidas e transmissão das ultrassonografias ao vivo, em telões, pra provar que feto também é bom de samba. A Vai-Vai, bancada por uma butique erótica, teve que trocar seu nome pra Vem-Vem. E a Império da Casa Verde, patrocinada pela indústria automobilística, virou Império do Carro Verde, com o samba Penso, Logo Buzino. São 3500 carros alegóricos, num desfile que começa no Sambódromo, pega a BR 101 e termina em Salvador, onde a escola estaciona atrás do trio elétrico. Com grana das fábricas de cigarro, outra novidade é a Mocidade Dependente de Nicotina de Padre Miguel, a única escola de samba para fumantes, que vem com o enredo Vida, Ascensão e Glória do Enfisema. Só que a escola tem que desfilar do lado de fora do Sambódromo, já que lá dentro é proibido fumar. Mas pra provar que nem tudo é grana, a grande sensação do carnaval é a Beija-Flor de Teerã, ex-Império do Mal, primeira escola de samba iraniana. O problema é que o samba ainda não ficou pronto porque ninguém achou uma rima pra Mahmoud Ahmadinejad. Já o desfile é simples: a rainha da bateria sai nua na frente e a escola vem atrás tacando pedra.
Cesar Cardoso é flanelinha de carro alegórico e edita o blog PATAVINA’S (http://cesarcar.blogspot.com). Você acredita? fevereiro 2011
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5 ensaio IGOR OJEDA E TATIANA MERLINO
Cuba Socialista - Goste-se ou não, a experiência de ir à Cuba é única. Apesar das dificuldades que o povo vive no dia a dia, muitas delas decorrentes do embargo econômico, algo que impressiona no país, além da sensação de ter entrado num “túnel no tempo”, é a dignidade desse povo, que, sob o comando de Fidel Castro, fez uma revolução socialista há mais de 50 anos. Entre as cenas marcantes da ilha, há os carros da década de 1950, muitos outdoors em defesa da revolução e da soberania do povo, como o “em mi casa mando yo (na minha casa mando eu)”, as crianças de uniformes escolares, todas muito bem cuidadas. São cenas de um país e de um povo que resiste e se reinventa. 1. Carros em Havana/ Tatiana Merlino. 2. Playa Larga, Baía dos Porcos/Igor Ojeda. 3. Playa Blanca, Holguin/ Tatiana Merlino. 4. Carretera Central-Estrada Central/ Tatiana Merlino. 5. Bartolomé Masó, Granma/Igor Ojeda. 6. Cafeteria em Havana/Igor Ojeda. 7. Carretera central-Estrada Central/Tatiana Merlino.
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entrevista
Rudá Ricci
Por Tatiana Merlino
“O lulismo odeia
a participação popular”
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s oito anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva foram marcados por um processo de conciliação de interesses, e não de enfrentamento, defende o cientista político mineiro Rudá Ricci, professor da PUC-MG. “E um governo de conciliação parece de esquerda num país tão conservador como o Brasil”, afirma, em entrevista, o autor de “Lulismo - da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira”. Para Rudá, o lulismo é um “neogetulismo”, pois o primeiro recriou a mesma estrutura de poder do segundo, dando seguimento à modernização conservadora iniciada por Getúlio Vargas: “Uma modernização econômica sem mudar de maneira alguma a estrutura de poder”. Segundo o ex-militante petista, embora o lulismo tenha tirado 30 milhões de pessoas da pobreza, não gosta da participação popular. “É a visão sindicalista, de metalúrgico, que não gosta de participação, gosta de centralização, é muito pragmático”, sustenta. Para ele, o lulismo é muito claro, mas “as pessoas de esquerda não querem entender o que foi o lulismo”. O cientista político também analisa o comportamento dos novos integrantes da nova classe C, que “são conservadores, tem medo de tudo, desconfiam de tudo que é público, não vêm muita utilidade na democracia”. Assim, acredita na possível emergência de um movimento de massa ultraconservador. “Há algumas movimentações nesse sentido”. No entanto, o cientista político não vê apenas legados negativos do lulismo. Para ele, o grande mérito do governo Lula é que “ele fez o país se reencontrar consigo mesmo. O Brasil é uma potência, está cada vez mais evidente para todo mundo”, defende Rudá, que também elogia a política externa do ex-presidente: “A política entrou como centro da diplomacia brasileira para valer, e não como habilidade para fazer negócio. Pela primeira vez, a política não foi só para abrir mercado”.
Caros Amigos - O que é o lulismo e como ele se manifestou durante o governo Lula? Rudá Ricci - O lulismo é um sistema de gerenciamento do Estado e de políticas públicas. Portanto, não é uma ideologia, não é um movimento. Ele moderniza economicamente, mas é conservador do ponto de vista político, o que a gente chama em ciência política de modernização conservadora. E ele se montou como nos EUA
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o fordismo se montou no século passado. Aliás, os dados de ascensão social no Brasil são muito parecidos com os dados da ascensão social dos Estados Unidos desse período. Eu acho que é um fordismo tupiniquim, com um Estado muito forte e centralizador. 65% do orçamento público está concentrado na execução da União. Os municípios brasileiros dependem, em sua maioria, de convênios estabelecidos com ministérios. Ele usou como mecanismo de suporte social e desenvolvimento os recursos do BNDES, o PAC e as obras públicas e, com isso, conquistou o grande empresariado nacional. Todos os grandes conglomerados têm financiamento com o BNDES. E, na outra ponta, há, principalmente no aumento real do salário mínimo, a grande política de ascensão social no Brasil. Depois dela, vem o crédito consignado e, depois, o Bolsa-Família, que tirou da pobreza mas não gerou uma grande ascensão social, principalmente para os pobres se tornarem classe média, classe C. E aí vem a base do lulismo. E aí tem o suporte político. De um lado, a coalizão presidencialista, que é algo inédito no Brasil. O Getúlio Vargas até tentou montar algo, mas o Estado Novo acabou destruindo o que ele tentava forjar. Nós não tivemos na história republicana nenhuma situação parecida com a atual. O Brasil desmontou o sistema partidário, criou uma coalizão de tipo parlamentarista e jogou a política do Brasil entre governistas e não governistas, mas não é qualquer governismo, é lulista ou não lulista. E os partidos de oposição estão completamente em frangalhos, tanto PSTU quanto Psol de um lado, que não conseguem nem somar com todos os partidos de esquerda 1% da intenção de voto nacional, e de outro, à direita, o PSDB e o DEM; o primeiro num de seus momentos de maior tensão interna, a ponto de muitas lideranças falarem em refundação, e o segundo praticamente destruído com a saída do Gilberto Kassab. A última ponta é a do financiamento pelo Estado das organizações populares no país, principalmente as centrais sindicais.
Qual é a relação entre a emergência do lulismo e a institucionalização dos movimentos sociais surgidos na década de 1980, tratados no seu livro? Os movimentos dos anos 1980 se basearam numa concepção anti-institucional, ou seja, nós acreditávamos, e isso vem do combate à ditadura, que todas as organizações públicas e au-
O cientista social Rudá Ricci analisa o modelo de gestão implementado pelo ex-presidente Lula.
toridades eram ilegítimas. Acreditávamos que qualquer tipo de chamamento das autoridades para a participação das organizações populares na questão significaria cooptação. A legitimação das lideranças sociais nesse período se dava pela capacidade de mobilização, por isso que os líderes sociais dos anos 1980 eram carismáticos, tinham capacidade de retórica muito desenvolvida, falavam com emoção. A partir do final dos anos 1980 em diante, a esquerda começou a assumir gestões municipais, algumas estaduais e aí houve uma participação direta de muitos desses líderes. E aí nós temos a primeira ruptura desse anti-institucionalismo. Isso se dá no final dos anos 1980 até 1994, e, depois disso, temos uma partidarização muito grande de todos os movimentos sociais no Brasil, e das organizações populares. E a terceira questão, que não é impacto, e sim causa, é que começa enfim o financiamento externo às pastorais sociais, a muitas ONGs, e começa a longa jornada que estamos vivendo até hoje no Brasil. Essas ONGs, ao prestarem serviço, começam a criar estrutura de gestão controversa, e hoje o gerente de projetos tem mais poder do que o diretor, às vezes.
O senhor afirma que o Lula finalizou a modernização conservadora iniciada pelo Getúlio Vargas. Como isso aconteceu? O conceito de modernização conservadora é da sociologia e foi elaborado por um autor chamado Barrington Moore. Atualizando isso para o caso brasileiro, significa que se faz uma modernização econômica sem mudar de maneira alguma a estrutura de poder, ela é conservadora nesse sentido do poder. O Lula articulou todas as lideranças clientelistas do Brasil, assim como Getúlio fez isso. A impressão que se dava do Getúlio era que ele estava atacando toda a base clientelista, dos coronéis, mas muitos deles foram recriados através do getulismo. O lula recriou a mesma estru-
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tura de poder. A marca do getulismo e do lulismo é a conciliação de interesses e não o enfrentamento. Um exemplo é que se tem o Ministério da Agricultura de um lado, tem o do Desenvolvimento Agrário do outro. Isso não é por acaso. Se o Getúlio criou a base da industrialização do país com um Estado organizado a partir de uma estratégia desenvolvimentista e gerou a urbanização acelerada do país, o Lula deu o passo final, que é a emergência de um mercado consumidor de massa, da organização do investimento dos empresários através do PAC.
O lulismo é um neogetulismo? É um neogetulismo sem o autoritarismo do Getúlio. É uma espécie de síntese didática. O lulismo completa o getulismo. Por isso que o Lula é o líder da classe C. Ele é a expressão do sucesso dos pobres. E ele soube usar isso.
foto: agência brasil
Com essa nova classe média consumista, quais podem ser as consequências desse consumo exagerado e dessa liberação de crédito? São vários, e o primeiro mais evidente é a possível bolha de consumo, porque no final da gestão Lula era evidente isso. Segundo o Ipea, 37,8% das famílias que tem dívidas disse que não sabiam como pagá-las. Em relação ao crédito, a classe C emergente que comprava em 40 e 60 parcelas continuava comprando mesmo endividada. Isso ocorria, porque havia a expectativa de aumento real do salário mínimo no ano seguinte. Como tinha mesmo esse aumento e como as parcelas eram todas diluídas, fazia crediário em cima de crediário. A implosão, para todos os analistas, estaria mais ou menos projetada para 2014, 2015. A segunda bomba relógio, e essa não foi desarmada, é o financiamento das políticas de transferência de renda, sendo o Bolsa-Família o principal. Estudo da Beatriz David, pesquisadora da UERJ, revela que o segmento que mais vem perdendo poder aquisitivo é a classe B. Não há uma política do lulismo para fazer uma recuperação
da renda do segmento médio, e aí que está a oposição. A segunda questão é que estamos no limite desse sistema de transferência de renda via conciliação de interesses. Estou dizendo que a transferência de renda e ascensão social é insustentável dessa maneira.
Em relação à questão da ascensão social, existem muitos especialistas que criticam, questionam essa ascensão pela renda. Essas pessoas continuam pobres de direitos? Mais ou menos. Esse é um terceiro item que eu ia levantar. Tem saída? Tem. Uma política de esquerda teria que tributar os mais ricos, adotar a tributação progressiva. Mas no modelito do Lula isso não funciona, porque não é um governo de esquerda, é um governo de conciliação. E um governo de conciliação parece de esquerda num país tão conservador como o Brasil. A classe média tradicional do Brasil, classe B, é muito conservadora, mas essa classe C também é, mas de outra natureza: desconfia de tudo que é público, não vê muita utilidade na democracia, esse debate de regime não é algo que lhes interesse. Isso porque são de famílias cujos pais, avós, eram pobres, então, por que teriam que acreditar em governo, partido ou sindicato? Por isso, eles são muito pragmáticos, é diferente da classe B. Não lhes importa se há corrupção ou não. Se o político garantir que eles vão continuar tendo esse salário mínimo ou aumentar a ascensão, votam nele. Isso não é clientelismo, é algo mais sofisticado. Se no dia seguinte ele errar, nunca mais votam nele. É um eleitorado que se aproxima da teoria liberal, da política como mercado. Eles agem desse jeito, e de novo o Lula é muito esperto. Quando no início da gestão ele voltava a falar, “eu não sou socialista, eu sou torneiro mecânico”, ele sabia o que estava falando, ele estava falando para esse pessoal. Dados sobre os hábitos dessa população revelam que eles não acreditam em nenhuma organização comunitária ou social, o segmento social que eles mais valorizam é a
família e depois citam amigos, e mais nada. Eles sabem que não são classe A, querem ser e temem cair, por isso não estão seguros. Por causa disso, formam uma espécie de rádio peão entre famílias conhecidas para saber onde tem liquidação para ir em massa. É uma estratégia de sobrevivência do pobre com consumo de classe média.
Mas em relação aos direitos? Eles estão pouco se lixando para os direitos. O discurso da cidadania e do meio ambiente não interessa esse pessoal. São pobres de direitos ainda. São pessoas que têm TV de plasma, mas não tem saneamento básico. Eles têm cinco celulares, duas televisões, essa é a média da classe C, vão ao cinema, mas têm um dormitório ainda insalubre. É um consumismo top de linha, eles consomem TV de plasma, dividem em 60 parcelas. Compram um carro do ano – o mercado no final do ano explodiu –, vão de avião para o Nordeste, mas não têm segurança de pagar todas as parcelas que vêm acumulando. Esse tipo de insegurança, de desconfiança de tudo que é público e de tentativa de sucesso pela família dá todos os contornos de uma ideologia muito conservadora. O senhor fala na possível emergência de um movimento de massa ultraconservador. Já estamos vendo isso ou pode acontecer? Há algumas movimentações nesse sentido. O Tea Party nos Estados Unidos não é um movimento monolítico como se vende aqui no país, são 600 articulações no país, que não conformam uma unidade. Eles são muito moralistas, não têm exatamente um programa. Eu acho que o final do primeiro turno no Brasil deu um susto no país inteiro. Mexeu nesses temas todos da moral, mexeu com a âmago da maioria das pessoas da classe C, que são ultraconservadoras. E representam 52% da população. Há alguns analistas que falam que eles são cínicos politicamente. É verdade. “Eu voto, mas pouco me interessa em quem eu estou votando”. Isso porque o objeto central deles é a família. Mas tem também um cinismo que é desse moralismo. A grande maioria da classe C, quando perguntada, fala que é contra o aborto, mas a média é de três casos de aborto na família, então se diz que eles são cínicos. Eu não acho que seja exatamente cinismo, é um discurso, uma intenção dessa classe C sair da situação de pobreza. O conservadorismo é um desejo de não parecer mais pessoas pobres, ralé. Isso cala muito fundo nessas pessoas, e o Lula sabia muito disso quando ele falava “eu sou contra o aborto, mas não posso negar como governante estadista que é um problema de saúde pública”. Quais são as perspectivas do lulismo? Como fica o lulismo sem o Lula na presidência, com a Dilma? O lulismo tem, possivelmente, um tempo de duração muito grande, porque ele, efetivamente, criou um mercado consumidor muito potente. Os dados que temos são que, se continuarmos nesse ritmo de incorporação de segmentos de outras classes na classe C e diminuindo a pobreza fevereiro 2011
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na velocidade que diminuímos nos últimos quatro anos, a gente chega à Copa de 2014 sendo o quinto mercado consumidor do mundo. Só atrás da China, EUA, Alemanha e Japão. Imagina a quantidade de investimento que vai ter aqui. E como as pessoas estão vivendo esse dia de entrar no shopping pela porta da frente. Essa geração que rompeu com a história de pobreza da família, essa geração que vamos ter mais 10, 20 anos dela ainda comandando o país e o pensamento brasileiro, ela vai estar ainda relacionando o Lula como um bom político, bom gestor. Segundo, o Lula teve uma situação de gasto público que a Dilma dificilmente vai ter. Os programas que ele criou estão batendo no teto, eles vão ter que mudar a lógica de financiamento desses programas de transferência de renda. O Lula desmontou o sistema partidário. Fora o governo, não tem mais partido que tenha um diagnóstico do Brasil e políticas para propor para o país. A oposição critica o Lula e o compara com a Dilma, não consegue falar de política pública nenhuma. Neste momento, com o governo inflado pela coalizão, estamos numa espécie de sistema de partido único governista. Quando acontece uma situação assim, em que o executivo monopoliza o sistema partidário, as divergências passam a ser transferidas do campo eleitoral para o campo do governo. A maioria fala que o problema é do PMDB, mas não é. É todo o sistema de coalizão que está em disputa. O Brasil hoje tem um Executivo que comanda o sistema partidário. O sistema partidário em frangalhos, uma oposição que fala em reconstruir, temos só quatro anos pela frente para a eleição municipal, um governo depositário do lulismo, mas que vai enfrentar uma situação muito mais difícil na política econômica que o Lula enfrentou. Ora, o salvador está aí. O Lula, levando para seu instituto Paulo Vannuchi, Clara Ant e Luiz Dulci, claramente não está querendo fazer só um instituto. Ele está levando três ministros. Não é qualquer coisa. Acho que o Lula retorna em 2014, nos braços do povo.
Existe uma questão simbólica positiva em relação à emergência da classe C, como a empregada doméstica que pode ir ao shopping? É claro que tem. Poderia dizer que a segunda geração dessa classe média vai ser ambientalista, mas estou tentando analisar essa primeira que é conservadora, e o Lula nadou e surfou sobre esse conservadorismo. Eu quero dizer, portanto, que a base de discurso e a base social do lulismo são conservadoras. Mas sabemos que o Lula não é conservador, pelo menos pela história dele, parece que ele não é. Tem um jogo conjuntural, e o Lula é muito pragmático, porque antes de tudo ele é um sindicalista. E montou essa popularidade. Eu acho que a relação entre a classe B e a C é de uma tensão leve. Você poderia dizer, “quando o pessoal da classe C é desprezado pela classe B, eles não ficam irritados?”. Não, porque tem uma memória de subordinação. É a empregada doméstica olhando para a patroa. Eles não construíram essa noção de direito. Para eles, direito é
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consumo. O impacto desse momento é a classe B muito irritada, porque perdeu status, não só poder aquisitivo. Há um conservadorismo ideológico com essa ascensão social. Temos a classe C que fica muito irritada, com qualquer tipo de ataque a essa noção conservadora de família. E é aí que pode surgir um movimento social de direita, o primeiro de base no Brasil. Nós tivemos a UDR, mas era da elite agrária, esse é de base mesmo. A Dilma já assumiu algumas ações que demonstram uma ruptura com essa lógica inicial do lulismo, não é ruptura forte, mas essa ideia de criar um conselho de gestão e adotar um modelo de gestão pública da Inglaterra é uma ruptura pesada com a concepção do PT, com o lulismo.
É possível que essa base rompa com a Dilma? Essa base não tem relação política, ela é gelatinosa, se desloca e é pragmática. O objetivo dela é continuar consumindo, não entrar em inadimplência e se possível aumentar o poder aquisitivo. Se por acaso a Dilma começar a falar em ataque aos militares, casamento gay, legalização do aborto e descriminalização da maconha, aí mexeu com eles. Porque esses temas simbolicamente questionam a ordem, e a classe C defende a ordem. Na sua perspectiva, o governo Dilma será mais conservador que o Lula? Na política, sim, não sei na economia. Até agora a Dilma está sendo a expressão da história dela, uma pessoa que veio da Polop, que era, nos anos de chumbo, talvez a organização mais intelectualizada. Depois, ela vai para organizações de luta armada que tinham alta centralização e disciplina política, e depois ela foi para o PDT. Ela junta essas coisas. A Dilma não é uma pessoa da rua, ela é muito técnica, não tem a história e o discurso do PT. Isso está muito evidente, ela tem objetivos, é muito centralizadora, adota mecanismos de gestão que vem do alto empresariado brasileiro, e isso é uma ruptura com o lulismo. E eu não acho que o Lula está achando isso ruim, pois ele volta com tudo depois. Qual é o seu balanço do governo Lula? O que houve de positivo e negativo? O grande mérito do governo Lula é que ele fez o país se reencontrar consigo mesmo. A ideia de que o gigante estava adormecido... não está mais. O Brasil é uma potência, está cada vez mais evidente para todo mundo. Já somos o segundo da América, somos mais ricos que o Canadá e o México. O Lula conseguiu criar uma política de estabilidade, que está assentada numa forte profissionalização da ação do Estado na economia. Houve um aumento da capacidade e a confiança nos agentes econômicos, como o Banco Central, o Ministério da Fazenda, do Planejamento, eles sabem operar
com as técnicas de mercado e controlam mesmo a economia. Com todos os ataques aos BNDES, ele foi um fomento ao desenvolvimento. A segunda grande vantagem do governo Lula foi articular uma intenção social de inclusão de massa com desenvolvimento, algo que a gente não via há muito tempo no Brasil. Talvez a última vez que a gente ouviu isso foi antes do golpe de 1964. Efetivamente, quem juntou as duas coisas foram João Goulart e Lula. E, finalmente, a política externa. A política entrou como centro da diplomacia brasileira para valer, e não como habilidade para fazer negócio. Pela primeira vez, a política não foi só para abrir mercado, mas para inserir o país como potência. Acho que o Brasil disputou a América inteira e ganhou. Com o Irã foi uma vitória, a história da negociação Brasil, Turquia e Irã foi uma “vitória de Pirro” ao contrário. Ou seja, parecia uma derrota de Pirro, a comunidade e o G7 ficaram muito irritados, mas o Brasil entrou na história agora, sabe negociar. E é um país da América Latina que entrou no Oriente Médio. Eu acho que são três campos muito importantes, que mudaram completamente o país. O que foi ruim? É que parece que para se governar esse país não se pode ser de esquerda. Na gestão participativa de controle social, nós demos um passo atrás. Começamos o governo Lula discutindo o plano plurianual, e nunca mais voltou. O governo Lula deliberadamente rachou o movimento social nas conferências que são cantadas em prosa e versos. Só duas das 60 ou 70 que foram feitas viraram lei.
O senhor acha que foram feitas “para inglês ver”? Não, isso foi uma divisão. É deliberado. O lulismo odeia participação popular. Expulsou o Frei Betto, o Ivo Poletto, acabou com o Fome Zero, colocou o programa Bolsa-Família na mão dos prefeitos. O lulismo é muito claro, as pessoas que são de esquerda não querem entender o que é o lulismo. O lulismo não é de esquerda, ele jogou a esquerda para fora. Toda a pauta da esquerda, a reforma agrária, ele jogou no lixo. Aliás, eu acho que o MST está com os dias contados. Com o BolsaFamília substituindo cestas básicas, e com o aumento da classe média, que já é 34% da população rural. Com o aumento da classe média, que segundo o Marcelo Néri (economista da FGV) é o setor da economia onde vem diminuindo a pobreza no Brasil, o MST não tem mais base social para fazer ocupação. O Lula foi assim, dividiu a pauta em conferências, não incluiu nada no orçamento, não aumentou a transparência, reforma agrária ele acabou, substituiu pelo desenvolvimento do território, questão ambiental... a Marina Silva não saiu do governo à toa. Nós temos que entender que aqui tínhamos uma visão de desenvolvimento e inclusão social conservadora. No campo da política é onde temos os prin-
“O lulismo não é de esquerda, ele jogou a esquerda para fora. Toda a pauta da esquerda, a reforma agrária, ele jogou no lixo”.
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cipais problemas graves. O debate é político. É a visão sindicalista, de metalúrgico, que não gosta de participação, gosta de centralização, é muito pragmático, cidade é mais importante que campo. E o Lula é isso.
Em relação aos movimentos sociais, quais são os dilemas que se colocam diante do lulismo? O senhor disse que as políticas do lulismo estão no limite... se elas estourarem, se a economia piorar, não é possível que sua base social se fortaleça? É, se elas estourarem, se esse sistema for desmontado, aí sim, vamos ter um movimento de esquerda e um de direita, ou seja, o lulismo não está consolidado. O senhor disse que o MST está com os dias contados porque não tem mais base para ocupação.. É o mais provável, porque daqui para diante, vamos ter a entrada do pré-sal, e já está aprovado o fundo social do pré-sal. Se quiserem dirigir esse dinheiro para segurar o Bolsa-Família, eles seguram. Eu acho que vai ter problemas políticos, mas do ponto de vista econômico, só se tiver uma crise internacional econômica gigantesca que vamos desmontar esse sistema de apoio social do lulismo. Porque é a sobrevivência deles. Dificilmente algum governo vai ser louco suficiente para não alimentar essa roda. A tendência é que a base social do MST fique cada vez mais restrita. Mas lembrando que a pobreza não acabou no país, então, não é que ele vai morrer hoje. E quem são os pobres do país da classe média? Regiões onde tem bolsão de pobreza. No Sudeste, Vale do Ribeira em São Paulo, Jequitinhonha em Minas e, depois, Nordeste. Principalmente no meio rural, mas meio rural é onde a pobreza vem diminuindo mais aceleradamente, provavelmente em função do Pronaf e da aposentadoria. A população rural está muito envelhecida, os jovens estão vindo para a cidade. Embora ainda tenhamos 20% da população pobre e miserável, então ainda tem base, mas essa população é muito conservadora. Só se o MST conseguir ligar o discurso do direito com o discurso messiânico. Se essas pessoas não acharem que essa terra é de deus, eles não ocupam. Não é uma população como da Guatemala, do Peru, eles não são de esquerda. O MST pode ser, mas a base não. Mas, e esse processo de formação que eles fazem, não pode ser a preparação para um momento mais agudo? Claro que pode ser, mas qual é o momento agudo se estamos em ascensão? Isso é clássico no marxismo, porque num momento de opulência, desenvolvimento, pode até ter briga por mais aumento de salário, mas a greve é uma coisa passageira, porque logo tem aumento. Mas não tem lutas sociais. Revolução Chinesa, Revolução Russa, Cubana, todos os movimentos revolucioná-
“Só há formulação, capacidade, interesse de discutir um diagnóstico, tentar construir o novo quando você quer mudar a ordem”. rios nascem de uma crise profunda social e econômica. Mas aqui não é o caso, o Brasil está em ascensão. Infelizmente, estamos mais próximos de uma cultura norte-americana do que uma cultura de esquerda. Uma cultura de consumo estimulada pelo lulismo, inclusive. Entre os dilemas dos movimentos sociais, para mim, o primeiro é continuar sendo movimento social, porque grande parte do que chamamos de movimento social é organização popular. O conceito de movimento social é muito claro, significa uma organização legitimada pela pressão da mobilização, sem hierarquia, que luta por uma reivindicação de inclusão. O mecanismo de tomada de decisão dos movimentos sociais é o de democracia direta, assembleia. Qual é a diferença do ponto de vista da política? Os movimentos sociais falam para o público, se expressam e ganham o formato no público. As organizações fazem a política no privado e se expressam e ganham força nas relações privadas. A tendência é virar organização. E virando organização, temos o segundo problema, que é o financiamento. Por que tem “abril vermelho” no Brasil? Porque tem negociação das verbas públicas do Plano Safra em maio, junho. Não tem efeméride que defina abril como período de luta pela terra. Só existe em função da falta do Estado. E isso revela o quanto que temos, no setor de mais pujança de luta e reivindicação política do Brasil, que é o campo, todas as pautas definidas pela dependência das políticas públicas e financiamento do Estado. Temos “abril vermelho” para mostrar força, e em maio e junho se negocia o Plano Safra com força. E essas lutas sociais não definem a política do Estado, só falam qual é o lugar de cada organização na escala de negociação com o Estado.
Mas qual seria a alternativa de luta a essa situação que vivemos hoje? Seria o inverso da armadilha em que nós entramos. Primeiro lugar, começarmos a não mais rachar em conferências as nossas pautas, temos que ter uma pauta de país. E, para isso, temos que ter uma conferência nacional sobre o desenvolvimento do país, não se dividir em direito da criança e do adolescente, saúde, gays, negros. Porque quando a gente divide a pauta, ao fragmentar, vira imagem e semelhança do Estado. A segunda questão é o controle social sobre o Estado e, a partir daí, construir uma concepção de reforma do Estado. Quem pensaria essa pauta de país? As organizações e movimentos sociais? Os partidos políticos como forma de representação estão cada vez mais superados pelo tempo. Eles
nasceram no século 18, mas hoje viraram empresas políticas e não representam mais o cotidiano brasileiro. E as estruturas em rede da internet são os que estão demonstrando mais vitalidade, blogs, redes e assim por diante. Será que não daria para pensar algo próximo para a política? Não é hora de sermos mais ousados e usarmos a mesma energia moral e de formulação que tivemos em 1980, e que deu na Constituição, será que não é hora de a gente retomá-la e atualizar essa energia, sendo mais ousado, criativo? Essa é a grande questão dos movimentos e organizações sociais no Brasil. Nós perdemos protagonismo, ousadia. Estamos fragmentados e absolutamente dependentes do Estado. Temos que invadir o Estado.
O retrocesso do lulismo é político? Exatamente. É onde estava querendo chegar. O nosso problema não é econômico, social, é político. Retrocedemos demais no campo político. E tudo isso que aconteceu, de uma maneira, tinha raiz nos anos 1980. O senhor disse em entrevistas que a segunda gestão do Lula deixou claro que existe o lulismo e um partido a reboque dele. O petismo acabou? Acho que sim. Claro que para aqueles filiados de pouco poder e muita paixão, o petismo ainda existe, mas eles não têm poder. Quem tem poder no partido vem construindo uma militância do contracheque, que disputa cargos, mas que não pensa no partido há muito tempo, pensa no poder do seu grupo dentro do partido. Não é mais corrente, porque não elabora, nem diagnóstico faz, nem análise de conjuntura faz mais. É quase que um aparelhamento da máquina partidária. Esse petismo não tem nada a ver com o petismo da criação do partido. Isso se revela na queda de importância dos formuladores. Os intelectuais não têm peso nenhum no PT, só na propaganda, é o que fizeram com a grande filosofa Marilena Chauí. Ela não define linha nenhuma, só faz propaganda. E você vê que o deslocamento da formulação foi para as ONGs. Hoje, as grandes pautas nacionais, quem formula, como o Ficha Limpa e a reforma política, são as ONGs. São ex-petistas ou petistas que não militam mais no partido. O PT virou o partido da ordem. Não tem mais formulação, ousadia. Só há formulação, capacidade, interesse de discutir um diagnóstico, tentar construir o novo quando você quer mudar a ordem. Mas quando você é o partido da ordem, não precisa gastar tanto neurônio, se gasta mais testosterona. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br fevereiro 2011
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Otávio Nagoya
A ocupação dos
latifúndios da educação Resultado de muita luta, os trabalhadores rurais chegam à universidade e mudam a realidade da educação no campo. Ilustração Paloma Franca
a
mentalidade conservadora sempre ditou que a educação era necessária somente nas cidades. Afinal, por que um trabalhador rural precisaria ler e escrever? Porém, a articulação dos movimentos sociais no campo vem alterando, na prática, essa situação. A partir da vivência nos acampamentos rurais ficou evidente que a luta pela reforma agrária está diretamente relacionada com o acesso à educação. Um marco fundamental para o movimento de educação no campo foi o primeiro Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária (ENERA), realizado em julho de 1997, na Universidade de Brasília (UnB). Na ocasião, organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento das Mulheres Camponesa (MMC), entre outras, lançaram um Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro. O manifesto defende uma “identidade própria” nas escolas rurais, além de “um projeto político-pedagógico que fortaleça novas turmas de desenvolvimento no campo, baseadas na justiça social, na cooperação agrícola, no respeito ao meio ambiente e na valorização da cultura camponesa”. A partir da luta unificada dos movimentos rurais, houve alguns avanços na educação, porém os números ainda são alarmantes. As pesquisas realizadas nas últimas décadas mostram a redução progressiva da população rural. Os dados do Censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que somente 15% da população total do Brasil vivem em áreas rurais. Segundo o IBGE, em 2000, a população rural era cerca de 19%, sendo que os dados do Censo 1980 mostravam 32% da população em situação rural.
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Por isso, Cristina Vargas, do setor de educação do MST, relembra que, desde a década de 80, quando surge o MST, sempre houve muita demanda para a educação nas áreas rurais. “A educação que nós queremos para o campo não é somente uma educação básica, queremos toda a educação, desde a educação infantil até a universidade, com todas as possibilidades que isso possa vir a trazer”.
Campo e cidade Um avanço na educação rural é o acesso ao Ensino Superior por parte dos camponeses. Através de parcerias dos movimentos sociais com universidades, foram criadas turmas especiais, destinadas a trabalhadores rurais que vivem em assentamentos ou acampamentos. A parceria é financiada pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O programa também abrange a Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA), Ensino Fundamental e Médio, além dos cursos Técnicos e Superiores. Segundo Clarice dos Santos, coordenadora nacional do Pronera, o programa atendeu mais de 500 mil alunos, desde a alfabetização até o ensino superior, em seus primeiros 10 anos de existência (1998-2008). Clarice avalia que ocorreram mudanças na estrutura do trabalho rural, aumentando a complexidade e cobrando dos camponeses um maior conhecimento.
Para Juvelino Strozake, advogado do MST, “uma das principais razões da miséria em nosso campo é a ausência de um ensino qualificado”. Segundo o documento Panorama da Educação do Campo, publicado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a escolaridade média da população de 15 anos ou mais que vive na área rural é de 4 anos. O levantamento mostra que a mesma média, em áreas urbanas, é de 7,3 anos. Os dados relativos ao analfabetismo também expõem a grande disparidade entre cidade e campo: em 2004, 29,8% da população acima de 15 anos, da zona rural era analfabeta. Já na zona urbana, a taxa era de 8,7%. “O analfabetismo é muito grande, então os cursos de graduação proporcionam aos assentados ferramentas que vão ajudar na administração das cooperativas e associações. Sem o acesso ao conhecimento é impossível fazer andar um bom programa de reforma agrária”, complementa Strozake.
Demanda concreta Fundado em 1984 com a proposta de organizar os trabalhadores rurais em torno da luta pelo direito à terra, hoje o MST pode ser considerado o movimento rural mais importante do mundo. Para o professor Bernardo Mançano Fernandes, coordenador do curso de Geografia para assentados na Unesp, “o MST está entre os movimentos camponeses que mais lutam pela terra e pelo território. É um dos responsáveis pelo desenvolvimento da agricultura camponesa no Brasil. O MST é fundamental para o desenvolvimento de nosso país”. Além disso, durante sua trajetória, o MST sempre utilizou a educação para alcançar a reforma agrária e a justiça social. A coordenadora do Pronera conta que o movimento sempre teve uma preocupação muito grande com a educação das crianças nos assentamentos. “E mesmo não tendo escolas públicas, desde o início eles foram organizando suas escolas, juntando aqueles que tinham mais estudos para ensinar quem tinha menos”, Cristina Vargas, do setor de educação, conta que foi a demanda concreta que motivou a discussão sobre a tema no movimento. “Se a luta é feita pelas famílias, as crianças também estão no acampamento. Não faz sentido que a criança tenha que morar em casa de parentes para frequentar a escola”, completa.
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A partir do questionamento “Que educação queremos?”, a organização iniciou a formulação de um processo educativo que respeitasse a vivência dessas crianças em suas comunidades, já que nas escolas tradicionais a luta pela terra era renegada, o que frequentemente desmotivava os alunos. O aprofundamento do debate sobre educação popular resultou em uma maior organicidade do setor de educação do MST. Assim, o movimento passou a trabalhar com três frentes, a educação infantil, o ensino fundamental e médio e a educação para jovens e adultos. Com a construção de um processo de educação popular, uma nova demanda surgiu: a formação de professores e educadores para atuar nesse processo, abrangendo também uma formação mais técnica na área da agricultura.
Na universidade Porém, para que a demanda fosse atendida foi preciso muita luta e pressão política. O Pronera, que possibilita as parcerias dos movimentos com as universidades, foi criado em 1998 por um pressionado governo Fernando Henrique Cardoso. Em 1997, o MST organizou a “Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça”, com mais de cem mil pessoas, que chegou à Brasília no dia 17 de abril, em referência ao Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido um ano antes. E foi nesse contexto que os movimentos exigiram do governo um programa destinado à educação rural. A primeira parceria aconteceu em 1998, com um curso de Pedagogia da Terra, na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Atualmente, funcionam cursos de história, geografia, agronomia, administração, medicina veterinária, direito, entre outros, em diversas regiões do país. Para viabilizar uma parceria, o movimento social e a universidade enviam um projeto pedagógico à coordenação do Pronera. Se aprovado, o Incra concede bolsas para o coordenador do curso, além de sua equipe. “Eles recebem bolsas, já que é bastante trabalhoso fazer um curso adicional”, explica Clarice dos Santos. A coordenadora do Pronera também destaca que os camponeses estudam com todas as condições asseguradas: “não é preciso arrumar um emprego na cidade para conseguir estudar. O Incra financia o curso, além de transporte, alimentação e hospedagem”. Na opinião de Cristina Vargas, do MST, essa procura pela universidade “se dá por uma necessidade concreta de atender a educação formal e nãoformal que existe nos assentamentos. Além disso, faz parte do debate sobre educação no campo, idealizado por um conjunto de organizações”.
Teoria e prática Outra característica inovadora dos cursos de camponeses é o uso do regime de tempos alternados, retirado da pedagogia da alternância, onde os estudantes dividem seu tempo entre período universidade e período comunidade. Geralmente, por semestre, o estudante passa dois meses na
universidade e, em seguida, dois meses na comunidade, podendo variar o período de acordo com as especificidades dos cursos. “O maior benefício é a aliança entre teoria e prática. Isso permite ver as contradições na prática, diferente de somente trabalhar após passar quatro anos estudando, ou então trabalhar em uma área diferente daquela que é estudada”, sintetiza Cristina Vargas. No dia 4 de novembro de 2010, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o decreto nº 7.352/2010, que “dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera”. O documento transforma o programa em uma política pública permanente, vinculada formalmente ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Na avaliação de Clarice dos Santos, coordenadora nacional do Pronera, a gestão de Lula foi benéfica para o programa, pois em 2003, o orçamento do Pronera, que vinha ainda do governo FHC era 9 milhões. Já no fim de 2010, o orçamento é de 70 milhões. “Além disso, houve uma dinâmica muito maior, uma participação maior das universidades.”
Ataques conservadores Ameaçados com a presença dos sem terra nas universidades, as forças conservadoras não demoraram a reagir, usando seus instrumentos habituais: a grande mídia e o poder judiciário. Para Clarice, o que move esses ataques é preconceito. “A universidade sempre foi um lugar de formação da elite brasileira. Com a expansão das universidades privadas, as universidades públicas são, cada vez mais, território das elites. Então, hoje, o pobre estuda em escola pública e na universidade é obrigado a pagar pelo ensino. Já a elite, estuda em escola particular boa para poder entrar na universidade pública”. O advogado do MST, Juvelino Strozake, relembra que quando foi anunciada a parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG) para a turma de direito, “sofremos um ataque muito forte por parte da grande mídia”. O editorial do jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Bacharéis sem-terra” do dia 7 de setembro de 2007 evidencia a preocupação sobre a possível ascensão de um trabalhador sem terra a um cargo de destaque no judiciário: “Um advogado que tenha por origem o MST haverá de aprofundar-se na ciência do Direito e buscar no texto legal aquilo que sirva à defesa dos interesses dos sem-terra. Muito bem. E se ele prestar concurso para o Ministério Público e virar procurador ou promotor de Justiça? E se ele prestar concurso para a magistratura e tornar-se juiz? Imaginam os ‘emessetistas’ (SIC) que, da mesma forma, ele pautará suas interpretações da lei e suas decisões de acordo com sua própria origem?”. Os convênios também sofreram ataques na esfera jurídica. Um dos casos ocorreu na turma de medicina veterinária, na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Em 2008, antes do início das aulas, o Ministério Público Federal de Pelotas entrou com uma liminar para barrar a matrícula dos
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estudantes. A sentença, expedida em novembro de 2010, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), deu parecer favorável à realização do curso, que inicia as aulas em 2011. O ataque mais recente ocorreu com o convênio firmado com a UFG para a implementação da turma de Direito. A ação civil pública que foi proposta pelo Ministério Público Federal de Goiás já foi julgada em primeira instância e o juiz entendeu que o convênio é inconstitucional e ordenou a paralisação da turma. O INCRA e a UFG apelaram contra a decisão e o Tribunal Regional Federal deu efeito suspensivo na apelação, ou seja, a sentença não tem mais validade nesse momento e o caso ainda será julgado pelo TRF.
Domínio da elite Porém, a situação mais preocupante ocorreu em 2008, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) estabeleceu o Acórdão 2653/2008, proibindo que o Pronera firme convênios com as universidades. A motivação foi uma denúncia de corrupção no convênio com a Universidade do Estado de Mato Grosso, no curso de Agronomia. No documento, o TCU determina que os convênios não sejam mais realizados através de parcerias, mas por licitações. Após uma grande pressão, no dia 1º de dezembro de 2010, o TCU mudou sua decisão e voltou a autorizar as parcerias. Segundo a coordenadora do Pronera, a paralisação foi bastante prejudicial, deixando cerca 50 projetos, já aprovados, em espera. Nesse período, cerca de 50 mil estudantes aprovados nos projetos, desde educação infantil à graduação, ficaram sem aulas. “Existem algumas áreas que são de domínio absoluto das elites, como por exemplo, as ciências agrárias, as ciências jurídicas e as ciências médicas”, esclarece Clarice. Apesar dos ataques, o advogado Juvelino Strozake avalia que as parcerias proporcionam benefícios tanto para os camponeses, como para as universidades: “Com a chegada das turmas camponesas, novos temas de debates são postos para os universitários, principalmente a discussão sobre o acesso à educação”. Sobre a turma de Direito na UFG, Strozake afirma que é a primeira experiência de camponeses acessando o curso jurídico. Para ele, a identificação dos estudantes com os movimentos rurais é benéfica e facilita que “eles coloquem a serviço das organizações dos camponeses o conhecimento adquirido nos bancos escolares. As associações e cooperativas sofrem muitos problemas jurídicos e os advogados são muito úteis”. Bernardo Mançano, coordenador do curso de Geografia na Unesp, também exalta a troca de experiências entre os camponeses e as universidades: “A experiência foi desafiadora. Desde que começamos esta experiência nós mudamos e o MST mudou. Eles conheceram melhor a universidade e nós conhecemos melhor o MST”. Otávio Nagoya é jornalista otavionagoya@carosamigos.com.br fevereiro 2011
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Lúcia Rodrigues
Aliança com a direita impede avanço nos direitos humanos
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Brasil é o país mais atrasado do Cone Sul quando o assunto é direitos humanos. Enquanto Argentina, Chile e Uruguai já condenaram centenas de agentes do Estado que perseguiram, sequestraram, torturaram e assassinaram milhares de ativistas de esquerda durante os anos de chumbo, aqui nenhum repressor sentou no banco dos réus. O máximo que se conseguiu até agora foi uma sentença da Justiça paulista reconhecendo publicamente o ex-comandante do DOI-Codi de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra, como torturador. A sentença, no entanto, é apenas declaratória, não tem desdobramento penal. E ele continua solto. A diferença na condução das questões ligadas aos direitos humanos pelo Brasil e por seus vizinhos é abissal. Na Argentina, por exemplo, já ocorreram mais de 700 julgamentos de militares com condenações, inclusive, à prisão perpétua.
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Ilustração: Alexandre Teles
Acordo com empresários que financiaram ditadura é uma das principais causas do entrave; entidades e ministra defendem abertura de arquivos.
Mas qual seria o motivo de tanta benevolência por parte do Estado brasileiro para com seus criminosos de farda? A chave para o enigma deve ser procurada no baú de empresários que financiaram o golpe e sustentaram a ditadura durante mais de duas décadas. Praticamente todas as empresas envolvidas com a repressão continuam atuando no mercado. Agora não mais financiando os fios elétricos que descarregavam voltagem no corpo dos “subversivos” nos anos 60 e 70. Os tempos são outros. Uma demão de verniz conferiu a um passado sombrio o brilho da plasticidade democrática. Esses empresários continuam doando polpudas quantias, mas agora na forma de contribuição declarada ou de recursos não contabilizados, como é conhecido popularmente o famoso caixa dois das campanhas eleitorais. Paralelamente à atividade econômica que
continuaram desenvolvendo, se converteram nos grandes timoneiros do rumo político do país. Como se sabe generosidade tem limites. E apoio é via de mão dupla: pressupõe contrapartida. Lógico supor, então, que uma das imposições a seus financiados é para que estes impeçam qualquer possibilidade de envolvimento de seus nomes e da suas empresas em escândalos dessa magnitude. Não é difícil imaginar o desgaste, que uma revelação dessa envergadura, provocaria na imagem de seus produtos. “Fica difícil justificar. A Folha perdeu leitores quando falou em ditabranda. Quando os empresários dão dinheiro (para campanhas políticas), estão dizendo: ‘limpa minha barra, senão não dou mais’. A lógica da rede de cumplicidade é essa. É um cala boca”, ressalta Ivan Seixas, representante do Fórum de Ex-Presos Políticos.
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Cumplicidade “A ditadura montou essa rede de cumplicidade quando montou a caixinha para a repressão”, frisa. Ivan destaca a Folha de S. Paulo, Rede Globo, o Grupo Ultra, Pão de Açúcar e as empreiteiras Camargo Correa e Andrade Gutierrez, como algumas das companhias que contribuíram com a repressão. “Essas empresas deram grana. Se o torturador Ustra sentar no banco dos réus vai alegar que, além de cumprir ordens, foi financiado por empresários”, destaca o ex-preso político. Por isso, é tão difícil se fazer justiça no Brasil. Por isso, o Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH 3, sofreu um ataque tão virulento dos setores mais conservadores da sociedade. Por isso, Nelson Jobim desfigurou o projeto da Comissão da Verdade. Por isso, ele é contra a abertura dos arquivos militares. Por isso, o ministro da Defesa trabalhou e trabalha contra a revisão da Lei de Anistia. Por isso, fez de tudo para evitar a condenação do Brasil na Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) por violações praticadas por militares torturadores. Por isso, é tido como o artífice da trama urdida para emperrar a execução da sentença da Justiça Federal, que determina a localização dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Currículo ilibado na Defesa dos interesses contrários à dignidade humana é passaporte carimbado para a permanência no cargo de um governo que não tem interesse em acertar as contas com o passado. Corre nos bastidores que Jobim teria permanecido no cargo, porque Lula teria bancado seu nome junto à presidente Dilma. “Eu tenho absoluta certeza de que foram ordens, recomendações, como se queira chamar, do Lula. O recado é: mantenha a mesma política de empurrar (os direitos humanos) com a barriga”, frisa Angela Mendes de Almeida, coordenadora do Observatório das Violências Policiais – PUC-SP.
Verdade Essa não foi a primeira vez que Lula deu respaldo a Jobim. Na queda de braço que travou com o colega Paulo Vanucchi sobre o PNDH 3, também contou com a anuência do ex-presidente da República, o que obrigou Vanucchi a recuar. O ex-preso político e primo de militante assassinado sob tortura pela ditadura teve de engolir as alterações propostas ao texto original. O PNDH incorporou as reivindicações apresentadas por Jobim para acalmar a caserna e os empresários. A Comissão da Verdade, que o ministro da Defesa prefere chamar de comissão da conciliação, agora irá investigar os dois lados. Pela nova redação, o projeto do Executivo encaminhado ao Congresso Nacional substitui a expressão “repressão política“por”conflitos políticos”, o que na prática significa que as vítimas dos militares torturadores também serão investigadas. O período a ser analisado também foi ampliado para os anos de 1946 a 1988, para
descaracterizar uma investigação dos anos de chumbo. “Nós já fomos processados e condenados. Respondemos na Justiça Militar. Nossa verdade está mais do que esclarecida. Agora, queremos esclarecer os atos de atrocidade cometidos pela repressão”, critica a representante da Comissão de Mortos e Desaparecidos de São Paulo, Maria Amélia Teles, a Amelinha. “É uma comissão condenada ao fracasso. E não sou só eu que digo isso. Especialistas latinoamericanos afirmam que se o projeto for aprovado desse jeito, com os militares participando dessa comissão, já nasce fracassado”, enfatiza Victória Grabois, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) do Rio de Janeiro. “Será uma comissão da mentira. Tenho muito medo que outra história oficial seja produzida. Não podemos engolir essa proposta”, completa a presidente do GTNM do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra. “O que gera essa situação de desconfiança, dúvida, indignação?”, questiona a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, para na sequência responder: “O fato de até hoje o Estado não ter conseguido resgatar e oferecer às famílias a verdade sobre o que aconteceu com seus entes queridos. Enquanto não chegarmos a isso, todos nós não teremos tranquilidade”. Maria do Rosário considera a abertura dos arquivos militares peça-chave para a elucidação dos fatos. “É um desafio importantíssimo. É preciso localizá-los. O principal aspecto para a abertura desses arquivos será o de possibilitar a localização dos restos mortais dos desaparecidos. Por isso, a Comissão da Verdade e da Memória será importantíssima”, destaca.
Reação Apesar de o projeto que criará a Comissão da Verdade ter sido modificado para atender às reivindicações dos militares linha-dura e empresários que contribuíram com a repressão, a peça não saiu da gaveta da presidência da Câmara dos Deputados, na última legislatura, quando o vice-presidente da República, Michel Temer, ainda presidia a Casa. A maioria dos parlamentares, que tem suas candidaturas financiadas por empresas que estiveram associadas à repressão, não querem se indispor com seus financiadores. Além disso, muitos desses parlamentares também foram peças-chave na sustentação da repressão. Vários deles integraram, inclusive, as fileiras do partido da ditadura, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). É o caso do presidente do Congresso, José Sarney, que além de ter presidido a Arena, foi governador do Maranhão e senador por duas legislaturas pelo partido. A derrota da revisão da Lei de Anistia, que indultou os agentes das forças repressivas, faz parte dessa rede intrincada. A decisão contrária à alteração do texto, não teve só a imposição do Supremo Tribunal Federal (STF), contou também
com a empenhada atuação da Advocacia Geral da União (AGU). E a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil no final do ano passado por violações cometidas por militares durante a ditadura, corre o risco de não sair do papel. Na prática, a decisão da Corte permite que a Lei de Anistia seja revista. E apesar da posição favorável da ministra Maria do Rosário pelo seu cumprimento: “Sentença a gente não discute, cumpre”, sua efetivação está longe de ocorrer. O acolhimento deve ser do Estado, em suas três esferas de poder: Executivo, Legislativo e Judiciário, mas a tendência é de que isso não ocorra. “No que cabe ao Executivo acho que devemos cumprir, mas nós não temos ingerência sobre os outros poderes”, adverte a ministra. A luta pelo cumprimento da sentença da OEA será mais uma das muitas batalhas que as entidades defensoras dos direitos humanos deverão travar para que a justiça seja feita. Ao que tudo indica, o atual governo manterá a linha da gestão anterior, de não mexer com o passado. “O Executivo não tenciona rever a Lei de Anistia. Faço questão de dizer isso”, antecipa a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, à reportagem de Caros Amigos. “Pessoalmente, concordo com a visão de que essa lei estabeleceu e manteve injustiças, porque a violência do Estado não foi responsabilizada. Mas avalio que não é possível pensar em direito à verdade e à memória, se pensarmos em modificar a Lei de Anistia. Não vejo essa possibilidade. Sinceramente, o Executivo não tenciona por sua revisão”, ressalta Maria do Rosário. A ministra considera, no entanto, que as violações aos direitos humanos que ocorrem ainda hoje no Brasil se devem ao passado repressivo que o país enfrentou. “A tortura que permanece dentro dos presídios, das casas de tratamento psiquiátrico e instituições fechadas para adolescentes se constitui como prática da ditadura. Os apenados de hoje são vítimas da tortura desse período.”
Contradição O ex-deputado federal José Genoino vai integrar o staff do Ministério da Defesa. “O ministro Nelson Jobim está cumprindo um papel importante”, frisa, ao ser questionado sobre a contradição de assumir cargo de confiança de um ministro que atua contra a defesa dos direitos humanos. “É um escândalo, mas tem a ver com a trajetória recente dele. Deu o passo para o lado de lá”, critica Angela Mendes de Almeida. Genoino já foi condecorado pelo Exército, pela Marinha, Aeronáutica e pelo próprio Ministério da Defesa. “Aceitei as medalhas, não me cabe questionar quem as concedeu”, diz. A medalha do Pacificador, do Exército, também foi concedida a quem o perseguiu no Araguaia.
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Ele é acusado de ser o artífice da versão que levanta a hipótese de guerrilheiros desaparecidos estarem vivos.
Jobim atua para não apurar
verdade sobre o Araguaia
fotos: agência brasil
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ministro da Defesa, Nelson Jobim, é persona non grata entre ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos da ditadura. Todos o identificam como braço direito e fiel escudeiro dos militares que se envolveram na repressão a ativistas de esquerda durante os anos de chumbo. A repulsa dos representantes de entidades de defesa dos direitos humanos não é gratuita, tem embasamento. Desde que assumiu a pasta da Defesa, em 25 de julho de 2007, o gaúcho de Santa Maria se converteu na principal voz da Esplanada dos Ministérios na defesa da não punição para os crimes de tortura e assassinato cometidos por militares nos anos 1960 e 1970. A lista de episódios em que o Ministro da Defesa se envolveu para preservar os interesses dos mili-
tares linha-dura é extensa. O caso mais recente envolve a Advocacia Geral da União no imbróglio. Em 30 de agosto de 2010, o coordenador geral de Ações Estratégicas da Procuradoria Regional da União da 1ª Região, o advogado Carlos Henrique Costa Leite, encaminhou petição à juíza da 1ª Vara Federal do Distrito Federal, Solange Salgado, solicitando que fosse juntado à sua sentença, que determina a abertura dos arquivos militares referentes à Guerrilha do Araguaia para a localização dos restos mortais dos combatentes assassinados pela repressão, o ofício nº 9825/CONJUR/ MD-2010, de 19 de agosto, da consultoria jurídica do Ministério da Defesa, que levanta a suspeita de que desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia estariam vivos. O ofício em questão é assinado pelo consultor do Ministério da Defesa e coordenador geral do Grupo de Trabalho Tocantins, Vilson Marcelo Malchow Vedana, e foi encaminhado à procuradora Regional da União da 1ª Região, Ana Luisa Figueiredo de Carvalho. No texto, ele informa que pesquisadores do Grupo que coordena chegaram à conclusão de que os guerrilheiros Antonio de Pádua Costa, Áurea Eliza Valadão, Dinalva Conceição Teixeira, Helio Navarro e Luiz René da Silveira e Silva estariam vivos. No texto também é formalizado o pedido de buscas dos “mortos-vivos”. “Considerando que esclarecer a situação desses desaparecidos que ainda estariam vivos afeta diretamente a execução da sentença proferida nesta ação. E considerando também que o GTT não possui estrutura para realizar uma investigação desse porte, entende que é adequado para esse fim o acionamento do Departamento de Polícia Federal.” Meses antes de assinar o ofício direcionado à procuradora da República, o consultor Vedana foi agraciado com a insígnia da Ordem do Méri-
A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, critica a versão que afirma que desaparecidos políticos do Araguaia estão vivos; O Ministério de Nelson Jobim foi quem divulgou essa informação.
to da Defesa no grau de comendador. A Ordem do Mérito é a mais alta condecoração concedida, pelo Ministério da Defesa, àqueles que prestam relevantes serviços às Forças Armadas. A reportagem da Caros Amigos apurou que Jobim teria articulado a estratégia para atrapalhar a execução da sentença judicial. Dois ex-comandantes das forças de repressão no Araguaia, o tenente-coronel Lício Maciel e o coronel Sebastião Curió já haviam, inclusive, prestado depoimento à juíza. A sentença expedida por Solange Salgado é clara. Decide pela “quebra de sigilo das informações militares relativas a todas as operações realizadas no combate à Guerrilha do Araguaia”. O texto acrescenta, ainda, que deverão ser informados os locais onde estão sepultados os corpos dos guerrilheiros, além de fornecer detalhes para a lavratura dos atestados de óbito. A União também terá de apresentar “todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à Guerrilha, incluindo-se entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção dos civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos”. A ação julgada procedente pela juíza Solange, em 2003, foi impetrada 21 anos antes, em 1982, pelos familiares dos guerrilheiros mortos no Araguaia, conta Victória Grabois, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) do Rio de Janeiro, que perdeu o pai, Mauricio Grabois, o irmão, André Grabois, e o companheiro, Gilberto Olimpio, no ataque militar à Guerrilha. Essa mesma ação serviu de base para a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Estado brasileiro em dezembro do ano passado, pelo desaparecimento e
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pela morte de 70 guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que pegaram em armas para combater a ditadura entre os anos de 1972 e 1974 na região do Araguaia. Ao contrário do que seria razoável supor, o governo Lula não acatou a sentença da justiça brasileira e recorreu de sua decisão. O recurso, no entanto, foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça, que manteve a decisão da primeira instância. Em 2007, a sentença transitou em julgado, e entrou em fase de execução, que na prática significa que o Estado é obrigado a cumprir a sentença. “Que se oficie, com urgência, ao Sr. Ministro da Defesa, para que designe dia, hora e local, até o dia 15 de dezembro do ano em curso, a fim de realizar-se audiência solene, com os membros do juízo colegiado da Sexta Turma do TRF, a fim de proceder-se à instalação dos trabalhos judiciais de quebra dos arquivos da Guerrilha do Araguaia”, frisa o relatório que nega acolhimento ao recurso interposto pela União para tentar reverter a decisão judicial. O documento enfatiza que se trata de manter o cumprimento em julgado “sob a pena de busca e apreensão dos aludidos documentos, sem prejuízo da multa coercitiva, já estabelecida na sentença e apuração da responsabilidade criminal de quem resista às determinações mandamentais do julgado”.
Manobra A manobra de 180 graus levada a cabo pelo governo federal, por meio do Ministério da Defesa, ao levantar a hipótese da existência de mortos-vivos do Araguaia, pretende atrasar o trâmite da execução ao desviar o foco dos trabalhos. A localização dos hipotéticos guerrilheiros que estariam vivos protela, pelo menos neste primeiro momento, a execução da sentença judicial, que determina a abertura dos arquivos militares para a localização dos guerrilheiros mortos. A artimanha governamental coloca em xeque, inclusive, a lei 9.140/95, que reconhece a morte de todos os desaparecidos com atuação política no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, ao lançar uma cortina de fumaça para atrapalhar a elucidação dos fatos. “Não temos nenhuma informação que nos faça questionar uma condição que o Estado brasileiro já reconheceu em 1995. Meu posicionamento é o da lei 9.140”, enfatiza a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário. “A Polícia Federal não aceitou fazer investigações (sobre os ‘mortos-vivos’). Essa questão deve ser superada. Não acho razoável falarmos de pessoas vivas, não há nenhuma indicação real. É um desrespeito muito grande. Não é adequado dar sequência a essas especulações”, completa a ministra. Maria do Rosário tem razão em não admitir que se desrespeite a memória dos mortos e se tripudie sobre a dor de suas famílias. Mas o processo que tenta fazer da lei que reconheceu a condição de mortos aos desaparecidos políticos letra morta, parece vir em gestação há algum tempo. Em julho de 2009, o jornalista Hugo Studart, pu-
blicou informações em um jornal paulista de grande circulação, em que aponta os guerrilheiros Antonio de Pádua Costa, Hélio Navarro e Luiz René da Silveira e Silva como sobreviventes do Araguaia. Segundo Studart, os três foram poupados pelos militares e receberam novas identidades. Hélio Navarro, ainda de acordo com ele, estaria vivo e teria trabalhado em uma multinacional francesa em São Paulo. O jornalista não informa, no entanto, os motivos que teriam levado os militares a pouparem a vida dos guerrilheiros. “De uns tempos para cá começaram a aparecer essas histórias para desvirtuar o foco da decisão judicial e da sentença da OEA, ambas em nosso favor. Para mim, são informações plantadas por militares com o propósito de confundir as investigações”, frisa Elisabeth Silveira e Silva, irmã do guerrilheiro Luiz René da Silveira e Silva, acusado de ser um dos mortos-vivos da Guerrilha do Araguaia. Beth Silveira, como é conhecida a ativista do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) do Rio de Janeiro, considera que os responsáveis pela violação dos direitos humanos “vão fazer de tudo para que a verdade não venha à tona”. Ela tem cópia de um documento da Marinha que atesta a morte de seu irmão. A militante de direitos humanos conta que o irmão não teria nenhum motivo para não procurar a família caso estivesse vivo. “Sabíamos que ele ia para uma atividade guerrilheira, não era clandestino. Ele não saiu brigado com a família, nada impedia sua volta”, ressalta. Segundo Beth, enquanto esteve no Araguaia, Luiz René escreveu três cartas para a mãe. “Ele dizia que estava muito feliz.” Em relação à acusação feita por Studart contra Hélio Navarro, Victória Grabois esclarece que o guerrilheiro assassinado no Araguaia é vítima de uma sórdida difamação. “Quando a avó do Hélio morreu, deixou um terreno no subúrbio do Rio de Janeiro, que era alugado para o Carrefour. O Hélio entrou na herança. A mãe dele, dona Carmem, chegou a abrir uma conta no Banco do Brasil para depositar o dinheiro da venda desse terreno, queria deixar um patrimônio para o filho. Sabe como é coração de mãe, no fundo tinha a esperança de que um dia ele voltasse. Por isso, fazia, inclusive, a declaração de Imposto de Renda dele. O jornalista Hugo Studart, que acusa Navarro e os outros dois guerrilheiros de serem mortos-vivos, integra o Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), criado pelo Ministério da Defesa em 29 de abril de 2009. Segundo texto na página do sítio do Ministério da Defesa na internet, a criação do Grupo visa dar resposta à sentença proferida pela juíza federal, que determinou a localização dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Em quase dois anos de trabalho, o Grupo montado pelo ministro Jobim não identificou um único cadáver. Mas apesar de não ter avançado um milímetro na elucidação dos fatos, o Grupo de Trabalho Tocantins consumiu, entre os anos de 2009 e 2010, R$ 4.615.178,19 com despesas de operação. “O Grupo de Trabalho Tocantins quer esquecer a guerrilha até no nome. A guerrilha ocorreu no Araguaia, então deveria ser Grupo de Trabalho Araguaia, e não Tocantins. Querem apagar
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o que aconteceu lá durante a ditadura”, critica Laura Petit da Silva, da Comissão de Mortos e Desaparecidos de São Paulo. Ela perdeu três irmãos no Araguaia, Maria Lúcia Petit da Silva, Jaime Petit da Silva e Lúcio Petit da Silva. A preocupação de Laura faz sentido. O Estado de Tocantins nem existia à época da Guerrilha do Araguaia. A região onde os guerrilheiros do PC do B se instalaram ficava na confluência dos Estados do Pará, Maranhão e Goiás. Tocantins surgiu no período da redemocratização. Sua fundação ocorreu em 5 de outubro de 1988 prevista nos atos das disposições transitórias da Constituição de 1988, a partir do desmembramento do Estado de Goiás. Dos 70 guerrilheiros assassinados no Araguaia, apenas dois tiveram seus restos mortais identificados até hoje: Maria Lúcia Petit da Silva e Bérgson Gurjão. Os outros continuam a engrossar a lista de desaparecidos políticos da ditadura. A localização das duas ossadas foi fruto da persistência das famílias. Maria Lúcia foi morta em 1972, durante a primeira incursão dos militares na região. “Nessa fase, (as forças repressivas) ainda estavam enterrando os corpos no cemitério”, conta Laura. A ossada de Maria Lúcia foi encontrada no cemitério de Xambioá, em 1991. As informações de moradores da região foram fundamentais para a localização dela. “Encontraram o corpo da Maria Lúcia, mas o legista Badan Palhares não quis fazer a identificação porque o Romeu Tuma, que era da Polícia Federal, deu orientação para não mexer com a questão do Araguaia”, revela Laura. Apenas em 1996, cinco anos após a localização da ossada e de muita pressão de familiares, Maria Lúcia Petit da Silva foi identificada. Os restos mortais de Bérgson também haviam sido encontrados, em 1991, junto com os de Maria Lúcia, mas aguardaram até 2009, para ser identificados. Dezoito anos de longa espera para os familiares. “Se a identificação tivesse ocorrido lá atrás teria poupado muito sofrimento para a família”, enfatiza Laura. “O governo brasileiro jogou de uma forma muito oportunista na identificação do Bérgson. Ele só foi identificado quando a ação da OEA estava prestes a ser julgada. Foi para mostrar serviço para a OEA. Pelo menos o Bérgson teve um enterro digno”, denuncia Maria Amélia Teles, a Amelinha, da Comissão de Mortos e Desaparecidos de São Paulo. Até hoje, apenas cinco desaparecidos da ditadura, de uma lista de 136 nomes, foram identificados. Além de Maria Lúcia e Bérgson, foram encontrados em 1991, na vala clandestina do cemitério de Perus, em São Paulo, as ossadas de Denis Casemiro, Flávio de Carvalho Molina e Frederico Eduardo Mayr. ‘É muito pouco, muito pouco. Assumo que é muito pouco”, reconhece a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário. A reportagem da Caros Amigos solicitou entrevista com ministro Nelson Jobim, mas a assessoria do Ministério da Defesa não deu retorno. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br fevereiro 2011
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O trágico preço do “progresso”
Complexo siderúrgico instalado no Rio de Janeiro comete crimes ambientais e viola direitos de pescadores e moradores da região. Ilustração: Cavani Rosa
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e repente, numa madrugada de junho de 2010, uma chuva de prata caiu sobre a casa de dona Ivonete Martins. Tudo brilhava, como num sonho. Porém, quando a família acordou para ir trabalhar, deparou-se com a realidade: um pó prateado havia se espalhado por toda a casa. Telhado, sala, banheiro, cozinha. Até nas panelas ele estava. O pó foi parar no quarto de dona Ivonete, de 55 anos. Quando ia dormir, lá estava ele, brilhando. Dias depois,
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quando foi tomar banho, a mulher percebeu que até em seu corpo o pó estava grudado. Em seguida, começaram as coceiras. Parecia picada de mosquito. A cada dia, a coceira só aumentava, e foi se estendendo ao corpo todo. Depois de um tempo, até a palma das mãos e sola dos pés estavam tomados por alergias, que se transformaram em cascas. “Eu estava toda inchada”. Para combater a coceira, ela tentou de tudo. “Querosene, álcool, vinagre”. O desespero era tanto que
ela pensou até em se matar. Para completar, dona Ivonete foi demitida do emprego, pois a senhora para quem trabalhava como empregada doméstica teve medo de ser contaminada com suas alergias. Em casa, disse ao marido: “Arrume outra mulher. Essa aqui não presta mais”. A chuva de prata não banhou apenas a casa e o corpo de dona Ivonete. Seus vizinhos, moradores do bairro de Santa Cruz, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, também foram atingidos com o pó metálico emitido pelo complexo siderúrgico ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). De capital majoritariamente alemão, ligada ao grupo transnacional Tyssen Krupp (73,13%), com participação da Vale do Rio Doce (26,87%), a CSA foi anunciada como a siderúrgica mais moderna do mundo - recebeu investimentos de 5,2 bilhões de euros e vai produzir cinco milhões de toneladas por ano de placas de aço, exportadas para a Alemanha e Estados Unidos. É o maior investimento privado realizado no Brasil nos últimos 15 anos. Projetada para operar com dois imensos altos-fornos, além de uma termoelétrica e um terminal marítimo próprios, para se transformar na maior si-
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derúrgica da América Latina, produzindo chapas de aço para exportação. Inaugurada em junho do ano passado, já foram anunciados planos de expansão das instalações, com o objetivo de dobrar a planta e a produção originalmente prevista.
Crimes ambientais Não por acaso, a região de Santa Cruz, local escolhido para a instalação da empresa é uma bairro periférico e pobre da cidade do Rio de Janeiro, situado na Baía de Sepetiba. Desde o início da construção da planta industrial, organizações e movimentos vem denunciando crimes ambientais, violações de direitos humanos, desrespeito às normas de licenciamento ambiental e à legislação trabalhista. “É justamente nessas áreas mais empobrecidas, onde há população sem poder político e econômico, que o poder público não chega, que esses empreendimentos se instalam”, explica Karina Kato, do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs), que desde a chegada da CSA apóia a luta da comunidade da Baía de Sepetiba contra o empreendimento. Segundo ela, “a área funciona como uma “zona de sacrifício” para manter o modelo de desenvolvimento do Rio de Janeiro, o tão propagado progresso, uma nova onda de dinamismo para o Estado, como diz o Sergio Cabral. É interessante e extremamente triste porque essa é a visão de Estado do Rio de Janeiro e eu arrisco dizer que é a visão de Estado para o Estado Federal”, critica. Os pescadores artesanais foram os primeiros atingidos com a poluição e contaminação das águas, o desmate do manguezal, a redução e comprometimento da pesca e a privatização dos rios e da baía. Depois, com a inauguração da empresa, em junho de 2010, e o início do funcionamento de um dos fornos da empresa, todos os moradores do entorno passaram a ser prejudicados pela poluição do ar, que causou inúmeros problemas de saúde à comunidade vizinha da usina. “O primeiro grande impacto é na pesca. Não tem com o não pensar nas oito mil famílias que estão perdendo seu modo de vida. Pelas nossas análises, a pesca vai ficar inviável. Eles não vão ter onde pescar”, explica a economista. Tal impacto foi tão grande que muitos dos homens que há décadas dedicavam-se à atividade tiveram que mudar de área. “Alguns estão fazendo bicos em obras. Uma casa aqui, uma pintura ali. É muito triste, mas maioria dos pescadores está passando fome. Até porque a maioria é analfabeto e isso dificulta mais a mudança de profissão”, explica Karina.
Segurança nacional A ideologia que baseia a política de segurança pública do Rio de Janeiro é a da segurança nacional, acredita o delegado de polícia Orlando Zacconi, responsável pelo controle de presos da Polinter (Delegacia de Capturas e Polícia Interestadual). Ele explica que tal ideologia foi desenvolvida nas escolas militares dos Estados Unidos e trazida ao Brasil no momento da ditadura militar. “Naquele momento, o inimigo era o comu-
nista, o subversivo, e através dessa ideologia é que se legitimou a tortura, o desaparecimento de pessoas”. Segundo Zacconi, ela foi mantida no Estado brasileiro após o processo de redemocratização, “por meio da mudança do inimigo, que não é mais o terrorista comunista. Ele passa a ser o terrorista traficante, o criminoso comum. Continua-se a construir a imagem de que existe um inimigo, o criminoso comum, que é muitas vezes identificado como narcoterrorista”. Para ele, foi esse processo que manteve a ideologia da segurança nacional em curso, “viabilizando a letalidade do sistema penal no Brasil hoje, fazendo com que o Estado brasileiro, após a redemocratização, mate mais do que na ditadura”. Zacconi explica que a ideia da existência de uma guerra é uma colocação ideológica para legitimar determinadas ações. Para ele, “se o desrespeito aos direitos humanos e à ideia de uma sociedade igualitária partem dos governos que foram eleitos pelo povo, para que ditadura? Não precisa”.
Arma na mão O pescador Rubem Moreira, 59 anos, 45 de pesca confirma a afirmação da economista. “Acabei de sair para tentar a sorte. Essa seria época de tainha, mas não peguei quase nada”, conta, ainda tirando o material de trabalho de seu barco. Ele conta que a oferta de peixe diminuiu muito desde que a empresa destruiu uma enorme extensão do manguezal após a dragagem da baía, que revolveu antigos resíduos de desastres ambientais passados, que há muito tempo estavam muito depositados no fundo da baía. A pesca também ficou prejudicada com a restrição de circulação dos barcos por conta da construção de uma ponte de quatro quilômetros de extensão, que mantém porto privado para os navios que transportarão o aço ali fabricado. Como a ponte é baixa, as embarcações não conseguem passar. Além disso, são impedidos de passar pelos seguranças da empresa. “Fui tentar passar, mas fui recebido de arma na mão”, conta. Com tanta dificuldade, muitos realmente passam fome. “Isso acontece com a gente. O colega vem pedir uma lata de óleo, um pouco de arroz. Não vou contar os nomes, mas isso acontece”, relata. Assim como Rubem, seu vizinho e também pescador Jaci do Nascimento também reclama da falta de pescado. Aos 55 anos e seis filhos, os quais foram criados com a renda da pesca, Jaci conta que não consegue mais peixe para vender “Antes, quando ia pescar, com duas horas de trabalho matava de duas a três caixas de peixe. Hoje a gente só pega peixe miúdo, com osso e pele. Fora que tem muito peixe que está contaminado”, lamenta.
Problemas respiratórios Na varanda de sua casa, onde recebe a reportagem, ele mostra a pele dos braços, com manchas que parecem queimaduras. Os olhos estão
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avermelhados, como se estivessem irritados. Jaci levanta da cadeira e vai buscar um saco cheio do pó prateado, que “chove” na sua casa. Quando a esposa varre a casa e o quintal, enchem um saco plástico. “Esse pó cai em tudo, até na nossa comida. E entra no nosso estomago, porque com certeza estamos ingerindo esse material”. Ivo Siqueira Soares, que preside a Associação de Aquicultores e Pescadores de Pedra de Guaratiba é um dos pescadores mais combativos na luta contra a empresa, afirma que ela devastou quatro mil metros quadrados de manguezal e está causando degradação no mar, revolvendo todo o lodo contaminado pela Ingá Mercantil [empresa mineradora já desativada, que deixou uma grande área poluída com metais pesados]. Ivo, que tem mais 13 irmãos pescadores, conta que a família nasceu e se criou na pesca, mas, “de um tempo para cá ela se tornou inviável. Para você ter uma ideia, sou casado há 20 anos e minha esposa teve que começar a trabalhar. Hoje, é praticamente ela quem sustenta a casa”, lamenta. Embora acredite que a luta contra a empresa, que “comete crime atrás de crime” seja muito difícil, o pescador de 58 anos não desiste da batalha. Desde 2006, quando começaram as audiências para a implantação da empresa, Ivo participa ativamente de reuniões e mobilizações. “Para ver a proporção política que envolve todo esse empreendimento, o Luiz Inácio Lula da Silva esteve duas vezes aqui. E, na primeira vez que ele veio aqui, logo em seguida vieram 200 oficiais visitando a instalações da base aérea de Santa Cruz, eu tomei isso como uma intimidação aos pescadores”.
Efeitos cancerígenos Ivo também preocupa-se com a saúde da comunidade. As crianças e idosos são muito afetados pela poluição. No bairro carioca, há casos e casos de crianças com alergias na pele, problemas respiratórios, e crianças, adultos e idosos com problemas nos olhos. Depois que a empresa ali se instalou, muitos compraram nebulizador a ar. Entre eles, está Silvana Barbosa da Silva, de 33 anos, que mora muito próximo da empresa. “Aqui tem pó dia e noite, as crianças ficam com muita coceira. A gente fica toda a hora fazendo nebulização”. Silvana, que mora na região desde que tem quatro anos, conta que várias vezes esteve na empresa para reclamar, mas que embora tenham prometido que um médico iria passar nas casas do bairro para examinar as pessoas, nunca ninguém apareceu. “Mas eles também disseram que esse brilhinho não faz mal. Eu não acredito. Eu ouvi é dizer que esse negócio dá câncer. Como é que vai estar nosso pulmão daqui a pouco?”, questiona. De acordo com o pneumologista Hermano de Castro, da Escola Nacional de Saúde Púbica da Fiocruz, a população da região pode estar exposta material que contém, além de elementos que irritam o aparelho respiratório, como o grafite, fevereiro 2011
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metais pesados – mercúrio, chumbo, entre outros – que são cancerígenos: “Ninguém sabe o efeito destas emissões no longo prazo. Pode vir a se manifestar na forma de câncer no longo prazo. O câncer não aparece da noite para o dia”. Segundo o médico, mesmo que a fuligem seja formada apenas por grafite, ele pode agravar quadros de asma e bronquites, além de irritações na pele. “Mesmo que seja só grafite, as pessoas não devem respirar grafite”.
Exportação de poluição Em decorrência dos grandes impactos para a saúde, siderúrgicas dessa envergadura não são mais aceitas em cidades da Europa e do capitalismo avançado. “Esse é um dos motivos pelos quais eles estão transferindo para cá essa a primeira fase da siderurgia, a quente, que é a mais poluente e a que menos rende lucro porque é menos especializada. A gente fica com a parte suja porque eles exportam os problemas, a poluição. É mais barato exportar nessa fase suja e poluente para os países em desenvolvimento porque as pessoas aceitam com mais facilidade, a lei é mais omissa, as pessoas não tem tantos direitos e garantias para quando ficam doentes”, explica Karina Kato. Além disso, a empresa tem concessão de insenção fiscal municipal e estadual (ISS e ICMS). “E, para completar, esse dinheiro nem vai ficar aqui”. Sobre a empresa também há acusações de desrespeito às lei trabalhistas, a exemplo da contratação de trabalhadores chineses ilegalmente trazidos ao Brasil. “O Ministério Público do Trabalho encontrou 120 chineses sem documento, vivendo de maneira completamente ilegal”, relata Karina Kato. Há, ainda casos de perseguição e ameaça a moradores e pescadores que se organizaram e denunciaram a empresa. É o caso de Luis Carlos de Oliveira, que, à frente da Associação dos Pescadores dos Cantos dos Rios (Apescari), organizou atos contra a transnacional. Após acusar a empresa de abusos contra o meio ambiente e de ter envolvimento com milicianos locais, que estariam atuando na segurança da TKCSA, o pescador passou a ser ameaçado de morte, e hoje vive abrigado pelo Programa Federal de Defensores dos Direitos Humanos, do governo federal. A possível atuação das milícias na segurança da empresa está sob investigação da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (DRACO-IE).
Controle adequado Em dezembro do ano passado, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro denunciou a TKCSA por crimes ambientais. Junto com ela, dois executivos também foram denunciados: o diretor de projetos da companhia, Friedrich-Wilhelm Schaefer, e o Gerente Ambiental Álvaro Francisco Barata Boechat. As penas podem ultrapassar 19 anos de reclusão para cada um deles. A ação, ajuizada pelo Grupo de Atuação
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Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), demonstra que, desde junho de 2010, a TKCSA vem gerando poluição atmosférica em níveis capazes de provocar danos à saúde humana, afetando principalmente a comunidade vizinha da usina. Segundo o promotor de justiça Daniel Lima Ribeiro, “Uma usina siderúrgica do porte da CSA, construída em pleno ano 2010, não pode deixar de adotar tecnologia de controle adequada, capaz de prever e captar qualquer emissão de poluentes atmosféricos ou hídricos. O referencial precisa ser outro e pautado no respeito à legalidade e às determinações do órgão ambiental”. Se condenada, a TKCSA também pode ser punida com multa, suspensão total ou parcial de atividades e interdição temporária de direitos, como proibição de contratar com o Poder Público, receber incentivos fiscais ou quaisquer outros benefícios e participar de licitações, pelo prazo de cinco anos. De acordo com a ação penal, ajuizada na 2ª Vara Criminal de Santa Cruz, a TKCSA e os executivos cometeram quatro crimes ambientais, alguns de forma reiterada. O principal deles consistiu no derramamento de ferro-gusa – usualmente destinado à unidade de aciaria – em poços ao ar livre, sem qualquer controle de emissões. Em contato com o solo, o ferro-gusa resultante do derretimento do minério de ferro e recém-saído do alto-forno provoca a emissão de toneladas de material particulado, podendo causar doenças de pele, irritação de mucosas e problemas respiratórios.
Saúde afetada A denúncia foi complementada por diversos relatórios técnicos do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), além de um estudo realizado pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ), atestando aumento de 600% na concentração média de ferro na área de influência da TKCSA em relação ao período anterior ao início da pré-operação. O estudo também aponta violação ao padrão primário para partículas totais em suspensão, ou seja, nível máximo legal tolerável para a concentração de poluente atmosférico, acima do qual a saúde da população pode ser afetada. Comunicado divulgado pela CSA informa que a empresa não tomou conhecimento oficial de qualquer denúncia oferecida pelo MP contra ela e esclarece que, desde o início das operações, em julho de 2010, suas emissões encontram-se dentro dos limites estabelecidos pela legislação ambiental. “A empresa refuta qualquer afirmação de que tenha desrespeitado o meio ambiente e assegura que em momento algum expôs a saúde da população de Santa Cruz a riscos.”
Consulta à comunidade Como parte da ação contra a empresa, o MPRJ e o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) determinaram que ela passe por uma auditoria ambiental independente. Pelo acordo, decidiuse que uma empresa idônea e isenta analisasse todos os pontos de descumprimento da legislação ambiental pela TKCSA. Além de vistorias, com a participação de Promotores e peritos do MPRJ, essa empresa fará uma consulta à comunidade do entorno. O relatório deverá informar sobre o atendimento aos critérios e medidas determinados no licenciamento ambiental até então e a análise da Gestão Ambiental da CSA desde o início de sua pré-operação. Porém, dois dias depois da decisão, o Governo do Estado e a Secretaria do Ambiente passaram por cima dessa medida e autorizaram o funcionamento da usina, levando maiores emissões do pó prateado, com maior incidência no dia 26 de dezembro. Pela emissão do dia 26 de dezembro, a empresa foi multada, dia 5 de janeiro, em R$ 2,8 milhões pelo Inea, que exigiu a realização de ações de compensações no entorno da usina. A siderúrgica já havia sido multada pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) em R$ 1,8 milhão por conta da emissão de partículas na atmosfera, quando o alto-forno entrou em operação, em julho do ano passado. Um aspecto muito criticado pelos moradores da região e apoiadores da luta da comunidade de Santa Cruz é a escolha da empresa Usiminas para realização de auditoria na TKCSA. “Essa auditoria não será independente, pois a Usiminas tem interesse que essa empresa funcione. Isso descaracteriza a independência exigida pelo MPRJ”, critica Karina Kato. Para ela, embora a ação penal ajuizada pelo MPRJ represente uma vitória enorme, “logo depois a empresa negociou com o Estado e passou por cima do MP”, lamenta. A Usiminas teve a Vale (sócia da ThyssenKrupp na CSA) como sua acionista minoritária (5,9% de ações) pelo menos até o ano de 2008. Hoje, segundo a página web da Usiminas, 10% do seu capital votante pertence à Previ (Fundo de Pensão dos Funcionários do Banco do Brasil), que também é acionista da Vale (em 2009, o Fundo tinha R$ 31 bi de ações da Vale, sendo o seu principal ativo). Além disso, muitos são os casos de intercâmbio de executivos em posições de decisão entre as duas empresas. O presidente da Usiminas, Wilson Brumer, por exemplo, foi cotado à presidência da Vale.
Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br
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José Arbex Jr.
anuncia novas tragédias
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“revolução árabe” começou a ser deflagrada em 17 de dezembro, por um singular mas trágico incidente: Mohammed Bouazizi, 25 anos, vendedor ambulante de hortaliças, ao ter as suas mercadorias apreendidas pela polícia (cena, aliás, bastante comum em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais brasileiras), foi levado ao desespero e imolou-se em fogo, na localidade de Sidi Buzid (perto de Túnis). O auto sacrifício incendiou o país: manifestações de revolta na capital, cidades e vilarejos derrubaram o ditador Zine Ben Ali (no poder desde novembro de 1987), expulso finalmente da Tunísia em 14 de janeiro. Foi o sinal para que grandiosas manifestações eclodissem sem aviso na Argélia, na Jordânia, no Iêmen e, sobretudo, no Egito. Centenas de milhares de jovens, trabalhadores e trabalhadoras, donas de casa, intelectuais, artistas e pequenos comerciantes saíram às ruas contra odiosas ditaduras e monarquias. Em 1 de fevereiro, no Cairo, Alexandria e outras cidades, pelo menos 1 milhão exigiram a renúncia imediata de Hosni Mubarak, há três décadas um servo fiel das determinações da Casa Branca. O espectro da revolta sacode o Oriente Médio e o norte da África e cria imensas indagações sobre os novos cenários geopolítico, econômico e financeiro do mundo contemporâneo. À primeira vista, o grandioso tsunami árabe é inexplicável. Assume a aparência de um evento fortuito, que tenderá a desaparecer com a mesma rapidez com que eclodiu. Nada poderia ser mais equivocado. Se o sacrifício de um jovem ambulante é capaz de incendiar uma região inteira do planeta, isso se deve a determinações profundas,
inconscientes, muitas vezes invisíveis, mas que se combinam de forma explosiva e imprevisível em determinados momentos históricos. Ninguém controla ou domestica a história, diria grande revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo, cujas análises sobre a Revolução Russa oferecem a chave para entender o que acontece hoje no Oriente Médio. Quem diria, até o final de novembro de 2001, que, em menos de quinze dias, uma multidão enfurecida, incluindo senhoras de classe média, muito bem vestidas, saquearia supermercados e bancos em Buenos Aires, e expulsaria os inquilinos eleitos da Casa Rosada? Ou quem afirmaria, em outubro de 1989, que em 9 de novembro cairia o Muro de Berlim? Os manifestantes árabes, principalmente os jovens, não reclamam apenas reformas econômicas. Manifestam uma revolta incontrolável contra regimes que, durante décadas, oprimiram, torturaram, perseguiram, assassinaram os seus opositores, além de terem devotado uma submissão canina a um sistema imperialista que construiu um imenso edifício de preconceito, ódio e segregação ao mundo árabe e islâmico. Justamente o Egito é um elo crucial desse processo, por uma razão ao mesmo tempo simples, trágica e grandiosa: durante 16 anos, a partir de 1954, ele foi governado por Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970), responsável, em 26 de julho de 1956, pela nacionalização do Canal de Suez, e pela vitória, quatro meses depois, sobre o assalto combinado de tropas britânicas, francesas e israelenses que queriam recuperar o controle sobre o canal – resultado que provocou a renúncia, em janeiro de 1957, de Anthony Eden, o então arro-
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gante primeiro-ministro britânico. “Tudo o que nos foi roubado por aquela empresa imperialista, por aquele Estado dentro do Estado, enquanto morríamos de fome, nós vamos reaver... O governo decidiu sobre a seguinte lei: um decreto presidencial que nacionaliza a Companhia Internacional do Canal de Suez. Em nome da nação, o presidente da república declara que a Companhia Internacional do Canal de Suez é uma companhia limitada egípcia”, declarou Nasser em 26 de julho, durante um comício realizado em Alexandria. Com Nasser, o mito da “grande nação árabe” encontrava o seu momento histórico mais brilhante: um líder carismático, símbolo da luta contra o imperialismo britânico, finalmente demonstrava a possibilidade de os povos árabes recuperarem sua dignidade e autoestima.
Expansão islâmica A vitória obtida na Guerra do Suez, graças à mobilização massiva da população, que foi armada pelo governo para resistir aos invasores, criou a sensação, entre milhões de árabes de todo o Oriente Médio, de que a mensagem pan-arabista preconizada por Nasser era o caminho indiscutível rumo à recuperação da glória que um dia os povos árabes conheceram, no auge da expansão Islâmica. A vitória egípcia estimulou manifestações populares em todos os países árabes cujos governos eram identificados com as potências imperialistas, especialmente no Iraque do primeiro-ministro Nuri alSaid, visto como um vassalo de Londres. Como resultado das mobilizações populares, caíram Said e a monarquia iraquiana, em julho de 1958. Também como resultado da campanha de Suez, e por impulfevereiro 2011
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“Revolução árabe”
A grande incógnita é saber qual força política vai liderar o processo de mudanças, se grupos nacionalistas ou islâmicos.
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so de correntes nacionalistas sírias, principalmente organizadas pelo Partido Baas, foi criada, em 22 de fevereiro de 1958, a República Árabe Unida (RAU), que, integrando Egito e Síria, com capital no Cairo, era destinada a ser o embrião do primeiro Estado pan-árabe (extinto em 1961). O prestígio de Nasser atingia o seu ponto máximo. Após a vitória de Suez, Nasser reprimiu violentamente e perseguiu os próprios aliados, incluindo militantes de sindicatos e partidos de esquerda, bem como a Irmandade Muçulmana. Além disso, claro, foi humilhado pela derrota na Guerra dos Seis Dias (junho de 1966). Mas o mito sobreviveu à história, e foi ainda reforçado, em certa medida, pela vitória do Exército egípcio, indissoluvelmente vinculado à figura de Nasser, na fase inicial da Guerra do Yom Kippur contra Israel (outubro de 1973). Israel só conseguiu rechaçar o ataque conjunto dos exércitos da Síria e do Egito graças a uma tremenda mobilização de forças colocada em ação por Washington. É dessa história que deriva o imenso prestígio atual do exército egípcio – o décimo maior do planeta -, como também a recusa de seus generais a disparar contra a multidão, embora o próprio Mubarak tenha sido comandante da Força Aérea (entre 1972 e 1975), antes de assumir a presidência. A fábula do “exército popular”, fonte de poder e barganha dos generais, seria destruída por uma ação sangrenta. E também como decorrência dessa história os Estados Unidos concederam ao governo fantoche de Mubarak “subsídios” avaliados em cerca de 2 bilhões de dólares anuais, utilizados para o armamento do exército e obras de infraestrutura. Como se vê, não é só o Estado de Israel que vive do parasitismo na região. Fica fácil compreender porque as manifestações no Egito, em particular, provocaram alarme nos Estados Unidos, em Israel e na União Europeia, ainda que em sua fase inicial elas não tenham assumido um caráter explicitamente antiimperialista ou sequer anti-israelense. Mesmo a ditadura chinesa ficou alarmada. Os mandarins travestidos de vermelho bloquearam, nos programas de busca da Internet, qualquer menção às palavras “Egito”, “Hosni Mubarak” e outras que remetam à revolta egípcia, a qual evoca na China, inevitavelmente, o massacre da Praça da Paz Celestial, por eles ordenado em 4 de junho de 1989. Em face da catástrofe política, os porta-vozes da Casa Branca não poderiam ser mais patéticos. No escasso intervalo de cinco dias, a secretária de Estado Hillary(ante) Clinton mudou sua caracterização segundo a qual o governo Mubarak era “estável” (25 de janeiro) para outra que pedia o “início imediato” do processo de “transição para a democracia”. Barak Obama, impotente e alarmado, foi obrigado a oscilar entre o tímido apoio aos manifestantes, que exigiam “mudanças” (lema de sua própria campanha presidencial) e a condenação de um fiel cão de guarda dos interesses de Washington. Explica-se a patética cautela: se Obama abandona subitamente Mubarak, os demais regimes árabes fantoches de Washington vão se sentir ainda mais frágeis e em pânico, intensificando a instabilidade regional.
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Petróleo e geopolítica A queda de Mubarak sob o impacto de um poderoso movimento de massas é a pior notícia que as grande potências e Israel poderiam receber, por múltiplas razões. Primeiro, porque o Canal de Suez – eterno símbolo do mito nacional árabe - é essencial para assegurar a estabilidade dos fluxos mundiais de petróleo. Um governo instável, ou com algum traço de coluna vertebral poderia criar “problemas” para o uso do canal, que seriam insuportáveis, no quadro da atual crise, mesmo afastando a hipótese (nada irreal) de seu eventual ainda que momentâneo fechamento. Não por acaso, o preço do barril do petróleo disparou com o início das manifestações no Egito, superando o teto dos cem dólares pela primeira vez desde outubro de 2008 (no auge de uma das fases da crise financeira). Do ponto de vista geopolítico, a equação fica ainda mais tenebrosa para Casa Branca e aliados. O Egito de Mubarak sempre funcionou como carrasco do povo palestino. Bloqueia a sua fronteira com a Faixa de Gaza com uma ferocidade equiparável ou ainda mais violenta do que a praticada por Israel. Seu alinhamento incondicional a Washington é fonte de pressão sobre governos menos “dóceis” do Oriente Médio, como o sírio, e serve como fator de estabilidade regional (em combinação com os fantoches da Arábia Saudita e Jordânia), além de jogar um peso importante no norte da África. Se isso é uma verdade historicamente genérica, torna-se agudamente dramática no quadro atual de extrema tensão, em que a Turquia ensaia uma aproximação, ainda que moderada, com o mundo árabe e islâmico, em que se acumulam as tensões com o Irã, e em que os Estados Unidos são obrigados a amargar o fiasco no Iraque e no Afeganistão. A Casa Branca não pode perder o controle sobre o Egito, é simples assim. Do ponto de vista de Obama e aliados, essa alternativa não está posta sobre a mesa. Mas uma coisa é o que desejam os governos e as potências. Outra, bem diferente, é a dinâmica dos processos históricos. A “revolução árabe” está, no momento, muito distante de seu final. A pergunta que paira é: qual será a próxima monarquia ou ditadura que vai sentir o gosto amargo da rebelião? Basta pensar no que aconteceria com a desestabilização da Arábia Saudita, maior exportador de petróleo do mundo, cuja família real, que adota o fundamentalismo wahabita, acumula fortunas fabulosas, às custas da pobreza de boa parte dos trabalhadores, cuja maioria (cerca de 80%) é formada por mão de obra estrangeira não qualificada. Amigos íntimos da família Bush e frequentadores dos altos círculos financeiros estadunidenses, os reis, príncipes e magnatas sauditas (incluindo os Bin Laden) funcionam como uma espécie de garantia de suprimento de petróleo aos Estados Unidos, onde mantêm investimentos bilionários. Há muitos anos as tensões se acumulam na Arábia Saudita, agravadas pelo fato de que a monarquia cedeu território para funcionar como base estadunidense e britânica para ataques ao Iraque durante as duas guerras do Golfo. Mesmo a desestabilização súbita da Síria seria
uma má notícia para Washington e Israel. Submetida a uma feroz ditadura, em que se pratica o culto à personalidade do presidente Bashar Assad (desde julho de 2000, quando substituiu o seu falecido pai Hafez), a Síria reclama a soberania sobre as Colinas de Golã, anexadas por Israel durante a Guerra dos Seis Dias. Mas, ainda que seja qualificada como parte do “eixo do mal” pelos trogloditas mais à direita dos Estados Unidos e Israel, e acusada de financiar o Hezbolá e o Hamas, a ditadura síria faz o jogo diplomático, evita o confronto direto (como faz, por exemplo, Mahmoud Ahmadinejad), contém a minoria curda (outro fator explosivo em toda a região) e procura soluções “pragmáticas”. No atual quadro, é menos pior para a Casa Branca ter um “inimigo” conhecido mas controlável do que esperar uma alternativa que não se sabe bem qual seria.
Grande incógnita Finalmente, em todos os países da região fermenta uma grande incógnita, que foge completamente aos parâmetros tradicionais da política: o Islã. Mesmo no caso da “Revolução do Jasmim” tunisiana – onde o fundamentalismo parece não ter grande expressão - ou no caso do Egito - onde a Irmandade Muçulmana (berço do fundamentalismo islâmico contemporâneo) parece ter adotado a posição mais de espectadora e multiplica promessas de “moderação” – a força que a religião pode oferecer como um elemento de identidade transnacional não pode ser subestimada. Trata-se de um componente que ninguém controla. Assim como não basta recitar o Corão para, automaticamente, arrastar multidões, tampouco adianta evitar o Islã como forma de manter os movimentos dentro de limites seculares. Numa situação em que o nacionalismo pan-árabe dificilmente voltará a exercer o fascínio que teve à época de Nasser, o Islã pode muito bem apresentar-se como o eixo de unificação das lutas nacionais parciais e fragmentárias, ainda que ninguém proclame desejá-lo. Essa é, finalmente, a tragédia da atual “revolução árabe”. Durante as últimas décadas, a suposta “identidade árabe” foi artificialmente cimentada e sustentada pela retórica contra o “inimigo comum” – em particular, os Estados Unidos e o Estado de Israel. Hoje, quando as ditaduras, monarquias e governos corruptos são forçados a mostrar abertamente seu caráter, e quando se abre historicamente a possibilidade de uma afirmação positiva, na via da construção de uma alternativa popular, identificada aos interesses da juventude e dos trabalhadores, não há organizações capazes de liderar esses movimentos e organizar a resistência aos ataques imperialistas, que serão inevitáveis. Mas há o Islã, cuja contrapartida é a retórica não menos fundamentalista e belicista de Israel e a política da Casa Branca. Mais uma vez, o heroísmo de jovens, homens e mulheres árabes, que nas ruas realizam a sua revolução, ainda não conseguiu construir uma saída para a tragédia que se anuncia. E talvez nem haja tempo para isso, no horizonte previsível. José Arbex Jr. é jornalista.
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Lúcia Rodrigues
Em defesa de Cuba, em defesa do socialismo O Partido Comunista Cubano realiza seu sexto congresso, de 17 a 19 de abril, para discutir o futuro da Ilha.
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Tanque utilizado pelos revolucionários cubanos para evitar a invasão financiada pelos Estados Unidos, em abril de 1961.
no início do ano passado por um furacão. Os Estados Unidos prometeram ajuda, mas quem de fato fez a diferença foi Cuba, destacando para lá centenas de médicos que atendem a população e amenizam seu sofrimento.
Reformas O leitor deve estar se questionando sobre qual é então o motivo de minha preocupação em relação aos riscos que o socialismo corre com as mudanças que devem vir no bojo das reformas que serão discutidas pelos delegados que participarão do sexto congresso do Partido Comunista Cubano, de 17 a 19 de abril. Explico. Desde que o campo socialista do leste europeu deixou de existir, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, Cuba ficou ainda mais isolada no cenário econômico. Sem os parceiros comerciais do leste europeu e com o torniquete estadunidense estrangulando a economia cubana, a Ilha teve de buscar alternativas. A abertura ao turismo foi a fórmula encontrada pelo governo cubano para a superação da crise gerada com a queda desses países do leste. Vários hotéis foram erguidos em parceria com grupos privados. O Estado também permitiu que alguns cubanos transformassem suas residências em espécies de pousadas, onde alugam quartos para turistas. Surgiram também os paladares, como os cubanos se referem aos pequenos restaurantes privados instalados em residências. A boa infraestrutura de atendimento, aliada ao extenso e deslumbrante litoral do mar do Caribe e à segurança que a Ilha proporciona aos seus visitantes (certamente está entre os países mais seguros do mundo, lá não existe tráfico de drogas) foram elementos decisivos para o governo atrair anualmente milhares de turistas para lá. Mas os recursos trazidos pelo turismo, trouxeram também problemas. O CUC, a moeda destinada às transações efetuadas pelos turistas, acabou gerando desigualdade entre os cubanos. Apesar de to-
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dos os trabalhadores receberem seus vencimentos em pesos cubanos, a moeda corrente nacional, as pessoas que trabalham na cadeia ligada ao turismo também tiveram acesso aos CUCs, seja por meio de pagamentos diretos, seja por meio de gorjetas. Dentre essa parcela da população, destacam-se os proprietários das residências que locam quartos, donos de paladares, garçons, motoristas de táxi e artesãos. O acesso ao CUC passou a ser muito disputado entre os cubanos. A obtenção de divisas, como eles se referem à moeda dos turistas, é passaporte garantido para a compra de produtos diferenciados vendidos nos mercados que só transacionam em CUCs. O que acabou criando uma desigualdade social entre os cubanos que têm acesso ao CUC e aqueles que não recebem a moeda nem na forma de pagamento, nem na forma de gorjeta. Um CUC equivale a 24 pesos cubanos. A população que não tem acesso diretamente à moeda pode converter os pesos que recebem, nas casas de câmbio do governo, mas perdem um peso nessa conversão: precisam dar 25 pesos cubanos para obter um CUC. Além disso, os salários são relativamente baixos para se obter um valor razoável de CUCs que permitam comprar um bom número de produtos oferecidos nesses mercados. Por isso, acabam fazendo suas compras nos mercados que vendem em moeda nacional, mas que não oferecem um leque ampliado de produtos como os aqueles que comercializam em CUCs. Mas essa desigualdade pode aumentar se o governo insistir na proposta de demitir parcela do funcionalismo e incentivar o trabalho por conta própria. Ao permitir negócios privados, o governo cubano pode estar contribuindo de maneira decisiva para a consolidação de uma pequena burguesia na Ilha, primeiro passo para a constituição de uma sociedade de classes. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br fevereiro 2011
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inhas andanças pela ilha dos barbudos que encantaram o mundo com suas ideias que subverteram a ordem capitalista e derrubaram do poder o tirano Fulgêncio Batista, preposto dos Estados Unidos, em 1 de janeiro de 1959, me dão conta de que os objetivos da magnífica Revolução Cubana correm risco. Cuba enfrenta, neste início de década, certamente sua pior prova de fogo desde o triunfo da revolução. Nestas mais de cinco décadas, a Ilha resistiu bravamente a incontáveis ataques do mundo capitalista e em particular dos Estados Unidos. A primeira das muitas agressões sofridas aconteceu, em 17 de abril de 1961, quando a CIA, a central de inteligência estadunidense, articulou e financiou mercenários cubanos que viviam em Miami, para invadir o país pela Playa Girón, na Baía dos Porcos, localizada no lado sul do mar do Caribe. A valentia dos revolucionários de Sierra Maestra impediu a invasão do imperialismo ianque. A acachapante derrota imposta pelos jovens revolucionários deixou o Império ainda mais furioso. Em 3 de fevereiro de 1962, veio a contundente resposta: o governo do presidente John Kennedy decretou o bloqueio econômico à Ilha, que persiste até os dias de hoje. Apesar de contestado até mesmo pelas Nações Unidas, a prática nefasta de isolamento econômico continuou a ser levada a cabo pelo presidente Barack Obama. O norte-americano não moveu um dedo para reverter a punição imposta a quem ousou não se curvar diante do poderio capitalista. As lições dadas ao centro nervoso do capitalismo soam como um verdadeiro tapa na cara do Império. No mês de janeiro, a Ilha registrou a primeira vacina do mundo contra o câncer de pulmão. Os pesquisadores envolvidos na descoberta trabalharam aproximadamente 15 anos nesse projeto. A medicina preventiva de Cuba é exemplo para o mundo. A Escola Latinoamericana de Medicina (Elam), que acolhe anualmente estudantes de várias partes do planeta e os transforma em médicos (infelizmente o governo federal ainda não reconhece o diploma dos brasileiros formados lá), é uma máquina de doutores. A Ilha também exporta para outros países centenas de médicos cubanos que atuam em missões humanitárias, como no caso do Haiti, devastado
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Emir Sader
Fidel Castro
É hora de fazer alguma coisa (Parte 1) Quando os espanhóis “nos descobriram”, há cinco séculos, o número estimado da população da Ilha não ultrapassava os 200 mil habitantes, os quais viviam em equilíbrio com a natureza. Suas fontes principais de alimentos procediam dos rios, lagos e mares ricos em proteínas; adicionalmente praticavam uma agricultura rudimentar que lhes fornecia calorias, vitaminas, sais minerais e fibras. Nalgumas regiões de Cuba ainda existia o hábito de produzir casabe (um tipo de pão elaborado com mandioca). Determinados frutos e pequenos animais silvestres complementavam sua dieta. Fabricavam alguma bebida com produtos fermentados e transmitiram à cultura mundial o costume de fumar, muito daninho para a saúde. A população atual de Cuba é, possivelmente, 60 vezes maior da que existia naquela época. Embora os espanhóis se misturassem com a população autóctone, essa população praticamente foi exterminada com o trabalho semi-escravo no campo e com a garimpagem de ouro nas areias dos rios. De muita importância para nossa existência foram os hábitos alimentares criados. Fomos convertidos em consumidores de carne suína, bovina, ovina, consumidores de leite, queijo e outros derivados; trigo aveia, cevada, arroz, grão-debico, feijão, ervilha e outras leguminosas procedentes de climas diferentes. Originariamente, dispunhamos do milho, e foi introduzida a cana-de-açúcar entre as plantas mais ricas em calorias. O café foi trazido pelos conquistadores da África; o cacau possivelmente foi trazido do México. Estes dois produtos, juntamente com o açúcar, o fumo e outros produtos tropicais, viraram enormes fontes de recursos para a metrópole, depois do levante dos escravos no Haiti, ocorrido no início do século 19. O sistema de produção escravista perdurou até a transferência da soberania de Cuba para os Estados Unidos pelo colonialismo espanhol que, em guerra cruenta e extraordinária, foi derrotado pelos cubanos. Quando a Revolução triunfou, em 1959, nossa Ilha era uma verdadeira colônia ianque. Os Estados Unidos enganaram e desarmaram nosso Exército Libertador. Não se podia falar duma agricultura desenvolvida, mas sim de imensas plantações, exploradas com o trabalho manual e animal que, em geral, não utilizavam fertilizantes nem maquinarias. As grandes usinas de açúcar eram de propriedade norte-americana. Várias delas tinham mais de cem hectares de terra; outras dezenas de milhares. No total eram mais de 150 usinas açucareiras. Os Estados Unidos receberam os fornecimentos açucareiros de Cuba nas duas grandes guerras mundiais, e tinham concedido a nosso país uma cota de venda nos seus mercados, associada a compromissos comerciais e a limitações da nossa produção agrícola, apesar de que o açúcar era, em parte, produzida por eles. Outros setores decisivos da economia, como os portos e refinarias de petróleo, eram propriedade norte-americana. Suas empresas possuiam grandes bancos, centros industriais, jazidas, cais, linhas marítimas e ferrovias, além de serviços públicos tão vitais como os elétricos e telefônicos. Para aqueles que desejem entender não é necessário nada mais. Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.
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ESFERA PÚBLICA X ESFERA MERCANTIL Tornou-se ainda mais importante no neoliberalismo a diferenciação entre o setor chamado de privado e o setor público. Aquele, na verdade, tem que ser chamado de setor mercantil, porque busca tornar tudo mercadoria, busca impor as relações de mercado sobre o conjunto das relações sociais. O setor público, por sua vez, se estrutura em torno da universalização dos direitos, das políticas sociais, da atenção aos interesses da cidadania. Enquanto que a esfera mercantil se articula em torno da extensão das relações de mercado, em que tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra, em que a referência fundamental não é o direito de todos, mas a competição no mercado, não é o cidadão, mas o consumidor. Quando a única estratégia de construção de hegemonia alternativa passa pela disputa em torno da transformação radicalmente democrática das estruturas estatais existentes, para rearticulá-las em torno da esfera pública – de que os processos constituintes e a refundação dos Estados na Bolívia e no Equador são exemplos avançados -, o fortalecimento da esfera pública se torna um tema essencial. A luta contra o neoliberalismo impõe a recuperação do papel do Estado, não como complemento do mercado ou como apoio aos processos de acumulação privada, mas como promotor e garantia dos direitos de todos. Como articulador dos interesses populares e agente do programa antineoliberal, um programa popular e democrático. Nesse sentido, grande responsabilidade recai sobre os trabalhadores do setor público. Mostrar a superioridade dos serviços públicos sobre os mercantis faz parte da disputa política e ideológica contra o neoliberalismo. Os governos neoliberais degradaram o serviço público, para tratar de fazer passar a ideia de que os planos privados de saúde, as escolas privadas, são melhores, como prova da suposta superioridade da lógica do mercado. A esfera pública tem a responsabilidade de afirmar direitos, de construir cidadania social contra a lógica do consumidor e da ascensão social pela disputa de todos entre si no plano do mercado. Elevar a qualidade da educação pública, melhorar substancialmente o atendimento da saúde pública, disseminar espaços de cultura no plano público – são formas concretas de construir cidadania, de fortalecer o espírito público dos servidores e de construir concretamente alternativas ao neoliberalismo. sugestões de leitura MARXISMO E TEORIA DA LITERATURA
Gyorgy Lukács - Editora Expressão Popular EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS
Slavoj Zizek - Boitempo Editorial
PERSPECTIVAS DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO
IPEA – Livro 10
Emir Sader é cientista político.
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Gershon Knispel
Ensaio sobre a cegueira A traição dos social-democratas – em Israel – deixa triunfarem os nacional-socialistas.
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articipando em uma delegação de escritores enviados à Cisjordânia, logo depois da Segunda Intifada, em Jenin, em 2003, José Saramago acusou o governo de Israel de tomar atitudes semelhantes, contra os palestinos, às que os judeus tinham sofrido na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Shimon Peres, naquele tempo membro do governo, respondeu: “O Saramago do ‘Ensaio sobre a Cegueira’ é uma grande vítima da mesma cegueira”. Será? As lideranças desse governo sabiam perfeitamente o rumo que esse abismo atingiria. Na nossa revista, em dezembro de 2006, eu já previa o roteiro que no fim prova quem na verdade era cego. Nesse artigo, “Antevendo o que vai nascer”, mencionei: “Nomeando seu novo ministro para Assuntos Estratégicos Avigdor Lieberman, dando assim legitimidade a esse pregador da expulsão dos árabes de Israel e da Cisjordânia, tramam uma nova artimanha de sobrevivência, a mudança de forma do governo”. Isso foi possível com o apoio incondicional do Partido Trabalhista, chefiado por Ehud Barak, o perpétuo ministro da Defesa, assim dando legitimação à continuação, em novo cargo, de Lieberman, como ministro das Relações Exteriores, envolvido recentemente em escândalos que abalavam toda a mídia israelense, no dia da minha mais recente chegada, no fim do ano. Quatro acontecimentos obscureceram a grande tragédia do incêndio da Floresta do Carmelo: o abaixo-assinado de 50 rabinos, chefes do rabinato de cidades de Israel, proibindo a venda ou aluguel de imóveis para os árabes israelenses, o que já provocou um protesto dos rabinos liberais; o discurso oficial do ministro das Relações Exteriores, Lieberman, na Assembléia Geral da ONU, negando qualquer negociação com os palestinos e com os países que os apoiam, dizendo que o conflito armado ainda vai permanecer durante décadas, porque o único objetivo dos árabes é a eliminação de Israel; o encontro de Lieberman com 170 embaixadores de Israel, em seu gabinete, confirmando que nessa situação, o confronto com a maioria dos países, que apoiam o Estado palestino, a única resposta seria a força, a única língua aprendida no Oriente Médio, a decisão do governo de expulsar centenas de refugiados sudaneses que pediam asilo já há anos em Israel. Toda a mídia, chocada, protestou e exigiu que Netanyahu demitisse imediatamente Avigdor Lieberman do governo. Uma caricatura, no jornal “Ha’aretz” a 28 de dezembro, mostra Bibi dizendo “Essa não é a minha posição”, tendo ao lado o editorial “O ministro das Relações Exteriores vai contra o governo”: “O ministro das Relações
“Essa não é minha posição”, defende-se Netanyahu das críticas sobre a política externa de Lieberman.
Exteriores, Lieberman, utilizou ontem o encontro dos embaixadores no seu gabinete como uma arena de horrores temporários, como é de seu costume, chamando o chefe de governo turco de ‘mentiroso’, a Autoridade Palestina de ‘governo sem legitimidade’, e disse de nosso primeiro-ministro Binyamin Netanyahu que ‘suas promessas e acordos definitivos são ilusórios’. Netanyahu, também de acordo com seu costume, evitando um confronto com seu ministro rebelde, preferiu uma reação frágil: ‘As opiniões de Lieberman refletem suas posições pessoais e não representam as posições do governo’. Barak, o líder do Partido Trabalhista, permaneceu durante anos no cargo de ministro da Defesa, apesar da exigência de seus partidários de romper com o governo de Bibi Netanyahu, que está paralisando todos os esforços de firmar um acordo de paz com os palestinos. Barak já conseguiu que seu partido quase desapareça (de 45 cadeiras para 13). No fim do ano, seu partido decidiu mandar a Barak um ultimato: ou romper dentro de duas semanas as ligações com o atual governo, ou ser expulso da chefia do partido, sabendo que os militantes que sobraram estão enfurecidos com seu apoio a Netanyahu e Lieberman.
Caricatura do jornal “Há’aretz” critica a fragilidade de Netanyahu frente à política agressiva de Lieberman.
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O jornal “Jerusalem Post” publica previsão do tempo em mapa de Israel com regiões anexadas da Palestina.
No fechamento da revista, chegou a notícia de que, em vez de romper com o governo, Barak rompeu com o próprio Partido Trabalhista. Ele anunciou a criação do Partido Azmaut (Independência), que será formado por outros quatro deputados ex-trabalhistas. Os outros oito vão retirar o apoio a Netanyahu. A reação da mídia não demorou: “Só com uma espátula se pode tirar esse oportunista grudado na cadeira. Para permanecer, é capaz de trair os que sobraram do partido, que ele arruinou, sacrificando o caminho que prometeu seguir, o caminho da paz de Rabin, quando pretendeu ser o sucessor desse líder assassinado. Abandonando o caminho em troca de uma carreira duvidosa, deixando o navio afundado, que ele mesmo dirigia, com seus colegas atrás”. O ultranacionalista Lieberman aparece como um homem honesto que cumpre o que promete. E a população, com milhões de imigrantes russos, confusos com ameaças e com o clima que Lieberman criou, de que a existência de Israel está em risco, vai garantir a eleição do próprio Lieberman como primeiro-ministro, sempre apoiado pelo presidente Shimon Peres, o falcão com a folha de parreira do Prêmio Nobel da Paz, já perto de 90 anos sem pretender largar a presidência. Esse microrroteiro lembra o macrorroteiro que aconteceu em algum lugar da Europa em 1933, enquanto a traição dos social-democratas deixou subirem os nacional-socialistas. O resultado já conhecemos. Tudo depende da cegueira que ainda permanece entre a maioria da população judaica em Israel. Gershon Knispel é artista plástico. fevereiro 2011
caros amigos
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Sérgio Vaz
MIL GRAUS NA TERRA DA GAROA São Paulo é uma cidade no cio. Por isso, transa com todo mundo e em
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Gilberto Felisberto Vasconcellos
Volver ao desenvolvimentismo SEM EMPREGO Sentado à mesa.
todos os lugares. É bonita porque é feia, e como toda feia que se preza, beija mais gostoso. Que os Vinicius me perdoem, mas feiura é fundamental. Do alto do prédio ou na superfície da alvenaria, a cidade dói nos olhos dos inocentes que transitam nas calçadas. De onde eu a vejo, minhas retinas são seletas e, de como eu a vejo, as esquinas são espertas. A cidade de São Paulo, que está no mapa, não é toda daquele tamanho, muita gente já tirou um pedaço, que faz muita falta na mesa do jantar, ou depositou em conta corrente, que nada contra a corrente, de quem ama esse lugar. Essa maçã mordida que a massa não come, constrói o luxo que alimenta o lixo escondido debaixo do tapete. Essa cidade não é minha e não devia ser de ninguém, mas ela existe, e todo ano faz aniversário. São Paulo pra mim é pagode com feijoada nos botecos que brotam nas ladeiras. É samba da vela, elétrico nos trilhos de Santo Amaro até o samba da hora atrás da batina da Igreja da Estrada do M’Boi Mirim. É ser Rap Soul funk ou metal de primeira. E segura o Peão que corre a cavalo na pista dos bares de Interlagos onde a Primavera começa toda sexta. É cantar de galo nas Rinha dos Mcs no Grajaú onde o Criolo Doido não tem nada de louco. É sarau da Cooperifa no quilombo do Jardim Guarujá, onde a poesia nasce das ruas sem asfalto, em plena quarta-feira... e todos os outros saraus onde a literatura do morro arranha os céus da cidade. Ô povo lindo, ô povo inteligente! É comprar livros nos sebos e ensebar nos bancos da praça ou do metrô, até o Jabaquara. É ler Brasil de Fato com os caros amigos dos Becos e vielas dentro do ônibus ou na fila de espera. É ser Um da Sul e ser 100% favela, e se é por ela, deixa a bússola te levar. É assistir a Glauber Rocha no cine Becos que é cinema novo para galera do Jardim Ângela, que é truta do Jardim Ranieri. Ou dançar samba de côco no Panelafro, onde Zumbi impera no largo de Piraporinha. É jogar futsal nas quadras das escolas públicas, quase abandonadas pelo alfabeto. É conspirar a favor, tomando cerveja gelada no bar do Zé Batidão. É Carolina de Jesus de Jéferson De, saindo da tela. É as mina de vestidinho e chinelo de dedo no churrasco em cima da laje. É comer pipoca sem pipoco na quermesse da Vila Fundão, no coração do Capão. É a rapaziada nos campos de várzea de canela em punho maltratando a bola, ou sendo maltratada por ela. É Poesia do Binho no Campo Limpo, pra se livrar das sujeiras. É ver os sonhos se realizarem na Casa do Zezinho onde as Marias também são vem-vindas. É ser preto ou branco, tanto faz, mas principalmente verde, que é a esperança da paz. É o ensaio da Vai-Vai e das outras escolas unidas do morro. É curtir o sol mesmo quando ele não vem - e encontrar sempre as mesmas pessoas no muro das lamentações. É empinar pipa nos dias sem vento. É viver mil fitas e ser mil graus na terra da garoa. Enfim, São Paulo é isso, mas também tem outros lugares.
Com uma secretária ao lado, perfume tucano. Andando, devagar. Salto alto. Traje daslumoda. Um lepitop com anotações. - Doutor Cristovalle, o senhor atende ao telefone? - Não. - Doutor, mas a chamada é do exterior... - Marina, eu já lhe avisei tantas vezes... eu sou alérgico a telefone. Não quero nem dar nem receber telefonema. - Doutor, nós temos um probleminha: o que dizer às duas americanas agentes do FMI que estão chegando aí aterrisando de jatinho a qualquer momento. - Marina, essas duas pistoleiras não são americanas, são brasileiras aculturadas e lacaias dos EUA. - Doutor Cristovalle pelo amor de Deus, não tem importância se elas são ou não americanas. O que importa é que elas são funcionárias do FMI e querem dinheiro. - Sabe o que a acontece Marina? Essas duas peruas agentes do FMI ou do Banco de Boston ou do Banco Mundial são iguais sem tirar nem por à burguesia brasileira que não tem vergonha na cara, carece de brio nacional, subalterna, vassala das multinacionais e do capital estrangeiro, do imperialismo norte-americano. Minha classe, a burguesia, a classe a que eu pertenço, não é uma classe de verdade no sentido histórico. É duro, minha cara Marina, é difícil entender essas coisas porque você tem uma origem plebeia, tal qual essa classe média boçalizada que ri e chora todos os dias vendo telenovela tropicalista. - Aqui, doutor Cristovalle, com todo o respeito, mas a burguesia brasileira é um vexame em termos de educação, de cultura, de boas maneiras. A burguesia brasileira é uma bosta! - Isso para mim não constitui novidade alguma. Eu sou monarquista. Antes da vinda de D. João Sexto para cá, essa selva repleta de luz, de água, de fotossíntese, era um tremendo mosquiteiro. Aliás, o homem brasileiro nem sabia comer à mesa, nem manejar o talher, não conhecia o garfo e a faca. O brasileiro comia com a mão. Ah! Se eu pudesse mandar tudo isso para o inferno e ir-me embora. Pirulitar-me por aí. - Ir para onde doutor Cristovalle, ir para onde? - Ah! Ir-me embora para Pasárgada, a paradisíaca Pasárgada dos poetas. - Deixe de vou-me emborismo, doutor Cristovalle, vamos cair na real. O que é que nós vamos dizer às piranhas do FMI? A embaixada já ligou várias vezes de Brasília. Deixemos o delírio para mais tarde na hora do bebum e da curtição, na hora do pega. - Você tem razão, Marina, não adianta querer fugir do destino. O FMI não deve se preocupar quanto aos acordos. Serão todos rigorosamente mantidos com as privatizações do território. Uma vez vendido, está vendido. Você acha que é para levar a sério se a CNBB exigir a re-estatização da Vale do Rio Doce? Toc. Toc. Toc.
Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.
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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu
A redescoberta do Brasil, POR UM ROMANCISTA Quem quer
conhecer o Brasil deve ler o romance Jurupari, do violeiro Paulo Freire, editado pela Vai Ouvindo. Trata-se de um jovem artista que percorre todo o território nacional, a pé, de ônibus, de barco, caminhão, etc., viajando em particular pelos mitos e pela música de cada região. Por outro lado, o lançamento de nãoficção mais importante no País no ano passado certamente foi Mato, palhoça e pilão – O quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (15322004), do historiador gaúcho Roelmir Firbani, editado pela Expressão Popular. Tendo feito uma completa pesquisa a respeito de tudo que foi publicado, ao longo de séculos, sobre os quilombos brasileiros, o autor também viajou extensivamente por todo o País, visitando quilombos ainda existentes. Outro lançamento importante é Em torno de Marx, publicado pela Boitempo Editorial, de autoria do teórico carioca Leandro Konder, que discute se o marxismo ainda tem alguma coisa a dizer no século 21. Interessante que o livro não debate, praticamente, a economia política desenvolvida por Marx, mas seu legado ético, cultural e político, com ênfase na discussão do pensamento dos teóricos da primeira metade do século 20 Antonio Gramsci, italiano; Walter Benjamin, alemão, e György Lukács, húngaro. Mas quem quer conhecer as primeiras críticas feitas ao lado autoritário da tradição marxista deve ler as do teórico e militante anarquista russo Bakunin, contemporâneo de Marx, feitas no calor da hora em Revolução e liberdade – Cartas de 1845 a 1875, publicado pela Hedra. Esta também lançou, do liberal inglês clássico Stuart Mill, do século 19, o ensaio Sobre a liberdade, a Bíblia dos liberais, no sentido político e existencial da palavra, não no sentido econômico. Uma reedição oportuna: três décadas depois da primeira edição, o antropólogo americano Michael T. Taussig relança, pela Editora Unesp, o clássico O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul. Trata-se de uma avaliação de como a população do campo sul-americano recebeu, ao longo das décadas, a paulatina implantação do capitalismo no Continente. Taussig recorre desde à demonologia até à obra de Marx para poder bem descrever como os trabalhadores do campo encararam como coisa do diabo as novas relações de trabalho e de intercâmbio impostas pelo desenvolvimento do capitalismo. O ficcionista mineiro Embla Rhodes merece maior atenção do que tem recebido. Nos romances policiais Aether e Viagem ao Sol, publicado pela Nankin Editorial-Funalfa, ele envereda, no primeiro, pela “alta ciência, neopentecostalismo, esoterismo, bruxaria, cura, espiritualidade e tráfico de drogas”, no segundo, por “referências científicas, esotéricas, acadêmicas, humorísticas e do cotidiano do Rio de Janeiro”. Já a poesia tem bons
momentos no pequeno volume Sumário de incertezas, de Lauro Marques, editado pela Confraria do Vento. Exemplos: “Para mim basta/ O brilho das coisas vencidas./ O belo não me agrada mais.” e “Tem da natureza inseta/ a atração/ por luzes/ pelo perfume das flores/ e das bebidas”. Um belíssimo álbum é O Alto Sertão – Anotações, lançado pela Casa da Palavra e de autoria da arqueóloga Maria Beltrão, que passou trinta anos pesquisando essa região da Bahia, tendo recheado seu livro de belíssimas fotografias de inscrições rupestres indígenas, edificações coloniais, pranchas de cordel, tipos humanos sertanejos, além das anotações propriamente ditas, em que descreve os hábitos e costumes locais, que estão sempre se reinventando. Até hoje lembrado quase exclusivamente como cronista, João do Rio, um dos principais nomes do jornalismo carioca e brasileiro do começo do século 20, foi também importante como ficcionista, conforme documenta o pesquisador João Carlos Rodrigues, na biografia João do Rio – vida, paixão e obra, lançado pela Civilização Brasileira. Acima de tudo, João do Rio foi um crítico feroz das mazelas da então recém-nascida elite republicana do Brasil. Desde a criação de Israel, e principalmente desde a ocupação a partir de 1967 dos territórios palestinos por tropas israelenses, os meios progressistas vinham em geral pregando a convivência pacífica entre as duas populações, com a instauração de um Estado palestino ao lado do Estado judaico. Nos últimos anos, porém, tem crescido a proporção de progressistas que querem a instauração de um Estado binacional e laico em toda a região. É a tese desenvolvida no livro Desastre programado – A política israelense em ação, primeira obra publicada em português, pela Radical Livros, do militante antissionista israelense Michel Warschawski, 61 anos, que desde 1982 foi preso três vezes em seu país por se recusar a prestar o serviço militar nos territórios ocupados; em 2002, foi condenado a vinte meses de prisão, dos quais cumpriu oito meses, por supostas ligações com organizações palestinas ilegais. Em suma, leituras importantes para o retorno das férias. Renato Pompeu é jornalista e escritor. www.renatopompeu.blogspot.com rrpompeu@uol.com.br>
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A CSN investe em projetos que visam à transformação social por meio da cultura. O Projeto Garoto Cidadão atende crianças da rede pública de ensino em situação de vulnerabilidade social e é desenvolvido pela Fundação CSN em parceria com as prefeituras de Araucária(PR), Arcos e Congonhas (MG), Itaguaí e Volta Redonda (RJ) e Mogi das Cruzes (SP). No contra-turno escolar, crianças e adolescentes praticam atividades culturais como dança, música, artes visuais e teatro, e têm aulas de português, matemática e inclusão digital, além de recreação. Em 2010 o projeto atendeu 1904 crianças e, em 2011, chegará a 2300 atendimentos. Conheça mais sobre o Garoto Cidadão e outros projetos da Fundação CSN em www.fundacaocsn.org.br
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