Ed. 168 - Revista Caros Amigos

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BOXE Academia treina moradores de rua

FLASKÔ Operários ativam fábrica ocupada

EQUADOR Seis meses após tentativa de golpe

ano XIV nº 168 / 2011 R$ 9,90

Entrevista

Silvio

Tendler

O cinema brasileiro

não tem espaço de exibição

Contrastes

na indústria da cana

DENÚNCIA Recorde de DENÚNCIA mortes em Recorde de mortes em hospitais hospitais psiquiátricos psiquiátricos ALIMENTOS Pagamais mais quem quem Paga tem menos menos tem

ANA MIRANDA ANDRÉA MOTTA CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GABRIELA MONCAU GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MAX GIMENES MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA RONEY RODRIGUES SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO

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e u q s e r o Os Educad s a m g o D s o m a r a fi a Des Paulo Freire

O mestre que ensinou o oprimido a ler o mundo

Anísio Teixeira

Deu a vida pela formação do cidadão democrático

Darcy Ribeiro

Homem de fazimentos: criador dos Cieps, da UnB, romancista, senador, indianista, historiador.

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CAROS AMIGOS ANO XIV 168 MARÇO 2011 BOXE Academia treina moradores de rua

FLASKÔ Operários ativam fábrica ocupada

EQUADOR Seis meses após tentativa de golpe

ano XIV nº 168 / 2011 R$ 9,90

Entrevista

Silvio

Foto de capa JESUS CARLOS

Tendler

O cinema brasileiro

não tem espaço de exibição

Contrastes

na indústria da cana

DENÚNCIA Recorde de DENÚNCIA mortes em Recorde de mortes em hospitais hospitais psiquiátricos psiquiátricos ALIMENTOS Pagamais mais quem quem Paga tem menos menos tem

ANA MIRANDA ANDRÉA MOTTA CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GABRIELA MONCAU GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MAX GIMENES MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA RONEY RODRIGUES SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO

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EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

sumário

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Silvio Tendler é grande defensor do cinema cultural, de autor, que procura resgatar e tratar da história e da vida do povo brasileiro. Ele tem toda a razão: o cinema comercial, de mercado, existe, é forte e tem seu próprio espaço, não precisa da ajuda de ninguém. O cinema de arte, político e cultural precisa ser apoiado, depende de política pública, só tem condições de sobreviver se contar com leis e recursos financeiros – para produção e exibição. Em entrevista para Caros Amigos, Tendler lembra que as principais marcas do cinema brasileiro estão relacionadas com os grandes diretores dos anos 50 e 60, aqueles que fizeram filmes importantes sob o aspecto cultural – e não para o faturamento do mercado. Crítico, militante, ele conta como se tornou cineasta, analisa o cinema brasileiro atual e fala de seus filmes, entre eles Utopia e Barbárie (2009), Milton Santos (2006), JK (2002), Marighella (2001), Josué de Castro (1994) e Jango (1984). Ampla reportagem mostra o funcionamento da indústria da cana, que bateu recorde de safra em 2010, é um dos setores que mais recebeu recursos do BNDES e que tem sido apropriado pelo capital transnacional – de olho no crescimento do mercado mundial de etanol. Mostra também os contrates dessa indústria na região de Ribeirão Preto (SP): de um lado a riqueza e a pujança e, de outro, as péssimas condições de trabalho. Os planos dos usineiros não passam pelos barracões dos “migrantes” de Minas Gerais e do Nordeste – os trabalhadores sazonais da cana. Ainda nesta edição, temos boas reportagens sobre o aumento dos preços dos alimentos; o recorde de mortes nos hospitais psiquiátricos de Sorocaba; a situação da fábrica Flaskô, em Sumaré, ocupada pelos operários desde 2003; a academia de boxe que funciona sob os viadutos de São Paulo para combater a exclusão social; a caminhada da Revolução Cidadã no Equador e uma entrevista com o polêmico professor da Universidade de Puebla, no México, o irlandês John Holloway, que, inspirado no movimento zapatista defende mudar o mundo sem tomar o poder, mas “romper com a lógica do capital”. Enfim, uma revista preciosa de conteúdos. Vale a pena conferir.

José Arbex Jr. alerta para a manobra do imperialismo no mundo árabe. Caros Leitores. Pedro Alexandre Sanches debate o músico e o crítico Lobão. Marcos Bagno critica a banalização dos trabalhos de mestrado e doutorado. Mc Leonardo comenta a prisão de policiais pela Operação Guilhotina.

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Cultura versus mercado

Guto Lacaz.

Frei Betto fala de seu lado mulher e as homenagens do dia 8 de março. Eduardo Matarazzo Suplicy conta uma experiência pioneira na Namíbia.

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Joel Rufino dos Santos salva o livro Triste fim de Policarpo Quaresma. Guilherme Scalzilli debate a retirada do Creative Commons da Internet.

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João Pedro Stedile pede mobilização contra mudanças no Código Florestal. Cesar Cardoso lamenta que não se fazem mais ditadores como antigamente.

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Entrevista com Silvio Tendler: “O grande nó do cinema brasileiro é espaço.” Glauco Mattoso em Porca Miséria: reivindica cota para cegos na ABL. Ana Miranda conta histórias sobre o choro dos animais.

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Sérgio Vaz escreve um tratado sobre a fina flor da malandragem. Gilberto Felisberto Vasconcellos analisa as questões da libertação da mulher.

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Lúcia Rodrigues: fórum denuncia excesso de mortes em hospitais psiquiátricos. Max Gimenes analisa a situação do Equador meses depois da tentativa de golpe. Ensaio Fotográfico de Andréa Motta sobre os bordéis “legais” da Grécia. Entrevista com John Holloway: “A questão é romper com a lógica

do capital”.

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Tatiana Merlino: academia sob viadutos treina boxe contra a exclusão social. Débora Prado mostra que na alta dos alimentos paga mais quem tem menos. Bárbara Mengardo relata a situação da Flaskô, a fábrica ocupada em 2003. Roney Rodrigues mostra as contradições da agroindústria da cana-de-açúcar. Fidel Castro relembra alguns aspectos da história de Cuba (Parte 2). Emir Sader faz a defesa da crítica transformadora.

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Rodrigo Vianna em Tacape: os sinais preocupantes do governo Dilma. Gershon Knispel analisa o processo de militarização do Estado de Israel. Renato Pompeu em Ideias de Botequim: memória do jornalismo de 50 a 80. Claudius.

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares DIAGRAMADOR: Ricardo Palamartchuk EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Lúcia Rodrigues e Otávio Nagoya CORRESPONDENTE: Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann COORDENADORA DE MARKETING: Júlia Phintener CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu SÍTIO: Débora Prado (Editora), Gabriela Moncau e Paula Salati ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Edcarlos Rodrigues, Joze de Cássia e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Douglas Jerônimo e Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 168, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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Associação Brasileira de Empresas setembro 2009 caros amigose Empreendedores da Comunicação

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José Arbex Jr.

Imperialismo ensaia

provocação e guerra

Qual será a estratégia do imperialismo para o Oriente Médio? Mal baixou a poeira levantada pelos manifestantes da praça Tahrir, no Cairo, e o governo israelense já aponta um caminho possível: em 16 de fevereiro, o chanceler Avigdor Lieberman, conhecido por seu fascínio por soluções fascistas para a revolta palestina, anunciou, em tom de ameaça, que o Irã enviou dois navios de guerra para a Síria através do Canal de Suez, numa atitude que classificou de “provocação”. Para ele, a passagem dos navios de guerra seria um sinal de “aproximação sem precedentes entre Irã e Síria”, dois países que, segundo a Casa Branca, fazem parte do “eido do mal”. Imediatamente, as agências internacionais de notícia divulgaram a informação de que a junta provisória que governa o Egito teria barrado a passagem dos navios iranianos. A notícia foi desmentida por uma rede de TV do Irã. Pronto. O “imbróglio” estava montado. Não importa tanto, no caso, quem mentia e quem dizia a verdade, até porque a movimentação de todo tipo de embarcação por Suez – incluindo navios militares - é normal. E tanto quanto se saiba, não há uma situação de litígio entre o Irã e o Egito, que detém a soberania sobre o canal (graças ao fato de que, em novembro de 1956, o povo egípcio em armas derrotou tropas conjuntas de Israel, Inglaterra e França quando tentaram dar um golpe neocolonialista para retomar o controle sobre o canal, nacionalizado em julho por Gamal Abdel Nasser). O que de fato importa é a tentativa de criar um clima de confronto entre Irã e Egito. Alguém poderia imaginar uma solução melhor para o império do que provocar uma guerra de grandes proporções entre duas potências do mundo islâmico? A estratégia já deu certo antes, envolvendo o Irã e o Iraque. Foi uma guerrinha providencialmente provocada, em 1980, pelo então fiel vassalo da Casa Branca Sadam Hussein, quando a revolução liderada pelo aiatolá Khomeini ainda engatinhava no Irã e prometia convulsionar o mundo islâmico (integrado, à época, por mais de 1 bilhão de fiéis, principalmente na Ásia, África e Oriente Médio). O conflito durou oito anos, matou cerca de 1,5 milhão

de pessoas (as estimativas são variáveis), exauriu as energias liberadas pela revolução, e carreou centenas de bilhões de dólares para as indústrias da guerra e do petróleo (cujos preços foram parar no espaço). Não é o mundo dos sonhos? A junta militar egípcia pode topar o jogo? Claro que pode. Ela é integrada por homens fiéis ao parasita Hosni Mubarak, cuja grande punição por três décadas de feroz ditadura foi passar seus dias com a família na praia. E a junta teria o apoio, discreto ou declarado, de todos os outros regimes subordinados a Washington (o que significa a quase totalidade deles no Oriente Médio). Mas há óbvios riscos nessa operação. Um conflito dessas proporções pode facilmente escapar ao controle dos governantes e causar grandes derrotas ao imperialismo, como, aliás, já aconteceu no Afeganistão e no Iraque. Além disso, o feitiço sempre pode virar contra o feiticeiro, como aconteceu com o monstruoso ataque de Israel ao sul do Líbano, em julho 2006. Os estrategistas israelenses calcularam que, diante do imenso sofrimento e destruição causados por suas bombas, a população local se voltaria contra o Hizbolá, grupo fundamentalista libanês apoiado pelo Irã e acusado por Israel de ter provocado a guerra. Aconteceu o oposto. Hassan Nasrallah, líder do Hizboloá, saiu mais fortalecido do que nunca, no próprio Líbano e em todo o mundo árabe, e as tropas israelenses foram desmoralizadas: mesmo depois de destruir praticamente toda a infraestrutura civil do sul do Líbano, não conseguiram obter nenhuma vitória minimamente significativa sobre o grupo fundamentalista. Mas o imperialismo não tem um vasto leque de opções diante de si. Ao contrário, as alternativas se tornam cada vez menos “opções” e cada vez mais cursos forçados de ação, pelo simples fato de se tratar de países que detêm as mais vastas reservas de petróleo do planeta. Isso, aliás, faz com que os processos atualmente em curso no Oriente Médio e no norte da África apresentem um componente de urgência que esteve relativamente ausente, ou, pelo menos, presente de modo não tão agudo, nos pro-

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cessos regionais verificados na União Soviética e Europa do leste, nos anos 1990, e nas Américas durante a primeira década do século 21. Flutuações sérias no preço do barril do petróleo – para não falar da eventual perda do controle de seu fluxo – podem ter efeitos catastróficos para o combalido sistema financeiro mundial. O primeiro grande polo imperialista a sentir os seus impactos seria, provavelmente, a Zona do Euro, já suficientemente abalada por suas crises endógenas – agravada pelos escândalos provocados por um pedófilo fascistóide que comanda o quarto maior PIB da região. A União Europeia importa 82% do petróleo e 57% do gás que consome (a Alemanha, país mais rico da UE, produz escassos 3% de um e 16% do outro). Uma disparada dos preços significaria, provavelmente, não apenas um sonoro adeus aos sonhos de recuperação econômica da Zona do Euro, como levaria para a beira do abismo as economias de alguns países importantes, a começar da Espanha (que registra 40% de desemprego entre os jovens e importa 80% do petróleo que consome). Potencialmente, o petróleo mais caro também ameaça desacelerar a economia chinesa, com toda a rede de consequências para o mercado mundial, incluindo, obviamente, tanto os Estados Unidos quanto os “emergentes”, entre os quais o Brasil. Dado esse quadro, o imperialismo será obrigado a agir, no sentido de estabilizar a região, nos prazos mais urgentes possíveis. Só que uma coisa é desejar, outra bem diferente é fazer – e, novamente, os anunciados “passeios” punitivos no Afeganistão e no Iraque mostram exatamente isso. Ainda mais porque a eclosão das revoltas é a pura manifestação de sentimentos profundos por parte da juventude, de trabalhadores e trabalhadoras fermentados ao longo de séculos e décadas de colonialismo, opressão, ditadura e humilhação. Não será nada fácil – se é que vá ser possível – sufocar a eclosão do vulcão árabe e islâmico. A tragédia é a falta de organização para impor uma derrota histórica aos senhores do mundo. José Arbex Jr. é jornalista. março 2011

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Caros LEITORES

OLHAR ABRANGENTE Eu sou Gianny Dominicci Batista Brito,18 anos, e queria elogiar essa revista que tanto estimo e admiro. Leio todas as edições, e realmente gosto muito desse olhar abrangente. Não tenho nenhuma crítica com relação à revista, só tenho elogios. Sabe, fico feliz quando vejo, jovens como eu, que se interessam por assuntos, e revistas de qualidade. Acho que vocês estão se fazendo presente no cotidiano de muitos jovens, adultos e idosos. E por isso, quero agradecer. Fico vendo essa geração que está aí, totalmente alienada, consumindo e vivendo dia após dia, sem pensar dos desdobramento futuros, geração essa a minha que tem achado tudo vazio e sem sentido numa fase meio niilista. Sempre que leio alguns artigos que batem com o que estou vivenciando, tento escrever também. Mas, com minhas próprias experiências. Então me atrevi a escrever um artigo e mandar. Agradeço desde já, toda disponibilidade, a atenção, e que a Caros Amigos ganhe forças cada vez mais. Torço por isso. Obrigada. Gianny Dominicci Batista Brito.

ESTILO DE TRABALHO Obrigado, José Arbex Jr.. Já tenho quase dois anos como assinante da Caros Amigos, adoro o conteúdo da revista, acho muito esclarecedor e instigante. Gosto dos colunistas da revista, em especial do meu querido José Arbex Jr, que a cada artigo, reportagem ou entrevista me fascina cada vez mais, por mostrar a realidade nua e crua dos casos abordados, sem a preocupação de agradar esse ou aquele, e sim, com um pensamento único, em defender a população no todo e não em uma pequena parte, como é de costume. Peço encarecidamente ao José Arbex Jr. que continue com esse estilo de trabalho, pois é de pessoas como você que esse nosso Brasil, aonde tudo pode quando se tem dinheiro no bolso e poder na mão, precisa, para tentar mostrar sempre a mais pura realidade aos que necessitam de informações verdadeiras, mesmo que doa na própria carne! Paulo Roberto de Souza Costa – Retirolândia (BA).

MEGAEVENTOS Excelente reportagem sobre os interesses existentes por trás da Copa e das Olimpíadas em nosso país. Fico na torcida para que a reportagem venha ser liberada para consulta no sitio da revista para todo cidadão brasileiro para que, apesar do nosso amor pelo esporte, não sejamos cúmplices da imoralidade e a desonestidade de alguns que faz o sofrimento de muitos brasileiros. Wagner Lima – São José dos Campos (SP).

SUBSTITUIÇÃO Vocês estão prestando um serviço fundamental para a classe trabalhadora deste País. Solicito, gentilmente, se possível, fazer uma retificação no texto “Reportagem” (Caros Leitores nº166), em relação a uma palavra de vital importância no contexto: ao invés de “Fica claríssimo que o trabalhador consciente, com organização e união, não precisa de RAZÃO!” Substituir a palavra RAZÃO pela palavra PATRÃO, se possível. Estamos cientes das dificuldades financeiras que este conceituado meio de formação está passando; prometo fazer uma assinatura coletiva. Ronaldo Hernandes – Mogi das Cruzes (SP).

ENTREVISTA Sou professora no ensino fundamental e médio das redes municipal e estadual de Vitória da Conquista na Bahia. Ambas estão sendo administradas por governos petistas. Fui filiada ao PT durante anos e acreditava nesse partido, mas menosprezaram a nossa fé. Atualmente gastam rios de dinheiro nas campanhas eleitorais e fingem que dialogam com a sociedade. Admiro muito o deputado Chico Alencar e costumo dizer que ele é um deputado não apenas do Rio de Janeiro, mas do Brasil. Parabéns à Caros Amigos pela iniciativa de entrevistá-lo. Joandina Maria de Carvalho – Vitória da Conquista (BA).

ALIMENTO Meu nome é Calíope, tenho 17 anos e eu amo a Caros Amigos. Eu não acredito em Deus, também não acredito em deus algum, não acredito em apaixonar-se. Sei que é estranho, mas eu não

consigo entender toda as histórias que enchem as páginas da revista. Sou “apaixonada” pela Caros Amigos graças à Naomi – minha irmã mais velha. A propaganda que ela faz de vocês é incrível e é só por causa dela que eu folheio a Caros Amigos e me alimento de alguns textos (nunca, claro, digerindo todos). A Naomi vai pro último ano de jornalismo na Unesp de Bauru, onde ela ficou sabendo dos problemas financeiros da revista. Ela ouviu que só sobrevive pelos assinantes e colaboradores, que fazem menos árdua a jornada de vocês rumo ao sucesso. O ponto é que eu me identifico com essa luta porque a Caros Amigos está numa guerra de conceitos em nome daquilo que acredita. E por mais que haja propaganda da Coca-Cola na revista, não acredito que isso seja uma fraqueza. A Caros Amigos faz parte de uma minoria à esquerda e eu me sinto parte dessa mesma minoria – ainda que não domine a política e a história. Calíope Oliveira Corcovia – Piraju (SP).

SOBREVIVÊNCIA Sobre o artigo de Eduardo M. Suplicy na Caros Amigos nº166, a erradicação da miséria terá como linha oficial de pobreza o salário mínimo de R$2.194,76 (DIEESE). Quem ganhar menos que isso será considerado pobre ou miserável. A hipocrisia de nossas autoridades chega a uma linha oficial de cara de pau inacreditável. Eles estipulam o salário mínimo em R$545,00, e para pagar um mês de aluguel para um desabrigado as autoridades desembolsam R$400,00. Vamos supor que o pobre desgraçado ache um aluguel por R$400,00, como ele vai se virar com os R$145,00 que sobram do aluguel? Chega agora a notícia de que a cesta básica já está perto dos $270,00. Vamos então fazer as contas: O governo acha um limite justo de R$545,00 para o salário minimo; o governo considera que existe no mercado imobiliário, aluguéis de R$400,00; o governo considera normal o valor da cesta básica chegar a R$270,00. E não conta ainda a saúde, vestuário, educação e transportes. O governo acha que será injusto taxar as grandes fortunas ou como disse o escritor paquistanes, Tariq Ali, “No Brasil, os muitos ricos não pagam impostos”. Azarias Essaú dos Santos.

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

Por que o Lobo Mau tem a boca tão grande? “Para nos comer melhor”, responderiam, aterrorizados, Chapeuzinho Vermelho, os Três Porquinhos e a “grande família” da música popular brasileira em peso. Não é de hoje que Lobão, hoje com 53 anos, é célebre pelo bocão – maior até que os de notórios bocudos, como Caetano Veloso ou Tim Maia. Eis aí o trunfo, mas também a danação de um dos mais iconoclastas artistas musicais brasileiros em atividade. Roqueiro indisposto com o rótulo de “roqueiro”, Lobão é recorrente numa das muitas queixas que aprecia fazer: seu país natal o tem como um bufão, não o respeita como músico, não o leva a sério como compositor. Não é que não lhe deem ouvidos, ao contrário. O dilema de Lobão é que ele, via de regra, é mais ouvido quando fala do que quando canta. Há uma prova disso em curso agora mesmo. Lançada no final do ano passado, a autobiografia 50 Anos a Mil virou best-seller imediato. A primeira impressão esgotou-se em menos de um mês, e após três meses já havia vendido 30 mil exemplares. Em contrapartida, o álbum mais recente, gravado em 2007 para a série Acústico MTV, bateu recorde negativo no formato: 23 mil cópias, cifra ínfima para um mercado de títulos que chegaram a vender 1, 2, até 3 milhões. O artista transparece algum incômodo bem-humorado com essa discrepância, mas é evidente que ela emana de sua própria verve vociferante. Invariavelmente, o Lobão cantante tem de competir pelos holofotes com o Lobão falante. O talento indiscutível como fraseador somase à disposição, não raro algo sensacionalista, de desancar tudo e a todos, das Vacas Sagradas da MPB à política nacional e ao Brasil como um todo (“não tenho apreço pelo país”, afirmou, em entrevista recente a este repórter, publicada pelo portal iG, http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/lobao+a+ovelha+negra+da+musica+ brasileira/n1237997881148.html ). Suas intervenções críticas, além de aguçadas, costumam se servir de um pendor histriônico – aquilo que, em tom autodepreciativo, ele trata como sina de “bufão”. Paradoxalmente, o Lobo chega a se assemelhar a um personagem de cartum, em momentos de maior exaltação. Ele próprio conta, em 50 Anos a Mil, que o ape-

lido de vida toda surgiu bem cedo, quando o jovem João Luiz Woerdenbag Filho andava de macacão e, magro e compridão, fazia lembrar o Lobo Mau de Walt Disney, aquele que queria papar os Três Porquinhos. Em tais momentos de exasperação com o mundo ao redor, Lobão tem o poder de apavorar – ou irritar, no mínimo – três, trinta, trezentos Porquinhos emepebistas. Enquanto sopra, sopra e sopra as casinhas de palha, tijolo e cimento da Porcalhada MPB, joga fumaça sobre si mesmo. O Coiote teria porventura receio de que, sossegada a ventania, nós o achássemos parecido com um Cordeiro ou mais um... Porquinho? Seja pelo que for, é tanta baforada que a gente volta e meia esquece que o bocão do Lobo serve, além de soprar, também para cantar. A competição constante entre o Lobo Branco (o cantor?) e o Lobo Negro (um crítico, um repórter denuncista?) é tamanha que este texto demorou sete parágrafos para chegar ao tema que queria tratar desde o começo – a música de João Lobão Luiz, que tampouco parece ser produto dos berros sonsos de um Carneirinho. Concomitantemente à biografia, foi lançada Lobão 8191, uma caixa de três CDs que compila o melhor da produção do cantor em sua primeira temporada na (então grande) indústria fonográfica (multi) nacional, segundo critérios definidos por ele mesmo. O resgate da obra do Lobo Bom não conquistou maior atenção que, por exemplo, o enfezado Acústico MTV de 2007. O LP Cena de Cinema (1982) foi o início da trajetória solo, editado após estadia na banda setentista de rock progressivo Vímana (com Lulu Santos e Ritchie) e participação-relâmpago na gênese do grupo Blitz, ponta de lança do pop-rock dos anos 80. Lobão rejeita o pertencimento a essa geração, mas Cena de Cinema é porta de entrada crucial para aquela nova etapa do pop nacional. Compreende interpretações desgovernadas de um baterista que se viu alçado ao posto de cantor – para variar, não parecia à vontade no papel. O disco guardava a felicidade pop da faixa-título, e não muito mais que isso. Desde aí, uma rivalidade doentia plantada entre ele e Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, minaria pouco a pouco a veia pop, justamente o trunfo maior do Lobão dos primeiros anos. As provas estão todas ali: Me Chama, do se-

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gundo álbum, Ronaldo Foi à Guerra (1984); Decadence avec Élegance (1985), lançada em compacto; Revanche e Noite e Dia, de seu primeiro álbum de fúria roqueira e antirroqueira, O Rock Errou (1986). O Lobão brigão já soprava fuligem nos olhos do Lobão “showman”, que cantava e gravava sujo, malvado e desleixado, sabotando as próprias virtudes pop. Vida Bandida (1987) coincide com sua prisão por porte de drogas, com sua fase de maior sucesso pop e com seu auge como criador. Na prisão, todos os Lobões parecem ter se unificado temporariamente, para produzir rock’n’roll de quilate (na faixa-título e em Rádio Blá) e, sobretudo, canções delicadas de um terno trovador folk-poprock-MPB (Da Natureza dos Lobos, Chorando no Campo, Girassóis da Noite, Tudo Veludo). O disco seguinte, Cuidado! (1988), traz a instigante experiência de fundir rock e bateria de escola de samba, mas transpira raiva que iria se amplificar nos dois trabalhos seguintes, Sob o Sol de Parador (1989) e Lobão (1991). Rocks doídos como O Eleito, Quem Quer Votar e Presidente Mauricinho gotejavam algum sentimento entre o ódio, o rancor e o pânico, direcionando-o à crônica de achincalhe à política nacional, sempre moldada sob medida para o uso oportunista pela despolitizadora mídia “grande”. Acontece que, mágoas à parte, a Ovelha Branca surgia em diversos momentos e produzia algumas das mais belas baladas pop dos anos 80 e 90 no Brasil (o Grande Chacal pode não gostar, mas ele sempre foi desgraçadamente brasileiro): Pobre Deus, E o Vento Te Levou..., Toda Nossa Vontade, Essa Noite Não. Essa última era mais confessional, desarmada, singela e transparente que dez mil desavenças com Raposas de nomes como Chico, Gil ou Caetano: “A maior expressão da angústia pode ser a depressão/ algo que você pressente/ indefinível/ mas não tente se matar/ pelo menos essa noite, não”. Por que Lobão é tão bocudo? Para cantar melhor, mais alto e mais doce, diriam três, trinta, trezentos Lobinhos MPB, se não estivessem tão ocupados matutando sobre como fugir das garras da malvadíssima Ovelha Negra.

ilustração: murilo silva

Lobo Mau versus Lobo Bom

Pedro Alexandre Sanches é jornalista. fevereiro 2011

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falar brasileiro Marcos Bagno

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com os problemas do trabalho pouco antes de se sentar à banca, problemas que são para eles pura surpresa. E toca a aprovar e a elogiar o besteirol que aparece ali. Nessa produção acadêmica “pós-moderna”, o que importa é a quantidade. Um programa de pós-graduação tem que preencher infinitos relatórios para as agências financiadoras (Capes e Cnpq) e quanto mais números, melhor. Duzentas dissertações de mestrado defendidas e aprovadas em dois anos? Maravilha! Não interessa se elas não poderiam ser aceitas nem como um trabalho de pesquisa da 8a série, só interessa que estão lá, de capinha dura e letra prateada enfeitando (para ninguém ler) as estantes do programa. As pessoas riem quando conto que Wittgenstein, um dos filósofos mais importantes do século XX, levou mais de uma década para terminar sua tese, como se tivessem pena dele... Com os prazos absurdos exigidos pelas agências, com o número absurdo de doutorandos que alguns orientadores (?) acolhem, a produção intelectual brasileira virou, nas palavras de Marilena Chaui, uma “fábrica de pãezinhos”. Todos feitos com bromato de potássio, ocos, com cheiro azedo e incapazes de prover uma boa alimentação ao nosso espírito. Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

No episódio que envolveu a invasão das Polícias e Forças Armadas ao Complexo do Alemão, eu preferi não abordar o tema aqui, já que o meu espaço não é o suficiente pra um tema tão delicado. Mas escrevi um artigo (Rio sem pena de mortes) para o site da revista, onde pude mostrar a minha opinião sobre o assunto (quem quiser pode conferir). Nesse artigo (em 19/11/2010), eu chamava a atenção para os verdadeiros números que a mídia não mostra (pois se mostrar a população não vai aplaudir esse tipo de ação) e na participação direta e indireta das Polícias e das Forças Armadas no crime de tráfico em favelas do Rio. Hoje (15/02/2011), a polícia do Rio está vivendo uma das suas maiores crises, em uma operação da Polícia Federal (batizada de Guilhotina) foram presos dezenas de policiais, entre eles está o Delegado Carlos Antonio Luiz Oliveira (citado por mim no tal artigo) que foi Sub chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a polícia garante ter provas contundentes de que o Delegado Oliveira vendia armas para traficantes nas favelas (de qualquer facção), dava proteção à máfia dos caça níqueis (bicheiros) e grupos de extermínio (milicianos). Para esse tipo de ilicitude da qual o Delegado esta sendo acusado, o negócio é fazer negócio, não importa a prática e muito menos os negociantes. Agora, vamos imaginar essas pessoas capazes de fazer tanto mal, entrando no Complexo do Alemão, tendo carta branca da Secretaria de Segurança, Comando Geral da PM e Chefia da Polícia Civil, para vasculhar casa por casa. Mesmo que o Governo do Rio e o Governo Federal acreditem na honestidade da nossa polícia, eles não podem generalizar a honestidade, ficando assim responsáveis pelo que aconteceu no Complexo do Alemão. No futuro não adianta dizer que não sabiam de nada, pois várias denúncias foram menosprezadas pela polícia e pela grande mídia – que é tão covarde quanto os policiais que chamaram o Complexo do Alemão de Serra Pelada. Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: debora borba

Polícia para quem precisa de polícia!

QUANTO CUSTA UM DOUTOR? Pelo que já li e me disseram, uma tese de doutorado ou, mais modestamente, uma dissertação de mestrado, pode ser comprada (e por preço nem tão alto assim) de alguma das muitas empresas especializadas nesse comércio. Que haja quem compre e quem venda trabalhos intelectuais não é algo tão espantoso na nossa era “pós-moderna” em que nada tem valor e em que a relação com o conhecimento se dessacralizou completamente, passando de um extremo negativo — a erudição pedante, o elitismo da educação clássica, a mitificação do grande sábio — para o outro extremo, tão negativo quanto: o utilitarismo rasteiro, a fachada ou o verniz de conhecimento, o título já não como um símbolo mas como a coisa-em-si. O espantoso (o escandaloso) é haver quem aprove esses trabalhos com mérito e louvor e ainda recomende para a publicação. Aliás, recomendar uma tese para publicação virou uma expressão vazia, tanto quanto aplaudir de pé todo e qualquer espetáculo cênico, por menos original e por pior que ele seja. Assim como se levantar para aplaudir é só uma antecipação do gesto de ir embora, recomendar uma tese para publicação é só uma fórmula oca para encerrar o processo da defesa. No entanto, o escândalo não fica por aí. Pior do que aprovar uma tese feita por terceiros é aprovar uma tese feita por alguém que supostamente teve a orientação de um pesquisador experiente. As teses compradas costumam ser produzidas por pessoas que obtêm ganhos materiais com seus talentos de boa redação e capacidade de juntar ideias. As teses feitas pelos próprios doutorandos — guardadas, é claro, as exceções de praxe — se revelam cada vez mais “sambas do branquelo doido” (já que 99% dos nossos doutores são de “raça” caucasiana). Na área das Letras, que é onde eu atuo, o absurdo se torna ainda mais imperdoável quando, a cada página da tese, aparecem pelo menos quinze erros de ortografia, pontuação, concordância, vocabulário, para não mencionar os disparates teóricos e as metodologias de análise quase infantis. A grande maioria dos meus colegas lê (quando lê) a tese na véspera ou mesmo no avião que os leva para o evento da defesa. Com isso, é claro, os arguidores só topam

Mc Leonardo

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Eduardo Matarazzo Suplicy

Frei Betto

Meu lado

A experiência

pioneira de Otjivero

MULHER

Meu lado

A Namíbia é um país situado entre Angola e a Áfri-

mulher incomoda-se de receber homenagens num dia do ano - 8 de março -, enquanto meu lado homem se farta com 364 dias. Talvez se faça necessária esta efeméride, dor recente de uma cicatriz antiga. Porque vive-se numa sociedade machista: matrimônio - o cuidado do lar; patrimônio - o domínio dos bens. O marido possui a casa, o carro e a mulher, que incorpora ao nome dela o da família dele. A casa, ele exige que se limpe todo dia. O carro, envia à oficina ao menor defeito. À mulher, ser multifacetado, cabe o dever de cuidar da casa, dos filhos, das compras e do bom humor do marido, que nem sempre se lembra de cuidar dela. Meu lado mulher nunca viu o marido gritar com o carro, ameaçá-lo ou agredi-lo. Nem sempre, entretanto, ela é tratada com o mesmo respeito. Na Igreja Católica, os homens têm acesso aos sete sacramentos. Podem até ser ordenados padres e, mais tarde, obter dispensa do ministério e contrair matrimônio. As mulheres, consideradas pela teologia vaticana um ser ontologicamente inferior, só têm acesso a seis sacramentos. Não podem receber a ordenação sacerdotal, embora tenham merecido de Jesus o útero que o gerou; o seguimento de Joana, de Susana e da mãe dos filhos de Zebedeu; a defesa da mulher adúltera; o perdão à samaritana; a amizade de Madalena, primeira testemunha de sua ressurreição. Meu lado mulher tem pavor da violência doméstica; do pai que assedia a filha, jogando-a nas garras da prostituição; do patrão que exige préstimos sexuais da funcionária; do marido que ergue a mão para profanar o ser que deu à luz seus filhos. Diante da TV ou da banca de revistas, meu lado mulher estremece: haja degradação! Ela é a burra, a imbecil que rebola no fundo do palco, expõe-se na casa do brother, associa-se à publicidade de cervejas e carros, como um adereço a mais de consumo. Meu lado mulher tenta resistir ao implacável jogo da desconstrução do feminino: tortura do corpo em academias de ginástica; anorexia para manter-se esbelta; vergonha das gorduras, das rugas e da velhice; entrega ao bisturi que amolda a carne segundo o gosto da clientela do açougue virtual; o silicone a estufar protuberâncias. E manter a boca fechada, até que haja no mercado um chip transmissor automático de cultura e inteligência, a ser enxertado no cérebro. E engolir antidepressivos para tentar encobrir o buraco no espírito, vazio de sentido, ideais e utopia. Meu lado mulher esforça-se por livrar-se do modelo emancipatório que adota, como paradigma, meu lado homem. Serei ela se ousar não querer ser como ele. Sereia em mares nunca dantes navegados, rumo ao continente feminino, onde as relações de gênero serão de alteridade, porque o diferente não se fará divergente. Aquilo que é só alcançará plenitude em interação com o seu contrário. Como ocorre em todo verdadeiro amor.

ca do Sul, banhado pelo Oceano Atlântico, com população de aproximadamente 2,2 milhões de habitantes e renda per capita de cerca de US$ 4000 anuais. O potencial de crescimento da sua economia provém das riquezas minerais – urânio, cobre, zinco, dentre outros – e da produção agropecuária e pesqueira. Todavia, um de seus maiores problemas é a grande concentração de riqueza e renda. O país tem o maior coeficiente Gini de desigualdade dentre todos os países do mundo, 0,74, em 2007, segundo o último Relatório de Desenvolvimento do PNUD 2010. No XI Congresso Internacional da Basic Income Earth Network, na Cidade do Cabo, África do Sul, o Premio Nobel da Paz, Bispo Desmond Tutu, exortou a todos os presentes, inclusive a mim, para colocarmos nossas energias na luta pela extinção da pobreza absoluta por meio de um instrumento simples e eficaz: a Renda Básica Incondicional Universal. Ali também estava o Bispo Zephania Kameeta, da Igreja Luterana e presidente da Coalizão da Namíbia pela Renda Básica. Desde então, ele recolhe doações voluntárias de cidadãos da Namíbia, de outros países e das igrejas alemãs para constituir um fundo que financia o pagamento de modesta renda mensal de 100 dólares da Namíbia, equivalente a R$ 22,00, a todos os quase mil habitantes que residem, desde dezembro de 2007, em Otjivero, uma pequena vila rural a 100 km da capital Windhoek. De 6 a 12 de fevereiro, visitei esta experiência pioneira de Otjivero. Fiquei impressionado com os resultados positivos alcançados, mesmo com a redução do valor mensal a partir de janeiro de 2010, de 100 para 80 dólares da Namíbia. Os moradores receberam-me em festa, externando sua felicidade ao mostrar os resultados da experiência. Como disse o Bispo Kameeta, essa experiência permitiu que compreendêssemos melhor o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, em que Jesus distribuiu o alimento igualmente para todos. Em Otjivero, graças à Renda Básica, cresceu a demanda por bens e serviços, as pessoas passaram a produzir verduras, frutas, pães, tijolos, roupas etc. A frequência à escola aumentou, a evasão escolar foi reduzida a zero. A desnutrição infantil desapareceu. A criminalidade baixou 42%. Reunidos comigo sob a sombra de uma frondosa árvore, os moradores de Otjivero externaram o desejo de que a experiência por eles vivida seja estendida para toda a Namíbia.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

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O PARTO

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A polêmica em torno do cancelamen-

aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender uns aos outros as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais diversas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo a guilhotina”. Barreto, que veio do jornalismo para a literatura, firmou sua escrita na imprensa alternativa, nas folhas anarquistas e pasquins sindicais: ágil, clara, simples (sem ser simplista). Não queria sua ficção consumida por dondocas e riquinhos, mas por trabalhadores letrados. O jornal lhe serviu para editar seus livros. Se não fosse jornalista, nenhum editor aceitaria publicá-lo. Barreto morreu em 1922, no mesmo ano da chegada do rádio, do primeiro levante tenentista, do partido comunista e da Semana de Arte Moderna. O que está na sua ficção (romances e contos) é o nascimento do mundo que temos hoje. Presenciou o parto como romancista. Eu salvaria do incêndio o seu Triste fim de Policarpo Quaresma. Joel Rufino é historiador e escritor.

to da licença Creative Commons (CC) na página do Ministério da Cultura reflete uma disputa política de bastidores suscitada pelas mudanças que a ministra Ana de Hollanda instituiu na pasta. Interesses pessoais, partidários e corporativos misturam-se no conflito, usando a nova Lei de Direitos Autorais (LDA) como pretexto para marcar posições. Os louvores ao CC reproduzem certas mitologias do ativismo virtual: a iniciativa desinteressada (“não governamental” virou sinônimo de probidade), o supranacionalismo civilizador, o caráter messiânico, a descrença nos sistemas normativos do mundo “real”. Mas nem esse belo imaginário impede que alguns inimigos da regulamentação da internet queiram outorgar condutas a entidades governamentais legítimas. Soa um pouco autoritário, em especial quando lembramos que o CC, apesar da ânsia legislativa, não substitui as instâncias constitucionalmente aptas a lidar com a questão. Há diversas maneiras de interpretar a atitude da ministra. É cômodo associar seus aliados às famigeradas burocracias arrecadadoras, à indústria do entretenimento ou aos conglomerados midiáticos. Manipulação inversa também levantaria suspeitas acerca de organismos estrangeiros que professam ideologias pseudolibertárias enquanto recebem fortunas de corporações dependentes da homogeneização do mercado global. Nenhuma dessas distorções, porém, contribuiria para criar meios justos de remunerar e compartilhar o produto intelectual, num contexto dominado pelo monopólio e pela pirataria. Eis o verdadeiro problema que a LDA deveria sanar. O debate ultrapassa os âmbitos da internet e da tecnologia da informação, envolvendo forças que o ciberativismo e a classe artística são incapazes de vencer sozinhos. Com um pouco de inteligência todos perceberiam que têm inimigos comuns e aspirações convergentes. Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: hke...

Se minha modesta biblioteca pegasse fogo e me fosse permitido salvar um livro, um só, eu hesitaria. Perderia tempo na procura de um critério de salvamento. O livro precioso é o que mais me comoveu, mais me ensinou, ou mais me custou? O de filosofia, o de ciência, o de história, o de ficção? Tentaria negociar com o gênio do fogo: um de cada departamento. Mais tempo perdido, quando nos entendêssemos seria tarde. Mais sensato escolher de uma vez, com o risco de me arrepender: salvarei Triste fim de Policarpo Quaresma. O gênero romance é talvez a maior invenção da civilização capitalista, comparável ao shopping center. O individualismo moderno é causa e consequência do romance. Romance é uma orquestração de variados destinos (indivíduos) regida por um escritor-regente (o autor, também invenção da burguesia). Nele se arquiva o que há de mais universal no homem, as relações de família: amor, ódio, desejo, dominação, crueldade, vício, abandono. Esses universais só brilham quando passa por eles uma espécie de corrente elétrica, a ficção. Não qualquer ficção, é claro. O romance que se destina exclusivamente ao entretenimento pode divertir, distrair, até matar o tempo. (Curiosa esta expressão matar o tempo, dá o que pensar). Pode, aqui e ali, ter força de expressão, mas não se eleva à condição literária. Que condição é esta? O que torna uma história, boa ou má, um verdadeiro romance? A melhor resposta que conheço é de Lima Barreto polemizando com seus críticos: a condição da literatura é dizer aquilo que os simples fatos não dizem. Ou, por outra, é uma forma de organizar os fatos, reais e imaginários, num pacote que não é real, mas acessa o real. Há pessoas cultas que não acreditam valer a pena fazer esse trabalho (do romancista); e se dar a esse trabalho (ler romances). Há professores de ciências sociais que não leem romances, nem os recomendam. Acossados pela barbárie capitalista, perdem a chance de filosofar – e o romance não passa de ramo da filosofia. Conheço poucas declarações de amor como esta de Barreto: “a literatura toma da filosofia e da fé as verdades que interessavam e interessam à perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes

Guilherme Scalzilli

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João Pedro Stedile

Cesar Cardoso

Mudanças no código florestal

Não se fazem mais antigamentes como antigamente

atingem a toda sociedade

No ano passado, a bancada ruralista – que é o que tem de mais atrasado, fisiológico e oportunista no Congresso Nacional – encontrou um pseudocomunista para representá-los, e articularam mudanças no código florestal. O projeto, conhecido como projeto Aldo Rebelo, foi aprovado na comissão de agricultura e meio ambiente, por 4 votos de diferença. Ou seja, sem nenhuma representatividade real. E agora, por acordos partidários, o projeto deve ir a votação no plenário da Câmara. Depois terá que ir ao Senado, se modificado voltará à Câmara, e até finalmente ir à Presidência da República, para aprovação ou sanções. Na essência, o projeto do nobre parlamentar, “ambientalista de ouro” como é chamado por seus apoiadores fazendeiros, tem dois claros objetivos: a) Anular as multas aplicadas pelo Ibama aos fazendeiros por crimes ambientais, que atinge hoje ao redor de 8 bilhões de reais, e que pela constituição violam a função social da propriedade e, portanto, poderiam até ser desapropriadas para fins de reforma agrária (embora até hoje o INCRA só teve coragem de aplicar em uma única fazenda, em Minas Gerais, aonde o fazendeiro além de desmatar cometeu pessoalmente o massacre de 5 trabalhadores rurais sem terra, do MST). b) Criar condições para reduzir a área de reserva legal na Amazônia legal e no cerrado, e, assim, o capital poderia incorporar na produção e se apropriar da natureza de milhões de hectares, hoje preservados. Para esconder seus verdadeiros objetivos, alegam que milhares de camponeses estão inadimplentes com a lei, pois desmataram a reserva legal e não respeitaram córregos e topos de montanha. O que é verdade. Mas a solução não é pegar carona na falta de consciência social camponesa para liberar os fazendeiros de seus crimes. E sim, criar mecanismos de ajuda aos camponeses para que eles recomponham a cobertura vegetal necessária para o equilíbrio do meio ambiente. A favor do projeto Aldo Rabelo está a bancada ruralista e o que tem de mais atrasado no Congresso. Estão as empresas transnacionais que querem se apropriar das riquezas naturais na Amazônia e no cerrado. E a imprensa burguesa, comprometida com o agronegócio.

Contra o projeto estão os deputados progressistas, presentes em todas as bancadas. Estão todos os movimentos sociais do campo, inclusive a Contag. Estão todos os movimentos ambientalistas e igrejas, preocupados com o futuro de nosso território e planeta. E estão os setores da imprensa preocupados com as consequências das agressões, para toda sociedade, como assistimos todos os anos, suas manifestações, em diversos estados brasileiros como recentemente na serra fluminense. Os movimentos sociais da Via Campesina Brasil tem sido contundentes em denunciar o projeto, e pedir a todos parlamentares para que o vetem. Defendem que devemos manter o atual código florestal, os percentuais de reserva legal, e corrigir os problemas na agricultura familiar, com portarias, com recursos econômicos de apoio, que levem os camponeses a replantarem nas margens dos rios, córregos e topos de montanhas e morros. Esperamos que a sociedade brasileira não permaneça calada, que se manifeste. Afinal, as agressões ao meio ambiente perpetuadas pelos fazendeiros na Amazônia, cerrado, mata atlântica e em qualquer lugar de nosso território, tem consequências diretas, não só no bioma atingido, mas também nas cidades, cobrando caro de toda sociedade. A sociedade brasileira precisa decidir se as riquezas naturais seguirão sendo apenas objeto de lucro fácil de meia dúzia de fazendeiros mancomunados com empresas transnacionais exportadoras de matérias primas (agrícolas e minerais) ou vamos garantir que esses recursos tenham exploração equilibrada e em favor de toda população e das gerações futuras? A votação desse projeto na Câmara, a partir de meados de março demonstrará, também, se o Congresso está se democratizando ou se segue refém dos interesses das empresas que financiaram suas campanhas? Será um teste para as necessárias reformas políticas que estamos precisando. Acompanhem. Reajam, escrevam aos parlamentares em que vocês votaram. Antes que seja tarde. João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

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Antigamente, tinha os Beatles e eles não só tocavam o melhor rock do planeta como ainda por cima estavam todos vivos. Antigamente, tinha mocinho e bandido no cinema, no teatro e na política, a gente sabia direitinho quem era o bandido e quem era o mocinho e nenhum deles trocava de papel no meio do filme, da peça ou do mandato. Antigamente, tinha os ditadores que o Ocidente defendia com unhas e dentes e mais uns tanques se fosse preciso. Qualquer paiseco de quinta (que são todos os países do mundo tirando o nosso e os mais fortes que a gente) que começasse com essa mania de querer liberdade, os Estados Unidos despachava logo a Quinta Frota ou um pelotão (dependendo do tamanho do paiseco e da fúria dos habitantes do paiseco) pra botar todo mundo no seu devido lugar. Mas hoje em dia? Hã, pois sim! Olha o caso do Mubarak, no Egito. O coitadinho passou anos a fio prendendo, torturando e esquartejando deus e o mundo só pra agradar o Ocidente pra depois todo mundo virar a cara e dizer: “Muba o quê? Nunca ouvi falar!” Ora, isso não se faz com um funcionário tão dedicado! Que mundo é esse em que não se respeitam nem mais os ditadores assassinos e sanguinários? Onde é que nós vamos parar, gente? Vão dizer que a democracia é o bem mais precioso do mundo? Então, como todo bem precioso, ela tem que ser muito bem guardada, não pode sair por aí passando de mão em mão, que nem bunda no carnaval. Mas também, por que é que esse Muba-sei-lá-o-quê não tacou logo uma bomba em cima daquela gentalha? Por quê? Bom, vai ver é porque hoje em dia não se fazem mais ditadores como antigamente. Cesar Cardoso antigamente escrevia muito bem aqui e no seu blog PATAVINA’S (http://cesarcar@blogspot.com.br ). Mas isso, ih!, foi antigamente! março 2011

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entrevista

Silvio Tendler

Participaram: Bárbara Mengardo, Cecília Luedemann, Débora Prado, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Lúcia Tavares, Otávio Nagoya. Fotos: Jesus Carlos.

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“O cinema brasileiro não tem espaço de exibição”

arioca da Tijuca, criado em Copacabana, o cineasta Silvio Tendler começou a se interessar por cinema nos agitados anos 1960, entrou para movimento cineclubista e mais tarde enveredou para o filme-documentário. Tem mais de 40 curtas, médias e longas-metragens. Seus filmes procuram resgatar a memória brasileira. Os documentários mais conhecidos são Utopia e Barbárie (2009), Memórias do Movimento Estudantil (2007), Encontro com Milton Santos (2006), Glauber o filme (2003), JK (2002), Marighella (2001), Quilombos (1996), Josué de Castro (1994) e Jango (1984). Cópias desses filmes circulam principalmente em universidades, escolas e movimentos sociais. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, Silvio Tendler fala de sua vida, dos seus filmes, do cinema brasileiro e da cultura em geral. Demanda, com veemência, a existência de política pública para o cinema nacional não comercial

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e de mais espaços para exibição. Vale a pena ouvir o cineasta.

Lúcia Rodrigues – Como foi que você virou

cineasta?

Silvio Tendler – Olha, eu virei cineasta por uma conjugação de coisas. Eu sou jovem da classe média, nasci na Tijuca, mas fui criado em Copacabana, no Rio de Janeiro. Sou filho de uma família de judeus liberais, meu pai era advogado, minha mãe, médica. Eu fui criado num ambiente judaico-carioca, nunca seguindo a tradição, não somos kasher, mas tive sempre aquela identidade judaica. Vivi em Copacabana e aí, no início dos anos 1960, começa um movimento cultural muito forte no Brasil. Primeiro, oriundo do próprio momento do governo João Goulart, quando pinta a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Teatro de Arena, aquele movimento cultural começa a ocupar com desta-

que as páginas da imprensa. A cultura era muito importante naquele momento. E, no Rio de Janeiro, o Cinema Novo se desenvolve lá, então eu tive a oportunidade de conhecer, de chegar perto das pessoas. Eu vim de uma família liberal, meus pais tinham votado em 1960 no Marechal Lott, contra o Jânio Quadros. Eles acompanharam, em 1961, a cadeia da legalidade, de defesa da posse do Jango, o Brizola no Sul. O meu pai tinha um rádio Trans Oceanic, que a gente ficava, pela rádio, escutando. Em 1961, Jango toma posse, há o movimento pelas reformas e, em 1964, há o golpe de Estado e todo esse momento livre, inspirador, aborta. Todo esse movimento de renovação do Brasil, ele aborta. Vem o golpe, vem a cassação de mandatos, prisões, exílios. Eu mesmo tive um sintoma com isto, uma coisa curiosa, que é meio que cinematográfica. No dia 1º de Abril, eu estava no cinema, eu morava em Co-

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pacabana, numa rua que era transversal à avenida Copacabana, os cinemas de Copacabana ficavam em frente de casa, o Metro, o Art Palácio e o Copacabana, seguido, os três grandes cinemas. E eu fui em um deles assistir a um filme inglês, uma comédia, tinha um clima de tensão, o golpe estava no ar, e minha mãe disse: “Se acontecer alguma coisa, você volta imediatamente para casa.” Eu estava dentro do cinema e começou uma gritaria muito forte, aí eu fui até a porta do cinema e vi que a classe média lacerdista estava com lençóis brancos nas janelas, povo na rua gritando, que o Jango tinha saído do Rio de Janeiro e tinha ido a Brasília. E tinham considerado aquilo já o golpe triunfado. Então, eu obedeci a minha mãe, fui para casa, vi na rua, com 14 anos, e entendi, intuitivamente, o que era a luta de classes. Copacabana toda alvoroçada, comemorando o golpe e os porteiros dos prédios, todos de cabeça baixa, com radinho de pilha, acompanhando o que estava acontecendo. Eu, naquele momento comecei a entender quem tinha ganho e quem tinha perdido o golpe. E aí, há um desmantelamento das instituições políticas, a UNE é fechada, muitos parlamentares cassados, sindicatos fechados, proibidos e a resistência ao golpe começa a se consumar pelo movimento cultural. O pessoal que estava na UNE, Vianinha, Ferreira Gullar etc, se deslocam, vão fundar o Teatro Opinião, que vai ser um templo de resistência; surge o Sérgio Porto com FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assola o País); os livros do Carlos Heitor Cony que são verdadeiros manifestos contra o golpe. Então, a resistência política ao golpe de 1964 é organizada pelos intelectuais, pelos artistas, através das músicas, das peças de teatro e cinema – que era uma coisa cara e complicada, mas não menos importante. Tem o Paulo Cesar Saraceni com O desafio, o Júlio Bressani com Cara a cara... Então, começa esse movimento de resistência via intelectualidade e eu vou entrando nesse barco. Paralelamente a isto, começa a acontecer no Rio de Janeiro o Festival JB-Mesbla de Cinema Amador e aí eu começo a ver a possibilidade de gente da minha idade, talvez um ou dois anos mais velhos, fazendo filmes para colocar num festival, concorrendo. Então, eu comecei a perceber que eu também poderia entrar nessa canoa. Aí que eu começo pelo caminho natural que é o cineclubismo, viro cineclubista em 1965/66, em 1968 sou eleito presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, é um ano que foi um alvoroço só. E aí tem uma fusão entre cineclubismo e política, a gente passava filmes políticos para conscientizar as pessoas e se integrava junto aos movimentos. Éramos todos muito jovens. O cineclubismo no Rio de Janeiro era feito por gente muito jovem. Éramos todos estudantes e aí tem uma simbiose total entre o

movimento cineclubista e o movimento estudantil. A gente vai às passeatas, participa dos diretórios. E aí eu fui entrando nesse caminho que foi se afunilando entre cinema e política.

Lúcia Rodrigues – Então, a efervescência políti-

ca e cultural dos anos 1960 foi decisivo para você se enveredar para um cinema mais politizado? Foi fundamental. Foi uma opção. Na verdade, naqueles anos 1960, eu começo a enveredar pelo caminho do cinema e enveredar pelo caminho do cinema político. Porque naquela época era assim. As pessoas naqueles anos 1960 vão se politizando. O próprio cinema francês, que é um modelo para a gente, o cinema Nouvelle Vague, por exemplo, os cineastas franceses também se politizam. O JeanLuc Godard era suíço, filho de banqueiro, ligado ao movimento católico, que com aqueles movimentos dos anos 1960 vai terminar na esquerda, como esquerdista radical maoísta. O François Truffaut era um cara de direita e termina em 1968 pendurado nas cortinas do Festival de Cannes. Quer dizer, é um movimento natural que vai esquerdizando todo mundo. O Glauber queria ser cineasta, era fã de John Ford e aí com aqueles movimentos dos anos 1960, Glauber vai virando um cara de esquerda e vai trazendo os outros. E aí o mais político deles era o Leon Hirszman, do Partido Comunista, o Vianinha que era comunista, as pessoas vão se afinando. E vai havendo essa simbiose entre política e cultura e sem isso eu não tinha virado o que eu virei.

Hamilton Octavio de Souza – Com quem você começou fazendo cinema? Olha, eu comecei frequentando um cineclube chamado Cineclube Charlie Chaplin. A gente via o que era possível, porque na verdade era filme em 16 milímetros. A nossa obra prima, pièce résistance, era Os companheiros, de Mario Monicelli, uma história com Marcello Mastroianni sobre a primeira greve na Itália e a gente via aquele filme para aprender política e passava aquele filme para ensinar política. A gente tinha a pretensão de politizar, de conscientizar o povo. A gente ia passar esse filme em quadra de escola de samba. Hamilton Octavio de Souza – Vocês tinham um grupo? Tinha, a gente tinha um grupo ligado à Federação de Cineclubes. Nesse dia que a gente foi à escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, fomos os três: eu, o Elmar e o Cláudio. O Elmar era mais velho que a gente, tinha um projetor, depois sequestrou um avião para Cuba. Era mesmo uma coisa que tinha implicações políticas, mesmo, ligadas à militância. E eu tô nessa canoa porque eu sempre intuí que eu queria ser artista. Eu nunca me vi muito com um revólver na mão. Quan-

“Os órgãos públicos que estariam preocupados em incentivar a cultura, eles aderiram à política de mercado.” Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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do pintou aquela coisa de luta armada, o meu discurso político era muito crítico ao reformismo, eu era muito crítico ao partidão. Eu apoiava as pessoas que estavam ligadas à esquerda armada, mas eu achava que era um impasse, eu não tinha coragem de pegar em armas.

Débora Prado - Qual foi sua primeira obra do cinema político? Eu fui o último cara a entrevistar o João Cândido Felisberto, o Almirante Negro. Eu li o livro do Edmar Morel, A revolta da chibata, gostei muito e soube, via o historiador Hélio Silva, avô de alguns amigos meus que produziram meus filmes depois, os irmãos Ferraz, que ele tinha entrevistado para o MIS o João Cândido, que estava vivo e morava em São João do Meriti, no Rio de Janeiro. Aí, eu pedi para ouvir essa entrevista e o Ricardo Cravo Albin, diretor do Museu da Imagem e do Som, não temeu as consequências políticas e deixou eu ouvir. A entrevista era muito engraçada, porque só falava Hélio Silva: “É verdade que no dia...? Sim. É verdade... Sim.” Mais parecia um interrogatório de cartório do que outra coisa. Mas, aí o Ricardo Cravo Albin me falou que trabalhava na Sunab e que o filho de João Cândido trabalhava com ele, Adalberto do Nascimento Cândido, o Candinho. Eu falei: “Você me apresenta para ele?” E ele disse: “Eu apresento”. Aí, eu fui lá pedi para apresentar o pai dele, ele topou. Ele tinha muito medo, muito receio, porque o João Cândido sofreu a vida inteira. Ele era um ótimo timoneiro, mas ele foi proibido durante esses anos todos de entrar em embarcação. A vida dele, desde 1910 com a revolta da chibata foi um horror. Ele ficou preso em masmorra, jogavam água com cal nele junto com 18 pessoas presas. Saíram apenas três pessoas vivas. Ele saiu com tuberculose, só se salvou porque foi parar num hospital com o médico Adão Pereira Nunes, um velho comunista. Ele terminou a vida vendendo peixe na Praça 15. Então, ele me recebeu com certo medo, me deu uma belíssima entrevista. Consegui entrevistar, filmar, gravar e aí quando teve esse sequestro do avião do nosso companheiro de Federação de Cineclubes, a mulher de um dos amigos que estava guardando o material ficou com medo e queimou o material. Então, tudo que restou de João Cândido foi uma fotografia. Tenho a fotografia na parede. Lúcia Rodrigues - Como foi para você saber que tudo foi literalmente incendiado? É doloroso, é meio como você imaginar que perdeu um filho. Você não vai parar de viver, porque perdeu um filho. A vida não é legal, quando você lembra que teve em mãos a entrevista do marinheiro, o líder da revolta da chibata e que sobrou apenas uma fotografia, é muito doloroso. Mas, a história está aí... Lúcia Rodrigues – Como era o clima político na época? Eu fiquei no Brasil com a cabeça muito torta, com toda essa história, de dezembro de 1969 até 1970, completamente perdido. Eu não tinha aderido à março 2011

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luta armada, já não tinha mais meio termo: ou você era ou não era. O movimento estudantil tinha acabado, praticamente, até mesmo por burrada das próprias organizações revolucionárias que abandonaram todos os trabalhos com estudantes, operários, para fazer a luta armada. E quem tinha aderido à luta armada, grande parte estava presa, morta, desaparecida, exilada. E os que não tinham aderido à luta armada, tinham ido ao desbunde, para as drogas. Eu nunca quis ir às drogas, nunca entrei muito na ideia das viagens, morria de medo de viajar de ácido e não voltar nunca mais. Então, não entrei para a luta armada, nem para as drogas e fiquei perdido. Fiquei meio deslocado no espaço e tempo. E aí dia 5 de setembro abro o jornal e eu vejo: “Vitória do marxista Salvador Allende no Chile.” Aí eu disse: “Eu vou para lá. Eu quero ver o que é isso.” Aí, eu me preparei para ir em setembro de 1970. Quando Allende estava para tomar posse assassinaram o comandante do exército chileno, o general René Schneider, aí veio uma ameaça de golpe de Estado e aí eu me segurei um pouco. Allende tomou posse no dia 4 de novembro e no dia 10 de novembro eu estava chegando. Aí, outro mundo se abriu para mim.

Hamilton Octavio de Souza - Você já estava

fazendo filmes? Sim, eu tinha trabalhado, no Rio de Janeiro, nesse mesmo ano de 1968, com Paulo Alberto de Barros, que tinha voltado do exílio no Chile, depois passou a assinar Artur da Távola. Ele fazia televisão e cinema no Chile, voltou para o Brasil e resolveu fazer cinema. Eu morava em um prédio em Copacabana muito emblemático, porque morava no 4º andar o Zelito Viana, no 402, o produtor do Terra em Transe do Glauber Rocha, no 404, o Paulo Alberto Monteiro de Barros que estava voltando do exílio, o Zelito resolveu apoiar e fazer a produção, e ele me chamou para fazer assistência dele, é um filme chamado Fantasia para ator de TV. O ator é o Marcelo Cerqueira, advogado de presos políticos, ex-deputado, participação especial da Leila Diniz, a Nara Leão canta a trilha sonora de composição de Paulo Batata, meu vizinho no 7º andar, que hoje assina Paulo Coelho. Era o prédio que eu morava. Então, como eu fiz esse filme, fiz outras coisas, ajudei no material de preparação do Dragão da maldade, do Glauber. Fiquei trabalhando em 1970, até sair do Brasil.

Hamilton Octavio de Souza - No Chile, você

fez algum filme? Lá, eu fiz um filme sobre cultura popular. Eu entrei num movimento de cultura, lá, que era sensacional. Durante o governo Allende, pela primeira vez, os operários tiveram férias patrocinadas pelo governo, em apenas um mês construiu balneários populares nas melhores praias chilenas, como se fosse Guarujá, Copacabana, Leblon, com casas pré-fabricadas para as famílias operárias em férias. E tinha instrutores de ballet, educação física, dança, todos os tipos de atividades culturais, babá para as crianças pequenas, para eles curtirem as férias. Eu fiz um filme sobre isso. E, depois, eles transformaram isso na Operacion

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Salta Monte. A gente ia, ficava 21 dias numa favela, ensinando atividades culturais, depois ia para outra para se organizarem em núcleos culturais. Fiz esses dois filmes e aí resolvi continuar o meu estudo de cinema em 1972, na França.

Cecília Luedemann - Quando você faz os fil-

mes JK, Jango, foi pensando sempre em discutir a formação crítica da história brasileira? É, porque eu contei, até aqui, o meu lado desbunde. Quer dizer, não querer assumir um papel dentro da chamada luta armada. Mas, nessa mesma época, eu construí na minha cabeça essa ideia de que eu poderia militar de outra forma, através da arte e da cultura. Porque aí eu faço um link com as coisas que eu vi na minha adolescência: 1964/65, quer dizer, quando eu vi os artistas resistindo ao golpe de Estado. Aí, eu me inspirei muito no Boal, no Guarnieri, no cinema que se fazia naquela época, nos livros que se escrevia, José Celso. Então, nesse momento eu construí essa prática, quer dizer: “Eu não vou ser guerrilheiro, mas eu vou fazer um trabalho político que vai ser a minha forma de participar do movimento popular, do movimento político. E, naquela época, eu não era um ET. Isso tudo era possível. Hoje em dia eu sou meio que um ET, um cara que quer fazer cinema político é meio louco. Cinema, hoje, é bilheteria, é mercado, é entretenimento. E eu continuo um pouco nessa minha teimosia. Mas, naquela época que eu fazia isso era uma possibilidade para a minha geração que se abria. As pessoas que queriam continuar tendo uma militância, participando, fazendo cabeças, o cinema, o teatro, eram instrumentos.

Cecília Luedemann - O filme Tancredo, a travessia, vem nessa leitura da história? Vem nessa leitura da história.

Cecília Luedemann - Qual é o balanço que você

está fazendo em Tancredo? O que você viu, agora, no Brasil, no filme Tancredo, a travessia? Sobretudo, as características da transição democrática. Como é que o Brasil fez um caminho próprio para sair da ditadura e voltar para a democracia e o Tancredo como o grande articulador desse processo. É um cara que consegue unir forças divergentes para montar uma caminhada. Eu gostei muito de ter feito esse filme. Aprendi muito.

Lúcia Rodrigues - Você diz que se considera

hoje um ET pelo cinema que você faz, que hoje é de mercado, é bilheteria, ao contrário dos anos 1960. Como é que você, como cineasta, rompe isso? Teimosamente, fazendo os filmes. Eu acho que a gente tem que continuar fazendo. Cada dia está mais difícil. Cada dia o cerco está se fechando mais. Vamos ver como está o cinema hoje e como ele já foi. O Brasil teve até os anos 1980 uma ditadura militar, que era complicado, a gente tinha censura, mas a gente tinha mais de 5 mil salas de cinema, tinha salas de cinema em todos os maiores municípios, pelo menos, alguns com duas ou três salas, passavam vários filmes na mesma semana. Então, as pessoas do interior tinham acesso ao

cinema e com 5 mil salas de cinema havia espaço para o cinema brasileiro. Além de cota de telas no Brasil, naqueles anos até o Collor, era de 140 dias por ano por sala de cinema e havia um movimento para se tornar em 180 dias de filmes brasileiros por sala naquela época. O Collor veio, quebrou tudo, e nessa retomada a gente chegou, nos dias de hoje, com 2.800 salas de cinema, fecharam quase a metade das salas. Você não tem mais nenhum cinema em cidade do interior, os cinemas de rua foram praticamente fechados, viraram ou sapataria, ou igreja, ou banco ou academia de ginástica, não existem mais. Os cinemas se deslocaram para shoppings. O número de filmes, da cota de telas do Brasil, hoje, em território nacional, que é o grosso do nosso mercado, são 28 dias! Então, você não tem espaço para o cinema nacional em nossas telas.

Lúcia Rodrigues - O governo não incentiva? Não, pior do que isso. Não é que o governo não incentiva. O governo aplaude e diz que 28 dias está muito bom. Agora, pior do que isso...

Lúcia Rodrigues - A Ancine diz isso? A Ancine! A Ancine se regozija de que a gente tem 28 dias e que a gente conseguiu, agora, que cada cinema passe 14 filmes por ano! Mais grave que isso: a Ancine se baliza pelo mercado. Então, como a Ancine contabiliza a bilheteria de um filme? Ela não considera, por exemplo, a sessão numa universidade, numa sala de aula. Ela não considera as sessões que o MST faz dos meus filmes. O MST tem meus filmes pirateados e passa todos o tempo todo e em tudo o que é lugar. Para mim, não é um problema. Problema é ficar parado numa prateleira e ninguém vê. O cara ver um filme e não tem dinheiro para comprar, para mim é uma honra, ele escolheu o meu filme para ver. O MST faz isso, os professores de Geografia quase todos tem cópia do Milton Santos, mas não foi comprado. {Risos nossos.} Tudo bem. Os filmes circulam. Mas, essas sessões que são as verdadeiras, que as pessoas podem participar, discutir, não contabiliza público. Só contabiliza público cinema de shopping, cinema de mercado. Então, por exemplo, Utopia e barbárie passou aqui no Cinema na Laje, em São Paulo, cheia de gente, o Suplicy estava lá e pode contar para vocês. Na Matilha Cultural, passou, lotado, e também com os defensores públicos... Isso não conta. Então, Utopia e barbárie fez 9 mil espectadores para a Ancine. E aí quando eu fui pedir grana para um filme, agora, eles falaram: “O seu público é pífio, você tem pouco público.” Eles não sabem que eu tenho os três maiores públicos de bilheteria do cinema brasileiro, quando era o cinema em salas: Jango, 1 milhão de espectadores, com JK, 800 mil, e com Trapalhões, 1 milhão e 700 mil. Ninguém mais vai fazer esse público. Vinícius, que foi o último grande sucesso fez 250 mil. Agora, como a pirataria grassa, então eles não consideram como público. Então, você fica numa situação muito lamentável: “Eu tô fazendo um puta de um cinema, tem gente que vê, que gosta e que discute, e para os órgãos oficiais do governo popular esse filme não existe.”

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Débora Prado - A Ancinav era uma proposta diferente? Não, hoje, com o tempo, eu dou graças a Deus da Ancinav ter caído. Eram as mesmas pessoas que hoje dominam a Ancine, que estavam propondo a Ancinav, mas que iam ter mais poder.

de espectadores pelos seus próprios méritos, não precisou de nada da Ancine. Eu preciso.

Bárbara Mengardo - O que você achou do su-

cesso que os dois filmes Tropa de Elite fizeram no Brasil? Cara, eu me pergunto onde é que nós vamos chegar com esse tipo de cinema? Eu acho legal que o cinema brasileiro dialogue com o público brasileiro, agora, é meio doloroso você saber que é esse tipo de cinema que faz a cabeça das pessoas, entendeu? Na verdade, a minha tristeza é essa. Você para fazer sucesso no Brasil tem que fazer filme religioso ou filme policial.

Lúcia Rodrigues - Por que você acha que o Manoel Rangel, que é um cineasta, pelo menos fez cinema... Não, ele fez a escola, a USP... Lúcia Rodrigues - Por que ele tem esse tipo de postura em relação ao mercado? Recentemente, eu entrevistei o Manoel Rangel e ele está fazendo proposta de mercado. Eles só pensam em mercado, agora... Agora, eles dizem: “O Brasil tem 260 milhões, não sei o quê...” Os caras fazem um discurso de mercado que é um discurso burro, porque, na verdade, o mercado sempre existiu e sempre existirá. Ele tem regras próprias e caminhos próprios. Quando você fala dos anos 1960, você lembra do que? Glauber Rocha, Joaquim Pedro, Leon Hirszman. Esses caras nunca foram de grande bilheteria, mas são os filmes que marcam a identidade brasileira. São os filmes que passaram nos festivais internacionais. Quem ganhava dinheiro naquela época era o Roberto Farias com a série do Roberto Carlos, mas isso não passou para a história. Hoje, o filme é um filme bobo, o filme morreu, o tempo comeu. O Glauber você vai assistir eternamente. Isso sempre aconteceu, sempre houve uma coexistência entre mercado e cultura. Só que agora os órgãos públicos que estariam preocupados em incentivar a cultura, eles aderiram à política de mercado. Eles se acham capazes de avaliar roteiros de filmes que vão para público. Não, você não cria público por decreto. Você tem que deixar o mercado definir o que é público e o que não é. Como é público, você tem que definir políticas públicas para a cultura. Por exemplo, contratou-se 400 pessoas para a Ancine, nenhuma especificidade para cinema. Já ouvi cada tolice de algumas daquelas pessoas contratadas! E aquelas pessoas julgam quem pode filmar e quem não pode filmar... Lúcia Rodrigues - E como você rompe com isso? Eu tô gritando, aqui, com vocês. Eu espero que vocês publiquem.{Risos nossos.} Hamilton Octavio de Souza - O financiamento

não depende do projeto, mas do histórico de bilheteria, é isso? Eu vou te contar já, já, um vestibular que eu sofri agora no fundo setorial de audiovisual. Eles contrataram 400 pessoas, nenhuma delas é destinada a estudar uma política de colocação desses filmes nas salas de cinema. O que fazer para que um filme como Utopia e barbárie chegue ao público? Alguma coisa o Estado tem que fazer. Um link com o Ministério de Educação e Cultura... Alguma coisa tem que ser feita para que o povo brasileiro assista aos filmes brasileiros. E a

Lúcia Tavares - O seu filme Tancredo, a travessia vai ser lançado quando? Em maio desse ano.

Lúcia Tavares - Quanto tempo você demorou para produzir esse filme? O Tancredo foi fácil, foi um ano e pouco. Débora Prado - Você ia contar o vestibular

bilheteria brasileira não pode ficar restrita a três filmes por ano.

Hamilton Octavio de Souza - Qual é a produção brasileira? 60 longas por ano.

Hamilton Octavio de Souza - Comparável a quê na América Latina? Os grandes cinemas da América Latina são Brasil e Argentina, talvez México também. A diferença é que a Argentina foi para um caminho autoral e o nosso vai para o mercado. Moral da história: eles têm dois Oscar e nós não temos nenhum. A diferença é essa: lá, o cinema deles é mais barato e é autoral. O nosso, aqui, é de mercado.

Débora Prado - O marco regulatório lá é melhor do que aqui. Tudo. Lá, eles não têm essa preocupação de mercado. Eles têm um instituto de cinema que banca até um determinado valor os filmes, tem um teto, não é que nem aqui no Brasil que você inventa que o seu filme vai custar 12 milhões de reais, fazem uma renúncia fiscal de 12 milhões, e depois: “Sucesso absoluto de bilheteria, 1 milhão de espectadores!” O filme custou tão caro e a divulgação foi tão cara que o filme não se pagou. Isso ninguém fala. Essa coisa de mercado é um blefe. O que a gente tem que brigar, aqui no Brasil, é pelo resgate do espaço cultural do filme brasileiro. É essa que é a briga da gente, hoje. Entendeu? Parar com essa coisa da Ancine de que mercado é cultura. Mercado não é cultura. Mercado existe, ele está lá. Tropa de Elite fez 11 milhões

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para a gente... A Ancine criou um negócio chamado fundo setorial do audiovisual para produzir filmes. Aí, eu estou fazendo um filme que é um grande desafio, que é transformar o Poema Sujo, do Ferreira Gullar, em filme documentário. O Poema Sujo eu escolhi, porque ele é muito emblemático. Eu acho que no Brasil tem dois grandes poemas que são absolutamente filmáveis: o Morte e Vida Severina, do João Cabral de Melo Neto, e o Poema Sujo, de Ferreira Gullar. O Morte e Vida Severina já foi feito. Eu acho a ideia do Poema Sujo legal, porque o Ferreira Gullar estava exilado em 1975, em Buenos Aires, tinha saído do Brasil condenado pela ditadura em 1971, foi para Moscou, não se deu bem lá. Não era isso que ele queria. Ele não queria ser militante partidário, ele queria ser um pensador comunista, foi embora de Moscou para o Chile de Allende, veio o golpe de Estado contra o Allende, ele teve que ir embora, foi para o Peru do Juan Velasco Alvarado, não conseguiu emprego decente, foi para a Argentina no dia da morte do Peron. Na Argentina, a Triple A, organização anticomunista, já estava matando jovens peronistas e intelectuais, sequestrando, torturando e matando, ele se viu encurralado. “Eu não tenho passaporte, não posso voltar para o Brasil, porque estou condenado. No Uruguai, ditadura, a Argentina tá virando ditadura, Chile ditadura... Eu vou morrer.” E aí ele se refugia na memória e escreve Poema Sujo, dedicado à juventude em São Luís, Maranhão, que é uma coisa lindíssima. É essa história que eu quero contar. Eu quero contar a história de um poeta exilado, em 1975, é um tradutor de Garcia Lorca. Escolhi grandes atores para representar o Poema Sujo e me inscrevi no vestibular da Ancine. Entrei lá para concorrer com um filme sobre o Poema Sujo de Ferreira Gullar. Aí tem uma comissão, dois analistas e dois pareceristas de fora. Esse meu filme é um filme investigativo, que eu construo. Meu cinema eu acabei construindo à março 2011

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medida que o filme vai acontecendo. Eu não consigo, eu não sei trabalhar, sentado à uma mesa, escrevendo um roteiro. No meu filme, o roteiro é uma construção. Imagino que o trabalho de vocês também seja assim.

Hamilton Octavio de Souza - É um documen-

tário. É, você pauta, e aí você diz: “Agora, eu vou trabalhar nisso.” Aí, o parecerista de fora disse: “O Sr. Tendler é extremamente competente, maravilhoso, tem grandes filmes, sabe fazer, mas apresentou um roteiro frágil. Os roteiros de ficção estão muito melhores.” Ele comparou duas coisas diferentes. Fez tantos elogios, que dava para neutralizar. No fundo, ele dizia o seguinte: “O roteiro é fraco, mas dá para dar um crédito de confiança.” Aí vêm os analistas da Ancine, esses caras que fizeram esse concurso, passaram e “nossa senhora”... Aí um deles diz: “O povo brasileiro não gosta de poesia. Poesia não é feita para cinema. Poesia, no máximo, é para TV de canal fechado. O poeta Ferreira Gullar tem alguma relevância...”

Débora Prado - Caramba! {Risos} Matou! E aí eles dizem essa pérola suprema que “as minhas bilheterias são fracas”. Aí junta: bilheteria fraca, roteiro fraco, poeta fraco ...

Débora Prado - Poesia fraca... Cecília Luedemann - Nossa, está um nível muito baixo... É muito despreparo, cara... Muito despreparo.

Cecília Luedemann - É uma visão muito triste para quem lutou pela democracia, ver um governo que se diz popular, democrático, tratar a cultura desse jeito? Eu estou botando a boca no trombone, porque eu espero que a ministra Ana de Hollanda mude isso.

Lúcia Rodrigues - Você acha que muda? Ela recebeu tantas críticas... Débora Prado - O que você achou desse começo da Ana de Hollanda no Ministério da Cultura? Cara, eu sou muito suspeito para falar. Eu sou muito amigo dela, gosto muito dela, é amiga mesmo, querida. É uma pessoa que eu respeito, admiro, fico super feliz de ela ter sido escolhida e espero que ela consiga fazer um bom trabalho, porque também tem muita casca de banana no caminho dela.

Débora Prado - Há outras histórias ou figuras

que você gostaria de filmar? Figuras têm todos os dias. {Risos}Agora, eu tô meio apaixonado pela figura do Darcy Ribeiro. Eu adoraria fazer um filme sobre o Darcy Ribeiro. É um grande pensador brasileiro que eu ainda não trabalhei. Já trabalhei Josué de Castro, Milton Santos, e agora queria trabalhar Darcy.

Lúcia Rodrigues - E como foi gravar Mari-

ghella?

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Foi muito prazeroso. Eu conhecia muito pouco do Marighella, tinha medo dele. Eu achava ele meio barra pesada e aí eu encontrei um poeta. Fui encontrar um guerrilheiro inclemente e encontrei um cara engraçado, sedutor, poeta, um cara ousado. Aliás, os meus personagens sempre me surpreenderam positivamente. Nem sempre eu conheço o personagem. O Josué de Castro, eu conhecia de orelha. Aí quando eu cheguei perto dele para fazer o filme, eu vi que ele era sensacional. O Milton Santos é absolutamente maravilhoso. O Tancredo, também descobri um cara engraçado. O Marighella que pensei que era aquele guerrilheiro barra pesada e não era, ele era um boa praça, um poeta, muito inteligente e que entrou no caminho em que o Brasil tinha entrado em um beco sem saída. Ele tentou buscar uma saída.

Lúcia Rodrigues - E, hoje, os cineastas que es-

tão aí, em termos de Brasil, com qual você se identifica mais? Dos documentaristas, com o Vladimir Carvalho. Eu acho que O Engenho de Zé Lins, sobre José Lins do Rego, uma obra prima. E gosto de cineastas que vocês nem ouviram falar, porque a mídia não deixa. Por exemplo, tem um filme chamado Pau Brasil, de Fernando Belens, da Bahia, ele é um médico psiquiatra e cineasta, e que faz um filme literário. É muito lindo, muito lindo. Se esse filme chegasse aqui com o rótulo, com a etiqueta, de cinema hindu ou cinema iraniano, todo mundo iria aplaudir. Mas, como é brasileiro, ninguém vê. Ele tem uma narrativa diferente e a gente está viciado em narrativa norte-americana. A gente quer ver em português as coisas dos Estados Unidos.

Lúcia Rodrigues - Mas, é importante ganhar um Oscar, para você? Sem dúvida, sem dúvida. Eu adoraria. Os grandes cineastas italianos, todos eles que têm Oscar, é uma loucura... Lúcia Rodrigues - É melhor Oscar ou Festival de Cannes? Para os francófonos, Cannes; para o cinema, Oscar. Hamilton Octavio de Souza - Do que você tem visto, o que você tem gostado? Cara, eu gosto muito do movimento de periferia. Cinemão brasileiro, eu acho que está muito pasteurizado. Eu gosto muito do trabalho do Vladimir Carvalho, eu adorei o Engenho de Zé Lins. Eu estou tentando distribuir, agora, o filme da Érika Bauer sobre Dom Pedro Casaldáliga. Existem filmes muito interessantes, mas estes filmes não têm mercado, não têm circuito. Os filmes que passam em shopping, eu não vou ver. Eu gosto muito de cinema dessa garotada de periferia, em São João do Meriti, lá eu vou. Sempre tem coisa nova. Paula Salati - Fale um pouco sobre Utopia e barbárie. Você ficou 19 anos montando esse documentário? Você sempre teve essa ideia de re-

construir o espaço histórico do século 20? Qual o balanço que você faz sobre esse documentário? Olha, eu sou um apaixonado pelo documentário. Eu acho que o documentário é tão bom ver quanto fazer. Eu tenho prazer por essa construção artesanal do documentário, porque nesse vestibular que eu tomei pau da Ancine, porque eles falaram que eu não sei fazer roteiro, que os roteiros de ficção são muito melhores, eu expliquei a diferença para eles. Quando você está fazendo um roteiro de um filme de ficção, você está dialogando com mais de cem pessoas, está fazendo um roteiro para ser seguido pelo fotógrafo, pelo diretor, pelo continuista, pelo cenógrafo, pelo figurinista, pelo eletricista, pelos atores, pelo som... Todo mundo tem que ler aquele roteiro e aquele roteiro é uma bíblia. Se as pessoas não entenderem o que está escrito ali, elas vão se desentender no terceiro dia e vai virar um caos, aquele filme não vai acontecer. O roteiro da ficção é um transatlântico, que você tem carta de navegação precisa, que tem que estar todo mundo, ali, orientado por aquela carta, senão o navio vira. O documentário é um barco do Amyr Klink, é uma viagem solitária, porque você sabe de onde você vai partir e onde você quer chegar, mas você vai ser levado pelas rotas marítimas. Então, se você fizer um roteiro muito preciso para o documentário, você vai ficar engessado.

Cecília Luedemann - É a revista Veja... {Risos} Aí, você liga para o cara, marca aquela semana de filmagem, só que naquela semana está fora... Já não encaixou. Ou você não faz a entrevista, ou você atrasa uma semana. Esse cara vai te falar coisas que você não perguntou e que você não sabia, e aí você vai ter que ir atrás. Você está fazendo uma pesquisa de imagens dos documentários e você descobre fatos que ninguém te falou. Imagens, fotografias, uma greve, uma discussão, um diálogo que ninguém te falou, mas está registrado. Eu vou pegar aquilo e voltar para os meus entrevistados e perguntar: “O que é que tu tá fazendo aqui? O que é isso? Por que você está nesse bate boca?” E a história muda. Então, o documentário ele tem que acontecer a medida que ele vai sendo construído, ele é investigativo. Roteiro de documentário é isso, é um filme bem pautado.

Lúcia Rodrigues - Mas, isto os analistas da An-

cine não sabem? Eles não sabem disso. Alguém tem que dizer para eles. Tomara que vocês digam pela revista.

Débora Prado - Sobre Utopia e Barbárie, você

foi a 15 países? Esses 15 países é um chute, por baixo, eu fui mais, mas ninguém ia acreditar, porque a verdade tem limite. Se eu disser que eu fiz muito mais, as pessoas vão dizer que não fiz. Mas, eu fiz. Eu botei os países com as imagens que aparecem. Mas, eu viajei muito. Imagina, 19 anos da minha vida viajando. Só não arranjei imagens interessantes da Revolução dos Cravos, em Portugal.

Lúcia Rodrigues - Você pensa em fazer um do-

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cumentário sobre esse processo revolucionário em curso nos países árabes? Cara, um documentário, não. Eu nunca consigo fazer uma coisa só. Eu vou parar de citar os projetos, senão você vai me chamar de mentiroso. Eu faço um monte de coisas juntas e ao mesmo tempo.

Lúcia Rodrigues - Você acredita que a platafor-

ma da internet ajuda a ampliar esse cinema? Eu acho que sim, eu não tenho o menor preconceito contra internet. Eu acho muito mais prazeroso ver um filme numa sala de cinema, com um pulsar coletivo, mas também não tenho nenhum preconceito de ver um filme no Youtube. Para mim, cinema também é conhecimento. E, para mim, essa coisa da internet é um instrumento de conhecimento maravilhoso, eu descubro coisas maravilhosas.

Lúcia Rodrigues - Você disse que o MST passa

muito os seus filmes. Você já pensou em fazer um documentário abordando, de maneira direta, a questão da luta dos sem terra no Brasil? Eu estou fazendo, agora, um filme com eles, com o MST e MPA, sobre agrotóxicos, porque o Brasil é, de longe, o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Nossos lençóis freáticos estão ferrados. Nós descobrimos, agora, no Espírito Santo, que, em três meses, três mulheres abortaram com 8 meses, depois de ter usado agrotóxicos. Então, nós vamos fazer uma denúncia pesada, com uma demanda do MPA, e que foi o Stedile que linkou a gente.

Lúcia Rodrigues - Como você vê a postura do

governo Lula, e, agora do governo Dilma, que não mudou nada, em relação a essa aliança e parceria com o agronegócio? Catastrófica. Eu acho absolutamente catastrófica a política agrária brasileira. É catastrófica para a economia, para a saúde, para tudo. O único candidato que tocou nisso foi o Plínio, o resto, até a Marina disse que podia conciliar agronegócio e ecologia. {Risos} Porque o agronegócio conduz à monocultura, ela é predatória por definição.

alimento.” Ele não tem crédito.

Lúcia Tavares - Como o cinema brasileiro é

visto fora do Brasil? Olha, o cinema brasileiro fora do Brasil já foi visto com muito respeito. Hoje em dia o cinema brasileiro não é representativo da cultura brasileira. O cinema brasileiro cultural nunca teve muito público, nunca estourou a boca do balão, mas sempre foi um cartão de visitas. Naqueles anos 1960, você tinha café, Pelé e cinema. Hoje em dia, o cinema brasileiro não é mais representativo. Você até tem cineastas que são respeitados lá fora, mas não como movimento, mas como artistas individuais. Você tem o Fernando Meirelles que consegue filmar lá fora, o Walter Salles que consegue filmar lá fora, o Maurinho Escorel que trabalha em Hollywood. Você tem artistas brasileiros que conseguem trabalhar lá fora, mas como movimento cinematográfico. Quando você coloca um filme brasileiro num festival, você não tem grande expectativa. Festival de Cannes vai abrir com filme brasileiro, não vai todo mundo para ver. Otavio Nagoya - Eu queria saber se depois de tantos anos você continua acreditando no socialismo. Você é otimista ou pessimista? Eu sou sempre otimista. Eu tenho um dito judaico de um escritor que morava naquela região das aldeias judias do império russo, que falavam o ídiche, o Scholem Aleichem, e ali qualquer problema que tivesse, o Czar colocava a culpa nos judeus, aí vinha um massacre de judeus e resolvia. Doença? Culpa dos judeus. Peste? Culpa dos judeus. Fome? Judeus. Eram os progroms. Esse escritor tem uma frase que, para mim, é muito emblemática: “Graças a Deus, a gente já teve o nosso progrom desse ano.” Estou vivo aqui, entendeu? Eu continuo acreditando no socialismo, tenho uma frase do Eric Hobsbawn que é fantástica: “Eu não sei se eu vou ver realizar meus sonhos, cada dia eu acho mais difícil, mas eu acho que estou muito velho para mudar de ideia.” Então, é por aí, eu acredito. Agora, eu nun-

ca acreditei num socialismo careta, no pensamento único, sempre me movimentei contra o stalinismo e seus produtos afins. Acredito na interlocução entre as pessoas, no diálogo, na vontade das pessoas dialogarem e resolverem dessa forma as questões, o respeito ao outro, o direito ao outro de pensar pela cabeça dele. E eu acho que a gente está correndo o risco de cair no pensamento único de esquerda. Nós estamos falando de governo, mas eu estou com uma dificuldade, estou fazendo um filme sobre o Poema Sujo, de Ferreira Gullar, que por uma opção política dele, resolveu votar no Serra. Eu estou sendo massacrado porque se confunde o poeta genial com a opção política dele. Isso aí é um absurdo que a gente tem que combater, porque senão vai cair no pólo oposto. O meu socialismo passa pelo respeito, pela pluralidade e pela liberdade.

Débora Prado - Você é o cineasta dos vencidos? Não, dos sonhos interrompidos. Na verdade, as pessoas falam que eu sou o cineasta dos vencidos, porque eu fiz sobre o Jango, o JK, mas eu tenho um amigo meu, o Arnaldo Carrilho, embaixador do Brasil na Coreia do Norte, que é um cara absolutamente genial, é um filósofo e ele sacou a minha obra, o que unia os meus filmes com personagens tão diferentes em si. Ele sacou que são personagens que saíram de cena antes de cumprir a missão, por conta dos sonhos interrompidos. O Jango foi o único presidente brasileiro a morrer no exílio, foi deposto, não concluiu o governo. JK tinha o sonho de voltar em 65, foi cassado, nunca voltou. Marighella morreu durante a guerrilha. Castro Alves morreu com 24 anos. Josué de Castro morreu no exílio. Milton Santos morreu de câncer quando estavam em pleno voo, quando a obra dele estava melhor, estava despontando. Então, o Carrilho juntou isso tudo e me definiu como o cineasta dos sonhos interrompidos. Na verdade, cineasta dos vencidos eu não sou, porque tem aquela história do Darcy, pior teria sido ficar do lado dos vencedores. {Risos}

Débora Prado - E agora, com transgênicos e agrotóxicos pesados... Agora, os caras te vendem o transgênico e aí, junto, tem que ir o agrotóxico. E aí você trabalha com esse binômio que é absolutamente predatório.

Débora Prado - As empresas de agrotóxico dominaram o mercado de sementes no Brasil. Tudo. São seis ou sete empresas que mandam no mercado. A denúncia que nós vamos fazer no filme é isso: na verdade, as empresas escravizam os pequenos agricultores. É surrealista o que eu vou contar para vocês, mas é verdade. Os pequenos agricultores recebem financiamento pra produzir se eles usarem transgênicos e agrotóxicos. Se eles não usarem transgênicos e agrotóxicos, eles não têm financiamento para produzir. Débora Prado - De onde vem esse financiamento? Do Banco do Brasil. E aí, como fica isso? E o cara que diz: “Eu não quero colocar agrotóxico no meu

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Ana Miranda

porca miséria! Glauco Mattoso

O choro

SONETO PARA MARÇO [2103]

ou não abuso de presos, os deficientes que vivem suppostamente em liberdade soffrem o maior abuso de todos: a discriminação, que vae do preconceito à violencia, passando pelas barreiras educacionaes e profissionaes. Para esse typo de prisão perpetua não ha progresso humanitario visivel em qualquer dos mundos, primeiro ou terceiro. Mas eu, isonomicamente respaldado nas quotas para negros, continuo reivindicando uma quota para cegos na Academia Brasileira de Lettras, com direito a indemnização pelas dictatoriaes perseguições do mercado editorial e da midia. Estou esperando pelos defensores dos direitos humanos, que me darão assistencia juridica gratuita, por signal.

Nunca vi minha gata Filomena chorar, ela às vezes mia mais triste, mas parece ser muito orgulhosa para mostrar seus sofrimentos. Nem chora o seu filho, Sossonho, que é quase um gato de rua, metido em namoros e brigas, voltando com a patinha ou a orelha ferida. Dá uns miados de melancolia, mas não chora. Chora o Shico, cachorro de meus netos que vive aqui comigo e meu amigo, por qualquer motivo ele geme com um desalento de partir nosso coração, quando quer transpor uma porta, quando precisa de afago ou companhia, não lhe saem lágrimas, mas é um choro profundo. Outros animais também choram. Soins, passarinhos, capotes, cabritos... Num livro gracioso que tenho aqui, Perfis sertanejos, de José Carvalho, um vaqueiro conta uma história que impressiona pelo sentimento. Quando uma boiada sobe a serra da Borborema, a extrema que divide os climas do Ceará para Pernambuco, e sente o cheiro do outro sertão, arranca num pranto desesperado. Os bois não querem andar, suas cabeças baixam para a terra, mugem com desespero, lágrimas caem grossas “no chão que fica todo molhado como se tivesse chovido”. O gado fica manso e bom, o tangerino pode lhe passar a mão pelo dorso. Quando sentem o cheiro do boi que foi morto, pranteiam, escavam a terra, e o povo diz que a serra é encantada. Mas o vaqueiro acha que é porque o boi sabe que vai deixar o seu sertão, seus pastos, onde nasceu e foi criado, ou como se adivinhasse que vai morrer na cidade de Recife. Depois de muito trabalho, empurrando-os com as mãos, os vaqueiros conseguem que prossigam. O fazendeiro que ouve o relato concorda que o boi chore a morte de um companheiro, mas não que chore de saudades. E se chora, “isso merece um poema”. Diz o arrieiro: ‘É o coração mais terno e mais amoroso que eu conheço, é o coração do gado!’ Triste, tristíssimo é o choro dos burrinhos soltos por aqui, ou presos com uma corda a um poste, mortos de sede sob o sol, sozinhos. Às vezes passam dias e dias ali, e de noite ressoam os zurros mais magoados deste mundo. Quando vejo um deles, com sua mansidão, sua ternura, tão maltratados e oprimidos, quem tem vontade de chorar sou eu.

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Ana Miranda é escritora.

Em março as coisas voltam ao normal, depois de muito ensaio e phantasia. Parece que, passado o carnaval, funcciona tudo e o anno principia... Mas logo o céu preteja e um temporal desaba: agora é noite o que era dia. As aguas do verão, que um jovial Jobim cantou, são mesmo uma agonia... O congestionamento, o alagamento e grande prejuizo: eis o que enfrento, fazendo coração da minha tripa... E o mez, que não termina?! Inda tem gente lembrando um trinta e um que, infelizmente, é nuvem negra e nunca se dissipa...

Emquanto se discute uma “commissão da verdade” sobre os desapparecidos nas dictaduras sulamericanas, me vem à mente a bibliotheca que colleccionei sobre a tortura, cujos methodos se repetem e copiam, ha millennios, universalmente. Entre os depoimentos dos sobreviventes brasileiros e argentinos, a venda nos olhos era parte da technica psychologica, com physicas consequencias caso os olhos permanescessem vendados por muito tempo, mas em outras epochas e logares a cegueira não era castigo temporario. O caso biblico de Sansão não foi isolado: muitos povos costumavam cegar seus prisioneiros, para punil-os e escravizal-os sem risco de resistencia. Tal practica perdura em paizes islamicos e entre tribus africanas, variando apenas no methodo, do ferro em brasa à enucleação. Até nos Estados Unidos se discute (ha um site participando dessa polemica: www.createdebate.com) si os criminosos deviam ser cegados, seja para poupar custos carcerarios, seja para doar corneas. Allega-se que trabalhariam mais disciplinados e ficariam impossibilitados de fugir. Commigo mesmo, reflicto que, emquanto os humanistas se preoccupam com o que seria

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Ilustração: bruno paes

do animal

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Sérgio Vaz

A fina flor da malandragem

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Dilma e o Homem Colonial

Duzão é piloto, e o que dá fuga à essa malandragem. Na ma-

“A mulher como tema de reflexão especial é algo que começa por

drugada, a bordo de um Mercedes, dirige certos por vias tortas. Aninha já passou o ferro em várias madames, dizem por aí que pra mais de vinte. Cabeção tem olhar de rapina e um iceberg no coração, quando entra no banco já vai direto no caixa. Colorau não age na quebrada, gosta de fazer mansão. Lu ganha a vida distribuindo suas ideias através de um pó branco comprimido, a molecada fica alucinada. Nada contra quem mexe, mas ela nunca meteu a mão no pó dos outros.

Wilsinho não tem medo de nada, já passou o revólver até no carro da polícia. As pessoas acima são suspeitas de ter a coragem de trabalhar, e enfrentar o dia a dia com a dignidade que só o sofrimento ensina, e por mais simples que sejam, nunca se evadiram da responsabilidade de lutar. A malandragem fica por conta de quem lê.

ser desfavorável à mulher”, escreveu o poeta Ludovico Silva, lembrando a observação irônica de Ortega y Gasset: a mulher teria de ser vista na história como um gênero literário. Colocar a mulher como tema é separá-la de sua circunstância junto ao homem, desligada da mesma situação miserável em que vivem homens e mulheres. Somente poucas mulheres escapam dessa situação: as madames e as grã-finas. São essas mulheres que se ocupam do tema “libertação da mulher”. O tema dedicado à mulher como exclusividade é revelador da situação complexa da mulher. A sociedade que mais a explora é quem a trata como objeto de consumo. É vasta a literatura misógina de Sócrates ao mundo moderno, mulher como mera reprodutora, o prazer reservado aos efebos. Líder religioso não gosta de mulher. Há também a literatura filógina,ou seja, de exaltação da mulher. Não é à toa que a Igreja é conhecida como a Santa Madre. Nem sempre a mulher foi oprimida. Na sociedade primitiva, onde não havia propriedade privada, dominava o matriarcado. O homem caçava, a mulher cuidava da economia da casa. Economia etimologicamente significa administração da casa. Com o advento da sociedade de classes a mulher passou a ser explorada e oprimida. Quem maltrata a mulher não é o homem individualizado, mas um sistema social com escravos, servos e operários. Karl Marx escreveu em 1844: “a prostituição não é senão uma expressão particular da prostituição generalizada do trabalhador, uma vez que a prostituição é uma relação que engloba não somente o prostituído, mas também aquele que prostitui cuja abjeção é ainda maior – o capitalista se inclui também sob essa categoria”. O trabalhador é um ser prostituído, as mulheres que se prostituem (as chamadas prostitutas), são umas minorias em relação às mulheres (maioria) que se vendem no mercado de trabalho. A liberação da mulher não pode ser a da liberação de certa classe de mulheres, mas sim de todas as mulheres sem exceção. As cadeias das mulheres não são especiais, são de todos os homens. A condição biológica não é limitação: o que decide é a política. Se analisado do ponto de vista individual, o problema apresenta-se sem solução: há gente de esquerda que é macho patriarcal falocrático, assim como existe o tipo anti-falocrático, mas reacionário do ponto de vista político. A gênese da neurose feminina é colonial. É que o mameluco (mistura de branco e índio) despreza a mãe indígena, sente vergonha de ter uma mãe que não é a bacana dos brancos, portanto quer identificar-se com o pai europeu, que tem dinheiro e poder. Mas o pai o rechaça. Não é a toa que Darcy Ribeiro criou os Cieps. Espero que Dilma os multiplique como o útero do povo.

Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Vavá não pode ver carro parado que leva, se não der na chave leva nas costas. Lourival mete o cano desde criança, o pai se virava no alicate, e nunca teve medo de cerca elétrica. Como teve problemas de berço, Mariana pega o filho dos outros e devolve por uma quantia mínima. Julião põe medo em muita gente, também pudera, já enterrou vários com uma pá na mão. Salete limpou a casa de Sonia, quem deu a fita foi a Rose, que se bobear limpa até as casas dos parentes.

Marcio resgatou Sales da cadeia, e saiu do presídio pela porta da frente, ninguém fez nada. Elizabeth quase não ri, é uma espécie de gerente da boca, na rua dizem que ela é a patroa. Nego Jan vende tudo que pega: relógio, TV, DVD, Eletrodomésticos em geral, carro, moto, corrente de ouro, roupa de marca, e demais mercadorias. Sua lábia é mais afiada que lâmina de gigolô. Zóio tem problemas com a injustiça e está no semiaberto, passa o dia na oficina e a noite dorme no 3º andar. Quando pode, Guida e preto Will, parceiros de caminhada, o visitam no domingo. Luciana não tem medo de sangue, já ajudou a cortar vários desconhecidos, muitos cagam de medo de morrer na mão dela.

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Lúcia Rodrigues

fotos: jesus carlos

Recorde de mortes em hospitais psiquiátricos de Sorocaba

Detalhe da fachada do Hospital Psiquiátrico Vera Cruz onde morreram 102 pacientes, no quadriênio de 2006 – 2010.

O Fórum de Luta Antimanicomial considera o número insuficiente de funcionários como uma das principais causas dos óbitos; psiquiatra, filho de dono de hospital, admite que instituições não cumprem legislação federal.

d

enúncia do Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) revela número alarmante de mortes entre pacientes internados em hospitais psiquiátricos do município, no interior de São Paulo. O estudo produzido pela organização aponta 233 mortes nos quatro hospitais psiquiátricos da cidade durante o quadriênio de 2006 a 2009. O Hospital Vera Cruz lidera a lista macabra. Sozinho, o estabelecimento registrou 102 mortes nesse período. O pico foi verificado em 2008, quando foram registrados 40 óbitos entre seus pacientes. Na sequência, aparecem os hospitais Mental, com 46 mortes, seguido de perto pelo Teixeira Lima, com 45, e o Jardim das Acácias, com 40. A explicação para o número elevado de mortes entre os pacientes internados é o de que essas instituições operam com número reduzido de funcionários no atendimento aos doentes. “O número de funcionários está abaixo do que a legislação determina”, revela o psicólogo Marcos Garcia, do Flamas. O psiquiatra Carlos Eduardo Zacharias, filho

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de um dos donos do Vera Cruz, reconhece que o hospital opera com número de funcionários inferior ao previsto na legislação federal, mas nega que esse seja o elemento causal dos óbitos. “Nenhum hospital do país consegue respeitar o que a legislação pede”, admite. Ele exime os estabelecimentos psiquiátricos privados da culpa pelo número de funcionários reduzido e joga a responsabilidade no colo do Executivo. “O governo não paga o suficiente para colocar mão de obra lá dentro. Só para botar o pessoal que a portaria determina, dá uma 1,16 vezes o que o hospital recebe do SUS”, critica. O Flamas questiona essa versão. “No Brasil, os donos de hospitais psiquiátricos ganham muito dinheiro. Dominam a Associação Brasileira de Psiquiatria e constantemente soltam relatórios criticando a política de saúde mental do governo. Choram miséria”, frisa o psicólogo. O exemplo apresentado por Carlos Eduardo para justificar a falta de funcionários nos hospitais psiquiátricos é esdrúxulo. “Quantos hotéis se consegue achar em São Paulo por R$ 35 ao dia?”, ques-

tiona. Segundo ele, o governo federal repassa entre R$ 35 e R$ 45 por paciente/dia. “O hospital tem de ter cama, lavanderia, fora a hotelaria, tem a manutenção e o pessoal (funcionários da folha de pagamento)”, afirma para criticar o baixo valor que estaria sendo repassado aos donos de hospitais. O psiquiatra ressalta que corre na Justiça, em Brasília, uma ação impetrada pela Federação Brasileira de Hospitais contra o Ministério da Saúde. Nela os proprietários de hospitais psiquiátricos alegam que há desequilíbrio econômico-financeiro entre o valor pago pelo Executivo e o que os proprietários gastam no tratamento dos pacientes. Ele informa que o Hospital Vera Cruz possui 12 psiquiatras. “Dá para atender a 480 pacientes (o total de leitos na instituição é de 490). Em termos de médicos, tem o suficiente para atender o que diz a portaria. Mas em termos de enfermagem você tem de conversar com o setor técnico. Teria de falar com o meu pai (Florivaldo Zacharias)”, afirma desconversando. De acordo com ele, para cada 40 leitos o hospital precisa de um psiquiatra. O número de lei-

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tos que são administrados pelos funcionários aumenta para as outras funções ligadas à saúde. São necessários quatro auxiliares de enfermagem, um terapeuta ocupacional e uma psicóloga para cuidar de 60 leitos.

Mortes Carlos Eduardo afirma desconhecer o número de óbitos que teriam ocorrido no hospital Vera Cruz. “Eu não sei, não tenho esse número. Você não está falando com a pessoa certa. A Secretaria Municipal de Saúde passou lá, avaliou o livro de óbitos e não encontrou isso que estão falando”, afirma ao se referir à denúncia do Flamas. Os dados apresentados no estudo realizado pelo Fórum da Luta Anti Manicomial de Sorocaba revelam que os óbitos verificados na cidade são superiores ao de padrões internacionais, apesar de a metodologia empregada ser distinta à adotada em países estrangeiros. Marcos cita, como exemplo, um hospital da Alemanha onde o número de mortes é de 0,5% por ano. O relatório do Flamas é taxativo: “Há na cidade de Sorocaba um número muito maior de mortes do que seria o esperado. O número de mortes surpreende.” O psicólogo do Flamas conta que levou em consideração para efeito de análise, a comparação entre os três maiores manicômios do Estado de São Paulo: Araras, Itapira e Sorocaba, localizados em cidades do interior paulista. Ele constatou que “no hospital Vera Cruz morrem muito mais pacientes” do que em outras instituições. “Quem é esse Flamas? Qual é o seu CNPJ? Entrei no sítio (da internet) e não encontrei o nome do responsável. É um fantasma. Não existe juridicamente. Como pode sair por aí, dizendo isso ou aquilo, encoberto pelo manto da invisibilidade”, critica Carlos Eduardo. A metodologia utilizada pelo Flamas, que culminou no estudo, levou em consideração dados referentes ao Censo Psicossocial dos Moradores em Hospitais Psiquiátricos do Estado de São Paulo. Também foram consultadas informações do Datasus, o banco de dados do Sistema Único de Saúde, do CNES, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, além do SIM, o Sistema de Informações sobre Mortalidade. As informações financeiras foram obtidas por meio de consulta aos diários oficiais de Sorocaba, no caso dos hospitais psiquiátricos do município. Para as demais regiões, a consulta abrangeu também o Diário Oficial do Estado. Os dados populacionais foram obtidos no Censo de 2010.

Exclusão social Sorocaba é a cidade brasileira com a maior concentração de leitos hospitalares psiquiátricos do país. Para um universo populacional de 586.311 moradores, em 2010, o município do interior paulista dispunha de 1.369 vagas. O Hospital Vera Cruz responde por 490 leitos. Esse número salta ainda mais se for ampliado para municípios da macro região sorocabana e

atinge a casa de 2.792 leitos, o que dá uma relação de 2,3 leitos por mil pessoas. O número é cinco vezes superior ao preconizado pela legislação do Ministério da Saúde, que determina um número máximo de 0,45 leitos por mil habitantes. Carlos Eduardo contesta a informação e diz que os hospitais psiquiátricos do município atendem de 60% a 70% de pacientes de outras cidades. O que, segundo ele, diminuiria a relação de paciente / leito. A concentração de hospitais psiquiátricos no município de Sorocaba surgiu nos anos 70, durante a ditadura militar, quando a regra era o internamento e confinamento de pacientes com problemas mentais. Marcos conta que a lógica seguida pelos proprietários desses hospitais foi a da obtenção de retorno financeiro. “Os donos (de hospitais) começaram a ganhar dinheiro e expandiram o negócio”, explica. Esses hospitais não pertencem a um único dono, são comandados por cotistas. Uma fonte que não quis se identificar revelou à reportagem da Caros Amigos que o secretário da Saúde de Sorocaba, Milton Palma, é cotista em três hospitais próximos ao município, em que está à frente da pasta. Mas o conflito de interesses entre público e privado não se restringe apenas a esse caso. O próprio Carlos Eduardo Zacharias, filho de Florivaldo Zacharias, um dos donos do Hospital Vera Cruz, é o responsável pelo plantão psiquiátrico do Hospital Geral (público) da cidade. Cabe a ele direcionar os pacientes que serão internados no hospital de seu pai e dos demais proprietários da rede privada. Segundo uma fonte que não quis se identificar, Carlos Eduardo alimentaria a demanda desses hospitais por pacientes. A pessoa afirma que considera complicado coordenar uma central de vagas e, ao mesmo, tempo ser filho do dono de um desses hospitais privados. “Como é um ardoroso

O psicólogo Marcos Garcia, do Flamas.

defensor de manicômios, vai achar que boa parte das pessoas que buscam atendimento psiquiátrico no hospital público tem de ser internadas. Se o hospital privado tiver vaga, vai estar sempre cheio”, enfatiza a fonte. “Estou com 12 pacientes aguardando vaga e não tenho para onde mandar”, destaca Carlos Eduardo, durante entrevista à reportagem da Caros Amigos, ao se referir ao número elevado de pacientes para o total de leitos oferecidos.

Luta antimanicomial O modelo manicomial é contestado pelo psicólogo Marcos, que também é professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). O Flamas combate o formato de confinamento a que os pacientes são submetidos nessas instituições psiquiátricas. Para ele, trata-se de uma fórmula excludente. “Sorocaba tem uma política de saúde mental ultrapassada. Não passou pela reforma psiquiátrica (que defende o não internamento em hospitais psiquiátricos).” Os conselhos Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) e Federal de Psicologia (CFP) também tecem fortes críticas a esse modelo de internamento, que confina os pacientes em instituições fechadas. Para a conselheira do CFP, Maria Ermínia Ciliberti, é preciso reduzir o número de leitos para a internação involuntária. A psicóloga defende um modelo inclusivo, onde o paciente seja tratado de maneira integral. “Isolamento não é tratamento”, enfatiza. O representante do Flamas considera que a cultura de exclusão presente na sociedade sorocabana está no cerne para a perpetuação do município no topo do ranking nacional de leitos psiquiátricos por paciente. “Sorocaba é bastante conservadora do ponto de vista político e moral.” Ele explica que a diferença do município em relação a outras cidades “é que nos outros locais esses hospitais foram fechados, e aqui ainda não”, lamenta.

Direitos humanos O estudo desenvolvido pelo Fórum de Luta Antimanicomial de Sorocaba constata que a março 2011

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Causa mortis dos pacientes internados

(Em %)

Infarto....................................................................... 28

Tuberculose .......................................... 4

Diabetes ................................................... 2

Pneumonia................................................................ 13

Outras doenças respiratórias .............. 3

Obstrução pulmonar (engasgo) .............. 2

Distúrbios mentais................................................... 12

Suicídio ................................................ 3

Desequilíbrio hidro-eletrolítico .............. 2

Parada respiratória e causas mal definidas........... 11

Doenças do sistema nervoso............... 3

Outras doenças cardíacas ....................... 1

Doenças digestivas associadas ao alcoolismo......... 5

Câncer .................................................. 2

Outras causas .......................................... 9

Fonte: Relatório Flamas

principal causa mortis de pacientes internados em hospitais psiquiátricos é o infarto. “A gente considera que essas mortes acontecem por outro motivo, mas (no atestado de óbito) são registradas como infarto”, suspeita Marcos. De acordo com ele, não estaria ocorrendo uma investigação adequada sobre o fator determinante que estaria levando essas pessoas ao óbito. A suspeita é que, por algum motivo, não estariam sendo realizados os exames necroscópicos para a elucidação da morte. “Se a pessoa falece de morte desconhecida deveria ser feita a autópsia, mas isso não acontece nos manicômios daqui. Nem no momento da morte (esses pacientes) são tratados com dignidade.” Ainda de acordo com ele, o fato de vários pacientes não terem família faz com que não se realize esse procedimento de uma forma adequada. “Não estou acusando, mas essa é a impressão que dá”, frisa. Já o psiquiatra Carlos Eduardo considera per-

tinente o infarto aparecer como a causa de maior incidência no número de mortes entre os pacientes psiquiátricos. “Tem usuários de drogas, pessoas desnutridas, desidratadas. Há um grande risco de terem infarto do miocárdio.” Dados do relatório produzido pelo Flamas também relevam que há mortalidade precoce nos manicômios. “Mais de um quarto dos pacientes tem entre 17 e 39 anos. A média de idade é de 49 anos.” Ainda segundo o relatório, pacientes psiquiátricos tem expectativa de vida de oito a 10 anos menor do que a população em geral. “Levando-se em conta que a expectativa de vida no Brasil é de 69,4 anos para homens e de 77 anos para mulheres, seria esperada uma expectativa de vida de 60 anos para pacientes psiquiátricos homens e de 68 para as mulheres, significativamente acima dos dados obtidos nos manicômios de Sorocaba”. Nesses manicômios a média é de 48 anos para os internos do sexo masculino e de 51 para as mulheres. Para o representante do Fla-

mas, mais da metade dessas mortes que acontecem nesses hospitais poderiam ser evitadas. O relatório aborda também a violação aos direitos humanos que estariam ocorrendo dentro dos hospitais psiquiátricos. O texto destaca o fechamento do hospital Pilar do Sul, após vistoria da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa de São Paulo. Dentre as inúmeras irregularidades que seriam cometidas nesse manicômio, destacam-se “o uso da camisa de força, a existência de uma estaca onde os pacientes eram espancados, a falta de médicos, terapeutas ocupacionais e enfermeiros”, além das péssimas condições de higiene. Foi a partir desse caso que os membros do Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba resolveram realizar o levantamento dos indicadores sobre os hospitais psiquiátricos da região. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br

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Max Gimenes

Revolução Cidadã em

marcha no Equador

A tentativa frustrada de golpe de Estado, há seis meses, não desgastou o governo de Rafael Correa e nem contribuiu para a oposição acumular forças.

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o dar o nó na discreta gravata azul-clara que vestiu na manhã ensolarada da quinta-feira 30 de setembro de 2010, o presidente equatoriano, Rafael Correa, provavelmente não imaginava o que aquele dia lhe reservava: o momento mais tenso desde sua primeira posse, em janeiro de 2007. O dia em que a continuidade tanto de seu mandato como de sua vida foram seriamente colocadas em xeque. No Equador, a instabilidade é velha conhecida: os três presidentes eleitos que precederam Correa foram depostos antes do término do mandato e só no século passado vigoraram sete Constituições diferentes. Por isso, há quem diga, como o Centro Andino de Estudos Estratégicos (CENAE), que a cultura política do país reza, para a resolução de problemas, pela busca do centro da tomada de decisões, no caso, a própria presidência. “Atores relevantes” não aceitariam os “canais institucionais”. Talvez por isso Correa tenha sido levado, naquela manhã, a discursar a um grupo de policiais sublevados contrários à Lei Orgânica do Serviço Público implementada por seu governo. Frente à impassibilidade dos manifestantes, o presidente afrouxou o nó que dera para prender a gravata, enquanto bradava: “Se querem matar o presidente, aqui está, matem-me”. Depois de afirmar que não daria “nenhum passo atrás”, deixou o palanque improvisado, e não tardaria até ter lugar a cilada que o levaria ao hospital policial em que foi mantido por horas como refém. A ousadia não surpreende quem acompanhou a ascensão do líder da Aliança País (AP) ao poder. Rafael Correa foi lançado candidato com a promessa de convocar uma Assembleia Constituinte, o que implicaria a dissolução do Congresso. Como garantia do compromisso, a AP se arriscou ao boicote das eleições legislativas, não lançando candidatos. Com a taxa de reprovação dos congressistas em 90% da população, de acordo com pesquisas realizadas às vésperas do pleito, o professor de economia, que não tinha histórico de militância partidária, mas sim no cristianismo progressista, capitalizou a insatisfação popular e iniciou a condução do processo de transformações ao qual daria o nome de Revolução Cidadã. Uma vez eleito, Correa convocou a Constituinte

e nela obteve maioria de cerca de 70%. Com isso, a Carta Magna do país pôde ser elaborada sem muitas amarras. Ela reconheceu o princípio nativo de “sumak kawsay” (em quíchua) ou “buen vivir” (em espanhol), o “novo regime de desenvolvimento caracterizado pelas soberanias, a equidade, a igualdade, a justiça e o respeito à natureza”, que coloca o ser humano no centro, como “fator fundamental da economia”, de acordo com o assinalado por Alberto Acosta, ex-presidente da Constituinte, no livro que compilou com textos que influenciaram a adoção do paradigma na redação da nova Carta.

Auditoria da dívida Outro feito da nova Constituição foi abrir espaço para uma investigação do endividamento público do país. Em julho de 2007, com o decreto 472, estava criada a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (CAIC), que viria a publicar, em novembro de 2008, um extenso informe a respeito de ilegalidades e ilegitimidades praticadas na contratação e renegociação de boa parte da dívida pública do país. A dívida externa comercial, que correspondia a 85% do total, pôde ser diminuída graças a uma proposta do governo de redução dos títulos para 30% do valor nominal. Segundo a auditora brasileira e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã, Maria Lucia Fattorelli, convidada por Correa para integrar a CAIC, este foi “um precedente histórico” e “um exemplo para todo o mundo”. O fato de 91% dos credores terem acatado prontamente a proposta depõe, sem dúvidas, contra eles. As mudanças não pararam por aí. As parcelas do orçamento investidas em saúde e educação passaram a ter piso definido pela Constituição, 4% e 6%, respectivamente, e depois da auditoria “quadruplicaram” os investimentos nessas áreas, segundo Fattorelli. Isso permite que o processo seja mesmo considerado uma revolução no que diz respeito à cidadania, na medida em que proporciona a ampliação do “direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado”, por assim dizer, se formos invocar o conceito de cidadania formulado pelo sociólogo inglês T. H. Marshall.

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Outras inovações, que deveriam fazer a alegria da mídia supostamente “pacífica” e “verde”, foram o estabelecimento do Equador como um “Estado de paz”, no qual nenhuma base militar estrangeira seria permitida – o que implicou o despejo dos EUA da base que operavam, em Manta –, e o reconhecimento da natureza como sujeito de direito. Mais recentemente, o país conseguiu, em consonância com os princípios que o orientam a uma economia “pós-petroleira”, um acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para a criação de um fundo de financiamento externo vinculado a não exploração da reserva de petróleo localizada sob uma área vulnerável do ponto de vista ambiental, a chamada Iniciativa Yasuní-ITT, de acordo com a qual o Equador receberá ao menos a metade do que poderia obter com a extração do petróleo. A aprovação do presidente subiu após a tentativa frustrada de golpe para cerca de 60%. Agora, o governo prepara um referendo que, segundo Acosta, pode interferir na separação dos poderes e em outras conquistas da Constituição. A esses riscos somam-se as dissidências da base governista, entre ambientalistas, indigenistas e extrema-esquerda, entre os quais vale citar o movimento político Pachakutik, representante dos interesses da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), e o Movimento Popular Democrático (MPD), de orientação maoísta, que saíram às ruas fazendo coro com o Partido Sociedade Patriótica (PSP), de Lucio Gutiérrez, ex-presidente populista de origem militar, suspeito de estar por detrás do levante, embora quem o acuse reconheça como difícil prová-lo. A Revolução Cidadã segue em marcha, mas não se pode esperar que avance no combate aos privilégios sem que os privilegiados resistam. Correa afirmou que pretendia acelerar a Revolução Cidadã após o episódio, mas, como reconheceu Acosta, o “buen vivir” não é compatível com esse sistema capitalista em que vivemos. Frente aos desafios que virão com um possível acirramento de contradições, resta saber se a marcha será de fato acelerada ou lenta. E até mesmo se corre o risco de engatar à ré. Max Gimenes é estudante de ciências sociais. março 2011

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Tráfico de mulheres - Hoje, em Atenas, na Grécia, existem mais de 250 bordéis oficialmente legais. Essas casas abrigam milhares de jovens traficadas de vários países da região, em especial do Leste europeu, onde o colapso do socialismo causou profunda crise econômica e degradou as condições de vida da população. O número de mulheres traficadas para a Grécia é superior a 20 mil, sendo que a maior parte acaba na prostituição. ONGs e órgãos públicos procuram denunciar os esquemas que atuam no tráfico de pessoas, geralmente grupos poderosos e violentos. As fotos deste ensaio integram a campanha “Bordéis em Atenas: o Cenário Legal para o Tráfico de Mulheres”, expostas no mês de março na Estação Central do Metrô de Atenas, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. 1. Homem entrando no bordel. 2. Grades na entrada do bordel. 3. Romena saindo da salinha onde espera/descansa para encontrar o cliente. 4. Búlgara indo encontrar o cliente. 5. Sala de espera do cliente. 6. Cafetina na entrada de dentro do bordel.

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John Holloway

A questão não é tomar o poder, mas romper com a lógica do capital Inspirado no movimento zapatista, o autor do livro Mudar o mundo sem tomar o poder considera que a mudança não passa por partidos e nem deve objetivar o Estado. Por Gabriela Moncau e Júlio Delmanto

John Holloway é professor na Universidade Autônoma de Puebla.

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ublicado em 2002, o livro Mudar o mundo sem tomar o poder certamente é uma das obras que mais causou polêmica na esquerda mundial recentemente. Como o título aponta, sua proposição incendiária – fundamentada no marxismo – é a da construção de uma nova sociedade a partir da destruição do poder e não da tomada do Estado. Fortemente inspirado pelo movimento zapatista, que desde 1994 se consolida de forma autônoma ao Estado mexicano no sul do país, o irlandês radicado no México John Holloway passou a ser referência no circuito anticapitalista, questionando formulações altamente solidificadas na esquerda tradicional, como a necessidade de partidos, da unidade, da retórica de classe e da categoria de totalidade. Às portas de lançar em espanhol – no México, Argentina, Espanha e Peru – o seu novo livro Crack Capitalism, Holloway recebeu a Caros Amigos no final de janeiro nas dependências da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla (BUAP), a duas horas da capital mexicana, onde leciona há mais de vinte anos.

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Caros Amigos - O livro Mudar o mundo sem

tomar o poder teve grande repercussão, e uma série de críticas. Uma delas foi a de que não havia propostas. O seu novo livro Crack Capitalism parece desenvolver teorias de como caminhar em direção a uma mudança do mundo sem tomar o poder. Como foi o percurso entre estes dois livros? John Holloway – Têm razão quando dizem que houve muitas críticas ao Mudar o mundo sem tomar o poder. Uma das principais foi o fato de que o livro termina dizendo que bom, não sabemos como mudar o mundo sem tomar o poder. E a resposta a essas críticas é que é claro que não sabemos. Não sabemos como fazer a revolução, se soubéssemos já a teríamos feito. O que sabemos é que as tentativas do século XX fracassaram, e desses fracassos podemos aprender que é necessário conceber a revolução de outra forma. Mas não temos respostas. Parte do repensar a questão da revolução é justamente partir do fato de que não sabemos como fazê-la, por isso precisamos pensar, discutir. Mas além disso, dizer que não sabemos, porque se eu digo que eu sei como fazer a revolução, parto do pressupos-

Aponta caminhos para a ruptura com o capitalismo? Realmente, a questão de ruptura é central, queremos romper com a lógica do capitalismo. E queremos fazê-lo de milhares de formas diferentes. Vamos criar espaços onde não vamos reproduzir a lógica do capital, onde vamos fazer outra coisa, ter outros tipos de relações, desenvolver atividades que tenham sentido para nós. Então o problema da questão da revolução, em lugar de ser como tomamos o poder, é: como rompemos com a lógica do capital? Para mim, o exemplo mais óbvio é o dos zapatistas. A partir do momento em que se cruza para dentro do território deles há uma sinalização que diz “Aqui o povo manda, e o governo obedece”. Trata-se da criação de um espaço com outra lógica. Mas se começamos a pensar nisso, vemos que não são somente os zapatistas, são também rádios comunitárias, centros sociais, comunidades ou municípios autônomos, revistas alternativas, enfim, uma série de rompimentos que não são necessariamente territoriais, podem também se referir a uma atividade, como os protestos estudantis contra a introdução da lógica mercadológica na educação. Ou pode-se dar também na relação entre marido e mulher, ou filhos, tratar o amor como uma tentativa de criar uma relação em que não se aceita a lógica gananciosa e mercantil do capital. A única forma de pensar na revolução é em termos desses espaços ou momentos que se podem conceber como fendas no tecido social da dominação capitalista. A única forma de pensar na revolução é em termos da criação, multiplicação e expansão dessas fendas, porque elas se movem, são dinâmicas. E essa resposta é também uma pergunta, porque há muitos problemas a resolver.

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to que eu tenho que explicar a vocês como se faz, o que implica uma política de monólogo. Se dizemos que não sabemos, então a conversa faz-se necessária, isso implica uma política de diálogo, horizontal e, suponho eu, mais honesta. Recebi muitos tipos de críticas. Alguns disseram “que absurdo, que loucura, ele está absolutamente equivocado”, outros disseram “estou totalmente de acordo, não quero entrar na lógica suja do Estado, da tomada do poder estatal. Mas então o que fazemos?” Então, o novo livro é um pouco uma tentativa de avançar com uma resposta nesse sentido, uma resposta que é ao mesmo tempo uma pergunta.

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Você diz que qualquer teoria radical de mudança tem que partir de uma teoria de crise. Por quê? Parece-me que uma teoria crítica, uma teoria revolucionária, não é uma teoria da dominação. Muito da teoria da esquerda nos diz todo o tempo que somos uma sociedade dominada pelo capital, pelo dinheiro, pelo consumo. Bom, isso sabemos, é óbvio. O fato de que vivemos numa sociedade de dominação classista, em uma sociedade injusta, isso é perfeitamente óbvio. O problema não está em enxergarmos isso, em entendermos a dominação, está em entendermos a fragilidade da dominação, a possibilidade de romper com a dominação, esse é o ponto de partida da reflexão crítica anticapitalista. Começar entendendo o capitalismo em termos de sua crise, sua fragilidade, e não de seu poder. E como entende o conceito de identidade? Por que você defende a “anti-identidade”? Se começa com a negatividade, o não, então isso implica que está pensando que o mundo no qual vivemos não é o mundo verdadeiro. O mundo verdadeiro é o mundo que ainda não existe, é o mundo que poderia existir. Estamos pensando mais além do que existe, do que somos. Então eu sou mais do que sou. Me parece muito importante pensar a revolução a partir do rompimento das identidades. Por exemplo, pensemos mais uma vez na luta zapatista: nunca disseram “somos um movimento indígena”, disseram “estamos lutando pela humanidade, estamos indo mais além dessa identidade”. Acredito que isso é importante, pois muitas lutas identitárias acabam tornando-se conservadoras. Mas é possível romper com essas categorias partindo dessa própria identidade? Como o movimento negro, ou o movimento das mulheres? É claro que temos que começar da onde estamos. Sim, muitas vezes a afirmação da identidade em movimentos como esses é a afirmação que desafia. Uma afirmação negativa. Uma afirmação que diz “você não me vê, mas aqui estou, o que você vai fazer?”. E isso claramente vai contra o que atualmente existe. Mas se me estanco nisso e nada mais, facilmente o movimento transforma-se em algo excludente e conservador. Os zapatistas poderiam ter dito desde o princípio “somos um movimento indígena, vamos lutar por nossos direitos enquanto indígenas”, muita gente os interpreta dessa forma, inclusive o governo. Mas seria um movimento que nos excluiria, certo? É claro que queremos que os indígenas conquistem melhor lugar dentro da nossa sociedade, mas finalmente não é disso que se trata, trata-se de romper com as estruturas atuais, de pensar em um movimento contra o capitalismo, contra a sociedade atual.

E dentro da teoria das fendas como funcionaria a ideia da unidade? Você considera que seria necessária uma unidade entre as muitas fendas? Não, unidade não. Creio que seria importante uma confluência das fendas. Que as fendas se conectem. Talvez não seja uma boa metáfora para o Brasil, mas podemos entender a ideia das fendas imaginando um lago congelado: estamos tentando romper o gelo, jogando pedras no lago. Criamse buracos e fendas, rachaduras, certo? E do outro lado também estão jogando pedras e pelo outro lado também, que é um pouco o que se está passando hoje. Vão formando-se uma multiplicidade de fendas que por vezes expandem-se e por outras se regeneram, de modo que o buraco pode congelar-se outra vez. Mas se as fendas se juntam, elas se fazem maiores, mais potentes. Às vezes se juntam, se separam outra vez. Eu penso no movimento das fendas como um processo que inclui junções, mas que não devem ser impostas a partir de uma perspectiva particular. Se eu estou aqui desse lado do lago jogando pedras e vejo que você está fazendo o mesmo do seu lado, não tem nenhum sentido que eu te diga que você deveria estar aqui comigo. É necessário reconhecer que as pessoas estão tentando romper o gelo do capitalismo de muitas formas diferentes, tenho que respeitar que você esteja aí. E respeitar implica criticar, uma confluência é importantíssima, o diálogo. Então você pensa que a ideia tradicional de unidade da esquerda é equivocada? Sim, essa ideia acaba sendo muito destrutiva. É impossível e também não é desejável. Porque queremos criar uma sociedade onde podemos fazer o que gostamos, queremos, o que nos faz sentido, uma sociedade heterogênea. O argumento das fendas é que não temos outra opção a não ser começarmos pelo particular. Estamos aqui, cada qual em seu lugar e temos que nos mover a partir daí. Vocês poderiam me dizer “não, o que necessitamos é a união da esquerda. Temos que nos mover a partir de um centro, e pensar na totalidade, a partir de um programa nacional, global”, o que seja. Isso me parece que em primeiro lugar não é realista. Em segundo lugar, abre as portas para a burocratização do movimento, e em terceiro implica uma repressão a muitos movimentos reais que existem por todos os lados. Acredito que seja justamente o contrário: ao invés de pensarmos a partir da totalidade, temos que começar do nosso particular e nos confluirmos. Não juntandonos de uma forma que uma linha política unitária seja imposta. Você escreveu que o pensamento e a prática revolucionária têm de ser necessariamente antifetichistas. Queremos que você fale um pouco sobre isso, como seria uma prática

“A luta anticapitalista é necessariamente a luta contra o trabalho abstrato alienado”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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revolucionária que tenha isso como central. O capitalismo é um sistema que não está controlado por ninguém. Nem pelos capitalistas, nem pelos governos. É um sistema de relações sociais onde quem domina são as coisas. O dinheiro, o capital, as forças coisificadas. Então, a revolução é um processo que, necessariamente, passa por, em primeiro lugar, entender o social como nossa criação coisificada ou fetichizada e, em segundo, um processo de desenvolver formas de determinar esse social. Nesse sentido, penso que a crítica no sentido marxista é uma tentativa de desfetichizar essas relações e restaurar a criatividade humana ao centro do universo social, digamos. Você faz também uma crítica às explicações para o fracasso das revoluções do século 20, que sempre vêm coladas aos conceitos de ideologia, hegemonia ou falsa consciência. Poderia explicar isso? Bom, o problema com a ideia de falsa consciência ou hegemonia é que sugere a ideia de que há alguém que tenha a consciência que não seja falsa. E que, portanto, seria responsabilidade dessa pessoa de ensinar os outros e mostrar-lhes o caminho. Isso me parece absurdo e catastrófico sob o ponto de vista político. Se pensarmos não em termos de consciência correta ou falsa, mas em termos de fetichização, a ideia é que as formas com as quais existem as relações sociais no capitalismo vão gerando certas aparências, certas ilusões reais e todos estamos vivendo dentro disso. Todos estamos dentro desse mundo fetichizado, ao mesmo tempo em que o estamos criticando, teoricamente ou na prática. E a ideia de que poderia haver pessoas que existam acima dessa fetichização simplesmente não faz sentido. Creio que temos que começar reconhecendo o que existe já, então não é questão de construir o partido, construir algo que não existe. Eu creio que há que se começar dizendo que realmente ser revolucionário e anticapitalista é a coisa mais comum do mundo, todos somos isso de alguma forma. É questão de ir pensando em como podemos promover a confluência e o reconhecimento mútuo dessas rebeldias. Críticos de seu livro Mudar o mundo sem tomar o poder dizem que é anti-histórico ou a-histórico. Qual é a sua resposta a essas críticas? Me parece que a crítica se faz de diferentes formas. Às vezes, sobretudo do lado trotskista, diz que não, que há que se entender o fracasso das revoluções do século XX em termos de stalinismo ou em termos de direção política, das características especiais de cada caso. Isso me parece equivocado, não é a história realmente, é como a construção de uma forma de não pensar. Um segundo ponto seria que há que se entender a revolução não como a realização da História e sim como rompimento da História; existe esta tradição que diz que a História está do nosso lado, vai nos levar ao comunismo, me parece que não é assim, realmente a História nos esta levando é para a aniquilação total, então o problema é como para-la. Há uma citação de Walter Benjamin onde março 2011

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ele diz basicamente a ideia de que estamos no trem da História, e o problema não é como chegar na estação e sim como puxar o freio, para que ele pare e o deixemos. E em terceiro lugar, talvez eu comparta um pouco a crítica, no sentido de que sim é importante localizar historicamente esta ideia de mudar o mundo sem tomar o poder, entender que o conceito de poder era parte de uma constelação histórica na qual a luta anticapitalista estava dominada pelo trabalho abstrato, ou seja, o trabalho alienado ou assalariado. E o conceito dominante era que a luta anticapitalista era a luta do trabalho contra o capital. Creio que este conceito está em crise, e que está surgindo outro conceito da luta anticapitalista, que já não está centrado na tomada do poder e não está centrado na ideia da luta do trabalho contra o capital e sim na de que a luta anticapitalista é necessariamente a luta contra o trabalho, e portanto contra o capital, contra o trabalho abstrato alienado. E contra, portanto, todo esse mundo de fetichizacão que surge da centralidade do trabalho alienado. O argumento de Crack Capitalism é que esse movimento das fendas deve ser entendido como a rebeldia, como a revolta do fazer – ou trabalho concreto – contra o trabalho abstrato. Então, realmente, o que todas essas fendas estão dizendo, de formas diferentes, é que o movimento é contra o trabalho abstrato e alienado, um movimento por outro tipo de atividade aqui e agora, e não somente depois da revolução.

Mesmo que a luta do trabalho contra o capital se encerre dentro do capitalismo e portanto não traga em si a resposta ou a revolução, acredita que essas lutas podem ser consideradas também fendas? Eu acredito que todas as lutas são contraditórias. A luta por melhores condições de trabalho pode ser, ou é normalmente, ao mesmo um tempo uma luta por melhores condições e uma luta contra as condições existentes, uma luta de gente que diz “somos mais que trabalhadores, somos humanos, queremos respeito por nossa dignidade”. Então a luta está transbordando sempre os limites. Uma das características do capitalismo é sua capacidade de transformar tudo em mercadoria, inclusive suas críticas. Isso certamente é um risco para as fendas, como elas podem escapar a essa incorporação ao sistema? Eu acho que essa é uma luta constante, se vemos todas as experiências de fendas, todos os movimentos autônomos, todos os protestos que todo o tempo estão buscando formas de não se deixarem reintegrar-se ao sistema. Não há uma formula mágica. Para mim duas coisas: em primeiro a negatividade para mim é muito importante, há que se pensar todo o tempo “bom, começamos com esse grito contra o mundo existente”, realmente um “não!”, e há que ter isso presente todo o tempo. A outra coisa é que há que se movimentar todo o tempo, ir se movendo e se mudando todo o tempo. O capital é um processo que corre atrás das rebeldias, por isso elas têm que ser mais rápidas do que ele, inventando novas formas de organizar-se, de expressar-se.

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de outra forma, me parece que as duas tendências ainda existem. Mas no caso cubano realmente é o Estado que domina. Suponho que a política de monólogo também se expressa no número de horas de monólogo dos líderes políticos...

E como você vê Cuba, acredita que também é uma revolução que fracassou? Cuba é a pergunta que sempre trato de evitar, pois é um símbolo tão importante na América Latina e obviamente não é a União Soviética, não é China, não é a mesma coisa. Eu creio que todas as revoluções são processos contraditórios, sempre há uma tensão entre a revolução como movimento de auto-organização e autodeterminação por um lado e um movimento de gente que quer mudar o mundo e a sociedade em benefício de outros, por outro lado. Se pensamos na revolução como movimento de autodeterminação isso leva a formas de organização autodeterminantes, como assembleias, conselhos etc. Se pensamos na revolução como movimento em benefício de outros, então isso leva a forma estatal. São diferentes formas de política, por um lado seria uma política de diálogo, uma política anti-verticalista, por outro uma política do monólogo, verticalista. E o intento de mudar o mundo em benefício de outros pode levar a benefícios reais e concretos para muita gente, mas termina sendo uma forma de organização que exclui essas pessoas. Eu creio que em todas as revoluções há um conflito entre essas duas perspectivas, no caso da revolução russa está muito claro que a perspectiva estadocêntrica esmagou o movimento conselhista ou soviético muito rapidamente. Acha que é o mesmo caso do que se chama de “processos de cambio” aqui na América Latina, ou seja, as experiências na Bolívia, Equador e Venezuela? Sim, Equador também, mas Bolívia e Venezuela são os exemplos mais importantes, claro. Se vemos a revolta na Bolívia em dezembro, o gazolinazo, vemos as duas coisas, por um lado a tendência de esmagar o movimento real da revolução e por outro a negação do movimento que todavia existe, dizendo que não, não podem fazer isso. Na Venezuela também,

Como avalia o estágio da luta zapatista no México hoje, depois de mais de quinze anos do levante de 1994? Primeiro está claro que o levante zapatista mudou o mundo. Mudou o mundo para nós que vivemos no México, mas também para a esquerda em todo mundo. Primeiro simplesmente pelo fato de levantaram-se quando parecia não haver mais lugar para se levantar, mas também pelo fato de recolocar toda a questão do significado da revolução. A outra coisa é que me parece que há uma mudança de subjetividade zapatista, depois de 2001. No sentido de que depois dos acordos de San Andrés, em 1996, a campanha e o movimento zapatista tinham um objetivo a aceitação e a implementação destes acordos, e depois de 2001, da Marcha Del Color de La Tierra, depois que vieram à Cidade do México e se mostrou evidente que o governo não ia implementar os acordos, eles disseram, depois de um silencio, “nós que vamos fazê-lo”. Me parece que há uma mudança muito importante, porque deixam para trás a política de demandas, a política de exigências ao governo. Depois de 2001 praticamente dizem não vamos pedir nada, não vamos exigir nada, não tem sentido exigir nada do governo, aprendemos isso, nós é que vamos realizar as mudanças, então vamos assumir a responsabilidade, nós vamos implementar nosso sistema de educação, de saúde, etc. Isso representa uma re-localização do movimento zapatista, na forma que eu o entendo: o centro já não está na comandância e sim nas comunidades, porque são elas que estão implementado estas mudanças. E isso cria a impressão de que realmente não estão fazendo grande coisa, porque simplesmente o estão fazendo, já não estão exigindo, já não estão emitindo comunicados como antes. Mas me parece que ao mesmo tempo o processo real de transformação é bastante profundo, com todas as dificuldades do mundo. A outra campanha procura estimular uma confluência de muitos movimentos no México, me parece que a ideia foi excelente e que teve um pouco de êxito, mas não tanto como queríamos. Muito se diz que um diferencial do movimento zapatista é que seria um movimento que elabora sua própria teoria. Como você analisa a teoria zapatista? Eu diria que não há uma teoria zapatista, creio que através de seus comunicados e através de suas práticas obrigaram as pessoas a repensarem de forma fundamental toda a questão da revolução, toda a questão da teoria, da linguagem, de como expressar-se etc. Isso me parece muito importante. E claro que há certos temas que eles enfatizam muito, que são muito importantes, como o “mandar obedecendo”, o “perguntando caminhamos” etc, mas em termos de dizer qual é a teoria zapatista eu não poderia fazê-lo. Gabriela Moncau e Julio Delmanto são jornalistas.

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Idiozan Matos, campeão nacional e sul-americano de pugilismo, conhecido como Chibata, no projeto Cora-Garrido.

Boxe contra a exclusão Projeto social reintegra marginalizado com esporte e cultura sob os viadutos de São Paulo. Fotos: Jesus Carlos

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uma tarde de janeiro na cidade de São Paulo, alguns homens se exercitam em aparelhos de musculação. Um deles trabalha os braços e ombros. Um outro está sentado, descansando. Há esteiras, bicicletas e um ringue de boxe. Ao atravessar o espaço, no fundo, mais um ringue, uma pista de bicicross e uma de skate. Essa seria uma cena comum de uma academia de ginástica, como a de centenas que existem na capital paulista, se ela não tivesse como cenário um viaduto, o Alcântara Machado, na Radial Leste, bairro da Mooca. Ali funciona o Projeto Cora-Garrido, combinação de projeto social com academia de ginástica e artes marciais, que tem como objetivo “reciclar seres humanos”, como define o ex-pugilista Nilson Garrido, pai da iniciativa, surgida em 2005, no vale do Anhangabaú, no centro da cidade. Por ali, passaram ex-prostitutas, moradores de albergue, crianças e moradores de rua, catadores de material reciclável, ex-presidiários, ex-usuários e usuários de drogas. “E todas as pessoas para as quais a sociedade fazia vistas grossas”, explica o pernambucano de 55 anos. O espaço sob o viaduto, além de ser um local onde qualquer pessoa pode praticar esportes, conta com biblioteca e sala de computação. Tudo é limpo, claro, organizado.

Drogas e esporte Tudo começou quando Garrido trabalhava como segurança no vale do Anhangabaú e viu um menino de rua apanhar da polícia. “Fui falar com ele, que me disse que já tinha me visto na tevê [Garrido já foi dono de academia de boxe na zona leste] e que se eu montasse uma academia para ele e os amigos dele treinarem eles sairiam da rua”. Foi para ajudar os meninos a saírem das ruas e das drogas através do esporte que o homem instalou-se sob a passarela da Câmara Municipal. O menino que o abordou nunca apareceu para treinar. Mas outros vieram. Na falta de equipamentos adequados, ele os improvisou com pneus de caminhão, lata de concreto, mola de caminhão, amortecedor. Os meninos de rua chegavam aos montes. “Eles cheiravam cola e tíner [líquido usado para remoção de tinta] e praticavam pequenos furtos”, conta. “Percebi que o que eles queriam era estar fora da rua, ocupados de alguma coisa para fazer. Eram crianças de sete, oito, nove, dez, onze, doze anos. Eles têm uma energia fora de série, então passavam o dia inteiro ali dando soco nos pneus”. Com o tempo, os furtos passaram a diminuir, “pois, ao invés de cheira-

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rem cola e furtarem, estavam fazendo esportes”, relata. Logo depois, Garrido conheceu Corina Batista de Oliveira, a Cora, funcionária pública do Centro de Vigilância Sanitária que se apaixonou pelo projeto do boxeador e o ajudou a dar continuidade a ele.

Local caótico Em 2006, a Prefeitura de São Paulo solicitou a área para reformas, e ofereceu uma licença para atuarem no Viaduto do Café, na esquina das ruas João Passalacqua e Santo Antônio, no bairro do Bixiga. Para Garrido, o que aconteceu “foi mais para tirar a gente do centro da cidade, pois a imprensa focou muito o espaço. Eu não era do governo e fazia aquilo que era de obrigação do poder público. Eles não estavam fazendo nada. Quiseram me esconder o máximo possível. E me deram um lugar caótico, depravado de todas as formas, com assaltos acontecendo o tempo todo”. Mas, mesmo com as dificuldades, o projeto foi ganhando força e se tornando um local de referência. Os assaltos diminuíram, “o pessoal da região abraçou a ideia, ficou fenomenal. Não tínhamos parâmetro de como as coisas iam acontecer, mas março 2011

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Mulheres e adolescentes aprendem boxe com o professor Mauricio Fernando da Cruz, embaixo do viaduto Alcântara Machado, zona leste de São Paulo.

foi crescendo a cada dia”. Além das aulas de boxe, havia uma biblioteca, sala de computação, aulas de caratê, judô, capoeira. Tudo gratuito. Quem podia, colaborava. Foi nessa época que as doações aumentaram: “alimento, mantimento, roupa, calçado, material para a biblioteca”, conta Garrido.

Campeões Com as doações, os sonhos cresceram, e a dupla Cora-Garrido resolveu montar mais um núcleo do projeto, que hoje funciona na Mooca, na zona leste, com concessão da subprefeitura. “Nós nunca tomamos dinheiro do poder público,

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mas quando de repente começou a chegar muita doação, entramos em acordo para tentar formar uma subsede, que resolvemos chamar de núcleo”, conta. A ideia é que haja um ponto de referência em cada região da cidade. “Queremos ter núcleo zona leste, oeste, norte, sul e central”. Hoje, embora o Viaduto do Café não esteja sob os cuidados da dupla Cora-Garrido, o projeto está presente no viaduto do Glicério, no centro, e numa ponte no bairro de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. Segundo o professor de boxe, muitos dos que passaram pelo projeto de “reciclagem de seres

humanos” por meio do esporte “voltaram à vida, para suas famílias. Temos muitos testemunhos disso”. No entanto, ainda há muito a ser feito, preocupa-se. “O ano de 2016 está para chegar e tem muito garoto que não vai poder participar das Olimpíadas. Nossa juventude está perdida no crack. Temos que ocupar a mente deles”. Uma das maneiras de fazer isso, seria através do esporte, acredita o professor. A ousadia do projeto e de seus participantes ganhou visibilidade e projeção. Resultou em reportagens, estudos e uma série de televisão com quatro programas, chamada “O Louco dos Viadutos”, exibida pela TV Cultura. Como consequência da iniciativa, também surgiram campeões de boxe, como Jailton de Jesus de Souza, que foi morador de rua e depois frequentador das aulas de boxe de Garrido. “Ele dormia embaixo da carroça de reciclagem, vendia droga e apanhava da polícia. Hoje, é campeão de boxe”, orgulha-se o professor. “Temos que mostrar para o governo como é emergencial cuidar desses jovens”. Mesmo sem ganhar dinheiro com o projeto, Garrido garante que nada paga a “riqueza de pegar o que o ser humano discrimina. É um sacrifício diário”. Como exemplo, aponta motoboys que circulam pelo local durante a entrevista. “Quando viemos para cá, diariamente vinham 30, 40, para tomar droga. Hoje, eles estão ali, numa boa”, diz, dirigindo o olhar a três motoqueiros sentados próximos dos aparelhos da academia. E emenda: “E olha ali, que legal... os garis malhando”, diz, mostrando dois homens com as inconfundíveis roupas laranjas dos limpadores das ruas de São Paulo. “Aqui não tem discriminação, o projeto é universal”, e aponta mais frequentadores da academia: “Olha aquele ali pensando na vida. E tem aquele novo, de camisa branca, que podia estar usando crack agora. E ali está o campeão de boxe. O projeto estende a mão para todas as classes”. O ex-pugilista explica que como o projeto fica aberto 24 horas, há o horário “do povo de rua, do que trabalha de dia e de noite”. Para ele, o trabalho que realizam é também de “reciclagem com foco na relação da sociedade com os viadutos. As pessoas têm medo de passar aqui. Por exemplo, como você se sentiu de fazer matéria embaixo do viaduto?”, perguntou.

Histórias surpreendentes O público que frequenta o local é realmente diverso. Quem está na recepção da academia quando a reportagem chega é o baiano Idiozan “Chibata” Matos, que já foi campeão nacional de boxe na categoria meio médio, além de sul-americano e intercontinental. “Tenho duas irmãs que são meu incentivo maior para treinar. Para várias pessoas que não têm muito estudo como eu, o esporte pode ser a oportunidade de ser alguém. Meu sonho sempre foi ser campeão mundial de boxe”, conta o jovem de 27 anos. Chibata acompanhava o trabalho de Garrido pela internet, mas não tinha imaginado que iria treinar com ele. Quando perdeu o voo para a Bolí-

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via, onde lutaria, foi parar no viaduto, e Garrido o convidou para treinar ali. “Eu também já dormi na rua, mas aqui conheci histórias surpreendentes”. Entre os alunos da academia, está Emy Mboncomateus, nascido em Angola e criado no Congo-Kinshasa. Diariamente, na saída do trabalho, o africano de 30 anos passa pela academia e treina por uma hora e meia. Emy trabalha como faxineiro numa escola religiosa. Quem também treina na academia é Alexander Saragoza, de 32 anos, de família classe média da Mooca. Usuário de drogas, ele conta que está há quatro noites sem dormir. “Namorei uma me-

nina que me ofereceu um pega de crack. Fiquei viciado em uma semana”. Alexander conheceu a academia por intermédio de colega, que treina ali. “Estou aqui para tentar recuperar o tempo perdido. É o caminho... Eu preciso do esporte. Para me livrar da droga é o que eu preciso”, conta. Segundo ele, a academia tem ajudado a “segurar a onda”. Enquanto ele está ali, não utiliza drogas. “Mas já usei hoje”, conta. As crianças do bairro também têm espaço. Maurício Fernando da Cruz, professor de boxe, treina duas vezes por semana para uma turma de quatro adolescentes. “Estou aqui por amor, para

O ex-pugilista Nilson Garrido, coordenador do Projeto Cora-Garrido, levanta a moral de boxeador, enquanto adolescente treina e Chibata faz uma pausa ao lado de seu cachorro.

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proporcionar o bem-estar emocional”, conta Maurício, que começou no boxe em 1975 e esteve por seis anos na Itália e mais seis nos Estados Unidos. “Para mim, dar essas aulas voluntariamente é uma oportunidade para ensinar os meninos. Estamos disponíveis para todos”, conta. Rafael Rodrigues Cavalcante, de 14 anos, conta que está ali porque quer ser lutador de boxe, mas também porque “como batem muito em mim, resolvi bater de volta”. Já Ítalo dos Santos, que treina há uma semana, afirma que “é feio aprender lutar para bater nos colegas”, mas conta que quer ser lutador de boxe. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br

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Débora Prado

ALIMENTOS

Paga mais quem tem menos

com a política econômica de juros altos e que prioriza as exportações no setor primário, o povo brasileiro sofre com a alta dos preços dos alimentos.

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úcia é mãe de cinco filhos e trabalha como diarista na cidade de São Paulo. Em sua casa, no Jardim Ângela, vivem sete pessoas – são sete bocas para alimentar e, com isso, um terço de seu salário é gasto nas refeições diárias. Ela é uma entre os milhares de brasileiros que sofrem diretamente o impacto do aumento de preço dos alimentos, consequência de uma política econômica escolhida por poucos para beneficiar pouquíssimos, mas que afeta muita gente. “Estamos gastando bem mais e comendo menos, e isso só com o básico mesmo. Tá tudo subindo, tomate, laranja, ovo, açúcar. Carne nem se fala, começou a subir e não baixa mais, até a salsicha tá muito cara”, protesta Lúcia. A saída encontrada por ela é reduzir a quantidade para absorver o aumento de preços: “Tô reduzindo as compras lá em casa. Às vezes fazia uma coisinha diferente pra gente comer a noite, mas desisti, troquei a janta por um lanche.” O que Lúcia sentiu no dia a dia foi registrado nas estatísticas econômicas. Segundo os dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), em 2010, o índice geral registrou alta de 6,47%, enquanto o de alimentos subiu 10,42%. O economista Guilherme Delgado explica que essa conjuntura é fruto da política econômica dos últimos 10 anos. “Nós temos um quadro de condições que favorecem a introdução e assimilação de pressões externas sobre os preços no mercado interno. Não é um problema causado por chuvas sazonais ou por conta de um fator isolado. Esse quadro tem relação com a inserção externa da economia brasileira, que se tornou uma grande exportadora de matérias-primas, produtos alimentares, e produtos agroindustriais conexos nesse período”, explica.

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Os dados levantados pelo economista, considerando o período de 2000/2002 a 2010, mostram que as exportações totais do Brasil subiram de uma média de US$ 57,9 bilhões para US$ 200 bilhões. Este salto foi acompanhado pela crescente participação dos produtos primários nos embarques, passando de cerca de 40% da pauta de exportações para aproximadamente 60% no ano passado. Se, por um lado, o Brasil se especializou na exportação de primários, por outro, a economia mundial se torna cada dia mais demandante de matérias-primas e alimentos, principalmente pela vertente asiática, em países como a Índia e a China. Neste cenário, o Brasil tem transferido para o mercado interno as pressões inflacionárias dos mercados agrícolas mundiais com um agravante: o setor também sofre pressões de ações especulativas nos mercados financeiros.

“A inserção primária exportadora do Brasil, principalmente de commodities, e o aumento da demanda mundial são dois fatores de pressão sobre os preços. E, em terceiro lugar, tem um fator que agora está mais evidente: as commodities também participam de um processo de especulação nos mercados financeiros mundiais, principalmente quando há forte tendência de valorização dos preços pela escassez. E a existência de mercados organizados de commodities faz com que essa escassez se torne um problema mundial”, diz o economista. Commodity, em inglês, significa mercadoria e foi o nome adotado para as transações de produtos de origem primária nas bolsas de mercadorias mundiais, num processo mais ou menos parecido com a compra e venda de ações. O economista Cláudio Dedecca, do Instituto de Economia da Unicamp, lembra que o valor das commodities tem tido um comportamento ascendente, seja em decorrência da ação especulativa, seja pela forte demanda de alguns países por alimentos. “E a alta das commodities tem sido progressivamente transmitida para o mercado interno”, destaca.

QuEM tEM MENos O resultado deste cenário econômico brasileiro e mundial é que, embora o Brasil seja um grande produtor de produtos primários e alimentares, o preço da comida está cada dia mais caro. E, entre a população mais pobre, o aumento é ainda mais sentido, porque o gasto com a alimentação representa uma parcela maior do orçamento. Cláudio Dedecca explica que a inflação é sempre muito ruim para quem ganha menos, já que, para quem ganha muito, boa parte da renda não se traduz em consumo básico, mas em consumo

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de luxo ou em poupança e aplicações financeiras. “Quem usa a renda para consumo corrente é quem mais sofre, porque não tem mecanismo de escape. Então, os pobres sofrem mais que os ricos, que, além de gastar menos com isso, são ainda protegidos pelo aumento da remuneração em suas aplicações financeiras com a alta taxa de juros brasileira”, avalia. A economista Cornélia Nogueira Porto é supervisora da pesquisa de preços do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e responsável pelo Índice do Custo de Vida (ICV), calculado na cidade de São Paulo. Segundo ela, os dados do indicador mostram que a alimentação pesa realmente mais para os mais pobres: para o estrato da população que corresponde à estrutura de gastos de 1/3 das famílias mais pobres (renda média de R$ 377,49 em janeiro), a alimentação em casa corresponde a 38% do orçamento, enquanto para o extrato da parcela com maior renda (renda média de R$ 2.792,90), a participação é de 25%. “Esse aumento da alimentação resulta em prejuízo para essas famílias com menor renda”. Em janeiro, o ICV subiu 1,28% e a alimentação ficou 1,17% mais cara. Além de alimentos, o transporte coletivo pesou no orçamento. “O reajuste dos serviços é muito preocupante, precisamos ficar de olho, como o caso do transporte coletivo. O ônibus, metrô e trem aumentaram acima da inflação e isso prejudicou bastante a população de baixa renda”. Um outro indicador feito pelo Dieese – o cálculo do preço da cesta básica nacional - mostra que o País todo sofreu com a alta dos alimentos. No mês de janeiro, os preços dos produtos alimentícios essenciais subiram em 14 das 17 capitais onde a Pesquisa Nacional da Cesta Básica é realizada. Em, São Paulo, por exemplo, a cesta teve custo de R$ 261,25, ou seja, quase metade do valor do salário mínimo nacional. Isto

significa que, para comprar os alimentos essenciais, um trabalhador que ganha salário mínimo precisou cumprir, em janeiro, 95 horas e 3 minutos de jornada para pagar a cesta. Em janeiro do ano passado, a cesta demandava menos do trabalhador: correspondia a 86 horas e 48 minutos de trabalho. Neste cenário, a forte desigualdade brasileira gera um efeito perverso. A população mais pobre não só sofre mais com a inflação, como a distribuição desigual de renda corrobora com a curva crescente dos preços. Guilherme Delgado explica que, com a distribuição desigual de renda e o real valorizado, cresce as importações de bens para atender à demanda das camadas com maior renda. Este movimento pressiona as importações que, por sua vez, pressiona a Conta Corrente. E o setor primário-exportador foi eleito para tentar evitar o déficit da Conta Corrente brasileira – o resultado final das entradas e saídas de capital pelo comércio de bens e serviços, e pagamentos de transferência. “Este setor foi escolhido pelo governo como fonte de fechamento da Conta Corrente. Então, as pressões externas entram aqui com maior virulência, porque o País precisa exportar muito para fechar a conta. E, ainda assim, não consegue, o déficit voltou e com a tendência de se tornar explosivo na medida em que a economia cresce”, alerta. Ao mesmo tempo, as camadas de renda mais baixa não tem dinamismo para absorver as pressões no mercado interno, dada a má distribuição dos louros quando a economia cresce.

Juros altos A principal resposta do governo para combater a inflação nas últimas décadas tem sido o aumento da taxa básica de juros (Selic) pelo Banco Central. A medida, entretanto, não resolve o problema, pelo contrário, agrava. Os teóri-

Segurança alimentar em risco? O desenvolvimento desigual da produção agrícola nas últimas décadas também tem gerado uma preocupação sobre a segurança alimentar. O alimento não só está mais caro, como também não é acessível para grande parte da população mundial. De acordo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), com base em dados coletados entre 2004 e 2006, cerca de três bilhões de pessoas são privadas de alimentos no mundo, dois bilhões sofrem de má nutrição, 872 milhões passam fome na maior parte do ano e nove milhões efetivamente morrem por inanição a cada ano. A concentração no campo é conhecida inimiga na luta pela justiça social no Brasil. No País do agronegócio, 2,8% das propriedades rurais são latifúndios que dominam mais da metade de extensão territorial agricultável do país (56,7%), segundo os dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), em 2006.

Mas, a concentração no campo não se limita às propriedades. Um levantamento feito Sérgio Porto, da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), mostra que o modelo é altamente concentrado: das 149 milhões de toneladas de grãos na colheita de 2010, 80% é de milho e soja e outros 10% de arroz. Ou seja, apenas 3 produtos dominam a produção brasileira de grãos. A concentração em poucos produtos é acompanhada de uma concentração regional na produção. Isto gera também no Brasil um quadro de insegurança alimentar que pode penalizar a sociedade. Para Cláudio Dedecca, o quadro é preocupante em longo prazo. “Há sinais que ao longo desta década a demanda por alimento no mundo terá um comportamento muito positivo e não há sinais que a produção irá acompanhar a demanda. Então a FAO e outros organismos alertam para a possibilidade de uma crise de alimentos até o final da década”. alerta.

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cos do governo afirmam que os juros mais altos combateriam uma pressão sobre os preços causada pela demanda interna supostamente superexcitada pela economia robusta. Mas, na verdade, quem ganha muito com a taxa de juros alta é o setor financeiro, muito bem remunerado para ações especulativas no País. “Os dados não indicam que a inflação está ligada ao aquecimento da demanda, esse é um argumento oportunista e mal intencionado. Ele é usado para frear valorização do salário mínimo, para não realizar o corte de juros, que servem muito mais para preservação da rentabilidade e controle dos fluxos financeiros”, explica Cláudio Dedecca. Para Guilherme Delgado, os juros altos servem mesmo para atrair capital estrangeiro para o País, gerando um ciclo vicioso: “O governo estimula a entrada de capital e esse capital tem que ser remunerado, porque não vem gratuitamente, ele cobra lucros e dividendos. Aí você aumenta o tamanho do déficit e, para suprir este quadro, a única saída encontrada até agora foi pela exportação de primários, que obviamente não resolve”. Assim, o Estado brasileiro aposta numa fórmula errática. “A equação é atrair capital externo e gerar superávit primário na exportação de mercadorias e serviços, mas esse mecanismo não funciona mais, o próprio déficit em Conta Corrente está aí para comprovar isso. Logicamente, o problema não está no setor primário, é o restante da economia”, destaca Delgado. Entre as medidas para desfazer este nó, o economista indica a limitação da entrada de capital estrangeiro e a sua movimentação, medidas fiscais, já que o capital entra no País com tributação zero, além de uma mudança na política de juros. Claúdio Dedecca avalia que o planejamento agrícola por áreas de produção no território é essencial. Ele explica que a pauta tem se concentrado, com as commodities predominando. Neste cenário, o economista avalia que é preciso pensar em longo prazo e adotar medidas que protejam o mercado interno do comportamento de preços ascendente das commodities. O mapeamento dos produtos mais relevantes no padrão de consumo interno e a regulação da produção podem contribuir neste sentido. “Para reduzir o preço dos alimentos não basta ter terra disponível, também tem que ver a distância dos centros consumidores, porque isso também pressiona os custos. Não adianta ter só cana-de-açúcar no interior de São Paulo, por exemplo, e plantar feijão lá na fronteira com a Bolívia”, complementa Dedecca. Os movimentos sociais do campo – MST, CPT, Via Campesina e outros – defendem, há anos, uma mudança no modelo agrícola brasileiro, baseado na reforma agrária, no investimento da agricultura familiar e na produção de alimentos, com respeito ao meio ambiente e sem o uso de agrotóxicos nocivos à saúde. Débora Prado é jornalista debora.prado@carosamigos.com.br março 2011

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Bárbara Mengardo

Sem Trabalhador maneja as bombonas plásticas produzidas pela Flaskô.

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swaldo da Costa Neto, ou Shaolim, como é conhecido, mostra com empolgação seu local de trabalho, a fábrica Flaskô, localizada em Sumaré, interior de São Paulo. A produção é relativamente simples: a matéria-prima, polietileno, chega ao terreno em pequenos flocos, que são colocados em uma das máquinas que a fábrica possui. Dentro do aparato o material é derretido e moldado, e menos de dois minutos depois estão prontas as bombonas (tambores plásticos), que são retiradas pelos trabalhadores, aparadas e prontas para a venda, sendo utilizadas em geral para armazenamento de produtos químicos e alimentícios. A diferença entre a Flaskô e outras fábricas, entretanto, não está nas linhas de montagem. Nesta fábrica não existem patrões, os trabalhadores não têm seu tempo minuciosamente calculado e a jornada de trabalho é de 30 horas semanais. Lá, os índices de acidentes são ínfimos, e os funcionários recebem acima do piso da categoria. Estas são apenas algumas das mudanças feitas na fábrica após junho de 2003, quando os trabalhadores, cansados de não receberem seus salários e terem seus direitos ignorados, tomaram a decisão de ocupar a fábrica, e gerirem coletivamente a produção. Mas antes de contar como uma pequena fábrica conseguiu derrubar um dos pilares sobre o qual se ergue o capitalismo - o patrão -, é pre-

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Única no Brasil, a fábrica Flaskô foi ocupada em 2003, e desde então funciona sob a gestão dos trabalhadores. Fotos: Jesus Carlos

patrão ciso retomar a história de duas outras fábricas, a Cipla e a Interfibra, contar sobre o Movimento das Fábricas Ocupadas e esclarecer que apesar de no Brasil a Flaskô ser a única fábrica sob controle dos trabalhadores, existem outras experiências como essa brotando em toda a América Latina.

História

A primeira parte da história da Flaskô é muito similar à de muitas outras fábricas brasileiras. Durante sua gestão patronal, fazia parte do grupo econômico Hansen Batschauer, que colecionava processos pelo não pagamento de salários e direitos trabalhistas, fraudes e irregularidades “Na época da abertura econômica, os sócios do grupo foram os primeiros empresários presos, por má gestão, fraude” afirma Alexandre Mandl, advogado e Membro da comissão de fábrica da Flaskô. Os trabalhadores de todas as fábricas do grupo sofriam os efeitos das más gestões: salários atrasados, que vinham em pequenas parcelas, de R$ 30, 50 ao longo das semanas, demissões em massa, cortes de energia, falta de matéria-prima. A primeira reação veio por meio das fábricas Cipla, do ramo plástico, e Interfibra, que produz tubulações, ambas localizadas em Joinville, Santa Catarina. Em março de 2002, elas iniciam greve, que foram duramente reprimidas. Em outubro, mais uma greve, e, desta vez, o final é diferente.

Os trabalhadores ocuparam as fábricas, passando a gerir a produção. As máquinas continuaram em funcionamento, mas quem tomava as decisões eram os trabalhadores, coletivamente. Na época, outro fator impulsionou a luta dos trabalhadores. As pesquisas apontavam que Lula ia ganhar as eleições, um ex-operário iria assumir a presidência do país. Ainda no mês de outubro, Lula vai a um comício em Florianópolis, capital de Santa Catarina, e uma comissão das duas fábricas entrega a ele uma carta pedindo ajuda aos trabalhadores. A resposta do futuro presidente é que, caso fosse eleito, ocorreria uma reunião.

Ocupação

Na Flaskô, a precarização continuava como regra, mas alguns trabalhadores começavam a tomar conhecimento do que ocorrera em Joinville. É convocada uma reunião entre funcionários das três fábricas, e em junho de 2003 dois trabalhadores da Flaskô vão ao encontro com Lula, juntamente a uma comissão da Cipla e Interfibra. No dia seguinte, 12 de junho, a Flaskô é ocupada. Na primeira assembleia é traçada a nova organização da fábrica, seguida até hoje. É formado um conselho de fábrica, composto por 15 trabalhadores, e instauradas assembleias mensais, que tem o poder de revogar qualquer decisão do conselho.

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Diminui-se também a jornada de trabalho, que passou de 44 para 40 horas semanais, livrando os trabalhadores de virem à fábrica aos sábados. Alguns anos depois, foi fixada a jornada de 30 horas semanais, que correspondem a seis horas diárias. A mudança, ao contrário do que prega o empresariado burguês, não parou a produção, mas aumentou o rendimento. Shaolim explica: “Todo mundo trabalha mais feliz, nos damos mais com seis horas do que com oito”. Alexandre conta que a nova forma de gestão da fábrica possibilitou uma melhor organização da produção: “Antes, entre a compra de material e a venda, por exemplo, tinha um tempo ocioso”. Segundo ele, o rendimento na época da ocupação era de 30 mil por mês, passando para um milhão em apenas quatro meses de gestão operária. A nova jornada diminuiu o número de acidentes, e a gestão dos trabalhadores eliminou a vigilância e contabilização do tempo imposta pelos patrões. “Nós temos mais liberdade e autonomia, porque nas empresas patronais tem os patrões olhando e pensando ‘eu quero ter lucro’. Aqui a gente pensa nos pais e mães de família, ninguém pensa em ter iate” diz Shaolim. No momento da ocupação, três quartos do terreno no qual a fábrica está localizada estava abandonado, mas em 2005 a gestão dos trabalhadores deu utilidade a este espaço, formando uma vila operária e um centro de cultura e esportes. Atualmente, 350 famílias moram na Vila Operária Popular, e um galpão abandonado foi transformado na Fábrica de Esportes e Cultura, que promove aulas de balé, teatro, capoeira, jazz e outros, além de realizar debates, palestras e mostras de cinema, tudo gratuitamente.

Reação

Aos poucos, as fábricas ocupadas foram mostrando à sociedade que é possível gerir uma produção sem um patrão, e mais, que em muitos casos os trabalhadores estavam fazendo isto melhor do que nas gestões patronais Destas experiências nasceu o Movimento Fábricas Ocupadas, que chegou a atuar em 35 fá-

bricas na primeira década dos anos 2000. Pedro Santinho, coordenador do Conselho de Fábrica da Flaskô, conta sobre esse começo: “Em novembro de 2003, decidimos fazer uma Conferência Nacional em Defesa do Emprego e dos Direitos, da Reforma Agrária e do Parque Fabril. Neste período, tinha acabado de ser ocupadas cinco fábricas. Então, vários trabalhadores que nem tinham ocupado a empresa, por contatos diversos, iam ao movimento”. As experiências de ocupação começaram a se reproduzir e serem bem sucedidas em todo o país, o que causou temor e irritação aos defensores do sistema econômico vigente. Aliados à mídia e à polícia, os patrões começaram a boicotar as experiências de fábricas ocupadas. Houve reintegrações de posse e demissões em massa, e em todos os lugares em que retornava a gestão patronal, todas as conquistas eram revertidas. Na Cipla, Interfibra e Flaskô, a justificativa para uma ação da justiça foram as dívidas. Nas três fábricas, os trabalhadores herdaram um grande passivo, principalmente com o Estado, por meio de impostos não pagos e pendências com ex e atuais funcionários. Entretanto, ao contrário do que argumentava a mídia e os patrões, os trabalhadores nunca se negaram a pagar essa dívida, apenas queriam que o governo desse condições para que isso fosse feito: “Quando nós fizemos a reunião com o Lula, surgiram diversas propostas. No final de 2005, um grupo de trabalho formado por economistas sob a gestão do Carlos Lessa no BNDES fizeram um estudo que defende que o BNDES transforme o débito existente em crédito do Banco” afirma Alexandre. Apesar de ter partido do Presidente, a ideia não seguiu em frente, e, em 2007, a Justiça nomeou um interventor para cuidar das dívidas da Cipla e Interfibra, que com a ajuda de 150 policiais militares acabou com a gestão dos trabalhadores no dia 31 de maio daquele ano. O mesmo interventor tenta ir à Flaskô, mas como a decisão foi expedida em Santa Catarina, os trabalhadores não o deixam entrar. Como resposta, ele manda um ofício para a Companhia de Energia falando que ele respondia pela Flaskô,

À direita Pedro Santinho, coordenador do Conselho de Fábrica, e à esquerda, Shaolim mostra a fábrica.

não ia pagar a dívida que a fábrica tinha com a empresa, ia suspender a produção e a energia poderia ser cortada. A fábrica ficou 45 dias sem luz. “Em agosto de 2007, nós recomeçamos com 52 trabalhadores praticamente do zero, porque isso danificou muitas máquinas. O interventor tinha enviado uma nota a todos os clientes da fábrica dizendo que a Flaskô estava sob a gestão de comunistas, então a gente teve que ir até os clientes falando que precisávamos voltar a vender”, explica Alexandre.

Vizinhança

Atualmente, resta pouco do que foi conquistado na primeira década dos anos 2000. A Cipla e Interfibra se encontram sob intervenção, e lutam na justiça para retomar a produção sob controle dos trabalhadores. Muitas fábricas sofreram reintegrações de posse, fecharam ou mudaram de ramo, algumas viraram cooperativas e outras funcionam em cogestão com o patrão, que é submetido ao conselho de fábrica. Na Flaskô, que vem lentamente se recuperando do corte de energia e outros boicotes, os trabalhadores lutam na justiça para que a área da fábrica seja declarada de interesse social para fins de desapropriação, pois cumpre seu papel social junto à sociedade sob a forma de moradias populares e espaços de lazer e cultura. O terreno da fábrica passaria a ser propriedade do Estado, mas a gestão continuaria nas mãos dos trabalhadores, que teriam legitimidade para manter a produção. Quando os trabalhadores assumiram a fábrica, se depararam com uma dívida trabalhista de R$ 5 milhões, dos quais já conseguiram pagar 180 mil através de um acordo com o Ministério do Trabalho, que recebe 1% do faturamento mensal da fábrica e repassa para os ex ou atuais trabalhadores. O rendimento da Flaskô voltou a subir, e hoje está em torno de R$ 500 mil, mas o montante total da dívida ainda é de R$ 80 milhões. Experiências como a Flaskô não se restringem ao Brasil, e é possível ver panoramas mais animadores em outros países da América Latina. “Que nós conhecemos, na Argentina existem quase 200 fábricas sob controle dos trabalhadores, desde fábricas de cerâmica a hotéis, farmácias, empresas de limpeza e saneamento” afirma Pedro. Ele diz ainda que o Movimento Fábricas Ocupadas tem conhecimento de minas ocupadas na Bolívia e ocupações de fábricas no Uruguai, Paraguai, México e Venezuela. Na última, segundo ele, “Hoje está de uma tal forma que não tem mais greve, o pessoal já ocupa a fábrica, seja para continuar com ela ou seja para pressionar o dono”. Com muita dificuldade, a Flaskô vem se mantendo e esperando que por muitos anos Shaolim e muitos outros possam mostrar, com o orgulho, o que conquistaram. “Quando você faz parte de uma caminhada dessas, parece que contamina seu sangue, e ai não tem mais como parar”, afirma o trabalhador. Bárbara Mengardo é jornalista.

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Roney Rodrigues

foto: diogo zambello

Os contrastes da

indústria da CANA

O setor sucroalcooleiro é um dos que mais cresce no país, fechou 2010 com safra recorde, mas abriga as piores condições de trabalho.

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porcelana branca com motivos azuis chega com o café. “Dá licença”, diz Andréia, a secretária, colocando a bandeja de prata sobre a mesa. “Açúcar ou adoçante?”, pergunta “o Doutor”. “Açúcar, por favor”. “Ah bom”, exclama, brincando. “Cada vez que se usa adoçante é uma colher de açúcar que se joga fora. Mas agora eu só posso tomar com adoçante, tenho diabete”. Parece ironia do destino um dos homens que mais produziu açúcar na história do país não poder consumi-lo. O usineiro Cícero Junqueira Franco, ou “o Doutor”, tem os cabelos brancos e ainda mantém o mesmo bigode de sua juventude, agora, claro, já prateado pela idade. Ele é apontado como um dos pais do Proálcool, quando em 1975, juntamente com o engenheiro Lamartine Navarro Júnior e o empresário Maurílio Biagi, encaminhou para o governo um estudo garantindo que o álcool poderia mover a frota nacional, então às voltas com a primeira crise do petróleo. “Hoje, eu estou com mais cara é de avô do Proálcool”. Cícero Junqueira ri solto, tombando o corpo no encosto acolchoado da cadeira. “Mas não é verdade não, é um mito que se criou”, diz se aproximando como quem vai confidenciar algo. “O Proálcool nasceu antes de mim, mas foi engavetado e ficou muito tempo como uma alternativa para a falta de recursos do Brasil. Com o petróleo barato e as facilidades que o Brasil e o mundo tinham de abastecimento, o Proálcool foi esquecido. Nós aproveitamos a experiência do passado para criar um programa que prolongasse o petróleo para as gerações futuras. Então exumamos o Proálcool”. O programa foi baseado em uma forte intervenção do Estado no setor. Por lei, eram defini-

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dos preços, políticas de produção, as áreas e até quem deveria produzir. Tudo isso mediante o fornecimento de subsídios para a produção maciça de álcool. Em troca, o governo militar incentivou a grilagem de terras para o cultivo de cana e fez vista grossa em relação à violação de direitos trabalhistas. “Era uma euforia parecida com a de hoje, só que em outra escala”, relata Cícero Junqueira. “Naquela época o setor era menor e mais contingenciado. Hoje tem uma diferença fundamental: a iniciativa privada está totalmente liberada da intervenção do Estado. Isso cria um horizonte para o empresário investir no setor e desenvolve-lo”. E o setor vive eufórico frente a esse “horizonte” neoliberal. Atualmente, o governo só intervém no mercado por meio de medidas regulatórias de adição de álcool à gasolina. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção nacional de cana-de-açúcar moída pela indústria sucroalcooleira em 2010 chegou a 625 milhões de toneladas, uma safra recorde, com aumento de 4% em comparação ao ano passado. O Brasil tem o segundo maior programa de álcool do mundo, atrás apenas dos EUA. O mundo, que sempre exportou açúcar brasileiro, agora está de olho no álcool, ao mesmo tempo em que também faz investimentos pesados na área, como a extração do etanol a partir da beterraba na Europa e do milho nos EUA. O que promove a retomada destes projetos engavetados durante anos são as previsões alarmistas para o preço do petróleo nas próximas décadas “Apesar das descobertas de reservas de petróleo, o Brasil continua sendo uma economia energeticamente diversificada. Estamos, claramente, entrando na era pós-petróleo”, afiança Marcos Jank, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica).

Denúncia na OMC A Unica representa mais de 123 companhias e tem papel chave na articulação e reivindicação do setor junto ao governo e a demais setores da sociedade. Apesar de hoje o agrocombustível destinar-se basicamente ao mercado interno e o açúcar dominar as exportações, a Unica prevê um crescimento de exportações de etanol e prepara um pedido de litígio na Organização Mundial do Comércio contra dos EUA, onde os lobbies agrícolas são fortes. Roberto Rodrigues foi o primeiro Ministro da Agricultura do governo Lula e comandou a retomada do projeto do agrocombustível brasileiro. Hoje é presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e acredita ser positivo contestar as tarifas americanas. “É muito relevante [o pedido de litígio na OMC] pensando-se no futuro; está criando-se um mercado lá fora para, quando tiver excedentes, não haver um sufoco para o setor”. Cid Caldas, diretor de Açúcar e Álcool do Ministério da Agricultura, aposta na entrada de 3 milhões de veículos novos em 2011, sendo 80% flexfuel, o que abre margem para um gigantesco mercado interno. “Nós temos um potencial muito grande para o etanol que está sendo produzido aqui no Brasil”. “Hoje, o grande desafio do setor é a inclusão do álcool como commodity internacional. Praticamente, o mercado interno, nós já conquistamos e estamos bastante consolidados. Devemos desenvolver combustíveis renováveis que garantam energia no futuro. Esse é o grande desafio, não do setor, mas do mundo”, afirma Junqueira. Com tamanha velocidade de crescimento, é inevitável que algumas das contradições nas cadeias produtivas de açúcar e álcool também ganhem evidência. Uma delas diz respei-

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to à responsabilidade civil e criminal que a usina assume em relação aos seus fornecedores de cana bruta. Noutro front, o Ministério do Trabalho registra uma série de denúncias e flagrantes de trabalho degradante em lavouras de cana-de-açúcar, em lugares tão improváveis como o rico interior do Estado de São Paulo. “É realmente um trabalho penoso, mas não é degradante”, garante Junqueira. “Exige certa habilidade do trabalhador no corte de cana. As outras atividades são normais na área rural. A de colheita é realmente penosa, mas é muito bem remunerada”.

A maratona “Óia, Santo, óia, ele quer saber como é cortar cana, fala pra ele, fala”. Valdevino de Oliveira solta uma gargalhada que retumba no barracão que divide com outros boias-frias. Ele tem 38 anos. A pele é curtida pelo sol da lavoura todo ano, quando Valdevino vem de Floriano, no Piauí, para trabalhar nos canaviais paulistas. “A única coisa boa mesmo é o dinheiro, mas se achegue que eu vou contar mais”. O trabalho nos canaviais é repetitivo e exaustivo. A cada minuto, o boia-fria é submetido a 17 flexões de tronco e aplica 54 golpes de facão e leva nas mãos cerca de15 kg, por uma distância de 1,5 a 3 metros, até completar as 12 toneladas cortadas. Ao todo, são nove quilômetros trilhados diariamente. Os joelhos ficam o tempo todo semiflexionados, o que ocasiona extensão da coluna cervical. Perde-se 8 litros de água e a hidratação não é suficiente. Também não dispõem de local adequado para as refeições, que são acondicionadas e servidas em recipientes improvisados. Muitas vezes, o alimento fermenta ou azeda, porém, como o trabalho consome muita energia, eles acabam consumindo a comida mesmo estragada. Isso não é Valdevino quem diz, mas um estudo feito pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, tomando como base as inspeções coordenadas pela Vigilância Sanitária Estadual. Apesar do que diz Cícero Junqueira, o estudo constatou que as condições de trabalho no setor sucroalcooleiro são, geralmente, precárias, “colocando em risco a saúde dos trabalhadores”. “É muito pesado, o corpo é infligido. O serviço puxa e tem muita gente que passa mal, chega inté cair”, diz Valdevino. Seu corpo se gastura só com as lembranças: o renovado trabalho a cada safra, um castigo bronco. “É uma fraqueza que dá, a gente perde as forças e não dá conta de caminhar. Baixa a pressão e aí tem que levar pra Santa Casa. Hoje a usina tá dando soro e energético na lavoura para dar mais sustento pra gente”. “Tem gente que corta uns 800 metros, dá umas 28 toneladas pra mais. Dois vagões cheios de cana talvez não trazem tudo. Por isso que o peão fica todo esmorecido”, conta Santo Gomes de Oliveira, 39, que veio de Missões, Minas Gerais. Ele está sentado em um banquinho improvisado, tem uma tipoia imobilizando o braço direito e uma das pernas perdeu o movimento, devido

Santo Gomes de Oliveira, migrante de Missões (MG) sofreu derrame na perna.

a um derrame. “Mas esmorecer não pode...”. “Um velocista precisa de explosão, já um fundista precisa de cadência. Eu chamo os cortadores de cana de fundistas porque eles precisam de uma cadência impenitente para cortar as 12 toneladas diárias”, diz Francisco Alves, do Departamento de Engenharia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que pesquisa há anos as condições de trabalho no setor sucroalcooleiro. Essa maratona diária tras uma série de prejuízos ao boia-fria, como mal-estar e dores em todo o corpo, provocados pela sobrecarga de trabalho, perda de líquido, câimbras intensas associadas ao vômito, além de doenças adquiridas em médio prazo, como hérnia de disco e de esôfago, acidente vascular cerebral, câncer de pele e desequilíbrio nos indicadores de urina em decorrência da fuligem da cana, que contém agrotóxicos. São reclamações frequentes. Além disso, os locais onde residem apresentam constantes irregularidades: espaço pequeno, instalações hidráulicas e elétricas deterioradas, colchões, banheiros e chuveiros insuficientes e de péssima qualidade, instalação de fogões e armários em locais impróprios. Em algumas pensões, se amontoam mais de 30 peões. Muitos têm sido os relatos de boias-frias que, para darem conta do trabalho, utilizam crack ou maconha. Dizem que o serviço rende mais, que adquirem uma maciça disposição para encarar o podão. Pergunto sobre essas práticas a Valdevino e Santo. Há uma espécie de receio, encoberto, vago. “Eu vejo no serviço. Muitos usam droga mesmo, que é pra ficar mais disposto, que o corpo fica melhor. Mas eu só sei de ver”, esclarece Valdevino. “É, eles usam pra cortar mais metragem de cana, pra ganhar mais, porque é duro de aguentar. Tem gente que tem mais de 30 safras, mas conforme vem chegando a idade, fica cada vez mais difícil. Não é Valdevino?”, pergunta Santo Gomes.

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“É... Trabalha até morrer, até num dá mais pra registrar”, diz o outro. Morrer. Um torpor toma conta de Santo Gomes. Ele ressente: “Óia, o derrame mesmo que deu em mim foi por causa disso. O médico disse que foi esforço demais. Eu trabalhava até onde aguentava. Meio dia era pouco. Fui indo nessa toada e nem comia não. Podia ter morrido”. Valdevino balança a cabeça, compassivo. “O serviço é isso aí, tem que alimentar bem. É que antes não tinha hora de almoço nem de merenda. Agora tá bom, tem horário pra comer”, diz. “Mas o mais ruim mesmo é que a usina nunca paga o nosso direito certo. Eles descontam demais da gente. Eu tiro bruto 1.100 reais e no final das conta dá só uns 600, 700”.

Direitos “E os sindicatos ajudam vocês nas reivindicações?”, pergunto. Valdevino solta outra gargalhada e nem precisa mais responder. “Os sindicatos atuam em conjunto mais com os empresários que propriamente com os trabalhadores, salvo raras exceções. A Feiraesp, que é a Federação dos Trabalhadores Assalariados do Estado de São Paulo, tem várias parcerias com os donos de empresa”, relata a pesquisadora Maria Aparecida de Moraes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), autora de diversos estudos sobre a exploração do trabalho em regiões agrícolas. Devido à ineficácia dos sindicatos, os trabalhadores têm medo de fazer reivindicações por melhores salários e condições de trabalho. Josivan Barbosa de Souza, 32, tem “cinco safras nas costas”, como ele mesmo diz, e conta que ano passado, em Pontal, SP, eles estavam brigando por 10% de reajuste salarial. Conseguiram apenas 7% e todos que fizeram frente nas reuniões com os representantes dos usineiros foram demitidos. março 2011

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Vitor Donizete Ribeiro é assentado na região.

“Manda o cara embora mesmo, aí no ano que vem já não registra mais. Fica marcado lá na usina e na região todinha que o cara não serve pra serviço. No final das contas, quem sempre sai ganhando é o usineiro”. Roberto Rodrigues não concorda. “Pelos relatos de decisões trabalhistas que recebo, elas são permanentemente contra o empregador, mesmo que ele tenha razão. Então é preciso rever isso tudo e flexibilizar a legislação trabalhista”. Muitas mortes entre os cortadores de cana foram, supostamente, por exaustão. Dejavan Dantas Feitosa, 25, também de São Gonçalo, conta que “presenciou uma” em sua segunda safra em São Paulo, que o fez afrouxar e querer voltar correndo pra casa. “Só sei que deu tontura num dia, no outro dia ele foi trabalhar e morreu. É o corte da cana. Mas a gente veio aqui pra trabalhar; se não trabalhar, não ganha”. “É perigoso, eu já senti uns sopro, aqui, ó”, interrompe José Sales Nascimento, 28, estufando os olhos e apontando o coração. “Mas tem que saber a hora de parar, de maneirar a mão”. Maria Azanha coordena o Grupo de Extensão em Mercado de Trabalho (Gemt), vinculado à Universidade de São Paulo (USP), campus de Piracicaba (Esalq). Em uma de suas pesquisas, viajou ao Nordeste para investigar a situação do boia-fria. “Você sabe quantos casos de morte foram registrados?”, pergunta. “Mais de 20, segundo a Pastoral do Migrante”. “Isso é uma parcela ínfima da produção. Não quero dizer que eles deveriam morrer, não é algo que pode acontecer no sistema produtivo, mas é uma parcela ínfima e não há nenhuma prova de que essas mortes são motivadas pelo

sistema de pagamento por produtividade”. “Se perguntar para os trabalhadores se eles querem salário fixo ou por produção, vai ver que eles desejam por produção, para ganhar mais. Eles querem a diferenciação e ninguém é obrigado a cortar uma determinada quantidade”, diz Jank. “Defendemos uma simplificação das questões degradantes, o que deve ser melhor pesquisado no Brasil”. A produtividade deu um salto nos anos 1990. A pressão patronal fez o assalariado cortar mais de 10 toneladas. Hoje a média são 12, o dobro dos anos 80, o quádruplo dos anos 50. Ao mesmo tempo, os salários foram minguando. Segundo Alves, o setor dobrou a produtividade desde a década de 80 e reduziu os salários em 50%. “O setor sucroalcooleiro sofre de esquizofrenia crônica, um elemento fantástico dessa modernidade: de um lado altos lucros e o que há de mais moderno no processo de produção, de outro, atraso nas relações de trabalho, com aumento da produtividade e redução de salários, que é o melhor dos mundos capitalistas”, diz. Josivan, sentado em seu beliche, come diretamente da panela. Arroz, feijão, salsicha e, claro, farinha. Pergunto se, com as mudanças do setor, ele tem medo de ficar desempregado. “Não, medo não, antes de nós vim pra aqui nós já vivia lá, então medo de que?”, diz. “A gente vem, é o que resta, não só pra mim, mas pra qualquer caboclo de lá é vim pra cá”.

A outra beira A bem dizer, seu João Pereira não esporeava o cavalo, só apertava firme o couro da sela depois de colocar o pelego: tenteava-lhe leve e leve o flanco superior, sem premir, com uma doçura medindo mínimo achego que o animal, ao parecer, sabia e estimava. “O senhor sabe onde eu posso encontrar alguém que trabalha com cana por aqui?”, perguntei. Seu João puxou firme a barrigueira, tragando o palheiro pendurado no canto da boca. “Em todo lugar. Aqui todo mundo trabalha ou trabalhou com cana”, disse. “É o que dá dinheiro. Você viu a terra daqui? Esse sol, a terra ruim. Não dá pra plantar não. Vêm os gatos e leva todo mundo embora”. Pé direito no estribo, montou no cavalo, que ampliava o passo, sem encolher músculo, ocupando a estrada de terra que leva à Comunidade Quilombola Santo Inácio, em Minas Gerais, com sua andadura bem balanceada, muito macia. Era pelo meio do dia no Vale do Jequitinhonha. “A migração para o trabalho nos canaviais é motivada por questões econômicas, eles não têm como garantir a sobrevivência e, por outro

“A gente ganha 800 reais por mês pra cortar todo dia até 15 toneladas de cana. Quem aguenta?” 38

lado, existe uma cultura migratória em busca de uma autonomia e realização pessoal”, diz Moraes. Para ela, essa cultura tende a se reproduzir, pois os trabalhadores voltam com mercadorias de São Paulo, adquirindo grande respeito sobre quem ainda não migrou. Onde se veem os morros azuis depois dos verdes, passando por infinitas reservas de eucalipto, encontro José Mateus de Souza, 44 anos. “Você é paulista? Ribeirão Preto, Araçatuba, Leme, Sertãozinho, Morro Agudo, Orlândia, Pontal, Olímpia, Guariba, conheço tudo essas cidades, já trabalhei em quase todas elas”. Zé Mateus conta as histórias de todos esses anos, imagens vão desfilando em frente a seus olhos, vívidas. Refere-se a histórias, absurdas, vagas, verdadeiras, tudo bem contado: a do cortador que juntou dinheiro e comprou um ônibus e agora é gato; a de um troncudo de Montes Claros que tira uns três mil reais na cana; a dos muitos polígamos que deixam a família no Jequitinhonha e fazem duas, três, quatro outras pelas safras adentro; do trabalhador que ficou sem o jogo nas duas mãos de câimbra e passou fome sem poder se aposentar; a do comércio dentro do comércio, de empreiteiros que vendem crack e maconha para dar mais sustância aos cortadores e melhorar sua porcentagem. “Vêm os empreiteiros, a gente chama de gato, e enchem uns três, quatro ônibus e leva tudo pra São Paulo. Faz uns exames, porque teve muito caso de gente que morreu ou teve problema cortando cana. Em época de safra a cidade fica deserta, quase sem ninguém, só com aposentados e mulheres”. Com um modo simples de achar que tudo remediava, sem amotinamento, sem motivo para se aborrecer fora da conta, Zé Mateus continua: “É trabalho escravo, né? Paga melhor que aqui, mas não paga o tanto que merece. A gente ganha 800 reais por mês pra cortar todo dia 15 toneladas de cana. Quem aguenta? Por isso que eu digo que é escravizado”. “O senhor pensa em mudar de trabalho?” “Rapaz, é o que tem para hoje. Aqui, quando tem trabalho, é na roça e só uma ou duas vezes na semana. Para quem é solteiro dá pra viver até que bem, mas e quem tem família?”, se pergunta. “É uma migração sem migrantes porque na maioria dos casos os trabalhadores vêm para trabalho, mas não ficam aqui ao final da safra. Eles enxergam como um local de passagem, o objetivo é trabalhar, conseguir dinheiro e depois regressar para seus locais de origem”, diz Moraes.

Mares e desertos Adentrar o mundarel de cana é muito bonito. Um princípio de poente paira num esgar de claridade imobilizada. A harmonia – uma harmonia imensa e intimidadora – ronda os olhos, um verde vivo e brilhante, por vezes mais escuro, por outras mais claro, canaviais por toda parte, por todos os hectares e hectares plantados. Cidades brotam como ilhas pelas labirínticas es-

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Constituição de 1988. Isso nos mantém em embate permanente com o setor. Por isso que os promotores são amados pelos usineiros”, ironiza o promotor Goulart. Abro a Constituição da República. O artigo terceiro diz que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são construir uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos. A terra, portanto, deve cumprir uma função social, que é produzir, garantindo o direito do trabalhador e de maneira sustentável, que garanta os objetivos da República. “Isso daria margem para a desapropriação de todos os grandes imóveis rurais dessa região, se tivesse governos com vontade política. Isso não é bandeira partidária, é texto constitucional”, diz Goulart, lembrando que já foi chamado até de Robispierre e “promotor maluco” por defender isso.

As cores do verde “Chega-se à conclusão de que a propriedade dos autores não cumpre função social, portanto, carece de proteção legal”, sentenciou o juiz José Durval Feltrin. A Fazenda da Barra, localizada no município de Ribeirão Preto, era arrendada para a cultura de cana pelo grupo Robeca e foi considerada improdutiva, além de apresentar severa degradação ambiental e inadequação do uso da terra. “Aonde você avistasse aqui era cana. Aquela mata ali, ó, ela ligava com aquela outra mata ciliar e eles tiraram a do meio”, diz Vitor Donizete Ribeiro, o Magrão, um dos assentados na Fazenda da Barra, desde 2004. Tudo é tão recente que muitas coisas ainda carecem de nome e para mencioná-las, Magrão sinaliza com o dedo. Estou na varanda de sua casa, feita de telhado brasilite e finas tábuas. “Aqui em baixo também tinha uma mina que subia até lá em cima, eles arrancaram todinha. Mais pra baixo, ó, tem um córrego e eles desmataram. Eles fizeram vários crimes ambientais”, diz. A região de Ribeirão Preto é a maior produtora de açúcar e álcool do Brasil e, devido às disputas por terra, recebeu a sugestiva alcunha de “Faixa de Gaza brasileira”. “Em Ribeirão as pessoas se matam à foice para comprar cana de açúcar. Quando se restringe áreas para preservação, deixa-se de produzir, deixa o mercado mais afino e aumenta a competitividade” , diz Alexandre Beçak, presidente da Associação Brasileira de Direito de Agronegócio. “Mas o setor sucroalcooleiro não pode querer ser mais realista que o rei, a regu-

Cícero Junqueira Barbosa em seu escritório, em Orlândia.

lamentação tem que ser cumprida, mas obviamente precisa-se discutir sob que legislação o Brasil, de fato, pretende crescer”. Para isso, o setor tem a senadora Kátia Abreu (DEM) e Aldo Rebelo (PCdoB), árduos defensores do agronegócio, além da bancada ruralista que conta com 150 deputados federais. As principais reclamações são o uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos (é o setor da agricultura que mais utiliza), que acarreta danos à população próxima aos canaviais e contamina os lençóis freáticos e as áreas de aquífero. A participação da cultura de cana na dinâmica dos gases estufa e no aumento de internações de crianças e idosos com problemas respiratórios em época de queimadas são outros problemas, como apontam estudos de médicos da USP de Ribeirão Preto. Empresas como a Syngenta, Monsanto, Dupont, Dow, Bayer, BASF em parceria com a Cargill, ADM, Archer Daniel Midland, Bunge, também estão manipulando geneticamente a cana-de-açúcar para que reduza a porcentagem de água e aumente a de sacarose. “Você precisa dar uma lidinha num programa que fizemos chamado Zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar”, aponta, pedagógico, Caldas. “O que é que é isso? Identificamos uma área de 60 milhões de hectares passíveis de expansão da cana-de-açúcar com toda a preservação ambiental, social e econômica. Essa preocupação nós tivemos. Tem um trabalho do professor [Paulo] Saldiva que mostra o quanto o Brasil deixou de gastar em saúde pública com a utilização do etanol”. “Ou ele está desinformado ou quer desinformar. O modelo é insustentável e não tem saída. É um antagonismo: monocultura e campo ecologicamente sustentável”, afirma Goulart. “Por

“A solução é a mudança do sistema de produção, a reorganização da propriedade, reforma agrária e adoção da agroecologia.”

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tradas que perpassam os canaviais. É a região de Ribeirão Preto, a Califórnia brasileira. Segundo o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade), o setor do etanol aparece como um dos mais suscetíveis à concentração por meio de fusões e aquisições. A enorme expansão da cana pelo vasto território brasileiro reforça a produção do Brasil na divisão internacional do trabalho, como um produtor de commodities. As exportações de produtos agrícolas crescem e desenvolvem o chamado agribusiness, tornando o Brasil uma grande potência capaz de competir com as mais modernas indústrias agrícolas do mundo, como a norte-americana. Marcelo Goulart é promotor de Justiça do Meio Ambiente e de Conflitos Fundiário, e desde que o Ministério Público passou a atuar contra algumas usinas, sofreu várias ameaças de morte e até um atentado. Ele aponta que o principal problema da cana-de-açúcar é a concentração da propriedade da terra, pois a monocultura exige a economia de escala, grandes investimentos, e pequenos e médios proprietários não têm condições de competir. “Eles acabam vendendo seu imóvel rural para o grande monocultor ou se submetendo a contratos leoninos de arrendamento, de fornecimento, de parceria agrícola e, no final das contas, quem se apropria daquilo que se é produzido na área é a usina, o grande produtor”, diz. Com sua fala mansa, em sua sala em Ribeirão Preto, ele defende que mesmo que todos os problemas ambientais sejam eliminados, os impactos da larga produção de cana continuarão. “A questão de fundo não é se queima ou não queima, se mecaniza ou não mecaniza, isso está na superfície do problema. A questão é o padrão de produção agrícola que concentra propriedade e que gera problemas ambientais e sociais, além de concentrar riquezas e poder político”. “Isso é uma falácia”, afirma categórico, Cícero Junqueira, franzindo a testa. “A cana não é uma atividade de penetração, mas de substituição de algumas culturas que estão degradadas e traz tecnologia para que outras se desenvolvam”. Para ele, a oferta de alimentos é maior nas regiões de cana. “É um fato que nós constatamos todos os dias. E não precisa ser doutor”, brinca. “Não há concorrência, estão perfeitamente compartilhados. Com a crise econômica, ficou evidente que havia muita especulação”, diz Rodrigues. “A monocultura canavieira traz muitos problemas relacionados com o meio ambiente ao trabalho e também às condições de saúde, não só dos trabalhadores, como também das pessoas que vivem na região. Além disso, São Paulo não assegura a sua segurança alimentar”, diz Moraes. “Esse padrão, baseado na monocultura, na concentração de propriedade, na agroquímica, na moto-mecanização e na geração de desemprego é antidemocrático e inconstitucional. E para isso eu me apoio no artigo terceiro da

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isso, praticamente todas as usinas respondem algum inquérito ou ação em razão de problema de desmatamento, recuperação e queimadas”. A fazenda da Barra está em processo de implantação da matriz agroecológica, uma contraposição direta ao agronegócio. É baseada em produzir de acordo com as dinâmicas que regem os ecossistemas e com novas formas de apropriação dos recursos naturais, que sejam socialmente justa, economicamente viável e ecologicamente sustentável. A agroecologia permite que se restaure o solo sem fertilizantes minerais e o cultivo é sem agrotóxico, o que para Magrão é um dos grandes problemas da agricultura. “Aqui em volta é tudo cana, aí quando o avião passa pra jogar veneno atinge a gente aqui. É veneno bravo. Ano passado, a mandioca aqui não produziu, caiu nas pontas delas e morreu: tinha mandioca, mas não cozinhava”. “Essa questão ambiental de que o etanol vai resolver os problemas não só do Brasil como do planeta é uma questão totalmente ideológica. Se você levar em conta todo o processo produtivo do etanol, ele é muito mais poluente que os derivados de petróleo, mas não se leva em conta os efeitos catastróficos para o meio ambiente não somente relacionados ao emprego de fertilizantes como das queimadas”, diz Moraes. “Eu acho que a cana é uma cultura extremamente preservacionista. A única coisa que eu acho que deve pensar é a questão da monocultura, mas eu também vejo que o tema da monocultura pode ser facilmente mitigado”, diz Rodrigues. “Você pega a legislação trabalhista hoje no campo, ela é muito parcial... O Código Florestal, por exemplo. Precisa resolver. Não podemos criar mecanismos que tirem a competitividade do agronegócio brasileiro. Precisamos de instrumentos legais contemporâneos, compatíveis com o mundo inteiro para ampliar a competitividade e não impedir”. “Criar pequenas ilhotas de vegetação em cada propriedade não faz sentido, nem econômica nem ambientalmente, mas criar grandes maciços florestais no bioma faz muito mais sentido, é um caminho de conciliação de agricultura e meio ambiente, mas que infelizmente se radicaliza esse assunto”, diz Jank. “A nossa legislação é uma das mais avançadas do mundo, mas antes das leis entrarem em vigor já tem medidas de alteração, como o Código Florestal. É uma catástrofe do ponto de vista ambiental caso sejam aprovadas as mudanças do Aldo Rebelo, que só ouviu o agronegócio”, preocupa-se Goulart.

Valdevino de Oliveira, viaja de Floriano, no Piauí, para trabalhar nos canaviais em SP.

Máquinas e destinos Para cumprir o Protocolo Agro-Ambiental do Setor Sucroalcooleiro Paulista, de 2007, que proíbe a queima de cana até 2014, e estimuladas pela assinatura, em junho, do Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, iniciativa do governo federal em prol da adoção de boas práticas, as usinas estão investindo na mecanização do corte da cana. Também há uma questão econômica por trás: um boia-fria corta 12 toneladas/dia de cana queimada. Sem a queima da palha, esse volume cairia para 3 toneladas/dia, mas, como o corte manual da cana crua é inviável, mecanizar é a saída. “A indústria está acelerando a mecanização e com certeza vai mais rápido do que a gente espera”, diz Caldas. “Para o pessoal que vai ser dispensado com a mecanização, o governo está fazendo um plano de requalificação inicialmente para 25 mil trabalhadores e vai ser ampliado também. O setor privado também está fazendo sua parte”. “Hoje tem de novo a história de mecanizar. Sou favorável à mecanização total porque a atividade do corte é uma atividade que não é para homem, mas para bicho e máquina. Mas só é benéfica para os trabalhadores, se vier, claro, com políticas públicas que gerem trabalho e renda”, diz Alves. “E ainda não está claro se vem para valer. Os empresários estão anunciando a mecanização desde a década de 1970 e ela ainda não se concluiu”. Segundo ele, a força de trabalho é tão barata que o corte manual sai mais barato que a meca-

“A força de trabalho é tão barata que o corte manual sai mais barato que a mecanização, que precisa de altos investimentos.”

nização, que precisa de altos investimentos: são necessários talhões e solos apropriados às colheitadeiras, mão de obra especializada, além de significar para o complexo agroindustrial canavieiro deixar de produzir em áreas que tem declividade superior a 12%, em que operar a máquina é inviável. Rodrigues defende a reutilização dessa área para outras culturas, como a fruticultura, aproveitando a estrutura original dos produtores de cana. “A mão de obra liberada no corte de cana pode ser treinada para essa produção, agregando valor e verticalizando a pequena indústria como a de sucos, doces e geleia. Isso geraria uma renda adicional ao produtor rural e uma atividade muito mais nobre e suave que o corte de cana manual, que é extremamente penoso, além, claro, de reduzir a presença maciça da cana como monocultura”. Para Moraes, os principais efeitos serão vistos na cidade de origem desses trabalhadores. “Os contratos de trabalho são feitos anualmente em seus locais de origem. Quem não volta para sua terra depois do trabalho e fica em São Paulo não é contratado. As usinas vão usar esses trabalhadores até o momento em que forem úteis, a partir daí eles serão descartados e não será problema para São Paulo”. “Melhoramos as condições de transportes e de equipamentos de proteção para os trabalhadores, erradicamos o trabalho infantil na cana e, com certeza, mecanizar não é a solução para o setor, porque surgem outros problemas, como a compactação do solo”, diz Goulart. “Essas são tentativas de maquiar o sistema, que continuará insustentável ambiental e socialmente. A solução é a mudança do sistema de produção, isso passa pela reorganização da propriedade, então passa pela reforma agrária com a adoção da agroecologia”. Roney Rodrigues é estudante de jornalismo na Unesp.

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Emir Sader

Fidel Castro

É hora de fazer alguma coisa (Parte 2) Certo é

que a revolução cubana não teve um minuto de paz. Apenas foi decretada a reforma agrária, antes de completar-se o quinto mês do triunfo revolucionário, começaram os planos e ações de sabotagem, incêndios, obstruções e emprego de meios químicos daninhos contra o país. Estes incluíram pragas contra produções vitais e, inclusive, contra a saúde humana. Ao subestimar o nosso povo e sua decisão de lutar por seus direitos e sua independência, os EUA cometeram um erro. Incapaz de resignar-se à independência e ao exercício dos direitos soberanos de Cuba, o governo desse país adotou a decisão de invadir nosso território. A URSS não teve absolutamente nada a ver com o triunfo da revolução cubana. Esta não assumiu o caráter socialista devido ao apoio da URSS, foi no avesso: o apoio da URSS foi oferecido pelo caráter socialista da revolução cubana. Tal é assim que, apesar do colapso da URSS, Cuba continua sendo socialista.

Por alguma via, a URSS soube que Kennedy tentaria utilizar com Cuba o mesmo método que ela aplicou na Hungria. Isso levou aos erros que Kruschev cometeu, a respeito da crise dos mísseis, que fui obrigado a criticar. Mas não só foi Kruschev que errou, também Kennedy. Cuba não tinha nada a ver com a história da Hungria, nem a URSS teve nada a ver com a revolução em Cuba. Esta foi fruto, apenas, da luta do nosso povo. Kruschev somente teve o gesto solidário de enviar armas a Cuba, quando foi ameaçada pela invasão mercenária que os Estados Unidos organizaram, treinaram, armaram e transportaram. Sem as armas enviadas a Cuba, nosso povo teria derrotado as forças mercenárias como derrotou o exército de Batista, ocupando-lhe o equipamento militar que possuía: 100 mil armas. Se a invasão direta dos Estados Unidos contra Cuba se tivesse produzido, nosso povo teria estado lutando até hoje contra seus soldados, que, com certeza, também teriam que lutar contra milhões de latino-americanos. Os Estados Unidos teriam cometido o maior erro de sua história, e a URSS talvez ainda existiria. Horas antes da invasão, depois do ataque arteiro a nossas bases aéreas, por aviões dos Estados Unidos que levavam bandeiras cubanas, foi declarado o caráter socialista da revolução. O povo cubano combateu pelo socialismo, naquela batalha que se registrou na história como a primeira vitória contra o imperialismo na América. Passaram dez presidentes dos Estados Unidos, está passando o undécimo, e a Revolução Socialista se mantém em pé. Também passaram todos os governos que foram cúmplices dos crimes dos Estados Unidos contra Cuba, e nossa revolução se mantém em pé. A URSS sumiu e a revolução continuou adiante. Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

CRÍTICA CRÍTICA E CRÍTICA TRANSFORMADORA Uma tragédia para a esquerda foi a dicotomia entre reflexão teórica por um lado, prática política por outro. Depois das primeiras gerações de teóricos e, ao mesmo tempo, dirigentes revolucionários – como Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Gramsci, entre muitos outros -, os partidos comunistas e social-democratas deixaram de ser espaços de reflexão teórica, levando a que os intelectuais marxistas se refugiassem em centros autônomos – universidades ou outros – e, ao mesmo tempo, em temas distanciados da prática política – como a metodologia, a estética, a teoria literária, a ética. Foi a partir dessa verdadeira ruptura entre teoria e prática que surgiu o intelectual crítico, mas sem prática política, portanto sem compromisso com propostas de transformação concreta da realidade e sem responsabilidade na acumulação de forças para construção das forças de transformação. A crítica crítica foi disseminando cada vez mais, conforme os partidos foram tendo práticas cada vez mais adaptadas aos sistemas de poder existentes. Proliferaram cada vez intelectuais radicais, com prestígio diante dos jovens – sempre disponíveis, felizmente, para as utopias – e, mais recentemente, com espaços na mídia tradicional, na medida em que critiquem a esquerda realmente existente. Essa visão e essa atitude diante da teoria e da prática têm não apenas o problema de que não desembocam nunca em alternativas, restringindose à esfera teórica, mas também que interpela a prática do ponto de vista da teoria e não a teoria do ponto de vista da prática. Não se trata apenas de uma visão politicamente inconsequente, mas tampouco se trata de visões que captem a realidade na sua dinâmica real, porque se situam fora da prática concreta, do processo efetivo de luta entre campos constituídos que expressam, direta ou indiretamente, as contradições estruturais da sociedade. Terminam sendo visões que se encerram na teoria, que não dão conta da realidade, que castram a própria teoria, fechando-a sobre si mesma, desembocando em intermináveis denúncias de que a realidade não corresponde perfeitamente à teoria e em discussões entre distintas teorias. Na contramão da tese fundamental de Marx: “A filosofia até aqui interpretou o mundo de diferentes maneiras, mas trata-se de transformá-lo”. O marxismo se caracteriza justamente por não ser mais uma interpretação de como seria o mundo, mas por uma análise que desemboca necessariamente em projetos de transformação do mundo, protagonizados por forças sociais e políticas. sugestões de leitura PEQUENOS BURGUESES

Máximo Gorki - Editora Hedra CRÔNICAS DO MUNDO AO REVÉS

Flavio Aguiar - Editora Boitempo STALIN

Domenico Losurdo - Editora Revan Emir Sader é cientista político.

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tacape Rodrigo Vianna

Dilma: sinais preocupantes

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regulação pra evitar a concorrência dos estrangeiros. De repente, viraram nacionalistas de carteirinha! A abertura de diálogo com Dilma é uma necessidade de sobrevivência... Há quem diga que, também para a nova presidenta, esse movimento de “quebrar o gelo” com a velha mídia faz todo sentido. Sem o mesmo apelo pessoal de Lula, sem a mesma proximidade com sindicalistas e movimentos sociais e sem o domínio pleno da máquina petista, Dilma parece ter tomado a decisão de evitar brigas abertas com um setor que pode trazer dores de cabeça infernais: a velha mídia brasileira.

fotos: Agência Brasil

Essa história de oferecer “Cem Dias” de trégua para o governo que se inicia é um modismo que vem dos EUA, mas faz algum sentido. É um tempo mínimo para que as equipes se (re) organizem e para que as primeiras diretrizes sejam tomadas, indicando os rumos da nova administração. O governo Dilma ainda não atingiu a marca dos “Cem Dias”. Mas já é possível identificar algumas tendências – não só do governo que começa, mas da relação do governo com a velha mídia que segue na tentativa de pautar o debate no país. Os primeiros sinais indicam reversão da política “expansionista” (e bem sucedida) adotada no segundo governo Lula para enfrentar a crise. O governo Dilma começa com corte de despesas estatais, alta de juros, aumento moderado do salário mínimo... É fato que a inflação em alta impunha algum tipo de medida para frear a economia. Mas a fórmula adotada agora indica um “conservadorismo”, ou “tecnicismo”, a imperar. Não é à toa que a velha imprensa derrama-se em elogios à nova presidenta, tentando abrir entre Dilma e Lula uma “cunha”, como a dizer: Lula era o populismo “atrasado” e “irresponsável”, Dilma é a linha justa (discreta, moderada, a seguir a velha fórmula liberal de gestão). Há alguns sinais - preocupantes, eu diria – de que Dilma estimula esse movimento de proximidade com os setores mais conservadores da velha imprensa. Gente muito bem informada sobre os bastidores do Palácio do Planalto diz que assessores da presidenta têm trabalhado firme para aparar arestas com colunistas, diretores de redação e outros personagens que passaram os últimos 8 anos a bater bumbo contra o governo Lula na mídia. Essa gente – que acha Lula um horror e FHC um gênio – voltou a ser ouvida; novas pontes começam a ser construídas. Para as empresas de comunicação, o que está em jogo? O novo “marco regulatório” da área de comunicação. As empresas de capital nacional (capitaneadas por Globo, Abril, Folha...) sabem que precisam do governo para “regular” a entrada dos grandes grupos internacionais. As famílias que mandam na mídia brasileira não querem nenhuma “regulação” sobre programação e conteúdo (é censura!), mas querem

“Juros altos fazem a alegria dos banqueiros”. Mas voltemos à economia: as centrais sindicais fazem grande barulho por conta de o salário mínimo ter subido apenas para R$ 545. Acho positiva essa pressão. O movimento sindical pode – e deve – criar um espaço para mais autonomia em relação ao governo. Mas, modestamente, acho que a medida mais danosa adotada pela administração Dilma, nesse início, não é o freio no salário mínimo – até porque, pelas regras acertadas durante o governo Lula (o salário sobe sempre com base na inflação do ano anterior mais o PIB de dois anos antes), o mínimo deve ter em 2012 um crescimento robusto, passando dos R$ 610. O que preocupa mais é outra coisa: a alta dos juros. O impacto é devastador para a estrutura econômica brasileira. Alta de juros estimula a entrada de dólares, que vêm atrás de rendimentos estratosféricos. E isso deixa o real cada vez mais valorizado em relação ao dólar. Péssimo para a indústria nacional, que perde competitividade. Lula e Palocci começaram do mesmo jeito em 2003, lançando os juros na estratosfera. A diferença é que o Brasil vinha de uma campanha eleitoral, em 2002, em que se tinha vendido para o mercado (ou pelo mercado) o “risco Lula”. Era preciso evitar o “risco”. Agora, Dilma encontrou o país crescendo, bem arrumado. Os economistas liberais diriam que, para baixar os juros, é preciso “primeiro” cortar os gastos públicos. Dilma fez exatamente isso, com o corte recente de 50 bilhões no Orçamento. E elevou os juros ao mesmo tempo. Eles cairão mais à frente?

Na época de Malan/FHC, a gestão liberal ficava sempre pelo meio do caminho: corte de gasto, seguido de… mais cortes de gastos. Fora as privatizações. E a hora de baixar os juros? Não chegava nunca. Não era à toa. Juros altos fazem a alegria dos banqueiros e daqueles que vivem de aplicar dinheiro a taxas estratosféricas, “ajudando” assim a financiar a dívida pública (sempre crescente, por causa dos juros!). Malan, depois de deixar o Ministério da Fazenda, foi trabalhar num banco. Palocci teve sua campanha a deputado, dizem, financiada por banqueiros… Palocci, agora, está na Casa Civil. Hum… O governo Dilma vai significar um movimento em direção ao centro, com a gestão “técnica” da economia – que tanto encanta colunistas e economistas tucanos? Dilma chegou a afirmar em entrevistas que uma das metas de seu governo – além de eliminar a pobreza extrema – seria trazer os juros reais do Brasil para patamares “civilizados”. Pode ser que a meta seja essa, a médio prazo. Mas o risco é perder-se no meio do caminho. Oitenta ou cem dias é pouco tempo para qualquer leitura definitiva sobre as escolhas de Dilma. Mas é bom olhar com atenção para essas escolhas – especialmente na economia e na relação com a velha mídia corporativa brasileira. Rodrigo Vianna é jornalista e responsável pelo blog Escrevinhador www.rodrigovianna.com.br

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Gershon Knispel

Metamorfoses

no modo de ser de Israel

De Peter Bruegel, “Quando um cego conduz outros, vão todos para o abismo”.

Como instaurar um regime militar sem golpe.

a

viv Kochavi chegou com o pai, no início dos anos 1980, ao meu ateliê, ainda mocinho, no início do ginásio. Sua altura e suas feições regulares contrastavam com seu jeito introvertido, parecia ter dificuldades em se expressar. O pai falou por ele. Pegando uma grande pasta com os trabalhos do filho, e os colocando sobre a mesa do estúdio, perguntou: “Vale a pena investir neste menino?” Fui surpreendido. Sua virtuosidade para desenhar realmente aparecia, mas seu domínio da composição demonstrava, mais do que qualquer outra coisa, o seu grande talento. A escolha dos temas testemunhava o seu profundo caráter humanista. Um caso muito raro de talento que aceitei como aluno, sem nenhuma hesitação. Já nos primeiros encontros fui bem claro em comunicar a ele que tinha todas as condições para continuar a tradição dos meus professores da Academia Bezalel, em Jerusalém. A maioria deles tinha fugido da Alemanha depois da subida de Hitler, em 1933. Eram pessoas de esquerda, humanistas, que se erguiam coerentemente contra perseguições a minorias étnicas, proclamando que todos deviam abrir os olhos a tudo que estava em volta. Todos deviam erguer-se e protestar, lembrando o lema de Picasso: “Minhas mãos são as armas para lutar contra os males deste mundo”. Eu desejava transmitir a meu aluno as características que aprendemos em companhia de nossos mestres. Aviv Kochavi não me desapontava. Melhorando a cada vez seus meios de expressão; seus heróis, sempre deprimidos, de baixa camada social, mostravam, nus, uma alma delicada e lírica. Fiquei surpreso quando o pai o convenceu a prestar imediatamente o serviço militar. Mas não era de estranhar: na Diáspora, nossos pais so-

nhavam que os filhos se tornariam médicos. Na metamorfose israelense, os pais privilegiavam a carreira militar, que durante décadas se tornou o ponto mais alto da escala social. De vez em quando eu entrava na loja do pai, onde comprei instrumentos para o estúdio. Ele me contou com orgulho que o filho se apresentou como voluntário para o curso de aviação (há décadas se costuma colar no vidro dos carros o adesivo “Os melhores para a Aviação). Mas o rapaz foi reprovado nos exames, e se apresentou como voluntário para os paraquedistas, que, ao lado dos defensores do Comando do Quartel-General, constituem a elite dos combatentes israelenses. A excelência artística do meu ex-aluno se expressou também nessas atividades. Completamente inebriado pelo progresso meteórico do filho na carreira militar, o pai, numa de minhas idas à sua loja, me confidenciou quão maravilhoso ia ser o futuro do jovem: “Imagina que um general vai terminar o serviço militar entre os 48 e os 50 anos, sem necessidade de passar o período de dois anos de espera, e vai ser promovido a cargos-chave no governo e na economia” – na verdade, esclareço eu, na indústria bélica, na consultoria de segurança (como a Haganá no Brasil), na assessoria clandestina de governos militares para reprimir levantes populares.

Militarização Em Israel, os generais da reserva mais populares são convidados pelos partidos políticos, que concorrem entre si para imediatamente nomeálos ministros, quaisquer que sejam suas ideologias. Os generais da reserva se acham logo na mesa de decisões do governo, que se transforma numa mesa do comando do Quartel-General.

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Isso porque a maioria dos temas de que o governo israelense trata já há décadas se referem à segurança e à situação militar. E os ministros veem esses temas com os olhos dos generais, cujas palavras são recebidas como a Tábua dos Dez Mandamentos no Sinai, sem que possam ser questionados. Afinal, “eles sabem mais do que nós”. Essa é uma maravilhosa receita para uma democracia ser transformada, sem golpe, num regime militar. Eu achei que a euforia do pai de Aviv é comum quando, em Israel, os pais falam dos filhos e exageram em seus sonhos. Em 1995, voltei para o Brasil e assim meus contatos com a família Kochavi se interromperam. Mas nos últimos anos cheguei à conclusão de que o pai não exagerou em nada. Em uma de minhas visitas à minha pátria, depois que estourou a Segunda Intifada, no início de 2000, enquanto aumentavam os meios de repressão e de humilhação do Exército contra a população palestina nos territórios ocupados, fiquei chocado quando descobri uma notícia destacada em todos os meios de comunicação sobre o envolvimento do coronel Aviv Kochavi, como comandante da Faixa de Gaza, em várias atitudes de punição muito próximas da definição de crimes de guerra. Isso me afetou duramente. Quando voltei para meu país em 2008, pouco antes do início da Guerra de Gaza, vi mais uma notícia destacada em toda a mídia: no último momento, foi cancelada a viagem do brigadeiro Aviv Kochavi à Inglaterra, onde iria continuar os estudos estratégicos militares, por causa de uma informação de que contra ele havia uma ordem internacional de prisão e de que, se ele desembarcasse no aeroporto de Heathrow, ele seria enviado como réu ao Tribunal Internacional de Haia. Agora mesmo, no fim de janeiro, quando começou a revolução no Cairo, vi uma notícia das agências internacionais, como a Reuters, que alguns dias antes tinha ocorrido o primeira reunião do general Aviv Kochavi, recém-nomeado chefe do Mossad, com parlamentares, aos quais ele assegurou que a posição de Mubarak se mantinha firme e que a única oposição no Egito, a da Irmandade Muçulmana, era muito fraca. As consequências não demoraram a chegar. A cúpula governante e a cúpula militar ficaram chocadas. Isso demonstra a que ponto chegou a cegueira dos líderes do Estado de Israel. Quando você se decora com a plumagem de outros, se apresenta falsamente como democrata, não se dá mais ao respeito, quando na verdade esse Estado já se tornou um regime militar sem golpe, suas vítimas não são só os palestinos, mas nossos jovens que ficaram cegos e que, apesar dos valores fundamentais tão éticos em que foram educados, escorregam. Estão usando um colete à prova de balas morais – em Israel não vão ser acusados, só se saírem do país. Em vez de ser um artista promissor, o general Aviv Kochavi sempre vai caminhar sem parar, enquanto em sua testa está gravada a marca de Caim. Gershon Knispel é artista plástico. março 2011

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

MEMÓRIAS DE JORNALISTAS

dos anos 1950 a 1980, e outros temas de interesse geral Por iniciativa

do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e do Centro de Cultura e Memória do Jornalismo, foi lançado pela Verso Editora o precioso álbum Memória de repórter – lembranças, casos e outras histórias de jornalistas brasileiros – décadas de 1950 a 1980, com a transcrição de trechos das gravações de depoimentos de 60 jornalistas, mais ilustrações altamente evocativas e informativas sobre aqueles anos. Pelas densas páginas desfila o célebre duelo entre a Tribuna da Imprensa, do direitista conservador Carlos Lacerda, e a Última Hora, do esquerdista nacionalista Samuel Wainer, que, de grandes amigos do tempo em que Lacerda era comunista, passaram a ser os mais ferozes inimigos entre si de que se tem notícia da história brasileira. Independente de suas posições políticas, Lacerda e Wainer estão entre os jornalistas mais criativos e mais contundentes da secular imprensa do País. Fala-se em seguida do pioneirismo do Diário Carioca e do Jornal do Brasil, na renovação da linguagem textual e visual dos jornais brasileiros, cujas repercussões se fazem sentir ainda hoje na imprensa nacional. Depois se trata dos anos de chumbo após o golpe militar de 1964 e do surgimento das grandes revistas que também fizeram história. Entre os jornalistas que falaram, estão Alberto Dines, Artthur Poerner, Audálio Dantas, Augusto Nunes, Caco Barcellos, Carlos Lemos, Cícero Sandroni, Clóvis Rossi, Ferreira Gullar, Jânio de Freitas, Jorge de Miranda Jordão, José Hamilton Ribeiro, José Louzeiro, Luiz Garcia, Marcelo Beraba, Mario Morel, Mauricio Azedo, Milton Coelho da Graça, Murilo Mello Filho, Mylton Severiano da Silva, Oliveiros Ferreira, Otavio Frias Filho, Percival de Souza, Ricardo Kotscho, Roberto Müller Filho, Sandra Passarinho, Sérgio Cabral, Thomas Souto Corrêa, VillasBôas Corrêa, Wilson Figueiredo, Zuenir Ventura. Passando do jornalismo brasileiro às grandes questões internacionais, um dos grandes enigmas contemporâneos é discutir por quais razões, enquanto na grande crise capitalista dos anos 1930 ocorria no Ocidente uma grande efervescência cultural, hoje, em que o capitalismo enfrenta uma crise de porte semelhante, a cultura parece imersa numa rotina morna, como se nada estivesse acontecendo. Basta comparar a situação atual com a que é descrita no livro Os anos sombrios

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– Paris na década de 1930, de William Wiser, publicado pela José Olympio Editora. Foram os anos do jazz, do surrealismo, de Henry Miller, Anais Nin, Salvador Dali, Gertrude Stein, Pablo Picasso, T.S. Eliot, Collette e Jean Cocteau. Hoje parece não haver movimentos e nomes tão esfuziantes quanto esses. Já o psiquiatra e homem de teatro paulistano Paulo José Moraes apresenta no volume Um psiquiatra neste bando de loucas – Coisas agudas e crônicas um apanhado de suas crônicas na Folha de S. Paulo. Homem de múltiplas capacidades, dirigiu peças nos anos 1980 baseadas nos romances Cleo e Daniel, de Roberto Freire, e As Meninas, de Lygia Fagundes Telles; apresentou na televisão o quadro Saúde da família, e foi editor de cultura do Jornal dos Trabalhadores, além de ter promovido shows musicais de Chico Buarque, Gilberto Gil e tantos outros. Assim, tem muita coisa para contar e vale a pena ler sua obra. A grande maioria das pessoas, mesmo entre o público da alta cultura, não conhece o romance-ensaio Émile e Sophie, ou Os solitários, do filósofo suíço Rousseau, do século 18, livrinho lançado agora pela Hedra. Trata-se do mesmo Émile do tratado de Rousseau sobre a educação Outro lançamento importante da Hedra é Viagem aos Estados Unidos, de Tocqueville, o intelectual e político francês que, em meados do século 19, foi o primeiro a estudar mais atentamente a então jovem e promissora democracia americana. Nos anos 1960, a esquerda brasileira se dividia entre as correntes que acreditavam na existência de uma “burguesia nacional”, e as que pregavam que a burguesia brasileira não passava de uma “sócia menor do imperialismo”. O historiador econômico Daniel de Pinho Barreiros discute no livro Estabilidade e crescimento – A elite intelectual moderno-burguesa no ocaso do desenvolvimentismo (1960-69), editado pela Faperj-Lamparina, o que realmente pensavam os grandes teóricos das classes dominantes da época: Eugênio Gudin, Otávio Gouvêa de Bulhões, Roberto Campos, Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen.

Renato Pompeu é jornalista e escritor. www.renatopompeu.blogspot.com rrpompeu@uol.com.br>

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