Ed. 172 - Revista Caros Amigos

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ANTONIO CANDIDO Perfil do crítico e militante

A PRIMEIRA À ESQUERDA

PALESTINA RIO DE JANEIRO Terceira Intifada Índios querem contra a repressão Universidade

ano XV nº 172 / 2011 R$ 9,90

FARRA DAS TELES COM BENS PÚBLICOS UNIÃO PODE PERDER ATÉ R$ 30 BILHÕES

REFORMA POLÍTICA SERÁ MESMO PRA VALER?

ENTREVISTA

Esteban Volkov NETO DE TROTSKY DEFENDE O AUTÊNTICO

SOCIALISMO

KASSAB MILITARIZA A PREFEITURA DE SÃO PAULO

Grupos estrangeiros expropriam o etanol brasileiro BÁRBARA MENGARDO CECÍLIA LUEDEMANN CLAUDIUS DÉBORA PRADO EDMUNDO VERA MANZO EDUARDO SÁ EMIR SADER FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GUTO LACAZ JESUS CARLOS JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU ROBERTO OLIVEIRA RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ SORAYA MISLEH TATIANA MERLINO

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CAROS AMIGOS ANO XV 172 JULHO 2011

Capa: Montagem de Ricardo Palamartchuk em foto de Jesus Carlos.

sumário REPORTAGENS

EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) EDITOR E DIRETOR: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

ETANOL EXPROPRIADO Reportagem da Caros Amigos conta que a expansão do etanol da cana – um combustível incluído na pauta mundial como alternativa imediata ao petróleo – no Brasil está sob a ameaça dos grandes grupos internacionais – os mesmos que durante décadas controlaram outros combustíveis – e do capitalismo ascendente nos países asiáticos. A voracidade dos estrangeiros tende a retirar do Estado brasileiro e do capital nacional parcela de poder e de decisão sobre o futuro do combustível no país e no mercado global. Outra reportagem desvenda o mistério dos chamados bens reversíveis da União, que foram entregues – por tempo determinado – para as empresas privadas que assumiram os serviços públicos de telefonia – privatizados no governo FHC. Como a Anatel não se empenhou em fiscalizar o uso e paradeiro desses bens, a União (entenda-se o patrimônio público) corre sério risco de ter um prejuízo de R$30 bilhões. Em cima do debate atual da reforma política, Caros Amigos ouviu vários estudiosos e lideranças partidárias para identificar quais pontos significam avanços no sistema representativo e na democracia real. Além de toda a polêmica que cerca a reforma, paira também a dúvida sobre o que realmente pode e vai ser gerado pelo Congresso Nacional. Uma coisa parece certa: sem pressão da sociedade não haverá grandes mudanças. Indiferente às demandas por liberdade, democracia, transparência e respeito aos direitos humanos, o prefeito Gilberto Kassab reforçou no município de São Paulo a militarização da gestão pública e da repressão aos movimentos sociais. Reportagem da revista mostra como ele aparelhou a administração com oficiais da Polícia Militar e como institucionalizou o “bico” de policiais militares – em associação com a Guarda Civil Metropolitana – nas atividades repressivas da Prefeitura. A presente edição contempla, ainda, entrevistas com o professor José Luiz Fiorin, da USP, sobre o polêmico conflito das normas culta e popular; com o químico Esteban Volkov, neto do líder bolchevista Leon Trotsky; o perfil do crítico literário Antonio Candido; outras reportagens e os artigos e ensaios da equipe de colaboradores da Caros Amigos. Enfim, muita coisa boa para ler, curtir, refletir e agir. Vá em frente!

Grupos estrangeiros – de vários países – se apropriam do etanol brasileiro. Por Lúcia Rodrigues A reforma política do Congresso Nacional vai mesmo aprofundar a democracia? Por Tatiana Merlino Empresas privadas de telefonia manobram com os bens reversíveis da União. Por Débora Prado O prefeito Gilberto Kassab reforçou e ampliou a militarização em São Paulo. Por Gabriela Moncau Índios querem transformar antigo museu em Universidade Indígena. Por Eduardo Sá Tribunal Popular da Terra vai debater e julgar crimes contra populações pobres. Por Roberto Oliveira Enviada Especial relata começo da terceira Intifada palestina. Por Soraya Misleh

ENTREVISTAS

Mc Leonardo defende o funk e critica o preconceito do crítico Sérgio Cabral. José Arbex Jr. alerta que a crise econômica cresce e se avizinha do Brasil. Sérgio Vaz dá as dicas sobre a magia da felicidade e o perfil dos poetas. João Pedro Stedile conclama apoio para a campanha contra os venenos agrícolas. Frei Betto fala sobre a roda da fortuna para traficar influências. Edmundo Vera Manzo analisa a insegurança como instrumento político da direita. Tatiana Merlino: processo contra o coronel Ustra terá depoimento de testemunhas. Gilberto Felisberto Vasconcellos: “Estou de saco cheio do capitalismo”. Gershon Knispel analisa a força da memória coletiva na vida das nações. Emir Sader comenta que a Europa vota à direita e a América Latina à esquerda. Caros Leitores: cartas e comentários pelo Twitter e no Facebook. Falar Brasileiro – Por Marcos Bagno: crítica à tradição gramatical normativa. Paçoca – Por Pedro Alexandre Sanches: Itamar Assumpção revive em novo show. Amigos de Papel – Por Joel Rufino dos Santos: a História na agenda democrática. Perfil: Antonio Candido – Por Bárbara Mengardo: o crítico literário e o militante. Ideias de Botequim – Por Renato Pompeu: Inéditos de Sérgio Buarque de Holanda. Tacape – Por Rodrigo Vianna: é preciso ampliar a transparência seletiva da Folha. Guto Lacaz Claudius

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ARTIGOS E COLUNAS

CHARGES

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José Luiz Fiorin: “O aluno não deve ter vergonha da língua que ele traz de casa”. Por Cecília Luedemann Esteban Volkov: “Para o autêntico socialismo, a democracia é como o oxigênio”. Por Tatiana Merlino

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www.carosamigos.com.br Novo telefone: (11) 3123-6600 EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr ARTE: Ricardo Palamartchuk e Gilberto de Breyne EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Lúcia Rodrigues e Otávio Nagoya SÍTIO: Débora Prado (Editora), Gabriela Moncau e Paula Salati SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann COORDENADORA DE MARKETING: Júlia Phintener COMÉRCIO VIRTUAL: Pedro Nabuco de Araújo e Douglas Jerônimo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Clarice Alvon e Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu (Editor) ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Edcarlos Rodrigues, Joze de Cássia e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Douglas Jerônimo e Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo; Pillon e Pillon Advogados REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9115-3659. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XV, nº 172, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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CAROS LEITORES PORRE DE NOÉ CHOMSKY Fiquei muito feliz por dois motivos ao ler a edição da Caros Amigos 169: primeiro, porque traz as reportagens que gosto de ler e, segundo, pela entrevista que Noam Chomsky deu. Considero esta reportagem de extrema importância (uma das mais nos últimos tempos) e de muita utilidade, principalmente para nós, professores, que podemos trabalhar com o texto de várias formas, pois as palavras do mestre são claras como água cristalina e nos dão a noção exata sobre a atual conjuntura política do mundo árabe. Mais uma vez fico satisfeita com a escolha que fiz ao assinar Caros Amigos. Sônia Ribeiro Vasconcellos.

REPRESSÃO Excelente matéria sobre As novas táticas da repressão política. A matéria aponta uma expressão real do que vem se alastrando no país afora a partir de um ódio patológico de setores reacionários que criam factoides contra militantes políticos e sociais. As ações desses grupos contam com retoques nebulosos herdados do período nefasto da ditadura militar e geram desgastes emocionais que abalam a relação profissional ou estudantil, como também o aspecto familiar (atingindo em cheio o aspecto emocional). Aqui, na Paraíba, temos o caso do estudante Enver José que está sendo processado por ter participado das ações políticas contra o aumento abusivo das passagens dos transportes coletivos em janeiro (acusado, pasmem, de ter lançado um artefato, parecido com uma granada, em um ônibus). Particularmente estou sendo perseguido politicamente pelo Reitor da Universidade Federal de Campina Grande por ter repassado informações sobre um processo que circula no TCU, e, de fato, o desgaste emocional e psicológico foi tamanho que tive que procurar um médico especialista. Lauro Pires Xavier Neto, professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e diretor da ADUFCG.

Quero parabenizar a Caros Amigos – A primeira à esquerda, em especial os autores Joel Rufino e Sérgio Vaz. Quanta clareza de ideias há no Porre de Noé, numa questão tão delicada que é a sexualidade retratada com tanta performance. No que diz respeito a sermos um país livre, isso pode até existir na teoria ou em pseudos líderes que querem mostrar lá fora que somos isso e aquilo outro, quando na verdade nossa prática é carregada de preconceitos e racismos. Então, usemos o Milagre da Poesia para transformar essa porca elite direitista em poetas operários, em poetas engenheiros, em poetas médicos, em poetas que assassinem esses preconceitos ultrapassados e firam o ventre podre dessa elite suja com palavras vivas, como diria o saudoso Belchior “quero que meu canto torto feito faca corte a carne de vocês”. Muitos ósculos e amplexos aos nobres leitores da Caros Amigos. Flávio Vieira dos Santos - Graduado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus Jequié – Jaguaquara – Bahia.

MANGABA A Caros Amigos nº170/2011, entre tantas outras boas matérias, traz uma reportagem relatando a valorosa luta das catadoras de mangaba sergipanas, para fazer valer seus direitos e cidadania. E estão conquistando vitórias. Gente humilde e corajosa. Vale a pena ler a reportagem das páginas 33/35 da revista e divulgar seus embates. Odon Porto de Almeida.

UNIDADE POPULAR Acabei de ler o texto A unidade do campo popular, de João Pedro StedIle, e fiquei extremamente emocionada. Ele deveria ser um discurso para 3 milhões de pessoas, sendo transmitido ao vivo para os outros 197 milhões de brasileiros. É preciso um impulso inicial para que a inércia de permanecer parado do nosso povo se transforme na inércia de continuar o movimento. Mas por onde começar tudo isso? A fome de conhecimento que temos não se compara com a fome de comida, casa, saneamento básico e de um pouco de diversão que a gran-

de massa brasileira tem. E enquanto essas necessidades não forem sanadas, a população não terá fome de saber, pra conseguir informações suficientes e reivindicar o que lhe é de direito. Ou talvez seja necessário que a situação chegue ao extremo para a população sair dessa inércia, como nos antecedentes do que o Ocidente chama de Primavera Árabe, iniciada no estômago de um povo miserável que, cansado de ver a opulência e o autoritarismo de seus governantes, resolveu agir. O problema é que nossos políticos são espertos o suficiente para não deixar que a situação do Brasil chegue a extremos. Eles dão o suficiente para que o povo não se rebele, mas o mínimo para que eles não progridam. Como solucionar esse ciclo vicioso? Luiza Machado, 17 anos, futura estudante de Direito, Jornalismo, História e Serviço Social.

Rolou no Twitter e no Facebook @caros_amigos um dos melhores investimentos que já fiz. Pedro Bernardi – Via Twitter. Pra mim, a Caros Amigos é parte da minha vida. Maria Noelia de Souza – Via Facebook. A @caros_amigos vai me ajudar muito no vestibular deste ano. Todos os temas que eu pego pra estudar vem na revista. RS... Fabio Saft – Via Twitter. Li pela primeira vez a revista Caros Amigos e fiquei extremamente encantada com o comprometimento, a fidelidade do que lá está apresentado! Parabéns pela revista. Vocês acabam de ganhar uma nova leitora. Ana Alice Freitas - Via Facebook. @caros_amigos Enfartados, cuidado. A Caros Amigos 171 está de tirar o fôlego. Nitroglicerina pura!!! Agilson Filho – Via Twitter.

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COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,

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Marcos Bagno ...

GRAMÁTICA OU LINGUÍSTICA? Durante a polêmica surrealista que a mídia fascistoide inventou para exibir sua ignorância em maio passado (em torno de um livro didático adotado pelo MEC), assisti no YouTube uma entrevista com Ataliba de Castilho, um importante linguista brasileiro, autor de uma monumental gramática publicada em 2010. De repente, o jornalista, apontando para a gramática de Castilho, disse: “Mas o senhor é autor de uma gramática, então o senhor não é linguista”. Fiquei imaginando as respostas que eu daria se estivesse no lugar de Castilho. Mas Castilho é um perfeito cavalheiro e, com toda a paciência, explicou que sim, ele é linguista. A tradição gramatical normativa é tão poderosa que já se impregnou em nossa cultura ocidental de forma mais arraigada do que o cristianismo (que só nasceu 300 anos depois dela). A separação entre “gramática” e “linguística” é

Mc Leonardo

Não importa o que falam, mas sim quem fala Muitos amigos leitores dessa revista, quando se deparam com opiniões altamente preconceituosas sobre o funk me mandam email dizendo que é preciso responder a essas opiniões em minha coluna. Desde que passei a integrar o corpo de colaboradores desta revista, dificilmente abordo o tema funk, não que eu não queira falar sobre o funk, mas porque vivo em um país cheio de sérios assuntos para serem abordados, onde o funk passa a ser só mais um. Além disso, não vou ficar o tempo todo reproduzindo opinião preconceituosa de quem eu nem conheço, mas uma opinião absurda sobre o funk (desses vês de quem conheço muito bem) me chamou atenção, e acho que vale a pena responder. “Eu acredito que a CIA criou o funk para destruir o samba”. A frase acima é de Sérgio Cabral (pai), que

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resultado de uma distorção típica das ideologias. O estudo da gramática é um dos vários campos de interesse da linguística científica. Na verdade, o estudo da gramática é o “núcleo duro” da linguística. O grande problema é que as pessoas em geral têm uma concepção completamente equivocada do que seja gramática. A gramática não é um conjunto de regras que definem o “falar bem” e o “escrever certo”. Esse conjunto forma o que se chama de norma-padrão. A norma-padrão é um produto sociocultural, resultado de conflitos de interesse, lutas de poder e hierarquizações políticas. No entanto, seu poder simbólico é tamanho que muita gente identifica essa norma com a própria língua: assim, “português” não é a língua falada por 250 milhões de pessoas mundo afora, mas simplesmente aquela pobre redução de todo esse universo linguístico a um código penal de “certos” e “errados”. A gramática é o estudo do funcionamento da língua em todos os seus níveis: fonológico, morfossintático, semântico, pragmático, discursivo. Para o linguista, “nós falamos”, “nós falamo”, “nós falemo” e “nós falou” são formas perfeitamente explicáveis do ponto de vista científico e, por isso, nenhuma delas é mais bonita ou mais bem formada que as outras. Foi só por razões históricas, políticas e socioculturais (ou seja, que escapam do que é propriamente linguístico) que a forma “nós falamos” se fixou como a “certa”. Não por acaso, a forma mais conservadora, a menos usada pela maioria da população. Afinal, os nossos “certos”

além de ser contra o reconhecimento do funk como cultura desconhece que o funk tem contribuído para a permanência dos jovens dentro das quadras de escolas de samba, e de ser uma das rendas para que escolas possam desfilar no carnaval. Eu poderia levar em conta seus 74 anos e achar que isso é da idade, mas nem isso cabe a esse senhor. O preconceito desse pesquisador e crítico musical está entranhado nele faz muito tempo. Tido como um defensor da música popular brasileira e fonte primária para universitários desenvolverem suas pesquisas sobre música, ele tem em seu currículo de negação alguns nomes da MPB que inclui Gil, Caetano e todo movimento tropicalista. Dizer que o funk está perdendo para o samba nas favelas como ele disse, é frase de quem não entende nada de favela e nem de música. O samba continua vivo como nunca, e o funk tem o samba como exemplo de resistência, convivência com o chamado “asfalto” e independência mercadológica. Esse senhor que diz ser conhecedor de favelas e culturas, não sabe reconhecer transformações e muito menos ritmos culturais. Ele com todo o seu preconceito vai semeando

ilustração: debora borba

falar brasileiro

e “errados” vêm sempre de cima para baixo e não o contrário, como em sociedades de democracia mais antiga. Ora, em inglês, por exemplo, a antiga forma equivalente a “falamos” desapareceu, e hoje toda a conjugação verbal do inglês, no passado, se faz com uma única forma: spoke, que serve para todas as pessoas verbais. Será que isso impede os falantes de inglês de “pensar direito”, como tantas pessoas desinformadas andaram dizendo por aí? É muita ignorância achar que a concordância redundante leva alguém a pensar melhor. Olhaí o Merval Pereira, eleito para a Academia Brasileira de Letras: usa muitas concordâncias, mas pensar direito... Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

o fascismo com um discurso antifavelado e antipatriota, pois em qualquer parte do mundo onde se toca o que se cria hoje nas favelas cariocas, quem entende de música fala: “Isso é música eletrônica brasileira” Ele falou que é um absurdo quererem o funk carioca como patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, mas eu não sei de onde ele tirou isso. O que a gente já fez foi o estado reconhecer por lei o funk como cultura e nada mais, para podermos lutar contra uma perseguição executiva e legislativa que existia em nosso estado e que a gente possa seguir a luta contra uma perseguição policial ainda em curso. Nasci ouvindo Jacson do Pandeiro (meu pai Chico Mota gravou com ele) e toda cultura nordestina, cresci ouvindo samba (sou da ala de compositores da Acadêmicos da Rocinha, favela na qual sou nascido e criado), mas foi o funk que me deu a oportunidade de me comunicar com as condições que eu tinha na minha adolescência. Viva o funk, viva a favela, viva o não preconceito! Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

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paÇOCA Pedro Alexandre Sanches ...

“Entre o sim e o não existe um vão”, cantou o medalhão da MPB Ney Matogrosso, num show incomum de que participou em junho passado. A banda de acompanhamento era a Isca de Polícia, tradutora há mais de três décadas do ideário de Itamar Assumpção (1949-2003), rebelde compositor brasileiro que já apelidamos por aqui de “o intérprete do não”. O verso pertence ao soul-rock-MPB de protesto Chavão Abre Porta Grande, que o paulista Itamar lançou em 1986, no underground, e em 1988 o sul-matogrossense Ney fez atravessar até o mainstream, gravando-o no disco Quem Não Vive Tem Medo da Morte. O título, por sinal, era extraído de outro verso da mesma canção. Itamar foi um dos primeiros artistas brasileiros a lançar discos independentes. Ao gravar Chavão Abre Porta Grande, Ney tornou-se o primeiro (e por muito tempo único) artista do dito primeiro time da MPB a gravar Itamar. Nos shows raros e preciosos de junho de 2011, Ney reuniu-se à ferina Isca de Polícia e se tornou o primeiro medalhão da música pop brasileira a fazer um show inteiro devotado ao “maldito” Itamar. A ocasião era inédita para ele também, mesmo sendo um egresso dos Secos & Molhados (19731974) e tendo cantado e gravado com a banda carioca Pedro Luís e A Parede (2004-2006). Ali, Ney cantava pela primeira vez secundado por vozes femininas – as “itamarianas” vocalistas do Isca, Suzana Salles e Vange Milliet, mais Alzira Espíndola. “Mulher segundo meu pai!”, grita Itamar, na primeira frase de um disco lançado em junho de 2011. Sim, ele está morto. Mas não, ele não está morto. O disco se chama Sou Suspeita Estou Sujeita Não Sou Santa, e pertence à filha do homem, Anelis Assumpção, nascida em 1980, ao mesmo tempo que o primeiro disco da Isca de Polícia. As muitas mulheres com quem Itamar cantou ao longo da vida se reagrupam numa só, sua filha, que canta, em Mulher Segundo Meu Pai, versos inventados por ele: “Bem que meu pai me avisou/ homem não sabe mulher/ falou que falou seu pai, meu avô/ mulher é o que Deus quiser”. Anelis é compositora, além de cantora. Parece bobagem, mas compor é profissão que parecia inexistir para mulheres até poucas décadas atrás, salvo exceções como Dolores Duran, Rita Lee, Patti Smith, Deborah Harry, Marina Lima, www.carosamigos.com.br

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ilustração: MURILO

Afinando o coro dos descontentes

Paula Toller. “Culpa/ quem precisa?/ quem inventou?/ quem mandou?/ deita, desata o nó na garganta/ tira o tênis e se encosta no muro na vida”, compõe Anelis, em clave de sim. “Não adianta ir arreganhando os dentes para mim porque sei que isso não é um sorriso”, Itamar rugia sem tomar fôlego em 1986, em Chavão Abre Porta Grande. “Penso, logo existo/ penso que existo/ penso que penso/ canto, logo existo/ canto enquanto isso/ canto enquanto posso”, afirmava, parecendo tentar se convencer mais que ter certeza do que dizia. “Não sei se gosto de mim/ não sei se gosto de você/ mas gosto de nós”, Ney reproduziu em 1988 e reproduz em 2011. Naqueles anos 80, o não-compositor vindo do Mato Grosso (do Sul) chegou a convidar o compositor-cantor-músico paulista que morara no Paraná para um trabalho conjunto. Itamar não falou nem sim nem não, mas o encontro nunca houve. Itamar não sabia se gostava de si, não sabia se gostava de Ney. Mas gostava deles juntos. Disse inúmeras vezes nas décadas seguintes que gostaria que Ney gravasse um disco só com suas músicas. Ney gravou sete até hoje, mas um disco inteiro ainda não. Os shows de junho significam um passo largo naquela direção. No palco, Ney cantou 13 números, um deles uma versão 100% Isca de Polícia para “Sangue Latino” (1973), dos Secos & Molhados, e os outros, 100% Itamar. Afirmação negra, revolução (homo)sexual e libertação feminina são protagonistas no encontro Ney (& Itamar) & Isca. “Poeta, talvez seja melhor afinar o coro dos descontentes”, decretou o Ney de 2011, ecoando o Ney

de 1988 e o Itamar tateante de 1986. O verso de Chavão Abre Porta Grande remete-se em negativo a Let’s Play That (1972), tropicália do carioca Jards Macalé sobre versos do poeta piauiense Torquato Neto: “E eis que o anjo me disse, apertando minha mão entre um sorriso de dente/ ‘vá, bicho, desafinar o coro dos contentes!’”. Enquanto esteve aqui, Itamar foi tido e havido como sujeito irascível, arredio a aproximações da indústria fonográfica, da MPB e seus medalhões. Dizia, segundo o parceiro de Isca Paulo Lepetit, que era como Cartola, música para ser compreendida após a morte do autor. Enquanto esteve aqui, fez como avisara: andou afinando o coro dos descontentes, e dando pouco mais que sorrisos de soslaio a um Ney aqui, uma Cássia Eller e uma Zélia Duncan acolá, uma Rita Lee e um Tom Zé bem de vez em quando... De Ney a Anelis, o coro vai se arrumando, se ajeitando, se afinando, num processo ainda inconcluso. Itamar está vivo na regência das vozes (des) afinadas. E nunca para de desafiar os (des)contentes, tendo por espada o verso-síntese de uma de suas principais parceiras-mulheres, a poeta paranaense Alice Ruiz, que ele cantou em 1993 sob o título Vou Tirar Você do Dicionário: “Eu vou tirar você de mim assim que descobrir com quantos nãos se faz um sim”. “Um homem bateu em minha porta e eu abri/ os olhos/ e vi flores brotando pelo chão/ abaixe suas armas, deixe raiar o sol”, tateia a filha do homem, pedindo espaço, ar e delicadeza, em Amor Sustentável, parceria sua com outra mulher, Cris Scabello. “Vivendo e aprendendo a jogar, o melhor é se adiantar, pois quem não blefa dança”, diz Anelis, em sintonia com Aprendendo a Jogar (composta pelo paulista Guilherme Arantes e lançada em 1980 pela gaúcha Elis Regina), em Passando a Vez, parceria com Luz Marina cantada com o rapper Max B.O. Além do pai onipresente, o rap, o afroativista nigeriano Fela Kuti (1938-1997) e a pimenta Elis também estão transcritos dentro de Anelis. Na décima-quinta (e última) faixa de seu primeiro disco, uma outra voz feminina canta versos de composição própria: “O amor que me fez cantar/ não podia falar/ comigo/ eu cantarei com você/ sem pedir/ a vontade de casar com você...” A voz é de Rubi Assumpção, que tem 9 anos e é neta de Itamar. Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

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Tempos de Crise

ilustração: ricardo palamartchuk

A tempestade se avizinha

Por José Arbex Jr. Difícil avaliar o que é mais impressionante: as dimensões da crise mundial do capital ou a capacidade dos meios de comunicação hegemônicos de obscurecer a sua gravidade, e até gerar a impressão de que “o pior já passou”. A esquerda tupiniquim – ou melhor, aqueles parcos resíduos que sobraram do que um dia foi a esquerda –, salvo honrosas exceções, parece anestesiada pela operação midiática de hipnose coletiva e prefere acreditar no conto de fadas da “marolinha”. Sem pretender qualquer exercício de futurologia, e sem adotar a empáfia dos “especialistas”, o mero bom senso indica um quadro extremamente grave, cuja moldura pode ser assim descrita: Os Estados Unidos ainda estão muito longe de se recuperar do tsunami financeiro iniciado há quatro anos. Em 16 de maio, soaram novos sinais de alarme, quando a dívida pública estadunidense atingiu o teto histórico de 14,3 trilhões de dólares, o limite autorizado pelo Congresso, praticamente empatando com o PIB do país. A dívida pública é a soma de todos os empréstimos feitos pelo governo junto a credores (privados ou não, nacionais e internacionais) para financiar gastos não cobertos pela arrecadação dos impostos. O PIB é a soma total de bens e serviços produzidos ao longo do ano. Isso coloca uma dúvida sobre a capacidade de os

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Estados Unidos “honrarem o pagamento” junto aos seus credores em todo o mundo, incluindo China, Japão, Alemanha e o Brasil – países com fortes reservas em dólar. Pela primeira vez na sua história recente, os Estados Unidos foram considerados um mercado de risco para investidores, com notas negativas dadas pela agência especializada Standard & Poor’s (ironicamente, trata-se do mesmo sistema de classificação tradicionalmente usado para aterrorizar o Brasil e outros países “emergentes” e “subdesenvolvidos”). A agência admite que todas as medidas usadas pelo governo Obama para salvar os bancos e as grandes empresas falimentares deram resultados pífios. Os déficits fiscais (diferença entre receitas e despesas do governo ao longo do ano) saltaram de 3% do PIB em 2008 para 11% projetados até o final de 2011. A dívida não para de crescer. Enquanto o barco afunda, congressistas democratas e republicanos, de olho nas próximas eleições, trocam acusações mútuas de responsabilidade pelo caos, e propõem medidas antagônicas. Democratas querem aprovar a elevação do teto do endividamento público, criação de novas taxas e a eliminação de muitas isenções de taxação aprovadas durante os governos republicanos anteriores. Os republicanos propõem mais reduções de gastos

públicos (cortes em programas sociais, aposentadoria, benefícios etc) e nenhuma nova taxa. Trata-se do bom e velho debate entre “estatizantes” e “liberais”. Uma das respostas mais óbvias para atenuar a crise é: imprimir mais dólares (que ainda cumprem o papel de moeda mundial). Só que isso já foi feito e não adiantou coisa alguma. Hoje, há três vezes mais massa monetária (moeda em circulação) do que havia em 2008, só que isso não conseguiu revitalizar a economia. Além disso, a emissão de muito mais dólares é receita de crescimento da inflação e significa um rebaixamento do valor da moeda, numa situação internacional de elevação geral do preço do petróleo e dos alimentos – o que atinge em cheio a capacidade de consumo da já ultra endividada família média estadunidense. O economista brasileiro Luiz Gonzaga Beluzzo nota, em entrevista à Folha de S. Paulo (19.jun.2011): “Não estamos diante de uma crise só econômico-financeira. Ela apenas exprimiu um processo longo de 30, 40 anos de deterioração das normas e das regras que marcaram a economia do pós-guerra. Essa economia que eles chamam de neoliberal. O que aconteceu foi que os Estados foram progressivamente abandonando, a partir das décadas de 1960 e 1970, seus compromissos com os assalariados, os velhos, e foram privatizando tudo,

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com a participação das burocracias. Não é que o Estado tenha saído da economia. O Estado tinha outra agenda. Isso foi acompanhado por uma perda de posição das classes médias de todo o mundo, sobretudo nos Estados Unidos. Essa crise foi acompanhada por um tremendo aumento do conservadorismo. (...) Nos EUA, há o problema do desemprego. Os desempregados bem educados estão aumentando. Imagina o potencial de conflito social e de incompreensão na sociedade. Isso tem um rebatimento político.”

Europa

Na Zona do Euro, o quadro de crise é ainda mais agudo. O apito da panela de pressão soou em 2009, na Grécia, o primeiro país a dar os sinais da falência do Tratado de Maastricht, que, em 1991, forneceu as bases econômicas para a formação da União Europeia e da “zona do Euro”. O tratado estabelecia, como condição para participar da Zona do Euro, que qualquer país membro poderia contrair, no máximo, dívida e déficit orçamentário equivalentes a 60% e 3% do respectivo PIB. Para atingir tal equilíbrio, os países membros teriam que impor programas de austeridade fiscal, cortar gastos públicos e aplicar o receituário neoliberal que todos estão carecas de conhecer. Após uma década de euforia, com bilhões de dólares jorrando graças à especulação imobiliária, ao turismo e aos jogos olímpicos (em particular, nos casos da Grécia e da Espanha), a bomba estourou. As dívidas e os déficits apresentados pelos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) ultrapassaram em muito as exigências de Maastricht e colocaram dúvidas quanto a capacidade de pagar suas dívidas junto aos credores (principalmente, bancos privados alemães e franceses). Instaurou-se o temor de um quadro generalizado de falências de grandes instituições financeiras, com um efeito dominó capaz de, no limite, fazer explodir a própria Zona do Euro. Por ter sido o país onde primeiro estourou a crise, a Grécia também foi o primeiro laboratório para tentar “salvar o Euro”, com adoção das medidas clássicas do neoliberalismo para “sanear” a economia: congelamento de salários e aposentadorias públicas, cortes de benefícios no valor médio de três salários / ano para o funcionalismo público, aumento generalizado de impostos (sobre combustíveis, propriedade da terra, transações comerciais), aumento da idade mínima para aposentadoria, cortes de verbas para saúde e educação, privatização de setores estratégicos, redução dos direitos sindicais. O “pacote” imposto pelo FMI e pelo Banco Central europeu, de 156 bilhões de dólares (equivalentes a 47% do PIB, uma monstruosidade em termos econômicos), tinha como objetivo reduzir o déficit fiscal grego de 13,6% do PIB (em 2009) para 8,1% (em 2010), uma dívida que seria estabilizada em torno de 150% do PIB, garantindo com isso que os bancos privados continuassem recebendo regulamente o pagamento da dívida. É claro que o conjunto das medidas adotadas provocou uma situação de extrema tensão social, com greves, manifestações e embates com a polícia e com o www.carosamigos.com.br

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exército. Entretanto, apesar da brutalidade das medidas adotadas (que elevou o desemprego, em algumas regiões, até a 50% da população economicamente ativa), o máximo que o governo grego conseguiu foi reduzir o déficit para 10,5% do PIB, em 2010. Isto é, os resultados foram muito inferiores aos esperados. Não há perspectiva no horizonte visível de que a dívida vá ser de fato saldada. Mesmo que se abstraia a “questão social”, fazendo de conta que vão cessar as manifestações, ainda assim existe uma equação que não fecha: de um lado, a dívida cresce, pois os bancos credores em nada reduzem os juros cobrados; de outro, cai a arrecadação, com o aumento do desemprego. O “risco grego” produz um efeito cadeia em relação aos outros países periféricos da Zona do Euro: os credores aumentam os juros para “compensar os riscos”. Portugal e Irlanda já adotaram a rota grega do desastre: receberam, respectivamente, 110 e 120 bilhões de dólares em empréstimos do FMI e do BCE (47% e 53% do PIB), e agora a crise envolve brutalmente a Espanha. A crise espanhola é ainda mais alarmante, dado o tamanho de sua economia: seu PIB soma 1,4 trilhão de dólares, quase cinco vezes o da Grécia. A recessão, persistente desde 2008 (com crescimento marginal em 2010) e o encolhimento do mercado imobiliário (junto com o turismo, a principal fonte de seu desenvolvimento) produziram a catástrofe atual: 25% de desemprego da população economicamente ativa, chegando a 45% entre os jovens de até 25 anos. E os temores se voltam agora para a Itália de Sílvio Berlusconi, já mergulhada em uma grave crise política.

Revoltas

As revoltas da juventude em Madri e Barcelona, assim como em Atenas, nos subúrbios de Paris e em dezenas de cidades e regiões europeias expressam a reação à ameaça de desmantelamento das grandes conquistas sociais arrancadas aos Estados burgueses no pós-guerra. Mas há também o outro lado da moeda: as forças de direita avançam, tanto em termos eleitorais quanto na multiplicações de agrupamentos neonazistas e fascistoides. Delineia-se um quadro de grave polarização ideológica, social e política que tem no presidente francês Nicolas “burca” Sarkozi o principal ícone da “guerra aos imigrantes”, e em Sílvio Berlusconi a petulância e a vulgaridade do fascismo. Nos Estados Unidos, o mesmo quadro alimenta as organizações fundamentalistas evangélicas e os grupos racistas, que conseguem aprovar leis hediondas como as do estado do Arizona, que permitem à polícia deter qualquer pessoa de “aparência suspeita”. A “revolução árabe”, independente de seus contornos ideológicos, acrescenta um ingrediente explosivo: a dúvida quanto à normalização dos fluxos do petróleo, que fazem com que os preços do barril oscilem e cheguem à marca dos 150 dólares. Não há como prever o rumo que a “revolução árabe” adotará, até porque muitas “revoluções” se combinam para produzir a situação de instabilidade geral que engloba o Oriente Médio e o norte da África. Se, na Europa, a juventude se mobiliza em defesa de

conquistas sociais históricas, na outra margem do Mediterrâneo é a fome e a miséria – e não as redes sociais, como querem os pós-modernistas - que impulsionam a queda de ditaduras e monarquias. Mas trata-se de um processo caótico, em que se confundem grupos inspirados por uma ideologia não raro confusamente “democrática”, outros de esquerda, correntes islâmicas (não apenas fundamentalistas) e oportunistas de toda ordem. No Egito, caiu Hosni Mubarack, mas não o seu regime. Na Líbia, a guarda pessoal de Muamar Kadafi, regiamente paga, resiste aos ataques da Otan, e ambos assassinam às centenas civis inocentes expostos aos tiros cruzados. Na Síria, já foram mortos mais de 1.300 e não há uma perspectiva real de fim dos conflitos. E, claro, na Palestina prossegue a luta contra os invasores israelenses, que mantêm a política de dar continuidade à construção de assentamentos ilegais em Jerusalém e na Cisjordânia. Isso para não falar no desastre produzido por Washington no Iraque e no Afeganistão. O Irã e a Turquia, duas potências regionais, permanecem por enquanto como que em “compasso de espera”. A China, motor da economia mundial, consegue manter um certo nível de crescimento, graças à combinação de três sistemas econômicos (predominantemente financeiro, em Hong Kong, industrial nas Zonas Econômicas Especiais e agrícola no continente) submetidos à feroz ditadura do partido único. Os salários praticados na indústria e na agricultura estão entre os mais baixos do mundo (o que lhe permite exportar produtos a preços imbatíveis). Apesar disso, a China dá sinais de desaceleramento da produção, dada a contração dos mercados (as previsões de crescimento caíram de 10% do PIB para menos de 8% em 2011) e os juros básicos subiram para mais de 5%. Além disso, a China enfrenta crescentes tensões sociais e limitações básicas ao seu crescimento produzidas pelas ameaças de catástrofes ambientais. Esses números são muito mais graves do que sugerem à primeira vista. Se a China “esfria”, importa menos, especialmente commodities, e isso afeta diretamente o Brasil, por exemplo, seu principal parceiro comercial. Para os tupiniquins, tempos sombrios se avizinham. Em primeiro lugar, há um processo de encolhimento da indústria, principalmente decorrente da valorização excessiva do real (superior aos 35% nos últimos cinco anos), que torna cada vez mais difícil exportar. O mercado interno enfrenta os juros mais elevados do planeta, além de um processo de crescente endividamento médio da família. A economia está de joelhos diante do capital financeiro e do agronegócio, que fatura bilhões com as especulações sobre os preços das commodities (mercado que eleva brutalmente o preço mundial dos alimentos e está na base de um quadro que criou um bilhão de famintos). Não se trata mais de saber se a crise vai atingir o Brasil, mas sim de quando isso acontecerá e em que proporções. A crise mundial está apenas no seus primeiros degraus. José Arbex Jr. é jornalista.

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Brasil

Desnacionalização do etanol

põe em risco soberania energética

FOTOS: JESUS CARLOS

Capital privado internacional avança de forma voraz na compra de usinas que produzem a principal fonte da nova matriz energética mundial deste século.

Venda de usinas produtoras de etanol para grupos estrangeiros desnacionaliza matriz energética.

Por Lúcia Rodrigues “O Brasil é a Arábia Saudita do etanol”. A frase de Narendra Murkumbi, presidente da Shree Renuka, companhia indiana que controla várias usinas de etanol no Brasil, exprime bem a expectativa dos investidores estrangeiros em relação a essa fonte de energia renovável, genuinamente brasileira, e que assumirá, em um futuro mais breve do que se previa, papel preponderante na composição da matriz energética mundial. O novo cenário projetado pelo declínio das reservas petrolíferas no mundo impõe às economias desenvolvidas a busca por fontes alternativas de energia renovável. O etanol extraído da cana-de-açúcar desponta nesse contexto como a mais viável de todas as fontes de energias reno-

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váveis que se conhece. E o Brasil é o grande celeiro dessa fonte de energia do futuro. “O etanol é um produto estratégico”, avalia o economista e professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Wilson Cano. Para ele, a entrada de capital privado internacional no setor compromete a soberania nacional. “Significa que o país vai perder determinação sobre essa área.” Cano considera que isso vai agravar ainda mais a falta de controle estatal sobre o setor, que antes era controlado apenas pelo capital privado nacional. “É um agravante, porque torna mais difícil o governo negociar com um grupo estrangeiro do que com um nacional.”

Para ele, a motivação que desencadeou essa operação foi a “expectativa de lucro fácil”. Cano explica que a invasão do capital internacional se dá na esteira de um fenômeno que acontece ao longo dos últimos 10 anos. “O Brasil se tornou o paraíso para investimento em setores estratégicos. Não é só o setor de etanol que foi invadido, mas toda a agricultura está permeada pela presença dos grandes oligopólios internacionais. A invasão é generalizada.” A receita para reverter os danos provocados pelo modelo econômico adotado pelos dirigentes governamentais é, segundo o docente, a execução de uma política econômica de caráter nacionalista. “As políticas adotadas, notadamente no

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do Rosário já haviam se fusionado antes. Depois Cosan - Nova América, ETH e Brenco, A BP comprou os ativos da CMAA, a Noble comprou parte dos ativos da Cerradinho, a Cargill (estadunidense) comprou os ativos da Usina São João”, explica José Carlos Grubisich, presidente da ETH, usina controlada pela empreiteira baiana Odebrecht, Fonte estratégica que também controla a petroquímica Braskem. De olho na joia da coroa, o capital privado “Tanto as traders quanto as empresas de petróinternacional avança de maneira voraz sobre o leo, como investidores, como a Odebrecht, veem setor, que tradicionalmente sempre foi dominaessa oportunidade e querem entrar no setor. Esdo por grupos familiares de latifundiários brasitamos falando em produtos do setor energético. leiros. Mas a crise financeira de 2008 provocou Escala e competitividade de custo é muito imporprofunda alteração na composição desses negótante. No Brasil, tínhamos muitas empresas de cios. É nessa esteira que o capital estrangeiro entamanho insuficiente e estrutura financeira relatra em marcha e compra grande parte dos empretivamente enfraquecida. Esse movimento de conendimentos na área. “O Brasil é, provavelmente, centração vai continuar, porque há um mercado o único país do mundo com condições de expotencial, que está crescendo muito rápido”, conpandir o setor”, destaca o presidente da franceclui José Carlos. sa Louis Dreyfus, Bruno Melcher. A empresa que O executivo considera que a consolidação que Bruno dirige é dona da ex-gigante brasileira Sanocorre no setor é importante para a criação de telisa Vale. empresas mais fortes. Mas levanta a objeção de “Um terço do nosso setor teve dificuldades fique isso impede, na prática, a criação de outras nanceiras e, em função disso, ocorreu essa replantas. “Sempre que ocorre uma consolidação estruturação (com fusões e aquisições)”, afirma não há o aumento da capacidade instalada. NorMarcos Sawaya Jank, presidente da União da Inmalmente, as empresas que passam por esse prodústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a maior encesso precisam de 12 a 24 meses para se reorganitidade representativa das usinas sucroenergética zarem, digerirem a transação que foi feita.” do país, com aproximadamente 130 associados. Apesar de ser uma empresa de capital fechado, Hoje, o setor de etanol tem a participação de a ETH também tem acionistas estrangeiros (ja22% do capital internacional, segundo o dirigenponeses, americanos e ingleses) em sua compote ruralista. “Esse capital é muito bem-vindo. Sesição. Para José Carlos, a entrada de capital esnão teríamos tido uma quebradeira bastante fortrangeiro na área é importante. “Mostra o vigor te. No entanto, a presença estrangeira ainda é e a atratividade do setor. Todo mundo olha para muito pequena, bem menor do que em qualquer o etanol brasileiro, como exemplo de sucesso. É outro setor, inclusive, no da agroindústria”, frinormal que as grandes empresas de energia do sa Marcos. mundo olhem para o Brasil como o país de granOutro representante da entidade ruralista que de potencial.” preferiu não se identificar, também considera a Desde 2008, o etaentrada de recursos nol é o combustível internacionais impor“O Brasil é a Arábia Saudita do etanol”, utilizado por mais ou tante para o setor. “O Narendra Murkumbi, presidente da Shree menos 50% da frota capital é transnacioRenuka, companhia indiana que controla de veículos leves do nal.” Mas ressalta que várias usinas no Brasil. país. Além disso, o essa entrada maciça derivado da cana-dede dinheiro a partir de açúcar também substituirá a nafta, insumo bá2008 surpreendeu a todos. “Houve uma acelerasico da indústria petroquímica utilizada na proção na entrada do capital internacional em menos dução de toda a cadeia de plásticos e resinas. A tempo do que a cadeia esperava. A concentração descoberta da viabilidade do novo insumo permie a consolidação vieram antes do que prevíamos. te que se produza um plástico verde, como está Esperávamos que isso ocorresse em uma, duas désendo chamado o produto que irá substituir o obcadas, mas aconteceu em dois, três anos.” tido pelo processamento do derivado de petróleo. Ele conta que essa foi a forma encontrada pelo “A experiência do plástico verde já começou. A setor para sobreviver. “Existiam empresas nacioBraskem é a primeira indústria a usar biomassa, nais muito debilitadas, aí entraram Shell (inglematéria-prima limpa e renovável, para fazer posa), BP (inglesa), Bunge (estadunidense), Louis límeros para uso no mercado internacional”, reDreyfus (francesa), Noble. Ao invés de construvela o presidente da ETH. írem novas usinas com o capital que dispunham, O etanol adquire relevo estratégico na compoadquiriram ou se associaram às empresas brasisição da nova matriz energética mundial. O setor leiras que estavam em dificuldade. Um exemplo sucroenergético representa 18% da matriz brasié a Bunge que comprou o grupo Moema. Assuleira, atualmente. Na safra de 2010/2011 foram miu o controle das usinas do grupo e não consproduzidos 27,5 bilhões de litros de álcool. O setruiu mais nenhuma unidade.” tor sucroenergético movimentou R$ 60 bilhões. “A primeira transação foi a da Dreyfus, que Mais de três quartos dessa movimentação aconcomprou a Santelisa Vale. A Santa Elisa e a Vale governo Fernando Henrique Cardoso foram desnacionalizantes, atenderam aos interesses estrangeiros. O governo Lula manteve isso, segurou um pouco as privatizações, mas a desnacionalização continuou a todo o vapor.”

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Trabalhador rural no corte da cana.

teceu depois de a cana deixar a fazenda. Hoje, existem 435 usinas e destilarias distribuídas pelo país, sendo que a maior parte delas estão concentradas no Estado de São Paulo, que responde por 63% da moagem. O Produto Interno Bruto do setor sucroenergético, em 2008, foi equivalente ao PIB uruguaio. Os números expressivos despertam grande interesse do capital internacional, que avança com volúpia sobre o setor. “Países da Europa, Ásia e os Estados Unidos vão ficar em uma situação de insegurança energética muito grande e estão correndo atrás de alternativas”, ressalta Fernando Siqueira, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), ao se referir ao declínio das reservas mundiais de petróleo. “Estamos no limiar do terceiro e definitivo choque mundial do petróleo. A tendência daqui para frente é a produção petrolífera declinar. E essa queda vai ocorrer de forma muito acentuada.” De acordo com ele, hoje são produzidos no planeta 86 milhões de barris de petróleo diariamente. Em 2020, a previsão é de que essa produção caia para 60 milhões de barris dia. O engenheiro da Petrobras explica, no entanto, que o pré-sal brasileiro continua sendo o alvo preferencial desses países e destaca a importância que as reservas petrolíferas nacionais têm nesse contexto. No entanto, apesar de gigante, uma exploração predatória do hidrocarboneto pode comprometer seriamente essas reservas. Segundo Fernando, uma prospecção frenética encurtaria o tempo de vida dessas reservas, para algo em torno de 13 anos.

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Governo aposta em fortalecimento de grupos privados a Louis Dreyfus. A capacidade de moagem lideAo contrário do setor privado internacional, rada pela estatal nas plantas em que atua é de que identificou a importância estratégica que o 24,5 milhões de toneladas de cana, além da proetanol terá na conformação da nova matriz enerdução de 942 mil metros cúbicos de etanol e 517 gética mundial no próximo período e age para GWh de energia elétrica (geração a partir do bacontrolar sua produção, o governo brasileiro aingaço da cana). da tateia no setor. O presidente da Petrobras Bio combustível, Miguel Rossetto, não considera que a fonte da matriz energética vá se alterar em um Risco à soberania futuro próximo. “Temos outro cenário. Não enA fusão da Cosan com a petroleira inglesa xergamos outras fontes primárias nas próximas Shell deixa claro os riscos a que o país está subdécadas, que não sejam o petróleo, o gás e o carmetido pela falta de visão estratégica do Estavão”, frisa. do brasileiro. Parecer da Secretaria de AcompaA opinião de Rossetto vai na contramão da nhamento Econômico do Ministério da Fazenda, de executivos da área privada de biocombustíde 25 de novembro de 2010, aprovou a transaveis. “O mundo vai mudar nos próximos 10, 20, ção sem restrições. A operação é tratada no tex30 anos. A biomassa certamente é a aposta”, afirto como um ato de concentração entre a Cosan ma José Carlos Grubisich, presidente da ETH, usiS/A Indústria e Comércio e a Shell International na controlada pela empreiteira baiana OdebrePetroleum Company Limited. Na prática, a medicht, que também é controladora da petroquímica da permite a transferência da produção dos deriBraskem. vados da cana-de-açúcar para as mãos do capital “A Shell tem uma visão muito clara de que o privado internacional. biocombustível vai ter um papel fundamental no O salvo-conduto para a desnacionalização futuro”, destaca Vasco Dias, presidente da Raízen, do setor chancelou a criação de joint ventures. A a caçula do setor, que surgiu da fusão da Cosan, Raízen é a primeira a ser efetivada após o sinal a maior sucroalcooleira do mundo, com a petroverde dado pelo governo federal. A reportagem leira inglesa Shell, uma das integrantes do carda Caros Amigos entrou em contato com a nova tel das Sete Irmãs. Ele pondera, no entanto, que o empresa pelo número telefônico disponibilizado petróleo ainda terá papel preponderante nos próem sua página na internet, mas foi informada de ximos 20, 30 anos. que a assessoria da petroleira inglesa é a responSobre o processo de concentração que está sável pelo atendimento aos jornalistas. Nenhum ocorrendo entre as empresas sucroenergéticas, dado solicitado pela revista foi repassado pela aso presidente da Petrobras Biocombustível deixa sessoria de imprensa da Shell. clara a linha definida pela estatal para o setor. “O Informações divulgadas pela Raízen em sua cenário com que trabalhamos é o de grandes grupágina na internet afirmam que a empresa é respos articulando um pólo de produção de etanol e ponsável por 23 usinas. Esse é o mesmo númebiomassa, em escala nacional.” ro de usinas antes dominadas pela Cosan. Juntas O plano de negócios da Companhia para a área têm a capacidade para a moagem de aproximadaprevê investimentos de U$ 1,9 bilhão até 2014. mente 62 milhões de toneladas de cana-de-açúA estatal opera 10 usinas de etanol em parceria car por ano. Segundo o texto, a nova empresa com a iniciativa privada. Uma dessas parcerias é produzirá em torno de 2,2 bilhões de litros de etacom a São Martinho, a maior usina do país e cujo nol e quatro milhões de toneladas de açúcar por acionista principal é o segundo vice-presidente ano. A capacidade instalada para a produção de da Federação das Inenergia elétrica extraídústrias de São Paulo da do bagaço da cana é “Não é só o setor do etanol que foi (Fiesp), João Guilherinvadido, mas toda a agricultura está de 900 megawatts. Sua me Sabino Ometto. permeada pela presença dos grandes participação na logís“Fizemos essa op- oligopólios internacionais”, Wilson Cano, tica (álcoolduto) para o ção, porque temos escoamento do etanol professor da Unicamp. muito a aprender. É também é um dos itens uma escolha de preem relevo no portfólio sença flexível por meio de associação com grupos da empresa. O aporte em caixa é de aproximadaque dispõem de experiência no setor. Temos 50% mente US$ 1,6 bilhão. de participação nessas empresas e participamos A Raízen faz questão de ressaltar que é uma ativamente das suas gestões, além disso, temos indústria nacional. “É uma empresa brasileira, produção própria de cana em áreas arrendadas com base no Brasil, que quer crescer no Brasil e em várias de nossas usinas”, enfatiza Rossetto. levar o etanol para o mundo”, afirma seu presiA Petrobras Biocombustíveis ocupa a terceira dente e funcionário da Shell, Vasco Dias. colocação no ranking do setor. Em primeiro lu“A opção pelo nome em português reforça gar, aparece a Raízen. Na segunda colocação está tratar-se de uma organização brasileira”, infor-

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ma o texto da empresa na internet. Assim como a joint venture recém criada, a Shell, em sua página online, também chama à atenção para o fato de tratar-se de uma companhia nacional. A petroleira inglesa afirma, ainda, que “ao mesmo tempo em que é uma organização nova, a Raízen acumula a experiência dos acionistas”. “A nova organização formada pela Royal Dutch Shell e a Cosan S/A será uma das cinco maiores empresas do país em faturamento, com valor de mercado estimado em US$ 12 bilhões e cerca de 40 mil funcionários”. A Shell está presente em mais de 100 países. No Brasil, o grupo detém participação em 14 empresas. Nos últimos três anos, a empresa se envolveu em sete operações, submetidas ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Já a Cosan tem participação em 25 empresas do país. No mesmo período, se envolveu em nove operações relativas a atos de concentração. O reinado do hidrocarboneto está cada vez mais próximo do fim e, por isso, a Shell busca alternativas viáveis para evitar a derrocada dos lucros. Controlar o setor de energia renovável é imperioso para continuar garantindo ganhos estratosféricos. “O etanol da cana é reconhecido no mundo inteiro como uma importante fonte de energia limpa e renovável”, destaca texto da Raízen na internet. “Enquanto o mundo busca alternativas ao petróleo, o Brasil já usa etanol em larga escala há mais de 30 anos. Neste período, adquirimos experiência na produção e uso do etanol da cana-de-açúcar. E, hoje podemos dizer, com orgulho, que dominamos essa tecnologia com elevados índices de excelência e competitividade”, completa.

De mãos dadas

A concentração foi o mecanismo encontrado para ganhar escala e aumentar os lucros. Em 2008, a Cosan comprou ativos na área de distribuição de combustíveis e lubrificantes da ExxonMobil “tornando-se o único player de energia renovável totalmente integrado no mundo”. Motivo de menos orgulho deve ser o fato de a empresa ter integrado a lista suja do Ministério do Trabalho pela prática de trabalho em condições análogas a de escravos em suas unidades, conforme apontou reportagem da Caros Amigos na edição de julho de 2010. O presidente da Associação de Engenheiros da Petrobras (Aepet), Fernando Siqueira, vê a concentração da Cosan e da Shell com muita preocupação. Segundo ele, o Estado brasileiro terá muito mais dificuldade para controlar o setor de etanol, que agora se internacionaliza. É certo que a produção desse combustível sempre esteve nas mãos do setor privado, dominado pelo agronegócio nacional, e que a mar-

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gem de intervenção estatal sempre foi muitíssimo reduzida. O caso mais recente, que culminou com a explosão do preço do álcool na bomba dos postos de combustíveis, revela o poder de fogo dos usineiros brasileiros. Motivados pela alta no preço do açúcar no mercado internacional, não tiveram dúvida em desviar a cana, que seria destinada à produção do etanol, para a industrialização do açúcar. Os ruralistas sempre deram as cartas nesse jogo. Mas, agora, o problema se avoluma em escala exponencial e pode trazer consequências desastrosas para a sociedade, que além de estar refém de atores privados, também ficará nas mãos de agentes privados internacionais. O engenheiro da Petrobras considera que a cana-de-açúcar é um dos principais substitutos do petróleo, porque além de ser utilizada como combustível também poderá ser processada pela indústria petroquímica. Por isso, a fusão de uma empresa nacional com uma multinacional em um setor tão estratégico representa um risco enorme para o país. “É a desnacionalização do futuro, da energia renovável. O etanol é um dos componentes da matriz energética brasileira. É um segmento cada vez mais estratégico para o país.”

Lesa-pátria

O parecer da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, que aprovou o ato de concentração entre a Shell e a Cosan, sem nenhuma ressalva, não revela o valor da transação do contrato. O assunto é transcrito como confidencial, assim como a data em que foi firmado o acordo. “Cabe salientar que no contrato, celebrado entre as partes, consta a cláusula confidencial que versa sobre um acordo não concorrencial confidencial”, afirma o texto. Despacho da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, de 2 de dezembro de 2010, também chancela a operação. “Pelos princípios da economia processual e da eficiência da administração pública, nos ternos do §1 do artigo 50 da Lei 9.784/99, e da Portaria Conjunta SEAE/ MF e SDE/MJ 33/2006, concordo com o teor do parecer da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da fazenda, cujos termos passam a integrar esta decisão, como sua motivação. Opino, consequentemente, pela aprovação do ato sem restrições, devendo este processo ser encaminhado ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).” A Advocacia Geral da União e a Procuradoria Federal do Cade também aprovaram a operação sem restrições. “Parecer da Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico) no sentido de que a operação deva ser aprovada sem restrições. Com efeito, nos únicos mercados em que foi necessário o prosseguimento da análise para verificação de probabilidade de poder de mercado foi constatada efetiva rivalidade e, consequentemente, a ausência de preocupações concorrenciais decorrentes da operação”, revela. “Opinase pelo conhecimento da operação, bem como a

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Canaviais brasileiros também estão sendo adquiridos por grupos internacionais.

mão de um segmento estratégico. É uma perda aprovação sem restrição”, ressalta o parecer de 28 enorme para o país uma empresa estrangeira no de janeiro de 2011. controle disso.” “A Shell é uma das empresas mais poderosas, o O Brasil é fornecedor de energia alternativa ao cartel do petróleo atua no mundo inteiro sem lepetróleo. O pré-sal, segundo o engenheiro da Pevar em conta escrúpulos. Essas empresas têm por trobras, representa 10% das reservas mundiais. hábito tomar as reservas dos países detentores. Com o choque do petróleo que se aproxima, a E quando compra uma empresa nacional de prosituação tende a se agravar sobremaneira. “Por dução de biomassa isso torna a situação preocuisso, há esse desespero por fontes de energia alpante do ponto de vista da soberania nacional. A ternativas.” A Shell está fazendo o papel que o produção de energia renovável é um segmento Estado brasileiro deveria fazer. O Estado deveria cada vez mais estratégico”, enfatiza Fernando. ter essa visão estratégica de futuro e resguardar O etanol é uma fonte de energia renovável que o país contra esse tipo invasão. poucos países têm a chance de ter. É um dos com“Se abrir a produção sem controle, o pré-sal ponentes da matriz energética brasileira. A tenacaba em 13 anos. Aí o Brasil fica em uma situadência é essa matriz aumentar sua participação ção desesperadora, como os países desenvolvidos no cenário atual, apesar de o petróleo ainda reestão hoje. O governo presentar a principal e tem de ter essa visão. mais eficiente fonte de “Essa é a energia do futuro, o pré-sal Além do pré-sal, tem energia e de se apreé temporário, embora seja uma esse trunfo importansentar como a matéreserva do tamanho do Iraque”, tíssimo que é a proria-prima da indúsFernando Siqueira, presidente da Aepet. dução de energia altria petroquímica. No ternativa e que não entanto, o etanol despode ser desnacionalizada”, enfatiza Fernando. ponta nesse cenário como um dos principais pro“Essa é a energia do futuro, o pré-sal é temtagonistas de energia renovável. “Hoje 90% do porário, embora seja uma reserva do tamanho do que se consome é fruto do petróleo, mas o álcool Iraque. O desenvolvimento permanente é a enerjunto com o óleo vegetal são as fontes capazes de gia renovável, entre as quais está o etanol. O Brasubstituir essas funções. Por isso, tem uma imporsil tem de ter um plano estratégico nacional de tância estratégica para o país. A entrada da Shell soberania. O incentivo à agricultura familiar tem significa a desnacionalização dessa fonte estratéde ter um papel importante nesse cenário”, afirma gica de energia”, argumenta. Fernando Siqueira em forma de conselho à presiO engenheiro alerta que o governo federal não dente Dilma Rousseff. está dando a devida importância para a questão. “O governo não está entendendo a gravidade dos fatos. Não freia a ganância dessas empreAgricultura familiar sas no pré-sal e não impede o domínio de uma O apoio à agricultura familiar para a produenergia alternativa por uma empresa estrangeição de etanol é justamente o que reivindica o sera. Acho isso muito grave para o país. Daqui há cretário geral da Federação dos Trabalhadores na 10 anos o petróleo vai estar em uma curva desAgricultura Familiar (Fetraf), Marcos Rochinski. cendente de produção e a biomassa será a sal“Nós defendemos um modelo descentralizado de vação. Se não tivermos o controle, vamos abrir produção envolvendo os agricultores familiares

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Mecanização vai reduzir emprego de trabalhadores rurais.

cisa ter controle sobre o capital estrangeiro. Precie pequenas empresas no beneficiamento sob o sa resgatar seu papel estratégico.” Segundo ele, a guarda chuva da Petrobras, que é estatal e que departicipação da agricultura familiar no total geral veria conduzir esse processo de desenvolvimento da produção brasileira gira entre 20% e 25%. estratégico.” Para o dirigente camponês, a fusão entre as De acordo com ele, a Petrobras não tem necesduas gigantes ocorreu para disputar melhor o mersidade de recorrer ao capital estrangeiro para se cado. “A Shell vislumbrou o potencial dos agrotornar o grande celeiro de energia renovável. Ele combustíveis para o futuro. Sabe que os derivados acrescenta que a integração com os agricultores de petróleo estão com os dias contados. E, para familiares está aquém do esperado. “Existe uma continuar sendo uma das principais empresas do pequena escala de compra e integração, mas muimundo, precisa ter uma atuação na área de enerto menor do que a que gente imaginava quando gia renovável. O álcool aparece como essa grande foi lançado o programa de biocombustíveis.” fonte de energia.” Ele também revela as transformações que Ele considera que o governo tem consciência estão ocorrendo no campo brasileiro. E destada importância de tomar para si o controle desca o procedimento adotado pela Cosan, baseasa fonte alternativa energia, no entanto, é dependo no modelo de integração padrão fixado pela dente da entrada de sucroalcooleira. Não capital internacional há margem de mano“Cada vez que se fortalecem as e, por isso, acaba cebra para os agriculgrandes empresas multinacionais, dendo. “O Estado até tores familiares. “Vidiminui a capacidade do Estado tem essa visão, mas, vemos de um modo brasileiro”, Marcos Rochinski, em função da necesgeral uma relação de presidente da Fetraf. sidade de entrada de integração com escapital estrangeiro sas empresas. São elas para se tornar uma grande potência, acaba abrinque definem todos parâmetros, o trabalhado demais para essas empresas transnacionais. dor rural acaba entrando com a força de “A gente discorda. Tem de explorar a cadeia trabalho.” dos biocombustíveis prioritariamente por empreMarcos conta que no Estado de São Pausas nacionais. Isso pode ser uma alternativa de lo, além da venda da produção, os agricultores renda para os agricultores familiares, estimulando familiares também estão sendo induzidos a arpequenas e médias empresas. Descentraliza renda rendar suas terras para o plantio da cana-de-açúe gera emprego”, afirma o agricultor. car por essas empresas. “Cada vez que se fortaleEsse modelo baseado na centralização das decem as grandes empresas multinacionais, diminui finições dos rumos pelas transnacionais traz uma a capacidade do Estado brasileiro de definir parâsérie de problemas para o país. Uma delas e talmetros, seja de produção, comercialização, preços, vez a mais visível é a perda da soberania naciorelação de trabalho.” nal. O Estado perde a capacidade de intervir em A entrada da Shell no setor deixa Marcos ainda um setor estratégico para o conjunto da sociedade, mais apreensivo. “Nós sempre nos preocupamos que passa a ser desempenhado pelo oligopólio pricom a atuação das transnacionais. O governo pre-

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vado. “A presença dessas megaempresas sempre trazem problemas e insegurança em relação à soberania do país. A gente fica à mercê. Com a entrada da Shell, a tendência é piorar a situação.” Para o coordenador da Federação Única dos Petroleiros, a FUP, João Antonio de Moraes, os interesses nacionais não podem estar submetidos ao lucro das transnacionais. “Nós já não considerávamos o cenário anterior o ideal (em que o controle era privado, porém nacional). Há algum tempo defendemos que o governo tome uma posição com muito mais energia. Somos críticos dessa situação. É preciso que o Estado tenha o controle, o que efetivamente nunca ocorreu no setor do álcool. Sempre ficamos à mercê dos interesses dos usineiros. Recentemente, vimos o que aconteceu com o aumento do preço do álcool, porque o açúcar estava dando mais dinheiro. A vinda da Shell agrava essa situação, além de ficarmos submetidos aos interesses do lucro, como já estávamos, passamos a ficar submetidos, também, aos interesses de uma empresa cuja sede não é o Brasil. Vamos supor que tenhamos uma situação de emergência no mundo. A quem a Shell terá interesse de abastecer? O Brasil ou sua matriz?”, questiona. O petroleiro considera que a Petrobras deve ter uma participação mais efetiva na produção do etanol. Ele destaca ainda características que depõem contra a companhia inglesa que agora finca bandeira no setor de etanol “É muito complicado ter esse setor estratégico sob controle de uma empresa de capital internacional. É preciso ações efetivas para mudar essa realidade. A Shell ainda tem um agravante a mais. Oferece péssimas condições de trabalho, além de não respeitar os sindicatos.” A petroleira inglesa é a segunda produtora de petróleo no Brasil, sua produção gira em torno de 100 mil barris em plataformas totalmente terceirizadas. “Fora toda agressão à soberania nacional, à segurança energética, ainda tem a agressão às condições de trabalho e aos direitos sindicais”, critica o dirigente da FUP. “Nós, petroleiros, nos recusamos a chamar a lei de petróleo de marco regulatório, porque o Estado tem de ser, na verdade, o indutor e o controlador do desenvolvimento dessa área, tanto do etanol como do petróleo. O Estado tem de parar de olhar como mero regulador dessa questão. Tem de deixar de tratar como se fosse uma commodity. Porque não é uma commodity, é um bem estratégico. Ninguém pode viver sem combustível, não dá para tratar apenas como uma mercadoria, que se compra no mercado. Não dá para se sujeitar aos interesses de outras nações. O Estado deve atuar para que a Petrobras tenha papel mais pró-ativo, que invista pesadamente, para evitar que fiquemos reféns de transnacionais. O Estado brasileiro tem de agir para não ficar em uma posição de mero agente regulador”, adverte. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br

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amigos de papel

Sérgio Vaz

Joel Rufino dos Santos ...

FELICIDADE

“A África não tem História”. Essa sentença proferida por um filósofo, há duzentos anos, ainda tem adeptos. Equivale a outra em que muitos brasileiros acreditam: “Não é possível fazer a história dos negros brasileiros porque Rui Barbosa queimou os documentos da escravidão”. A primeira é um clichê do século 19, hoje superado. A segunda, uma pegadinha em que até os movimentos negros caíram. O que Ruy, ministro da Fazenda, mandou queimar foram os documentos fazendários de entradas de escravos, e nem se fez completamente – a ineficácia do serviço público, nesse caso, foi benéfica. Sem falar que a História não depende do documento escrito. Ela colhe dados na arqueologia, na literatura, no folclore, na linguística, na arquitetura etc. O direito à História faz parte da agenda democrática. Os povos e as pessoas se constroem narrando suas vidas. É através do reconto interminável do que lhe aconteceu no tempo que povos e pessoas ganham existência. Se não narram não existem. Se poderia dizer, como outro filósofo bicentenário, que o mundo é feito de histórias e outras coisas – como as epifanias e as partículas de matéria que desaparecem antes de aparecer. Entender, pois, a narrativa como exclusiva de alguns é uma prática ideológica de dominação. Entre os “povos primitivos”, o poder começa com a interdição de o outro discursar sobre si próprio. E o supremacismo – palavra hoje um pouco esquecida – dos séculos 19 e 20, foi a deletação pelos europeus das outras narrações. Americanos e asiáticos, em menor medida, teriam alguma História, a África nenhuma. Tive essas ideias fitando um livro e minha coleção de cordéis. O livro é Domingos Sodré, um sacerdote africano (Companhia das Letras, 2008). João José Reis dá existência a um adivinho-curandeiro na Bahia do século 19. Ganha direito à História a rede social de gente comum que o cercava. Não fosse a narração do historiador, baseada em testamentos, inventários, boletins de ocorrência de polícia, jornais etc., não existiriam. O direito à História é o direito à existência. A narração tem infinitas modalidades. A historiografia é, talvez, a mais prestigiosa. Se funda na crença de que há uma verdade histó-

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Ilustração: koblitz

Pedro Cem

rica, que cabe separar da ficção. No livro de Reis se vê que isso é impossível, o que não diminui o seu valor. Pelo contrário, a indefinição lhe agrega valor (como se diz hoje). Aliás, a historiografia atual é um gênero literário, o que pôs em moda as biografias. Nelas, a argumentação vai embutida na narração. Presenteio o leitor com duas estrofes do cordel A vida de Pedro Cem, de J.M. de Athayde (Juazeiro, 1974). Em cada país do mundo/ possuía cem sobrados/em cada banco ele tinha/ cem contos depositados/ocupava mensalmente/ dezessete mil empregados. Quando Pedro Cem morre, escreve o narrador: A Justiça examinando/os bolsos de Pedro Cem/encontrou uma mochila/e dentro dela um vintem/e um letreiro que dizia/ “ontem teve, hoje não tem”. Joel Rufino é historiador e escritor.

As coisas não nasceram para dar certo, somos nós é que fazemos as coisas acontecerem, ou não. Acredito que a gente tem que ter um foco a seguir, traçar metas, viver por elas. Ou morrer tentando. Jamais queimar etapas e saber reconhecer quando é a sua hora. O Acaso é uma grande armadilha e destrói os sonhos fracos de pessoas que se acham fortes. Não passar do tempo e nem chegar antes. Preparar o corpo, o espírito, estudar o tempo, o espaço. Não ser escravo de nenhum dos dois. Observar as coisas que interferem no seu dia e na sua noite. E saber entender que há aqueles sem sol e sem estrelas e que a vida não deve parar só por isso. Ser gentil com as pessoas e consigo mesmo. E gentileza não tem nada a ver com fraqueza, pois, assim como um bom espadachim, é preciso ter elegância para ferir seus adversários. O que adianta uma boca grande e um coração pequeno? Nunca diga que faz, se não o faz. Ame o teu ofício como uma religião, respeite suas convicções e as pratique de verdade, mesmo quando não tiver ninguém olhando. Milagres acontecem quando a gente vai à luta. Pratique esportes como arremesso de olhar, beijo na boca, poema no ouvido dos outros, andar de mãos dadas com a pessoa amada, respirar o espaço alheio, abraçar sonhos impossíveis e elogios à distância. E, em hipótese alguma, tente chegar em primeiro. Chegar junto é melhor, até porque, o universo não distribuiu medalhas nem troféus. Respeite as crianças, todas, inclusive aquela esquecida na sua memória. Sem crianças não há razão nenhuma para se acreditar num mundo melhor. As crianças não são o futuro, elas são o presente, e se ainda não aprendemos com isso, somos nós, os adultos, é que tiramos zero na escola. Ser feliz não quer dizer que não devemos estar revoltados com as coisas injustas que estão ao nosso redor, muito pelo contrário, ter uma causa verdadeira é uma alegria que poucos podem ter. Por isso, sorrir enquanto luta, é uma forma de confundir os inimigos. Principalmente os que habitam nossos corações. E jamais se sujeite a ser carcereiro do sorriso alheio. Não deixe que outras pessoas digam o que você deve ter, ou usar. Ter coisas é tão importante como não tê-las, mas é você quem deve decidir. Ter cartão de crédito é bom, porém, ter crédito nele tem um preço. Esteja sempre disposto ao aprendizado, e não se esqueça que, quem já sabe tudo é porque não aprendeu nada. As ruas são excelentes professoras de filosofia, pratique andar sobre elas. Tenha amigos. Se não tem, seja. Eles virão. E não acreditem em poetas. São pessoas tristes que vendem alegria. Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br.

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João Pedro Stedile

O veneno-nosso de cada dia! O Brasil virou o paraíso das empresas transnacionais fabricantes de venenos. Somos o maior mercado mundial de venenos agrícolas. Dos 48 bilhões de dólares vendidos em venenos, 7 bilhões são aqui. São despejados todos os anos quase 1 bilhão de litros de venenos em apenas 50 milhões de hectares, consumindo 20% de todos os venenos do mundo. Isso representa a grosso modo, uma média de 20 litros de venenos por ha de área cultivada, e uma média equivalente a 5 litros por pessoa ano! Treze empresas se especializaram em ter lucro com veneno! Entre elas apenas quatro brasileiras, mas as estrangeiras controlam mais de 80% de todo esse mercado (entre elas, anote: Syngenta. Bayer, Basf, Dupont, Monsanto, Shell química, etc). Essa sanha insaciável se deveu ao advento da fase globalizada do capitalismo que exigia liberdade total para sua ganância. E a internacionalização do domínio das empresas sobre a agricultura. Acoplado a isso, realizou-se no Brasil uma tríplice aliança entre o capital financeiro, que financia, as empresas transnacionais que controlam tudo, e os grandes proprietários de terra subservientes, que dividem o bolo. Essa aliança se chama agronegócio. Os fazendeiros brasileiros, “modernos”, trocaram a mão de obra por veneno. Aos brasileiros sobra: a agressão ao meio ambiente, pois esses venenos são em sua maioria

de origem química, não biodegradáveis e contaminam o ar, as plantas, o lençol freático. E sobra as enfermidades, pois permanecem nos alimentos que você leva à mesa todos os dias. Essa pequena cota diária algum dia vai aparecer na forma de algum tipo de intoxicação, até câncer. Segundo especialistas, a cada ano surgem 40 mil novos casos de câncer no Brasil, em sua maioria originários de alimentos contaminados, entre eles o tabaco e o álcool, que nesse caso possuem duplo poder de envenenamento. O estado brasileiro é conivente com essa situação, por sua natureza e dado o grande poder econômico das empresas, muitas delas sempre úteis no financiamento de campanhas eleitorais. Temos, no entanto, uma equipe de verdadeiros heróis nacionais, de um punhado de técnicos na ANVISA (agência de vigilância sanitária) do Ministério da Saúde, se desdobrando. No ano passado, tiveram que apreender e destruir mais de 500 mil litros de venenos adulterados. Ou seja, além de vender veneno, as poderosas empresas transnacionais adulteravam a fórmula, para ficar mais “potente” e enganar os agricultores. Em fevereiro de 2008, a ANVISA colocou em reavaliação toxicológica 14 ingredientes ativos, muitos deles proibidos em outros países por seus efeitos inaceitáveis à saúde humana. Passados

mais de três anos, foram concluídas as reavaliações de apenas seis deles. Destes, a Cihexatina e o Triclorfom já foram banidos do mercado. Graças a Deus e a ANVISA! O Endossulfam está com o banimento programado até junho de 2014; – quando já deveria ter saído. O Acefato está em fase de fechamento da reavaliação com as informações disponíveis até o momento; o Metamidofós está proposto a suspensão de junho de 2011, decisão sobre a qual existe um mandado de segurança em fase de julgamento e pedidos de diversos parlamentares (porque será?) para que tenha o prazo de fabricação ampliado em mais seis meses. E quem seria o responsável por suas consequências, depois? Para difundir todas essas informações na sociedade e lutar contra o uso de agrotóxicos, que custam muitas vidas, mais de 50 entidades lançaram a campanha nacional contra o uso dos agrotóxicos e pela vida. E o cineasta Silvio Tendler, com sua equipe, preparou um belo documentário de denúncia. Participe também você dessa campanha, sensibilize seu sindicato, entidade, escola, comunidade. Entre em contacto com a campanha pelo correio eletrônico contraosagrotoxicos@gmail.com. João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil

Frei Betto

A RODA DA FORTUNA O que distingue a modernidade das épocas anteriores é a nossa capacidade de criar e destruir, destruir e criar, sempre em busca de algo novo e melhor. Já não há durabilidade. Objetos que, numa mesma família, acompanhavam gerações, passavam de avós a filhos, netos e bisnetos, já não existem. A era dos museus de antiguidades terminou. Já não haveria suficiente espaço para abrigar tantos modelos de carro que se sucedem em meses ou gerações de computadores que surgem de um semestre ao outro. Agora o mundo mudou, e eu com ele. Meu idealismo também se tornou obsoleto. Já não bafeja a minha vaidade, nem me traz vantagens. Findou o mundo em que havia heróis, protótipos, modelos a serem seguidos – Gandhi, Mandela, Che. Hoje os paradigmas são pessoas de sucesso no mercado, celebridades, essa gente bonita e rica que ostenta luxo, esbanja saúde e ocupa sorridente as páginas das revistas de variedades. Vivemos agora no novo mundo em que tudo é continuamente deletável e descartável. Do meu

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computador ao carro, do estilo de vida à arte, tudo que é in hoje será out amanhã. Resta-me manter atento nesse esforço permanente de atualização. E não me cobrem coerência! Se minha própria aparência física sofre frequentes modificações por força de malhações e tratamentos estéticos, por que minha identidade deve permanecer imutável? Sim, ontem eu me alinhava ideologicamente à esquerda, assumia a causa dos oprimidos, engajavame em manifestações de protesto, expressava a minha indignação frente a esse mundo injusto. Ora, ninguém é de ferro! Se ouso mudar minha aparência para manter-me eternamente jovem e sedutor, por que não haveria de mudar minha postura ideológica, meus princípios e ideais de vida, de modo a não perder o bonde da contemporaneidade? Comigo, felizmente, a vida foi generosa. Graças àqueles princípios obsoletos, alcei funções de poder, destaquei-me do vulgo, adquiri prestígio e visibilidade. Troquei de moradia, guarda-roupa e mulher. Passei a dispor de uma conta bancária que engorda

mês a mês e me permite desfrutar de prazeres jamais sonhados anos atrás. Hoje sou amigo, e até parceiro, de muitos que ontem eram meus inimigos e alvos de minhas contundentes críticas. Se perco a minha posição social, se retorno ao mundo obsoleto, como haverei de manter meu confortável padrão de vida, o sítio, a casa de praia, as férias no exterior, a troca anual de carro? Como haverei de propiciar a filhos e netos o conforto que jamais tive na infância e na adolescência? Não devo mais olhar para o passado, onde jazem esquecidos meus ex-heróis, nem para o futuro, como se ali houvesse um ideal histórico. Basta-me olhar para dentro de mim mesmo e saber explorar ao máximo o que tenho de melhor: a astúcia de minha inteligência, a força de minha vontade e o poder de traficar influências. Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil - o mistério das cabeças degoladas” (Rocco).

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Bárbara Mengardo ...

ANTONIO CANDIDO foto: Fabio Carvalho

perfil

A crítica através da crítica literária

“Não tenho a intenção de aparecer”. Esta foi a resposta de Antonio Candido quando informado sobre este perfil. Da forma mais gentil que uma recusa poderia se dar, ele ainda exclamou antes de desligar o telefone: “Te desejo um bom trabalho, mas não posso te ajudar”. A declaração levantou uma grande dúvida. Como deixar de escrever sobre o maior crítico literário brasileiro de todos os tempos, que se destaca não só por suas obras, mas por ter inovado a maneira de se fazer e pensar a crítica literária no Brasil? Os questionamentos perduraram por um tempo, mas por fim, decidimos escrever o perfil, temerosos de desagradar um dos grandes nomes da esquerda brasileira, mas também com a certeza de que este texto não tem como objetivo expor Antonio Candido, mas sim tratar da riqueza de sua obra e militância. Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918. Seu pai, médico, lhe cobrou o ingresso em um curso universitário mais tradicional, e por este motivo, o futuro crítico literário entra, em 1939, no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e também no Curso de Direito da mesma universidade. O último abandona antes do término. Em 1941, Antonio Candido e um grupo de amigos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras fundam a revista Clima, publicação mensal que dura até 1944, e reúne artigos sobre literatura, artes plásticas, cinema, teatro, etc. “Era um grupo de amigos anti Estado Novo, anti fascismo criado na Europa e que resolveram fazer uma revista de cultura”, afirma o filósofo Paulo Arantes, amigo de Antonio Candido. A revista inova por trazer pela primeira vez conteúdos culturais produzidos por universitários. “O escritor no Brasil, em geral, era uma pessoa que tinha uma formação individual, que comprava livros, lia, fichava. O pessoal da revista Clima foi a primeira geração brasileira de críticos com formação universitária”, comenta o crítico literário Roberto Schwarz, aluno de Antonio Candido entre 1958 e 1960. Ainda no período em que era aluno da USP, Antonio Candido inicia sua militância política. Ele participa de um grupo clandestino da Faculdade de Direito intitulado Frente de Resistência, que reunia militantes de diversas correntes com orientação anti Estado Novo e

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contra a ditadura de Getúlio Vargas. O grupo dura pouco tempo, e parte dele, que incluía Antonio Candido, cria, em 1945, o núcleo paulista da Esquerda Democrática, que futuramente viria a se chamar Partido Socialista Brasileiro. Antonio Candido permanece pouco tempo na Esquerda Democrática, se afastando da militância de caráter mais partidário até a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980. Em 1943, o então já formado crítico literário publica pela primeira vez textos de sua autoria, no jornal Folha da Manhã, e, posteriormente, no Diário de São Paulo. Nos periódicos, ele produziu críticas de rodapé sobre diversos autores, como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. “O rodapé literário era uma coluna que ficava no pé da página, todos os jornais tinham críticas de rodapé sobre música, cinema etc. Era uma tradição brasileira fortíssima, e passaram por ela autores como Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda”, explica Vinicius Dantas, que escreveu os livros Textos de Intervenção e Bibliografia de Antonio Candido. O primeiro livro de Antonio Candido, Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero, é publicado em 1945, e traz sua tese de livre-docência. Candido ocupava o cargo de professor assistente na cadeira de sociologia II da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras desde 1942, e, em 1944, volta-se definitivamente às letras ao concorrer à cadeira de Literatura Brasileira. Ele não consegue a vaga, mas recebe o título de livre-docente, que trazia embutido o grau de doutor em letras. Em 1959, o crítico literário publica o que é considerado seu mais importante livro, “Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos”, que acompanha uma tendência que se estendia, no Brasil, desde os anos 1930. Não por acaso, entre a década de 1930 e 1950, são lançados livros que apresentam a palavra formação no título, como Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Esses e outros, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, utilizam diversos pontos de vista para analisar de forma inédita o Brasil desde a colônia. A obra de Antonio Candido também cumpre esse papel, mas sob o prisma da literatura. “Formação da literatura brasileira acompanha um regime completamente rarefeito de

vida cultural na colônia, aponta como isso vai se adensando e se autorreferindo” comenta Roberto Schwarz. Parceiros do Rio Bonito, outra importante obra de Antonio Candido, foi lançada em 1964, e retrata a realidade dos caipiras da cidade de Bofete, interior de São Paulo. A ideia de estudar comunidades tradicionais brasileiras estava sendo explorada pela primeira vez, como conta Paulo Arantes: “Essa redescoberta do Brasil popular, que havia sido preservado longe do mundo das mercadorias, era um achado dos modernistas brasileiros, e a Faculdade de Filosofia herda isso”. Uma das principais características de Antonio Candido como escritor e professor (função que exerceu até 1978) é a clareza. Grande parte de seus livros são muito fáceis de ler, e seus ex-alunos o definem como um professor extremamente claro e organizado. Roberto Schwarz cita o caráter político dessas características: “Para ele, transmitir coisas complexas de maneira que o público possa compreender é uma ideia política. O professor capaz de apresentar os problemas contemporâneos de maneira clara faz um esforço de democratização da cultura”. Em meio à ditadura militar, Antonio Candido escreve artigos críticos ao regime. Exemplo é o texto A verdade da repressão, divulgado no jornal Opinião e, posteriormente, republicado no livro Teresina, de 1980. Nele, Antonio Candido cita passagens de autores como Balzac, Dostoievski e Kafka que tratam da psicologia repressora da polícia, traçando um paralelo claro com o momento pelo qual passava o país e escancarando a perversão da repressão policial. A maneira que Antonio Candido traça a crítica à ditadura está diretamente relacionada com o modo inovador que ele faz crítica literária, utilizando obras já publicadas como subsídio para uma análise da sociedade. Paulo Arantes conta como Candido estendeu esse conceito à literatura brasileira: “Ele faz crítica literária de uma maneira onde através dela faz-se uma espécie de sondagem da literatura brasileira para reapresentar o funcionamento da sociedade brasileira de um ponto de vista crítico”. Com o fim da ditadura, Antonio Candido participa da fundação do PT, do qual é filiado até hoje, tendo nos últimos anos lançado manifestos em apoio a Lula e Dilma. Bárbara Mengardo é jornalista

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Reforma Política

O Congresso Nacional quer mesmo aprofundar a democracia?

ilustração: ricardo palamartchuk

O caso do enriquecimento de Antonio Palocci reacendeu o debate sobre a necessidade de uma reforma política ampla, que defina nova regulamentação das eleições, dos partidos, da representação e do financiamento das campanhas.

Por Tatiana Merlino A cada dois anos, quando acontecem eleições no Brasil inteiro, a grande mídia costuma qualificar o evento como “grande festa da democracia”. Afinal, são mais de 100 milhões de pessoas aptas a escolher seus novos representantes para os mais variados cargos políticos. Bastam alguns apertões de botão. Para um país que viveu por duas décadas uma ditadura civil-militar amplamente denunciada por violações dos direitos humanos e políticos, isso não é pouco. Mas será suficiente? Para muitos, não. Especialmente para pessoas identificadas com os ideais de esquerda, o Brasil precisaria avançar de uma grande democracia representativa para uma efetivamente participativa. Além disso, mesmo o sistema político atual oferece-

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ria enormes margens de manobra aos grandes grupos econômicos, cujos interesses quase sempre se sobressaem ao da maioria da população. Daí a necessidade de uma reforma política radical. Tal discussão vem desde a promulgação da Constituição de 1988. Muitos mecanismos de aprofundamento da democracia previstos por ela sequer foram regulamentados e transformados em leis. O tema voltou novamente ao debate após as denúncias de enriquecimento do ex-ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, claramente favorecido por um sistema caracterizado pela promiscuidade entre o público e o privado. No Congresso Nacional, a reforma política passou a ser discutida em fevereiro, por meio de duas comissões especiais criadas recen-

temente: uma no Senado, outra na Câmara dos Deputados. Em abril, a Comissão Especial da Reforma Política do Senado finalizou uma proposta com 13 itens e as encaminhou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Até o fechamento desta edição, a CCJ analisava os pontos um a um. Em seguida, as propostas devem ser votadas em plenário. Na Câmara, as discussões ainda estão em andamento.

Sistema defasado

Para alguns, especialmente os identificados com ideais de direita, apenas uma reforma eleitoral é necessária. Para outros, a reforma política, embora essencial, não dá conta de todos os vícios do sistema político do país.

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Na opinião de Fábio Konder Comparato, professor aposentado da faculdade de direito da Universidade de São Paulo (USP), “a verdadeira reforma política é aquela que muda o titular do poder supremo”. E, “hoje, o poder supremo está com o grande empresariado das finanças e do agronegócio, e em menor grau com os industriais. A esse núcleo duro do poder deve se ajuntar a maioria esmagadora dos membros dos órgãos públicos, com especial relevo para a corporação militar. Para iniciar a reforma política neste país, é preciso começar a minar as bases desse grupo oligárquico”, acredita. Tendo isso em mente, foi criada em 2004 a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, organizada por movimentos populares com o objetivo de debater o tema para além da reforma eleitoral, explica José Antônio Moroni, um dos seus representantes. Segundo ele, a plataforma é estruturada em cinco grandes eixos: fortalecimento da democracia direta, fortalecimento da democracia participativa e representativa, aperfeiçoamento da democracia representativa, democratização da informação e da comunicação, e democratização e transparência do poder judiciário. “Entendemos que esses cinco eixos devem compor a reforma do sistema político na atual conjuntura do Brasil”, diz Moroni. A iniciativa, que tem entre seus integrantes movimentos feministas, urbano, rural, negro e de direitos humanos, atua com duas estratégias. Uma delas, segundo Moroni, é o debate com a sociedade, “tentando alcançar aquela população que não está participando dos movimentos sociais, que não está nos sindicatos. A outra é o diálogo, acompanhamento e pressão sobre a instituição: tanto o Executivo, como o Legislativo e o Judiciário”, explica. No âmbito institucional, uma das que lutam por uma reforma radical do sistema político brasileiro é a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), coordenadora da Frente Parlamentar Mista pela Reforma Política com Participação Popular, um colegiado que reúne mais de 200 deputados e senadores e cerca de 50 entidades de âmbito nacional. Para ela, o sistema político brasileiro está “absolutamente defasado e comprometendo a consolidação da democracia. O sistema eleitoral abre brechas para a corrupção eleitoral e o abuso de poder econômico. Não existem mecanismos de controle da sociedade sobre o processo, e o quadro partidário está exaurido: são meras siglas que não representam projetos políticos, muito menos compromissos ideológicos e programáticos. Temos que criar mecanismos para coibir a corrupção eleitoral”. O sociólogo Francisco de Oliveira concorda com Erundina ao afirmar que o principal problema que ocorre hoje, não só no Brasil, é a falta de representatividade dos partidos, mas é cético em relação a uma possível solução desse problema. “Eles são muito pouco representativos, mas não há reforma política que possa refazer essa ligação”. Porém, para ele, isso não quer dizer que mudanças não são necessárias. “Há o que reformar no sistema partidário”. Entre as propostas da frente, explica a deputada federal do PSB, estão o voto em lista fechada

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e pré-ordenada com alternância de gênero, financiamento exclusivamente público de campanha e a regulamentação dos dispositivos constitucionais da Constituição de 1988 que prevê mecanismos de consulta popular como plebiscitos e referendos. Ela propõe que se discuta o fim das coligações partidárias – que seriam substituídas por “federações partidárias”, que teriam prazo mínimo de três anos e se dariam em torno de pontos programáticos. Paulo Teixeira, líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados, segue a mesma linha. “O grande número de partidos políticos com assento no Congresso Nacional dificulta a governabilidade e a construção de maiorias sólidas no parlamento. A proliferação de partidos tem como base a autorização da coligação proporcional nas eleições parlamentares. Tal mecanismo faz com que as grandes legendas carreguem as pequenas legendas”, opina. Para ele, a mudança poderá “contemplar mecanismos alternativos ao fim das coligações, como aquele que obriga os partidos coligados a terem vida orgânica na legislatura para a qual foram eleitos, através de federações partidárias”. A Frente Parlamentar Mista pela Reforma Política com Participação Popular propõe também regras claras para a fidelidade partidária, para que ela seja observada dos dois lados. “Não é só o deputado que deve ser fiel ao seu partido; o partido também precisa ser fiel aos seus compromissos”, argumenta Erundina. Tais propostas serão apresentadas à Comissão Especial de Reforma Política instalada na Câmara dos Deputados. Segundo Moroni, a Plataforma dos Movimentos Sociais apoia uma fidelidade partidária programática, por meio da qual os partidos sejam obrigados a terem uma definição dos seus programas para que seus filiadas os sigam. “Não queremos que continue como hoje, em que a fidelidade muitas vezes é usada somente para se ter a definição que os mandatos são dos partidos, uma fidelidade à cúpula partidária e às negociatas que as cúpulas fazem. Então, tem que ser a fidelidade programática, fidelidade ao programa do partido e não a quem está no poder do partido”.

Para a Plataforma, o mecanismo é chamado de financiamento democrático e transparente, “porque o financiamento democrático está muito associado à questão da lista transparente, que é a votação em lista pré-ordenada com alternância de gênero e com respeito a critérios étnico-raciais”, elucida. Teixeira avalia que o atual sistema afasta da disputa eleitoral possíveis candidatos, “como intelectuais, lideranças de movimentos sociais e pessoas comuns. Se um cidadão quiser participar da vida política, dificilmente conseguirá, pois faz-se necessária uma arquitetura financeira que o impossibilita de contribuir politicamente com nossa sociedade”. Assim, o financiamento público evitaria que o privado “domine inteiramente os partidos”, aponta Francisco de Oliveira. “O financiamento privado, os gastos enormes, isso sempre haverá, mas o financiamento público ajudará justamente os partidos que são menos submetidos ao poder financeiro a ter voz e voto no sistema partidário”, acredita. Evitaria, também, a “oligarquização” dos partidos, dando brecha para a emergência de outras representações, defende Oliveira, que sustenta que a tendência de todo sistema partidário é transformarse em oligarquia: “E isso é um pouco responsável pelo fato de que na maior parte dos países o que existe, na verdade, é o sistema bipartidário, porque as agremiações principais bloqueiam o acesso de novas representações”. O principal exemplo disso são os Estados Unidos, onde, apesar da existência de muitos partidos políticos, são o Democrata e o Republicano que se revezam no poder. “Alemanha, Inglaterra e França só tem dois partidos principais. É um fenômeno interessante, porque se a representação política fosse, digamos, um papel carbono da divisão da estrutura de classe da sociedade, a gente devia ter muito mais partidos”, avalia Francisco de Oliveira. No Brasil, muitos analistas acreditam que já venha ocorrendo um fenômeno semelhante, com a política institucional sendo hegemonizada por PT e PSDB, embora o PMDB ainda tenha muita inserção regional e ainda seja o fiel da balança da governabilidade no Congresso Nacional.

Poder econômico

Representações políticas

Um dos pontos considerados fundamentais e que são praticamente consenso entre a esquerda é o financiamento público de campanha, uma das propostas em tramitação no Senado. Paulo Teixeira acredita que a democracia brasileira corre perigo por conta da forte influência do poder econômico nas eleições. “O financiamento privado nas eleições quebra a isonomia do sistema democrático, que deve garantir o princípio de ‘a cada eleitor, um voto’”. Como consequência, segundo ele, aqueles que financiam campanhas eleitorais teriam tratamento diferenciado do Estado em relação aos demais cidadãos. De acordo com José Antônio Moroni, a Plataforma dos Movimentos Sociais defende “o financiamento público exclusivo e com condições bem pesadas aos partidos e aos candidatos que não respeitarem, tiverem caixa-dois ou aceitarem recurso que não seja esse recurso público exclusivo”.

Para a deputada federal Luiza Erundina, o financiamento exclusivamente público de campanha seria “uma condição para coibir o abuso de poder econômico e a corrupção eleitoral”. Segundo ela, tal financiamento deve ser controlado pela Justiça Eleitoral e vir associado à votação em lista fechada, que seria a única forma de se fiscalizar adequadamente a aplicação desses recursos. Quem também defende o voto em lista é Paulo Teixeira. Para ele, uma grande fragilidade da democracia brasileira é a “personificação excessiva das representações políticas, ao invés da representação de bandeiras e propostas. É uma cultura do voto na pessoa, que gera uma baixa densidade programática. A solução para essa questão é a transição do voto uninominal para o voto no partido”, defende. Pelo sistema eleitoral brasileiro, o voto é proporcional e uninominal, ou seja, cada eleitor esco-

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lhe seu candidato individualmente e esse voto entra para a soma do apoio total conseguido por seu partido, que servirá para estabelecer quantas cadeiras serão ocupadas pela agremiação no parlamento. Pela votação em lista fechada, o partido elaboraria uma relação de candidatos, que seriam organizados por “ordem de chegada”. Os eleitores votariam no partido e as vagas conquistadas no parlamento por ele seriam preenchidas de acordo com essa ordem. Os críticos desse mecanismo argumentam que ele favoreceria a oligarquização das direções partidárias, que concentrariam os recursos e imporiam seus próprios candidatos. Um dos que se opõem à proposta é o sociólogo Francisco de Oliveira: “Não gosto de voto em lista nem de fidelidade partidária. Isso transforma os partidos em modelos de oligarquia e os afasta mais da sociedade. Para representála é que eles são criados. Parece democrático, mas a linha é profundamente antidemocrática”. Os defensores da votação em lista fechada, no entanto, acreditam que, como forma de evitar esse problema, seria possível estabelecer uma legislação que garanta a democracia interna nos partidos eleitorais. Para Paulo Teixeira, por exemplo, “o cidadão poderá votar na hora da escolha da lista, se for filiado a um partido. Na hora da eleição, poderá votar em um partido e também ter um outro voto, alterando a lista. Ou seja, há muitas soluções possíveis para garantir ao máximo o respeito à escolha do cidadão”. O voto em lista favoreceria inclusive, segundo seus defensores, a adoção do financiamento público de campanha, pois o fim das campanhas individuais facilitaria o controle sobre os recursos empregados.

Distritão

Uma das propostas que vai na direção totalmente oposta a do voto em lista é o chamado “distritão”, defendido especialmente pelo PMDB. Nesse modelo, as eleições proporcionais se tornariam majoritárias, nas quais ganha o candidato com maior votação em cada circunscrição (o distrito). Para os críticos, a proposta prejudicaria o voto das minorias, mesmo que sejam grandes minorias. Num exemplo extremo, caso em um determinado distrito o candidato a deputado vencedor obtenha 34% dos votos e os dois derrotados 33% cada um, 66% dos votos seriam jogados fora. O modelo ainda intensificaria o personalismo e transformaria o Congresso numa somatória de interesses regionais, impedindo a coesão partidária em torno de questões ideológicas e programáticas. De acordo com Paulo Teixeira, “na visão do PT, o ‘distritão’ é uma solução mistificadora que, ao invés de resolver, aprofunda os problemas do sistema atual. Quebra o pluralismo, a proporcionalidade, acentua a influência do poder econômico e exacerba o personalismo”. De acordo com Moroni, da Plataforma dos Movimentos Sociais, o “distritão”, além de enfraquecer os partidos políticos, “radicaliza a personalização da

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política, que é uma coisa que nós queremos enfrentar. Além disso, ele traz todos os vícios do voto majoritário e acaba com o sistema composicional. Então, o distrital mata – e a palavra é realmente essa – a possibilidade das chamadas minorias políticas de qualquer tipo de representação no parlamento”, opina. “E é um dos grandes problemas da nossa democracia hoje, por exemplo, não termos representação no parlamento de mulheres, da população negra, da população rural, de indígenas, não ter nenhum indígena no parlamento”, acrescenta. Por isso, para o líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados, a questão da representação da sociedade dentro do Congresso Nacional é um tema essencial a ser debatido. “Construir uma representação mais real da sociedade é um desafio político”, diz Paulo Teixeira. Ele cita como exemplo o fato de a sociedade ser composta majoritariamente por mulheres, que representam 55 % da população, mas apenas 8% do parlamento. “Na questão racial, também temos uma sub-representação tanto de negros quanto das populações indígenas. Necessitamos de estímulos à representação feminina, de negros e índios nos três níveis de representação legislativa”, defende. “Ou criamos mecanismos de estímulos ao aumento da representação de tais segmentos ou continuaremos a ter um congresso majoritariamente branco e masculino, com déficit de representação da sociedade brasileira, o que reduz sua legitimidade”.

Consulta popular

Para Fábio Konder Comparato, no entanto, a maioria das propostas de reforma política sendo discutidas pelo Congresso Nacional hoje são “perfumaria”. Ele acredita que, no mundo contemporâneo, os melhores instrumentos de desmonte da oligarquia – que, segundo ele, é quem detém o “poder supremo” – são os mecanismos de democracia direta como plebiscitos e referendos, que poderiam ser convocados pela população. Como exemplo, o professor aposentado cita o caso da Itália. No começo de junho, os italianos decidiram, via plebiscito, a revogação de quatro leis do governo do primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O resultado, inclusive, foi considerado uma importante derrota política para o mandatário, colocando em xeque até sua permanência no cargo. O dispositivo 14 da Constituição Federal de 1988 prevê a utilização desses mecanismos de consulta popular, mas eles não foram regulamentados. A lei 9.709/98 estabeleceu que plebiscitos e referendos só podem ser convocados pelo Congresso. Segundo Comparato, no Brasil, “desde 2004 encontramse afogados no Congresso Nacional dois projetos de lei que redigi, desbloqueando plebiscitos e referendos e facilitando a iniciativa popular legislativa”, cita. São os Projetos de Lei 4.718/2004, na Câmara, e o 01/2006, no Senado. O jurista lembra que também redigiu, em 2005, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 73, hoje em tramitação no Senado, “que introduz na nossa Constituição o referendo revogatório dos mandatos do presidente da República e dos membros do Congresso Nacional”. Tal meca-

nismo está previsto, por exemplo, nas novas constituições de Venezuela e Bolívia – inclusive, já chegaram a ser utilizados nos últimos anos. Plebiscitos e referendos também são defendidos por Luiza Erundina e Francisco de Oliveira. “São instrumentos de democracia direta e participativa. Em outros países, onde a democracia é mais consolidada, a cada eleição os eleitores são consultados sobre vários temas de interesse nacional”, diz Erundina. “No Brasil, só fizemos um ou dois plebiscitos e isso implica no déficit de democracia no país. Isso precisa ser superado, tornando tais conquistas efetivas, regulamentando esse dispositivo constitucional. Isso é matéria da reforma política”, defende. Francisco de Oliveira também acredita que se tais instrumentos fossem utilizados com mais frequência para a consulta de “assuntos importantes e decisivos, aí sim a representação ganharia mais proximidade com os anseios, decisões e opções da população”, acredita. Para ele, “esse é um defeito da estrutura política brasileira”. Na política, explica, nem todas as questões são “plebiscitárias”, mas para a minoria das questões em que o plebiscito ou o referendo poderia ser usado como forma de consulta à população, o Brasil não utiliza. “Em outras democracias, o referendo é muito utilizado”, recorda. Como exemplo, o sociólogo cita o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, onde o referendo é usado com regularidade. “Há dez anos, houve uma proposta de lei que impedia que os imigrantes ilegais recebessem qualquer ajuda do Estado. Isso foi levado a referendo, e a população negou que tal auxílio pudesse ser negado”. O sociólogo acha que tal instrumento poderia ser utilizado no Brasil em questões como a do pré-sal, por exemplo. “O tema está gerando divisões dentro do Estado e vai gerar ainda mais quando de fato o pré-sal existir como produção de petróleo. Uma pergunta simples para referendo seria: os dividendos desse petróleo abundante que haverá devem ser destinados só aos estados que estão na bacia de produção ou deve ser distribuído de forma proporcional a todos os estados brasileiros? Cabe deixar ao povo dizer se ele deve ser distribuído equitativamente ou se deve ser reservado só aos estados produtores. São coisas desse tipo que deveriam estar previstas para serem consultadas em referendo e alguns outros casos mais escassos plebiscitos”. No entanto, apesar da sua importância para os políticos de esquerda, intelectuais e movimentos sociais, a reforma política não sai da pauta do parlamento “porque nenhum governo se interessou em levá-la adiante, mesmo sob a forma de reforma cosmética. Como ninguém ignora, neste querido país o Executivo tem largos meios financeiros (regulares ou desonestos) para se impor ao Legislativo”, opina Fábio Comparato. Para Paulo Teixeira, o que ocorre é que há um apego dos atuais parlamentares com as regras que os elegeram. “Creio que será necessária forte mobilização popular para aprovarmos uma reforma política”. Tatiana Merlino é jornalista. tatianamerlino@carosamigos.com.br

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Pátria Grande - América Latina

INSEGURANÇA E DELINQUÊNCIA, INSTRUMENTOs POLÍTICOs DA DIREITA Os meios de comunicação coletivos na América Latina e Caribe, associados e dirigidos pelas cadeias de comunicação dos centros de dominação mundial, dedicam, nos noticiários, grande parte de seu tempo à insegurança resultante da delinquência (assaltos, roubos e crimes muito violentos), utilizando-a como um instrumento de múltiplos propósitos nefastos. As ações delinquenciais das pessoas pobres e menos educadas aparecem multiplicadas por milhões, como se fossem o problema principal dos países, e nunca se menciona a insegurança produzida pelos ladrões de colarinho branco (especulação financeira e bancária, elevação de preços dos produtos e lucros por parcelar o pagamento das faturas dos cartões de crédito). Francisco Rojas Aravena e Andrea Álvarez Marín realizam um estado da arte sobre a seguridade humana em nível mundial e latinoamericano, desde 2005 a dezembro de 2010, revisando ao redor de 111 documentos, entre artigos e livros acadêmicos onde predominam as discussões conceituais. Para Aravena e Marín, “o outro assunto que se destaca é o da proteção das pessoas frente à violência, de particular interesse nos países latino-americanos. A isto se soma uma especial preocupação pelas ameaças terroristas e como abordar este tópico desde uma perspectiva de segurança humana. Os cinco temas tratados depois das discussões conceituais (29%), são a violência e o terrorismo (16%), o desenvolvimento humano (12%), a saúde (10%) e as mudanças climáticas e o meio ambiente (7%). Vários artigos se referem a mais de um assunto; cada referência foi consultada para obter os resultados finais” (...) “Na América Latina, há uma grande preocupação com a delinquência; principalmente com a taxa de mortalidade por homicídios, a presença de Maras* [Termo originário dos estados mexicanos incorporados aos EUA, designando grupos de pessoas, de 14 a 30 anos de idade, inconformes com o Estado, e que contra ele agem; o termo é utilizado na América Central e no Norte da América do Sul] e gangues, e o custo econômico que representa a violência para o Estado”. É lamentável que a preocupação se encontre centrada nas consequências da insegurança e não em suas causas; e, por esse caminho, não se encontraram as soluções em nenhuma sociedade ou país, como acontece através da educação e do trabalho a toda população. Se a maioria de pesquisadores e políticos não

dá importância à educação como um fator fundamental para reduzir a insegurança e, em particular, a delinquência, não é o caso de Bernardo Kliksberg, que tem autoridade científica e muita experiência mundial, expressando de forma categórica o seguinte: “Há uma correlação estatística absoluta entre mais educação e menos delinquência. Quanto mais escolaridade e trabalho decente existir, menor será o nível de insegurança na sociedade. Para se poder inserir no mercado de trabalho formal, é preciso ter pelo menos 12 anos de escolaridade. Se mostra estatisticamente que com menos de um ensino médio completo, as empresas de hoje, com razão, no século XXI, em um mundo tecnológico tão avançado, não aceitam sequer mão de obra para tarefas menos qualificadas, e resulta daí um grande gargalo. Porque 50% dos jovens na maior parte da América Latina não terminaram o ensino médio. Não porque lhes falte cultura de estudo, senão porque a pobreza está aí, presente em 34% da população. Hoje as cifras continuam muito distantes do que se necessita. Resulta que de cada três crianças pobres, apenas uma termina o ensino médio. E sem ensino médio são marginalizados. O tema central é o acesso à educação e o acesso ao trabalho. Estes são os temas estratégicos centrais. Se não se resolve a atenção aos jovens, haverá níveis de conflitividade altíssimos, e esse drama se desenvolve em muito curto prazo. Drama para toda a cidadania: o da insegurança cidadã. (...) “Quais os países do mundo que tem menos criminalidade jovem? São Noruega, Suécia, Dinamarca, que tem menos de um homicídio a cada 100 mil habitantes por ano. Na América Latina temos 26 homicídios a cada 100 mil habitantes por ano, e em El Salvador 70 homicídios a cada 100 mil habitantes por ano. Como conseguiram, os países nórdicos? Aumentando o policiamento nas ruas e os alarmes elétricos, e fazendo penas mais severas? Não. São os países que têm a menor quantidade de policiais por habitante. Ou seja: os investimentos em forças de segurança são os menores em todo o planeta.”

SISTEMA ESCOLAR

Um fator grave que afeta o desenvolvimento humano e a segurança na América Latina e Caribe é o péssimo sistema de promoção escolar de educação primária e secundária de herança colonial europeia, que se utiliza como um instrumento de exclusão do sistema educacional a

ilustração: caros amigos

Por Edmundo Vera Manzo

Educação e trabalho contribuem para maior segurança.

quem, em alguma disciplina, não obtenha um rendimento satisfatório. Sem justificação científica, se obriga a repetir, no próximo ano, matérias em que já foi aprovado. À exceção de Cuba, e com uma proposta importante o Chile, no resto dos países, um de cada cinco não passa da 1ª série, um de três não termina o ensino fundamental, e quatro de cada 10 não terminam o ensino médio. É absurdo, antipedagógico e criminal que depois dos aportes de H. Wallon; H. Gardner e M. Levine, se siga com escola e colégio homogêneos e falsamente humanistas, que obrigam a que todas as pessoas tenham rendimentos mínimos iguais, sem tomar em conta as diferenças individuais, as inteligências múltiplas e as incapacidades específicas, que não impedem que as pessoas sejam estudiosas, talentosas e superdotadas. Já não podemos seguir mirando no que não podemos, obrigando-nos a repetir disciplinas que aprovamos. São formas discriminatórias e excludentes em que os sistemas de promoção escolar se convertem em outra forma de terrorismo de Estado. • Rojas Aravena Francisco y Álvarez Marin Andrea: Seguridad humana. Un estado del arte. Revista Temas Numero 64, Octubre – Diciembre, Habana 2010. Pág. 8. • Bernardo Kliksberg http://sur.elargentino.com/notas/con-mas-educacion-y-trabajomenor-sera-el-nivel-de-inseguridad-social. Edmundo Vera Manzo é educador equatoriano, ex-embaixador do Equador no Uruguai.

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entrevista JOSÉ LUIZ FIORIN

foto: Jesus Carlos

“O aluno não deve ter vergonha da língua que ele traz de casa”

Por Cecília Luedemann “Todos os linguistas, mesmo sabendo que a sua ciência é explicativa, dizem que a norma culta é um fato histórico e precisa ser ensinada na escola. É preciso deixar isso muito claro para que não se diga que os linguistas são os ‘talibãs acadêmicos’ ou que os linguistas são os ‘trombadinhas acadêmicos.” José Luiz Fiorin, pesquisador e professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em entrevista à Caros Amigos, discute os problemas do ensino de português e explica o papel da Linguística nesse campo. Convidado a explicar os avanços da ciência linguística e suas contribuições para a compreensão da língua real, viva e na qual todo ser humano pode se desenvolver plenamente, Fiorin discutiu as principais questões para o fim do medo e da vergonha na sala de aula. Caros Amigos - Quais são as principais questões que se colocam, atualmente, no campo da linguística que nos auxiliam a superar o senso comum e o preconceito linguístico? José Luiz Fiorin - Vamos começar com esta pergunta: Por que é que se discute tanto a questão de que para o linguista vale tudo? Nós precisamos estabelecer, primeiramente, uma distinção entre uma visão prescritiva da língua e uma

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visão descritiva da língua. Uma visão prescritiva da língua é aquela que determina o que pode ou o que não pode dizer na língua. Uma visão descritiva da língua é aquela que levanta todos os fatos de língua, independentemente de serem considerados certos ou errados, e procura descrever e explicar esses fatos de língua. Nós poderíamos dizer que a linguística é uma ciência descritiva e não uma ciência prescritiva. O linguista precisa descrever e explicar os fatos da língua e não se preocupar se é certo ou errado. Vamos dar um exemplo: tradicionalmente se disse que o verbo namorar é um verbo transitivo direto, portanto o correto é: “Maria namora Pedro. Pedro namora Maria.” E, portanto, estaria errado dizer: “Pedro namora com Maria. Maria namora com Pedro.” Porém, se você observar todas as pessoas, mesmo as que empregam a norma culta, todas vão dizer: “Maria namora com Pedro. Pedro namora com Maria.” Ora, um linguista tem que explicar como esse com apareceu aí. Ele vai notar, então, que o verbo namorar adquiriu um sentido novo em português, além de ter relações afetivas com alguém, o verbo namorar significa, também, desejar ardentemente. Então, um linguista vai explicar fatos de língua. Esse é um fato trivial. Há outros muito mais importantes. Por que nós

estamos usando o lhe, por exemplo, na posição de objeto direto? As pessoas, ao invés de dizerem “Eu a amo”, estão dizendo “Eu lhe amo, eu lhe adoro, eu lhe venero”. Então, são fatos muito mais complicados. Segunda questão: a norma culta. Nenhum linguista disse que não existe uma norma escolhida pela sociedade para escrever os textos que circulam em determinadas esferas de circulação. Por exemplo: o discurso jornalístico, o discurso acadêmico devem ser escritos na norma culta. O discurso literário não precisa ser escrito na norma culta, principalmente depois do modernismo, porque a linguagem depende da personagem que eu estou enfocando. Então, o erro depende da esfera de circulação na qual o texto está inserido. Ora, todos os linguistas, mesmo sabendo que a sua ciência é explicativa, dizem que a norma culta é um fato histórico, e, portanto, devemos respeitar essa norma culta. E essa norma culta precisa ser ensinada na escola. Isso é preciso deixar muito claro para que não se diga que os linguistas são os talibãs acadêmicos ou que os linguistas são os trombadinhas acadêmicos. A terceira pergunta que nos interessa é a seguinte: Essa norma não varia nunca? Há duas coisas que é preciso levar em conta na língua: a língua é variável e a língua muda. Uma língua varia de região para região, de grupo social para grupo social, de situação de comunicação para situação de comunicação, porque não é a mesma coisa eu conversar num bar com um amigo e fazer uma conferência, que exige um nível de linguagem muito mais elaborado do que a linguagem utilizada no bar em que eu posso me permitir uma linguagem mais “relaxada”. E varia, também, de geração para geração. Então, todas as línguas do mundo variam, não é o português que varia, porque as pessoas não sabem falar direito, não têm cuidado com a língua. Todas as línguas do mundo variam. Tanto é verdade que havia no latim uma variação entre o que se chama o latim clássico e o latim vulgar, e o português não veio do latim clássico, veio do latim vulgar. Na verdade, a própria norma culta vai se modificando e a escola, de certa forma, não precisa incorporar qualquer mudança, mas as mudanças que se sedimentaram devem ser incorporadas pela escola. Eu posso ficar ensinando duas, três aulas que se deve usar “namorar alguém”, mas saindo fora da sala de aula os alunos vão falar “namorar com alguém”, porque essa é a forma sedimentada. A quarta questão que nos interessa: a

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mudança da norma significa uma perda? Eu tenho ouvido, com muita frequência, pessoas dizerem que a mudança da norma significa uma perda. Disseram mesmo que a passagem do latim clássico para o latim vulgar significou uma perda. Ora, o que subjaz a esta concepção é que a história é decadência. No entanto, eu preciso refletir: será que a história é realmente decadência, em termos linguísticos? Se eu considerar que a passagem do latim clássico para o latim vulgar significou uma perda, o que nem é verdade, porque o latim clássico convivia com o latim vulgar, eram variações dentro de uma mesma época, esse mesmo latim vulgar foi levado à península ibérica e daí vieram o português, o espanhol, etc. Se eu disser que isso representa uma decadência, posso considerar que o português inteiro é um erro, é uma decadência. Então, todos os autores de língua portuguesa serão considerados uma decadência. Ora, eu não posso aceitar isso. Na verdade, as línguas têm um mecanismo de autorregulação notável. A língua é, eu diria, um “instrumento” notável, porque a língua se regula para as necessidades de comunicação. Portanto, as línguas não decaem, não progridem, as línguas mudam e adquirem outros elementos. O senhor poderia explicar essa concepção de que todo ser humano para exercer plenamente a sua capacidade linguística deve ser um “poliglota” da sua própria língua? Essa formulação de que um bom falante é um “poliglota” na própria língua é de Eugenio Coseriu, um linguista romeno, e foi difundida no Brasil pelo professor Evanildo Bechara. Um bom falante é aquele que se adapta ao seu auditório, e, portanto, é aquele que é capaz de transitar pelos diferentes registros da língua. A variedade linguística que eu falo marca a minha identidade. Por isso, ridicularizar a fala de uma pessoa é atingir a própria identidade de uma pessoa. E quanto mais eu for capaz de perceber todas as variedades de vocabulário, mais rico será meu domínio da língua. Quanto mais eu for capaz de perceber isso, estarei ampliando a minha capacidade de linguagem. Por isso, eu dizia que um professor de português é um professor que amplia a consciência dos seus alunos, na medida em que ele amplia a capacidade de linguagem dos seus alunos. Ampliar a capacidade de linguagem é ampliar a consciência, o que nos mostra a poeta Cecília Meireles, no Romance LIII, ou Das Palavras Aéreas, do Romanceiro da Inconfidência: “Ai, palavras, ai palavras/ que estranha potência a vossa/(...) A liberdade das almas/ Ai, com letras se elabora...” É ampliar a liberdade das almas. E, portanto, ensinar português, é, na verdade, ampliar a capacidade de linguagem que o aluno tem, ensinar a escrita, porque a escola é a agência encarregada do ensino da escrita, e ensinar, ao mesmo tempo, a norma culta, porque o aluno vai operar com textos na norma culta. Mas, não é,

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digamos, só ensinar a norma culta. É também ensinar a norma culta. Mas, ampliar a capacidade de linguagem é uma tarefa do professor de português. Por isso, uma quinta questão que nos interessa: O ensino de português tem sido bem sucedido no Brasil? Acho que não. Ora, os linguistas estão procurando a maneira de tornar o ensino de português mais eficaz, ao contrário do que estão dizendo, que os linguistas querem acabar com o ensino de português. E para tornar o ensino mais eficaz, o professor precisa ter duas atitudes. A primeira: não pode ridicularizar a linguagem que o aluno traz para a escola, porque ridicularizar a linguagem é atingir a identidade do aluno, e, portanto, reduzir o aluno ao silêncio. Esse aluno vai ter mais dificuldade para falar, para escrever, para aprender, para ampliar a capacidade de linguagem. A segunda atitude: o professor deve partir da linguagem trazida pelo aluno para ampliar essa capacidade de linguagem. A escola está apresentando as coisas de modo que a língua que a escola ensina não é significativa para o aluno. Para o aluno, a língua portuguesa aprendida na escola não tem nada a ver com a língua que ele fala. E aí é preciso, portanto, ressignificar o ensino de língua portuguesa. É preciso que o aluno perceba que aquela língua aprendida na escola tem a ver com a língua que ele fala. Muitos professores dizem: “Eu não posso mais dar Camões para o meu aluno, porque ele vai rejeitar.” No entanto, Renato Russo apresentou: “Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; (...)” E as pessoas gostam. Então, a forma como a escola está apresentando o seu ensino de português parece que está um pouco inadequado. Os linguistas não estão destruindo o ensino de português, eles estão procurando uma eficácia maior do ensino de português, porque nós não podemos continuar com uma escola cujas avaliações mostram que ela não está sendo eficaz em termos do ensino de português. Não é possível que um aluno saia do terceiro ano do ensino médio sem que ele saiba produzir um texto com coerência, coesão, clareza, no nível linguístico adequado à esfera de circulação. Portanto, se ele tiver que usar a norma culta, é preciso que ele saiba usar a norma culta. O senhor tem um estudo no campo da linguística e também na didática do ensino da língua. Como a escola poderia avançar para um ensino eficaz da língua portuguesa? Precisamos entender que a fala e a escrita são completamente diferentes. Um texto falado é um texto “se fazendo” e um texto escrito é “feito”. Isso faz toda diferença entre língua escrita e língua falada. A escola pode operar sobre a língua falada, embora o principal trabalho da escola seja sobre a língua escrita, uma

vez que a escola é a agência de letramento da nossa sociedade. Isto posto, na verdade, o trabalho maior da escola não é ensinar a ortografia, que é relativamente simples, ou ensinar concordância, também simples, mas sim ensinar a textualizar. Ou seja, ensinar a produzir um texto que tenha conteúdo adequado, coerência, coesão, clareza. Todas as teorias linguísticas foram criadas para entender como construir a coerência de um texto, o sentido do texto. O nosso desafio é melhorar o ensino de português, não é liquidar o ensino de português. O aluno deve, então, aprender a ver esses mecanismos como instrumentos a serem utilizados, consultando a norma culta, sem medo? Sim, sem medo. O problema não é o medo, é a vergonha. O aluno não deve ter vergonha da língua que ele traz de casa, que ele sinta que isto não é uma vergonha e que pode ampliar essa língua que ele traz. Porque, às vezes, a escola reduz o aluno ao silêncio por vergonha. São dois mecanismos de imposição que as sociedades utilizam: o medo e a vergonha. A vergonha é mais eficiente que o medo. Eu acho que a escola, ao ridicularizar a língua do aluno, deixa esse aluno com vergonha da língua que os pais falam. O professor não pode deixar o aluno com vergonha, mas não vai permanecer naquela língua que o aluno traz. Nós temos condições de avançar no ensino do português, no Brasil? Sim, eu acho que nós estamos avançando. Os verdadeiros professores de português têm um mal-estar, quando conversamos com eles, porque estão a busca de caminhos, porque estão vendo que o caminho seguido que parecia ser o certo durante muito tempo, já não está mais dando certo. Eu vejo um conjunto de colegas do ensino fundamental e médio muito angustiados, buscando caminhos. E não é fácil buscar novos caminhos, construir o novo nunca é fácil. E as pessoas estão buscando caminhos novos para dar uma eficácia maior ao ensino de português. Como os linguistas têm contribuído para a construção dessa nova concepção de ensino da língua portuguesa? Há muitas parcerias entre universidades e as secretarias de educação, que pela constituição brasileira são encarregadas do ensino fundamental e médio, e entre universidades e o Ministério da Educação, que tem apenas a função supletiva de dar as diretrizes gerais. No Ministério, por exemplo, existe uma comissão nacional de língua portuguesa que faz um aconselhamento sobre as diretrizes gerais do ensino de português. Cecília Luedemann é jornalista.

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Justiça

Memória de um tempo não vivido

foto: arquivo pessoal

Quarenta anos depois, a justiça ouvirá testemunhas da tortura e assassinato do jovem jornalista e militante Luiz Eduardo Merlino, vítima da ditadura. Este é um resumo de sua história, contada pela sobrinha que não o conheceu.

Luiz Eduardo Merlino na imagem guardada no porta-retrato da famíla Merlino.

Por Tatiana Merlino Sobre a cômoda, ao lado do vaso onde quase sempre há uma flor, há um porta-retrato prateado. Na foto, um jovem de perfil: cabelos negros, pele clara, olhos grandes, óculos de aro escuro. Quando eu ainda olhava o porta-retrato debaixo para cima, com uns sete anos, já sabia que ele era alguém muito importante para a família. Os anos se passaram, o porta-retrato mudou de casa, mas seguiu junto com a cômoda e o vaso. O homem da foto continuava jovem, olhando insistentemente para o infinito. Outros anos se seguiram, e a dona do porta-retrato e da cômoda morreu. Hoje, o porta-retrato mudou de casa e de dona. E eu o olho de cima para baixo. O jovem é meu tio, o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, torturado e assassinado aos 23 anos, em São Paulo, em 19 de julho de 1971, nas dependências do DOI-Codi, centro de tortura comandado pelo coronel reformado do

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POC (Partido Operário Comunista), organiExército brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Uszação na qual ele militava, Otacílio Cecchitra. Sua mãe, Iracema da Rocha Merlino, dona ni, Eleonora Menicucci de Oliveira, Laurindo do porta-retrato, faleceu em 1995 sem que o EsJunqueira Filho, Leane de Almeida e Ricartado tivesse reconhecido a responsabilidade pela do Prata Soares; o ex-ministro da Secretaria morte do filho. Especial de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Não poderá ver, por exemplo, que no mês Vanucchi; e o hisem que se completoriador e escritor tam 40 anos do asEm 15 de julho de 1971, Merlino foi Joel Rufino dos sassinato do jovem, preso por três homens na casa de sua Santos, colunista ocorrerá a audiênmãe, em Santos, no litoral de São Paulo. da Caros Amigos. cia das testemu“Logo estarei de volta”, disse à mãe, irmã Já Ustra arrolou nhas de uma ação e tia. Foi a última vez que o viram. como suas testemupor danos morais nhas o ex-ministro movida contra UsJarbas Passarinho; um coronel e três generais da tra por sua ex-companheira, Angela Mendes reserva, Gélio Augusto Barbosa Fregapani Paude Almeida, e sua irmã, Regina Maria Merlino lo Chagas, Raymundo Maximiano Negrão Torres Dias de Almeida, que dão continuidade à luta e Valter Bischoff; além do atual presidente de Iracema. do Senado e ex-presidente da República, José Em 27 de julho, a Justiça de São Paulo ouvirá Sarney (PMDB-AP), que recentemente defendeu os testemunhos dos que presenciaram a tortura a manutenção do sigilo eterno de documentos e morte de Merlino, como os ex-militantes do

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O laudo necroscópico atestando aversão do suiDireitos Humanos da Presidência da República. cídio e que vinha grafado com a letra “T” (de Muitos presos políticos testemunharam terrorista), escrita a mão, foi assinado pelos méas torturas às quais o jornalista foi submetido, dicos legistas Isaac Abramovich e Abeylard de entre eles Guido Rocha, escultor que também Queiroz Orsini. estava preso no DOI-Codi na época e esteve com Jornalistas amigos de Merlino estiveram no Merlino na “cela forte”. Guido estava há alguns local onde ele supostamente teria se suicidado dias na cela, quando o militante do POC foi Torturador declarado e não encontraram nenhum sinal de atropelatrazido. “Ele estava muito machucado. TrouPara chegar à audiência das testemunhas, mento ou outro acidente de trânsito ocorrido nas xeram ele carregado, ficou deitado, imobilia família percorreu um longo caminho. Subsredondezas no dia indicado. Pouco mais de um zado. Mas muito tranquilo. Me impressionei crita pelos advogados Fábio Konder Compamês depois do assassinato, o jornal O Estado muito com a segurança e tranquilidade dele”, rato, Claudineu de Melo e Aníbal Castro de de S. Paulo anunciou a missa de trigésimo dia disse Guido, em 1979, em entrevista ao jornalista Souza, esse é o segundo processo movido pela de seu falecimento, ocorrida em 28 de agosto. Bernardo Kucinski. família de Merlino contra o coronel da reserva. Cerca de 770 jornalistas compareceram à celeApesar da serenidade, seu estado de saúEm 2008, Regina e Angela moveram uma ação bração, e os mesmos três homens que buscaram de piorava. As percivil declaratória o jornalista em Santos foram ao local e deram nas estavam dorna qual requeriam Ustra já foi declarado torturador pela os “pêsames” à sua mãe e irmã. mentes por conta apenas o reconheJustiça de São Paulo, em ação movida Nascido em Santos, em 1948, Merlino particicimento da Justipela família Teles. Conhecido como “major do tempo que paspou, como secundarista, do movimento do Censara pendurado no ça sobre a responTibiriçá”, ele comandou o DOI-Codi entre tro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional “pau-de-arara” e, sabilidade de Ustra setembro de 1970 e janeiro de 1974. dos Estudantes (UNE). Mudou-se para São Paumesmo queixandonas torturas e aslo, onde completou o ensino médio e, em 1966, se de dor, não resassinato de Mercom 17 anos, ingressaria como “foca” na pricebeu assistência médica. No dia seguinte, foi lino. Porém, o ex-militar conseguiu paralisar meira equipe de jornalistas do recém-fundado retirado da solitária e colocado sobre uma mesa, e extinguir o processo por meio de artifício Jornal da Tarde, do grupo O Estado de S. Paulo. no pátio em frente às celas, fato que foi prejurídico acatado pelo Tribunal de Justiça pauAli escreveu reportagens de repercussão, como senciado por diversos presos, que puderam ver lista. Assim, ambas entraram com uma segunda a que denunciava as atividades do “mau patrão” seu estado. Ele queixava-se de dormência nas ação em 2010, também na área cível, que prevê Abdala, da Fábrica de Cimento Perus-SP. pernas, que não mais obedeciam. “À noite, couma indenização por danos morais. Também trabalhou na publicação Folha da meçou a se sentir mal, estava bem pior. Ele faUstra já foi declarado torturador pela JusTarde, para onde cobriu o 30º Congresso da UNE, lou: ‘chama o enfermeiro rápido que eu estou tiça de São Paulo, em ação movida pela em Ibiúna, ocorrido em setembro de 1968, épomuito mal, a dormência está subindo, está nas família Teles: Maria Amélia de Almeida Teles, ca em que já havia ingressado no POC. Detido duas pernas e nos braços também’. Aí eu bati na César Teles e Criméia de Almeida. Conhecido e transferido para o presídio Tiradentes, depois porta com força e gritei. Vieram o enfermeiro como “major Tibiriçá”, ele comandou o DOI-Code solto Merlino reportou os fatos e levou mene alguns torturadores, policiais, os mesmos que di entre setembro de 1970 e janeiro de 1974. Em sagens dos militantes que permaneceram prejá haviam me torturado e torturado a ele tamrelação a esse período, houve 502 denúncias de sos. Estudante de história da Universidade de bém. Vieram e o levaram. Nunca mais eu vi ele”, torturas praticadas por homens sob o seu coSão Paulo (USP), também trabalhou no Jornal relatou Guido, falecido há dois anos. mando e por ele diretamente, além de 40 assasdo Bairro e participou da fundação do jornal alsinatos decorrentes da violência utilizada nos ternativo Amanhã. interrogatórios. “Apanhei muito e apanhei do Versão falsa Fundado em 1968, o POC foi resultado da fucomandante. Ele foi o primeiro a me torturar e Em 20 de julho, cinco dias após a prisão, são entre a Pome espancou até eu perder a consciência, sendo a família recelítica Operária que era uma gestante bem barriguda. Eu estava beu a notícia de Da casa de sua mãe, foi levado ao DOI-Codi (Polop), fundano sétimo mês de gravidez”, afirmou Criméia à que ele teria code São Paulo, localizado à rua Tutóia, no da em 1961, e a Caros Amigos de dezembro de 2010. metido suicídio, bairro do Paraíso, onde “foi barbaramente Dissidência Lejogando-se emtorturado por 24 horas ininterruptas ninista do Parbaixo de um caPrisão e morte e abandonado numa solitária, a chamada tido Comunista minhão na BREm 15 de julho de 1971, Merlino foi preso cela forte, ou x-zero”. Brasileiro (PCB), 116, na altura por três homens na casa de sua mãe, em Santos, no Rio Grande de Jacupiranga, no litoral de São Paulo. “Logo estarei de volta”, do Sul. Um pouco antes de morrer, Merlino haem São Paulo, quando estaria sendo conduzidisse à mãe, irmã e tia. Foi a última vez que o via aderido à Quarta Internacional. do para o Rio Grande do Sul para “reconhecer” viram. Jornalista e militante do POC, ele tinha A companheira Angela e os amigos, como militantes. A família, porém, não acreditou recém-chegado de uma viagem à França, onde Tonico Ferreira e Joel Rufino dos Santos, cosna versão oficial da morte. havia aderido à Quarta Internacional. O jornatumam imaginar o que ele estaria fazendo Como o corpo não foi entregue, dois tios e lista havia viajado com passaporte legal, já que hoje, pelo que lutaria, como estaria. A mim, a o cunhado do jornalista, Adalberto Dias de contra ele não constava nenhuma acusação dos sobrinha nascida seis anos após sua morte, não Almeida, que era delegado de polícia, foram ao órgãos repressivos. cabem tais pensamentos. O que serve de alenInstituto Médico Legal (IML) de São Paulo, mas Da casa de sua mãe, foi levado ao DOI-Codi to é pensar que, quarenta anos depois, o coronel o diretor do órgão negou que o corpo ali esde São Paulo, localizado à rua Tutóia, no bairUstra poderá ser reconhecido como o responsátivesse. Adalberto burlou as regras do IML e, ro do Paraíso, onde “foi barbaramente torturado vel pela morte do jovem da foto do porta-retrato alegando procurar o cadáver de um bandido, foi por 24 horas ininterruptas e abandonado numa prateado. em busca do corpo do cunhado. Encontrou-o ali, solitária, a chamada cela forte, ou x-zero”, de numa gaveta, com torturas e sem identificação. acordo com o livro Direito à memória e à verdaSó assim a família pôde enterrar o jornalista, de, editado pela Comissão Especial sobre Mortos Tatiana Merlino é jornalista. que teve o corpo entregue em caixão fechado. e Desaparecidos Políticos, ligada à Secretaria de tatianamerlino@carosamigos.com.br oficiais ultrassecretos, com o argumento de que a divulgação desses dados pode motivar a abertura de “feridas”. A audiência está marcada para às 14h30, no Fórum João Mendes, centro de São Paulo.

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Telecomunicações

Quando a privatização não basta

ilustração: gilberto breyne

Com fiscalização controversa por parte da Anatel, empresas exploram bens públicos avaliados em bilhões de reais de forma ilegal, buscando ampliar seus ganhos.

Por Débora Prado Quando o governo de Fernando Henrique Cardoso promoveu a privatizacão do setor de telecomunicações no Brasil, em 1998, a promessa foi de que a maior concorrência derrubaria os preços, beneficiando o consumidor final. Passados 13 anos, o setor ficou ainda mais concentrado a partir de fusões e aquisições, os preços seguem sendo impeditivos para muitos brasileiros e as empresas do setor buscam sempre ampliar seus benefícios junto ao governo. É o que acontece, por exemplo, com os bens reversíveis – patrimônio público pertencente a União – que vêm sendo explorado por estas companhias de forma ilegal, sem o conhecimento Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Os bens reversíveis são aqueles considerados necessários para a operação do serviço de telefonia fixa e, portanto, deverão ser devolvidos a União após o fim do contrato de concessão com as teles, em 2025. A Anatel constatou, porém, que as companhias privadas têm alienado, one-

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rado ou substituído esses bens sem autorização prévia da agência, conforme determina a Lei Geral de Telecomunicações. Pior, a própria atuação da Anatel junto às empresas tem gerado questionamentos sobre sua real autonomia em relação ao lobby privado. O grupo Brasil Telecom, por exemplo, da Oi, utilizou 263 imóveis classificados como bens reversíveis como lastro de uma operação financeira pela qual capitou R$ 1,6 bilhão , sem a anuência da Anatel, ou seja, descumprindo a lei do setor. Pior, o montante destinado pelos bancos Itaú e Safra para a operação foram abatidos do percentual de 65% dos recursos da poupança que devem ser obrigatoriamente revertidos em crédito imobiliário. Em outras palavras, o valor que poderia estar financiando a compra de casas próprias para milhares de pessoas físicas foi destinado para uma empresa numa manobra financeira lastreada no patrimônio público (ver box). Ao todo, há pelo menos R$ 20 bilhões em

bens reversíveis – segundo estimativas da própria Anatel – sob controle das empresas. Porém, o inventário completo dos bens da União cedidos às concessionárias com a privatização do setor, em 1998, até hoje não foi divulgado. A falta de transparência gerou polêmica e já rendeu uma Ação Civil Pública contra a Anatel e a União, ajuizada pela associação de defesa dos direitos do consumidor ProTeste no dia 23 de maio, para que seja apresentada a listagem dos bens reversíveis previstos nos contratos. Além disso, em audiência pública, o procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Furtado, defendeu novas regras para a fiscalização destes bens, atestando a fragilidade da atuação da Anatel. Em entrevista a Caros Amigos, o procurador-geral afirmou que, no sistema atual, basicamente, a empresa é quem diz se é um bem reversível ou não, o que compromete a capacidade de fiscalização da Anatel. “A declaração

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foto: Renato Araújo/Agência Brasil

dos bens fica a critério da empresa, não tem uma autoridade competente responsável por isso. A empresa diz o que é bem reversível e todos, inclusive a Anatel, confiam no que é dito. Ou seja, a concessionária está livre para tomar uma decisão empresarial – se é mais negócio vender um bem, ela vende. Isto está errado, esta decisão não poderia ser tomada assim”, critica. O superintendente de serviços públicos da Anatel, Roberto Pinto Martins, considera que a falha não está no regulamento, mas nas empresas em não o seguir. Ele alega que este sistema ‘autodeclaratório’ é comum na fiscalização de vários tributos, comparando com o Imposto de Renda, em que a própria pessoa física informa à receita os bens que possui. “Os bens reversíveis são parecidos com isso, as empresas encaminham uma relação de bens que incluem os reversíveis e, a partir desse inventário, é feita a fiscalização: nós vamos ver se são só aqueles bens mesmo, se houve movimentação, alienação”, justifica. Eduardo Levy, Roberto Martins, Bruno Araújo, Lucas Furtado, em audiência pública. Ele considera que o regulamento bastante zada pela Anatel sobre os controles existentes le ilegal e absurdo é injustificável e já dura 13 claro em relação aquilo que as empresas necespara os bens reversíveis, em dezembro de 2007, anos, é preciso reverter isso urgentemente”, prositam apresentar: uma relação completa de bens na qual a própia agência reconhecia a ausêntesta. “A receita do serviço prestado em regivinculados – ou seja, tudo que a empresa utiliza cia do inventário inicial e detectava falhas na me público não pode subsidiar os serviços prespara prestar o serviço de telefonia fixa, pertenfiscalização. tados em regime privado. Com essa distorção, centes a ela ou não, inclusive serviços terceiriexiste um descumprimento da finalidade da unizados. “Os bens reversíveis são um subconjunto versalização, pois há uma barreira econômica – disso. Além disso, a Lei Geral de TelecomunicaNa justiça como o preço das assinaturas não baixam, a poções afirma que, no caso de substituição, alieA ação civil pública promovida pela ProTespulação mais pobre fica sem acesso à telefonia nação ou oneração dos bens, a empresa precisa te conclui que a Anatel não atua para proceder o fixa. E, quando se fala em eliminar a assinatupedir autorização da agência. Mas nossa fiscalidevido controle sobre os bens reversíveis. O texto ra, as concessionárias afirmam que quebrariam, zação detectou que as empresas estavam fazenafirma: “Primeiro porque, ao que tudo indica, não mas como se daria essa ‘quebra’ se houve várias do estas operações sem autorização. Umas em possui, como deveria possuir, os inventários dos aquisições no setor?”, completa. maior grau que outras, mas todas tinham irregubens reversíveis (…) Além disso, de 1998 – data do Com isso, “os grupos econômicos alienam um laridades em algum grau”, complementa. leilão de privatização – até janeiro de 2007, tanimóvel e fazem caixa para mandar dinheiro para De acordo com Roberto Martins, a partir da to o Ministério das Comunicações quanto a AnaEspanha, para comprar a Vivo (comprada pela constatação das irregularidades, a agência abriu tel deixaram de estabelecer regras para promover Telefónica), a Brasil Telecom (comprada pela Tecinco processos de apuração, um para cada emo controle dos bens vinculados às concessões e do lemar)”, lamenta a advogada. Para ela, isto tem presa: Brasil Telecom, Telesp, Sercomtel, CTBC ativo imobilizado das operadoras do STFC (Servidois efeitos ruins para a sociedade: “Primeiro, e Embratel. Segundo o superintendente, duas ço Telefônico Fixo Comutado)”. que você nunca chega a um estado de modicidelas já receberam Na ação, a ad“A empresa diz o que é bem reversível dade tarifária (principío pelo qual a tarifa da temultas, mas Martins vogada argumenta lefonia fixa deve ser a menor possível para gapreferiu não revelar e todos, inclusive a Anatel, confiam no que que “a ausência do rantir a universalização), porque se a empresa a reportagem quais inventário dos bens é dito. Isto está errado” - Lucas Furtado, vende uma central da União, terá que comprar foram. “A multa é reversíveis como procurador-geral do Ministério Público outra. E, o pior de tudo, é que ao final da conuma das sanções, anexo aos contrajunto ao TCU cessão, quando a União pedir esses bens para as antes dela tem a adtos de concessão concessionárias, não vai ter mais. A essa altura, vertência e o bem pode chegar a ter que ser retem como consequência a fragilidade institua central telefônica já será outra, em outro luposto. A última sanção seria a perda da concescional cercando todo o processo e propiciando gar, no imóvel de um sócio daquela companhia, são”, explica. que a ANATEL e as concessionárias defendam por exemplo. Ou seja, a União, que já fez todos A Anatel demorou para admitir que não posteses esdrúxulas para tentar convencer de que a investimentos para ter a continuidade do servisuía o inventário dos bens existentes na época apropriação de recursos públicos pela iniciativa ço, vai ter que indenizar as empresas por esses das privatizações e que, ainda assim, já havia privada tem respaldo legal”. equipamentos pelos quais ela já pagou no pasdetectado as infrações. As informações foram A advogada lembra que o desgaste dos bens sado”, enumera. requeridas pela ProTeste – com protocolo - em já é previsto em lei e, caso seja preciso vender janeiro deste ano, mas, de acordo com a advogaou trocar um item, a agência reguladora precisa da da instituição, Flávia Lefèvre Guimarães, inautorizar “para ver se isso é mesmo necessário, Sigilo em benefício de formalmente, a lista é pedida desde 2008. Só no se a empresa não está extrapolando ou paganquem? final de maio, a agência admitiu não ter a lista. do mais caro do que deveria, por exemplo. E deA Anatel se nega ainda a divulgar os dados “Ela só admitiu, depois que viu na nossa ação pois, o que a empresa angariar de receita com escontábeis apresentados pelas empresas nos últique a gente sabia da auditoria interna”, avalia sas operações deve ser lançado numa conta para mos anos. “A Agência não pode sair por ai diFlávia em referência à auditoria interna realigarantir a modicidade tarifária. Esse descontrovulgando dados das empresas, a Anatel tem o

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o artigo 37 da Constituição Federal, pelo qual controle e isso é suficiente para garantir a preso poder público tem que se orientar por alguns tação do serviço e sua continuidade”, afirma o princípios – como da legalidade, da eficiência e superintendente da agência. transparência”, argumenta. Para o procurador-geral Lucas Furtado, poPara a advogada, a população brasileira está rém, a manutenção de sigilo pela agência é uma refém “das empresas, da ineficiência da Anatel afronta. “Isto complica muito a fiscalização por e do seu comprometimento com as empresas”. parte da população. É dinheiro do povo, muiPara ilustrar este comprometimento, Flávia cita to dinheiro por sinal, que está em jogo, isso não que vários funcionários da Anatel hoje estão trapoderia ser confidencial”, destaca. Para ele, sobalhando nas companhias que deveriam ser remente as empresas se beneficiam com o sigilo: guladas. É o caso, por exemplo, do presidente “fica mais fácil puxar os bens de um lado para da Telefónica no Brasil, Antonio Carlos Valente, outro. Para a agência, não há nenhum interesque já passou pelo sistema Telebrás, Ministério se nesse sigilo, isso beneficia a empresa, que se das Comunicações e Anatel. Luiz Francisco Perorienta pelo lucro, e torna impossível a fiscalirone, diretor da Brasil Telecom, também foi vização por parte da população”, critica. ce-presidente do Conselho Diretor da Anatel de Entre as mudanças sugeridas pelo procurador 1997 a 2001. estão a exigência de uma manifestação da AnaFlávia foi parte do Conselho Consultivo da tel sobre a reversibilidade dos bens em toda venAnatel de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2009 da feita pelas concessionárias; e o fim da conna condição de refidencialidade para “A população brasileira está refém presentante das eninformações contádas empresas, da ineficiência da Anatel tidades de usuários, beis e operacionais e, a partir dessa exprestadas à Anae do seu comprometimento com as periência, ela contel pelas empresas empresas” - Flávia Lefèvre Guimarães, cluiu que a Agênsobre bens reveradvogada da ProTeste cia, na contramão, síveis. “O TCU está quer flexibilizar ainda mais o controle. “Eu estaacompanhando, mas há muito pouco que se va lá quando começaram a inventar uma história possa fazer. Hoje, o sistema depende basicaque tinha que acabar com essa ‘visão patrimomente da empresa dizer que o bem é reversível nialista’. Na verdade, eles queriam rever a reguou não. A decisão de vender deveria ser aprolação para autorizar as concessionárias a vendevada pela Anatel e até mesmo pelo Congresso rem bens reversíveis de até R$ 1,5 milhão sem Nacional, porque é o interesse público que está autorização da Anatel. Houve uma consulta púem questão”, reitera o procurador. blica nesse sentido, e, nesta ação, nós pedimos A advogada da ProTeste, Flávia Lefèvre Guitambém a nulidade da consulta pública porque marães, considera o sistema de fiscalização atuela traz dispositivos que contrariam a Lei Geral al ilegal. “A não fiscalização pró-ativa para esde Telecomunicações”. ses bens e a falta de transparência da Anatel fere

A Ação Civil Pública afirma: “A justificativa de representantes da Anatel para o abrandamento das obrigações atribuídas às concessionárias no que diz respeito aos bens reversíveis é no sentido de que não é produtivo estimular-se “uma visão patrimonialista”. O pior é que representantes do Ministério das Comunicações também vêm defendendo o abrandamento dos mecanismos de controle sobre os bens reversíveis, como se pode verificar por recente declaração do Secretário Executivo do Ministério, Cezar Alvarez que criticou controle de bens reversíveis”. Na ação, a advogada argumenta que esta iniciativa da agência vai no sentido de encobrir os enormes prejuízos que já se concretizaram e eximir seus servidores de culpa. O documento cita a seguinte fala de Alvarez, realizada em palestra no evento Banda Larga e Os Direitos do Consumidor, organizado pelo Idec (Insituro de Defesa do Consumidor): “tem que parar de brigar com a Anatel pelo fusquinha 68 que vai voltar para nós lá na frente, de ficar olhando o computador 386 que é reversível”. (...) “A Anatel vai ter que ficar eternamente contando quantos (computadores) 386, quantos fusquinhas vão voltar? Temos é que pensar no que é estratégico para o setor”. O ‘fusquinha’ de Alvarez é valioso. A advogada estima que atualmente os bens reversíveis valham cerca de R$ 30 bilhões. A Anatel trabalha com a cifra de R$ 20 bilhões, mas admite que, se os bens fossem de fato vendidos, o valor seria mais alto. Débora Prado é jornalista debora.prado@carosamigos.com.br

Entenda o Projeto Bens Reversíveis A ata da 165ª reunião ordinária do conselho de administração da TELEMAR NORTE LESTE S/A, realizada em 02 de agosto de 2010, detalha o Projeto Bens Reversíveis: “Os Bancos Itaú e Safra serão os coordenadores da emissão do CRI (Certificado de Recebível Imobiliário) e que a Brazilian Securities será a responsável pela administração e estruturação do CRI, bem como pela emissão do certificado. Destacou como principais pontos (i) proposta firme do Itaú/Unibanco e Safra no valor de R$1,6 bilhão, dos quais R$0,5 bilhão são referentes à BRT e R$1,1 bilhão à TMAR; (ii) Taxa de 119% de CDI que, com benefícios fiscais, pode chegar a até 102% do CDI; (iii) o Prazo de 12 anos; e (iv) a transferência de aproximadamente R$1,8 bilhão em imóveis a valor de mercado, sendo: (a) BRT: Aproximadamente 101 imóveis totalizando R$0,6 bilhão de valor de mercado e (b) TMAR: Aproximadamente 162 imóveis totalizando

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R$1,2 bilhão de valor de mercado. Em relação à estrutura societária proposta, foi destacada a criação de 2 SPE’s (Copart 4 Participações S.A. – subsidiária integral da TMAR, e Copart 5 Participações S.A. – subsidiária integral da BRT) para um melhor aproveitamento dos benefícios fiscais intrínsecos ao projeto”. Em outras palavras, com a operação, o grupo transferiu a propriedade de centenas de imóveis para empresas subsidiárias, controladas por ela mesma – mencionadas como Copart 4 e a Copart 5. Com isso, a Brasil Telecom passa a pagar aluguel para as empresas que controla, em última instância, para si mesma. Isto permite que as subsidiárias, por sua vez, vendam os contratos de aluguel que irão receber para bancos numa operação em que antecipa a receita. Os contratos - securitizados e transfor-

mados pela Brazilian Securities em certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) - são comprados pelos bancos Itaú e Safra. Por ser lastreado em imóveis, a companhia consegue levantar capital em condições melhores, com um custo e taxas menores do que em um empréstimo comum, por exemplo. Além disso, a companhia passa a usufruir de um abatimento fiscal, uma vez que, ao pagar aluguel, ela pode abater este valor do lucro líquido como despesa operacional, diminuindo o montante sobre o qual incidirão impostos. Por meio de sua assessoria de imprensa a Anatel informou que a operação foi realizada sem sua autorização prévia e, por isso, foi aberto um processo administrativo, que está em fase de instrução.

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Militarização

Kassab reforça estado

policial em São Paulo

ilustração: ricardo palamartchuk

Além de nomear oficiais da PM para vários cargos administrativos, o prefeito combina a atuação da Guarda Civil Metropolitana com policiais militares na repressão política e social.

Por Gabriela Moncau “Tiraram-nos a justiça e deixaram-nos as leis”. A frase é do escritor uruguaio Eduardo Galeano e foi citada pelo professor de jornalismo da PUC-SP, Silvio Mieli, para sintetizar a paradoxal sensação de injustiça e desigualdade, combinada com um sistema cada vez mais forte de repressão e militarização no Brasil, como o uso das Forças Armadas em manifestações operárias e nas favelas do Rio de Janeiro. Em São Paulo, nos últimos tempos, a população paulistana tem convivido não só com a rotineira presença policial em situações de repressão às manifestações sociais e nas violentas operações nos bairros pobres da cidade, como também tem enfrentado a orientação do prefeito Gilberto Kassab, ex-DEM e do novo PSD, de nomear policiais militares para a própria administração municipal. Somente nas subprefeituras, 55 policiais militares ocupam posições no alto escalão administrativo; dos 31 subprefeitos, 25 são oficiais da reserva da PM, de modo que mais de 80%

das subprefeituras estão sob comando direto da Polícia Militar. Além das subprefeituras, há comando policial militar na Secretaria de Transportes, na Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), no serviço funerário, no serviço ambulatorial municipal, na Defesa Civil e na Secretaria de Segurança. Essas funções, antes ocupadas por funcionários civis, começaram a ser transferidas para o controle de policiais militares por nomeação do próprio Kassab em 2008, quando o coronel PM Rubens Casado assumiu a subprefeitura da Mooca, com o discurso de que poria fim à corrupção que vinha sendo denunciada na região. No final de maio desse ano, no entanto, o chefe de gabinete dessa mesma subprefeitura, não por acaso também da reserva da PM, o coronel Altino José Fernandes, foi exonerado de seu cargo por suposto envolvimento em cobrança de propinas na Feira da Madrugada no Brás. Apesar de ser o responsável pelas operações no Brás há 5 meses, o coronel Fernandes não soube explicar

quais funções cumpriam seus oito subordinados, nem quem cobrava taxas para a instalação de barracas dos ambulantes no lugar. A maioria das nomeações foi feita no segundo semestre de 2010 e em 2011, de modo que atualmente cerca de 90 oficiais da PM ocupam importantes cargos no governo. Boa parte das indicações é feita pelo comandante geral da PM de São Paulo, Álvaro Camilo, que assumiu o cargo em 2009 e foi mantido pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). Camilo inclusive esteve ao lado de Kassab no evento que anunciou um projeto de turismo comercial na mesma Feira da Madrugada do Brás. Projeto esse que foi recebido com grande rechaço por parte dos trabalhadores ambulantes da região, que serão retirados – pela PM – assim que as obras de um novo shopping forem iniciadas. A Caros Amigos pediu exaustivamente uma entrevista com o secretário das Subprefeituras, Ronaldo Camargo, para demandar uma explicação de qual possível critério poderia estar sendo

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usado para atribuir funções que deveriam estar ligadas à educação, saúde, cultura, limpeza urbana e manutenção de regiões da cidade para pessoas com formação militar. A conversa foi recusada. A assessoria de imprensa da prefeitura tampouco respondeu qualquer pergunta. Quais interesses estão por trás do aparelhamento policial militar das instâncias da prefeitura? Trata-se de um maior controle da população por meio do aparato policial? Se sim, para quê? Existe a possibilidade de formação de máfias? Milícias? Recrudescimento das políticas municipais para higienização da cidade como medidas preparatórias para a Copa do Mundo de Futebol? O que significa termos, de modo crescente, policiais militares no poder institucional? “Durante a ditadura vivemos sob a égide de uma ideologia de segurança nacional. A partir disso criou-se a ideia de que estávamos em guerra, que havia um inimigo a ser combatido, criou-se um aparato de segurança bélica, de ataque aos direitos individuais, tudo em nome de uma segurança pública”, recorda o juiz José Henrique Torres, presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Acaba a ditadura, essa ideologia é travestida para uma ideologia de segurança urbana e os mesmos aparatos são mantidos. Então temos a militarização da polícia, as concepções de segurança pública fincadas em critérios policialescos de proibição, controle, aprisionamento, criminalização”, afirma, defendendo a leitura de que a partir daí cria-se um sistema de controle de segurança urbana no qual a violência policial e recrudescimento das medidas de punição aparentam ser justificáveis, “ocultando os verdadeiros problemas sociais que devemos enfrentar”.

Mafialização

“Administrações regionais e subprefeituras nada têm a ver com repressão e polícia. Se existe essa mistura, é uma patologia social muito grave e séria”, define Silvio Mieli. Para ele, setores como o da polícia tem certa autonomia em relação ao Estado, o que entende como uma das características fundamentais do que chama de “mafialização do Estado”: “A militarização da sociedade é diretamente proporcional ao processo de mafialização. Criam-se estruturas autônomas muito poderosas que passam a servir a interesses também muito poderosos e se constituem em grupos autônomos que têm mais poder que o Estado”. “A polícia acabou se constituindo como uma dessas máfias. Não é à toa a constituição das milícias no Rio de Janeiro, os esquadrões da morte que ainda existem, o enorme número de operações que deflagram crimes com ligação policial”, afirma. Ainda que o setor policial tenha certa autonomia diante do órgão estatal, o seu aparelhamento parece ser bastante estratégico, tanto do ponto de vista do empoderamento das forças militares quanto do próprio prefeito que os nomeou. Recentemente foram feitas denúncias

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de que as estruturas da Prefeitura de São Paulo estariam sendo usadas para coletar assinaturas de apoio ao Partido Social Democrático (PSD), criado por Kassab em março desse ano. O partido ainda não foi registrado na nova legenda da Justiça Eleitoral, para isso é necessária a coleta de 490 mil assinaturas de eleitores até o final de setembro, em pelo menos nove estados. O flagrante foi feito quando um repórter da Folha de S. Paulo assinou o documento dentro do gabinete do subprefeito da Freguesia do Ó, coincidentemente o coronel PM Valdir Suzano. A informação passada pelos eleitores abordados é de que cada Subprefeitura teria uma cota de assinaturas para recolher. A Subprefeitura de Santo Amaro, comandada pelo coronel PM Ailton Araújo Brandão, também tem tido dificuldade de explicar algumas histórias mal contadas. A pessoa nomeada pelo órgão em 2010 para cuidar do centro de compras do mercado municipal da região, apesar de receber em dia, nunca apareceu para trabalhar. E o funcionário que administra de fato o local há 6 anos, José Carlos Prado Carneiro, ganha um salário duas vezes maior que o previsto. Em entrevista à Rádio Bandeirantes, que fez a denúncia, Carneiro concordou que ganha mais do que deveria, “Eu vou falar o que para você?” retrucou em meio a risos, e deixou claro que o subprefeito estava absolutamente ciente da situação. O coronel, no entanto, disse que nada sabia de nenhuma irregularidade. “O poder dos militares não diminuiu depois da redemocratização. Eles continuam tendo um poder de fato. Existe uma prerrogativa de superioridade, de mando, da parte de algumas figuras que comandam processos, conseguem cargos”, caracteriza Mieli, que completa: “A criminalização dos movimentos sociais também fala muito da ação dessas máfias no campo e na cidade”.

Operação delegada

Não por acaso, a principal função a qual as subprefeituras têm se dedicado está sendo estruturada por uma operação que envolve um entrosamento entre a Prefeitura e o Estado, de modo que a administração municipal combina a atuação da sua polícia, a Guarda Civil Metropolitana, com policiais da Polícia Militar, que são pagos durante seu horário de folga, no serviço público estadual, para fundamentalmente combater o comércio ambulante na cidade de São Paulo. A Operação Delegada é o chamado “bico institucionalizado”, está em vigor desde 2009, mas foi implementada com maior força em 2011. No ano passado, o investimento na operação era de R$24 milhões; atualmente, o orçamento quadriplicou e já está em R$100 milhões. São quase 4 mil policiais que atuam armados e fardados no período em que estão fora do expediente normal na PM. Por mês, os PMs podem trabalhar até 96 horas a mais, com remuneração de até R$1.600. “Como que o governo pode incentivar que homens que trabalham com armas, que podem

matar, trabalhem no horário de folga? Eu não confio em polícia nem normalmente, quanto mais um que nem dormiu direito segurando uma arma”, queixa-se Maria Soares, vendedora de roupas na Rua 25 de Março, uma das principais regiões onde funciona a operação. Uma declaração do secretário das Subprefeituras Ronaldo Camargo para o site R7 deixa claro o porquê do peso no combate aos camelôs: “Vai beneficiar os comerciantes regularizados, que não precisarão mais competir com comércio ilegal na porta de sua loja”. “Quem faz o comércio ambulante? São os pobres que de alguma forma tentam escapar do trabalho precário e mal pago, temporário. É um trabalho que tem certa autonomia, em geral eles podem determinar sua jornada de trabalho, e conseguem algum rendimento maior”, analisa o cientista social Eder Sousa. “A militarização tem a ver com as oportunidades de investimentos de especulação imobiliária com os megaeventos que teremos, Copa Mundial e Olimpíadas, com as intervenções do modelo de cidade limpa, tudo isso está conectado. Para isso, é necessário tirar o pobre e as alternativas da economia popular”, salienta Eder. Ele retoma a origem da Polícia Militar no Brasil, produto dos anos de chumbo: “Política de extermínio, de execução sumária, está a cabo da PM ainda hoje. Essa política está diretamente associada à ditadura militar na medida em que consolida essa divisão de tarefas de que a PM deveria fazer a polícia ostensiva, que seria ‘preventiva’ por sua própria presença”. Eder ressalta, no entanto, que a polícia meramente ostensiva nunca existiu: “O que temos é uma polícia altamente repressiva, punitiva, que utiliza a prática da execução sumária como forma de garantir a lei e a ordem. Institucionalizou-se na ditadura, e na suposta democracia a ideia permanece”. A rigor, a presença militar deveria ser voltada para a defesa de ataques externos, mas “associada à ideia de combate ao comunismo da guerra fria amadureceu-se a ideia – que já existia no Estado getulista, mas com menos nitidez – da consolidação do papel dos militares no combate à subversão. Então não é só punição, há um controle social”, explica Sousa. Ele dá como exemplo a convergência que existe entre as políticas sociais e a militarização, citando o cadastro que se faz das famílias pobres que recebem algum benefício de uma política social, no qual se registram uma série de dados depois utilizados para fazer a vigilância e repressão estatal sobre as áreas de pobreza. “Com a operação delegada, podemos ver que agora existe o policiamento ostensivo, patrocinado pelo Estado, com a finalidade da proteção patrimonial dos empresários do comércio”, analisa o cientista social, que resume: “É a privatização do policiamento ostensivo com recursos do Estado. Mais uma forma de voltar o aparato do Estado para a valorização do capital”. Desde que assumiu a prefeitura em 2006, www.carosamigos.com.br

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Gilberto Kassab vem restringindo significativamente o número de autorizações legais para vendedores ambulantes, tendo revogado nesse período cerca de 4 mil Termos de Permissão de Uso (TPU). Atualmente, o município nem emite mais TPUs.

Repressão seletiva

A Caros Amigos colheu depoimento de uma das lideranças do movimento dos ambulantes da região central da cidade, que optou por manter anonimato por questões de segurança. O chamaremos de José. “Desde que o movimento dos ambulantes começou a se organizar, processávamos a Guarda Civil Metropolitana (GCM) toda hora e a gente ia para cima, eles ficaram completamente desmoralizados”, relata, contando de uma manifestação em que jogaram 300 dúzias de ovos nos guardas. “A Guarda perdeu o poder dela dentro da Rua 25 de Março. A Polícia Militar entrou. O que está em jogo é a garantia do patrimônio dos grandes comerciantes”, afirma. A 25 de março é o maior shopping aberto da América Latina. Na temporada de festas, passam entre 800 mil e 1 milhão de pessoas por dia. “Como o sistema quer só para ele, procura aniquilar quem não detém o poder”, assegura José. “O movimento dos ambulantes passou a ser uma preocupação para as autoridades. Nós fechamos da rua Barão de Duprat até a rua Direita, bloqueamos a entrada da prefeitura em 2007, 2008, 2009. Exigíamos trabalho legal, com licença, pagando taxas e em contrapartida que nos deixassem trabalhar”, narra o ambulante. “Então entrou a força militar, organizada por vários batalhões. Se organizaram em milícias, ganhando a solto”, denuncia. “A PM, por não conseguir acabar com o trabalho informal, começou a ameaçar os ambulantes dizendo que forjariam apreensão de maconha e cocaína”, aponta José, descrevendo os violentos confrontos durante a passeata na qual os trabalhadores tentavam caminhar até a Corregedoria Geral do Estado, em abril do ano passado. Desde então, o recrudescimento das perseguições com a Operação Delegada, com serviço secreto, paisanas e grupos policiais de extermínio fizeram o movimento optar por um recuo estratégico. José conta que, no ano passado, três sujeitos à paisana, de motocicleta, foram procurar uma das lideranças dos ambulantes em sua casa. “Eles foram para matar. Seus vizinhos reconheceram eles na Praça Princesa Isabel conversando com PMs fardados, e o avisaram, então ele saiu fora, se mudou, deu muita sorte. Eles querem aniquilar os movimentos. Como os movimentos resistem, aniquilam as lideranças. A gente é detido, mas assina Termo Circunstanciado, que é ficar respondendo processo depois, não ficamos presos. Então para eles é melhor matar”, salienta. Dia 14 de dezembro de 2010, o presidente do Sindicato dos Ambulantes Independentes de São Paulo, Afonso José da Silva, foi assassinado com pelo menos três tiros dentro da sede do sindicato, no Brás. Em 1999, Afonso já ha-

via sofrido um atentado de morte, depois de dar um depoimento público acusando o ex-deputado Hannah Garib (do então Partido Progressista do Brasil - PPB, que depois se tornaria PP) de ser um dos destinatários finais das propinas pagas pelos camelôs aos fiscais da Administração Regional da Sé. Tomou quatro tiros, mas sobreviveu naquela ocasião. Garib foi condenado a 20 anos de prisão por extorsão e formação de quadrilha, acusado de ser o principal beneficiário do esquema de propinas na investigação da Máfia dos Fiscais. “Em várias áreas por aí, na Feira da Madrugada, o Brás está todo loteado e a polícia está arrecadando dinheiro. Tem até grupos de pistoleiros. Os homicídios não aparecem, o índice de assassinato na área do Brás aumentou muito, já mataram mais de 15 de um ano para cá”, garante José. “O prefeito quer fazer um shopping ali para a iniciativa privada”, expõe, referindose ao projeto que faz parte das obras de revitalização para a Copa de 2014, o mesmo que foi anunciado por Kassab ao lado do comandante geral da PM, Álvaro Camilo. “Quanto você acha que cada empresário dá para a polícia para tirar os camelôs? Quanto você acha que os empresários dão para a Univinco (União dos Lojistas da Vinte e Cinco de Março e Adjacências), para a Univinco repassar para a PM, principalmente o 45º Batalhão, e eles fazerem o pagamento ilegal dos soldados?”, denuncia José. “Às vezes dava crise, a gente ficava sabendo que eles não recebiam, aí não vinham trabalhar. Aí vinha soldado de outro batalhão, vinha de tudo que é canto. Olha só que estratégia que eles arrumaram através dos coronéis nas Subprefeituras”, avalia. José aponta, no entanto, que a corrida atrás dos camelôs é a ponta do iceberg: “É a satisfação política aos olhos da opinião pública que não conhece o submundo da economia informal. A operação delegada é para inglês ver. A pirataria chega pelos portos e pelo Rio de Janeiro, todo mundo sabe”. A respeito dos shoppings como Pajé, Oriental e da 25 de março que recentemente têm sido fechados pela Polícia Federal (PF), o ambulante afirma: “A propina desses shoppings ia para a mão de desembargadores em Brasília. Aí entrou o Kassab, e o dinheiro passou a ir para ele, mais de R$2 milhões. A PF começou a agir agora nesses shoppings, porque a ordem vem do poder de Brasília. Cortou o dinheiro de lá, eles atacam. Mas aí fecha, lacra, fotografa, depois de um tempo já abre”.

Militarização do cotidiano

De fato o Brasil carrega e implementa uma tradição de longa data de responder a problemas sociais com ataques militares. Para citar alguns casos recentes é possível relembrar a presença das Forças Armadas assassinando e prendendo centenas de jovens no complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado, sob a justificativa de guerra às drogas; a violenta repressão policial com

dezenas de prisões na greve dos trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Jirau em Rondônia, em março; ou mesmo o ataque do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) à greve dos bombeiros no RJ, resultando em muitos feridos e centenas de trabalhadores presos. Somente no Estado de São Paulo, com uma população cerca de oito vezes menor que a dos Estados Unidos, registra-se 6,3% mais mortes cometidas por PMs do que execuções feitas por todas as forças policiais de todos os EUA nos últimos cinco anos. Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública revelam que 2045 pessoas foram mortas pela PM entre 2005 e 2009 em casos registrados como “resistência seguida de morte”. Para cada policial militar morto durante confrontos em SP durante o ano passado, 35 civis foram assassinados. O professor Silvio Mieli defende a teoria de que além da política repressora estatal existe um imaginário social militarizado, uma “pedagogia do militar, do bélico e da violência”. “Fomos domesticados a naturalizarmos a repressão. Tem desordem? Eu vou por ordem na casa. Só que a desordem é uma tentativa da população de se reordenar no território”, caracteriza Silvio. “As mobilizações são isso. Essas manifestações que estão se tornando mais frequentes em São Paulo e no resto do Brasil são um início de um processo de redescoberta do espaço urbano que nos foi roubado”, argumenta. “Chegamos a um determinado ponto em que se cria a ideia de que é inevitável a intervenção policial. Evidentemente que quem sofre aquela violência no cotidiano por vezes aplaude a atitude militar, você quer ter mais segurança para viver”, pondera o juiz José Henrique Torres, que conclui: “Mas a gente se esquece que o que precisamos mesmo é de justiça social, distribuição dos meios de produção, reforma agrária, reforma urbana, direitos humanos. Não dá para garantir isso com segurança. Nós vamos chegar a um ponto em que cada cidadão vai ter direito a um policial”. Para o presidente da AJD, essa atmosfera de medo e recrudescimento de uma política de segurança urbana justifica e naturaliza o não desmonte do aparelho repressivo da ditadura militar e a permanência de um Estado de exceção em detrimento de um Estado democrático. “A democracia das eleições é só um acessório para a maquiagem do Estado de exceção”, completa Eder Sousa. No texto Estado autoritário e violência institucional, Ângela Mendes, do Observatório das Violências Policiais aponta que o “efeito da violência urbana só aparece, para a maioria adepta do senso comum, em espasmos dramáticos, logo abafados pela vida que continua”. “O papel dos agentes do Estado nessa violência e sua característica de ser voltada exclusivamente contra os pobres, não arranha a convicção de o Brasil ser um Estado democrático de Direito”, conclui. Gabriela Monkau é jornalista.

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entrevista ESTEBAN VOLKOV BRONSTEIN

“Para o autêntico socialismo,

a democracia é como oxigênio”

Mas do exílio na Turquia eu me recordo mais ou menos, do meu avô... [Esteban chegou a Prinkipo com 5 anos, em 1931, acompanhando sua mãe Zina, filha mais velha do primeiro casamento de Trotsky]

foto: Jesus Carlos

Tatiana Merlino – O senhor lembra do seu avô na Turquia? Sim, longinquamente, menos do que no México, de onde tenho memória mais precisa e ampla. De lá, tenho memória de uma pessoa muito ativa e muito trabalhadora, sempre ocupado em seu escritório. Era afetivo, carinhoso. Essas são as lembranças que eu tenho. E foi uma época de muita atividade e trabalho na qual ele escreveu suas duas obras magnas, Minha vida e A história da revolução russa. Ambas foram escritas nesse período, em seu exílio na Turquia.

Por: Tatiana Merlino e Angela Mendes de Almeida. Ele testemunhou o assassinato do avô, o suicídio de sua mãe na Alemanha, em 1933, seu pai e sua avó materna foram enviados para campos de trabalho forçado e desapareceram, bem como sua irmã pequena, e vários outros membros da família foram perseguidos e assassinados pelo regime de Joseph Stalin. Esteban Volkov Bronstein, 85 anos, é neto de Lev Davidovich Bronstein, ou Leon Trotsky (1879-1940), um dos líderes da Revolução Russa, de 1917, fundador da Quarta Internacional e assassinado por um agente stalinista, no México, em 20 de agosto de 1940. Nascido em 1926, na Ucrânia, aos treze anos foi viver com o avô no México, onde um ano mais tarde assistiria à sua morte. “Quando entrei na biblioteca eu vi a cena. Meu avô estava no chão ensanguentado”, recorda Volkov, em entrevista à Caros Amigos, durante sua visita ao Brasil, no começo de junho. Volkov, que é químico de formação e pai de quatro filhas, conta que sua vida tem sido pautada na luta pelo restabelecimento da verdade histórica sobre os crimes cometidos pelo regime de Stalin. “Vivi toda essa atmosfera de falsificação histórica, de calúnias, crimes e creio que é meu dever restabelecer essa verdade histórica.

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Considero que um dos maiores crimes de Stalin, além do extermínio e da falsificação, foi de mutilar a história, a memória da humanidade”. Uma das maneiras de resgatar a memória da vida e obra do avô é manter o Museu Leon Trotsky na Cidade do México, no local onde era a casa em que o revolucionário russo exilou-se por três anos até ser assassinado. Em sua visita ao Brasil, ele divulgou o documentário “Trotsky e México: duas revoluções do século 20”, do argentino Adolfo García. O neto de Trotsky acredita que ainda existe muita confusão entre o que é socialismo e stalinismo. “O regime de Stalin não tem absolutamente nada a ver com o socialismo. Tem mais a ver com o czarismo”, acredita. E explica que a democracia “é elemento sine qua non do socialismo. Para o autêntico socialismo, a democracia é como oxigênio”. Tatiana Merlino – Queríamos começar com a história da sua família. Quais são suas memórias da infância e da sua família na Rússia? Esteban Volkov – Da Rússia eu praticamente não tenho memória, está muito longe.

Tatiana Merlino – E da prisão do seu pai, o senhor não se lembra? Nem ficamos sabendo disso. Soubemos posteriormente o que aconteceu com todos os dissidentes e familiares, que foram exilados e fuzilados, todos. Angela Mendes de Almeida – Depois da queda da União Soviética, como estão os arquivos, como é possível consultá-los? O senhor não teve nenhuma notícia precisa sobre sua irmã, sobre os filhos da outra irmã, Nina, e também sobre o filho de [Leon] Sedov [filho mais velho do segundo casamento de Trotsky], e de sua avó? Porque li em um livro de Pierre Broué [historiador francês trotskysta] sobre Sedov que o governo estava cobrando para se ter acesso a esses arquivos... Os arquivos da NKVD [polícia política da União Soviética] e do partido comunista estão abertos, mas a consulta só pode ser feita mediante pagamento. Isso se converteu em negócios. Nosso amigo Pierre Broué teve acesso e pegou muita informação. Dos parentes não se sabe nada. Ao contrário, eles foram para o anonimato. A única forma de Stalin sobreviver era assim, apagar a identidade. Angela Mendes de Almeida – Porque faz pouco tempo li que sua irmã Alexandra, havia sobrevivido... Sim, ela foi encontrada em Moscou em 1989.

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Pierre Broué me informou por telefone que havia acabado de localizá-la em Moscou e me disse que tinha que ir com urgência para lá, porque ela estava com um câncer terminal, e eu fui. Estive cinco dias em Moscou e pude conhecê-la. Isso ocorreu dois, três meses antes de ela morrer de um câncer generalizado, muito avançado. E há outra meia irmã minha, pelo lado de meu pai - de um outro casamento dele - a quem deu o nome de Zinaida e que vive em Moscou. Essa não conheci, apenas por correspondência. Tatiana Merlino – E quais são suas memórias do período do México, como era a rotina de seu avô, como era a vida da família? Vivíamos como numa comunidade, uma família grande, e o meu avô era uma espécie de patriarca, rodeado de jovens camaradas. E havia muita atividade, muita vida nessa casa. Eram jovens, principalmente americanos, que estavam de guarda. Meu avô também dava muita importância à educação, à formação dos camaradas. Ele dedicava bastante tempo a discussões políticas no seu escritório. À noite reuniam-se todos os camaradas a discutir os temas da atualidade. Tatiana Merlino – E quase não saíam de casa? Sim, saíamos. Mas no dia 24 de maio [de 1940] sofremos o primeiro atentado e depois as saídas se reduziram, se restringiram, mas anteriormente saíamos muito, sim. Aos domingos, íamos coletar cactus em diferentes locais do México, íamos dois, três carros, com amigos, secretários, guardas. E ficavam semeados no jardim do meu avô. Gostávamos muito de cactus. O cactus simboliza uma planta que sobrevive em condições muito adversas. Tatiana Merlino – E o senhor se lembra dos atentados, podia falar um pouco do primeiro atentado? Sim, eu dormia muito tranquilamente num quarto ao lado do de meu avô, quando de repente entra alguém. A porta era um pouco ruidosa, roçava no piso e fazia bastante barulho. Vi uma silhueta entrando e pensei que era alguém da casa, algum dos guardas. Não me passou pela cabeça que podia ser um estranho entrando ali. Mas, pouco tempo depois, vieram os disparos, a pólvora, e eu me deixei cair no chão. Eu dormia numa pequena cama, separei a cama da parede e fiquei nesse canto... e mesmo assim recebi um tiro de bala no polegar do pé direito. E dispararam sobre a cama. Depois corri para o pátio. E meu avô e Natália [Sedova, segunda esposa de Trotsky] também correram. Os disparos vieram de três ângulos: do escritório, do jardim e do meu quarto. Um fogo cruzado com metralhadoras Thompson, uns cem ou duzentos disparos. Além disso, Natália havia reagido rapidamente aos tiros na cama deles. Empurrou meu avô para um vão entre a cama e a parede, no chão. Meu avô, que estava um pouco adormecido, porque tomava comprimidos para

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dormir, primeiro pensou que eram festejos religiosos mexicanos. Essa foi sua primeira impressão, e depois se deu conta que não era isso. E esperávamos algo parecido, meu avô mesmo havia dito quando se observou toda a campanha de calúnias, difamações, ataques de toda a imprensa stalinista contra Trotsky, quando se observou uma intensificação dessa campanha: “pelo visto os jornalistas estão a ponto de trocar a caneta pela metralhadora”. E dias depois, às quatro da manhã, sofremos o atentado. Entraram lá, e quem abriu a porta foi Sheldon Harte, jovem norte-americano que acabava de incorporar-se à guarda, e agora está comprovado que era um agente infiltrado do NKVD. Isso está provado nos arquivos de Moscou. Tudo isso está esclarecido. Ele havia sido recém recomendado como guarda, estava há umas semanas na casa, e estava muito nervoso. Parece que era um agente recrutado muito recentemente, que não estava muito fanatizado, muito catequizado, tanto é que nos arquivos soviéticos que existem, narra-se que ele criticou o assalto, perguntou por que tinham disparado no menino, que se ele soubesse que também iam assassinar o menino ele não participaria do atentado. Isso lhe valeu a alcunha de traidor e o fracasso do atentado se atribuiu a ele. A versão stalinista é de que ele havia informado meu avô que haveria o atentado e por isso ele não teria dormido... Para encobrir-se perante Stalin, o NKVD tinha que encontrar um bode expiatório, muito ao estilo dos stalinistas. Angela Mendes de Almeida – Parece que, segundo [Isaac] Deutscher [jornalista e escritor judeu-polonês] foi colocada na casa uma placa com o nome de Harte , o próprio Trotsky colocou... Sim, no museu [Trotsky] há uma placa. Angela Mendes de Almeida – E depois que se comprovou que era um agente stalinista, a placa foi retirada? Não, segue lá. De fato, ela está lá, e diz “assassinado por Stalin”. Ele não foi um agente leal, mas tampouco foi dos piores elementos. Foi um elemento recentemente recrutado que não estava totalmente fanatizado. Foi o cunhado de [David] Siqueiros [pintor mexicano próStalin] quem o matou. E parece que eles o torturaram para que confessasse que havia traído e que os havia delatado. E o enterraram ali no deserto, numa cabana de camponeses que haviam arrebentado, e o cadáver foi encontrado posteriormente, coberto de cal. Meu avô nunca desconfiou, quando viu o cadáver do jovem saltaram-lhe lágrimas nos olhos. Mas muita gente suspeitava dele, como o chefe da polícia, a secretária de meu avô também. Tatiana Merlino – E o senhor lembra-se bem do assassinato de seu avô? Sim, claro, eu voltava da escola, caminhando, e desde longe vi que algo estranho estava

acontecendo na casa. Normalmente as tardes eram tranquilas, não havia visitas, movimento, era uma paz absoluta e essa tarde vi que havia polícia, carros e a porta estava aberta, se via que algo estava acontecendo. Entrei na casa, não encontrei os guardas, [Harold] Robins [pintor estadunidense que vivia na casa de Trotsky] estava nervoso com a pistola na mão. E perguntei “o que está acontecendo?” Ele respondeu: “Jacson, Jacson”. Não entendi o que tinha a ver. Caminhei até a biblioteca, o local onde o avô ficava e num canto da direita vi um homem ensanguentado que os policiais seguravam. E ele uivava, gritava, chorava... [Trotsky foi assassinado pelo espanhol Ramón Mercader, que usava passaporte belga em nome de Jacques Monard e era chamado de Jacson]. Falo desse detalhe, porque tenho gravado na memória a comparação com os revolucionários que eram fuzilados nos campos de trabalho de Vorkuta e Kolyma e todos cantavam a internacional, proclamavam vivas a Trotsky e Lênin no momento que estavam sendo atingidos pelos disparos. Sim, era um contraste muito forte. E quando entrei na biblioteca e a porta estava entreaberta eu vi a cena, vi o que havia acontecido. Meu avô estava no chão ensanguentado, Natalia ao lado. Quando me viu, ele disse: “mantenha o menino longe daqui, ele não pode ver isso”. Ele se preocupava que o assassinato virasse um trauma para mim. Isso mostra a dimensão da qualidade humana do personagem. Jacson esteve 20 anos na prisão. Em várias ocasiões nos procuraram pessoas oferecendo-se para matá-lo. Como por exemplo um vizinho, falsificador muito famoso chamado San Pietro, que fazia cédulas melhores do que as originais. Eu tinha pavor desse falsificador. E se aproximaram familiares dele oferecendo para matar o assassino. Todos achamos que era uma manobra da GPU [polícia secreta da União Soviética] que queria se desfazer dele e jogar a culpa em nós. Angela Mendes de Almeida – Como foi a vida de vocês e de Natália depois da morte de Trotsky? Seguimos morando na casa mais vinte anos, eu vivi ali, me casei com uma espanhola, que em paz descansa, tivemos quatro filhas. Tatiana Merlino – Como o senhor se define politicamente? Eu sou químico, não sou político. Acontece que vivi toda essa atmosfera de falsificação histórica, de calúnias, crimes e creio que é meu dever restabelecer essa verdade histórica. Porque eu considero que um dos maiores crimes de Stalin, além de seus crimes de extermínio e de falsificação, foi de mutilar a história, a memória da humanidade. Foi um de seus maiores crimes. Tatiana Merlino – O senhor acredita que os crimes, erros, a burocratização do Esta-

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do analisados e criticados por Trotsky, foram devidamente discutidos pela esquerda mundial? Ninguém realmente analisou, como Trotsky, o processo do stalinismo. Não há nenhuma análise meticulosa e tão perfeita como a dele. A Revolução Traída mostra, ponto por ponto, onde estão a negação e distanciamento do regime de Stalin dos fundamentos e preceitos socialistas. E com mais de meio século de antecipação ele previu que a burocracia russa iria destruir a União Soviética e restabelecer o regime capitalista. Que a única maneira de evitá-lo era mediante uma revolução política por meio da qual a classe operária reconquistasse o poder que havia sido subtraído por Stalin. No fim, ela não aconteceu e vimos a queda e o restabelecimento do capitalismo selvagem que está hoje na Rússia, das máfias. Tatiana Merlino – Mas, os crimes e a falsificação da história foram devidamente analisados pela esquerda mundial? Não, a esquerda está muito confusa. Desde a burocracia stalinista e pós stalinista e Gorbachev, todos continuam com a falsificação histórica para tirar os méritos da Revolução Russa, desacreditá-la. Todos eles são inimigos da revolução. A usurpação e traição dos ideais socialistas e a superviolência da burocracia está precisamente em impedir que surja uma autêntica revolução. É claro que houve falsificações posteriores, da época de Gorbachev, mas não eram tão grosseiras como as de Stalin. Mas continuavam dizendo que Lenin, Trotsky e Stalin eram a mesma coisa. Que o melhor trotskista era Stalin, o que [o historiador] Pierre Brouet chamava de versão dos três ursos. E os americanos se encarregaram precisamente de avalizar essas mentiras. A eles convém desprestigiar o socialismo, o comunismo. Unir ao Gulag e aos expurgos de Stalin, a ideia de que comunismo e socialismo é o que fez Stalin, que não há a possibilidade de fazer outra coisa. Ao capitalismo convém seguir com essa mentira. Stalin foi um dos maiores aliados da burguesia e esta não lhe agradeceu. É por isso que o regime capitalista se perpetuou, se fortaleceu. Tatiana Merlino – Há uma parte da esquerda mundial e brasileira que defende Stalin. O senhor acha que isso é um problema para o restabelecimento da verdade histórica sobre o stalinismo? Claro, há muita confusão. Parte é por conta do papel que o stalinismo e os governos capitalistas tiveram, de confundir as massas, desviálas, para que sigam por caminhos fáceis para que o regime de exploração de opressão continue. É muito importante esclarecer para que não haja confusão, para que as pessoas saibam que o socialismo é uma coisa possível. E que o regime de Stalin não tem absolutamente nada a ver com o socialismo. Tem mais a ver com o czarismo.

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Tatiana Merlino – Para o senhor qual é a principal herança de Trotsky? Um poderoso farol que nos ilumina e nos demonstra e ensina o que é o verdadeiro socialismo. E que o regime de Stalin é a antítese, não tem nada a ver com o projeto socialista. É uma falsificação grosseira. Trotsky ensina o caminho para o socialismo e deixa um grande legado de teorias, de análises, de teses, o que é preciso para qualquer processo revolucionário futuro. Tatiana Merlino – Os conceitos criados por ele são atuais? Totalmente atuais, claro, a revolução permanente, o programa de transição, a revolução traída. A precisa e meticulosa análise detalhada sobre o próprio stalinismo. Creio que o stalinismo tampouco é um fenômeno isolado. Em qualquer processo revolucionário sempre surgem tendências arrivistas, para as quais tudo que interessa é poder e privilégio, e não o socialismo e a igualdade, o bem-estar. Isso existe em todos os movimentos. São pessoas desonestas e ambiciosas que se infiltram nos movimentos. Porém, de todos esses grupos de arrivistas que existem, nenhum pode se equiparar ao stalinismo que havia atrás da imagem da Rússia, que tinha um poder que nenhum desses pequenos grupos têm, nem a transcendência, importância e perigo que representou a burocracia na Rússia. Angela Mendes de Almeida – Mas a Rússia de hoje guardou muitas coisas da União Soviética, em termos de repressão, o que fazem com os chechenos... Sim, claro, sabemos que [Vladimir] Putin saiu do NKVD. Essa é a escola e os gângsteres que há hoje na Rússia, seguramente, absorveram muitos dos agentes do NKVD. Tatiana Merlino – Socialismo e democracia são compatíveis? Claro, democracia é um elemento sine qua non do socialismo. Claro, como os autênticos sovietes. Para o autêntico socialismo, a democracia é como oxigênio. Isso significa a participação das massas, dos fenômenos de autogestão de fábricas e a demonstração que o setor operário produtivo pode manter as fábricas por si próprio. Creio, que para que haja eficiência, tem que haver participação da base da classe operária, não ter verticalização. Houve fenômenos muito interessantes, de revoluções antiburocráticas, como a da Checoslováquia, Tiananmen, na China, que foram reprimidas a sangue e fogo pela burocracia. Tatiana Merlino – Como foi defender a obra de seu avô durante todos esses anos? Tenho participado dando testemunhos, porque pessoalmente vivi o que foi a falsificação, os crimes de Stalin. Em Paris, quando vivi com meu tio, [Leon Sedov viveu em Paris de 1933 até seu assassinato, em 1938] eu via como as pessoas caíam assassinadas, Andrés Nin e

[Rudolf] Klement. [[por exemplo] Na Espanha, também foram assassinados vários trotskistas. E, no México, eu vivi todas as absurdas e grotescas calúnias vertidas por todas os tipos de stalinistas que recebiam dinheiro de Moscou, encabeçadas pelo líder operário Lombardo Toledano, que recebia dinheiro. Hoje, está perfeitamente esclarecido por onde e como Lombardo Toledano recebia recursos de Moscou, através de uma comunista que havia sido amante de Earl [Browder], que era o líder máximo do partido comunista norte-americano. Era a via por onde se mandava dinheiro para Toledano para que dirigisse a campanha de calúnias contra meu avô. Toledano se queimou totalmente no México. Como ele apoiou a repressão de Tlatlelolco [chacina ocorrida em 2 de outubro de 1968 em uma praça do centro da capital mexicana, quando mais de 300 pessoas foram assassinadas, segundo organizações civis e ativistas, a chacina foi cometida pelas forças do governo, então em mãos do Partido Revolucionário Institucional (PRI)], apoiou Gustavo Díaz Ordaz [presidente do México entre 1964 e1970]. Isso não se perdoará. Angela Mendes de Almeida – Ele apoiou pessoalmente ou em nome do partido? Em nome do partido, Partido Popular, que ele dirigia. E apoiou a Díaz Ordaz na repressão. Tatiana Merlino – Hoje em dia, como o senhor avalia a esquerda mundial, o novo momento das experiências na América Latina e as revoltas do mundo árabe? São embriões que estamos observando, são começos do trabalho. Espero que não fiquem no meio do caminho, que impere a revolução permanente, o internacionalismo, que são elementos sine qua non de qualquer revolução socialista. Se a economia capitalista necessita a internacionalização, a globalização, o regime socialista é igual. Tatiana Merlino – E do socialismo cubano, o que acha? Que está isolado numa ilha, não é tão fácil. Fidel Castro é uma pessoa honesta, dedicado a levar Cuba adiante, mas numa ilha isolada não é fácil. Vemos, que agora, estão copiando um pouco o modelo chinês. Querem impor medidas capitalistas. Não creio que isso iria agradar a Che Guevara. Angela Mendes de Almeida – O senhor não pensa que em Cuba havia e há traços e métodos do stalinismo? Sim, pois eles dependeram por muito tempo economicamente da Rússia, e tiveram bastante influência da burocracia. Há um trotskista cubano que esteve na prisão cubana por sete anos, por ser trotskista. Ele conheceu o Che e presenteou-o com um livro de Trotsky. Tatiana Merlino é jornalista. Angela Mendes de Almeida é historiadora.

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

ESTOU DE SACO CHEIO DO CAPITALISMO O que significa o fim da esperança de uma sociedade socialista? O ex-chanceler Amorim privou com Glauber Rocha. Sorte a dele. A política externa de um país é a continuação da política em casa. Trotsky dizia: o Kremlin é uma burocracia rentista de um Estado degenerado pelo imperialismo. Marx falou da ditadura do proletariado, mas não viu a degeneração burocrática dessa ditadura. É genial a paráfrase feita por Trotsky: nada que é humano é estranho à política. O marxismo não deve transformar seus heróis em santos. Augusto Bebel foi torneiro mecânico, embora não tenha trabalhado no ABC automobilístico. O conceito de revolucionário não é independente do conteúdo de classe. Lênin falou sobre Stalin: ele é desleal e abusa do poder. A “janela do tio Sam” (Trotsky) pela qual o PT vê o Brasil, é a mesma da UDN. Obrigado Leonel Brizola. O que significa Dilma aprofundar o que foi feito por Lula? O governo Lula não privatizou porque FHC não deixou quase mais nada para ser privatizado e, destarte, a privatização saiuda

agenda do imperialismo. Para o povo e o país, o governo Lula representou algum avanço ou progresso? O destino da massa trabalhadora não está nas mãos de nenhum partido político. Fala-se em “compromisso republicado” quase como uma “República da virtude” ou virtude da República. Frescura. A história anda devagar. Dona Dilma esta à direita de Lula ou dará o salto além do assistencialismo e da submissão ao imperialismo? É um equivoco achar que partido político deixou de ser a expressão política das classes sociais. A ideologia da igreja é a linguagem política: o rico egoísta não pode querer tudo para si, tem que pensar um pouco nos fodidos. Enfim, estabelece-se um abismo entre rico e pobre, sem o menor vínculo de exploração de classe. O adeus ao socialismo (se é que alguma vez o PT foi marxista) significa que acabou o imperialismo. A supressão do antagonismo classista da “sociedade civil” leva à concepção da política como jogo de linguagem ou matéria de negociação, de diálogo, de conversa, de churrasco. Negociar, negociar, negociar. A linguagem é política. A bandeira da linguagem. Quem não se recu-

sa a conversar, pontificou o ex-presidente Lula, eis aí um autêntico político. A FIESP ganhou o perdão por ter dado o golpe de 64, a memória da ditadura ficou nos capítulos da telenovela pornô Jabor I Love You. O assunto democracia, o valor mais alto que se alevanta, deixou de ter qualquer relação com o imperialismo. O Gramsci da “sociedade civil” (o anti-Trotsky de A Revolução Permanente) trazido depois de 64 pelo partido stalinista teve efeitos deletérios na cultura brasileira de formação jesuítica. Isso resultouno excedente material armazenado pelos Bancos junto com a mais-valia psíquica do assistencialismo igrejeiro. Glauber Rocha gostava menos de Gramsci do que de Visconti, ao contrário do que sucedeu com o PT Vaticano e antiluta de classes, e tambémcom o CEBRAP rockfelleano do “autoritarismo versus democratização”. O Banco Gramsci (a moeda católica com esmola para os pobres) não é um oximoro escandaloso, é antes o condimento da salada cipaia da burguesia bandeirante. Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Ministério da Cultura e Chesf apresentam:

Lançamento do novo CD

das Caixeiras da Família Menezes Dindinha, Zezé, Graça e Bartira são responsáveis, há 12 anos, pela Festa do Divino Espírito Santo no Espaço Cachuera!, em São Paulo. A apresentação homenageia São Luís do Maranhão, terra de origem dos toques e cânticos do Divino.

22 de julho de 2011. 19h Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho Rua do Giz, 221 São Luís do Maranhão

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Rio de Janeiro

Índios querem criar a primeira Universidade Indígena do Brasil

foto: Renan Oliveira

A proposta visa aproveitar o antigo Museu do Índio – localizado próximo ao estádio Maracanã – e transformá-lo num pólo de estudo e difusão da cultura ameríndia.

Afonso Apurinã, que está desde o início da ocupação, com o estádio Maracanã ao fundo.

Por Eduardo Sá O antigo Museu do Índio, que fica no entorno do Maracanã, estádio de futebol carioca mais conhecido do Brasil, foi cercado pelas obras de reforma da arena para a Copa de 2014 no dia 29 de outubro de 2010. O espaço está ocupado desde o dia 20 de outubro de 2006 por diversas etnias indígenas, que reivindicam o imóvel para a construção da primeira Universidade Indígena do Brasil administrada por índios, cujo projeto também prevê um centro de referência para os nativos que chegam à cidade, um pólo de produção e difusão cultural ameríndia e um museu. O casarão tem um valor simbólico para os índios por conta de sua história. Seu primeiro proprietário foi o Duque de Saxe, que em 18 de julho de 1865 doou o espaço à União para transformálo num Centro de Pesquisa sobre a cultura indígena, onde abrigou a Escola Nacional de Agricultura, atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na baixada fluminense. Décadas depois, o prédio virou a sede do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado pelo Marechal Cândido Rondon em 1910, que estabeleceu as bases da política indigenista republicana. O SPI funcionou no Rio até 1962, quando foi transferido para Brasília, e no golpe de 1964, tendo como diretor o grande Noel

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Nutels, os militares tomaram conta da instituição abandonando a obra de Rondon. Com a pressão interna e internacional, resolveram extinguir o SPI e criar a Fundação Nacional do Índio (Funai), em novembro de 1967. No dia 19 de abril de 1953, mesmo dia em que Darcy Ribeiro instituiu o Dia do Índio, foi inaugurado um Museu do Índio no local. O Museu do Índio ficou no prédio do Maracanã até 1977, quando foi transferido para o prédio que servia ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), em Botafogo, na zona sul carioca, onde também funciona hoje a Funai no Rio de Janeiro. Fora de funcionamento, a União passou a titularidade do terreno para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em setembro de 1984. Dois anos depois, o Ministério da Agricultura se responsabilizou pelo prédio, que apesar de centenário não é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), nem pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Se o prédio atualmente é todo deteriorado e pichado por fora, por dentro é só o esqueleto. Existem atualmente cerca de 20 pessoas morando no local, originárias de etnias de diversas regiões do país: Guajajara, Pankararu, Xavante, Guarani, Apurinã, Fulni-ô, Pataxó e Potiguara são algumas

delas. Como o prédio está em ruínas, os indígenas construíram suas casas do lado de fora com barro. Os índios dão aulas em colégios, fazem apresentações em universidades e vendem seus artesanatos nas ruas. Isso graças à lei 11.645, que obriga as instituições de ensino a chamá-los para apresentarem sua cultura: “a gente vê que os livros didáticos não contam a verdadeira história do índio, é totalmente diferente”, critica Guarapirá Pataxó, liderança vinda da Bahia que está desde o início na ocupação. Ele trata da parte cultural, e afirma que os índios não têm apoio financeiro de ninguém, nem da Funai, e quase não recebem doações.

Ocupação do Museu

Como os índios não têm nada legalizado, a ocupação, batizada de “Aldeia Maracanã”, funciona como uma frente de resistência, que se reveza. Geralmente a pessoa fica durante um mês e volta para a sua aldeia, a fim de repor as energias para ficar no local, pois é cansativo devido às condições precárias e dificuldades na metrópole. Eles também já tiveram problemas com roubos, viciados em drogas e a presença de mendigos que entram no prédio abandonado, mas a resistência se mantém firme. A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos

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Advogados do Brasil (OAB), por meio do advogado Arão da Providência, entrou com diversos processos administrativos para a reintegração do imóvel. O advogado explica que desde 2006 essas medidas visam a regularização fundiária para interesse social em imóveis da União, conforme é previsto na lei 11.418 da Constituição Federal. Já foram acionados o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e Câmara dos Vereadores, além de um pedido de transferência do imóvel diretamente à Conab, do Ministério da Agricultura, proprietária do imóvel. “Esse pedido foi feito em 2006, logo que nós reassumimos, e o delegado do Ministério da Agricultura aqui, o doutor Pedro Cabral, fez essa sessão e encaminhou o procedimento a Brasília e até hoje não saiu uma definição. São muitos interesses ali, é um imóvel valorizado, tem um interesse das empreiteiras que inicialmente já estavam dando como certo pegá-lo. Elas queriam fazer um grande shopping, uma coisa futurística que não tinha nada a ver com cultura e essas populações”, disse. O Superintendente Federal de Agricultura no Estado do Rio de Janeiro, Pedro Cabral, afirmou que ainda não existe nenhum projeto definido para o local e há um diálogo com a secretária estadual de Turismo, Esporte e Lazer, Márcia Lins. “Falaremos no momento oportuno qual será a destinação do imóvel, o estado ainda vai nos chamar para conversar. A memória dos índios será preservada, talvez com uma loja de artesanato para eles venderem seus materiais. Não me lembro de nenhum documento entregue pelos índios que ocuparam o museu para a cessão de titularidade do imóvel, e nunca fui informado de que eles têm uma proposta de criar uma universidade indígena no local”, afirmou. A secretária de Turismo, Esporte e Lazer do Estado do Rio de Janeiro, Márcia Lins, informou, por meio da assessoria de imprensa, que estão ocorrendo reuniões sobre a destinação do prédio, mas ainda não há nenhum projeto definido nem data para sua divulgação. Arão diz que já houve reuniões no gabinete do Ministro da Agricultura e eles se comprometeram a não tomar nenhuma iniciativa sem comunicá-los, mas desde novembro do ano passado, na última reunião, nada lhes foi informado. Apenas foi indicado que o imóvel deve ser revitalizado até a realização da Copa do Mundo no Rio, disse. O laboratório da Conab, em anexo ao antigo museu, continua mantendo a água e a luz como apoio para a manutenção do espaço. “A nossa reivindicação é de que mantenha aquele modelo de construção, que é histórico. Nós estamos aguardando que o governo federal cumpra o seu dever, porque ele é signatário de todas as convenções e resoluções internacionais. Na questão indígena temos o pior IDH, são as piores políticas públicas, não temos acesso à educação. Então aquele prédio reproduz muito bem as políticas públicas indígenas no Brasil”, critica o advogado. Uma das lideranças da ocupação, Carlos Pankararu, afirma que os índios estão sendo descartados do diálogo e que o prédio não será www.carosamigos.com.br

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entregue sem resistência. “Ninguém nos informou nada, e nós não vamos entregar isso de graça, não. Vai haver resistência e não vai ser pouca, porque nós estamos em pouco aqui, mas podemos trazer reforço de aldeias com mil índios se não tiver uma negociação. Vamos nos juntar com os movimentos sociais do Rio de Janeiro, dos morros, das baixadas, dos ciganos, dos negros e vamos unir as forças e fazer protesto”, afirmou.

Universidade Aberta

A proposta dos índios é criar uma universidade no casarão do antigo Museu do Índio, como se fosse um centro de cultura. Isto já é relativamente desenvolvido em cursos de língua Tupi Guarani durante seis horas aos sábados para cerca de 20 alunos, muitos deles professores de universidades e escolas. E também ocorrem encontros mensais, quando são realizadas manifestações culturais, rituais, pinturas de corpo, comidas típicas das etnias na cozinha coletiva, ensinadas medicinas nativas e contadas histórias das tradições indígenas. A proposta, segundo os ocupantes, é colocar em prática o projeto a partir do momento em que os direitos do imóvel forem cedidos, buscando o apoio de instituições parceiras como o Ministério Público Federal e Estadual, OAB-RJ, Comissão de Direitos Humanos da Alerj, Museu Nacional – UFRJ, Pró-Índio (Uerj), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), organizações indígenas, movimentos sociais, sindicatos, dentre outras. Para tanto, Guarapirá explica o porquê de se criar uma universidade pensada pelos índios. “O objetivo é que se crie uma universidade só para indígena, porque hoje o índio tem dificuldade de entrar numa universidade. Muitos nas aldeias estudam só a língua materna local. Quando eles saem para a cidade grande têm dificuldade de falar o português ou outra língua, então é claro que ele não vai passar no vestibular”, afirma. Segundo ele, no último senso do IBGE foi registrado 30 mil índios só no centro urbano do Rio de Janeiro, mas muitos não se assumem, fora os que estão no interior. Por ser perto do Maracanã, Carlos Pankararu defende a utilização do terreno como ponto turístico, principalmente durante a Copa do Mundo. “Na universidade de Mato Grosso foram criados cursos para indígenas, com professores não indígenas. Temos parcerias não indígenas da UERJ, UFRJ, UFF e da rural. Nos interessam muito os cursos da Universidade Federal Rural, como gestão ambiental e agronomia. Se comportar, podemos também criar um pólo de educação à distância para indígenas. Temos doutorando e mestrando em antropologia linguística, além da área de direito, e vários professores aptos a dar cursos”, explica Urutau Guajajara, de uma etnia do Maranhão, mestrando em linguística na Uerj e professor da língua Tupi na ocupação do Museu.

Objetivo da Funai

A visão dos indígenas é bastante crítica em relação à Funai e ao Museu do Índio, ambos em Botafogo, na zona sul carioca. Para eles, a Funai não

quer que os índios saiam das aldeias e estudem, pois podem progredir e tomar suas posições, majoritariamente dominadas por brancos. “Eles sabem que se o índio sair para fazer uma faculdade vai conquistar o seu espaço. Na Bahia mesmo nós temos muitos índios que ocupam cargos de chefe de posto, administração de Funai, médicos, advogados, vereadores. O objetivo da Funai é reprimir mais os índios”, afirma Guarapirá. A Funai informou, em nota, que não dá apoio à ocupação para que a universidade indígena seja materializada no prédio, pois depende da apreciação do Ministério da Educação. A instituição informou ainda que na sua folha de pagamentos são contabilizados 386 indígenas de diversas etnias, e alguns destes ocupam cargos de importância estratégica, como o Ouvidor e alguns Coordenadores Regionais. Quanto ao Museu do Índio, Guarapirá acha que não há um índio caracterizado no local mostrando a sua cultura, e sim artesanatos vendidos a um preço absurdo embora o material seja comprado muito barato nas aldeias. “É um museu para gringo, que você não vê um índio caracterizado mostrando a sua cultura. Não tem nada a ver com a cultura indígena, a não ser no mês de abril que eles botam uma etnia do Xingu para se apresentar”, disse. O diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho, considera legítimos cidadãos os índios que ocupam o prédio do antigo Museu do Índio e, como tais, têm todos os direitos de reivindicação e negociação de suas necessidades junto aos órgãos compententes. Segundo ele, o Museu do Índio desenvolve, atualmente, projetos em parceria com 22 povos indígenas, de todas as regiões do Brasil, para o registro de suas línguas e culturas gerando acervos entregues às comunidades. “Nos últimos dois anos, somamos 493 horas de filmagens de vídeo, 5.612 arquivos sonoros, 321 horas de gravações de áudio, 50.017 fotografias, 49 oficinas nas aldeias e sete no Museu do Índio, em Botafogo, e 105 aldeias abrangidas com população superior a 27 mil pessoas beneficiadas. Hoje, os pesquisadores indígenas, treinados nas oficinas de documentação, já estão produzindo grande quantidade de material por sua própria iniciativa”, afirma o diretor.

Urbanidade étnica

O ex-presidente da Funai e professor de antropologia da UFF e UFRJ, Mércio Pereira Gomes, elaborou um laudo antropológico que atesta a ancestralidade dos indígenas que ocupam o Museu, já que autoridades, com o fervor da mídia, a contestaram pouco depois da ocupação. No laudo é citado o valor “simbólico e sagrado do antigo ‘Museu do Índio’”, e a busca indígena por uma forma própria cultural de “um comunitarismo urbano”. Eduardo Sá é jornalista. Colaborou Alexandre Braz, estudante de jornalismo.

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Luta Social

Movimentos populares organizam o Tribunal da Terra

fotos: jesus carlos

A programação prevê a realização de sessões regionais nos estados e uma sessão final de 7 a 10 de dezembro, no Parque Santo Antonio, em São Paulo.

Movimentos sociais se unem para a realização do Tribunal Popular da Terra.

Por Roberto Oliveira* A ideia de realização de um Tribunal Popular da Terra para analisar profundamente e julgar alguns crimes institucionais emblemáticos surgiu após a grande repercussão política e o resultado positivo do Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus, realizado em dezembro de 2008, na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo. Inspirado em vários exemplos anteriores, entre outros no Tribunal que julgou o Estado estadunidense pelo descaso com as vítimas do Furacão Katrina, em New Orleans (2007); e no “Tribunal Tiradentes”, que em 1983 julgou os crimes cometidos em nome da Lei de Segurança Nacional, construímos um Tribunal de caráter crítico, formativo, articulador e mobilizador. Ao longo desses dois anos, o Tribunal Popular vem se consolidando como importante espaço de articulação dos diversos grupos resistentes à perversa ação opressora do capital, cuja lógica tem criminalizado, encarcerado e executado considerável contingente da classe trabalhadora empobrecida. Neste ano de 2011, estamos organizando o Tribunal Popular da Terra, a fim de discutir a

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situação das populações no campo e na cidade, sob a perspectiva da terra e da territorialidade. Por um lado, refletiremos acerca das opressões crescentes no campo nos últimos anos, em decorrência do agronegócio e do neodesenvolvimentismo, que, com as obras do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento - tem provocado enorme opressão e deslocamento dos diversos grupos cuja sobrevivência é baseada na vida no campo, como os Indígenas, Quilombolas, Caiçaras, Ribeirinhos, Lutadores pela Reforma Agrária. Por outro, questionaremos a real função social dos megaeventos os quais o Brasil receberá nos próximos anos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, e que já sinalizam a necessidade de reorganização estrutural das cidades visando exclusivamente a adequação aos interesses econômicos. Tais eventos relegam claramente ao segundo plano os interesses da população de forma geral, removendo grandes contingentes de trabalhadores residentes em áreas de interesse principalmente do setor imobiliário. Dessa forma, a proposta do Tribunal da Terra tem como norte criar espaços de identificação das violações aos direitos humanos que vêm

ocorrendo nesse último período, e proporcionar o reconhecimento das violações ocorridas nos grupos específicos, estimulando o rompimento com o olhar fragmentado sobre a opressão, e visando à construção de uma rede de solidariedade das diversas lutas existentes contra as opressões. São diversos os exemplos da ação devastadora do Agronegócio, setor da atividade econômica diferenciado dos outros pelo fato da terra, sobre a qual ele atua, constituir-se como um fator essencial para a produção e reprodução de riqueza e da vida humana. Ação esta que segue o mesmo roteiro dos demais setores da atividade econômica capitalista, possuindo, assim, a contradição imanente entre produção social e acumulação privada da riqueza.

Ação predatória

Os estados como Mato Grosso do Sul, Maranhão e Piauí, por exemplo, têm sido explorados em diversos aspectos por grandes empresas, como a Bunge e a Suzano. A primeira, praticamente acabou com um dos biomas mais importante do Piauí, o cerrado, e planta cana-de-açúcar em terras indígenas em Dourados-MS; a segunda, vem

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ocupando vastas extensões de terras nos dois últimos estados supracitados, o que levará a criação de enormes áreas improdutivas, como é o caso do Piauí, onde será plantado eucalipto em uma área aproximadamente equivalente ao tamanho do estado de Sergipe, além da grilagem de terras como no caso do Maranhão, que, segundo o Instituto de Terra do Maranhão, 90% da área das áreas que a Suzano reivindicam ser suas, são griladas. Além da destruição da capacidade produtiva do solo, o alto consumo de agroquímicos levam a contaminações de águas subterrâneas ou superficiais, condenando a biodiversidade das regiões afetadas. É necessário denunciar que o agronegócio também possui diversos impactos nas zonas urbanas: por meio de pressão demográfica, pela pressão inflacionária na cesta básica de alimentos ou mesmo pelo padrão fitossanitário dos alimentos consumidos nos centros urbanos. Todavia, as primeiras vítimas do movimento predatório do agronegócio são os povos da terra - os trabalhadores rurais, os povos indígenas (povos originários), os quilombolas etc. Deve-se observar que, entre 1940 e 1980, a população brasileira passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana, ou seja, para repensar o desenho agrário brasileiro é preciso modificar o modelo político e econômico vigente. Este movimento socioterritorial (um dos mais rápidos e intensos do mundo) é balizado por um desenvolvimento urbano que priva a parcela pobre da cidade a ter acesso à mesma. As periferias das cidades do Brasil, além de excluídas territorialmente, são castigadas pelas enchentes, pelo precário fornecimento de energia elétrica e pelo escasso acesso ao saneamento básico, água, esgoto, transporte etc. Mais que excludente, e este modelo é extremamente concentrador, e concentra econômica e demograficamente. As qualidades urbanas estão restritas às “áreas de mercado”, aos locais de negócio e consumo de uma minoria. Nota-se que estas “áreas de mercado” são regulamentadas por um vasto e complexo sistema de normas, leis e contratos, e a condição inexorável para ingressar na “Disneylândia” da cidade é a propriedade escriturada e registrada. Os assentamentos humanos precários, as favelas, são históricos fenômenos sociais presentes em todas as regiões do Brasil, que possuem normalmente marcas de desigualdade semelhantes de norte a sul, justamente como reflexo

desse caráter funcional que a (re)estruturação das cidades cumpriu e cumpre para manutenção das opressões. Para além do evidente desequilíbrio demográfico, existem fortes contradições internas nos grandes centros urbanos, concentradores de contingentes populacionais e de riqueza. Vide a concentração de oportunidades em um fragmento da cidade, enquanto a periferia da cidade se encontra cada vez mais alijada de tais oportunidades. Esta forma de contradição interna, entre centro e periferia, impõe também uma lógica ambiental predatória. Seja pelo deslocamento do contingente populacional, ou ainda pela forma de ocupação do solo.

Debate e julgamento

Enfim, o Tribunal Popular da Terra propõe debater a terra e a territorialidade no espaço rural e urbano, o papel da especulação imobiliária, das zonas industriais ou zonas da nova economia, que determinam um (re)desenho urbanístico que seja funcional ao padrão de acumulação de capital dominante em uma determinada região geográfica. Este modelo condena um vasto contingente populacional às mais diversas intempéries: de desastres ambientais à falta de serviços básicos, passando pela violência em sua forma mais clara de manifestação. O acesso à terra, às riquezas naturais, aos bens e serviços produzidos por um país deve entrar como fator primordial na equação do nível de democracia e de respeito aos direitos humanos. Uma democracia sólida, inevitavelmente, possuirá uma riqueza democratizada. É extremamente urgente à construção de uma articulação entre movimentos que agregue questões como o acesso ao poder político e, ao mesmo tempo, dê conta da relação entre a riqueza produzida, sua distribuição, e o acesso à terra e às territorialidades do espaço urbano. A disputa da terra e da territorialidade é a disputa de concepção de modelo econômico e de modelo de cidade, são homens e mulheres disputando a forma de ser do campo e da cidade. Estas lutas cristalizam-se com ocupações de sem-terras e sem-tetos, a partir da resistência aos processos elitistas e higienistas de “revitalização de centro”, das resistências indígenas, quilombolas e as diversas resistências nos espaços urbanos. O Tribunal Popular da Terra julgará o processo de criminalização dos atores que lutam pela terra

O Tribunal da Terra já está organizado em 20 estados.

e pelas territorialidades, por espaços amplos, plurais e democráticos no campo e na cidade, colocando o Estado Brasileiro mais uma vez no banco dos réus por suas violações diretas e indiretas contra os direitos humanos. Convidamos todos os sujeitos e organizações sociais envolvidos e afetados por essas opressões para comparecerem nas sessões regionais - hoje já temos movimentos e organizações em 20 estados, construindo localmente sua sessão - do Tribunal Popular da Terra, que terá sua sessão final dos dias 7 a 10 de dezembro, no Parque Santo Antônio, no complexo de favelas América Latina, periferia da zona sul de São Paulo. Maiores informações no site www. tribunalpopular.org ou pelo endereço tribunalpopular2010@gmail.com *Roberto Oliveira, membro da Coordenação Nacional da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos); Sassá Tupinambá, militante do Movimento Indígena Revolucionário; Rogério Perito, militante do Movimento de Lutas Urbanas; Givanildo M. da Silva, militante do Tribunal Popular.

As lutas do Tribunal Popular Durante os dias 4, 5 e 6 de dezembro de 2008 realizou-se em São Paulo, na tradicional Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, o Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus. O Tribunal Popular é uma iniciativa que

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surge em 2008, com o aniversário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando várias entidades passaram a discutir e refletir acerca das constantes violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro, que tem como alvo privilegiado de suas ações as par-

celas mais pobres da população brasileira, em especial a negra. Os movimentos populares e sindicais que se organizam para construir uma sistemática defesa dos direitos violentados têm sido duramente reprimidos e criminalizados.

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foto: Delegação brasileira

Começa a terceira intifada palestina

Manifestantes de todo o mundo e policiais jordanianos, em Karameh, fronteira da Jordânia com a Palestina ocupada.

Por Soraya Misleh Enviada Especial à fronteira em Karameh/Jordânia No dia 15 de maio último, teve início a terceira intifada palestina (termo árabe que designa levante popular). A data marcou os 63 anos da nakba – como é chamada a catástrofe que se abateu sobre a população local em 1948, quando foi criado unilateralmente o Estado de Israel e, como consequência, houve a expulsão de cerca de 800 mil habitantes nativos do território e a destruição de em torno de 400 aldeias. A limpeza étnica que se abateu sobre os palestinos à época é lembrada anualmente em todo o mundo. Agora em 2011, ergueram sua voz e prometem continuar a se fazer ouvir, a partir das fronteiras com os territórios ocupados ilegalmente pelo Estado sionista, os principais atores da tragédia: os refugiados. Estima-se que no mundo sejam aproximadamente 8 milhões, incluindo descendentes. Somente nos campos administrados pela UNRWA (agência das Nações Unidas responsável pela assistência a esse grupo nos países árabes e nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Gaza), constituem 4,7 milhões, conforme divulga a organização em seu site. Com a exigência de que se cumpra o direito de retorno – reconhecido inclusive pela Assembleia Geral da ONU através de sua

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Resolução nº 194, de 11 de dezembro de 1948 –, os jovens que vivem na diáspora, nos destinos vizinhos às terras palestinas, traçaram os rumos da terceira intifada, a qual foi precedida por manifestações menores, em especial nos dois dias anteriores. O termo foi empregado em outras ocasiões – 1987 e 2000 –, quando explodiu o levante de massas dentro dos territórios ocupados ilegalmente por Israel. Mas há historiadores que afirmam que o evento inaugural teria sido a revolta de 1936 a 1939, contra o então mandato britânico que abria espaço para a leva de imigração sionista, com fins coloniais. Desta vez, a intifada – que já tem realizado e anunciado outros protestos, como na semana de 3 a 7 de junho – guarda algumas peculiaridades. Começou simultaneamente dentro dos territórios palestinos e nas fronteiras com o Estado sionista, a partir dos países árabes, e consistiu fundamentalmente, em sua fase inaugural, na realização de marchas pacíficas de milhares de pessoas, sobretudo jovens, incluindo muitas mulheres. A imagem dos protestos – e da repressão a eles – pôde ser vista em todo o mundo, por meio da

Internet. Na Síria e no Líbano, segundo um dos organizadores, que utiliza o pseudônimo de Abu Falastin (pai da Palestina), as manifestações somaram em torno de 100 mil pessoas. Franco-atiradores sionistas abriram fogo e mataram, nos dois locais, respectivamente quatro e 11 pessoas. No primeiro país, apesar da violência das forças de ocupação, ao menos um palestino fez cumprir o direito de retorno a sua terra. Na Jordânia, foram 8 a 10 mil participantes a se dirigirem aos portões da Cisjordânia ocupada, em Karameh – onde, em 21 de março de 1968, ocorreu importante batalha numa tentativa de retomar os territórios perdidos em 1948 e na Guerra dos Seis Dias, em 1967 – quando Israel ocupou entre 5 e 10 de junho daquele ano, ilegalmente, 78% do território, incluindo Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, além das sírias colinas do Golã e da egípcia península do Sinai (esta devolvida em 1979, nos acordos de Camp David). Nessa fronteira, pode ser visto imponente memorial aos mártires de então. Ao seu lado, mais de 40 anos depois, jovens que sequer haviam nascido naquele momento histórico levantavam faixas com dizeres como “A Palestina é árabe, nós

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vamos voltar”, como a saudar e reviver a luta de seus antepassados. Pelo Egito, mesmo sem autorização da junta militar para que as pessoas seguissem até a fronteira no dia da nakba, cerca de 600 pessoas conseguiram entrar em Gaza entre 13 e 14 de maio. Apesar das baixas e das centenas de feridos e presos, incluindo menores de 18 anos, esses números foram celebrados por Abu Falastin como sinônimo de sucesso. Assim como o fato de ter havido manifestações do gênero não apenas em Jerusalém e Gaza, mas dentro dos territórios de 1948, em que 250 mil participantes se dirigiram a duas aldeias destruídas à época, num ato simbólico.

Mobilização

Atualmente, a batalha tem se dado sobretudo no campo da informação. A mídia é a arena. Não obstante a hegemonia imperialista nos meios de comunicação globais ainda não tenha sido derrotada, as novas tecnologias contribuem fundamentalmente para uma transformação nesse sentido. A própria mobilização da terceira intifada deu-se a partir das redes sociais, como contou Abu Falastin à reportagem de Caros Amigos e da Ciranda Internacional da Informação Independente. Ele lembrou que o início de tudo foi a página do facebook relativa à revolução social no Egito em curso – que derrubou o ditador Hosni Mubarak em 11 de fevereiro último, após 30 anos de permanência no cargo e denúncias de inúmeras arbitrariedades e corrupções. No ambiente virtual, os jovens se encontraram e começaram a refletir sobre o levante palestino. A inspiração foram essa e outras revoltas que sacodem o mundo árabe, bem como um manifesto escrito em 2000 por um ativista que reivindicava o direito inalienável de retorno. O movimento começou a ganhar adeptos e se transformou no Grupo 15 de Maio, que criou seu próprio domínio na rede social e chegou a contar com 350 mil inscritos. A página do facebook foi retirada do ar, mediante pressões, mas seus membros não se intimidaram. “Traçamos a rota definida em cada local. Tudo seguiu conforme o planejado, exceto no Egito, para nossa surpresa,

em que tivemos que transferir os protestos para a Praça Tahrir.” Agora seguirão com um trabalho de conscientização e fortalecimento da luta pelo direito de retorno, sobretudo junto aos campos de refugiados. Uma programação já começa a ser montada para novos protestos. Do Brasil – em que contaram com o apoio de uma modesta, mas empolgada comitiva de membros da Frente em Defesa do Povo Palestino de São Paulo –, assim como de toda a América Latina, Europa e outros destinos fora da região, pede que continuem a apoiar o movimento. A campanha global de BDS (boicotes, desinvestimento e sanções) a produtos e serviços que financiam a ocupação seria um caminho. Outro, de acordo com ele, seria auxiliar no trabalho em algum campo de refugiados. “A tragédia palestina nos incentiva a continuar”, destaca. O jovem, cuja família foi expulsa de Haifa em 1948, afirma que em sua casa hoje vivem pessoas que vieram de outro país e nada têm a ver com a história do lugar. Ele chegou a vê-la de fora em visita à Palestina ocupada no ano de 1985. Como palestino na diáspora, sonha com o retorno. E enfatiza: “No dia em que voltar, vou exigir o direito às minhas terras e propriedade.”

Testemunhas da nakba

Entre os milhares nessa situação, estão moradores do campo de refugiados de Baqa’a, em Amman, capital da Jordânia. Um dos dez administrados pela UNRWA no país, foi oficializado em 1968. Em suas ruelas estreitas, que lembram favelas brasileiras, esperam pelo retorno mais de 100 mil habitantes, segundo dados oficiais. Entre eles, vários viveram a nakba em 1948. Um deles, com apenas três anos de idade à época, conta que sua aldeia, Qzazi, em que viviam cerca de mil pessoas, ficava próxima a Jerusalém. “Fomos expulsos, saímos com a roupa do corpo, tudo foi destruído.” Após se refugiar nas áreas ainda não invadidas da Palestina, teve que partir novamente em 1967. Dessa vez, o destino foi Baqa’a, em Amman. Tudo ficou para trás, menos a chave de sua casa na Palestina, que fez questão de carregar consigo, com a esperança de voltar em breve. Em 1999,

pôde visitar o local onde nasceu, mas como turista – e ainda foi hostilizado por alguns colonos. O sonho de ver cumprido o direito de retorno continua vivo. A história se repete mais à frente, nas memórias de um refugiado de 85 anos da mesma aldeia. “Não deu tempo de levar nada.” Aos 72 anos, outro palestino que vive em Baqa’a nasceu em uma pequena aldeia próxima a al-Ramla, nos territórios destruídos em 1948. No momento da invasão, alimentava-se e não deu tempo sequer de terminar de comer. “Por isso, não carreguei a chave de minha casa.” Até 1953, passou por quatro campos de refugiados antes de chegar a Amman, de onde também teve que mudar várias vezes até se fixar no atual lugar de residência. Entre bisnetos, netos e filhos, afirma que são 39 familiares à espera do retorno. “A Palestina é nossa terra”, resume. Muitos desses descendentes nunca puderam pisar nas terras de origem. O que levou um deles, do mesmo campo de Baqa’a, a estar entre os que sacrificaram sua vida pelo direito de retorno na atual intifada, ao tentar entrar pela fronteira da Síria. Como lembra um palestino que vive no Brasil atualmente, Khader Othmann, do Comitê Catarinense de Solidariedade ao Povo Palestino, a nova geração prova o equívoco das palavras de Ben Gurion – primeiro premiê de Israel, em 1948, que participou da criação desse Estado e inclusive conduziu ataques às aldeias no período. Segundo teria afirmado esse sionista, nascido na Polônia ainda no século XIX, acerca da nakba, “os velhos morrerão, os jovens esquecerão”. A terceira intifada está aí para desmenti-lo. “Vamos promover manifestações até que abram as fronteiras”, destacou Abu Falastin. Outro organizador do movimento, Taj Edeen Shaabah, oriundo de Jenin, na Cisjordânia, confirmou, durante os protestos na Jordânia: “Não vamos deixar de nos manifestar pela Palestina.” Bilal Safad, de Jaffa, em igual território ocupado, foi enfático: “Somos refugiados nos países árabes e queremos voltar para a nossa terra.” Soraya Misleh é jornalista.

Mulheres e revolução A participação feminina é histórica nas revoluções do mundo árabe e, no caso palestino, há exemplos em diversas áreas de sua presença fundamental. Na luta armada, o símbolo é Leila Khaled, que tinha apenas quatro anos em 1948, quando sua família foi expulsa da terra natal, Haifa. Ela protagonizou ações como sequestros de aviões no final da década de 1960 e início dos anos 1970. Detida nos cárceres israelenses, foi solta menos de um mês depois numa troca por reféns em outra ação do gênero. Hoje, vive em Amman, na Jordânia. No campo das palavras, vale lembrar a poe-

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ta Fadwa Tuqan, nascida em 1917 em Nablus, na Cisjordânia, a qual faleceu em 2003. Seus versos, segundo teria afirmado o general Moshe Dayan, ministro da Defesa sionista durante a Guerra dos Seis Dias, eram mais subversivos do que dez atentados a bomba. Não tem sido diferente na terceira intifada palestina. Durante a manifestação em Amman, no dia da nakba (15 de maio), as mulheres eram em grande número e davam mostra da diversidade característica da região. Havia as que usavam véus, em diferentes tons, e as que não os utilizavam. Muitas eram jovens, mas também idosas

não faltaram, algumas portando cartazes com mapas da Palestina antes de 1948. Zeina Abu Innab, filha de uma palestina de Safed, expulsa naquele ano, destacou: “Apesar da sociedade conservadora, a presença feminina nesses protestos chega a ser até maior que a dos homens.” Além de desmistificarem a ideia predominante no chamado “ocidente”, de que as mulheres são todas submissas, também derrubam por terra a noção igualmente equivocada de que se trata de uma região absolutamente homogênea.

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A força da memória coletiva Por Gershon Knispel

foto: arquivo pessoal

A memória coletiva foi o elixir da vida das nações do mundo. Imagine-se o que aconteceria se a mitologia grega tivesse sumido, se as pirâmides do Egito tivessem sido destruídas há séculos, sem deixar traços na memória humana; se tivesse acontecido a mesma coisa com os baixos-relevos babilônios, ou se os templos fantásticos dos maias tivessem sido destruídos imediatamente depois da conquista do México pelos espanhóis. Os judeus tiveram menos sorte. Até o templo monumental da Bíblia foi destruído pelos gregos, e depois pelos romanos, sem deixar vestígios, além supostamente do Muro das Lamentações, na verdade construído pelos otomanos. Apesar de durante dois mil anos se terem espalhado em 60 nações diferentes, e das perseguições que sofreram durante séculos, por causa de sua fidelidade à Bíblia, até se chegar à catástrofe mais brutal do século 20, que chegou perto de exterminar completamente a raça judia, parecia que todas essas calamidades seriam resolvidas por decisão das Nações Unidas em 1947, de reconhecer o direito dos judeus a um Lar Nacional na Palestina dividida em duas, sem ignorar simultaneamente os direitos do povo palestino a estabelecer o seu Estado na outra parte. O artista finaliza o baixo-relevo em homenagem ao Com a consciência de que a justiça havia sido Levante do Gueto de Varsóvia, em 1943. feita, a maioria dos povos do mundo observou com vre amadureceu, por causa das asperezas que teve admiração os primeiros anos do renascimento do de enfrentar, é que o povo ficou pronto para volpovo judeu. O êxodo se transformou, de um velho tar à Terra Prometida. mito, em uma nova realidade, mas o destino do Agora, desde que povo palestino foi apareceu a máquina ignorado, esqueciMas a ocupação dos territórios fotográfica em medo, o que teve sua palestinos pelo Exército de Israel, ados do século 19, a causa na ação dos em 1967, se tornou o calcanhar documentação dos países árabes vizide Aquiles dos ocupantes. acontecimentos se nhos, que haviam torna cada vez mais ignorado totalmenfácil, mais útil e mais impressionante. Quando um te, durante décadas, as precárias e cada vez mais cidadão comum usa seu celular, ele pode estar conhumilhantes condições de vida dos irmãos palestitribuindo para encher de informações o mundo innos, os quais apodreciam nos campos de refugiateiro, mais do que qualquer reportagem fotográfica dos espalhados por territórios árabes. feita por jornalistas profissionais. Mas a ocupação dos territórios palestinos pelo Até o Holocausto, tema que, depois de 70 anos Exército de Israel, em 1967, se tornou o calcanhar dos acontecimentos, não deixa de estar nos meios de Aquiles dos ocupantes. Apesar da humilhação de comunicação, alimenta cada vez com mais forcrescente, causada pela ocupação desesperada, ela ça a consciência da humanidade. A documentação está alimentando o povo palestino com mitos, fadificulta a força dos negacionistas, que negam a zendo crescer o orgulho, que nunca havia tido, de existência do Holocausto. Um único item de fotoser palestino. jornalismo pode criar mais efeitos e mais emoções Deve-se pensar qual foi o destino daquela muldo que cem artigos sobre o mesmo assunto. tidão de escravos que vagaram no deserto duranAs matérias documentadas cada vez mais rite quarenta anos até entrarem na Terra Prometicas e cada vez mais chocantes que a ocupação da. Liquidada a primeira geração dos escravos no por Israel vem criando – o menino caindo morto deserto, só quando a primeira geração nascida li-

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com a bandeira palestina, o menino morrendo nos braços do desesperado pai, apontado ridiculamente pelo porta-voz do governo israelense como tendo sido encenado –, as milhares de fotos de crianças e mulheres enfrentando com pedras os tanques dos invasores, todos esses materiais vivos dificultam cada vez mais a ação dos negacionistas israelenses que negam a Nakba, a catástrofe sobre os palestinos. Só nos dias 15 de maio e 6 de junho, lembrando a Nakba e a guerra de 1967, houve manifestações palestinas com dezenas de mortes e centenas de feridos. A fala de Isaías de que “os destruidores de Israel vão sair de vós próprios” recupera a atualidade crua e perigosa. Nenhum antissemita, nenhum anti-israelense, nenhum antissionista conseguiria trazer tantos danos como o último discurso de Binyamin Netanyahu no Congresso americano, negando qualquer modo de encerrar a colonização judaica da Palestina, que é o motivo principal da destruição da paz. É um absurdo negar o direito dos palestinos a seu Estado, isso vai fazer crescer o ódio do mundo inteiro contra Israel, transformando-se num malestar da memória coletiva que vai nos perseguir durante séculos. Aconteceu um absurdo: o povo alemão, com todos os horrores da destruição que impôs à Europa e que se tornou ele próprio vítima do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos e foi quebrado em ruínas, depois de espalhar um terror monumental, só aprendeu a lição quando se encontrou inteiramente afundado em ruínas e surpreendentemente se tornou hoje o povo mais pacífico da Europa inteira, se não do mundo inteiro. Oitenta por cento dos alemães obrigaram Ângela Merkel a negar qualquer envolvimento nessa aventura da Líbia e a forçaram a desmantelar, até 2022, todos os reatores atômicos do país. Não foi com a obrigação de indenizar os judeus que a Alemanha se transformou, e sim essas ações de Merkel é que fizeram mudar a atitude nacional alemã, de nação armada até os dentes que desencadeou a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, para nação amante da paz. Será que nós, israelenses, vamos ter de precisar dessa mesma terapia de estarmos afundados sob nossas próprias ruínas como única possibilidade de passarmos a querer a paz duradoura, lembrando a ampla simpatia de que Israel gozava antes da ocupação de 1967? Gershon Knispel é artista plástico.

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu ...

INÉDITOS DO “PAI DO CHICO”, MAIS OUTRAS NOVIDADES

No início de sua carreira de cantor e compositor, bem antes de se tornar também escritor, Chico Buarque de Holanda era conhecido como “o filho do Sérgio Buarque”. Mas já faz tempo que o grande historiador Sérgio Buarque de Holanda, já falecido, passou a ser conhecido como “o pai do Chico”. Agora, textos inéditos no Brasil ou pouco conhecidos do grande historiador, elaborados de 1920 a 1979, estão sendo lançados pela Editora Unesp e a Fundação Editora Perseu Abramo , nos dois volumes da coletânea Sérgio Buarque de Holanda – Escritos coligidos. Sérgio Buarque é bem conhecido como um dos três fundadores da cultura erudita brasileira tal como a conhecemos hoje, ao lado de Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre. Seus livros Raízes do Brasil e Visões do Paraíso são clássicos inesquecíveis que todo brasileiro e toda brasileira deveria ler, assim como toda pessoa estrangeira interessada em se informar sobre o nosso País. A nova coleção, organizada por Marcos Costa, é também preciosa. Da juventude do autor, nos anos 1920 – já lá vão quase cem anos! – é o artigo A bandeira nacional, em que discute o que julga disparates de sua simbologia e até erros astronômicos www.carosamigos.com.br

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que teriam sido cometidos na esfera azul estrelada, supostamente representativa do céu no Rio de Janeiro na madrugada da proclamação da República. Nessa época, no artigo A quimera do Monroísmo, ele foi o primeiro a observar que o slogan lançado em 1823 pelo presidente dos Estados Unidos, Monroe, “A América para os americanos”, na verdade significa, como se diz hoje, “A América para os norte-americanos”. O jovem Sérgio Buarque interpretou: “para os americanos dos Estados Unidos”. Era, como se vê, um jovem talentoso. De uma historiadora de hoje, Virgínia Fontes, é o livro O Brasil e o capital-imperialismo – Teoria e história, editado pela Fiocruz-Fundação Osvaldo Cruz e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Trata-se de uma obra importantíssima, em que a autora pesquisou profundamente mais a história do que a teoria, para tentar responder à pergunta: “A crise social, que se prolonga e intensifica há três décadas no Brasil, expressa a crise do capitalismo ou pode ser um ponto a partir do qual, aprofundando ainda mais as desigualdades e iniquidades, se expandem relações capitalistas? Em que medida a expansão do capitalismo na atualidade pode ocorrer sem estar impregnada de capital-imperialismo?” Trata-se de uma questão tão antiga e tão crucial quanto o capitalismo brasileiro. Sempre se discutiu, por exemplo, se a “burguesia nacional brasileira” pode ser anti-imperialista ou se aspira apenas a ser “sócia menor do imperialismo”. E se chegou a acreditar, a partir dos anos 1960, que o capitalismo no Brasil não podia mais desenvolver as forças produtivas, o que estaria colocando na ordem do dia a luta pelo socialismo. Sabemos que resposta a história deu a isso, mas agora a pergunta é: pode haver maior justiça social com o desenvolvimento do capitalismo imperialista no Brasil? Se a historiadora brasileira parece um tanto cética a respeito do futuro da nossa sociedade, o jornalista alemão Alexander Busch, autor de Brasil, país do presente – O poder econômico do ‘gigante verde’, publicado pela Cultrix, é bastante otimista em relação ao nosso País. Afirma ele: “Hoje em dia, o Brasil é um dos países que nós mais subestimamos. À China e à Índia costumamos atribuir papéis de destaque na revolução global da Economia. Mas ao Brasil reservamos

no máximo o título de melhor ator coadjuvante. É um grande erro, pois a oitava economia do mundo está em vias de se tornar uma potência mundial”. Importante também, para bem se conhecer o Brasil, é o livro A representação social do cangaço, da psicóloga pernambucana Rosa Bezerra, lançado pela Novoestilo Edições do Autor. A obra analisa a repercussão, em todo o Brasil e no mundo, do cangaço nas artes plásticas, na música e na literatura – manifestações artísticas em que cangaceiros como Lampião aparecem como heróis –, e na mídia – notícias e reportagens em que o cangaço aparece como banditismo. Quem manipulou quem a respeito dos cangaceiros, é a pergunta a que Rosa Bezerra procura responder. No mais, sempre convém lembrar as atrocidades praticadas pelos nazistas contra os judeus, os ciganos, os homossexuais e os esquerdistas, que foram exterminados nos chamados campos de concentração. Por isso, é recomendável a leitura da autobiografia do rabino Israel Meir Lau, Lúlek, a história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o grão-rabino de Israel, publicada pela Editora Leitura. É uma história emocionante de superação: Lau, aos oito anos de idade, foi o sobrevivente mais novo do campo de Buchenwald, e várias vezes se havia visto diante da morte iminente. Mas viveu para ser o principal rabino do país judeu. Pena que o livro não fale muito dos palestinos. E, para espairecer sem deixar de exercitar o espírito crítico, convém ler o romance policial O perseguidor, do bem conhecido jornalista e publicitário Tom Figueiredo, lançado pela Global Editora. No livro, a par da trama instigante, há toda uma crítica do jornalismo tal como é praticado efetivamente, em que, como diz a apresentação, “a necessidade de dar ‘furos’ de reportagem para alimentar as vendas acaba eliminando qualquer escrúpulo profissional”. O personagem principal é um jovem repórter policial às voltas com esses dilemas da profissão.

Renato Pompeu é jornalista e escritor. www.renatopompeu.blogspot.com rrpompeu@uol.com.br>

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Tacape Rodrigo Vianna ...

A FOLHA E A TRANSPARÊNCIA SELETIVA Esse escrevinhador teve acesso ao mandado de segurança da Folha de S. Paulo contra Helena Chagas, a responsável pela SECOM (Secretaria de Comunicação, do governo federal). O jornal paulista queria detalhes sobre as verbas de publicidade do governo. A SECOM mandou explicações, mas sem os detalhes requeridos pelo jornal. A Folha, então, entrou com o mandado de segurança, em nome da “transparência”. Louvável a preocupação do jornal. Quem há de ser contra a “transparência”? O que esse escrevinhador não entende é: por que a Folha só se preocupa com transparência federal? Caminhemos para a transparência ampla, geral e irrestrita. O contribuinte de São Paulo, por exemplo, merece saber: quanto o gover-

no paulista gasta (ou gastou) com assinaturas da Folha e do Estadão? E por que o estado contratou os serviços da editora Abril para fornecimento da revista Nova Escola – sem licitação. O caso foi denunciado pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). Esse escrevinhador não estranhará se, em breve, outros meios de comunicação (não alinhados aos interesses tucanos) entrarem com ação semelhante cobrando explicações sobre os gastos do governo paulista ou do governo mineiro (que teria anunciado de forma generosa numa rádio que – hoje se sabe – pertence a Aécio Neves). Em nome da transparência, seria útil consultar o Ministério Público, o CADE e a CVM, para questionar outros pontos. - Órgãos de comunicação impressos usam o IVC para montar suas tabelas de anúncios; o IVC é confiável? Quem controla o IVC? - Empresas privadas, que anunciam em jornais e revistas com base no IVC, estão gastando o dinheiro dos acionistas de forma justa? - O bônus de veiculação (BV) que certas empresas de comunicação pagam às agências de publicidade (quanto mais dinheiro a agência concentra num determinado meio, mais ela recebe de volta, na forma de BV) não atenta contra as regras de concorrência e de livre mercado? - Qual o desconto que Folha, Estadão, O Globo e outras dão para a SECOM, considerando o preço da tabela bruta? O desconto é menor do que o oferecido ao setor privado?

- Qual o valor do BV que esses jornais “devolvem” (pagam) às agências de publicidade, com dinheiro dos anunciante? No caso da SECOM, dinheiro público é transferido para as agências? O BV é um escândalo do mundo privado da publicidade. Outro escândalo: a lei obriga empresas de capital aberto a publicar balanços em jornais “de grande circulação”. Pra que? O acionista já recebe relatórios por e-mail, tem acesso ao site da empresa. A obrigatoriedade de balanço em jornal é uma forma de transferir recursos de grandes empresas para as famílias que controlam os jornais. No mandado de segurança contra a SECOM, a Folha fala em “injustificável opacidade” de informações. Belíssima expressão! Quem assina a ação é a causídica Taís Gasparian – a mesma que, durante a campanha de 2010, em nome do mesmo jornal, lutou desesperadamente para obter o processo de Dilma no STM. A Folha queria saber o que Dilma dissera, sob tortura. Desde logo, esse blogueiro soma-se à Folha na busca de ”transparência” no mundo da publicidade. Transparência ampla, geral e irrestrita, incluindo BV, balanços de empresas, IVC e – claro – os gastos de publicidade de governos estaduais ricos (como os de Minas e São Paulo). Viva a transparência total! Abaixo a transparência seletiva! Rodrigo Vianna é jornalista e responsável pelo blog. Escrevinhador www.rodrigovianna.com.br

Emir Sader

EUROPA À DIREITA, AMÉRICA LATINA À ESQUERDA Com as eleições em Portugal e no Peru se confirma a tendência de toda a última década, em que a Europa vota à direita, enquanto a América Latina vota à esquerda. Isso se dá, antes de tudo, porque a Europa – aliada subordinada dos EUA – é ganhadora na globalização, são os globalizadores, enquanto a América Latina, a Ásia e a África somos perdedores, os globalizados. Assim, os europeus não querem que nada mude, se tornaram conservadores, enquanto na América Latina lutamos por transformações, por mudanças. Eles votam à direita, nós à esquerda. Para os europeus, todos os problemas que eles sofrem chegariam de fora: imigração, terrorismo. Tentam se fechar como fortalezas. Como se não tivessem nada a ver com esses dois temas. Mas a chegada da crise econômica, surgida nos EUA - que nos afetou também, mas da qual já saímos, enquanto eles seguem plenamente nela -, não cabe dentro dessa análise. Não tem como remeter a uma causa externa. Ela é bem interna: é uma crise capitalista, nascida no centro do

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sistema, na economia norte-americana. Uma das maiores derrotas recentes da esquerda foi a de que a crise fortaleceu a governantes de direita e enfraqueceu os sociais-democratas: caiu o governo português, deve cair o espanhol, sobrevive extremamente debilitado o da Grécia. Porque nesses países estavam no governo e praticaram a política do FMI, intensificaram a recessão e o ajuste fiscal, preparando o campo para a chegada da direita aos governos. Enquanto na América Latina, nos países que optamos pela prioridade da integração regional e pela extensão do mercado interno de consumo popular, foi possível sair mais rápido da crise e retomar ritmos de expansão econômica e de inclusão social que tínhamos antes da crise. Governantes como Lula, os Kirchner, Hugo Chavez, Tabaré, Evo Morales, Rafael Correa, se elegeram se reelegeram e, nos casos do Brasil e do Uruguai, elegeram seus sucessores – Pepe Mujica e Dilma. Nessa onda se elegeram Fernando Lugo, Mauricio Funes, agora Ollanta Humala. Na Europa, se elegeram Berlusconi, Merkel,

Sarkozy, Cameron, agora a direita também em Portugal. Se fortalece a extrema direita na França, na Suécia, na Finlândia, entre outros países. Aumenta a distância entre a esquerda da Europa e a da América Latina. Até mesmo no caso dos bombardeios da OTAN contra a Líbia, a maioria da esquerda lá está a favor, enquanto que, por aqui, sem apoiar o regime de Kadafi, estamos a favor de negociações políticas de paz. A soberania econômica nos permite exercer a soberania política. SUGESTÕES DE LEITURA: • Introdução ao estudo do método de Marx José Paulo Netto, Editora Expressão Popular • A estranha derrota Marc Bloch Zahar • Estrutura social e formas de consciência II Istvan Meszáros, Boitempo Editorial Emir Sader é cientista político.

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