Ed. 170 - Revista Caros Amigos

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SERGIPE Catadoras querem preservar a mangaba

FUTEBOL O Afonsinho do passe livre

A PRIMEIRA À ESQUERDA

PERFIL Dom Paulo, o pastor do povo

ano XV nº 170 / 2011 R$ 9,90

A NOVA TÁTICA DA REPRESSÃO AOS MOVIMENTOS POPULARES

BRASIL TEIMA NA ENERGIA NUCLEAR

GOVERNO DILMA

Política externa gera controvérsia

ENTREVISTA

Allan Woods

“Vivemos explosão da luta de classes”

Ex-ministro Celso Amorim afirma que não teria votado contra o Irã BÁRBARA MENGARDO CLAUDIUS DANIELLE NORONHA DÉBORA PRADO EMIR SADER FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GUTO LACAZ JAQUELINE NIKIFOROS JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO NÉSTOR GOROJOVSKY PAULO FANAIA OTÁVIO NAGOYA PEDRO ALEXANDRE SANCHES RAUL ANDREUCCI RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO

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e u q s e r o Os Educad s a m g o D s o m a r a fi a Des Paulo Freire

O mestre que ensinou o oprimido a ler o mundo

Anísio Teixeira

Deu a vida pela formação do cidadão democrático

Darcy Ribeiro

Homem de fazimentos: criador dos Cieps, da UnB, romancista, senador, indianista, historiador.

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CAROS AMIGOS ANO XV 170 MAIO 2011

Ilustração de capa RICARDO PALAMARTCHUK

sumário

REPORTAGENS

EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) EDITOR E DIRETOR: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

TÁTICAS E POLÊMICAS DA NOVA ORDEM Quem imagina que a repressão política acabou junto com a Ditadura Militar, em 1985, e que depois o Brasil ingressou numa democracia plena, com total respeito aos direitos civis – está completamente enganado. Entre os muitos entulhos do autoritarismo ficou a truculência da polícia, que passou a usar os métodos da violência não apenas contra as organizações políticas, mas contra as manifestações populares e cidadãos comuns. Mais recentemente, no entanto, além da repressão física, as forças da ordem adotaram novas táticas de intimidação, entre as quais a utilização do Ministério Público e do Judiciário para encher os militantes sociais e políticos de processos administrativos, cíveis e criminais – os quais demandam um gasto extraordinário de energia, recursos financeiros, advogados, sem contar a tensão pessoal e a pressão sobre as vítimas e seus familiares. A reportagem da Caros Amigos aponta essas novas táticas da repressão política, chama a atenção para uma prática cada vez mais disseminada que, muitas vezes, tem sido encoberta por um manto de legalidade. Fica evidenciado a sutileza de uma ordem jurídica conservadora dirigida contra todos que manifestam suas divergências em relação ao pensamento e às forças dominantes. Em outra reportagem, procuramos debater e identificar em quais aspectos ocorreu algum tipo de mudança política, nas relações exteriores do Brasil, com o fim da gestão Lula e o início da gestão Dilma. O voto do Brasil contra o Irã, na questão dos direitos humanos, desencadeou polêmicas entre governistas de esquerda e analistas das mais variadas tendências. Como a mídia liberal-conservadora aplaudiu a nova postura do governo federal, a Caros Amigos ouviu o ex-ministro Celso Amorim e vários especialistas para esclarecer o que está acontecendo com a diplomacia brasileira. Além disso, temos excelentes matérias sobre a segurança as usinas nucleares, a ocupação Zumbi dos Palmares, as catadoras de mangaba do Sergipe, o jogador de futebol Afonsinho, o documentário sobre os ginásios vocacionais e a entrevista com o teórico marxista galês Allan Woods, para quem o mundo está vivendo uma “explosão de luta de classes”. Mais uma vez, Caros Amigos se esforça para proporcionar aos leitores um conteúdo da maior relevância. Vale a pena ler.

Relações Exteriores: o voto do Brasil contra o Irã gera polêmica. Por Tatiana Merlino O Estado adota nova tática para criminalizar os movimentos populares. Por Lúcia Rodrigues Energia Nuclear: Fukushima reascende debate sobre segurança de usinas. Por Débora Prado Catadoras de mangaba do Sergipe lutam contra a extinção das mangabeiras. Por Danielle Noronha Casa Própria: ocupação Zumbi dos Palmares dá exemplo de resistência. Por Bárbara Mengardo Futebol: a história do jogador Afonsinho, o pioneiro na conquista do passe livre. Por Raul Andreucci

ENTREVISTAS Celso Amorim: “O voto contra o Irã não é mudança na política externa”. Por Tatiana Merlino Alan Woods: “Vivemos uma explosão de luta de classes em todo o mundo”. Por Gabriela Moncau Toni Venturi: documentário sobre os Ginásios Vocacionais fechados pela ditadura. Por Jaqueline Nikiforos

ARTIGOS E COLUNAS Mc Leonardo conta o sequestro de verdade num cenário de ficção. Gilberto Felisberto Vasconcellos pede o fechamento das usinas nucleares. Fidel Castro comenta o desfile de aniversário e o Congresso do Partido. José Arbex Jr.: tragédia do Realengo oculta responsabilidade do Estado. Sérgio Vaz mostra como o poeta pode ser tudo e repartir a ação. João Pedro Stedile apresenta proposta unitária para quem quer mudar o Brasil. Frei Betto fala da contradição do governo Dilma na questão dos direitos humanos. Néstor Gorojovsky comenta o significado da eleição de Ollanta no Peru. Gershon Knispel relata o assassinato do diretor de cinema Juliano Mer Khamis. Emir Sader fala sobre a ordem colonial, racista e belicista que reina em Paris.

SEÇÕES Caros Leitores: cartas e comentários pelo Twitter e no Facebook. Falar Brasileiro - Por Marcos Bagno: deixa claro que etimologia não é brincadeira. Paçoca – Por Pedro Alexandre Sanches: inclusão social pela música. Amigos de Papel – Por Joel Rufino dos Santos: o porre de Noé e a discriminação. Perfil: Dom Paulo Evaristo Arns – Por Otávio Nagoya: o pastor do povo. Ensaio Fotográfico de Paulo Fanaia: a beleza do Pantanal ameaçada de destruição. Tacape – Por Rodrigo Vianna: fala sobre Aécio Neves e a oposição em frangalhos. Ideias de Botequim – Por Renato Pompeu: Repressão, quilombolas e outros.

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www.carosamigos.com.br EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr ARTE: Ricardo Palamartchuk e Gilberto de Breyne EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Lúcia Rodrigues e Otávio Nagoya SÍTIO: Débora Prado (Editora), Gabriela Moncau e Paula Salati SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann COORDENADORA DE MARKETING: Júlia Phintener COMÉRCIO VIRTUAL: Pedro Nabuco de Araújo e Douglas Jerônimo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Clarice Alvon e Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu (Editor) ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Edcarlos Rodrigues, Joze de Cássia e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Douglas Jerônimo e Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo; Pillon e Pillon Advogados REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9115-3659. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XV, nº 170, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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CAROS LEITORES ESPECIAL DE MÍDIA Cara Cecília, tudo bem? Por seu intermédio, faço chegar ao Hamilton e a toda equipe que participou da edição especial sobre mídia minhas felicitações pelo excelente trabalho. Finalmente se publica no Brasil um dossiê com independência crítica e política, que em momento algum quer ser, esquizofrenicamente, governo e oposição ao mesmo tempo. É um dossiê sem medo, lúcido e essencial. Abraços. Dênis de Moraes – Professor da UFRJ – RJ.

HOMEM COLONIAL Li o artigo de Gilberto Felisberto – revista 168/2011 ano XIV – título: Dilma e o homem colonial, e gostaria de registrar algumas considerações: Sim, líderes religiosos não gostam de mulher, existem aqueles que, em nome do dogma institucional, usam do “falso gostar” para manipular e alienar as mulheres. Em elogios, sugam de sua intuição e escritos poder e glória vãs. Jamais querem vê-las livres, exercendo o seu verdadeiro gostar, para que possam exercer e serem correspondidas, com igualdade de direito. Esses líderes atrapalharam e resistiram à eleição da presidenta Dilma, batendo de frente com vários estigmas. Felizmente uma parcela de mulheres e homens sobreviveram a todas provações eleitorescas, e acreditaram na capacidade feminina. Acreditamos no seu mandato não só por ser mulher, mas também porque provou que tem sim, história e competência política, só espero que os perdedores inconformados não apelem com julgamentos derrotistas, próprio de opressores. Por que as mulheres, apesar de tantas conquistas, ainda preferem ficar sob a tutela de seus líderes religiosos? Será que falta a essas mulheres, a coragem do verdadeiro gostar? O verdadeiro êxtase que não passa só pelo céu da boca e sim pelo céu do ventre, e mentes livres para atuarmos a favor de nós mesmas e do homem que goste da luta conjunta e eficaz?!

O resto é poema para desavisadas e iludidas, que só vivem sonhando com líderes. Maria Aparecida de Oliveira – Perdizes – São Paulo – SP.

ESCOLHA CERTA A entrevista de Silvio Tendler é brilhante: que clareza de ideias, que visão de mundo e que compromisso com as bases nas quais se formou. É um alento perceber que nem todos se rendem ao fetiche do mercado e que há ainda quem resista fazendo seu trabalho com dignidade, respeito e esse brilho todo! Mais uma vez a Caros Amigos acertou na escolha. Rosânia Ma. de Resende – Divinópolis – MG.

CINEMA POLITIZADO A edição de Fevereiro de 2011 foi uma das melhores de todas as maravilhosas edições da Caros Amigos que eu já li. A entrevista com Silvio Tendler foi inspiradora, motivadora e educativa. Por favor, o pessoal da Ancine falar que brasileiro não gosta de poesia, que poesia não é feita para cinema é no mínimo bem mais que despreparo. Vida longa à Silvio Tendler e ao cinema politizado, ainda que inexista para alguns. Alexandra Domingues – Pelotas – RS.

MUDAR O MUNDO Gostei da entrevista com John Holloway baseado no zapatismo. Há anos pratico isso. Somente compro produtos originários o mais próximo de onde moro, de pequenos comerciantes e produzidos por pequenas empresas. Adquiro alimentos em feiras livres orgânicas locais. Dessa forma, há pouca poluição com caminhões, o dinheiro fica aqui, e não fortaleço as grandes corporações econômicas que manipulam o poder. Bruno Rucker – Porto Alegre – RS.

ALÍVIO INTELECTUAL Há vida inteligente! A revista comprova, e é um alívio, principalmente para quem mora numa província conservadora, atrasada, e inculta. Ótimos artigos, com conteúdo: Arbex, Frei Betto, Sader, Knispel. Amei o chip, transmissor automático de cultura, e inteligência do artigo, do Frei Betto. Só não concordo com o parecer a respeito de de-

pressão, que é uma doença ocasionada pela falta de um componente químico no cérebro. E que ataca também pessoas exatamente com aversão as barbáries. Todas. Ou extremamente sensíveis com as injustiças. Os prisioneiros políticos, e aos que sofrem com toda a desumanização, seja de qual for a ordem. E os traumatizados com a capacidade humana, para a crueldade. Saudações socialistas, humanistas e democráticas. Egle Elizabeth Siqueira.

CORREÇÃO Na entrevista de Raquel Rolnik, publicada na edição 169, onde se lê “longe do mensalão”, ela disse “no auge do mensalão” e o nome dos jogos que ela cita em Nova Delhi é Commonwealth Games e não Dhoni Wells Games. A tradução da entrevista de Noam Chomsky, publicada na edição 169, foi feita por Mariana Abbate.

Rolou no Twitter e no Facebook Tenho a leitura de Caros Amigos como uma espécie de catarse intelectual. A revista me ajuda a me livrar da crosta de podridão que o jornalismo prostituído insiste em nos incrustar. Vida longa a todos vocês!!! Axel Terceiro – Via Facebook. É meus @caros_amigos - e ninguém reserva esses dias (28 dias médios de exibição dos filmes brasileiros citados por Silvio Tendler na edição 168) para aquelas produções privadas, que só tem a bilheteria como forma de renda.... Gustavo Coelho – Via Twitter. @caros_amigos A Edição especial Mídia está excelente. Boa discussão! Parabéns! Luciana A Cavalcanti - Via Twitter. Essa sim é uma revista que eu me apaixonei por suas matérias, pois tem coragem de mostrar o que as outras revistas escondem. Parabéns. Marcio Almeida – Via Facebook.

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COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,

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Marcos Bagno ...

ETIMOLOGIA NÃO É BRINCADEIRA! Se alguém te disser que “adolescente” tem a ver com “doença”, caia na gargalhada. É mentira! Se te disser que “aluno” vem do latim “alumnus” e quer dizer “sem luz”, mande a pessoa estudar! E se tentarem te convencer que “cuspido e escarrado” é uma deturpação de “esculpido em Carrara”, prefira acreditar em saci-pererê. Quem não gosta de etimologia? Pelo menos saber a origem e o significado do próprio nome, taí uma coisa que atrai todo mundo. O problema é que a retumbante maioria das pessoas que andam por aí distribuindo etimologias a granel não têm formação nem informação para fazer isso. O que elas realmente oferecem são abobrinhas etimológicas ou, melhor, pseudoetimológicas. Ligo a televisão e me prometem uma reportagem sobre a cidade de Penedo (RJ). Aparece o repórter com microfone na mão e dispara: “Pe-

Mc Leonardo

É TUDO VERDADE Era Dezembro de 2005 quando fui procurado pelo diretor José Padilha, ele queria a liberação do verdadeiro Rap da Armas (que tem como autores eu e o meu irmão Mc Junior) para um filme que iria contar as atrocidades do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) dentro das favelas e ia se chamar Tropa de Elite. Fiquei meio desconfiado, mas quando li o roteiro acabei topando e participando mais do que na trilha. Padilha me chamou na produtora e falou que gostaria da minha participação e do meu irmão na criação de um baile Funk dentro da favela no Morro da Babilônia, Bairro do Leme, e queria que nós cantássemos na gravação da cena. Tudo pronto para o primeiro dia de gravação da maior cena do filme, e lá fomos nós. Assim que a gente chegava no pé da favela dava de cara com uma cabine de policia de verdade com policial de verdade dentro dela. Dava mais alguns passos em direção à favela e dava de cara com bandidos de verdade, for-

nedo na língua dos índios quer dizer pedra grande”. Nossa Senhora da Penha, orai por nós! Os índios não têm nada a ver com a palavra Penedo, que está em qualquer dicionário de português com o significado de “pedra grande, rochedo” e é parente de “penha”, “penhasco” etc. A etimologia é uma ciência, e das mais antigas. O filósofo Platão já se interessava por ela e escreveu um de seus famosos diálogos, o Crátilo, em torno da questão da origem das palavras. A partir do século XIX, com o nascimento da linguística científica, a etimologia se consolidou, principalmente graças ao trabalho de muitos alemães. Foi nesse período que se começou a conhecer o parentesco entre as línguas, como as da família indo-europeia, sua origem comum numa língua ancestral que sofreu mudanças à medida que seus falantes iam migrando em grupos diferentes para diferentes direções. É assim que sabemos que o português é parente de centenas de línguas faladas na Índia, por exemplo. A palavra sânscrita Veda (“conhecimento”) é parente da grega idea (que muito antes era widea, “ideia”) e do latim “video” (“eu vejo”): como três quartos do nosso conhecimento do mundo nos entram pelos olhos, não admira que exista uma relação entre “ver” e “conhecer”. Em bancas de jornal e páginas da internet pululam as listas de nomes próprios e seus significados. Para mim, funcionam como um livro de piadas. Aliás, proponho que criemos a palavra “etimoludia” para designar essa brincadeira, essa

temente armados. Mais alguns passos e via um camburão da PM de mentira com policiais de mentira dentro dele e armados com armas de mentira. Mais a frente se via bandidos de mentira, armados com armas de mentira, conversando com bandidos de verdade e fazendo um laboratório de verdade. No meio do set de gravação, policiais de verdade à paisana dando instruções a policiais de mentira de como atuar em cada momento. A cada grito de “gravando” que o direto dava, um tiroteio de mentira começava, mas os barulhos de tiros eram de verdade e os moradores da favela ficaram muito assustados. Na última noite de gravação naquela localidade, bandidos de verdade vestidos de policiais de mentira usando uma camisa preta escrito CORI (Coordenadoria de Recursos Especiais da Policia Civil), onde na verdade era pra ser escrito CORE, cercaram a equipe que transportavam as armas no pé da favela, e fizeram um sequestro de verdade levando a equipe para um outro lado da cidade, mas o que eles queriam mesmo eram as armas. No total, 90 armas foram roubadas e apenas 60 eram de mentira, o resto eram armas de verdade adaptadas pra dar tiro de mentira.

ilustração: BRUNO PAES

falar brasileiro

gozação com as (falsas) origens das palavras. Assim como se faz a oposição entre astrologia e astronomia, alquimia e química, podemos fazer a contraposição entre a “etimoludia” (baboseiras sem fundamento) e a etimologia científica. As pessoas sem formação séria na área da linguística também imaginam que as línguas de povos “exóticos” são diferentes em tudo e por tudo das línguas mais conhecidas, ocidentais. Assim, quando vão dar o significado de alguma palavra dessas línguas, descambam para a pseudopoesia e o exagero. O nome Leila, por exemplo, significa tão somente “noite” em árabe (laylá) e não “escura como a noite estrelada do deserto”. Blergh! Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Com toda equipe abalada com o sequestro, e com medo de voltar a gravar em favelas, Padilha teve que mudar os planos para dar segmento às gravações. Mais de um mês de atraso e muitos outros problemas a serem resolvidos, fizeram com que filme ainda inacabado fosse parar na mão da pirataria. Acabou sobrando pra nós também, pois o filme pirata saiu com um Rap das Armas de mentira, um plágio do nosso Rap, mas que não nos abalou. O que nos abalou de verdade foi ver a sociedade encontrar um herói de mentira no filme, mas a gente que vive ou convive com favelas, jamais vai encontrar em uma figura assassina como o Capitão Nascimento qualquer ato heroico de verdade. O lado positivo é que o filme imortalizou a maneira covarde de como o Estado entra pra dar segurança de mentira à população pobre de verdade. Eu gostaria que tudo isso fosse uma mentira, mas é tudo verdade! Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

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paÇOCA Pedro Alexandre Sanches ...

William Love descobriu que era cantor virando cantor. Antes, fazia e consertava caixas de som e alto-falantes (“era eletricista”) em sua cidade natal, Abaetetuba, localizada no interior do Pará, distante de Belém 100 km (pelo eixo rodoviário) ou 60 km (por rio). De eletricista, virou DJ em festas locais de aparelhagem. De DJ, partiu para montar uma banda. De integrante de banda, um belo dia se viu de microfone em punho e incentivado pela turma: “Eita, bacana, vai ser tu mesmo!”. “Falei: ‘Eu? Tá doido, tenho muita vergonha, sou tímido, não vou cantar não!’”, diz o rapaz de 20 anos. “Saí do ensaio todo feliz que eles tinham achado minha voz legal. Cheguei em casa: ‘Puxa, mãe, vou ser cantor!’. ‘Tu, cantor?’”, lembra, imitando no tom de voz a incredulidade da mãe. O pai de William é vigilante. A mãe é doméstica. William é cantor. Keila Gentil também tem 20 anos e também é cantora – e tem uma filha de 1 ano com William. É amazonense de Manaus, filha de policial aposentado que hoje toca uma sorveteria em parceria com a esposa. O pai é católico e a mãe é adventista. Keila começou a cantar aos 5 anos em corais de igreja, ora católica, ora evangélica, “até que fui disciplina”. A menina de cabelos tingidos de rosa explica: “Eu queria cantar carimbó, fui praticamente expulsa da igreja”. Adolescente, Keila trabalhou como vocalista em bandas de calipso e forró, e se mudou com a família para Barcarena, município da região metropolitana de Belém, a 15 km da capital. No Pará, cantou de forró a lambada, até ser conquistada por aquele que é hoje o ritmo mais popular do estado, conhecido por nomes variados: tecnobrega, tecnomelody, melody... Marcos Nunes, de 28 anos, também é cantor, embora lembre mais um rapper à moda paraense. Seu nome artístico é Maderito – ou Maderito, o Alucinado do Brasil. Nasceu em Belém, no bairro de Cremação. “Chama assim porque era onde eram queimados os lixos de Belém”, explica. É pai de uma filha de 1 ano e 8 meses. Antes de se aventurar como artista, foi roadie de grupos locais. Filho de motorista com doméstica, carregou instrumentos inclusive para Joelma e Chimbinha, da Banda Calypso, antes de virar backing vocal e cantor de nomes célebres do www.carosamigos.com.br

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melody. Também compositor, Maderito é o criador do sucesso Galera da Laje, que por temática e sonoridade poderia passar por funk carioca ou pagode paulista, mas cuja impressão digital é mesmo o melody – ou cybermelody, uma das variações a que o artista já se dedicou. O DJ Waldo Squash, de 31 anos, não é cantor, mas costuma cantar uma ou outra músicas nos shows da banda que criou – e da qual Maderito, William e Keila são cantores. É filho de porteiro com servente de escola. “Somos todos de família pobre – financeiramente”, ele afirma. É pai de uma menina de 8 anos. Waldo nasceu em Muaná, município do arquipélago do Marajó, distante 80 km de Belém (a viagem de barco pode durar de quatro a dez horas), e hoje mora em Barcarena. Seu pai tinha uma aparelhegem “de médio porte”. Por esse intermédio o filho começou a discotecar e foi trabalhar em rádio no interior, como produtor de áudio. “Ali conheci programas que trabalhavam com sintetizadores, e fui desenvolvendo minhas ideias.” Seu último emprego fixo foi como mecânico industrial, na construtora Camargo Corrêa. Nas águas da música, como DJ, Waldo toca em festas de aparelhagem que reunem 5 mil, 10 mil, 15 mil aficionados pelo melody. Waldo, Maderito, Keila e William têm computadores. Waldo tem também um estúdio próprio de gravação, onde desenvolve mais uma evolução do melody, o eletromelody. Juntos, os quatro compõem um dos grupos mais inventivos da música popular paraense deste início de século, a Gang do Eletro. Suas invenções balançadas misturam o orgânico e o sintético, a música popular paraense e as últimas novidades radiofônicas do pop eletrônico mundial. Panamericano, um dos maiores sucessos da Gang, sampleia o hit internacional de 2010 We No Speak Americano, do duo australiano de dance music Yolanda Be Cool. Mas adapta o macarrão gringo à realidade paraense: “Meu amigo americano chegou de Nova York/ veio conhecer a aparelhagem do norte/ ele é desguiado e ele está aqui/ (....) seja bem-vindo à nossa cidade/ fala aí, americano, com as aparelhagens”. Multiculturalismo é a senha da Gang (e de todo o movimento brega/melody), para muito além da mera influência estadunidense. Eletrocumbia do Mexicano e Eletromelody da Indiana são outros dos

ilustração: MURILO

A aparelhagem do Norte, a ministra da Cultura, você & eu

achados do grupo, que mantém olhos e ouvidos bem abertos para o Caribe e a África. Tampouco lhes escapa do radar o Brasil que tão pouco olha para seu próprio norte. Uma de suas criações mais deliciosas é Tributo a Carmen Miranda, fundado na justaposição da linguagem eletromelody à voz da “falsa baiana”, em samples das gravações originais de Taí, Mamãe, Eu Quero e Tico-Tico no Fubá. Embora corram pela internet downloads clandestinos de um suposto disco da Gang do Eletro, o grupo nunca lançou um disco completo até hoje. Suas músicas circulam nas inúmeras compilações de melody vendidas às baciadas por camelôs de toda Belém, de todo Pará. Embora participantes de uma indústria musical pujante, moderna e inovadora, os meninos do eletromelody nunca receberam um centavo em direito autoral, até porque apenas recentemente descobriram a existência desse labiríntico sistema oficial. A Gang do Eletro e o melody, assim como várias cenas regionais que vicejam espontaneamente Brasil afora, vivem fora do radar da já célebre frase da ministra da Cultura de seu país, Ana de Hollanda, de que “a democratização da cultura não pode passar por cima do direito autoral”. A tomar a sério essa posição, tecnobregas, funkeiros, forrozeiros, rappers, lambadeiros e que tais espalhados pelas periferias não são considerados artistas pela ministra da Cultura do Brasil. Pode ser que eu, você e a ministra reprovemos o melody em termos estéticos (ou de classe social?), ou não toleremos a precariedade de partida de quem teve de aprender música fazendo música, sem mecenas nem professor. Mas o que jovens como esses da Gang do Eletro alegorizam no Brasil de 2011 é um processo inédito e profundo de inclusão social – e, no caso deles, essa inclusão se dá por intermédio da inserção à cultura. Gosto musical – seu, meu, da ministra ou da presidenta – é o que menos nos interessa, diante da grandeza ímpar deste momento histórico.

Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

Plutônio na terra do sol Elemento químico radioativo, explosivo termonuclear, o plutônio não é encontrado na natureza. Inexiste usina nuclear sem plutônio. Se a usina nuclear, como me disse um dia César Lattes, mijar um pouquinho que seja de plutônio, adeus humanidade, adeus planeta, adeus jogo do Corinthians. Pelo amor de Deus, Dilma, não autorize mais uma usina em Angra; aliás, a senhora deveria fechar a que existe, e em seu lugar construir um Ciep’s com o nome Marcelo Guimarães. Extrair eletricidade de engenho nuclear é insensatez, no entanto mais insensato ainda é fazêlo na terra do sol. Somos a América do sol. Somos o sol do novo mundo. Somos o sol dos trópicos. Usina nuclear ou é para construir bomba atômica ou é para suprir a falta de sol. Na Europa, EUA e Japão não há outra alternativa se não buscar um sol artificial no reator nuclear. Digamos que se trata de um imperativo cosmopolítico, mas aqui nos trópicos temos o reator a fusão nuclear natural e grátis: o sol. O sol é do povo, dizia Glauber Rocha. Se eu pudesse sugerir alguma coisa antes do infortúnio, diria para a presidenta fazer uma visita a

Bautista Vidal, que mora em Brasília perto do Palácio da Alvorada. Bautista Vidal é pós-graduado em física nuclear, mas não é alienado em relação ao tempo e ao espaço. Destarte, ele não é venal, corrupto e colonizado como a maioria absoluta dos físicos. Tudo que ele advertiu sobre energia e ecologia está acontecendo, só que não foi ouvido pelo poder, aliás esse foi o maior desacerto do governo Lula, que poderia ter evitado a internacionalização multinacional do álcool e dos óleos vegetais. Com a apropriação de energia vegetal o imperialismo norte americano, na fase pós-petróleo que se aproxima, terá sobrevida de quanto tempo? Não sei, não sou profeta, mas Dilma não deve repetir a displicência do ex-presidente em relação à vocação energética dos trópicos. Não há no mundo inteiro questão mais importante do que a energia, que hoje está cada vez mais cara, rara e perigosa. É preciso por fim à conversa fiada de que Deus é brasileiro. Ou foi obra de satã o dilúvio em Petrópolis? Angra dos Reis, onde nasceu o delicado escritor Raul Pompéia, é uma região litorânea, e todo lito-

ral está ameaçado de submergir por causa da elevação do nível dos oceanos em decorrência do dióxido de carbono (CO²) lançado na atmosfera pela queima de petróleo e carvão mineral. O caminho não é o nuclear, nem o fóssil poluidor; a solução é a fotossíntese de que resulta a energia vegetal, mas produzida em pequena propriedade, e não pelos usineiros latifundiários associados às multinacionais. O imperialismo energético está em processo de transição: do fóssil para as plantas. Obama veio aqui de olho no Pré-sal; todavia sua cobiça (seguindo o roteiro da Shell) é o álcool e os óleos vegetais. Ele falou e disse: “the future is here.” O futuro está aqui, só que para eles, não para nós engabelados pelo mirífico petróleo do fundo do mar salgado. O dólar tampando o sol na terra do etanol me lembra o poeta maranhense Gonçalves Dias. Minha terra tem nucleares ogivas onde vaza o sabiá. Afinal, quando é que os carapintadas vão às ruas protestar? Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Fidel Castro

Aniversário socialista e debate no Congresso do Partido Hoje, sábado, tive o privilégio de apreciar o impressionante desfile com que nosso povo comemorou o 50º aniversário da proclamação do caráter socialista da Revolução e da vitória sobre a invasão vinda pela Baía dos Porcos. Também se iniciou nesse dia o 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba. Desfrutei muito da narração pormenorizada e da música, gestos, rostos, inteligência, marcialidade e combatividade de nosso povo; de Mabelita na cadeira de rodas com o rosto feliz e das crianças e adolescentes de “La Colmenita” multiplicados várias vezes. Vale a pena ter vivido para assistir o espetáculo de hoje, e vale a pena lembrar sempre os que morreram para torná-lo possível. Ao iniciar-se nesta tarde o 6º Congresso, pude constatar, nas palavras de Raúl e no rosto dos delegados ao máximo evento de nosso Partido, o mesmo sentimento de orgulho. Podia estar na praça, talvez uma hora debaixo do sol e do calor, mas não três horas. Atraído pelo calor humano ali presente, isso me teria criado um dilema. Acreditemquesentidorquandoviquealgunsdevocês me procuravam na tribuna. Pensava que todos compreenderiam que não posso já fazer o que tantas vezes fiz.

Prometi ser um soldado das ideias, e ainda posso cumprir esse dever. (Em 16 de abril de 2011). *** Hoje, domingo, escutei os debates dos delegados ao 6º Congresso do Partido. Eram tantas as comissões que, como é lógico, não pude escutar todos os que falaram. Reuniram-se em cinco comissões para discutir diversos temas. Com certeza, eu também aproveitava os recessos para respirar com calma e para consumir algum portador energético de procedência agrícola. Eles, seguramente com maior apetite por seu trabalho e sua idade. Espantava-me a preparação desta nova geração, com tão elevado nível cultural, tão diferente a essa que se alfabetizava precisamente em 1961, quando os bombardeiros ianques, em mãos mercenárias, atacavam a Pátria. A maioria dos delegados ao Congresso do Partido eram crianças ou não tinham nascido. Não me importava tanto o que diziam como a forma em que o diziam. Estavam tão preparados e se expressavam com um vocabulário tão rico, que eu quase não os entendia. Discutiam cada palavra, e até a presença ou ausência de uma vírgula no parágrafo discutido. A direção do Partido deve ser a soma dos me-

lhores talentos políticos do nosso povo, capaz de enfrentar-se à política do império que põe em perigo a espécie humana e gera gansteres como os da OTAN, capazes de lançar em só 29 dias, do inglorioso “Amanhecer da Odisseia”, mais de 4 mil missões de bombardeio sobre uma nação da África. É dever da nova geração de homens e mulheres revolucionários ser modelo de dirigentes modestos, estudiosos e de lutadores incansáveis pelo socialismo. Sem dúvida, na época bárbara das sociedades de consumo constitui um difícil desafio superar o sistema de produção capitalista, que fomenta e promove os instintos egoístas do ser humano. A nova geração é chamada a retificar e mudar, sem hesitar, tudo o que deve ser retificado e mudado, e continuar demonstrando que o socialismo também é a arte de realizar o impossível: construir e levar a cabo a Revolução dos humildes, pelos humildes e para os humildes, e defendê-la durante meio século da potência mais poderosa que jamais existiu. Fidel Castro Ruz é ex-presidente da República de Cuba. Em 17 de abril de 2011.

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Violência

A culpa é do Islã Cobertura da tragédia do Realengo oculta a responsabilidade do Estado, a da própria mídia patronal e tenta transformar Wellington de Oliveira na versão tupiniquim de Osama Bin Laden. Por José Arbex Jr. Seria risível, não fosse a dor que se abateu no dia 7 de abril sobre a Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo (Rio de Janeiro): tudo foi culpa do Islã, nas palavras do brilhante âncora da Rede Globo William Bonner, em 11 de abril. Adotando sua careta mais dramática (pelo menos, é o que o olhar arregalado e esgares de espanto parecem pretender), Bonner esclarece, finalmente, o que levou Wellington de Oliveira, 23 anos, a fuzilar crianças inocentes para, em seguida, liquidar a própria vida: foram as suas ligações com um “grupo terrorista” supostamente islâmico. Claro. Provavelmente Wellington era membro da rede de terroristas que, segundo a “revista” Veja (edição 2.211, de 6 de abril) mantém uma vasta base no Brasil. E a escola do Realengo foi o alvo, talvez, por ser um centro de operação dos serviços secretos dos Estados Unidos e de Israel. Ora... Se houvesse um prêmio para débeis mentais, Bonner seria imbatível. Mas é equivocado tratar o “caso Bonner” como de debilidade mental. Fosse isso, o correto seria defender o seu direito à supervisão clínica adequada, a mesma negada a Wellington, diagnosticado como esquizofrênico e filho de uma portadora de distúrbios psiquiátricos. A referência da Globo ao Islã – assim como a “reportagem” da Veja - está em perfeita consonância com uma “campanha” feita pela embaixada dos Estados Unidos no Brasil, junto aos principais órgãos de imprensa do país, como revelam vazamentos recentes do WikiLeaks, reproduzidos pelos blogs dos jornalistas Luís Nassif, Paulo Henrique Amorim e muitos outros. Um telegrama de 2009, enviado a Washington pela embaixada estadunidense, critica a abstenção do Brasil em votação feita no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 26 de março de 2009, sobre o tema “difamação de religiões”. A resolução foi proposta pela Organização da Conferência Islâmica (OCI), que reúne 56 países, sob o argumento de que as minorias muçulmanas passaram a sofrer ataques de intolerância, discriminação e atos de violência a partir de 11 de setembro de 2001, incluindo leis e procedimentos administrativos que estigmatizam fiéis. Foi aprovada por 23 votos a 11 e 13 abstenções.

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Tio Sam defende o direito de difamar religiões, em nome da liberdade de expressão. A abstenção brasileira, segundo um certo Kubiske (que assina o telegrama da embaixada), é explicada pelo fato de o Brasil não querer confrontar a OCI. A sua recomendação é fazer uma “abordagem de quatro braços, envolvendo aproximação com os altos escalões do Ministério de Relações Exteriores; uma visita a Brasília, para pesquisar meios de trabalhar com o governo do Brasil, nessa e noutras questões de direitos humanos; outros governos que possam conversar com o governo do Brasil; e uma campanha mais intensa pela mídia e mobilizando comunidades religiosas a favor de não se punir quem difame religiões.” E o tal Kubiske explica: “Grandes veículos de imprensa, como O Estado de S. Paulo e O Globo, além da revista Veja, podem dedicar-se a informar sobre os riscos que podem advir de punirse quem difame religiões, sobretudo entre a elite do país. Essa embaixada tem obtido significativo sucesso em implantar entrevistas encomendadas a jornalistas, com altos funcionários do governo dos EUA e intelectuais respeitados. Visitas ao Brasil, de altos funcionários do governo dos EUA seriam excelente oportunidade para pautar a questão para a imprensa brasileira. Outra vez, especialistas e funcionários de outros governos e países que apoiem nossa posição a favor de não se punir quem difame religiões garantiriam importante ímpeto aos nossos esforços.” Não poderia estar mais claro. William é um office boy-nner da embaixada, e a Veja o seu porta-voz semanal impresso. Eis tudo.

Sensacionalismo

Voltando, agora, ao Realengo. O Wellington foi tratado pela mídia patronal como um caso isolado, atípico, um ato tresloucado de alguém que sofria de perturbações psíquicas, ou mesmo como ato terrorista islâmico. A presidente Dilma Rousseff ainda acrescentou a acusação de antipatriota, pois coisas assim não acontecem no Brasil. E a mídia ocultou a responsabilidade da própria mídia, que faz do sensacionalismo crescente um meio de aumentar a audiência e faturar mais pelos minutos do comercial. O jornalista Duarte Pereira faz uma excelente síntese do que foi a cobertura da tragédia:

“A mídia negligencia as informações de que Wellington passou por vexames e humilhações por causa de sua introversão e bizarrices, quando era aluno da escola. Não aborda a falta de acompanhamento e tratamento adequados de um paciente diagnosticado de esquizofrenia há muito tempo, o que agravou a evolução de sua enfermidade. Não trata das informações sobre atentados e manejo de armas que podem ser acessadas facilmente na internet. Não reavalia a divulgação maciça, cotidiana e acrítica dos mais variados atos e formas de violência praticados por grandes potências e contumazes delinquentes, reproduzidos em filmes de sucesso e até mesmo em jogos eletrônicos. Não esclarece como Wellington conseguiu as armas e as munições, sem as quais não poderia ter feito seus disparos cruéis e desvairados. Não alerta para a atmosfera envenenada de individualismo e competição em que a infância e a juventude vêm sendo forjadas. (...) São poucos também os professores e mais reduzidas ainda as entidades do magistério que têm vindo a público para lembrar a violência que se tornou endêmica nas escolas, principalmente nas escolas públicas, rebatendo a ideia de que a tragédia do Realengo possa ser considerada um fato isolado e imprevisível. Surpreende também que os movimentos de saúde, sobretudo os de saúde mental, não se empenhem em repor a apreciação do trágico acontecimento num quadro mais objetivo e multilateral, que leve em conta a condição do autor dos disparos, a falta de acompanhamento e tratamento de seu padecimento mental e as circunstâncias finais de seu gesto de sofrida insanidade.” De todas as tragédias que se superpõem no Realengo, talvez a menor gravidade – ainda que mais visível e dolorosa – seja a do assassinato em si. Sua importância fica pálida em face do terror com que o Estado brasileiro trata a população pobre em geral, diante da total subserviência da mídia patronal às ordens do patrão em Washington, da impotência repetidamente demonstrada pelo povo brasileiro, toda vez que sua dignidade é atacada e seu imaginário manipulado. Veremos o dia em que Homer Simpson dará uma lição nos office boy-nner da vida. José Arbex Jr. é jornalista.

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amigos de papel

Sérgio Vaz

O milagre da poesia

Joel Rufino dos Santos ...

Sou poeta, E como poeta posso ser engenheiro E como engenheiro Posso construir pontes com versos Para que pessoas possam passar sobre rios, Ou apenas servir de abrigo aos indigentes. Sou poeta, E como poeta posso ser médico E como médico Posso fazer transplantes de coração Para que pessoas amem novamente, Ou simplesmente receitar poemas Para tristezas com alergias E alegrias sem satisfação.

Ilustração: koblitz

Sou ateu, mas tenho a Bíblia sempre à mão. Em Gênesis 9:20, se conta que após o dilúvio, Noé tomou um porre, ficou nu e o filho Cam deu o flagrante. Ao invés de cobri-lo, correu para contar aos irmãos, Sem e Jafé. Cam e seus descendentes foram amaldiçoados para sempre, são os africanos. Nudez, vergonha, homofobia, racismo... Todos os temas do noticiário brasileiro de hoje estão num livro de histórias antiquíssimo dos hebreus. Por quê? Talvez as angústias do homem sejam universais. Não nos livramos delas. Os últimos tempos misturaram muito as definições de esquerda e direita. No episódio do deputado Bolsonaro, no entanto, a diferença entre nós e eles fica clara: de esquerda é quem não aceita a discriminação racial e sexual, que o deputado manifesta. Não quer dizer que um eleitor do DEM, por exemplo, a aceite. O xis da questão é que nós, da esquerda, somos por princípio contra qualquer discriminação. Não é fácil dizer, em todo caso, o que é princípio nos dilemas que enfrentamos a toda hora. Não devemos bater em criança por princípio, por exemplo. Mesmo que seja uma palmadinha? Mesmo que seja uma palmadinha: ela visa a punir pela dor, tanto quanto a surra de mulheres e a tortura de presos. Assim, quanto à homofobia que parece crescer nos últimos tempos, é simples: somos contra. Ocorre que a sexualidade – residência da homossexualidade, da transexualidade, e de outras formas, bem como a fobia a elas – nada tem de simples. Quem tentou simplificá-la quebrou a cara, fosse pastor, cientista, filósofo. Mal se sabe, por exemplo, se a homossexualidade é genética, se se adquire, se já está conosco ao nascermos ou a desenvolvemos como resposta a ocorrências da vida infantil etc. Que relação há entre sexualidade e história? Como trocam suas influências? Grandes líderes de massa foram tarados, muitos homossexuais, diversos assexuados - é puro acaso? A moderna civilização ocidental, em que nascemos, foi vigorosamente homofóbica, torturou e queimou gays e lésbicas. O que os livros de história chamam de era vitoriana, o século XIX quase inteiro, viveu o grande medo da sexualidade, só conjurado com leis, prisões, banimentos etc. Como um espectro, o transviado rondava o capitalismo. Em nossa espécie, mais claramente que nas outras, o corpo físico não coincide necessaria-

Ilustração: koblitz

O porre de Noé

mente com o desejo. Se pode ser mulher e ter desejo de homem, e vice-versa, além de outras combinações. Está aí o princípio que nos alerta contra a discriminação de homossexuais: o respeito ao desejo do ser humano. Desejo e reverência – a homossexualidade, num certo sentido, é uma libertação da condição animal. Os mitos, as lendas, a literatura, a poesia, os livros sagrados, como o Corão, o Vedas, o Livro dos Mortos estão cheios de homossexualidade e, ao mesmo tempo, de rejeição a ela. A energia que emana do sexo percorre, como corrente elétrica, a história dos homens. A prática mais cruel que inventamos, a tortura, começa com a nudez: o torturador trabalha sobre o corpo nu do torturado, exige o seu corpo nu. É quando ele pode ferir a nossa humanidade. Noé só deixou de ser instrumento de deus no fim da vida (ele viveu ainda 350 anos depois do dilúvio). Precisou se embriagar e tirar a roupa para os filhos descobrirem que era gente. Joel Rufino é historiador e escritor.

Sou poeta, E como poeta posso ser operário E como operário Posso acordar antes do sol e dar corda no dia, E quando a noite chegar, serena e calma, Descansar a ferramenta do corpo No consolo da família, autopeças de minha alma. Sou poeta, E como poeta posso ser um assassino E como assassino posso esfaquear os tiranos Com o aço das minhas palavras E disparar versos de grosso calibre na cabeça da multidão Sem me preocupar com padre, juiz ou prisão. Sou poeta, E como poeta posso ser Jesus E como Jesus Posso descrucificar-me, E sem os pregos nas mãos e os fanáticos nos pés Andar livremente sobre terra e mar Recitando poesia em vez de sermão. Onde não tiver milagres Ensinar o pão Onde faltar a palavra Repartir a ação. Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br.

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João Pedro Stedile

A UNIDADE DO CAMPO POPULAR Há muitas avaliações comuns no campo das forças populares, partidárias, sindicais e dos movimentos sociais. A maioria avalia de que foi importante termos derrotado as forças que se aglutinaram ao redor da candidatura Serra. Mas que somente isso é insuficiente. Que estamos ainda num período histórico de hegemonia do grande capital e do capital estrangeiro, dirigido pelas grandes potencias. Que o Brasil vem sendo assaltado por essas forças capitalistas que correm para cá, em busca de proteger-se da crise, de se apoderar dos bens da natureza, de garantir acesso a energia. Avaliamos que o governo Dilma, é ainda um governo de composição de forças, de classe e de ideologias. Que não há um projeto de desenvolvimento nacional, de cunho popular, que unifique todas as forças, que o elegeram. Que estamos diante de enormes desafios, para resolver os graves problemas que ainda afligem a maior parte da população brasileira. Não podemos apostar em políticas de “melhorismo”, que apenas façam compensação social, para os pobres e mantenham as altas taxas de lucro para o grande capital. Não podemos combater a pobreza no campo, sem enfrentamento claro com o latifúndio e a democratização do acesso à terra. Não podemos garantir alimentos saudáveis, para nossa população, sem

políticas que enfrentem os interesses das empresas transnacionais do agrotóxico. Não podemos resolver os problemas de meio ambiente, sem políticas claras de punição aos agressores do meio ambiente. Não podemos resolver o problema da exclusão de milhões de jovens da universidade, e o analfabetismo que cega 14 milhões de trabalhadores adultos, sem que façamos pesados investimentos na educação, que como defendem os movimentos deveria ser de no mínimo 10% do PIB. Não podemos resolver o déficit de 10 milhões de moradias, sem elevados recursos públicos. Não podemos resolver o problema do emprego e renda formal, sem pesados investimentos em produção de bens de consumo de massa. Não conseguiremos distribuir a renda, sem a valorização vigorosa do salário mínimo e dos benefícios da previdência social. Ou seja, o governo Dilma não pode e nem conseguirá ser apenas o continuísmo do governo Lula. É preciso mudanças estruturais na forma de organizar a produção, na prioridade dos investimentos e no uso dos recursos públicos. Mas, para haver essas mudanças na política, não basta apenas apresentar propostas, reivindicar ou pressionar o governo. Será necessário um vigoroso movimento de mobilizações de massa, que consiga

trazer o povão para as ruas, para que ele exercite o direito da ação política. As forças populares, das diferentes frentes, precisamos construir um ambiente político de unidade que nos permita caminhar nessa direção. E um dos primeiros passos é construirmos uma plataforma comum, de pontos de interesse imediato de toda a classe trabalhadora. Já se esboçam no cenário da luta de classes alguns pontos unitários, como: reforma agrária verdadeira, 10% dos recursos públicos para educação, controle da taxa de juros, mudança na política do superávit primário que engessa os recursos públicos apenas a pagamento da divida interna; plano massivo de construção de moradias populares, valorização dos salários etc. E quem sabe, a partir disso, possamos construir um segundo passo, de realizar mobilizações conjuntas de todas as forças para pressionar por mudanças estruturais. E, ao mesmo tempo, construir, com pluraridade e generosidade, a unidade de todas as forças que querem resolver os problemas do povo. Certamente, durante esse ano, precisamos caminhar nessa direção. Construir pontes de unidade programática e de ação de massas, entre o maior leque possível de forças populares. João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil

Frei Betto

BRASIL E OEA: ATRITOS A OEA (Organização dos Estados Americanos), em nome da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), em carta ao governo brasileiro, no início de abril, solicita a suspensão imediata do licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. A obra apresenta sérios riscos aos povos indígenas que habitam a região do rio Xingu. O governo Dilma não gostou do puxão de orelhas. Determinou ao Itamaraty redigir uma nota “à altura”, manifestando a sua perplexidade. O ministro Patriota, das Relações Exteriores, qualificou de “precipitadas e injustificáveis” as recomendações da CIDH. Segundo a OEA, as comunidades indígenas da região não foram ouvidas sobre a obra. Mais uma vez, os caras-pálidas julgam saber o que é bom para os peles vermelhas... Essa arrogante convicção provocou o genocídio de milhões de índios ao longo de cinco séculos de América Latina. Em nome do progresso, sacrificam-se nossos povos originários. A OEA defende o direito de os indígenas do www.carosamigos.com.br

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Xingu terem acesso ao Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto de Belo Monte. Exige também que medidas “vigorosas e abrangentes” sejam tomadas para proteger a vida e os direitos das nações indígenas. Com o início da construção da usina, milhares de pessoas, em busca de trabalho, se deslocarão para a região, com risco de levarem epidemias, alcoolismo e prostituição aos índios, além dos desequilíbrios ambientais que a hidrelétrica poderá causar. O governo brasileiro acaba de assinar, em Genebra, resolução da ONU para investigar a violação dos direitos humanos no Irã. Mas se sente incomodado quando a OEA decide fazer o mesmo no Brasil. Dois pesos, duas medidas. E se o governo Dilma decidir ignorar a solicitação da OEA? Ele corre o risco de ser julgado pela CIDH e, em última instância, pode ser expulso da OEA. Ainda que isso não ocorra, a imagem de nosso país fica prejudicada no cenário internacional. Sobretudo no momento em que o governo

Dilma marca diferença com o governo Lula e enfatiza que, na política externa, os direitos humanos terão prioridade, e não os interesses econômicos. (A China entra nisso?) O que é “injustificável e precipitado”, a advertência da OEA ou a construção da hidrelétrica de Belo Monte? Por que essa resistência em consultar os povos indígenas do Xingu? Por que o Ministério Público do Pará entrou na Justiça com dez ações contra Belo Monte? Progresso não é fazer obras em detrimento de comunidades e ecossistemas. Há que mudar o paradigma do lucro para a qualidade de vida da população. Enquanto isso não ocorrer, nossas cidades continuarão a serem entupidas de carros – pois a indústria automotora paga gordos tributos ao governo – sem que seja oferecido à população transporte coletivo de qualidade, como metrô. Frei Betto é escritor e autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.

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Política Externa

AS POLÊMICAS

DO GOVERNO DILMA

ilustração: ricardo palamartchuk

Voto do Brasil na ONU contra o Irã suscita debate sobre os rumos do Itamaraty na gestão de Antonio Patriota.

Entre os analistas entrevistados, a opinião majoritária é que há alterações na política externa brasileira.

Por Tatiana Merlino O recente apoio do Brasil à resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que institui um relator especial para investigar as violações de direitos humanos no Irã, acendeu o sinal de alerta entre parte da esquerda brasileira sobre uma possível mudança nos rumos da política externa do país. Tendo à frente o ex-ministro Celso Amorim, a atuação do Itamaraty, durante os oito anos do governo Lula, era considerada quase consensualmente pelos setores progressistas como um dos pontos mais positivos da gestão petista. Durante o período, o Brasil destacou-se internacionalmente, por exemplo, por manter relações de diálogo com o país comandado por Mahmoud Ahmadinejad. Em relação às supostas intenções iranianas de produzir a bomba atômica, o governo brasi-

leiro chegou a articular, juntamente com a Turquia, um acordo que superasse o impasse – aceito pelo Irã e rechaçado pelos Estados Unidos. Lula também interveio no caso Sakineh Ashtiani, ajudando a reverter sua condenação à morte por apedrejamento. O recente voto no Conselho de Direitos Humanos da ONU representaria, portanto, uma alteração na relação do Brasil com o país persa. Embora o exministro Celso Amorim acredite que esse fato não signifique mudanças na política externa brasileira sob as gestões Dilma Rousseff e Antonio Patriota (o novo ministro), ele afirma que “provavelmente, não votaria dessa maneira” (leia a entrevista). Entre os analistas entrevistados pela Caros Amigos, a opinião majoritária, no entanto, é de que há, sim, alterações nos rumos da Itamaraty, embora dis-

cordem sobre a intensidade delas. O cientista político e professor titular aposentado de História da Política Exterior da Universidade de Brasília (UnB) Luiz Alberto Moniz Bandeira é a voz dissonante. Para ele, o voto do Brasil a favor do envio de um relator ao Irã é um “fato isolado, circunstancial” e não representa nenhuma contradição com as diretrizes da política externa brasileira: “A presidenta Dilma Rousseff disse várias vezes que a defesa dos direitos humanos não pode ser seletiva e deve abranger todos os países em que ocorra sua violação. É claro que isso não significa que não possam ocorrer diferenças pontuais, inclusive, devido às mudanças na situação internacional. A política exterior de um país, conquanto tenha um vetor estratégico, pode inflectir, de um modo ou de outro, a

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fim de ajustar-se às mutações históricas: não pode parar no tempo”. O professor chama a atenção para o fato de que o primeiro país visitado por Dilma Rousseff, depois de eleita, foi a Argentina. O segundo, em abril, foi a China, hoje o principal parceiro comercial e o maior investidor estrangeiro do Brasil. “É um detalhe que sinaliza muito bem o rumo diplomático do Brasil e a mudança no peso de suas relações com os Estados Unidos”. Moniz também assinala que a abstenção do Brasil no caso da resolução do Conselho de Segurança que autorizou a intervenção na Líbia representa, em termos diplomáticos, uma discordância com os Estados Unidos, França Inglaterra. “Não pode haver outra avaliação: o Brasil, sob a presidência de Dilma, mantém a mesma política exteO voto do Brasil gerou críticas à gestão Dilma/Patriota. rior autônoma, soberana e altiva desenvolvida pelo do que vai ser discutido”, afirma. presidente Lula”. Igor Fuser, jornalista, professor da faculdade Em entrevista à imprensa, entretanto, o assesCásper Líbero e doutorando em Ciência Política da sor especial para Assuntos Internacionais da PresiUniversidade de São Paulo (USP), também acredidência da República, Marco Aurélio Garcia, admitiu ta que o voto provavelmente indique uma modifique houve alterações de rumo, embora não signicação na política externa brasileira. “A julgar pelos ficativas. “Há mudanças na política externa? Claro sinais emitidos nos primeiros meses do governo Dilque sim”, disse, ao jornal O Estado de S. Paulo, enma, está em curso uma inflexão significativa, mas fatizando que o tema dos direitos humanos é muinão uma mudança radical. A ênfase se altera, ainto caro à presidenta Dilma Rousseff. Garcia afirmou da que as linhas fundamentais permaneçam as mesque o país analisará a situação de direitos humanos mas”, avalia. no mundo em cada caso e afirmou: “Nós temos a Segundo ele, durante o governo Lula, o objetipreocupação de que essas votações não sejam sevo da política externa era manter a independência letivas – apenas contra os países do sul – e possam do país em relação aos interesses estadunidenses, abordar de forma equilibrada todas situações”. o que facilitaria uma proximidade com as outras A presidenta Dilma Rousseff já havia sinalizado potências médias regionais, situando o país como discordância em relação à abstenção do Brasil na um “ator central na construção de um mundo mais votação da Organização das Nações Unidas (ONU) multilateral”. Já no governo Dilma, “sem renunciar que questionou o Irã por violação de direitos humaà sua autonomia e ao multilateralismo, o país está nos, em novembro do ano passado. O governo bramais preocupado em reforçar sua posição de ator sileiro se absteve por considerar que a Assembleia ‘respeitável’ aos olhos da coligação hegemônica na Geral do organismo não é o melhor espaço para discena internacional, isto é, os EUA e seus aliados eucutir o tema, mas sim o Conselho de Direitos Huropeus”, analisa. manos da ONU. Pouco depois, no começo de dePortanto, Fuser não acredita que, com a nova zembro, em entrevista ao jornal estadunidense The postura em relação ao Irã, o país esteja se alinhanWashington Post, Dilma declarou: “Eu não sou a do aos EUA, mas, apenas, presidenta [hoje] do Brasil, evitando o confronto, esmas eu me sentiria descon“Está em curso uma inflexão pecialmente em temas nos fortável como uma presisignificativa mas não radical quais “não há nada a gadenta mulher eleita em não [na política externa brasileira]”, nhar batendo de frente”. dizer nada contra o apedrediz o jornalista Igor Fuser Exemplo da independênjamento. Minha posição não cia brasileira, crê, é a absvai mudar quando eu tomar tenção no caso da resolução da ONU autorizando o posse. Eu não concordo com a maneira como o Brauso da força da Líbia. “Essa posição foi interpretasil votou. Não é minha posição”. da, corretamente, como um desacordo brasileiro perante a intervenção da Otan [Organização do TrataPrimeira manifestação do do Atlântico Norte]”. Entre os que observam alterações na política externa brasileira, está Cristina Soreanu PeNovo “bloco” cequilo, professora de Relações Internacionais da É quase consenso entre a esquerda brasileira que Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Na os anos Lula, em matéria de diplomacia internaciosua opinião, o apoio do Brasil ao envio do relanal, ficaram marcados por uma atuação de maior tor aponta para uma mudança, mas ainda é cedo aproximação com as demais nações emergentes, o para avaliar se haverá uma continuidade. “Esse que serviu para posicionar o Brasil como um dos lívoto foi uma primeira manifestação da mudanderes desse novo “bloco”. No período, o Brasil deça. A grande questão, agora, é ver se em situações fendeu um maior protagonismo dos países pobres similares essa posição será mantida, dependendo www.carosamigos.com.br

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foto: agência brasil

Rumos diplomáticos

em instituições multilaterais como a própria ONU, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, ajudou a fortalecer os chamados Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, e, mais recentemente, África do Sul) – certamente, muito devido também ao crescimento econômico acelerado de China e Índia – e tornou-se voz ativa nos principais temas mundiais, como o aquecimento global e o comércio internacional, por exemplo. No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), o país vem sendo um dos responsáveis pelo até agora fracasso da chamada Rodada Doha de liberação comercial, ao não concordar com o fim das tarifas de importação para produtos industriais nas nações emergentes sem a contrapartida que considera adequada por parte das potências em termos de abertura econômica no setor agropecuário. Na opinião de Fuser, a longo prazo, a adoção dessa nova postura pelo Brasil, representada pelo voto contra o Irã, facilitaria a conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. A curto prazo, por outro lado, “o que se busca é mais espaço nos fóruns de decisão globais, ou seja, garantir a posição do Brasil como ator de primeiro escalão no cenário mundial. E, para isso, é válido imaginar que os responsáveis pela política externa brasileira prefiram se afastar de tomadas de posição destoantes da linha principal da chamada ‘governança’ dos assuntos mundiais. Se essa hipótese estiver correta, tornam-se improváveis, no atual governo, iniciativas como o apoio ativo ao presidente deposto Manuel Zelaya em Honduras ou à proposta de uma resolução da crise com o Irã em termos contrários ao ponto de vista de Washington. E não há dúvida de que essa orientação levada à prática pelo chanceler Antonio Patriota se aproxima muito mais do pensamento dos diplomatas brasileiros no seu conjunto do que a linha anterior, implementada por Celso Amorim”. Desde que o golpe contra Zelaya se concretizou, em junho de 2009, o Brasil liderou a condenação latino-americana ao novo governo. Contrariando o posicionamento dúbio dos Estados Unidos, a Organização dos Estados Americanos (OEA) chegou a expulsar Honduras. Em seguida, quando o

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Vaga permanente

estaria realmente se comprometendo com direitos Há anos uma obsessão brasileira, uma possíhumanos, mas tentando eliminar ruído num debavel vaga permanente no Conselho de Segurança da te público interno”. ONU vem, de certa forma, ditando alguns posicioA seletividade da condenação das violações dos namentos brasileiros no cenário internacional. O direitos humanos em um determinado país foi um ex-presidente Lula insistiu e ainda insiste na necesdos aspectos mais criticado por setores progressissidade de uma reforma na instituição, o que permitas. Em artigo recente, o escritor e frade dominicatiria que não apenas o Brasil, como também outras no Frei Betto questionou o que chama de dubiedade nações emergentes, fossem integradas como memde posição nessa questão. “Sou inteiramente a fabro permanente. vor de condenar violações de direitos humanos no Por outro lado, avalia-se que foi com vistas nesIrã. Porém, o Brasil não pode adotar posições dúbias sa possibilidade que o país aceitou liderar as tropas em sua política internacional. Se o governo Dilma militares da Missão das Nações Unidas para a Estapretende pautar sua política externa pelo tema dos bilização do Haiti (Minustah), criada em 2004 para direitos humanos, deve exigir da ONU investigar atuar no país caribenho após o golpe de Estado que o país que mais comete violações: os EUA. Usar a Avanços e recuos depôs o então presidente Jean-Bertrand Aristide. base naval de Guantánamo, em Cuba, como cárceO sociólogo Luis Fernando Novoa, pesquisaA Minustah é constantemente denunciada por re clandestino de supostos terroristas muçulmanos dor do Laboratório Estado, Trabalho, Território e organizações haitianão é violar os direitos humanos?”, criticou. Natureza (ETTERN) nas e setores da esquerLuis Fernando Novoa acredita que tal dubiedade do Instituto de PesPara Moniz Bandeira, o voto do Brasil da brasileira por graves será “inevitável”, pois ela não segue princípios abquisa e Planejamena favor do envio de um relator ao Irã é violações de direitos solutos, mas representa interesses econômicos em to Urbano e Regional um “fato isolado, circunstancial” humanos no país. Ela expansão. “No caso brasileiro, isso é nítido. As em(IPPUR/UFRJ), é ouestaria cumprindo mais presas brasileiras estão se expandindo fortemente tro que acredita que um papel de repressão à pobreza do que de estabino continente africano, há muitos interesses, e isso há mudanças na política externa do governo Dilma. lização de fato. Além disso, a missão é duramente significa controle de recursos naturais e de merca“Ela tem um mandato mais esquadrinhado, tanto criticada por supostamente legitimar o golpe contra do também no Oriente Médio. O Brasil tem presenem relação à estrutura de poder interno quanto à de Aristide apoiado, segundo denunciam ativistas haiça muito forte e precisa consolidar essa posição no poder internacional. Assim, precisa recuar naquilo tianos, por Estados Unidos e França. mundo. A política externa deixou de ser algo coque Lula pôde avançar”. Desse modo, acredita, tal A visita oficial do presidente estadunidense Balateral, algo suplementar. Passou a ser algo crucial, recuo se dá, em primeiro lugar, na relação com os rack Obama ao Brasil, ocorrida em março, estauma premissa para garantir o crescimento da ecoEstados Unidos e seu principal interesse internacioria fortemente relacionada à ambição brasileira a nomia brasileira”, defende. nal: o Oriente Médio. Como consequência, o que uma vaga permanente no Conselho de Segurança Lula conseguiu fazer, ou seja, a tentativa de acorda ONU, opina Novoa. “A posição em relação ao do Brasil-Turquia-Irã, “foi a maior causa do esfriaInteresses políticos Irã é decisiva nesse caso. A própria substituição do mento da relação do Brasil com os EUA. Dilma não Cristina Pecequilo explica que nas comissões da Celso Amorim não é descolada dessa decisão, destinha mais como sustentar essa jogada”, avalia. ONU, muitas vezes, os votos são usados para pressa mudança, dessa reversão”, avalia. “No governo Para além da mudança na política externa, o sionar os países com distinção. “Há uma pressão ao Lula, a posição brasileira de fazer uma intermediapaís estaria rompendo com uma tradição do ItamaIrã, que não é a mesma a Israel. Então, não há uma ção com relação à forma de se questionar as armas raty, acredita Novoa. “O Itamaraty sempre foi, apepostura realmente com relação aos direitos, e sim atômicas no Irã foi uma aposta muito ousada nasar de pragmático, voltado para os interesses naem relação à política”, pondera. Ela também acrequela época”. cionais. Agora, o pragmatismo é de um interesse dita que o Brasil passará a ser questionado por coiPois é esse diálogo com o Irã que pode ficar abanacional multilateral, que assume seu papel na essas que não era antes, pois, historicamente, o país lado, acreditam alguns dos analistas entrevistados. tabilização do capitalismo global”, afirma. procurou manter uma posição de equilíbrio, ao não “É um elemento de distanciamento. E pode gerar O realinhamento do Brasil internacionalmente adotar uma postura seletiva, prática comum na pouma perda de credibiteria relação, portanto, com uma conjugação dos lítica internacional. lidade frente ao Irã”, países emergentes com os desenvolvidos. “Os países Novamente, quem “O Itamaraty sempre foi, apesar de afirma Cristina Peceemergentes se colocam numa posição de colaboradiscorda dessas avapragmático, voltado para os interesses quilo. Já Moniz Banção, de complementariedade de poder. O que falta liações é o professor nacionais. Agora, o pragmatismo é de deira discorda. Para de legitimidade, de operacionalidade, os países chaMoniz Bandeira, que um interesse nacional multilateral”, ele, a posição do gomados Brics virão suplementar, mas sem alterar o não vê “nenhuma duacredita o sociólogo Luis Fernando Novoa. biedade na questão”, verno não irá afetar equilíbrio de forças. Isso fica muito claro com a soo diálogo com o país breposição do G20 ao G8, que não funciona mais. já que não foi o Brapersa, já que, na sua opinião, o Brasil não mudou Assim, o G20 vai reproduzir o mesmo conteúdo das sil que apresentou a proposta de envio de um relasua posição em relação ao direito do Irã desenvoldiretivas anteriores, mas com muito mais capacidator especial ao Irã: “apenas votou a favor”. Ele acrever a energia nuclear para fins pacíficos. de de implementação”. dita que se algum país apresentasse uma proposta O sociólogo acredita que a nova postura do Brade envio de um relator especial para Guantánamo, Posições dúbias sil pode influenciar na decisão sobre a vaga perpor exemplo, o Brasil igualmente apoiaria. “Mas neEmbora acredite que seja muito positivo o Bramanente ao Brasil no Conselho de Segurança da nhum país apresentará uma proposta nesse sentido, sil defender os direitos humanos, Pecequilo alerta ONU. “É assim que ele se gabarita a entrar para o pois Estados Unidos, França e Inglaterra, que têm para o fato de que o recente posicionamento brasiConselho de Segurança da ONU, não atuando ponassento permanente no Conselho de Segurança, não leiro possa não ter sido uma tomada de posição, mas tualmente aqui e ali, no Haiti, ou potencialmenpermitiriam a sua aprovação”. uma maneira de “limpar” a agenda, uma vez que o te no Oriente Médio ou na África, mas exercendo tema teria sido muito politizado no debate público um papel global, demonstrando capacidade, mainterno brasileiro no ano passado. “Temos que ver o turidade, como querem e esperam os países cenmotivo do voto, de que maneira isso foi politizado, trais, no sentido de acudir a comunidade interTatiana Merlino é jornalista. se não foi politizado de forma equivocada, se não nacional da melhor forma possível”, argumenta. tatianamerlino@carosamigos.com.br presidente deposto retornou ao país, o Brasil o abrigou por quatro meses na sede de sua embaixada na capital Tegucigalpa. Hoje, o Brasil não reconhece sequer o governo de Porfirio Lobo, que se elegeu em eleições organizadas pelos golpistas em novembro de 2009. Em relação ao tema, o governo Dilma exige a volta de Zelaya ao país centro-americano para conceder o reconhecimento, mesma posição do governo Lula, embora a nova presidenta, já no fim de 2009, tenha afirmado que o Brasil deveria restabelecer relações com Honduras, uma vez que Lobo havia sido eleito democraticamente.

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entrevista Celso Amorim

fotoS: Fabio Rodrigues Pozzebom - ABr

“O voto contra o Irã não é mudança na política externa”

O ex-ministro Celso Amorim diz que não teria votado a favor das investigações sobre direitos humanos no Irã.

Por Tatiana Merlino O voto do Brasil a favor das investigações sobre violações de direitos humanos no Irã não representa uma mudança na política externa brasileira, acredita o ex-ministro Celso Amorim. Em entrevista concedida por telefone, Amorim disse que, com os elementos que tinha no governo anterior, “talvez não tivesse votado dessa maneira, porque isso dificulta o esforço de persuasão para que o Irã melhore algumas políticas”, embora tenha reiterado que respeita a avaliação “que tem sido feita pelas pessoas que tiveram que pensar nisso no momento”. Em artigo publicado dias após o voto, ele disse que “esse tipo de relator sobre um país específico, do ponto de vista simbólico, representa o nível mais alto de questionamento sobre o estado dos direitos humanos”. www.carosamigos.com.br

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Durante a conversa com Caros Amigos, o exchanceler explicou que hoje, no mundo, apenas oito países são objeto de um relator especial. “Se formos olhar o número de países que viola direitos humanos no mundo – não digo nem os que violam de maneira ocasional, mas os que violam sistematicamente –, encontraremos, pelo menos, 40 ou 50. Então, é um processo altamente seletivo que tem a ver com objetivos políticos de potências. Essa era a avaliação do governo anterior”. Se por um lado ele acredita que não se pode minimizar a importância do voto, que “é sim um fato que tem uma consequência política”, por outro “tampouco se pode dramatizar demais. É preciso entender o que aconteceu. Nem é uma mudança na política externa nem é um fato politicamen-

te irrelevante, como outros procuraram mostrar”. Caros Amigos - O Brasil apoiou a resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que instituiu um relator especial para investigar a situação no Irã. O que isso significa? Celso Amorim - Eu já escrevi sobre isso e minha avaliação seria um pouco diferente, mas isso não quer dizer que haja uma mudança na política externa. Isso é uma avaliação de uma situação específica e do significado que tem um voto. Eu vejo a mídia brasileira querendo enfatizar que o presidente Lula não dava importância aos direitos humanos, e isso não é correto. Ele deu muita importância, mas dentro de uma concepção de

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integridade e indivisibilidade dos direitos humanos que inclui tanto o direito à liberdade, à livre expressão, à organização política, quanto o direito a viver sem miséria, sem guerra, porque quem está sofrendo de guerra, opressão e fome tampouco goza das outras liberdades. Não que uma seja mais importante que as outras, todas são igualmente importantes. Outro aspecto é que achamos que a política de diálogo é sempre mais favorável do que a política de confrontação, embora também tenhamos votado algumas condenações em alguns momentos, como a da Coreia do Norte e do Mianmar. Cada avaliação é feita num momento, de acordo com os elementos que quem está no governo tem naquele momento. Então, em relação ao Irã, minha avaliação pessoal talvez fosse outra, mas eu não tenho todos os elementos que o governo tem.

nos no mundo – não digo nem os que violam de maneira ocasional, mas os que violam sistematicamente –, encontraremos, pelo menos, 40 ou 50. Então, é um processo altamente seletivo que tem a ver com objetivos políticos de potências. Essa era a avaliação do governo anterior. Mas volto a dizer que cada momento é um momento. Estivemos envolvidos em outros esforços em relação ao Irã, que diz respeito à área nuclear. Isso, no momento, não está ocorrendo, então, as situações mudam. Nosso objetivo, entre outros, era consolidar a paz e evitar uma situação de guerra em que os direitos humanos acabam sendo pisoteados de maneira muito mais violenta. Basta ver o que aconteceu no Iraque, o que está acontecendo na Líbia. Essa é minha avaliação pessoal, mas respeito muito a avaliação que tem sido feita pelas pessoas que tiveram que pensar nisso no momento.

O senhor já disse que não acredita que tenha O senhor não votaria dessa maneira então? havido uma mudança na política externa. No Com os elementos que eu tinha no governo entanto, muitos analistas veem sinais de muanterior, eu acho que talvez não tivesse votado danças. dessa maneira porque, como já disse, isso difiVocê conhece a expresculta o esforço de persuasão em inglês “wishfull são para que o Irã melhore “A política de diálogo é sempre thinking” (Expressão que algumas políticas. Quando mais favorável do que a política significa considerar os se assume uma atitude de de confrontação”. desejos uma realidade e, condenação aberta, e pode como consequência, pasaté se justificar do ponto sar a agir com base em tais desejos). É o que a de vista moral, isso às vezes não é eficaz para obgrande parte da nossa mídia desejaria que ocorter os resultados práticos que está se procurando, resse, e eu não vou contribuir com nenhum coque é a melhora da vida das pessoas. A política, mentário para dar a impressão que isso, de fato, como já dizia Max Weber, é diferente da religião; está ocorrendo. Eu acho que tive uma avaliação o objetivo do santo é ir para o paraíso, e do polítiespecífica num determinado momento que diverco é obter resultados práticos. De preferência, mogiu da avaliação que foi feita pelas pessoas que esralmente válidos também, mas práticos, não apetão envolvidas nesse tema específico. Mas eu não nas teóricos. Mas volto a dizer que cada momento acho, de maneira alguma, que haja uma mudané um momento, que está sujeito a uma avaliação ça na política externa. Há sempre nuances, made fatores internos e internacionais, e eu não tetizes... nho condições de fazer a avaliação, porque eu não estou no governo neste momento. O Itamaraty tem uma tradição histórica de priorizar o diálogo. Tal voto não seria um romO senhor escreveu em um artigo na Carpimento com isso? ta Capital sobre o que isso representa diploÉ claro que o Itamaraty sempre foi um fator de maticamente. Gostaria que falasse um poualgum equilíbrio contra tendências muito radicais co sobre isso. que possam ter ocorrido, sobretudo na época do O que quis esclarecer foi, sobretudo, algumas governo militar, mas, mesmo assim, o Brasil que percepções que, a meu ver, não estavam corretas, hoje é contra qualquer tipo de bloqueio rompeu e que estavam sendo divulgadas. Primeiro, não relações com Cuba naquela época. Essa ideia de acho que seja uma mudança radical na política que há uma continuidade absoluta no Itamaraty externa como a mídia tem dito, até porque, volto também não é verdadeira, há nuances. O Santiaa dizer, direitos humanos fizeram, sim, parte da go Dantas, quando se absteve da resolução sobre nossa agenda, não só dos discursos, como tamCuba na Organização dos Estados Americanos, na bém das ações. Dizer que os direitos humanos esreunião de Punta Del Leste, em 1962, foi criticado tão no centro da agenda hoje e não estavam antes por muitos ex-chanceleres, então, nada de novo não é verdade, apenas é diferente a maneira que sobre o sol. achávamos que devíamos usar para alcançar esses objetivos. Em segundo lugar, não acho correO professor Marco Aurélio Garcia atribuiu o to dizer que o voto não era importante, porque o voto a uma maior preocupação da presidenta Brasil também recebe relatores, porque uma coisa com os direitos humanos... é um relator temático que o Brasil e outros países Não vou comentar declarações do Marco Aurecebem efetivamente, outra é um relator esperélio Garcia, que é meu amigo, meu companheicial criado para o país. Só existem oito países que ro de governo. Cada um tem a sua percepção. Eu estão objeto de um relator especial, e, se formos acho que a nossa preocupação com direitos huolhar o número de países que viola direitos huma-

manos sempre foi muito forte. Não vou nem falar sobre o ex-presidente Lula, mas sobre mim. Durante o governo militar, eu presidi a Embrafilme, e saí dela porque autorizei o financiamento de um filme que tratava do problema da tortura no governo militar. Então, não estou disposto a receber críticas sobre a minha visão do tema de direitos humanos. Mas acho que temos que ser práticos e encontrar soluções para os problemas. E direitos humanos são uma coisa complexa. Se eu pudesse resumi-los com uma palavra, eu diria “dignidade”, porque ela é indivisível, pois inclui o direito à comida, saúde, liberdade, organização política e vários outros. E acho que governo Lula contribuiu muito para isso, não procurando ser seletivo. Se fossemos ter relações só com países que respeitam plenamente os direitos humanos, nós teríamos muito poucas relações no mundo – inclusive, algumas das famosas democracias do mundo fazem restrições aos imigrantes, expulsam ciganos, torturam prisioneiros suspeitos de serem terroristas. Então, as coisas são um pouco mais relativas, e, por outro lado, achamos que uma postura de diálogo contribui, como contribuiu para liberar aquela francesa, Clotilde Reiss, como contribuiu para que a Sakineh não fosse apedrejada. Você vê agora na Líbia... não estou defendendo o Kadafi, mas, se você vai defender os direitos humanos através de bombardeios que acabam atingindo civis ou que, digamos, radicalizam a posição do próprio governo, a situação vai se agravar. É com isso que acho que a gente tem que tomar cuidado: a política de direitos humanos tem que ser integral, tem que ver a fome, a pobreza, a liberdade, o direito de expressão, de organização política. É um todo, não pode escolher só uma parte. Ninguém está se incomodando com as pessoas que estão morrendo de fome ou de miséria no Guiné Bissau. Não vejo um artigo no O Estado de S. Paulo dizendo que a gente tem que agir, ou que as pessoas estão morrendo de fome, muitas vezes por culpa até das ações das antigas potências coloniais. Não vejo isso. Então, acho que essa que é a questão. O Brasil está adotando posições dúbias em sua política externa? Eu defendi a posição que o Brasil tomou na votação sobre a Líbia, por exemplo. No Conselho de Segurança da ONU, a abstenção tem quase o efeito de um voto negativo, a não ser que seja um membro permanente, porque aí tem veto. Não sendo um membro permanente, é o mesmo efeito, e, se mais dois países tivessem se abstido, a resolução sobre a Líbia não teria passado. Defendi também a adoção de sanções contra o governo Kadafi, porque achei que, naquele momento, era preciso mandar um sinal. Concordei com a votação do Brasil de se abster no caso da zona de exclusão aérea e do chamado uso de todos os meios necessários – ou seja, uso da força – para a proteção de civis porque a consequência é essa que estamos vendo. Está aumentando a matança de lado a lado. Não estou dizendo que os aviões americanos ou britânicos ou franceses visaram as

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populações civis, mas é inevitável... acertaram o Parlamento... O próprio representante do Vaticano disse que 40 pessoas foram mortas, mas a mídia ocidental não fala disso. O senhor comentou no artigo da Carta Capital que se há um voto contra o Irã, também teria que se discutir a questão dos direitos humanos em Guantánamo e dos imigrantes na Europa. Há oito países hoje que tem um relator especial. Para se ter uma ideia – e não é que eu vá falar mal de Cuba, pois você sabe da nossa amizade –, Cuba, que é tão atacada pelos Estados Unidos, não tem um relator especial. A China, que é a toda hora atacada pelos EUA, não tem um relator especial. A Arábia Saudita tampouco. Não estou dizendo que deveria ter. Obviamente, os Estados Unidos, com Guantánamo, muito menos, nem pensar. Os países que têm relatores especiais são países que possuem um Estado praticamente falido, que saíram de situações extremas, ou os que realmente não querem sequer ter um diálogo com o Alto Comissário de Direitos Humanos, como é o caso da Coreia do Norte, que se recusou a dialogar. A nossa mídia não noticia isso, infelizmente, mas o Brasil votou, sim, a favor da resolução porque a Coreia do Norte não respondeu a nenhuma das perguntas que tinham sido feitas, o que é diferente do caso do Irã. Não estou dizendo que a situação lá é boa, mas o Irã, inclusive, convidou há uns seis meses a Alta Comissária de Direitos Humanos a visitar o país. E eu acho que ela errou em não visitar, porque isso contribuiria para melhorar a situação. Não há países que sejam minimamente estruturados que tenham um relator especial. Não se pode minimizar a importância disso: é, sim, um fato que tem uma consequência política. Por outro lado, tampouco se pode dramatizar demais. É preciso entender o que aconteceu. Nem é uma mudança na política externa nem é um fato politicamente irrelevante, como outros procuraram mostrar.

Irã. Nosso objetivo não é colocar um diploma na parede, dizendo: “eu condenei”. O nosso objetivo é colocar, talvez, um diploma na parede dizendo “eu ajudei a melhorar”. É isso que a nossa mídia não vê, porque tem motivações políticas, porque quer que a gente siga só a política que é traçada por outros países. Veja o que aconteceu nos países árabes. Hoje, a própria imprensa chama Mubarak de ditador, mas, antes, nos Estados Unidos, Mubarak era citado como um exemplo de líder árabe moderado. Então, as coisas são relativas. A política é o domínio do relativo, o domínio do absoluto é a religião. Na política, a gente visa objetivos, fundados na moral, mas que têm que ser buscados por meios políticos e não por condenações religiosas, expurgos, isolamentos.

conosco no esforço de mediação. O Irã não pode desprezar o que os países podem fazer, então, não fechou as portas em definitivo. Essas coisas dramáticas são muito do gosto da mídia, sobretudo da mídia que gosta de simplificar para fingir que é tudo preto no branco, para mostrar que tem um lado bom e um lado mau. O mundo é muito mais complexo do que isso. Não posso dizer que as portas estão fechadas nem nada disso. Nós fizemos esse esforço, é claro que somos a favor da paz, queremos resolver os problemas de maneira pacífica e pela negociação, mas também porque nos foi pedido. Como não sei se vai voltar a ser pedido, a questão talvez nunca se coloque. Nos oito anos do governo Lula, o Brasil se consolidou com uma posição de liderança dos países do sul, como a atuação na OMC e no G8. O senhor acha que esse voto pode afetar a relação com tais nações? Não, não exageremos. Para falar a verdade, isso é um grande assunto no Brasil. No resto do mundo, isso passou quase despercebido. Menos, obviamente, no Irã.

O senhor como analista, não acha que se o Brasil condena o Irã, também deveria condenar... Eu acho que tem que entender os mecanismos. O problema não é condenar ou não condenar. O problema é criar mecanismos que permitam tratar dos temas. E achamos que, por exemplo, esse mecanismo de revisão O senhor acha que universal permitiu que o “Nem é uma mudança na as revoltas no mundo Brasil e outros países fipolítica externa nem é um fato árabe vão representar zessem muitas sugestões politicamente irrelevante”. uma grande transforconcretas ao Irã, que pomação na geopolítica deriam ser objeto depois do Oriente Médio? de uma continuação da conversa através de relaSem a menor dúvida, não só a política do tores temáticos ou de uma visita do Alto ComisOriente Médio, mas do mundo. O problema mais sário. Acho que dois males não criam um bem. grave do mundo, o mais provável de levar a um Não acho que condenar simplesmente os Estados conflito maior, é a questão do Oriente Médio. Unidos resolveria algo ou melhoraria a situação Acho que as mudanças vão ter um efeito deterdo pessoal de Guantánamo. Faria os Estados Uniminante na correlação de forças e na orientação dos ficarem mais contra a ONU, como muitas vedos atores por lá. E como essa questão da Líbia zes já são. Então, não é por aí. Tem que entenestá nas manchetes, não se está prestando tander os mecanismos e saber como agir. Eu acho ta atenção na evolução que é a mais importante, que com o diálogo é que se pode chegar a algumais determinante, que é a do Egito, um país que ma coisa. Claro que o diálogo não quer dizer que tem 80 milhões de habitantes, uma sociedade plunão haja crítica, e nós fizemos críticas. Achamos ral, apesar das desigualdades. O que vai ser funque essas condenações não levam a nada. Há sidamental na região será a evolução do Egito. É aí tuações absolutamente extremas em que se tem Uma das críticas que tem sido feitas é que o que o Brasil e outros países da América do Sul poque recorrer às condenações, porque o país se reBrasil estaria adotando uma posição de condedem ajudar. Nós passamos por transições que não cusa a qualquer tipo de diálogo, como ocorreu renação seletiva, porque, se o Irã é condenado, desão iguais – não temos elementos de fundamentacentemente com a Coreia do Norte, mas não foi o veriam ser condenados também os Estados Unilismo e outros aspectos que existem ou existiram caso do Irã, que, bem ou mal, estava dialogando, dos e as violações que ocorrem na Europa. lá –, mas tivemos também problemas de transitinha até convidado a Alta Comissária, e não sei Desde o governo Fernando Henrique, mas ção de governo militar para civil, de como lidar porque ela não foi. muito reforçado no governo Lula, o Brasil defencom forças de segurança, criação de mecanismos deu, para evitar esse problema da seletividade, de democracia. Nessas coisas, o Brasil pode ser O senhor acha que o voto que houvesse um mecanisAcho que o Conselho de Direitos Humanos pode complicar a intermemo universal que se chama “A ideia de que há continui- diação do Brasil com o Irã? útil. deve fazer uma abordagem não seletiva do proRevisão Periódica Universal, dade absoluta no Itamaraty blema dos direitos humanos na sua integralidaA história dirá. Eu estou e trata da situação de direinão é verdadeira”. de. Isso é que eu acho que ele tem que fazer. E o longe, sei que o Irã convidou tos humanos. Isso existe, e o Irã tinha convidado a Alta Comissária de Direialguns jornalistas brasileiros Brasil foi um dos primeiros a tos Humanos que, inexplicavelmente, não foi ao para irem lá, eu li uma matéria, mas acho que o Irã se submeter a essa revisão. Cuba já se submeteu, país – coisa que provavelmente a nossa presidennão está procurando exagerar o valor do episódio. o Irã se submeteu, a Coreia do Norte se submeteu, ta sequer saiba, pois são detalhes –. Isso sim é imFicou decepcionado etc., mas não quer exagerar o mas não respondeu, como eu lhe contei. Os Estaportante. Não vamos dramatizar demais. valor do episódio porque sabe que está isolado indos Unidos se submeteram, então, isso é uma coiternacionalmente e não pode desprezar os amigos sa que vale para todos. Mas a situação que existe – digo “amigos” no bom sentido, de pessoas que hoje em relação ao Irã, eu repito, só existe em requeiram promover o diálogo, como o caso da Turlação a oito países e isso não me parece produtivo quia, que é um país da Otan, um país que esteve para melhorar a situação dos direitos humanos no Tatiana Merlino é jornalista. www.carosamigos.com.br

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Brasil

As novas táticas

da repressão política

ilustrações: gilberto DE breyne

Além de utilizar a polícia para perseguir os lutadores sociais, agora, além da violência direta, os poderes do Estado movem processos jurídicos para intimidar os ativistas.

Por Lúcia Rodrigues A ditadura militar acabou, mas alguns resquícios desse passado sombrio nunca foram enterrados e teimam em se perpetuar como verdadeiros fantasmas que pairam sobre as cabeças daqueles que resistem e não se curvam diante das imposições dos donos do poder. A perseguição aos que ousam se levantar contra as injustiças sociais neste país continua regra. E a criminalização da luta dos ativistas do campo e da cidade, uma constante. Apesar das torturas e dos assassinatos não terem deixado de ocorrer, principalmente nos rincões mais afastados deste país e nas periferias das grandes cidades, a repressão inovou em seu modo de agir. Sofisticou o discurso, para transmitir um ar de legalidade às ações. Se durante os anos de chumbo, o Estado prendia, torturava e assassinava, pura e simplesmen-

te, sem se preocupar com as consequências de seus atos, na democracia formal lança mão de recursos mais refinados para alcançar seus objetivos. Agora, lideranças populares do campo e da cidade são obrigadas a conviver também com o medo da punição legal. Uma avalanche de processos é impetrada todos os dias contra ativistas populares de norte a sul do país. Em muitos casos, o aparato processual resulta na prisão dessas lideranças. Esse foi o verniz encontrado para revestir e encobrir as verdadeiras intenções da criminalização dos movimentos sociais. A aversão a qualquer forma de mudança, que faça pender a balança para o lado dos mais pobres, é vista como uma ameaça real e movimenta a força motriz dessa engrenagem que envolve os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, a mídia,

o aparato militar e as forças policiais a serviço do poder econômico. Peça decisiva nesse cenário, “o sistema judiciário penal sempre foi utilizado para controlar a população indesejada pela classe dominante”. A afirmação não é de nenhum ativista que milita em organizações populares, mas de um juiz de direito.

Justiça tem lado

Rubens Roberto Rebello Casara conhece por dentro o Judiciário brasileiro. É juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Magistrado de uma nova safra de juízes sabe que a Justiça não é cega, surda e tão pouco muda, mas que tem lado, e é o do mais forte. “Não há neutralidade no Poder Judiciário. Todo mundo julga a partir de valores, de uma visão de

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mundo. E há uma tradição autoritária, que condiciona a maneira como os processos são analisados. Determinadas causas são rápidas, outras não”, ressalta Casara. “O Poder Judiciário tem a função histórica de manter o status quo. A criminalização dos movimentos sociais tem esse objetivo, quer evitar que o movimento produza mudanças. É uma proposta conservadora de sociedade”, enfatiza. O juiz, integrante do Conselho Executivo da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), explica que as lideranças dos movimentos sociais que pressionam por mudanças são vistas pelos poderosos como essa população indesejada que precisa ser combatida. “A classe dominante quer manter as coisas do jeito que estão. Por isso, trata problemas sociais como casos de polícia. Desqualifica os movimentos, descontextualiza seus protestos, retira a dimensão social e a motivação coletiva e trata como se fossem atos individuais, que precisam ser punidos pelo Estado”, frisa. Mas a criminalização não ocorre somente contra as lideranças populares. Quem se coloca na defesa dessas pessoas e no resguardo da população mais empobrecida também sente na pele o peso da perseguição. Por incrível que pareça, o juiz Casara é uma dessas vítimas. Por ter se manifestado contra a forma como foram realizadas as incursões militares, no final do ano passado no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, ele foi acionado pelo Ministério Público, que o colocou sob suspeição para julgar ações referentes a essa comunidade carioca. “A coisa mais revolucionária que eu disse, é que não se combate ilegalidade com ilegalidade. É impossível se querer combater ilegalidade, com atos ilegais. A atitude (do promotor) foi uma tentativa de controle ideológico”, afirma. O imbróglio jurídico está feito. Se for declarada sua suspeição, os processos sobre o caso, julgados por ele e que já terminaram, podem ser declarados nulos, porque faltaria imparcialidade e terão de ser reabertos, apesar de terem sido concluídos com a concordância do próprio Ministério Público.

Dossiês da criminalização

Recentemente, foram divulgados dois dossiês relatando as perseguições às quais ativistas de movimentos sociais estão expostos cotidianamente. O enfoque dos documentos se concentra nas lutas que acontecem em áreas rurais e indígenas. O relatório Conflitos no Campo 2010, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela a repressão a que os ativistas que atuam em defesa da reforma agrária são submetidos. Os dados apontam a morte de 34 trabalhadores rurais no período. O número é 30% superior ao registrado no ano anterior. O número de conflitos rurais também cresceu em relação a 2009. O Nordeste lidera a lista. Bahia, Maranhão, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte são os Estados que registraram o maior índice de conflitos. O documento da CPT revela, ainda, que a perseguição aos que lutam por água ganhou destaque no período. O número de conflitos saltou 93,3% www.carosamigos.com.br

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em relação ao ano anterior. vadidas pela Cutrale, talvez seja um dos casos mais Já o dossiê apresentado pela rede Processo de emblemáticos de como a luta social é criminalizada Articulação e Diálogo, que reúne agências ecumênipelos empresários das comunicações. cas do mundo e entidades brasileiras, além de destaA Rede Globo deu o pontapé inicial no massacar o desrespeito aos direitos humanos, ressalta que cre, que foi replicado nos demais veículos da grande há um processo de judicialização dos ataques aos mídia. Como sempre, a concessão dos Marinho, obativistas. De acordo com a publicação, a criminaliteve informações privilegiadas para chegar ao local zação desses lutadores ocorre devido à força que os antes, e dar a sua versão, que rapidamente se transsetores conservadores exercem na sociedade. formou na “versão oficial” dos fatos. “A atuação e busca por transformações de nossa A imagem da derrubada do laranjal por tratores, sociedade ferem o interesse de grandes empresas, do cedida pela polícia e transmitida em horário nobre latifúndio e de setores conservadores da sociedade no Jornal Nacional, foi a senha para instigar o ódio que desejam manter as estruturas desiguais e discrida sociedade contra os sem terra. Em nenhum mominatórias”, ressalta trecho do documento. mento foi informado quem na realidade era o invaA reportagem da Caros Amigos consultou disor. A empresa de sucos Cutrale, invasora das terras rigentes de vários movimentos sociais para saber pertencentes à União, saiu ilesa na versão global. quantos ativistas sofrem os efeitos da criminalizaA Venus platinada preferiu omitir isso do telesção de sua luta hoje, no país, mas as organizações pectador e tratar os sem terra como terroristas innão têm uma contabilivasores de uma prozação centralizada que “A classe dominante quer manter as priedade privada. A permita se chegar a um veiculada coisas do jeito que estão. Por isso, tra- mensagem número preciso. Satransformou as vítita problemas sociais, como casos de mas, em perigosos elebe-se, no entanto, que polícia”, frisa o juiz Rubens Casara há inúmeros casos em mentos que não têm liprocesso. mites para por abaixo, A advogada do Movimento dos Trabalhadores inclusive, plantações que poderiam matar a fome Rurais Sem Terra (MST), Giane Álvares, explica que dos brasileiros. é frequente, por exemplo, que um mesmo ativista “Cada vez mais a sociedade moderna utiliza os seja réu em vários processos. Essa constatação é remeios de comunicação contra os movimentos, para plicada para outros movimentos sociais. produzir consensos e justificar processos violentos Só no Estado de São Paulo estão em curso aprocontra a luta dos trabalhadores”, ressalta Gilmar ximadamente 50 processos contra militantes do Mauro, dirigente nacional do MST. MST. O maior número de processos contra esses miEle destaca, no entanto, que essa forma de crilitantes se concentra principalmente nas regiões do minalização não é nova. “Os quilombolas rebelaPontal do Paranapanema e de Iaras. O Rio Grande dos contra a escravidão eram tratados pelo Estadão do Sul, Paraná, Pernambuco e Pará são os Estados (jornal O Estado de S. Paulo) no século 19, como com o maior índice de processos criminais contra bandidos, ladrões e causadores de problemas para a os militantes sem terra. sociedade. Assim justificavam as ações policias de Paralelamente à criminalização jurídica, há a reperseguição e morte dessas pessoas”, revela. pressão violenta contra os líderes camponeses. “A “A farsa montada pela Rede Globo no caso violência, hoje, não é mais exercida para atemorizar Cutrale serviu para criminalizar o nosso movimenos trabalhadores do campo, mas para executar suas to”, enfatiza Gilmar. Várias prisões foram efetuadas lideranças e impedir sua organização.” Giane explipara dar o exemplo de como se tratam trabalhadoca que há também uma orquestração para deslegires sem terras que se insurgem contra a injustiça sotimar a luta social do MST. “Isso é feito pelo Miniscial. Excepcionalmente, o processo foi estancado no tério Público, pela mídia, pelos agentes políticos.” Tribunal de Justiça de São Paulo. O acórdão proferiEla cita as três comissões parlamentares de inquédo, além revogar as 19 prisões preventivas, declarou rito que foram abertas no Congresso Nacional para a inépcia da denúncia e anulou o processo. investigar o Movimento. “O Ministério Público Federal quis fechar o curBatalhas judiciais so de Direito para estudantes de assentamentos. E o Mas, apesar de os advogados do Movimento teMinistério Público Estadual do Rio Grande do Sul rem conseguido vencer importantes batalhas judimontou uma estratégia para dissolver acampamenciais, a balança pende desfavoravelmente para o tos e fechar escolas em áreas do MST, acusando o lado da luta. Talvez o massacre de Eldorado dos movimento de terrorismo e dizendo que as escoCarajás, que completou 15 anos no dia 17 de abril, las estavam subordinadas às Farc (Forças Armadas seja o exemplo mais cabal disso. Revolucionárias da Colômbia).” Ela destaca, ainda, No episódio, 19 sem terra foram brutalmente os processos que tramitam em Carazinho, no Rio chacinados pela Polícia Militar paraense, quando Grande do Sul, contra seis militantes sem terra com protestavam por um pedaço de chão. Apesar disbase na Lei de Segurança Nacional. so, nenhum responsável foi punido. Os dois únicos condenados, o coronel Mario Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, continuBombardeio midiático am soltos. A mídia cumpre papel de destaque nessa orquesA luta por reforma agrária está longe de ter um tração contra os movimentos sociais. O tratamenfinal feliz. O bispo emérito de Goiás e conselheiro to que foi dado à ocupação das terras da União, inmaio 2011

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da CPT, Dom Tomás Balduíno, tece duras críticas à postura da presidente da República. “A Dilma não abriu a boca na campanha para falar de reforma agrária. E não foi por falta de conhecimento, mas por opção política. O posicionamento do governo é de defesa do agronegócio, da construção das hidrelétricas, do financiamento às grandes empresas. Aqui, em Goiás, a monocultura da cana tem uma série de subsídios. Compare isso com o que recebe a reforma agrária”, indaga. O dirigente do MST também é pessimista em relação ao tratamento que a questão terá no governo federal. “A Dilma não emitiu opinião em relação à reforma agrária na eleição. Não falou nada na posse, não falou nada depois da posse. Sinal de que a reforma agrária não está na ordem do dia. Mas o grande capital está, e ganhando muito dinheiro”, alfineta.

Moradia popular

A batalha por um teto nas grandes cidades também está a anos luz de ter uma solução. A estimativa de especialistas da área é de que o déficit habitacional no país gire em torno de oito milhões de moradias. Por isso mesmo, a criminalização contra quem pressiona por acesso a esse direito tem sido reprimida de forma contundente. A presença da Polícia Militar e das guardas municipais na repressão em despejos de trabalhadores sem teto que ocupam prédios vazios é uma constante. Paralelamente à violência direta dirigida pelas forças repressivas, avança uma onda de processos contra os líderes do movimento. Vale tudo para silenciar quem se levanta contra a injustiça social. Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, dirigente da Central de Movimentos Populares (CMP), foi perseguido durante oito anos por um crime que não cometeu. Ele era acusado de ter assassinado um homem em uma das ocupações que liderava na capital paulista. Inocentado, recentemente, por unanimidade em tribunal de júri popular, em que até o promotor pe-

diu sua absolvição, o líder popular pretende processar o Estado. Gegê teve de amargar 51 dias de prisão, enfrentou duas rebeliões nos Centros de Detenção Provisória por onde passou, além de uma tentativa de fuga de presos na delegacia onde também ficou detido. “Não perdoarei o Estado jamais. Foram oito anos de sofrimento, momentos que ficarão marcados na minha história e jamais se apagarão”, enfatiza. O advogado Benedito Roberto Barbosa, o Dito, dirigente da Central de Movimentos Populares e membro do comitê Lutar Não é Crime, movimento que lutava pela absolvição de Gegê, considera que o apoio recebido de vários setores da sociedade, inclusive, do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que foi uma de suas testemunhas, contribuiu para sua absolvição. Ele conta que o promotor do caso, Roberto Tardelli, foi se convencendo da inocência de Gegê ao longo do julgamento. “Ele declarou que estava convicto de que o Gegê liderava uma quadrilha, um bando armado, para intimidar as pessoas nas ocupações, mas foi convencido durante o julgamento de que ele não era nada disso.” Dito se preocupa, no entanto, com os vários militantes que estão longe dos grandes centros urbanos e não têm a oportunidade de divulgar a perseguição que sofrem. “Quantos companheiros estão sendo criminalizados neste momento por esse Brasil afora”, questiona apreensivo. A população indígena é uma das que tem maior dificuldade em denunciar a violência sofrida. O agronegócio continua inimigo feroz da demarcação das terras indígenas, mas os fazendeiros reciclaram a estratégia de ação. Agora ao invés de jagunços, contratam seguranças armados para atuar na repressão aos índios e às lideranças campesinas. O secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, revela que o novo método empregado torna mais difícil a responsabilização pela violência empregada. O termo segurança confere um ar de legalidade à repressão empreendida contra os indígenas. “O Cimi publica, anualmente, um relatório sobre violência. O crime de pistolagem é perene. Antes as fazendas tinham pistoleiros, agora contratam seguranças. Era mais fácil denunciar os pistoleiros, porque eram rotulados negativamente, hoje os seguranças são pistoleiros disfarçados e os crimes caem na impunidade.” Ele ressalta que a população indígena ao se revoltar contra a violência que resulta em assassinatos acaba sendo punida judicialmente. Em um desses protestos, os indígenas acabaram quebrando alguns objetos de uma fazenda. Vários deles foram presos e condenados. O crime contra a vida não é punido, mas insurgências contra o patrimônio, sim.

Meio Ambiente

A criminalização da luta dos que atuam contra os megaprojetos é uma das formas de repressão mais recente que está em marcha no país. A batalha para barrar a construção das usinas hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, e Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, que contam com recursos do Progra-

ma de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, está longe de se sagrar vitoriosa, apesar do impacto desastroso provocado sobre as comunidades ribeirinhas e indígenas vizinhas às obras. Nem mesmo um reforço de peso, capitaneado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que solicitou ao governo brasileiro a paralisação das obras na hidrelétrica de Belo Monte até que se faça uma discussão com os atingidos, foi capaz de sensibilizar o Executivo federal. O governo preferiu atacar a postura da Corte Internacional classificando-a como uma ingerência em assuntos internos ao invés de atender as reivindicações da população atingida pela barragem. Além do apoio da OEA, os ribeirinhos e indígenas vizinhos a Belo Monte tem contado também com a intervenção favorável do Ministério Público Federal no Estado, que já impetrou várias ações na Justiça para suspender o empreendimento, embora nenhuma delas tenha sido julgada. O militante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Ricardo Luiz Montagner, afirma que há um padrão no modo de agir na repressão contra os que se levantam contra a construção de hidrelétricas no Brasil. “O ataque contra os militantes contrários às hidrelétricas é uma ação mais qualificada e selecionada. Os consórcios (empreiteiras) intimidam, negam direitos, dizem que as pessoas não têm direito e que têm de aceitar o que está sendo proposto.” Ele considera que essa estratégia é utilizada para baratear o custo da obra. “Não vão cortar no cimento, no concreto, na parte de engenharia, porque aí compromete o projeto. Agora, cortando direitos, não dando o tratamento adequado na parte social e ambiental, aí baixa o custo.” Montagner integrou, recentemente, uma comissão que foi a Alemanha, Suíça e Noruega o processo de criminalização que os ativistas sociais sofrem no Brasil. “É um processo contínuo, com prisões, difamações, processos. A grande imprensa tenta deslegitimar nossa organização. Acusa de formação de quadrilha, de perturbar a ordem pública.”

Passe Livre

Os protestos contra o reajuste no preço da tarifa de ônibus se converteram nesta década em um dos principais focos da resistência popular nas cidades. Daí a forma como o aparato repressivo tem reagido contra esses manifestantes. O ataque mais recente aconteceu na capital paulista. A contundência da ação das forças repressivas relembrou a forma de agir dos agentes da ditadura militar. O assistente social Vinícius Boim foi brutalmente espancado por policiais militares e guardas municipais em frente à sede da Prefeitura de São Paulo, no dia 17 de fevereiro, quando participava do protesto que terminou com a repressão policial. Ele teve o nariz fraturado por um chute de coturno, após ter sido derrubado no chão e imobilizado pelas forças repressivas. O crime cometido? Exercer o direito previsto na Constituição Federal de se manifestar livremente contra o que considera um abuso do Executivo

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municipal. Mas o tratamento despendido contra o militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e funcionário da Prefeitura foi exemplar e reflete bem como o Estado lida com a contestação a suas determinações. Vinícius foi submetido a uma cirurgia para reparar os cinco pontos de fratura que sofreu no nariz. Além disso, ainda responde a processo criminal, aberto pela PM, por desacato, resistência à prisão, desordem pública, quebra de patrimônio e agressão a policiais. Ele também chegou a ser acusado, por meio de um e-mail anônimo, de estar no protesto durante horário de expediente de trabalho. A mentira, no entanto, foi rechaçada pela chefia e a investigação administrativa não prosseguiu. “Teve uma denúncia questionando minha participação no ato. Houve um comunicado da Secretaria pedindo para averiguar isso, mas minha chefe respondeu que eu tinha feito, inclusive, hora extra nesse dia. O caso não foi adiante, porque eu estava dentro da legalidade”, destaca. O funcionário público municipal reclama que no processo que deveria averiguar a conduta dos policiais que o agrediram, é ele quem é o alvo das investigações. “As perguntas do capitão se referiam a minha conduta e não a dos policiais.” O assistente social teve de prestar seu depoimento em um Batalhão da Polícia Militar.

DNA de luta

A repressão ao Movimento Passe Livre começou na primeira metade da década em Santa Catarina. O então estudante de história Marcelo Pomar foi um dos precursores dos protestos que se espalharam como rastilho de pólvora para várias cidades brasileiras. Pomar liderou as revoltas da catraca contra o reajuste no preço das passagens dos ônibus nos anos de 2004 e 2005, em Florianópolis. Os protestos levaram milhares de pessoas às ruas e obrigaram a Prefeitura da capital catarinense a recuar no aumento que já havia sido expedido. O ativista tem DNA de luta. É bisneto do dirigente comunista Pedro Pomar, assassinado pelo Exército em dezembro de 1976, no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa. Sua preponderância à frente das manifestações contra o reajuste da tarifa lhe rendeu a ira dos donos do poder. Ele foi ameaçado de morte, preso três vezes e respondeu a sete processos criminais. Em uma dessas prisões, Pomar chegou a ser capturado por um grupo de homens à paisana. O que contribuiu para a garantia de sua integridade física foi o fato do repórter de uma rádio catarinense, que já o havia entrevistado, ter notado a movimentação estranha do grupo. O jornalista acionou imediatamente a emissora e noticiou o que estava acontecendo ao vivo. A notícia preservou Pomar de consequências mais drásticas. Ele acabou sendo levado para o 4º Batalhão da Polícia Militar de Florianópolis, onde foi agredido verbalmente. “Provocaram, xingaram de tudo quanto é coisa, xingaram mãe, pai, família”, revela. Antes de prendê-lo, os homens que o levaram deram uma chave de braço para imobilizá-lo. www.carosamigos.com.br

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Seus agressores não sofreram nenhum tipo de punição, mas Pomar teve de se defender dos sete processos que foram abertos contra ele. O ativista contou o apoio da OAB de Santa Catarina e de um advogado famoso no Estado. Não foi condenado em nenhum dos processos. Mas nem ele, nem o MPL teriam condições de custear a defesa, se não fosse a solidariedade recebida. Ele considera que a criminalização dos manifestantes do Movimento Passe Livre se dá, porque a luta em torno do transporte público se transformou em um eixo central na discussão sobre o direito à cidade. Ainda de acordo com o militante, dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que há no país 37 milhões de brasileiros impedidos de se locomover por meio de transporte público, porque não podem pagar o preço que é cobrado na tarifa.

Universidade

As lideranças estudantis e sindicais que militam nas universidades brasileiras também têm tido suas lutas criminalizadas. O caso mais emblemático de perseguição registrado contra organizadores de protestos na academia é o da Universidade de São Paulo (USP), a maior e mais importante instituição de ensino superior do país. Na segunda metade da década ocorreu uma onda de ocupações de reitorias em diversas universidades do país. Os estudantes protestavam basicamente contra medidas autoritárias adotadas pelos reitores. No caso específico da USP, a insatisfação foi além dos muros acadêmicos. O corpo discente lutava para barrar os decretos assinados pelo então governador do Estado, José Serra (PSDB), que atacavam a autonomia financeira das três universidades públicas paulistas (além da USP, Unicamp e Unesp). Durante quase dois meses, centenas de estudantes se revezaram para manter a reitoria sob controle e pressionar o governador Serra a recuar na decisão. O Executivo ameaçou com a invasão da Tropa de Choque da PM, que só não foi colocada em prática devido às condições geográficas do prédio, que poderiam resultar em um banho de sangue. Mas mais do que a preocupação com a garantia da integridade física dos manifestantes, pesou na decisão do go-

verno o desgaste político que repercussão de um ato dessa envergadura poderia ter. Os estudantes continuaram acampados e o governador foi obrigado a recuar para por fim ao impasse. Restabelecida a rotina na Universidade, vieram as retaliações: uma enxurrada de processos contra os líderes do movimento, apesar de ter sido acordado que não ocorreriam perseguições. Até hoje, oito estudantes respondem às acusações. Quatro destes já se formaram. Mas ao contrário do que se poderia supor, as investigações não foram encerradas. A punição em que esses estudantes estão enquadrados prevê a eliminação definitiva dos quadros da Universidade. Medida aparentemente sem sentido para quem já se formou, mas que no fundo carrega um forte componente maquiavélico. A postura adotada pela reitoria da USP está calcada em uma legislação do período ditatorial: o decreto 52.906, de 27 de março de 1972, elaborado sob a égide do AI-5 (Ato Institucional), um dos mais contundentes instrumentos do regime militar, que ainda dá o tom para punições disciplinares na mais conceituada universidade brasileira.

Moral e bons costumes

Esse entulho autoritário não foi varrido, apesar de o estatuto e o regimento da USP terem sido reformados após a ditadura, e dá a brecha para que instrumentos jurídicos mantenham significância fora de seu tempo. O decreto trata, por exemplo, do combate a atentados à moral e aos bons costumes, proíbe greves e manifestações políticas. É rico em penduricalhos autoritários que não fariam nenhum sentido em uma universidade democrática. Não fariam, mas fazem. Na prática esse instrumento jurídico pode impedir o retorno de estudantes indesejados à Universidade. A ex-estudante de Ciências Sociais Maria Fernanda Pinto, a Mafê, é uma das que pode ter a vida acadêmica estancada em função de sua atuação destacada na ocupação da reitoria em 2007. Mafê se formou em 2008, um ano após os protestos e neste ano pretende disputar uma vaga no mestrado do curso de História Social para ingressar na pós-graduação da USP no segundo

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Durante a greve de 2010, estudantes moradores do semestre. Mas o regime disciplinar uspiano pode Crusp buscaram alimentos no bandejão (restaurante impedi-la de voltar a estudar na Universidade. universitário) para cozinhar. É praxe repassar a esSe for condenada no processo movido pela reises estudantes, em períodos de paralisação de funtoria, corre o risco de ser impedida de cursar as aucionários, os alimentos que seriam preparados nos las, mesmo que seja aprovada no processo seletirestaurantes da Universidade. vo, “Minha punição está baseada em um decreto da No entanto, na greve do ano passado o coordeépoca da ditadura que prevê retaliação por compornador da Coseas (Coordenadoria de Assistência Sotamento político ou moral”, critica Mafê, preocupacial), Waldyr Antonio Jorge, responsável pelos banda com seu futuro acadêmico. dejões e pelo Crusp, resolveu que os alimentos não A socióloga conta que depois dos processos seriam doados aos estumovidos pela reitoria dantes. “Sempre quancontra os estudantes “A farsa montada pela Rede Globo tem greve, os alique participaram da no caso Cutrale serviu para criminali- do mentos são distribuídos manifestação de 2007, zar o nosso movimento”, enfatiza para os moradores do outros processos foGilmar Mauro, do MST Crusp cozinharem nos ram abertos pelo reitor blocos. Mas na greve do João Grandino Rodas ano passado, não foi permitida a distribuição desses contra mais ativistas que se envolveram em protesalimentos”, frisa Mafê. tos na Universidade. Os sindicalistas que atuam na universidade tamEla destaca a ocupação de um dos blocos do bém têm sido alvo preferencial do reitor João GranConjunto Residencial da USP, o Crusp, em 2010. dino Rodas. Mais de 20 inquéritos policiais foram O edifício vinha sendo utilizado pela estrutura buabertos após a greve de 2007. Quatro sindicalistas rocrática da Universidade e os estudantes pressiorespondem a processos judiciais. O diretor do Sinnavam pela ampliação das vagas na moradia do dicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), Magno campus Butantã. Resolveram retomar o espaço que de Carvalho, é um deles. havia sido tomado durante a ditadura militar. Magno destaca a estratégia adotada pelo reitor Rodas na forma de perseguição aos trabalhadores Legislação da ditadura uspianos. “Rodas está agindo diferente dos outros Assim como as lideranças de 2007, os líderes reitores, ao invés de abrir processos administratidesse protesto foram enquadrados no dispositivos, encaminha para processo judicial, que podem vo previsto na legislação dos tempos da ditadura.

resultar em condenação. É mais fácil para a USP me demitir se eu for condenado.” Outro sindicalista que está sendo processado judicialmente é Claudionor Brandão. Ele foi demitido, no final de 2009, pela então reitora Suely Vilela, por liderar manifestações contra a administração da Universidade. Magno destaca que o fato de reitor Rodas ser desembargador, faz com que ele adote outra forma na condução das punições. “Ele percebeu que a demissão do Brandão pode ser revertida na justiça por ter se baseado em um processo administrativo. Por isso, agora ele opta por mover inquéritos policiais contra os trabalhadores, que podem ser transformados em processos judiciais. A justiça está questionando o fato de ele ser sindicalista e ter sido demitido com base em um processo administrativo”, afirma Magno, referindo-se ao fato de sindicalistas não poderem ser demitidos por exercer esse direito. O Sintusp denuncia que a Procuradoria da USP, a mando de Rodas, também está pressionando a polícia a agir rápido nos desdobramentos dos inquéritos policiais abertos contra os sindicalistas. Ainda segundo a denúncia, procuradores vão semanalmente à delegacia pressionar para que os inquéritos sejam transformados em processos judiciais. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br

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DOM PAULO EVARISTO ARNS

O pastor do povo Perto de completar 90 anos, em setembro de 2011, D. Paulo Evaristo Arns é, ainda hoje, um dos líderes religiosos mais importantes do Brasil. Durante 28 anos, esteve à frente da Arquidiocese de São Paulo, sendo reconhecido pela defesa dos direitos humanos e na luta contra a tortura. “Na primeira vez que vi D. Paulo, tive um sentimento de uma pessoa que é muito pai da gente. Sempre disposto a ajudar e nunca a criticar, é uma pessoa que dá esperança”, relembra o fotógrafo Douglas Mansur. D. Paulo Evaristo Arns nasceu no dia 14 de setembro de 1921, no município de Forquilhinha, Santa Catarina. É o quinto dos 13 filhos do casal de agricultores Gabriel Arns e Helena Steiner. Após os estudos básicos, D. Paulo Evaristo Arns ingressa no seminário franciscano, em Rio Negro, Paraná, e finaliza o curso em 1939. No ano seguinte, entrou no noviciado, em Rodeio, Santa Catarina. Complementando sua educação religiosa, também cursou a faculdade de Filosofia em Curitiba (1941-1943), além da faculdade de Teologia, em Petrópolis (1944-1947). Em 1945, D. Paulo Evaristo Arns foi ordenado presbítero em Petrópolis, Rio de Janeiro. Atuou intensamente na região até viajar para Europa e América do Norte, onde estagiou em diversos países e estudou na França, onde defendeu o Mestrado em Letras na Universidade de Paris, Sorbonne, em 1952. De volta ao Brasil, passou a lecionar letras e teologia, além de atuar como jornalista. Em 1966, D. Paulo Evaristo Arns é sagrado bispo auxiliar de São Paulo, sendo nomeado arcebispo metropolitano de São Paulo em 1970, pelo Papa Paulo VI. Após três anos, recebe o título de Cardeal. D. Paulo Evaristo Arns permaneceu no comando da Arquidiocese de São Paulo até 1998, passando a sustentar o título de Arcebispo Emérito de São Paulo. Durante esse período, promoveu diversas transformações, aproximando a Igreja com a população pobre e fazendo trabalhos sociais nas periferias de São Paulo. Em 1973, D. Paulo vendeu o Palácio Episcopal por US$ 5 milhões e utilizou o dinheiro para criar 1200 centros comunitários, além de apoiar o surgimento de mais de 2000 Comunidades Eclesiais de Base. Foi também durante a gestão de D. Paulo que o Brasil enfrentou o período mais violento da Ditadura Militar. “Era um pastor crítico e sempre visitava os presos políticos, salvou muitas www.carosamigos.com.br

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vidas na época. Ele questionava os militares, teve um papel fundamental”, analisa Mansur. “A Cúria Metropolitana tornou-se o centro de resistência à opressão estatal, sendo visitada quotidianamente por dezenas de perseguidos, bem como por familiares de presos e desaparecidos, independentemente da orientação política ou da fé religiosa de cada um deles”, relembra o jurista Fábio Konder Comparato, que integrou a Comissão Justiça e Paz junto com D. Paulo. D. Paulo Evaristo Arns foi um dos principais criadores da Comissão Justiça e Paz, em 1972, que desempenhou um papel fundamental durante a Ditadura Militar e, até hoje, é uma referência na luta pelos direitos humanos. Fábio Konder Comparato se recorda do convite, que recebeu de D. Paulo, para participar da comissão: “Disse-lhe, um tanto embaraçado, que minha fidelidade à Igreja estava longe de ser exemplar. D. Paulo retrucou, de imediato, que esse fato não tinha a menor importância. ‘O que eu quero saber’, disse ele, ‘é se você está disposto a defender intransigentemente a dignidade da pessoa humana contra os abusos que vem sendo praticados pelas autoridades políticas’”. Outro grande feito de D. Paulo Evaristo Arns foi o projeto Brasil: Nunca Mais, que gerou a publicação de um livro com o mesmo nome, em 1985. O projeto foi realizado clandestinamente durante 1979 a 1985 e levantou diversas denúncias de perseguições, assassinatos e torturas durante o período da Ditadura Militar. O projeto coordenado por D. Paulo Evaristo Arns possui um grande valor histórico. Quando questionado, em entrevistas, sobre o pior momento que enfrentou durante a Ditadura Militar, D. Paulo Evaristo Arns apontou três fatos marcantes. O primeiro foi o assassinato do estudante da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Vanucchi Leme, em 1973. No mesmo ano, Dom Paulo Evaristo Arns celebrou uma missa em homenagem ao estudante, na Catedral da Sé. Outro momento que exigiu firmeza de D. Paulo foi o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. No dia 30 de outubro de 1975, ocorreu um culto ecumênico em homenagem a Vladimir Herzog, comandado por D. Paulo, pelo rabino Henry Sobel, e pelo reverendo protestante, James Wright. A missa de sétimo dia de Herzog reuniu cerca de oito mil pessoas na Praça da Sé. Até então, a maior manifestação pública contra o autoritarismo desde o início da Ditadura Militar. O terceiro fato citado por D. Paulo foi a inva-

foto: Arquivo Jornal São Judas

contra o autoritarismo

são da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ocorrida em 1977, sob o comando do então Coronel Erasmo Dias. Estudantes de diversas universidades se reuniram na PUC-SP para refundar a União Nacional dos Estudantes (UNE), que havia sido extinta pela Ditadura Militar. D. Paulo Evaristo Arns, que ocupou o cargo de Grão Chanceler da PUC-SP, de 1970 a 1998, se opôs fortemente à invasão. À frente da PUC-SP, Dom Paulo idealizava uma universidade voltada para o povo e fazia uma movimentação contrária a que ocorria nas outras instituições, acolheu os professores que foram expulsos da USP por serem considerados subversivos, entre eles, Florestan Fernandes e Paulo Freire. No início da década de 1980, Dom Paulo também promoveu eleições diretas para a escolha do reitor, feito inédito em uma universidade católica. “Em pouco tempo, D. Paulo Evaristo Arns tornou-se um símbolo nacional de defesa intransigente da dignidade humana e, por isso mesmo, o maior adversário do regime de exceção instalado no país”, analisa Fábio Konder Comparato, lembrando que a rádio e o jornal que pertenciam à Arquidiocese de São Paulo foram fechados e censurados pela Ditadura Militar. Após os anos de chumbo, D. Paulo Evaristo Arns continua atuante na política brasileira, defendeu greve de trabalhadores, campanhas sociais e lutou pela redemocratização do país. D. Paulo Evaristo Arns coleciona uma extensa lista de prêmios, homenagens e títulos recebidos em diversos cantos do globo. Esse reconhecimento é resultado do trabalho de uma pessoa que sempre se mostrou disposta a entender o mundo e a transformá-lo. “Estive com ele em abril [de 2011] e mesmo com os problemas de saúde, D. Paulo ainda está lendo e escrevendo, ou seja, ele continua produzindo. Não faz mais as mesmas análises de conjuntura que fazia, mas é uma pessoa que está sempre ativa e pensando no mundo”, conta Douglas Mansur. Otávio Nagoya é jornalista

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ensaio Paulo Fanaia ... PANTANAL AMEAÇADO - O Pantanal é um ecossistema natural em perfeito equilíbrio. Seus rios são os grandes transportadores e fornecedores dos nutrientes que garantem o crescimento da vegetação e a incrível produção de peixes, jacarés e aves aquáticas que povoam a região. Os riscos de alteração desse riquíssimo ecossistema são decorrentes, sobretudo, da ação do homem visando a conquista de terras para a criação de gado e mineração. Além do mais, a destruição do Pantanal tem sido acelerada pela aplicação de agrotóxicos nas áreas agrícolas do cerrado e também pelo transporte de metais tóxicos originados da mineração, principalmente o mercúrio empregado na extração do ouro.

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entrevista alan woods

fotoS: divulgação esquerda marxista

“Vivemos uma explosão da luta de classes em todo o mundo”

No centro da mesa, o marxista Alan Woods dá a palestra no Sindicato dos Químicos em São Paulo.

Por Gabriela Moncau Escritor e teórico marxista galês, Alan Woods tem mais de 50 anos de militância marxista. Participou do combate à ditadura franquista na Espanha nos anos 1970, presenciou a Revolução dos Cravos em Portugal e hoje é o principal dirigente da Corrente Marxista Internacional e editor do site do Centro de Mídia Independente (CMI). Autor de mais de 20 livros traduzidos em 10 idiomas, no Brasil foram publicados dois: Razão e Revolução: Filosofia Marxista e Ciência Moderna” e “Reformismo ou Revolução – Marxismo e Socialismo do Século XXI: uma resposta a Heinz Dieterich. Entre abril e maio desse ano, Woods fez um giro pela América Latina, passando por Bolívia, Argentina e Brasil, onde participou de reuniões, debates e palestras acerca da crise mundial do capitalismo e das insurreições dos povos árabes. Durantes os dias em que esteve aqui, reservou um tempo para receber a Caros Amigos e expor suas análises a respeito da situação política e econômi-

ca mundial, bem como sobre as perspectivas atuais das lutas anticapitalistas. Caros Amigos - Podemos começar com a relação entre os levantamentos árabes e a geopolítica mundial. Como a crise econômica de 2008 influenciou as insurreições no mundo árabe hoje? Não são apenas levantes. É uma revolução. É o despertar do grande povo árabe depois de décadas de opressão e silêncio forçado. É um acontecimento de grande importância histórica, representa uma mudança fundamental em toda a situação política mundial. Não é correto ver como algo isolado, um assunto especificamente dos árabes. Não, é mais uma expressão da crise global do sistema capitalista, que faz com que a vida seja cada vez mais intolerável para a massa dos trabalhadores e para a juventude. Nós não nos surpreendemos, já prevíamos isso, sobretudo no caso

do Egito. Porque realmente há dois ou três anos o movimento grevista dos trabalhadores egípcios vem ganhando corpo, houve uma onda de greves muito forte nos últimos tempos. Essa revolução começa no país aparentemente menos provável: Tunísia. Um país considerado pela burguesia como um país modelo, porque os tunisianos aceitaram todas as receitas do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, as privatizações, tudo isso. E tiveram uma taxa de crescimento alta, de 4%, 5%, 6%. Mas o povo não teve nenhum benefício com isso. Por exemplo, no caso da juventude, 75% dos jovens na Tunísia não têm trabalho. E em dezembro aconteceu o trágico caso do jovem de 26 anos, um graduado de universidade, que não encontra emprego e se vê obrigado a vender frutas na rua. Mas não o permitiram por ele não ter os documentos necessários. Ele foi espancado pela polícia e alguns dias depois se suicidou, ao atear fogo em si. E isso pro-

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voca uma insurreição nacional que reflete que já havia um descontentamento crescente que esperava só uma faísca. Foi realmente impressionante ver como a população derrotou a polícia. E o exército se negou a disparar contra o povo. Iniciou-se um processo de manifestações todos os dias, greves gerais, e finalmente cai a ditadura de Ben Ali e se desenrola um processo revolucionário que se estende a todo o mundo árabe. Mas por que você classifica como revolução? Acredita que essas insurreições têm necessariamente uma perspectiva anticapitalista? Há os que fazem a análise de que vai acontecer um rearranjamento de quem está no poder, mas não no sentido de uma ruptura sistêmica. A melhor definição de uma revolução que eu conheço está no livro A história da Revolução Russa, de Leon Trotsky. Na introdução, Trotsky questiona: “o que é uma revolução?” E responde da seguinte forma: uma revolução em sua essência é uma situação que não é normal, na qual as massas começam a participar da política e a tomar os seus destinos em suas mãos. Nesse sentido, o que está acontecendo na Tunísia e no Egito é exatamente uma revolução. Claro que não está terminado. Uma revolução não é uma peça de um só ato, a Revolução Russa de 1917, por exemplo, durou nove meses, de fevereiro a outubro. E dentro desses nove meses houve períodos de grandes avanços e também de reações e derrotas como em julho e agosto. Mas acredito que o melhor exemplo é a revolução espanhola nos anos 1930, que começa em 1931 com a queda da monarquia e só termina em maio de 1937, e nesses 6 ou 7 anos também houve momentos extremamente difíceis em 1934 e 1935, terminando em 1936. Então qual é a etapa atual da revolução árabe? Podemos dizer que está na etapa de reivindicações democráticas. Me parece lógico: depois de décadas de ditadura, o povo quer os seus direitos. Mas em minha opinião, essa luta pela democracia necessariamente levará em certo momento a conclusões que vão mais além do sistema capitalista. Porque nenhum governo burguês – como o do Egito – é capaz de dar ao povo o que é exigido. O que querem não são só os direitos democráticos, mas também um trabalho, uma casa, uma vida digna. Essas coisas o governo não é capaz de dar na Inglaterra, nos Estados Unidos, como vão fazer isso na Tunísia e no Egito? Creio que vai haver um processo que pode durar anos, com altas e baixas, mas que as massas, pouco a pouco, vão perceber que para satisfazer as suas reivindicações será preciso uma mudança fundamental, uma revolução socialista. Agora, mesmo na Tunísia e no Egito, as pessoas estão exigindo a confiscação dos bens e das propriedades dos clãs de Ben Ali e Mubarak. Lógico, porque são bandidos que roubaram muito dinheiro do povo, mas essas reivindicações já têm caráter socialista, a expropriação da propriedade privada. Por que considera que tenha sido uma reação à crise econômica de 2008? www.carosamigos.com.br

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ço do petróleo está aumentando, não sei quanto Todos os países árabes estão enfrentando uma está agora, mas há um par de semanas já estava situação dramática, Argélia, Egito, todos. No EgiUS$120 o barril. to, 76% dos mais jovens que 30 anos não têm E essa crise em toda a Europa traz ataques brutrabalho, é uma situação dramática, porque não tais ao nível de vida da população de todos os podem viver, não podem aspirar a ter uma vida países. Resultado: na Grécia, nos últimos 12 meses normal, uma família, nada. É desesperador. E é houve 8 greves gerais. Em Portugal vimos, nesses uma condenação do sistema capitalista, não só últimos 6 meses, a maior greve desde a Revolunesses países mas em todo o mundo, também no ção dos Cravos. Na Espanha, em 26 de setembro Brasil. São países que necessitam de professores, do ano passado, greve geral também. Eu estive médicos, engenheiros, cientistas, sim, mas esse na França em setembro do ano passado, quansistema não é capaz de dar trabalho aos jovens, do 5 milhões de trabalhadores franceses estavam mesmo os graduados como o pobre homem que nas ruas manifestando-se contra o governo. Em se suicidou em Tunísia. Roma, meio milhão de pessoas nas ruas. E no ReiEm segundo lugar, essas altas taxas de crescino Unido da Grã-Bretanha, de onde eu sou, no sámento econômico não trouxeram nenhum benebado passado [2 de abril] houve a maior manifesfício ao povo. No Egito, 40% da população gatação de trabalhadores de nha menos que US$ 2 a história. Segundo por dia e 20% ganha US$ “Uma das coisas mais interes- toda a imprensa, só em Lon1 por dia, um salário de santes nesse processo é a total dres havia meio milhão fome. Por isso estou seimpotência dos imperialistas” de pessoas, mas pode ter guro que vamos ver um sido o dobro, impossível processo de tomada de de dizer. E nos Estados Unidos há lugares em que consciência que cedo ou tarde vai desembocar em a mobilização popular tem ganhado bastante forum questionamento às estruturas sociais e econôça. O estado de Wisconsin, por exemplo, tem sido micas, é inevitável. um caso tremendamente importante. Uma luta feroz, o governo republicano quer cortar os salários E como entra o colapso da zona do euro nese os direitos sindicais dos trabalhadores de Wissa análise? consin. Um dos gritos de ordem mais ditos nessas É outro exemplo do mesmo processo. O capitamanifestações era “lutemos como os egípcios”, e a lismo está numa crise profunda. Os próprios ecopolícia levava em suas costas o dizer “cops for lanomistas burgueses admitem que essa é a maior bour”, que significa algo como “polícia pelo mocrise dos últimos 60 anos. Eu iria ainda mais lonvimento operário”. Algo extraordinário, não esge, há motivos para acreditarmos que seja a maior tou falando de Cairo, nem de Caracas, nem da crise de toda a história do capital. E o capitalismo Rússia em 1917, não: estou falando dos Estados tem encontrado grandes dificuldades de se reesUnidos da América agora mesmo. Portanto, é um truturar. Você pergunta da Europa, o tema é inprocesso geral, e a revolução árabe deve ser vista teressantíssimo. A crise começa em 2008 e tem a nesse mesmo contexto. forma de uma explosão dos bancos, junto com a expansão desenfreada do crédito. Marx explica Qual será a estratégia dos países imperialisque o crédito é só uma maneira que os capitalistas diante desse quadro? tas usam para aumentar a demanda a curto prazo, Uma das coisas mais interessantes em todo mas só a custa de minar a economia a longo praesse processo é a total impotência dos imperiazo. Foi o que aconteceu, os bancos colapsaram. O listas e a sua incapacidade de intervir. No Egito, que acontece é que hoje todos os grandes bancos por exemplo, que é uma peça angular para Israel e do mundo só existem graças às intervenções esoutros países imperialistas, não puderam intervir tatais. Os governos têm dado bilhões aos bancos, em nenhum momento. É verdade que os Estados nos Estados Unidos, Europa e aqui no Brasil tamUnidos são uma potência militar tremendamente bém. Então chegamos à segunda metade da criforte, a maior de toda história. Mas não é verdase: ao invés de um buraco negro nos bancos, tede que esse poder não tem limites. Basta vermos o mos um buraco negro nas finanças públicas, algo limite do poder dos EUA no Afeganistão e no Irainsustentável. que. Estão derrotados, vão ter de sair. E não puNa Europa já colapsou um pequeno país, uma deram intervir no Egito e na Tunísia. Israel não só ilha, antes muito próspera, a Islândia. Depois a não pôde intervir, como Netanyahu [primeiro-miGrécia colapsou, e os alemães tiveram que salnistro israelita] deu ordens a seu gabinete de não vá-la, não porque são bonzinhos, mas porque os mencionar Egito, não falar a respeito. Ameaças bancos alemães são os que emprestam à Grécia, vazias eram a única coisa que podiam fazer. se ela colapsa a Alemanha quebra no dia seguinte. Depois a Irlanda, e mesmo Portugal. Mas a Por que essa impotência? Alemanha tem tentado salvar esses países. Pois Não se pode controlar uma revolução, é imbem, o próximo candidato é a Espanha, um país possível. No dia da insurreição nacional no Egique é maior que Grécia, Irlanda e Portugal juntos to, os trabalhadores ocuparam a cidade de Suez, e eu te digo que a Alemanha não tem suficiente onde passa o canal de Suez que transporta grandinheiro para salvar a Espanha. Estamos falando de parte do comércio mundial, ponto estratégide uma crise da zona do euro, a moeda do euro co muito importante para a burguesia internaciomuito possivelmente vai colapsar. E agora, o pre-

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nal. Os estadunidenses mandaram um navio de Qual a sua análise do papel das mulheres no guerra para Suez. Eu escrevi um artigo no mesmundo islâmico, hoje? mo dia dizendo que isso era um gesto vazio, que Uma pergunta muito importante. Se tem uma não iam conseguir intervir, porque bastava um coisa que pessoalmente me alegrou o coração e soldado norte-americano pisar em solo egípcio a alma foi a imagem das mulheres na Tunísia e que abriria insurreições não só em Egito mas em no Egito e também em Bahrein. Mulheres com outros países, não haveria uma única embaixada véus, burcas, manifestando-se nas ruas junto com norte-americana de pé. E não fizeram nada. Não os homens, algo insólito. O papel das mulheres podiam fazer nada. Obama nem sequer podia fanas revoluções é fundamental, imprescindível. As lar claramente a respeimulheres, na verdade, to do Egito e Mubarak. causaram todas as gran“As mulheres, na verdade, Em 25 de janeiro, Hillades revoluções na histócausaram todas as grandes ry Clinton disse as seria. Na Rússia, em feverevoluções na história.” guintes palavras: “nossa reiro de 1917, foram as análise é que o governo mulheres que começade Egito é estável”. Foi neste dia que as massas ram as mobilizações e as greves enquanto os bolcomeçam a ocupar as ruas. Não estavam prepacheviques não estavam tão seguros, porque penrados, não souberam como reagir. savam que haveria um massacre. E elas disseram É verdade que o caso da Líbia é distinto. Aí sim não, vamos fazer essa greve, e fizeram a greve, os imperialistas estão intervindo até certo ponto, que impulsionou todo o levante. Na Revolução só com bombardeios aéreos. Certamente estão diFrancesa, as mulheres da classe trabalhadora de vididos. Eu estou seguro que Obama não quis inParis marcharam contra o rei e arrastaram os hotervir militarmente. Hillary Clinton quis. Os gemens a segui-las. nerais norte-americanos estavam contra, porque Normalmente, não é assim, em toda a história eles compreendem que bombardeios aéreos são lamentavelmente a posição da mulher é ser a esinsuficientes. Para fazer algo sério militarmente crava de um escravo. E não há nada pior que isso, falando, na Líbia, seria necessário mandar tropas muito reprimida, oprimida, no mundo árabe há de terra. E eles têm muito medo de fazer isso deessa cultura de submissão feminina muito forte, pois do que se passou em Iraque e Afeganistão. a mulher tem que andar dez passos atrás do homem, olhando para o chão. O fato de que nesse E porque decidiram entrar na Líbia militarmomento nesses países as mulheres estejam tammente e não no Egito e na Tunísia? Petróleo? bém como protagonistas demonstra que estamos O caso da Líbia é bem mais complicado, porprecisamente falando de uma revolução. As muque há uma guerra civil, há duas partes. Uma das lheres normalmente são muito mais valentes que partes, pelo menos algumas pessoas em Benghaos homens. É um paradoxo, os homens particizi, convidaram os outros países a intervir, aleganpam mais dos espaços públicos, do sindicato, da do questões humanitárias. E a ONU, que vergopolítica, eles aprendem a manejar o jogo político nha, que escândalo. Onde estavam as resoluções e suas regras. A mulher não, quando ela se indigda ONU quando Israel invadiu Gaza? Não, absona não se importa com regras, jogo, leis, tradições, lutamente arbitrário. Se os imperialistas metem a exército, polícia, nada. São incrivelmente fortes. mão na Líbia, não é para defender direitos humaA mulher começa a ser um ser humano graças à nos ou para poupar a vida dos indivíduos. É para revolução, e enquanto parte integral dela. Enconmeter a mão no petróleo, não há dúvida. Claro tra sua voz, seu espaço, sua personalidade, sua que vão tentar, mas vai ser muito complicado... dignidade. Acredita ser possível que haja um golpe militar na Líbia? Existe a possibilidade. O caso da Líbia começou como na Tunísia e no Egito, como uma insurreição popular. Mas há divisões tribais, inclusive nacionais. Líbia, como os outros países da África teve seu território traçado artificialmente pelo colonialismo. Então, originalmente, Benghazi era outro país separado e depois há divisões tribais. Kadaffi tem apoio de certos clãs, certas tribos e de fato se desencadeou uma grande guerra civil. E claro, há elementos que se separaram de Kadaffi, oficiais, os ministros do interior, da justiça, se juntaram aos rebeldes. Mas esses homens, em minha opinião, são oportunistas que querem aproveitar-se da revolução para seus próprios fins, eles estão reivindicando a intervenção dos imperialistas. Então a situação da Líbia é muito complicada, e não se pode dizer exatamente como vai se desenrolar. É muito complicado.

Quais os impactos na América Latina do que está se passando no Oriente Médio? Realmente esse processo revolucionário mundial começou na América Latina. Na Venezuela, Equador, Bolívia... O Brasil está um pouco para trás, mas certamente se colocará em dia com esse processo brevemente. Argentina também. Eu disse nos últimos dez anos que a América Latina está na primeira linha da revolução mundial, ainda que isso possa mudar. E está mudando, já mudou, hoje o mundo árabe está na linha de frente. Mas é o mesmo processo. O mesmo processo que está acontecendo em alguns estados norte-americanos, nos países árabes, na Europa, na Tailândia, que reflete o impasse do sistema capitalista, que simplesmente não permite às pessoas que vivam, são rebeliões contra isso. Na América Latina, nesses países que você citou por exemplo, e no Brasil também, não vê perigo de que haja um consenso geral centrali-

zado em governos supostamente progressistas? Na minha opinião, o PT e a CUT foram conquistas importantíssimas da classe trabalhadora. Mas claro, a direção do PT é outro tema. Lula teve muita sorte, porque ainda estava no poder quando houve um auge econômico mundial do capitalismo e o Brasil tirou benefícios disso. Agora a coisa mudou. Dilma Rousseff não tem a mesma sorte, chegou ao poder em um momento de crise do capitalismo. Eu sou ateu, mas gosto muito da Bíblia... Tem uma coisa que a bíblia diz que é “não se pode servir a dois amos”. Eu digo o mesmo à Dilma. Ou o PT defende a classe trabalhadora e ataca os capitalistas ou defende os interesses dos capitalistas atacando a classe trabalhadora. E lamentavelmente o que estão fazendo é a segunda opção. Então, a perspectiva é um auge da luta de classes aqui no Brasil, os trabalhadores não aceitarão isso de braços cruzados. Entendo que tem havido certo consenso de classe no passado, porque de certo modo as coisas não estavam tão mal e até um ponto o governo do PT fez certas concessões aos mais pobres. E é normal que seja bem recebido por isso. Ainda que seja pouco, para muitas pessoas foi muito representativo, claro. Mas isso vai mudar. Se esse governo de Rousseff seguir se embasando no modelo capitalista, em um momento de crise terá que atacar a classe trabalhadora, e é o que está acontecendo. Nos três primeiros meses do governo de Dilma, ela está com a mesma popularidade do Lula no mesmo período do seu governo e supera a aceitação de todos os outros políticos que passaram pela presidência desde os anos 1990. É possível, porque é uma cara nova, tem a vantagem de ter sido a candidata de Lula. Mas Dilma não é Lula, não tem o mesmo carisma, a mesma autoridade, a mesma compreensão. Lula entendia a classe trabalhadora. E se ela continuar atacando a classe trabalhadora, vai haver uma reação. Eu vou voltar aqui daqui um ano e vou te perguntar qual a taxa de popularidade da Dilma, vai colapsar. Acredito que a onda de lutas vai surgir em primeiro lugar no universo sindical, ainda que os dirigentes da CUT não queiram, pois claro que querem manter o consenso. E vai haver uma explosão da luta de classes no Brasil e isso claramente vai ter suas consequências dentro da CUT e do PT. E o que pensa do posicionamento de Fidel Castro e Hugo Chávez em relação ao Oriente Médio? Vale dizer que eu sou um grande defensor da revolução venezuelana e da revolução cubana. Mas creio que tenham cometido erros muito graves na apreciação do que se está passando no mundo árabe. Quanto à Venezuela que eu conheço melhor, eu compreendo até certo ponto a razão. O imperialismo quer isolar a Venezuela, e o governo bolivariano quer romper o isolamento e tem feito contatos e alianças com governos supostamente amistosos, sobretudo países que pro-

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duzem petróleo. Mas creio que tenham cometido graves erros, por exemplo no Irã, apoiando o regime de Ahmadinejad que é um governo extremamente reacionário. E um erro pior ainda com respeito à Kadaffi: não se pode apoiar Kadaffi, um homem que está massacrando o seu próprio povo. Acredito que tenha sido um erro inclusive do ponto de vista pragmático, porque Chávez até agora era o político mundial mais popular do mundo árabe, devido à sua posição ante o imperialismo. E cometer um erro nesse aspecto pode minar essa autoridade, o qual faz danos à revolução bolivariana. No entanto, o que concordo em relação ao posicionamento dos governos de Venezuela e Cuba é a total oposição à reação imperialista da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] na Líbia. Existem boatos que você seja algum tipo de assessor do Chávez, certo? Dizem que eu sou o guru do Chávez! Sim, inventam muitas bobagens. Minha relação com Hugo Chávez é excelente, faz muitos anos que o conheço, mas no que diz respeito a qualquer relação oficial com o governo venezuelano, não há nenhuma. Nunca trabalhei para o governo bolivariano, sou um marxista totalmente independente e muitas vezes minhas opiniões não coincidem com as posturas de Chávez. A razão pela qual me atacam é que há uma conspiração a nível internacional de atacar a Venezuela, caluniar o presidente Chávez constantemente. Então eles querem criar a ideia de que existe alguma força estrangeira sinistra que manipula o governo Chávez, totalmente falso. E se vamos falar de forças estrangeiras, é importante assinalar com o dedo a oposição contrarrevolucionária na Venezuela, que recebem suas ordens de Washington e da CIA, a respeito disso não há dúvidas. Mas sim, organizaram na Venezuela um ataque à minha pessoa impressionante por conta de um artigo que escrevi depois das eleições, que defendo a revolução bolivariana, mas creio que não fizeram algo fundamental que é expropriar a oligarquia, a terra, as grandes empresas e os bancos. Uma postura que eu mantenho. Você disse que a revolução na América Latina já começou há tempos, que foi a primeira nesse período. Sim, há um problema fundamental em todos esses países, nos países árabes, na América Latina, na Europa, por toda parte. O problema é a ausência de um partido revolucionário e uma direção revolucionária. Na América Latina nos últimos dez anos houve várias ocasiões em vários países em que a classe trabalhadora poderia ter tomado o poder. Começando com o Equador em 2000, depois na Argentina com o argentinazo, uma insurreição popular depois do colapso de três governos em um ano, o movimento dos piqueteros e tudo mais, mas aí a esquerda jogou um papel lamentável. Divisões, sectarismo, nem sequer foram capazes de unificar o movimento dos piqueteros. Conwww.carosamigos.com.br

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sequentemente o movimento na Argentina tem ido para o outro sentido, há o Kirchnerismo que é um tipo de Peronismo mais progressista, verdade, mas poderiam ter tomado o poder. Na Bolívia há um exemplo ainda mais claro. Os bolivianos fizeram duas grandes insurreições e grandes greves gerais, derrubaram dois governos, tinham o poder em suas mãos, mas não o tomaram. Um dos dirigentes da COB [Central Operária Boliviana], Jaime Solares, fez uma declaração incrível: “a única razão pela qual não tomamos o poder na Bolívia foi porque não tínhamos um partido revolucionário”. Consequentemente, a coisa se desviou ao parlamentarismo, o governo de Evo Morales, que também é um governo relativamente progressista que eu apoio contra a direita, mas poderiam ter tomado o poder. Na Venezuela, a revolução tem mais de 11 anos e em várias vezes poderiam ter tomado o poder, concretamente em abril de 2002, quando colapsa o golpe de Estado. É o mesmo problema, problema de direção. Hugo Chávez tem feito muitas coisas muito positivas, mas não é possível falar de socialismo na Venezuela enquanto não se tira o poder da oligarquia. Claro, baixo o controle democrático da classe trabalhadora. Em resumo, é um problema de direção. Até que ponto uma direção revolucionária não retira das mãos das massas o poder de decidir sobre seu próprio destino, classificação que você fez do conceito de revolução? A pergunta é muito válida, interessante, porque existe de fato o perigo de uma direção desvincular-se das massas. A ideia vem porque na prática isso aconteceu, e segue acontecendo. O PT é um exemplo disso. Mas vejamos. Você compra um par de sapatos novos, que estão machucando seus pés. O que você faz? Passa a andar descalço? Não, o que faz? Arranjo outros. Exato, busca outros melhores, que não doam. Os dirigentes do movimento dos trabalhadores do Brasil são ruins. Conclusão? O problema é a direção? Não, não é lógico, é preciso trocar de dirigentes. Esse raciocínio não procede porque em verdade sempre há uma direção. Pode haver uma greve de meia hora numa empresa, alguém vai falar com o patrão, não é possível todos irem, então vão eleger uma pessoa que acreditam que os vai representar honestamente e bem. Eu fui estudante há muito tempo atrás. Havia muitos grupos anarquistas no movimento estudantil, e teoricamente eles não tinham direções. Mas na prática alguém tomava decisões por esses grupos, alguém que não havia sido eleito nem responsável ante ninguém. Estamos falando de direções por grupos que surgem, não há maneira de evitar, a única solução – como dizia Lênin em 1917 a respeito do programa soviético – são eleições livres para todos os cargos, com revogabilidade. Ponto 2: nenhum funcionário do Estado soviético poderia receber um salário maior que um trabalhador qualificado. Ponto 3: nenhum exér-

cito nem polícia permanente sem o povo armado. Ponto 4: esse depende, que pouco a pouco, gradualmente, todas as tarefas administrativas do Estado soviético sejam feitas por todos de forma rotativa. É inevitável que haja dirigentes, não vejo outra opção senão tomar medidas democráticas para que eles estejam sob o controle das massas. E, no entanto crê que no mundo árabe por exemplo, não há nenhuma direção revolucionária? Não há nenhuma direção preparada. As massas aprendem da experiência, da vida, da luta de classes, e vão aprender que é necessário ter uma direção que esteja preparada para a tomada do poder. Porque a revolução é uma guerra, não é um jogo. Um erro pode ser desastroso. Ainda mais com um inimigo desses, com um Estado extremamente autoritário e armado. Sabe quantas vezes na história das guerras um exército numeroso com soldados valentes foi derrotado por um pequeno exército profissional com bombas oficiais? Muitas vezes. Temos que nos preparar, porque o inimigo está bem preparado, eles têm o Estado, a burocracia, a igreja, o exército, a polícia, a imprensa. As insurreições populares do Egito, por exemplo, conseguiram derrotar tudo isso. Mas tem um problema: derrubaram Mubarak, mas outros seguem no poder. Na Tunísia também. Não é fácil. A necessidade de organização e direção vem disso. Gabriela Moncau é jornalista.

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Energia Nuclear

FUKUSHIMA REASCENDE DEBATE SOBRE A SEGURANÇA DAS USINAS

fotos: Eletronuclear / Arquivo

Apesar do grave acidente no Japão, o governo brasileiro prepara a construção de quatro novas centrais nucleares e conclusão de Angra 3 com orçamento de R$ 40 bilhões.

Angra 1 e 2: acordo entre Brasil e Alemanha, de 1975, previa a construção de 8 centrais nucleares, mas só duas foram concretizadas. Perspectiva de expansão gera polêmica.

Por Débora Prado O desastre na usina de Fukushima Daí-ichi, no Japão, tomou dimensões catastróficas e reacendeu o debate sobre energia nuclear em todo o mundo. Os argumentos mais comuns são conhecidos: os defensores atestam que esta é uma fonte de energia elétrica limpa, que gera energia de baixo custo, sem ocupar grandes áreas, como no caso das hidrelétricas. Já os críticos às usinas nucleares afirmam que a opção é perigosa e cara, dados os altos investimentos necessários para sua construção, destacando que os rejeitos (o ‘lixo nuclear’) são um problema sem solução. O que poucas pessoas debatem, porém, é o programa nuclear brasileiro – uma herança da Ditadura Militar que permanece como um assunto a ser tratado nos gabinetes do governo e gera polêmica entre os atores da área.

Uma sondagem do IBOPE Inteligência*, realizada após o acidente no Japão, mostrou que 54% dos brasileiros são contrários ao uso da energia nuclear para gerar eletricidade no País. As propostas do governo, por outro lado, preveem a instalação de 50 usinas nucleares nos próximos 50 anos, sendo 5 delas em curto prazo, com a conclusão de Angra 3 e a construção de quatro novas centrais, sendo duas delas na região Nordeste, com prioridade, e outras duas no Sudeste. As perspectivas de expansão geram polêmica. Para Heitor Scalambrini Costa, físico e professor da Universidade Federal de Pernambuco, o acidente de Fukushima foi uma alerta para a humanidade. “Apesar dos renovados esforços da indústria nuclear em apresentar-se como segura, aciden-

tes em instalações em diversos países continuam a demonstrar que esta tecnologia é perigosa, oferecendo constantes riscos que podem trazer consequências catastróficas ao meio ambiente e à humanidade”, avalia. A tragédia no Japão reacendeu também as críticas em relação ao projeto de Angra 3, com construção em curso no Rio de Janeiro. Isto porque, o projeto original, cuja licitação foi realizada em 1983, não passou por uma revisão antes de ser implementado e, por isso, é acusado de ser obsoleto, portanto, mais arriscado. Por um lado, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, tem reiterado que o projeto é seguro e se tornou defensor de Angra 3 e da expansão na frente nuclear. Por outro, pessoas ligadas ao setor alegam que o gover-

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perder o emprego pelas críticas. Os demais servino não fez a revisão para evitar gastos e porque, dores estão proibidos de tocar no tema. se o projeto fosse alterado, a licitação para consPara Heitor Scalambrini, “a posição do ministrução da usina teria que ser refeita. Com isso, a tro Lobão e do governo que ele faz parte é antiempresa Andrade Gutierrez, entre outras, poderia democrática e de uma arrogância e prepotência perder um contrato bilionário. sem precedentes”. De acordo com o físico, a ação Dentro da própria Comissão Nacional de Enerde grupos de interesse tem papel determinante no gia Nuclear (Cnen), órgão responsável pelo dedestaque dado à energia nuclear dentro do goversenvolvimento e fiscalização na área, o assunto no. “As empresas do é polêmico. O presilobby nuclear, grudente da Associação “O assunto nuclear no País é tratado pos de cientistas pelo dos Fiscais de Radioà margem da população, no gabinete prestígio e oportuniproteção e Segurande algumas pessoas.” Heitor Scalambrini dades de novas pesça Nuclear da Cnen Costa, físico e professor quisas e pelo co(Afen), Rogério dos mando do processo, Santos Gomes, afirfornecedores de equipamentos e as empreiteiras, ma que o projeto necessita ser atualizado, uma vez por motivos óbvios, estão interessados nessa exque foi feito antes do acidente de Three Mile Ispansão”, afirma, complementando: “além, é claro, land (TMI), nos EUA, em 1979. O acidente de TMI de setores das forças armadas, fascinados pelo pofoi considerado um marco para a segurança nuder que a energia nuclear lhes traz. Devemos semclear, uma vez que praticamente todas as usinas pre lembrar que, historicamente, a relação entre o da década de 1970 apresentavam falhas referentes uso da energia nuclear para fins energéticos e para a acidentes severos, cujas regras só seriam elabofins militares é muito estreita. O Programa Nuclear radas anos depois pela AIEA (Agência InternacioBrasileiro surgiu durante a ditadura militar”. nal de Energia Atômica). Central nuclear em Angra dos Reis (RJ) Em 1975, o governo do general Ernesto Gei“Quando aconteceu o acidente de 1979, o ór(PNE 2030), realizado em 2007 e que passa por sel assinou o Acordo Nuclear Brasil–Alemanha. gão regulador norte-americano passou seis anos uma revisão para o PNE 2035. A Eletrobrás ElePor ele, o País se comprometeu a desenvolver um estudando as falhas e o resultado saiu em 1985, tronuclear já realizou uma seleção de locais canprograma que previa a construção de oito grandes mudando os padrões dos projetos nucleares para didatos para as futuras centrais nucleares brasireatores nucleares para a geração de eletricidade evitar acidentes de fusão de núcleo, como aconleiras. O foco foi na região compreendida pelo com empresas alemãs lideradas pela KWU. Entreteceu em Fukushima atualmente, cuja usina foi litoral entre Recife e Salvador e o vale dos grantanto, das oito centrais previstas no acordo com a construída em 1971. Os projetos de Angra 1, 2 e 3 des rios que desembocam nesse litoral. KWU, apenas duas foram construídas. Com isso, a são mais ou menos da mesma época de FukushiO levantamento, chamado de ‘Atlas do Potenpartir de 1979, os militares desenvolveram o Proma e também anteriores ao acidente de TMI”, diz cial Nuclear Brasileiro’, identificou 40 áreas em grama Nuclear Brasileiro e a companhia francesa Rogério. todo o território nacional que poderiam receber Areva herdou o acordo original da empresa aleEle explica que o acidente de fusão do núfuturas centrais nucleares. “Isto vai ser apresenmã. A Areva, fruto da fusão da KWU com a francleo era considerado de baixíssima probabilidatado ao Ministério de Minas e Energia e deve ser cesa Framatome, foi escolhida, por exemplo, na de de ocorrência, e, portanto, não era utilizado lançado em breve. Nele, nós indicamos as áreas licitação de Angra 3 para fornecimento de equina base de projeto de uma usina nuclear antes de em que há potencial e aguardamos a reelaboração pamentos de instrumentação e controle e, além da 1979. “Tanto o projeto BWR da General Eletric da estratégia energética no PNE 2035 para cruzar construtora Andrade Gutierrez, é uma das gran(Fukushima), o PWR da Westinghouse (Angra I) e o ponto de vista do planejamento com o da viades beneficiadas pela manutenção da licitação reo PWR Konvoi da Siemens KWU (Angra II e Angra bilidade das áreas”, explica o assessor da presializada em 1983. III) são anteriores a 1979”, complementa o presidência da Eletronuclear. “Eu acho que existe no Brasil um lobby muidente da associação. Com base no Atlas, serão selecionadas as loto grande. Em 1975, o Brasil fez o acordo com a A Eletrobrás Eletronuclear – estatal responsácalidades que passarão a uma segunda etapa, em KWU, mais adiante incorporada pela Areva, que vel pelas usinas de Angra 1 e 2 e construção de que serão aprofundados os estudos de local. “Fimobiliza a tecnologia nuclear europeia e faz os reAngra 3 –rebate afirmando que o Brasil se dinalizada esta segunda etapa, a Eletrobrás Eletroatores na França. Recentemente, houve um acorferencia do Japão, pois não apresenta problemas nuclear apresentará do entre o Lula e Sacom abalos sísmicos e afirma que medidas de se‘cardápio’ de oprkozy. Aparentemente gurança para acidentes severos já estavam sendo “Por que alguém gasta R$ 40 bi para um ções, que deverá ser é uma convergênestudadas antes do acidente em Fukushima e, com cia entre lobby, lobi- produzir a energia que poderia ser feita objeto de avaliação e esse alerta, serão reforçadas. “O que ficou de alerta com R$ 20 bi?” Ildo Sauer, professor escolha pelo Governho e Lobão”, ironiza para a indústria nuclear é o cuidado com gerenno”, completa LeoIldo Sauer, coordenaciamento de acidentes severos deve ser aperfeiçonam. dor do Programa de Pós-Graduação em Energia ado constantemente”, afirma Leonam dos Santos Para Heitor Scalambrini, a construção de noda USP e doutor em engenharia nuclear pelo MasGuimarães, assessor da presidência da Eletronuvas usinas aumentará os riscos de um acidente sachusetts Institute of Technology. “A gestão de clear. nuclear no Brasil e, portanto, deveria ser cancetodo o setor de energia tem estado a mercê das A polêmica resultou num processo administralada, ou, ao menos, amplamente debatida com a empresas de energia e dos grandes consumidores. tivo disciplinar contra o fiscal Sidney Rabello no população brasileira e não só nas esferas de goE o governo tem operado pra mediar os interesses ano passado. O servidor é acusado de quebra de verno. “Lamentavelmente, o assunto nuclear no dos grupos de pressão, enquanto a grande massa sigilo por ter revelado a imprensa e em artigo um País é tratado à margem da população, nos gabida população está ausente”, critica. parecer onde lista pendências no Relatório Prelinetes de meia dúzia de pessoas. As decisões sominar de Análise de Segurança (RPAS), apresenbre a política energética são tomadas pelo Consetado pela Eletrobras Eletronuclear para Angra 3, PNE 30 lho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão no qual conclui que o projeto é anacrônico e inAs diretrizes de expansão da área nuclear estão de assessoramento da Presidência da República, seguro. Rabello foi contestado pela Cnen e pode estabelecidas no Plano Nacional de Energia 2030 www.carosamigos.com.br

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Segundo seus estudos, o Brasil possui 150.000 que reúne 10 pessoas. O que se espera é que se MW de potencial hidráulico remanescente, em democratizem as decisões sobre escolhas na área adição aos 100.000 MW em desenvolvimento; energética, levando em conta uma ampla discus143.000 MW eólicos; 15.000 MW de biomassa, são”, diz. principalmente bagaço de cana; 17.000 MW em Já Leonam afirma que as críticas à expansão pequenas centrais hidrelétricas; 10.000 MW em são ideologizadas e contaminadas pela aversão cogeração e geração descentralizada por gás naàs armas nucleares. Para ele, o aumento do contural, fora as possibilidades decorrentes da mosumo per capita de energia será necessário para dernização de usinas antigas e dos programas de elevação do índice de desenvolvimento humaracionalização do uso de energia. no e, com isso, é importante alternativas em to“É difícil compreender o que leva alguém a das as frentes disponíveis, inclusive na nuclear. propor fazer cinco usinas que vão custar em tor“Eu também sou contra as armas nucleares, mas no de R$ 40 bilhões para produzir a mesma eneré preciso lembrar que o mesmo aço que faz a esgia que poderia ser feita com R$ 20 bilhões, sem pada, faz o arado”, compara. gastar combustível e sem deixar como herança Para o professor Ildo Sauer, a opção pela frencerca de 5000 toneladas de elementos radioativos te nuclear é um erro no planejamento. Na sua depois de cerca de 30 avaliação, se o goanos de operação. O verno realizasse um 54% dos brasileiros são contrários Brasil poderia dobrar ranking de custo/beao uso da energia nuclear para gerar o consumo per capita nefício, levando em eletricidade. Pesquisa IBOPE de energia com meconsideração os imInteligência e WIN tade do investimento pactos econômicos, feito nas usinas nusociais e ambientais, cleares previstas, com um planejamento centrado as novas centrais nucleares seriam canceladas. na energia eólica e hidráulica”, comenta Sauer. “Aparentemente, o governo perdeu capacidade Para Scalambrini, o Governo Federal tem de fazer análises comparativas e não só na área priorizado obras de grande porte e alto impacto nuclear, mas também na área hidráulica e em ounegativo para a sociedade e ambiente. “Lamentras formas de produzir energia no Brasil. Haja tavelmente em nosso país, ranqueado entre os 5 visto que andaram contratando, em nome da pomaiores emissores mundiais de CO2, o planejapulação, uma quantidade enorme de carvão e mento energético governamental até 2030 aponta óleo combustíveis, o que seria intolerável se houna contramão do combate às mudanças climátivesse um ordenamento adequado”, ressalta.

cas, prevendo a construção de mega-hidrelétricas na região norte, a construção de novas usinas nucleares, e a expansão de termelétricas movidas com combustíveis fósseis. O aumento da participação na matriz energética das fontes renováveis como a energia eólica, a energia solar, as termelétricas a biomassa e a energia dos oceanos é relegado a mero exercício de retórica”, afirma. O físico avalia que o argumento de que a energia nuclear é preferível por ser limpa é controverso. “Na geração da eletricidade nuclear a produção de CO2 é muito pequena, mas se levado em conta o conjunto de etapas do processo industrial - prospecção do mineral, extração e transporte de urânio, e transporte dos resíduos- a quantidade de gases de efeito estufa produzida é considerável”, explica. Ele lembra, ainda, que o problema em relação aos rejeitos persiste, pois no Brasil ainda não há um lugar escolhido para o depósito definitivo do lixo nuclear, ficando o lixo de Angra 1 e 2 em depósitos intermediários. * IBOPE Inteligência, em parceria com a Worldwide Independent Network of Market Research (WIN), realizou uma pesquisa em 47 países de todos os continentes entre 21 de março e 10 de abril. Débora Prado é jornalista debora.prado@carosamigos.com.br

Fiscalização precária Cnen concentra desenvolvimento e fiscalização na área nuclear Em meio a polêmicas, um problema parece ser consensual na área nuclear: existe um conflito no fato da mesma entidade que promove o desenvolvimento do setor ser responsável por fiscalizá-lo, a Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear). “A necessidade de criação de uma agência reguladora independente aparece desde 1977, quando a Sociedade Brasileira de Física avaliou que, tecnicamente e politicamente, era incorreto manter no mesmo órgão as atribuições de licenciamento, fiscalização, regulamentação e desenvolvimento. Seria o equivalente ao Ibama possuir uma serraria na Floresta Amazônica”, protesta Rogério Gomes, da Afen. Dado o problema antigo, a Câmara dos Deputados formou um grupo de trabalho específico sobre fiscalização e segurança nuclear, cujo relatório, de 2007, afirma: “A necessidade da separação das atividades vem sendo apontada há pelo menos 30 anos (...) A estrutura atual da área de fiscalização da

radioproteção e segurança nuclear no Brasil apresenta riscos inerentes para a população e o meio ambiente em função da ausência de segregação das funções” O GT considerou a atuação da Cnen questionável, identificando a emissão irregular de autorizações para a Usina Nuclear de Angra II e para a unidade de mineração e beneficiamento de urânio de Caetité, na Bahia. O documento afirma que “no caso destas duas instalações nucleares foi observado que a Cnen não obedece as Normas elaboradas pela própria comissão, permitindo que estas instalações continuem a operar por mais de 5 (cinco) anos, com autorizações referentes apenas às fases de testes (Autorização para Operação Inicial)”. O relatório conclui: “Em função desta estrutura que a faz ‘fiscal de si mesma’ a grande maioria das instalações nucleares e radioativas da própria Cnen não estão licenciadas ou certificadas e apresentam-se fragilmente fiscalizadas, incluindo-se aí as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que pertence à Cnen, e realiza

a mineração, beneficiamento e enriquecimento do urânio”. Neste ponto, há acordo entre os atores da área – a Eletronuclear e a Cnen já se declararam favoráveis à agência reguladora e há um projeto de lei para sua criação. O problema, para Afen, é que o projeto foi feito pela própria Cnen. “A proposta é completamente esdrúxula, ele não apresenta nenhuma cláusula de barreira, por exemplo, para que os diretores do órgão sejam indicados pelos próprios operadores, aqueles que devem ser fiscalizados. O projeto prevê que os fiscais façam um relatório que será julgado por uma comissão – ou seja, evita qualquer decisão imediata”, protesta Rogério Gomes. “Praticamente, a fiscalização faz relatórios e algumas ‘cabeças premiadas’ é que irão decidir se o relatório é válido ou não e, como não tem cláusula de barreira, essas cabeças podem ser indicadas por quem deve ser fiscalizado”, conclui.

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Sobrevivência

Comunidade tradicional

As catadoras de mangaba do Sergipe criaram movimento estadual para impedir a extinção das mangabeiras nativas.

foto: Raquel Fernandes

luta para manter fonte de renda

Catadoras muitas vezes precisam remar por mais de três horas para chegar a área de mangabeiras.

Por Danielle Noronha Localizado no litoral sul do Sergipe, o município de Indiaroba contribuiu decisivamente para a criação e a difusão – nos últimos anos – do movimento de defesa das catadoras de mangaba do Estado, uma atividade extrativista que é passada de geração em geração há muito tempo. É mais do que uma fonte de renda da comunidade, é uma tradição familiar – agora ameaçada pela especulação imobiliária e outras atividades industriais. A presidente da Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba, Alicia Santana Salvador Morais, começou a catar mangaba aos 4 anos de idade, hoje ela tem 24. Aprendeu com seus pais, que por sua vez foram ensinados pelos avós. E os filhos de Alicia, Adelina e Manoel Salvador, também já participam da tradição. Alicia conta que a tradição existe há centenas de anos: “Essa cata é de geração em geração, quando a minha família veio pra cá a renda era pesca e mangaba. Essa rua aqui [onde ela mora] chama Rua da Mangabeira porque ela era todinha de mangaba. Grande parte das famílias que moram aqui, vive disso”. Natural de Jandaí, na Bahia, mudou-se com o pai para Pontal aos três anos. Como Alicia explica, o nome do povoado vem de “ponta de terra” e, para fazer jus a como é chamado, está cercado por água, tendo apenas a estrada de terra com acesso a ele. Do outro lado do rio é Mangue Seco, Bahia, lugar famoso por ter sido cenário da novela global “Tieta do Agreste”, dos anos 1980. Dona de casa, mãe de cinco filhos e casada desde os 13 anos. Alicia é estudante, professora, cabewww.carosamigos.com.br

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leireira, pescadora, vice-presidente do Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe, presidente da Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba, além de catadora de mangaba apaixonada. Assim como grande parte das demais catadoras, quando não é época de mangaba, trabalha com a pesca artesanal no manguezal, aliando outras fontes de renda, como artesanato, emprego não formal e Bolsa Família. No povoado, ainda é possível ver famílias morando em casas de palha. Alicia viveu oito anos na mesma situação, com esforço conseguiu construir sua casa de alvenaria e hoje tem acesso à luz, água e saneamento básico. A catadora de mangaba é mais um exemplo de mulher guerreira, que prova que é possível trabalhar no que acredita. Apesar de suas várias atividades, Alicia ainda consegue tempo para fazer o que, no momento, acha o mais importante de tudo: lutar para que não acabem as mangabeiras e a tradição das catadoras de mangaba.

A planta

A mangabeira é uma planta frutífera nativa do Brasil que vegeta espontaneamente em várias regiões do país: Minas Gerais, Espírito Santo, todo Centro-Oeste, todo litoral do Nordeste e Pará, Amapá e Tocantins, no norte. As primeiras flores da mangabeira começam a desabrochar em dezembro e seu período mais fértil é de janeiro a junho. Nesta época é a principal fonte de renda de diversas famílias nessas regiões. Em Sergipe, é a fruta símbolo do Estado. A palavra mangaba é de origem indígena e sig-

nifica “coisa boa de comer”. É uma das frutas mais ricas em ferro, sendo também boa fonte de vitamina C. Segundo o pesquisador da Embrapa e engenheiro agrônomo Josué Francisco da Silva Junior, “embora a mangabeira seja uma planta produtora de látex, o seu fruto, de sabor e aroma incomparáveis, é o principal produto explorado, sobretudo pelas indústrias de polpas, sucos e sorvetes. Algumas partes da planta têm aplicação na medicina popular, como a casca, com propriedades adstringentes, e o látex, que é empregado contra as pancadas, inflamações, diarreia, tuberculose, úlceras e herpes. O chá da folha é usado para cólica menstrual”. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais também tiveram bons resultados nos testes feitos com a mangabeira contra a pressão alta. 90% das áreas nativas das mangabeiras foram extintas no Estado de Sergipe. Os 10% que sobraram estão sendo disputadas pela população dos povoados tradicionais, que tem a mangaba como uma de suas fontes de sobrevivência, e por empresas e donos de terras. A especulação imobiliária, o crescimento do turismo, o cultivo de cana-de-açúcar, os viveiros de camarão e, hoje em dia, a dificuldade de acesso às terras são alguns exemplos das ameaças que as mangabeiras e as catadoras sofrem. Preservar a mangabeira é garantir a continuação de uma tradição e a fonte de renda de diversas famílias.

O extrativismo

“Eu não gosto de catar mangaba, não. Eu amo”. Esta foi a resposta de Alicia quando questionada sobre sua profissão. As catadoras de mangaba têm

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As mangabas são catadas no chão ou nas árvores.

um papel muito importante na conservação da área da mangabeira. Além do conhecimento transmitido às novas gerações desta população tradicional, elas trabalham com muito cuidado na hora de realizar o extrativismo da fruta. Os pais de Alicia se separaram quando ela tinha “oito meses de nascida”. Hoje, Luzia dos Santos, 43, sua mãe biológica, também mora em Pontal e é sua vizinha. “Não temos relação de mãe e filha, mas de amigas”, conta Alicia. Luzia também é uma catadora de mangaba e conta que começou o trabalho aos 8 anos: “Minha mãe era sertaneja e eu vivia com meu pai. Comecei a catar no sitio dele, que tinha mangaba, e aqui continuei o trabalho”. Josefa da Conceição, 55, faz o extrativismo da mangaba há 40 anos. “Que eu cato mangaba tem um bocado de tempo, né? Eu catava em Laranjeiras, na Bahia, e vim pro povoado faz 11 anos. Meus filhos e minhas filhas catam também. E pescam”, diz. Mesmo a tradição sendo passada de geração em geração, até o final do ano passado as catadoras de mangaba não eram reconhecidas. Oficialmente eram registradas como pescadoras e faziam parte do Ministério da Pesca. “Como a mangaba não tinha um valor aquisitivo maior, elas buscavam na pesca o sustento, porque elas entendiam que com a mangaba elas compravam o feijão e a farinha e a pesca é a mistura dos filhos”, conta Thacio Martins do Nascimento, 25, representante e tesoureiro da Associação.

O reconhecimento

Em 16 de dezembro de 2010, esta situação mudou. Foi aprovado o projeto de lei da deputada estadual Ana Lucia (PT-SE), que reconhece as catadoras como população tradicional. A lei 7.082/10 “reconhece as catadoras de mangaba como grupo culturalmente diferenciado, que devem ser protegidas segundo as suas formas próprias de organização social, seus territórios e recursos naturais, indispensáveis para a garantia de sua reprodução física, cultural, social, religiosa e econômica’.

Segundo Anselmo Amaral, assessor de gabinete da deputada, explica que primeiramente a ideia era fazer um projeto que buscava livre acesso das catadoras às mangabeiras, mas como seria mais polêmico, foi alterado para primeiro buscar o reconhecimento entendendo que, através dele, seria mais fácil ter uma legislação que amparasse as catadoras. O dia das catadoras começa cedo. Se o trabalho for realizado nas mangabeiras perto do povoado, elas podem ir catar de manhã, voltar para casa, e depois catar à tarde novamente: “Geralmente, tiramos um balde de manhã e um à tarde”, conta Alicia. Como várias pessoas catam nestas regiões e, muitas áreas foram cercadas pelos donos das terras, sobra muito pouco e às vezes elas precisam ir para áreas mais distantes, a pé ou de barco. “Quando a gente vai de canoa e passamos três horas de relógio remando, já vamos preparadas e, se tiver, passamos o dia todo catando até encher todas as vasilhas, até cansar e o sol for embora”, explica. Geralmente, o trabalho é feito em família. “Eu vou mais assim, com minha mãe, minha cunhada, minha irmã. A gente se junta numa canoa e vai. Às vezes leva um homem pra remar e ajudar as mulheres. Em todos os casos, o máximo que cada uma cata é três baldes”, finaliza Alicia. Segundo pesquisa realizada por Dalva Mota, pesquisadora da Embrapa Tabuleiros Costeiros, o “volume médio de mangaba coletado pelos entrevistados varia, conforme a época do ano. No verão, cada catador colhe 84 litros (em torno de 63 kg) por semana, ao passo que, no inverno, esse volume cai para 30 litros (ou aproximadamente 22,5 kg)”. Dados do IBGE mostram que Sergipe é o maior produtor de mangaba do Brasil, tendo coletado em 2005, 497 toneladas, representando mais de 60% da produção nacional total.

Especulação da terra

O acesso das populações tradicionais nas áreas das mangabeiras é uma das práticas mais antigas dentre as suas estratégias de sobrevivência. Com a valorização da terra e da mangaba, a professora Sonia Meira, do Departamento de Educação e coordenadora do Grupo de Pesquisa Educação e Movimentos Sociais, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), explica que entre os principais problemas encontrados pelas catadoras estão a destruição da terra e o acesso a elas. Thacio, da Associação, acredita que quanto mais valor é agregado à mangaba, mas difícil se torna o trabalho das catadoras: “Todas as terras têm donos. Antes, o que as pessoas locais se preocupavam era com o cultivo do coco, porque ele tem um valor aquisitivo agregado desde muito tempo. A mangaba nasce na areia, entre os cocos. Hoje, que a mangaba vale mais, os donos estão cercando as terras, colocando cachorros, gente armada, ou até mesmo passaram a catar e procurar as pessoas para colher a mangaba para eles mesmos venderem”, conta. Para Alicia, as mangabas não são dos donos das terras: “As terras são deles, mas a mangaba não, ela é uma fruta nativa. A gente sempre teve acesso a essas terras e agora eles estão cercando”. Nas terras em que o acesso é livre, Sonia explica

que as catadoras precisam disputar o espaço com os atravessadores, pessoas que vêm de outros lugares para depois vender a fruta para as fábricas de polpa: “O atravessador não tem a preocupação com a coleta extrativista tradicional, ele tem a preocupação de quem está sendo diarista, que é a quantidade e, muitas vezes, pela falta de cuidado com o manejo da planta, ela acaba morrendo. Tem alguns lugares que elas disputam com o gado também. Então elas precisam ir muito cedo, às 3 horas da manhã, antes que o gado ou os atravessadores cheguem”. Sonia ainda aponta outros problemas enfrentados pelas catadoras, como em alguns sítios elas terem que pagar para os donos das terras uma porcentagem, em balde ou caixa, da mangaba catada. Também há os lugares onde a mangabeira é destruída pela monocultura (plantio de cana-de-açúcar e eucalipto) e pelos viveiros de camarão. Josué Francisco acrescenta que em cada região onde existe mangaba há uma ameaça diferente e, no caso do litoral do nordeste, a especulação imobiliária é um forte problema: “Principalmente nessas regiões de praia, porque a mangabeira ocorre numa região de grande beleza cênica, são as áreas mais valorizadas”. Sonia concorda “os lugares onde chega esse turismo mais predatório, que não é sustentável, apresentam grandes problemas para a preservação das mangabeiras”.

A crença na união

A unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), denominada Tabuleiros Costeiros, desenvolve diversos trabalhos na região do nordeste e identifica várias culturas importantes do ponto de vista socioeconômico, sendo uma delas a da mangaba. Em 2003, começou a realizar um trabalho de conservação da mangabeira, onde perceberam a importância das catadoras para a manutenção da espécie. O pesquisador Josué Francisco conta que eles perceberam que tinham que se aliar a esses povos: “Essa população tradicional que se autodenomina catadoras ou apanhadoras de mangaba, dependendo da região, reproduz ao longo das gerações os seus hábitos, suas culturas, seus costumes e dentro delas está a conservação da área de mangabeira, já que é sua fonte de renda”. Após este trabalho da Embrapa, e da crescente devastação das mangabeiras, as catadoras de mangaba de Pontal perceberam a necessidade de se unir e se organizar para a preservação das áreas ainda existentes de mangaba. Foi criada a Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (ASCAMAI), que tem cerca de 60 famílias. Em 2007, a partir da organização realizada em Pontal, aconteceu o I Encontro das Catadoras de Mangaba de Sergipe e nasceu o Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe (MCM), que reúne povoados de todo o Estado. O encontro aconteceu em setembro do ano passado na sede da Embrapa, em Aracaju, e teve o objetivo de discutir os problemas enfrentados pelas catadoras e mobilizar ações em defesa de seus modos de vida. Dentre os dados levantados durante o evento, calculou-se que 7500 pessoas dependem direta-

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mandas”. O trabalho mapeou os municípios de Aracaju, Barra das Coqueiros, Brejo Grande, Estância, Indiaroba, Itaporanga d’Ajuda, Japaratuba, Japoatã, Pacatuba, Pirambu, São Cristovão, Santa Luzia do Itanhy e Santo Amaro de Brotas, e encontrou 64 comunidades (58 povoados e seis assentamentos de reforma agrária), isto é, 1628 famílias que fazem extrativismo de mangaba no Estado de Sergipe.

Horizontes

Antes do projeto, que ensinou novas receitas com mangaba às catadoras, a fruta só era comercializada in natura, como polpa, em compotas, mousse ou como doce caseiro com pouca técnica. Depois, dentre as dez receitas produzidas pelas catadoras estão bombons, bolos, geleias, trufas e licores. Como elas não possuíam o selo da vigilância sanitária, as catadoras foram proibidas pelo município de produzí-las. Para resolver este problema, a Associação de Indiaroba, em parceria com a UFS, através da professora Sonia, realizou o projeto “Catadoras de Mangaba, Gerando Renda e Tecendo Vida em Sergipe” para o programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania 2010 com o objetivo de construir unidades de produção dentro dos padrões exigidos. No projeto, que foi contemplado no final do mês de outubro, foram envolvidos 24 Povoados, dentre eles assentamentos, nos municípios de Indiaroba, Itaporanga d’Ajuda, Estância, Barra dos Coqueiros, Pirambu, Japaratuba e Japoatã. Serão atendidas diretamente 600 mulheres, e indiretamente 1357 famílias que vivem da cata da mangaba. Cada município terá a sua unidade de produção, onde serão confeccionadas as receitas e, com isso, as mulheres poderão catar menos mangaba e conseguirão aumentar a sua renda mensal. A primeira unidade de produção já está funcionando em Pontal e até o final do ano todos os sete municípios contemplados com o projeto já terão suas unidades em atividade. No início de abril, as catadoras lançaram um sitio na internet (http://www.catadorasdemangaba.com. br/), onde é possível conhecer mais sobre as catadoras e o projeto, além de adquirir os produtos feitos por elas da mangaba. Valdineide Barbosa Santana, superintendente de Áreas Protegidas, Biodiversidade e Florestas de Sergipe, contou que, baseado no mapa do extrativismo da mangaba em Sergipe, foi encaminhado ao Instituto Chico Mendes (ICMBio) um pedido para criação de Reserva Extrativista (Resex) para os municípios de Itaporanga d’Ajuda, Indiaroba, Estância e Santa Luiza do Itanhy. Alicia e Thacio concordam que a Resex é uma das possibilidades para resolver o problema. Segundo o decreto 4.340/2002, o ato de criação de uma unidade de conservação deve, entre outras coisas, indicar a denominação, a categoria de manejo, os objetivos, os limites, a área da unidade e o órgão responsável por sua administração e a população tradicional beneficiária. Marcelo Cavallini, chefe da Coordenação de Criação de Unidades de Conservação do ICMBio, explicou que devem finalizar os estudos técnicos da área até o final do primeiro semestre deste ano. O objetivo para o segundo semestre é conversar com a população local para aproximar a proposta das unidades de preservação

foto: Paulo Renato Vitoria

mente da atividade no Estado, compondo cerca de 60% de toda a renda familiar. Das pessoas entrevistadas na pesquisa apresentada por Dalva Mota, 76% são mulheres e 24% são homens. “Os homens catam também, mas é mais uma tarefa mais de mulheres, tem uns que nem catam porque dizem que é serviço para mulher, os homens fazem outros serviços”, explica Alicia. O encontro melhorou algumas questões e dificultou outras. Do lado que melhorou está o reconhecimento das catadoras. Também conseguiram chamar atenção para os problemas da extinção das mangabeiras. “As catadoras são reconhecidas, o que não era antes do primeiro encontro, o pessoal não sabia qual era a verdadeira identidade da mangaba, quem estava por de trás, que somos nós, as catadoras”, comenta a presidente da Associação de Indiaroba. Já o lado negativo, Thacio explica que, como a mangaba tinha baixo valor aquisitivo, os proprietários das terras onde nasce a mangaba não se importavam das catadoras entrarem para extrair o fruto. “Os proprietários quando viram que a gente estava se organizando também se organizaram, colocando cercas e coisas assim, e tem gente que nem precisa, só pra dizer que é meu e tá acabado e na verdade elas não são os donos, porque, como a gente sabe, a mangaba é uma fruta nativa”, complementa Alicia. Feita a organização, as catadoras de Indiaroba buscaram estratégias para agregar valor à mangaba e, a partir de 2008, as mulheres começaram a comercializá-la in natura para a Conab (Companhia Nacional do Abastecimento). Thacio explica que, antes, seis litros de mangaba in natura, cerca de 3 a 4 kg, eram vendidos a preço médio de R$ 1,00 nas feiras. Já a Conab paga R$ 1,50 por 1 kg de mangaba. Foi neste ano também, que a organização conheceu a professora Sonia Meire, que realiza diversas pesquisas e projetos com as catadoras. Na época, a professora estava na Secretaria de Inclusão do Estado e, através de um projeto, teve o primeiro contato com as catadoras. Foram realizados cursos, onde elas aprenderam dez receitas diferentes e, assim, poderiam agregar mais valor à mangaba. “Elas [as catadoras] começaram a ir para as feiras promovidas pela própria secretaria e algumas pessoas começaram a ficar de olho para fazer essa produção das receitas de forma industrial, então resolvemos patentear”, explica a professora. As receitas foram produzidas pela culinarista Maria Aparecida, que faz experimentos com a fruta, e cedeu as receitas para serem patenteadas pelo movimento e só podem ser passadas para mulheres extrativistas da mangaba. Em 2009, ocorreu o segundo encontro das catadoras para discutir as mudanças que ocorreram após o primeiro. Também foi o ano que o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF-SE), sabendo dos problemas enfrentados pelas catadoras através do movimento, solicitou a Embrapa e a alguns órgãos do governo do Estado um estudo para verificar as reclamações feitas pelas catadoras. Neste momento foi confeccionado o “Mapa do Extrativismo da Mangaba no Litoral de Sergipe: Ameaças e De-

90% das mangabeiras foram extintas no Estado de SE.

da região com os seus interesses. Já as prefeituras dos próprios municípios não ajudam muito as catadoras de mangaba. Segundo a professora Sonia, “até o momento as prefeituras não ajudaram, mas a da Barra dos Coqueiros tem dialogado com as mulheres. As demais prefeituras não, até porque tem a questão das terras e ninguém quer bater de frente”, comenta. Thacio explica que mesmo depois de todas as realizações da associação, quando a prefeitura de Indiaroba foi questionada sobre os trabalhos que eles realizavam, disseram não ter conhecimento do grupo. “Eu, como representante da associação, deveria ter insistido mais a procura deles, mas a gente entende que a gente faz os trabalhos, tenta buscar a ajuda deles quando está construindo e eles não apareceram, mas quando tá pronto eles querem ser o pai da criança e isso a gente não admite. Em momento nenhum dissemos que não queríamos a ajuda deles, mas eles também não apareceram”, argumenta. “Cada município tem sua política e existe a politicagem. Nós fazemos parte de uma associação, que são pessoas que se organizam porque entendem que o trabalho em grupo tem força e ele pode ser realizado”, afirma Thacio. Alicia conta que é impossível eles não terem conhecimento da organização, já que diversas pessoas que fazem parte do governo vivem em Pontal, como por exemplo, “o assessor do prefeito, que tinha mangaba nas terras dele e mandou queimar, aí nasceu de novo porque a mangaba é muito forte, que nem as catadoras. Quando viu que estavam nascendo de novo mandou arrancar. Disse que fez isso porque não gosta de mangaba, então não gosta das catadoras”. A organização das catadoras de mangaba é mais um exemplo da luta da minoria contra aqueles poucos que muito têm. Mostra a necessidade da aplicação do principio constitucional da função social da propriedade e a obrigação do Estado de cuidar da cultura das populações tradicionais e contribuir para o desenvolvimento sustentável. Danielle Noronha é jornalista.

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Moradia

População urbana resiste com ocupações de terra

Por Bárbara Mengardo Aos mais desatentos, o grande terreno localizado no bairro Jardim Denadai, periferia da cidade de Sumaré, pode parecer apenas a continuação do cenário predominantemente visto nas periferias. Nele, barracos de madeira erguem-se de forma aparentemente caótica, e forram o espaço onde centenas de famílias moram muito próximas umas às outras. Ao entrar no terreno, entretanto, alguns elementos revelam a peculiaridade do local. Diversas ruas cortam seus 30 mil metros quadrados, na principal delas, batizada Zumbi dos Palmares, uma placa brada, entre outros dizeres: “Aqui lutamos pelo poder popular”. Continuando pela mesma rua, chama a atenção o nome das vias que a cruzam: Revolução Cubana, Carlos Marighella, Revolução Russa, entre outras. De fato, o grande terreno com moradias populares se diferencia em muito dos demais da região. Lá está localizada a ocupação Zumbi dos Palmares, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e fruto de quatro anos de lutas de seus moradores. Zumbi dos Palmares é a maior ocupação do MTST no Estado de São Paulo, e possui uma história única de conquistas e retrocessos. O terreno foi ocupado pelos moradores, sofreu reintegração de posse pela polícia e foi ocupado novamente qua-

fotos: jesus carlos

A maior do Estado de São Paulo, Zumbi dos Palmares, no município de Sumaré, tem uma história única de lutas e conquistas. Diversas ruas cortam os 30 mil m2 da ocupação Zumbi dos Palmares.

tro dias após o despejo, pelos mesmos manifestantes que o haviam feito anteriormente. Esse vai-e-volta garantiu a consolidação da ocupação, e a promessa, feita pelo ex-presidente Lula, de que as 600 famílias que lá habitam terão, até 2012, uma casa própria.

Propriedade e posse

Em novembro de 2008, cerca de 600 famílias adentraram o terreno onde atualmente está situada a ocupação Zumbi dos Palmares. Como de praxe em ações desse tipo tanto na área urbana quanto rural, os barracos de lona foram feitos com rapidez, o mato começou a ser carpido e as brigadas, que organizam a segurança, alimentação etc, começaram a ser formadas. Junto a esses elementos foi surgindo uma certeza: a repressão virá. E veio. Com rapidez, o Estado se articulou para defender a propriedade privada, mesmo que, neste caso, isso significasse proteger um terreno desabitado, abandonado há mais de 30 anos, que não estava atendendo à demanda por moradia da região: “A área estava abandonada há décadas e servia para alimentar a especulação imobiliária. Estando vazia, servia para uma série de crimes, como estupros, tráfico de drogas etc”, afirma Guilherme Simões, integrante do MTST.

A área, de 600 mil metros quadrados, pertenceu a um ex-prefeito, cujo sobrenome batizou o bairro onde a ocupação se encontra atualmente. Posteriormente, ele foi vendido ao dono de uma imobiliária. Fátima da Silva, coordenadora de uma das brigadas que atuam dentro da ocupação, acredita que em Sumaré esteja ocorrendo o mesmo que na cidade vizinha Hortolândia, onde o crescimento econômico está levando à especulação imobiliária: “Hortolândia tinha um monte de terra da prefeitura. Hoje você passa e nos locais existem placas de condomínios fechados. Essas terras estão sendo vendidas para empreiteiras ao invés de ir para o povo”. Enquanto o dono do terreno articulava-se com o Estado, o movimento crescia. No dia seguinte à ocupação já havia lá mil famílias, e como a ação aconteceu durante a semana da consciência negra, foi fácil batizar o local: Zumbi dos Palmares. No dia 10 de dezembro, quando a polícia chegou para despejar as famílias, o terreno já estava loteado e diversas ruas já haviam sido criadas. Todos os moradores foram expulsos do local, mas um evento fez com que a história dessa ocupação fosse diferente de muitas outras protagonizadas pela população organizada. Antes do despejo, o movimento havia entrado

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com um agravo de instrumento junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmando que não era possível provar que o terreno era utilizado para algum fim. Guilherme conta como este pedido definiu o destino da ocupação: “dois dias depois do despejo o TJ-SP, analisando nosso agravo de instrumento, considerou a reintegração ilegal, pois não havia comprovação da posse da área. O proprietário conseguiu comprovar a propriedade, mas não a posse, o uso. Por isso, quatro dias depois do despejo, fizemos uma assembleia e reocupamos a área”.

Superar o sistema

A vitória foi um marco na história do movimento, e justamente por isso não cessaram as investidas contra a ocupação. “Depois de alguns meses, sem nenhum outro recurso, a prefeitura de Sumaré se articulou com o Ministério Público, que entrou com uma ação civil pública alegando que o Movimento cometera crime ambiental, pois a área tem uma nascente” conta Guilherme. Neste ponto a ocupação já estava consolidada, e assumia as características que apresenta atualmente. Dos 600 mil metros, os moradores passaram a ocupar apenas 30 mil, o que possibilitou uma maior organização. Os barracos de lona foram substituídos por moradias feitas de madeira, e foram criadas seis brigadas, cada uma correspondente a um determinado número de casas. As brigadas possibilitaram uma gestão coletiva do espaço, conforme define Fátima, uma das coordenadoras da brigada Carlos Lamarca: “As brigadas servem para organizar, achar uma solução aos problemas ou tentar melhorar a convivência aqui dentro. Desde problemas entre vizinhos até problemas na rua, se tem limpeza, se o lixo é retirado”. Os moradores se reúnem com suas brigadas semanalmente, e assembleias gerais acontecem a cada mês ou de acordo com as demandas da ocupação. Fátima também comenta as atividades culturais já realizadas na Zumbi dos Palmares: “Aqui já foram feitas oficinas de quadrinhos, exposições de foto,

Aproximadamente 600 famílias moram na ocupação.

peças de teatro, e a gente está terminando um espaço para trazer o pessoal da capoeira e rap”. Consolidada a ocupação, era hora de os habitantes lutarem contra as ações da prefeitura. Em 10 de junho de 2009, algumas famílias montam um acampamento em frente à casa do ex-presidente Lula, reivindicando, entre outras coisas, que a situação em Sumaré fosse resolvida. A manifestação obteve resultados: “O então presidente enviou seu estafe para negociar com o MTST. O Movimento foi recebido em Brasília pelo então ministro das cidades, Márcio Fortes de Almeida, que abriu as negociações. Em Sumaré, todas as partes envolvidas (proprietário, prefeitura de Sumaré e de Hortolândia, Ministério Público, MTST e Ministério das Cidades) iniciaram um acordo para resolver o problema” diz Guilherme. Em fevereiro do ano seguinte, todas as partes chegaram a um acordo: em até dois anos, o governo federal construiria duas unidades do Programa Minha Casa Minha Vida para abrigar os moradores de Zumbi dos Palmares, uma em Sumaré e uma em Hortolândia. A prefeitura também construiu postes de luz nas ruas da ocupação. Apesar de tecer críticas ao Programa, Guilherme não acredita que é contraditório os integrantes do movimento entrarem para o Minha Casa Minha Vida: “Defendemos uma reforma urbana que não pode ser realizada nessa sociedade. Qualquer reivindicação que o Estado pudesse ceder não nos contemplaria, pois nosso projeto é superar o Estado burguês. Entretanto, entrar no Minha Casa Minha Vida está no horizonte das conquistas econômicas possíveis neste momento”. A promessa animou os moradores, mas aparentemente está longe de ser cumprida. Segundo Fátima, até hoje os terrenos onde seriam erguidos os prédios ainda estão vazios, e o processo para iniciar as construções está tramitando por estâncias burocráticas. Cláudio da Silva, morador da ocupação, resume a situação de muitos dos habitantes de Zumbi dos Palmares: “A casa em que a minha família vivia antes dava enchente, aí a minha mulher falou ‘vamos ficar lá na ocupação’. Espero que a gente saia daqui só para ir para os apartamentos, e enquanto eles não vierem, luta. A gente não quer nada de graça, todos vão pagar”.

Reorganização

A questão habitacional é crítica no Brasil, mas Guilherme vê uma reorganização dos movimentos sociais que levantam esta bandeira. O MTST tem ocupações em oito Estados brasileiros, e estas, somadas a outras, organizadas ou não por outros movimentos, somam milhares por todo o Brasil. Ele cita como exemplo dessa reorganização a criação da Resistência Urbana, que reuniu 13 movimentos que tem como enfoque a questão habitacional: “a Resistência Urbana é uma frente nacional de movimentos populares urbanos que está presente em treze Estados do Brasil e realiza atualmente uma campanha denominada Minha casa, Minha Luta, que prevê jornadas nacionais de luta”. Um dos temas que mobiliza a frente e que nos

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Visão da ocupação geral.

próximos anos estará intimamente relacionado à questão da moradia no Brasil são os grandes eventos, como Copa do Mundo e Olimpíadas. Segundo Guilherme, estima-se que os dois serão responsáveis pelo despejo de aproximadamente um milhão de pessoas em breve. Grandes debates e mobilizações em torno deste tema poderão fazer com que a população tome conhecimento sobre a luta pelo direito à moradia, que, para Guilherme, encontra adeptos com facilidade. Ele cita como exemplo o próprio Minha Casa Minha Vida: “Estamos em um período muito duro, no qual a economia parece crescer, mas na verdade os trabalhadores estão consumindo mais porque estão cada vez mais endividados. A popularidade dos governos também cresce, e a expectativa criada pelo programa Minha Casa Minha Vida é muito grande. São mais de 18 milhões de cadastrados brigando por 1 milhão de casas, e agora há a promessa do Minha Casa Minha Vida 2, com mais 2 milhões de casas, o que certamente irá gerar uma grande frustração e tende a alimentar as ocupações urbanas”. Ele comenta outro exemplo da capacidade de aglutinação do tema: na primeira reunião do MTST com a população de Sumaré havia duas pessoas, na segunda, 50, na terceira, 200, no dia da ocupação, 600 famílias, e no dia seguinte, 1000 famílias habitavam o terreno. Exemplos como a Zumbi dos Palmares demonstram como é urgente a questão habitacional no Brasil, e explicitam que enquanto os governos continuarem entregando terrenos à especulação imobiliária ao invés de dedicá-los à população, não faltarão pessoas que se reunirão em torno desse tema para lutar pelo que brada a placa na entrada da ocupação: Poder Popular. Bárbara Mengardo é jornalista.

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entrevista Toni Venturi

Um projeto assassinado pela ditadura militar

fotoS: olhar imaginário

O cineasta relata o que foi a experiência dos Ginásios Vocacionais e o processo de filmagem do documentário Vocacional: uma aventura humana. Ex-aluno de Ginásio Vocacional, Venturi resgata projeto educacional histórico.

Por Jaqueline Nikiforos Em 1969, a ditadura militar pôs fim a uma das experiências mais inovadoras de educação pública desenvolvidas à época no Brasil. Os Ginásios Estaduais Vocacionais foram concebidos pela educadora Maria Nilde Mascellani e implementados por meio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em 1962. Durante esses oito anos, os Ginásios Vocacionais contaram com seis unidades, uma instalada na Capital, com o nome de ”Oswaldo Aranha”, e as demais nas cidades de Batatais, Americana, Barretos, Rio Claro e São Caetano do Sul. Movidos por um projeto pedagógico baseado no estímulo à participação ativa e consciente do estudante em uma sociedade democrática, essas instituições funcionavam em tempo integral e eram responsáveis pela educação de meninos e meninas de 11 a 15 anos. O “Vocacional”, como era comumente chamado por professores e estudantes, possuía um sistema de avaliação e currículo diferenciados. Além das matérias tidas como convencionais, eram lecionadas disciplinas que, para a época, eram novidade, como Artes Industriais, Práticas Comerciais, Práticas Agrícolas, Educação Doméstica, além da Educação Física e das Artes Plásticas.

Em 1968, com a imposição do Ato Institucional nº 5 (AI5), a experiência educacional, porém, passou a ser dilapidada, até ser extinta, em 1969, após sofrer intervensões militares, a prisão de professores e a dissolução das grades curriculares. Para saber um pouco mais sobre essa história, a revista Caros Amigos entrevistou o cineasta Toni Venturi. Diretor dos filmes O Velho: a história de Luís Carlos Prestes (1997) e Cabra-cega (2005), dentre outros, Toni fez um registro da experiência dos Ginásios Vocacionais no documentário Vocacional: uma aventura humana. Caros Amigos – Que motivos o levaram a resgatar essa experiência de educação pública dos Ginásios Vocacionais? Toni Venturi – Fui um aluno do Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha. Eu entrei em 1967, na época com 11 anos. Nós, um grupo de ex-alunos que trabalham no ramo da comunicação, fomos chamados pela Maria Nilde Mascellani, não me lembro bem se em 1995 ou 1996, para fazer um projeto, um roteiro de um filme sobre os Ginásios Vocacionais. Isso mexeu muito com a gente. Mas um roteiro sobre o vocacional escrito a 30 mãos, ninguém acreditava que podia dar cer-

to. Mas ficou em mim essa vontade, essa necessidade de fazer esse filme, principalmente depois da morte dela. E aí eu quero fazer um parêntese: é a segunda vez que me acontece isso. Em 1985, eu procurei o Luís Carlos Prestes para fazer o documentário sobre a vida dele. Ele achou legal. Convivi com ele, fiz entrevistas em gravador, naquele tempo era um gravador de fita K7 não esse digital, foi tudo em fita. E em 1990, o Luís Carlos Prestes morreu e eu não tinha rodado um fotograma! Dez anos depois, acontece a mesma situação com a Maria Nilde e não peguei esse depoimento dela. Mas ficou em mim essa missão de fazer o filme. Além disso, todos nós que estudamos nos Ginásios Vocacionais passamos a entender, a partir de um determinado momento de nossas vidas, a importância daquilo que nós tínhamos vivido. Nós não tínhamos ciência da qualidade daquela educação pública libertária, formadora, que juntou o pensar com o fazer, o teórico com o prático, tendo os estudos sociais como centro, mas nós fomos parte disso. Os Vocacionais foram incubadores de um modelo de educação pública para todo o país, um modelo que não venceu, pelo contrário, foi repri-

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mido pela ditadura. Mas nós, crianças que éramos, não sabíamos que estávamos fazendo parte dessa experiência. Nós estávamos ali, porque a escola era boa, por isso nossos pais nos colocavam para fazer o exame de admissão. Depois que entrávamos [na escola], nós estávamos lá porque amávamos o espaço escolar. Essa perspectiva de uma “experiência revolucionária” só entendemos muito mais tarde. Foi muito mais que uma escola, ensinou-nos a ouvir o outro, a conviver com a diferença, a ter uma convivência democrática, em grupo. Ensinou-nos a trabalharmos todos juntos, remando para um mesmo objetivo e não competindo um com o outro, deu-nos uma inteligência sensível e um amadurecimento emocional. Tanto é que a grande maioria dos nossos colegas não necessariamente são celebridades, ou personalidades, mas o importante é que a maioria é gente bem resolvida, isso que é bacana. Porque aprendemos na escola a enxergar o outro e, assim, a nós mesmos. Um dos ditames da educação lá era: a autocrítica antes da crítica. Essa prática talvez nos tenha feito pessoas com uma cabeça mais “tridimensional”, menos antagônica, que tem a possibilidade de ver, escutar, pensar, repensar, que não tem problema nenhum em dizer: “Olha, você tem razão”. Eu não tinha tanta consciência como hoje tenho de como a ditadura foi violenta em relação ao conhecimento. Eu não tinha claro o quanto a ditadura perseguiu aqueles que empunharam os livros. Acho essa uma grande questão. O documentário é composto, além de depoimentos, de registros históricos tais como fotos, vídeos e relatórios produzidos na época. Como foi o processo de busca e organização desse material? Fotos, os ex-alunos estavam me dando. Alguns filmes em Super8 vieram de famílias também. A pepita de ouro desse material é um filme que encontrei na ECA (Escola de Comunicação e Artes da USP), feito pela primeira turma, que se formou em 1969 pela faculdade. Esse filme eu encontrei quase por acaso. Alguns amigos, durante o processo de pesquisa, deram o toque de que talvez tivesse alguma coisa lá. E eu fui fuçar na biblioteca e encontrei esse filme sensacional, que foi filmado pelo Jorge Bodanzky, esse grande fotógrafo brasileiro. Isso foi ouro, porque era um material de qualidade pictórica, que ilustrou todas as principais atividades didáticas que nós fazíamos e vivíamos lá. E isso trouxe uma emoção e uma riqueza visual muito grande, porque quando você põe junto aquelas pessoas falando com tanta verdade [os entrevistados no documentário] e você pode ver o que elas estão falando, ver aquelas crianças fazendo aquelas atividades, cuidando da cantina, trabalhando com maçarico, com martelo, com grosa, contorno, pintando, fazendo aula de educação doméstica, passando roupa, lavando roupa, cozinhando, quando você vê aquilo de verdade você fala “Uau, as pessoas estão falando de uma coisa que existiu!” Outra coisa foi como usar esse material: como construir, a partir de uma colcha de retalhos, um www.carosamigos.com.br

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filme narrativo, esteticamente belo, sem aquilo virar uma coisa muito caleidoscópica, muito fragmentada. Como dar uma unidade visual. Há superposições, jogos de espelhos e armários, janelas, confrontados com imagens de um lugar [a escola] em que hoje eu ando e não tem ninguém. Lá é um lugar vazio, com janelas quebradas, todo fechado com grades em todos os lugares, porque as escolas viraram verdadeiras jaulas. Houve dificuldades para conseguir os relatórios feitos pelos órgãos de repressão da ditadura e que aparecem no documentário? Não. Mas foi muito trabalhoso. Vieram do arquivo do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que está aberto ao público. Foi a pesquisadora Mariana quem ficou durante um ano levantando materiais no arquivo do Estado. Eu acho que foi possível talvez pelo fato desses arquivos não terem sido tão polêmicos. Não foi do pessoal que desapareceu, por exemplo, no Araguaia. Recentemente li que quase tudo o que dizia respeito aos militantes que desapareceram durante a luta armada foi queimado, extirpado antes de ser disponibilizado ao público. A repressão ao Vocacional foi muito menos polêmica. Não sei se muita coisa foi eliminada, ou arrancada de lá [dos arquivos]. Das razões pelas quais a ditadura militar pôs fim a essa experiência educacional, qual você pensa ter sido a principal? O Vocacional ensinava a pensar e era uma época em que pensar era subversivo. Então só isso já era o bastante. Nós estávamos sendo muito politizados. Fazíamos parte de um contexto em que a politização estava na agenda da sociedade e uma cabeça abrangente era muito perigosa para o sistema. Era um momento em que se discutia o projeto Mec-Usaid na universidade, e que foi imposto no Brasil. Ou seja, em vez de uma educação humana e generalista, foi colocado um projeto de educação norte-americana, pela qual o indivíduo se especializa verticalmente, mas não adquire visão de mundo, não desenvolve senso crítico. Esse tipo de projeto venceu e fazia parte do projeto nacionalista militar. Esse era o projeto Golbery para o Brasil. O Vocacional era uma experiência que estava absolutamente na contramão, mas era um carrinho que seguia na contramão de uma jamanta. O que aconteceu foi que não sobrou pedra sobre pedra. O projeto Vocacional foi totalmente escorraçado. O fim do Vocacional tem motivação ideológica e política. E daí foram dilacerando a pedagogia vocacional. À época, os pais lutaram muito, pois a participação dos pais era outra coisa que fazia parte do projeto da escola, a família fazia parte dos processos. Quando se fala da censura imposta pela ditadura, lembramos da censura imposta aos veículos de comunicação, ao cinema, às artes em geral. Porém, raramente recordamos que houve também o estrangulamento da atividade de diversos outros setores importantes como, por exemplo, da edu-

Cena de Ginásio Vocacional.

cação pública. Por que você acha que isso acontece? É, acho que isso acontece sim. Não tem esse lado heroico, mais dramático, talvez, que foi a perseguição às pessoas que foram torturadas fisicamente, que desapareceram, mas eu acho que é uma história a ser contada. Existe ainda uma fonte não explorada para outros filmes, livros, estudos e teses de como a ditadura impactou o sistema educacional. O Vocacional não foi a única experiência inovadora. O Brasil vivia uma série de experiências inovadoras, de renovação da educação. Isso porque se respirava nos anos 1960 a ideia de uma educação pública de qualidade. Nós precisávamos renovar a educação pública. Mas o que aconteceu quando veio a ditadura? Essa ideia foi destruída. Ao invés de irmos pra frente nós retrocedemos. Se nós formos fazer um trabalho de fundo, que conte as histórias das escolas renovadoras, vamos encontrar muitos casos de repressão profunda a esse tipo de experiência. Esse caminho foi abortado com violência e se implantou um processo de dilapidação das pedagogias públicas de qualidade. Com isso, estimula-se a segregação das classes na escola, perpetua-se a clivagem de classes. É muito estratégico isso para as classes dominantes. Além disso, os professores de hoje são resultado de uma formação incrivelmente pobre, que tem início nos anos 1970, porque o projeto que foi implementado no Brasil foi o da privatização da escola. Tanto é que as pedagogias do Vocacional migraram em parte para colégios particulares como o Equipe, o Vera Cruz, o Oswald de Andrade. Eu acho esse aproveitamento maravilhoso, mas são escolas privadas, é restritivo, é só para quem pode pagar. Como você vê a tarefa de repensar a escola pública atual? Nós temos que pensar a utopia, nos debruçar sobre experiências bem sucedidas! Jaqueline Nikiforos é jornalista.

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Futebol

“A REBELDIA

É QUE MUDA O MUNDO”

fotos: Raul Andreucci

Conheça a história de Afonsinho, o primeiro jogador do futebol brasileiro a derrotar a cartolagem e a conquistar o Passe Livre, há exatos 40 anos.

Por Raul Andreucci

Carismático, Afonsinho faz pose que lembra a da capa do livro Prezado Amigo Afonsinho, de Kleber Mazziero de Souza

Pelé estava se aposentando pra valer pela primeira vez, então com a camisa do Santos (porque depois voltaria a atuar pelo New York Cosmos, dos Estados Unidos), em 1972, quando foi questionado se, finalmente, sentia-se um homem livre. O Rei respondeu sem titubear: - Homem livre no futebol só conheço um: o Afonsinho. Este sim pode dizer, usando as suas palavras, que deu o grito de independência ou morte. Ninguém mais. O resto é conversa. Apesar de suas declarações serem motivo de chacota por parte da mídia futebolística e até dos torcedores brasileiros, o Atleta do Século acertou. E provavelmente acertaria novamente hoje. Pela admiração por um de seus colegas de clube daquele ano. Pelo reconhecimento do caráter e personalidade de um dos jogadores mais contestadores do futebol nacional. E principalmente em razão da história de luta – e vitória – de Afonsinho sobre os cartolas.

- Agora que o Passe deixou de existir, minha história também vai deixando de ter importância. Os jogadores já começam dentro desse esquema novo – diz, sempre humilde, Afonsinho, tentando achar uma explicação. Durante longos 65 anos (1933-1998), a Lei do Passe regulou a relação entre os jogadores de futebol, na condição de empregados, e os clubes, na posição de empregadores. Nada a ver com a atual liberdade de transferências e negociações permitidas desde 1998, graças a Pelé, na sua época de Ministro do Esporte, e à lei que leva seu nome. Na época de Afonsinho e Pelé, todos os profissionais tinham, inicialmente, o Passe Livre. Ou melhor, concretizada num símbolo pra lá de subjetivo chamado Passe. E, melhor ainda, não tinham o Passe, pois era vendido ao clube tão logo deixavam de ser amadores. Legitimados por lei, os dirigentes, donos dos Passes, em prol de suas instituições, tinham totais poderes para decidir salários, tempo de contrato, vendas ou empréstimos. Os futebolistas podiam até manifestar a sua vontade, fazer pedidos e considerações, mas a palavra final era sempre de quem estava acima na hierarquia de poder. Valia corpo mole, barraco, falar grosso. Mas, juridicamente, nada amparava quem era a razão de ser do espetáculo.

Passe mal

Afonsinho foi o primeiro jogador a conquistar o Passe Livre na história do futebol brasileiro, há exatos 40 anos. Fato que foi esquecido (ou deixado de lado?) tanto pela grande mídia como por publicações especializadas.

Uma relação praticamente escravocrata, que, como não podia deixar de ser, gerou diversos conflitos e reclamações bem antes da história de Afonsinho. Nenhuma delas, porém, teve tanta repercussão ou seguiu bravamente até as últimas consequências.

Passe pra lá

Afonsinho é do tipo tranquilo. Fala baixo, pausadamente, e não costuma perder as estribeiras. Difícil de tirar do sério. Não para o Botafogo, que conseguiu a proeza algumas vezes. Apesar do destaque nas categorias de base e participações importantes em quatro títulos do clube carioca (Rio-São Paulo de 1966, Cariocas de 1967 e 1968, e Brasileiro de 1968), Afonsinho começou a enfrentar problemas já no quarto ano como profissional, em 1969. Naquele ano, superadas as cismas de Zagallo, firmou-se na vaga de Gerson no meio e como capitão. Técnico e diretores da Estrela Solitária, porém, não esperavam – e sequer estavam acostumados a - um comportamento de quem briga por seus direitos. A primeira mostra veio na última partida da primeira fase do Torneio Roberto Gomes Pedrosa (hoje reconhecido pela Confederação Brasileira de Fute-

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bol também como Campeonato Brasileiro). No vestiário do Palestra Itália, antes de enfrentar o Santos, Afonsinho tentou conversar com os dirigentes sobre o prêmio pela vitória e tomou um belo puxão de orelha. - Jogador sabe. Quando o bicho não é pago no vestiário, o valor costuma cair. Precisa pelo menos estipular quanto vale. Os diretores enrolaram pra cá e pra lá. Como capitão eu era responsável por levar as reivindicações e apertei os caras. Mas eles não gostaram muito, né. O duelo terminou sem gols, mas com o Fogão classificado ao quadrangular final. Sem título, mas de férias, imaginava-se o natural apaziguamento pelo tempo. Antes fosse. Logo em janeiro, o time já excursionava pelo México. Contundido, Afonsinho se recuperou durante a competição e o Velho Lobo só o escalou nos minutos finais da partida derradeira. Irritado, o meia procurou, em vão, conversar com o treinador para entender os porquês daquilo que parecia perseguição. Sem respostas, voltou ao Brasil decidido a buscar novos ares. - Foram acontecendo crises de relacionamento. E o Botafogo não me emprestava, nem vendia. Não faltavam interessados: São Paulo, Atlético-MG e Santos. Não aceitei. A insistência de Afonsinho, porém, só piorou a situação. O Botafogo bateu o pé e, quase como castigo, só topou emprestá-lo para um clube pequeno, o suburbano Olaria. - Estava tão irritado, tão desiludido, que pensei em desistir de tudo, largar o futebol. Mas percebi que ia sair perdendo, deixando de fazer o que mais gostava. Acertei com o Olaria e, apesar das dificuldades, voltei a tomar gosto pelo futebol, virou um renascimento pra mim.

Passe pra cá

Depois de desentendimentos por ordens técnica e tática (de escalação mesmo), financeiras (o famoso bicho) e hierárquicas (aquele abusinho de poder básico), Afonsinho parecia finalmente estar de bem com a vida. Graças ao sexto lugar do Olaria no Carioca de 1970, excursionou pela Europa e pôde aproveitar um bom tempo para conhecer o continente e a contracultura. Julho parecia o mês exato para sentar à mesa com os dirigentes e resolver de vez a situação. A vontade era tão grande que não viu problema em aparecer um dia antes da reapresentação do grupo - para agilizar as conversas. A ousadia, pelo menos para os dirigentes, porém, não caiu bem. Repreendido, ficou sabendo que só seria recebido no dia seguinte, como os demais. Sem problemas. Lá estava ele, na data oficial, batendo bola com os colegas, trocando um lero, quando Zagallo e o diretor Xisto Toniato o chamaram de canto para um tête-à-tête. - Eles vieram com história pra cima de mim, tirando sarro da minha cara, dizendo que eu parecia cantor de iêieêiê com a barba e o cabelo por fazer. Queriam que eu tirasse tudo. E olha que nem estava grande como ficaria mais tarde. Resisti. O jeito como eu sou é minha decisão. www.carosamigos.com.br

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Afonsinho na década de 1960 pelo Botafogo.

A resistência, acrescentada ao histórico de contestações, alertaram o Botafogo. Era hora de dar um corretivo no cidadão. Se não aceitava as regras por bem, então que fosse por mal. Afonsinho foi banido de General Severiano. Simples assim. E de maneira humilhante: estava proibido inclusive de entrar no clube, ainda que só para manter a forma. Como resistisse à condição simbólica de adequação (barba e cabelo), teve seu Passe suspenso. Estava no limbo: não podia atuar pelo Botafogo nem ser emprestado ou vendido a qualquer outro. Para qualquer atleta, só restava uma opção: esfriar a cabeça, colocar o rabo entre as pernas, pedir desculpas e aceitar as coisas como elas são. Afonsinho não era qualquer um. Mesmo ciente das retaliações que poderia sofrer, decidiu fazer valer seus direitos. - Era comum os dirigentes pressionarem. O que eles não esperavam era uma reação como a minha. Conversei com meu pai, que sempre me ajudou, e decidimos entrar na Justiça.

Passe bem

A briga seria de cachorros grandes. Afonsinho foi avisado por colegas do mundo da música, intelectuais e outros atletas que a coisa poderia ficar feia mesmo: ser alijado do esporte. Até pior. Afinal, o momento não era para amadores, vivia-se uma ditadura militar! Certo de que estava com a razão, o meia estufou o peito de coragem e foi em frente. Com a ajuda do

pai, escolheu um advogado capaz de fazer frente aos poderosos: Rafael de Almeida Magalhães, exgovernador da Guanabara (antigo Estado e Distrito Federal). No primeiro round, como era de se esperar, os cartolas venceram. Com representantes dos clubes e da federação local, o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-RJ) favoreceu o Botafogo. O que não se esperava era a repercussão. Não se pode dizer que todos sonhassem com Médici, presidente militar da época, mas é óbvio que muitos viviam a apreensão por um regime livre e democrático. Um lampejo de resistência como esse, chamava a atenção. O tema chegou às páginas de jornais e revistas, virou assunto de rodas de botequim e, vejam vocês, deixou o Botafogo em maus lençóis. Pegava tão mal a posição do clube que um emissário foi enviado à casa de Afonsinho, na tentativa de um acordo: toma aqui uma graninha, você corta esses pelos todos e finge que nada aconteceu, esquece a imprensa. Nada feito. Afonsinho estava decidido a ir até o fim, mesmo que isso significasse lutar na Justiça comum. Quiseram os deuses do futebol, diante de tamanha comoção (e pressão) nacional, que o triunfo viesse no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Em 4 de março de 1971, oito meses depois de ser tratado como um qualquer, Afonsinho ganhava o direito sobre si próprio, ganhava o Passe Livre – pela primeira vez na história! - Um alívio tremendo! Afonsinho transformou-se em símbolo de rebeldia. Para o bem, virou música, filme e livro. E para o mal, levando uma carreira inconstante, apesar de defender os principais clubes do país. - Não me arrependo de nada, faria tudo de novo. Exatos 40 anos depois, deveria virar notícia – mais uma vez.

passe por aqui Quem quiser saber mais sobre a história de Afonsinho, aí vão algumas dicas que, inclusive, foram utilizadas na pesquisa para esta reportagem: Sites: mais da entrevista com Afonsinho e com o especialista José Paulo Florenzano, no HYPERLINK “http://www.carosamigos.com. br” www.carosamigos.com.br; artigo e livro sobre o tema, no HYPERLINK “http://www. ludopedio.com.br” www.ludopedio.com.br Filme: Passe Livre, documentário de Oswaldo Caldeira. Livros: Prezado Amigo Afonsinho, de Kleber Mazziero de Souza, e Afonsinho e Edmundo – a rebeldia no futebol brasileiro, de José Faulo Florenzano. Música: Meio de Campo, de Gilberto Gil. Raul Andreucci é jornalista.

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Pátria Grande - América Latina

Eleições no Peru e seus reflexos no Brasil e na América Latina Por Néstor Gorojovsky

A grande incógnita

O segundo turno não será simples para Humala. É indiscutivelmente o líder dos pobres peruanos, lhe cabendo, porém, a difícil tarefa de aglutinar em seu apoio as diversas forças sociais que possam converter a atual eleição em uma batalha democrática entre o Fundo Monetário Internacional e seu reduzido núcleo de aliados locais, por um lado, e a imensa maioria do Peru, mais ou menos abastada, por outro. A Nação em massa frente ao minúsculo e encapsulado grupelho daqueles que servem ao interesse antinacional. Porém, o Peru tem uma obstinada tradição política de ocultamento dos setores mais populares, quiçá a mais dura de toda América Latina. Some-se a isto a vigência de formas de discriminação e racismo arraigadas na sociedade de castas de tempos coloniais. A continuidade das velhas classes latifundiárias e mineiras, assim como sua posterior associação com o capital estrangeiro, nada fizeram senão exacerbar estas características. Na segunda semana de março, Humala, que até este momento não havia superado 12% das intenções de voto, rompeu de pronto todas as previsões e em poucos dias se colocou a frente do pelotão de candidatos. Os estrategistas anti-Humala, que o negaram com mais empenho que Pedro a Jesus, tomaram-no em conta repentinamente. A maioria, para denunciar que o eleitorado estava ante um perigoso chavista e golpista falido que se cobria com pele de cordeiro, de uma falsa benevolência, para capturar votos. Como apropriadamente diz o jornalista peruano Raúl Wiener, “o disfarce de Ollanta, se isso existe, não foi para ocultar-se ante seu povo, que entendeu muito bem quê coisa o une ao seu candidato, mas sim para tornar a seus adversarios o mais difícil possível a aplicação da tática de demolição que utilizaram em 2006”. Nessa oportunidade, as similitudes da ideologia de Humala e o chavismo se somaram à revolta de Andahuaylas contra Fujimori para que a campanha opositora lograsse imprimir a Humala uma imagem antidemocrática que repugnou boa

parte do eleitorado, e levou Alan García ao poder. O que interessa é saber se agora, no segundo turno, valerá a “tese do disfarce” para fazer com que votem contra Humala as camadas democráticas de classe média e média alta que, horrorizadas, veem em sua rival Keiko Fujimori o fantasma da restauração dos piores métodos de domínio do grande capital financeiro multinacional, as grandes empresas mineradoras que devastam o Peru, e outras “belezas” que não excluem a transformação de Lima em base sulamericana para a IV Frota dos EUA.

ilustração: RICARDO PALAMARTCHUK

No momento em que escrevemos estas linhas, acaba de dirimir-se a primeira parte do proceso eleitoral peruano. Pela segunda vez, Ollanta Humala, um candidato de origem militar, havendo se oposto em ocasiões a esse presidente Fujimori que não vacilou em recorrer ao crime para sustentar suas políticas de entrega econômica e submissão à vontade do grande capital estrangeiro, vence o primeiro turno. Voltará a ser-lhe esquivo o segundo? E isto, que incidência tem sobre o resto da América do Sul?

Uma nova dimensão

Já faz muito tempo que os acontecimentos políticos de cada um de nossos países deixaram de repercutir apenas sobre esses mesmos países. Os países sulamericanos estão sendo tomados por uma onda de reaproximação que faz de cada eleição local um movimento estratégico no xadrez do conjunto. Não acreditamos pecar por econômicos se dissermos que por trás deste fato há importantes forças materiais. Por um lado, as positivas e mais reconhecíveis, ainda que passivas: o incremento do intercâmbio entre os países da América do Sul cresce dia a dia. Somos atores do nascimento difícil de um mercado interno latino-americano (e não “peruano”, “brasileiro”, “chileno” etc.) que se centra na América do Sul. Para dizê-lo muito sinteticamente, a extensão das vias de comunicação interior e o desenvolvimento das forças produtivas, deformadas e tudo, como estão pelo peso ainda enorme das forças de extroversão econômica, estão começando a assentar os ainda tênues, porém já identificáveis, alicerces da reunificação econômica. O outro aspecto das forças materiais a que aludimos é mais sutil e frágil, porém é o aspecto ativo, e portanto o que mais nos interessa nesta nota: a crescente certeza de que no mundo moderno, orientado irrevogavelmente aos grandes blocos, a única possibilidade de existência dos países da América Latina é a unificação de suas capacidades em uma entidade comum cada vez mais sólida. Esta certeza faz com que a diferença de outros tempos, quando as eleições nos diversos países da América do Sul nos eram relativamente indiferentes, agora nos sejam vitais. Uma mudança de rumo na política peruana pode representar muitíssimo mais que uma esperança de mudança na vida das massas despossuídas deste país.

Do Pacífico ao Atlântico

Pode representar (e a visão americana de Ollanta Humala permite aspirar a que realmente seja assim)

o estabelecimento de um novo eixo geoeconômico e geopolítico na América do Sul: um eixo lesteoeste que vá desde o Pacífico (Lima) até o Atlântico (Santos) através de uma Bolívia com a qual, já disse Humala, “nos unem dois mil anos, e nos separam cento e oitenta”. Some-se isto ao movimiento centrípeto que está promovendo na Venezuela Hugo Chávez, disposto a que seus compatriotas se redescubram sulamericanos, para além de caribenhos, e a decidida orientação sulamericanista da política econômica argentina, para se entender, do Brasil, a importância dessa eleição. Que vença ou perca Humala já não é indiferente ao carioca, ao baiano ou ao gaúcho. E não por afinidades políticas, que também tem seu peso, claro. O acordo entre Venezuela e Colômbia, quiçá o resultado mais brilhante da UNASUL, converte o Peru em peça chave para a geopolítica da divisão americana. Se Humala ganha as eleições, o povo brasileiro se aproximará do Pacífico como jamais o fez antes. E quiçá seja o momento de que esse mesmo povo, para assegurar a eterna amizade dos peruanos, saiba forçar os Odebrecht a ter boa conduta nas terras do Inca quando construam caminhos e represas. Um triunfo eleitoral de Humala pode, por repercussão, plantear ao povo brasileiro a imensa responsabilidade que lhe cabe na construção do destino comum latinoamericano. Nada mal para uma eleição “local”. De fato, Lula já assumiu essa responsabilidade ao prover de assessores a candidatura de Ollanta. No aprofundamento dessa linha está a chave do futuro. Néstor Gorojovsky é geógrafo e jornalista argentino.

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Oriente Médio

Os sacrifícios de Isaac e Ismael

Na noite de 4 de novembro de 1995, encerrando a grande manifestação pela paz, na qual milhares de israelenses encheram a principal praça de Tel Aviv, apoiando Itzhak Rabin, que semana antes havia assinado com seu parceiro Yassir Arafat um acordo de paz, quando Rabin tentou entrar no seu carro, foi baleado à queima-roupa, como resultado da caça às bruxas desencadeada pela extrema direita nacionalista. Isso liquidou o processo de paz que havia sido iniciado por Rabin. Dezesseis anos depois, na noite de 4 de abril deste ano, enquanto o famoso ator, diretor de teatro e de cinema Juliano Mer Khamis, saía do Teatro Palestino no campo de refugiados de Jenin e tentava entrar no seu carro, “um pistoleiro mascarado esperou por Juliano e descarregou todas as sete balas de seu revólver à queima-roupa. Zakariya Zubeidi, o militante palestino, contou para o jornal Haaretz que o tiroteio não era uma operação isolada e sim, muito provavelmente, um assassinato premeditado. Zubeidi no passado liderou a Brigada dos Mártires El-AQUSA em Jenin, e depois se tornou codiretor com Khamis do Teatro da Paz, nessa cidade da Cisjordânia, criado pela falecida mãe de Khamis, Arna Mer. Zubeidi concluiu: ‘Uma grande mão armou essa operação’.” Não era difícil adivinhar que, mais uma vez, os inimigos da coexistência entre palestinos e israelenses, mas desta vez os palestinos nacionalistas, eram os responsáveis pela morte de Khamis, martelando mais um prego no caixão do lema “Dois Estados para dois povos”. Juliano simbolizava, mais do que qualquer outra pessoa, com seu corpo de gigante, e com sua alma grandiosa, a fome pela paz entre palestinos e israelenses. Ainda vivo, já tinha virado lenda. Na minha juventude, em meados dos anos 1950, estive no casamento da minha amiga Arna, filha do dr. Gidon Mer, cientista judeu alemão, um dos imigrantes judeus alemães pioneiros, e pioneiro das pesquisas sobre a malária ainda sob mandato britânico, com o jovem líder comunista árabe israelense Saliba Khamis, de Nazaré. Arna havia sido comandante feminina dos Combatentes Esquerdistas Sionistas, Palmach. Um casamento tão contrastante parecia um grande passo no sentido da coexistência entre árabes e judeus, tão crucial para nós, nos primeiros anos do estabelecimento do novo Estado. Spartacus, o primeiro filho, nasceu em 1956, antes da minha viagem ao Exterior. O Partido Comunista já tinha enfrentado um processo de isolamento e de boicote, enquanto os casamentos mistos despertavam cada vez mais ódio, principalmente entre os judeus.

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Na minha volta a Israel, após seis anos fora, o segundo filho, Juliano, nascido em 1958, já estava no jardim da infância, e já encontrei o terceiro filho, Abir, ainda bebê, assim chamado (“abir” significa “cavaleiro”) em homenagem ao livro “O Cavaleiro da Esperança”, de Jorge Amado. Nos anos 1970, quando Spartacus se aproximava dos 18 anos, se recusou a prestar o serviço militar, se declarando “árabe 100 por cento” (em Israel os árabes israelenses não podem servir o Exército; além dos judeus, somente os drusos e beduínos são admitidos). Mas Juliano, teimosamente, afirmou que se sentia “100 por cento judeu e 100 por cento árabe” e foi o único dos irmãos que voluntariamente prestou o serviço militar, na Unidade de Paraquedistas. Ele se tornou um dos mais talentosos atores de teatro que já existiram em Israel e também o mais corajoso deles. Como cineasta, filmou junto com sua mãe Arna, então à beira da morte, o filme “Os Filhos de Arna”, sobre o qual escrevi na Caros Amigos de novembro de 2004. Com os 50 mil dólares que Arna ganhou, no fim dos anos 1990, pelo Prêmio Nobel Alternativo, ela fundou o Teatro no campo dos refugiados de Jenin, teatro e campo destruídos pelas forças israelenses no famoso ataque em abril de 2002. Toda a crítica afirmou que o filme foi o mais tocante jamais realizado sobre a ocupação israelense. O jornalista Gideon Levi escreveu, no Haaretz, a 7 de abril último: “Há pouco mais de um mês, Juliano Mer Khamis subiu ao palco de seu Teatro da Liberdade, à beira do campo de refugiados de Jenin. Ao dirigir suas orientações para um grupo barulhento de crianças na plateia, que fazia sua primeira visita na vida a um teatro, disse: ‘Este é um espetáculo perigoso, com mensagens subversivas. Quem der um pio será retirado da sala’. “Um silêncio tomou conta do lugar. Durante os 75 minutos seguintes, assisti a uma das mais adoráveis, refinadas e politizadas peças de teatro a que jamais vira. “Nenhuma das crianças interrompeu a apresentação, com exceção de um menino que caiu em lágrimas quando viu um empregado andando numa corda”. E a jornalista Amira Hass, no Haaretz de 6 de abril passado, escreveu: “Juliano teve sorte. Nasceu numa família palestina e judia, judia e palestina. Este homem irado foi cercado por identidades conflitantes e complementares. Foi a sombra estendida de uma comunidade binacional imaginada nos idos dos anos 1950. Como um Peter Pan que se recusava a crescer, Ju-

foto: divulgação

Por Gershon Knispel

Juliano Mer Khamis: vítima da coexistência.

liano encarnou o potencial de uma vida compartilhada (‘ta’ayush’, em árabe), enquanto lutava por igualdade.”. Será que isso foi sorte dele? Ou azar, nesse clima de ódio e de raiva, por ser rebento de um casamento misto? A ira de Juliano era do tipo que só podia se originar de um judeu como ele, nascido na esquerda e militante pela igualdade até o fim, levando golpes de todos os lados, no fim liquidado como movimento de um homem só. Seu nascimento foi a realização da fantasia de “ta’ayush”, e seu assassinato foi um desastre. Isso enquanto os movimentos como o Paz Agora deixaram de existir, e os partidos da esquerda sionista, como o Partido Trabalhista e o Meretz, quase sumiram do mapa político de Israel. A 4 de novembro de 1995 ocorreu o início do fim do processo de paz. E o 4 de abril deste ano vai ser lembrado como o fim do sonho dos Dois Estados para Dois Povos”. Me sinto como pai adotivo enlutado pelo sacrifício de Isaac e Ismael juntos. Gershon Knispel é artista plástico.

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Tacape Rodrigo Vianna ...

BAFÔMETRO: OPOSIÇÃO EM FRANGALHOS O senador Aécio Neves – jovem e impulsivo estadista mineiro - é o novo líder da oposição. Deveria ser, pelo menos. Aécio foi à tribuna do Senado em abril, e pretendeuse apresentar ao país como chefe do bloco demo-tucano. Pronunciou um discurso cheio de platitudes como a defesa de “uma ética mais ampla, íntima, capaz de orientar nossas posições, ações e compromissos, todos os dias.” A velha imprensa brasileira deu destaque desmedido ao discurso. Parecia que Churchill, e não Aécio, tinha subido à tribuna. O JN exibiu longa reportagem sobre a fala do ex-governador de Minas. E a Folha de S. Paulo reproduziu o discurso na íntegra. Mas a ética de Aécio, o destemido líder da oposição, não resistiu a uma blitz da

polícia no Rio. Churchill também gostava de beber umas e outras. Mas, pelo que se sabe, nunca precisou escapulir de blitz da polícia, para evitar o bafômetro. Num esforço criativo, a chamada blogosfera tentou imaginar como seria a cobertura da velha mídia se Lula tivesse sido flagrado na blitz e se recusado a soprar o bafômetro... O blogueiro Eduardo Guimarães chegou a perguntar: “quem será o Larry Rother de Aécio?” Mais que isso: a blogosfera descobriu que o carro dirigido pelo jovem estadista na verdade estava em nome da rádio que a família Neves mantém em Minas. O veículo faz parte de uma ampla frota de carros de luxo. Todos em nome da emissora. Deve ser parte da “ética íntima” de Aécio... A velha imprensa, aliada ao tucanato, tratou o caso com discrição. A tradicional família brasileira não precisa - e nem deve – ficar sabendo das estripulias do jovem estadista. A gente compreende. Ali Kamel, a família Marinho, os Frias e os Civita também compreendem. Mas o fato é que o líder da oposição esfarelou-se. Pior: a oposição mesmo, por inteiro, esfarela-se. Em São Paulo, o prefeito Kassab conduz uma manobra oportunista de sobrevivência. Rompe com o DEM, funda novo partido. E arrasta para o PSD vereadores tucanos. O lulismo, diz-se nos bastidores da política paulista, veria com simpatia o partido de Kassab (na medida em que ajuda a avacalhar ainda mais a oposição). Mas o lulismo talvez

não tenha notado que o PSD pode servir a outro propósito: Serra. Sem a caneta na mão, o ex-candidato a presidente trava uma luta (desigual) com Alckmin, pelo controle do PSDB paulista. Alckmin quer empurrar Serra para uma candidatura a prefeito em 2012. Serra quer guardar-se para a presidência em 2014. Mas essa vaga já teria dono: Aécio. E se Aécio, esfarelado, sucumbir às tentações da noite carioca, Alckmin surgiria como o nome dos tucanos em 2014. Serra não parece convencido disso. E faz outra aposta: se não tiver espaço no PSDB, poderia lançar-se numa aventura à presidência pelo PSD de Kassab. A oposição sairia rachada, com dois nomes: Serra e Aécio. Ou Serra e Alckmin. Nenhum dos três parece ter força para enfrentar Dilma (ou Lula). Isso, hoje. Mas até 2014 ainda há muita manchete, muito escândalo, muito “Jornal Nacional”... Gramsci, o velho pensador marxista italiano, dizia que nos momentos de crise dos partidos tradicionais a imprensa é que costuma assumir o papel de “partido político da burguesia”. Com a oposição demo-tucana em frangalhos, o trabalho da velha mídia será árduo até 2014. O partido da imprensa terá que ser muito criativo para enfrentar o lulismo e ainda driblar a tendência peesedebista de esfarelar-se em público. Rodrigo Vianna é jornalista e responsável pelo blog. Escrevinhador www.rodrigovianna.com.br

Emir Sader

A ORDEM REINA EM PARIS Andando pelas ruas desta sempre bela cidade posso lhes garantir que a ordem reina em Paris. Mulheres islâmicas são reprimidas – com prisão, multa, assistência a um curso de cidadania (sic) – por usar seus tradicionais véus pelas ruas desta cidade, que já foi a capital da liberdade, igualdade, fraternidade. Mas a ordem reina em Paris. O atual presidente Nicolas Sarkozy está em terceiro lugar nas pesquisas para as eleições do próximo ano. Mas bombardeia no Afeganistão, na Costa do Marfim e na Líbia às populações locais, apesar de ter dito que os franceses nunca atirariam nos africanos. Mas tudo para que a ordem reine em Paris. Os metrôs e os trens chegam nos horários, os cinemas e os teatros cheios, restaurantes também. Quem circula pela cidade não consegue ler, de forma alguma, sinais da repressão às mulheres islâmicas, ou das guerras que o governo faz no exterior. Quando se lutava pelo direito ao aborto, para

superar o cinismo – o mesmo daqui – sobre um fenômeno que existe maciçamente, mas de forma diferente para quem pode pagar um serviço seguro, mas caro, e a massa da população sem proteção, Simone de Beauvoir comandou um manifesto de milhares mulheres, a maior parte delas muito conhecida – escritoras, artistas, entre outros -, publicado na capa da revista Nouvel Observateur, afirmando que elas já tinham feito aborto. Poucos anos depois, quando o jornal maoista Cause du Peuple, fundado em 1968, foi proibido, Sartre e Simone de Beauvoir foram vender os jornais pelas ruas de Paris. (Quando a polícia ameaçou prende-los, De Gaulle, com espírito de estadista, o impediu, declarando: “Não se prende Voltaire”.) Há não muito tempo, como resistência à repressão de africanos na França, um grande movimento se desencadeou, com os lemas: “Não toque no meu amigo” e “Tocou nele, tocou em mim.” Desta vez ninguém, nenhum artista, intelectual,

dirigente político, ninguém colocou um véu e saiu pela rua desafiando a repressão policial e expressando sua solidariedade com as mulheres islâmicas. Nenhum sentimento generalizado de indignação, nenhuma marcha ou ato de solidariedade. A ordem reina em Paris. A ordem colonial, racista, belicista. SUGESTÕES DE LEITURA: • COMBATENDO A DESIGUALDADE Miguel Carter (org.), Editora da Unesp • O 18 BRUMÁRIO DE LUIS BONAPARTE Karl Marx, Boitempo Editorial • TRABALHO E SUBJETIVIDADE. Paris na década de 1930 Giovanni Alves, Ed. Expressão Popular Emir Sader é cientista político.

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu ...

A REPRESSÃO AOS MOVIMENTOS SOCIAIS E OUTROS TEMAS RELEVANTES

O livro Repressão aos movimentos sociais – Habeas Corpus – fatos, feitos e resultados, da Coleção Advocacia Popular, editado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Expressão Popular, Cáritas Brasileira e Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, segundo a apresentação, “tem como objetivo auxiliar na formação dos estudantes de direito no enfrentamento de criminalização dos movimentos sociais”. Mas é de interesse também para todas as pessoas envolvidas nos movimentos sociais, já que trata da “defesa de movimentos e militantes sociais, defensores de direitos humanos, vítimas da perseguição estatal”. Trata-se de um caso exemplar que ilustra como o instrumento do habeas-corpus pode ser usado na defesa dos movimentos sociais, o de uma senhora de 53 anos, que teve a prisão preventiva decretada, acusada www.carosamigos.com.br

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de participar de ocupações de terras no Pontal do Paranapanema, em São Paulo. Outro livro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos trata das centenas e centenas de quilombos remanescentes no Brasil: “Quilombolas têm direitos”. A obra analisa como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, à qual o País aderiu em 2002, por decisão do Congresso Nacional, “aumentou os direitos que a Constituição deu aos quilombolas”, no artigo 68, “que mandou o governo entregar para os povos dos quilombos o título de propriedade das terras onde moram”. A Convenção 169 da OIT, “embora reconheça que essas comunidades têm alguns direitos a mais, diz que o governo tem também que dar a elas todos os direitos que as outras pessoas têm. Isso quer dizer que os membros das comunidades quilombolas têm os mesmos direitos que todos os brasileiros têm, e mais os direitos que a lei deu somente a eles”. Também da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos é o livro “Direitos humanos no Brasil 2010”, um relatório da própria Rede, organizado por Tatiana Merlino, editora adjunta da Caros Amigos e Maria Luisa Mendonça, jornalista e diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Entre os textos mais chamativos estão “Na sombra da imaginação – O camponês e a superação de um ‘destino medíocre’”, de Horácio Martins de Carvalho, “Monopólio da terra e produção de agrocombustíveis”, de Maria Luisa Mendonça; “Do Código Florestal ao Código das Biodiversidades”, de Aziz Ab’Saber, e “Após oito anos: como ficou a ‘erradicação’ do trabalho escravo!”, de Ricardo Rezende Figueira, além de “Violações cometidas pela transnacional Vale”, de Tatiana Merlino. Do jornalista carioca Carlos Amorim, que exerceu cargos importantes nas principais redes de televisão do País, temos uma reedição de “Comando Vermelho – a história

do crime organizado”, que ganhou o Prêmio Jabuti de 1994. Segundo o prefácio de Domingos Meirelles, “o livro nos convence de que, enquanto existir entre nós uma sociedade capaz de produzir intolerância, violência e segregação, legado de uma herança escravocrata que cristaliza desigualdades e alarga a inclusão social, haverá sempre vagas e protagonistas para que novos personagens entrem em cena, assegurando vida longa a essa confraria que se orgulha de usar como chancela o monograma CV”. O historiador francês Paul Veyne está tendo o seu “Foucault – Seu pensamento, sua pessoa”, lançado no Brasil pela Civilização Brasileira. Diz Veyne que, “por trás da obra de Foucault – como por trás da de Heidegger – esconde-se um não dito truístico e esmagador: o passado antigo e recente da humanidade não passa de um vasto cemitério de grandes verdades mortas”, mas Foucault “atacou esse problema do cemitério e o fez sob um ângulo de busca pessoal e inesperado: a investigação profunda do ‘discurso’, a explicitação das derradeiras diferenças entre formações históricas e, por esse viés, o fim das últimas ideias gerais”. Finalmente, a Editora Fundação Perseu Abramo, apresenta os volumes 5 e 6 de sua coleção sobre o governo Lula, 2003-2010 – O Brasil em transformação. O volume 5, A criação de um novo futuro na educação, cultura, ciência & tecnologia, esportes e juventude, tem artigos, entre outros, de Fernando Haddad, Juca Ferreira e Orlando Silva. Já o volume 6, Direitos humanos como direitos de todos. Sem exceção, apresenta textos de Kabengele Munanga, Matilde Ribeiro, Nilcéa Freire, Nilmário Miranda e Paulo Vannuchi, entre outros.

Renato Pompeu é jornalista e escritor. www.renatopompeu.blogspot.com rrpompeu@uol.com.br>

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