Ed. 169 - Revista Caros Amigos

Page 1

LGBT Deputado defende casamento civil

A PRIMEIRA À ESQUERDA

MERCOSUL Os conflitos com os Estados Unidos

CULTURA Kassab abandona espaços públicos

ano XV nº 169 / 2011 R$ 9,90

ENCARTE ESPECIAL

Saara Ocidental,

A ÚLTIMA

colônia da África ENTREVISTA

Raquel Rolnik

Especulação Imobiliária impede direito à moradia CAROS AMIGOS: 14 ANOS de RESISTÊNCIA

DENÚNCIA

Indústria FARMACÊUTICA explora o BRASIL

EXCLUSIVO

NOAM CHOMSKY “Potências não querem democracias nos países árabes”

BÁRBARA MENGARDO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GABRIELA MONCAU GUTO LACAZ IGOR OJEDA JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JOSEH SILLVA JÚLIO DELMANTO LEO DRUMOND LÚCIA RODRIGUES LUCIANA LANZA LUÍS VIGNOLO MARCOS BAGNO MC LEONARDO PAULA SALATI OTÁVIO NAGOYA PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO

-01-capa_169.indd 1

05.04.11 18:38:28


e u q s e r o Os Educad s a m g o D s o m a r a fi a Des Paulo Freire

O mestre que ensinou o oprimido a ler o mundo

Anísio Teixeira

Deu a vida pela formação do cidadão democrático

Darcy Ribeiro

Homem de fazimentos: criador dos Cieps, da UnB, romancista, senador, indianista, historiador.

Já nas bancas! Apenas R$ 9,90 www.lojacarosamigos.com.br -pag2_168.indd 2

03.03.11 15:51:33


CAROS AMIGOS ANO XV 169 ABRIL 2011 LGBT Deputado defende casamento civil

A PRIMEIRA À ESQUERDA

MERCOSUL Os conflitos com os Estados Unidos

CULTURA Kassab abandona espaços públicos

ano XV nº 169 / 2011 R$ 9,90

Foto de capa IGOR OJEDA

sumário

ENCARTE ESPECIAL

Saara Ocidental,

A ÚLTIMA

colônia da África ENTREVISTA

Raquel Rolnik

Indústria FARMACÊUTICA explora o BRASIL

Especulação Imobiliária impede direito à moradia

EXCLUSIVO

CAROS AMIGOS: 14 ANOS de RESISTÊNCIA

NOAM CHOMSKY “Potências não querem democracias nos países árabes”

BÁRBARA MENGARDO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GABRIELA MONCAU GUTO LACAZ IGOR OJEDA JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JOSEH SILLVA JÚLIO DELMANTO LEO DRUMOND LÚCIA RODRIGUES LUCIANA LANZA LUÍS VIGNOLO MARCOS BAGNO MC LEONARDO PAULA SALATI OTÁVIO NAGOYA PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO

-01-capa_169.indd 1

ENCARTE ESPECIAL

DENÚNCIA

EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) EDITOR E DIRETOR: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

05.04.11 18:38:28

RESISTÊNCIA E MUDANÇAS Caros Amigos completa 14 anos. É bastante tempo para uma publicação que nasceu na contramão do pensamento único e tem se dedicado ao jornalismo crítico, independente, sem se submeter ao jogo dos poderosos e do mercado. Em sua caminhada, a revista contou com a colaboração entusiasmada e militante de inúmeras pessoas, profissionais ou não do jornalismo, em especial com a dedicação do jornalista Sérgio de Souza, fundador e editor por mais de dez anos. Todos agregaram à revista uma boa dose de resistência. Reconhecida e respeitada por parcela significativa da sociedade brasileira, Caros Amigos passou por inúmeras mudanças ao longo dos anos, enfrentou crises, viveu conflitos internos e externos, e ainda hoje persiste em expressar uma voz diferenciada no ambiente editorial. Mais uma vez a revista procura ajustar-se com o seu público, investe em reportagens e entrevistas, reforça a cobertura de questões nacionais e internacionais, com o perfil político no campo da esquerda. Desde sempre Caros Amigos se apresentou como “a primeira à esquerda”, que serve para indicar a direção e agora está incorporado na capa. Ao mesmo tempo, a revista trata de reforçar o material de reportagem, ampliar as entrevistas e fornecer um material mais denso em análises e reflexões. Nesta edição, oferecemos aos leitores um encarte especial de oito páginas sobre a luta dos povos do Saara Ocidental, uma tremenda reportagem exclusiva de Tatiana Merlino e Igor Ojeda. Temos também três excelentes entrevistas: com Raquel Rolnik, urbanista, militante do direito à moradia e relatora da ONU, que dá uma geral no problema habitacional; com o intelectual estadunidense Noam Chomsky, que analisa o governo Obama e os conflitos nos países árabes; e com o deputado federal Jean Wyllys, defensor da luta LGBT, que faz um relato dos preconceitos dentro do Congresso Nacional. Outra reportagem aborda as ações e os danos causados pela poderosa indústria farmacêutica, que impõe os preços dos remédios, vende produtos vetados nos países desenvolvidos, cria doenças para aumentar o seu faturamento. Enfim, uma denúncia corajosa e rara na imprensa brasileira. Além disso, temos a sempre rica e variada contribuição dos colaboradores, com artigos, análises e crônicas. Aproveitamos para agradecer a todos os queridos amigos da revista que não mais participam obrigatoriamente das edições mensais, mas que continuam sempre Caros Amigos. Em frente! E vamos pra mais 14 anos!

Direto do Saara Ocidental, as lutas dos povos do deserto. 01 a 08 Por Tatiana Merlino e Igor Ojeda

A REPÚBLICA

DE AREIA

NO MEIO DO DESERTO, VIVE UM POVO QUE HÁ 35 ANOS ESPERA VOLTAR PARA CASA. NO EXÍLIO, CRIOU SEU PRÓPRIO ESTADO, COM CONSTITUIÇÃO, LEIS E ELEIÇÕES REGULARES. NAS PÁGINAS SEGUINTES,CAROS AMIGOS CONTA A HISTÓRIA DO SAARA OCIDENTAL, A ÚLTIMA COLÔNIA DA ÁFRICA.

Por Tatiana Merlino e Igor Ojeda Até onde o olhar alcança, só há areia. O horizonte é um infinito marrom-claro. Pequenos arbustos aparecem aqui e ali, invadindo timidamente o cenário. O sol sempre forte se une à extrema aridez do clima e castiga a pele. O céu de azul eterno não permite a presença de uma nuvem sequer. Nessa terra, a temperatura chega a 55 graus à sombra durante o verão, a água é um bem escasso e o solo não dá nada. Os únicos animais que nela sobrevivem são cabras e camelos. Estamos no deserto de Hamada, a área mais seca e inóspita do deserto do Saara, no sudoeste da Argélia, norte da África. Na região, nos arredores da cidade de Tindouf, estão instalados cinco campos de refugiados onde vivem, há mais de três décadas, cerca de 170 mil pessoas expulsas

de sua terra natal, o Saara Ocidental, antiga colônia espanhola hoje ocupada pelo Marrocos. Dajna Laman Merhi, de 50 anos, é uma dessas pessoas. Assim como milhares de compatriotas, a saaraui – como é conhecido o natural do Saara Ocidental – foi obrigada a deixar sua cidade, Mahbas, em direção à Argélia, quando, no final de 1975, o rei marroquino Hassan II promoveu uma invasão de 350 mil soldados ao país. Na operação para ocupar o território e expulsar os saarauis, conhecida como “Marcha Verde”, cerca de 2 mil pessoas morreram, e muitas outras foram vítimas de bombardeios de napalm e fósforo branco. Dajna, na época com 16 anos, teve que deixar os pais e sair de Mahbas com dois primos em direção ao leste. Durante 15 dias, caminhou

pelo deserto, até chegar à região de Tindouf, na Argélia. “Poucos vinham de carro, pois não havia muitos disponíveis. A maioria veio andando. O que importava era escapar dos ataques”, conta. Para se esconderem dos aviões marroquinos que bombardeavam a população em fuga, ela e os parentes se cobriam com folhas e galhos que encontravam pelo caminho. Nos acampamentos, como os campos de refugiados também são chamados, Dajna teve cinco filhos, de dois casamentos. O primeiro marido morreu na guerra, em 1981. Do segundo, divorciou-se. Uma das maiores tristezas de sua vida é que a ocupação marroquina impediu seus pais – que só voltou a ver muitos anos depois, através de uma visita organizada pela ONU – de conhecer os netos.

1

REPORTAGENS Indústria farmacêutica cobra caro e explora o povo brasileiro. Por Lúcia Rodrigues Grupos de teatro de rua debatem questões sociais e a arte popular. Por Paula Salati Prefeitura de São Paulo abandona as Casas de Cultura da periferia. Por Otávio Nagoya Os avanços democráticos na comunicação social na Venezuela. Por Leo Drumond e Luciana Lanza

ENTREVISAS

Raquel Rolnik: A especulação imobiliária impede o direito à moradia. Noam Chomsky: Potências não querem democracias nos países árabes. Jean Wyllys: Deputado LGBT defende casamento civil para todos.

ARTIGOS E COLUNAS

Mc Leonardo: comenta o papel das escolas de samba e o carnaval carioca. José Arbex Jr.: o imperialismo derrama sangue pelo petróleo líbio. Sérgio Vaz fala da música que o faz acreditar num mundo mais justo e melhor. João Pedro Stedile lembra os 15 anos do massacre de Eldorado dos Carajás. Gilberto Felisberto Vasconcellos questiona a ação do imperialismo no Brasil. Fidel Castro alerta sobre a substituição dos alimentos por biocombustíveis. Frei Betto analisa o que tem provocado aumento nos preços dos alimentos. Luís Vignolo analisa o choque geopolítico dos Estados Unidos com o Mercosul. Gershon Knispel relaciona a antiga rebeldia palestina com a atual revolta árabe. Emir Sader fala sobre a última geração da imprensa escrita brasileira.

SEÇÕES Caros Leitores Falar Brasileiro - Por Marcos Bagno: a formação ou deformação docente. Paçoca - Por Pedro Alexandre Sanches: passeio no mundo livre de Heliópolis. Amigos de Papel - Por Joel Rufino: somos afrodescendentes de quem? Ensaio Fotográfico - Por Gabriela Moncau: o México reprimido e rebelde. Perfil: Luiza Erundina - Por Débora Prado: mulher, nordestina e de esquerda. Tacape - Por Rodrigo Vianna: comenta a guerra dos tucanos em São Paulo. Ideias de Botequim - Por Renato Pompeu: Salazar, Robert Kurz e integralismo.

CHARGES

18 32 34 40

12 26 36 06 08 10 11 24 24 39 42 43 44 05 06 07 10 22 25 44 45 04 46

Guto Lacaz Claudius

www.carosamigos.com.br EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr ARTE: Ricardo Palamartchuk e Gilberto de Breyne EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Lúcia Rodrigues e Otávio Nagoya SÍTIO: Débora Prado (Editora), Gabriela Moncau e Paula Salati SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann COORDENADORA DE MARKETING: Júlia Phintener COMÉRCIO VIRTUAL: Pedro Nabuco de Araújo e Douglas Jerônimo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Clarice Alvon e Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu (Editor) ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Edcarlos Rodrigues, Joze de Cássia e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Douglas Jerônimo e Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo; Pillon Advogados REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9115-3659. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XV, nº 169, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

-sumario_169.indd 3

ALTERCOM

Associação Brasileira de Empresas setembro 2009 caros amigose Empreendedores da Comunicação

3

06.04.11 16:50:24


-guto_169.indd 4

05.04.11 18:56:20


CAROS LEITORES COMPROMISSO Primeiramente, gostaria de parabenizar a toda a equipe da Caros Amigos pelo comprometimento com a responsabilidade social, papel primordial de um meio de comunicação. Sobre a última edição, um parabéns especial para a jornalista Tatiana Merlino pela entrevista com o professor Rudá Ricci e pela reportagem sobre o complexo siderúrgico no Rio de Janeiro. Para terminar, não posso esquecer da bela tradução de Garcia Lorca (por Frei Betto) e as sempre geniais colunas de Marcos Bagno e do Glauco Mattoso. Abraço a toda a equipe. JúlioCésarCarignano–Jornalista–Cascavel–PR.

CESARE BATTISTI Cumprimento Caros Amigos pela matéria esclarecedora publicada no número de fevereiro a respeito da história de Cesare Battisti, na qual são ouvidas pessoas como Fred Vargas, Dalmo de Abreu Dallari, Paulo Arantes e Carlos Alberto Lungarzo, além de dar atenção ao relato do próprio Cesare em seu livro “Minha Fuga sem fim”, em que ele afirma não ter cometido os quatro assassinatos. Espero que a matéria contribua para que o Supremo Tribunal Federal decida pelo respeito à decisão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não extraditá-lo, tendo em conta as graves falhas cometidas durante o seu julgamento e o fato de que não há testemunhas que o tenham visto cometer os quatro assassinatos que o levaram a ser condenado à prisão perpétua, que não sejam os “arrependidos” ou “dissociados” que se beneficiaram da “delação premiada”. Abraços. Eduardo Matarazzo Suplicy – Senador – Brasília – DF.

MISSÃO O texto de José Arbex Jr. é sublime, arguto, corajoso, ínsito e transparente: como a Verdade, é indiviso, e brilha por sua própria perspicuidade. Ao abrir a edição de Janeiro, nº 166 (há três anos acompanho a revista, adquiro-a todos os meses) deparei-me com ele, com o belo e absolutamente

íntegro artigo de Arbez, logo ali, na página 5, “Rio, 2010: o Eterno Retorno da barbárie”. Já concordava com essa forte opinião... Obrigado por existir, Caros Amigos. Obrigado por sua coragem, por sua solitária jornada e seu ínclito vigor pela verdade. Continuem na missão. E eu estarei a seu lado... Elton Ávila – São João Del Rei – MG.

MUNDO ÁRABE Adorei a matéria do Arbex sobre as “revoluções” no mundo árabe e algumas das ilusões do “tudo vai mudar a partir de agora” feitas pela grande mídia. Também muito gratificante alguém mostrar o quão retrogrado é o sr. Nélson Jobim, que usa de todos os meios para impedir a restauração da VERDADE sobre os mortos e desaparecidos. Peter Mihajlovic – São Paulo – SP.

ter sido fácil! Parabéns! Priscila N. Pires – São Paulo – SP.

CONTEÚDO Meu nome é Marlon Sampaio Lopes, tenho 17 anos, e estou cursando o último ano do ensino médio. Sou um admirador e fiel leitor dessa incrível revista, sempre cheia de bons conteúdos e informações. Tomo os artigos e entrevistas como base para minhas redações e debates com meus professores e amigos. Aproveito também para parabenizar a todos os colunistas e redatores pelo excelente trabalho, pois é desse tipo de jornalismo que o Brasil precisa. Gosto da revista porque a mesma traz um jornalismo diferente, mostrando a verdade, a realidade, e o melhor de tudo, a análise crítica dos fatos que ocorre no Brasil e no Mundo. Marlon Sampaio Lopes – Santarém – PA.

VISÃO CRÍTICA Sou estudante de Jornalismo, ingressando agora no segundo ano. Há muito tempo acompanho as mídias alternativas, e a Caros Amigos teve um papel importante no amadurecimento de minha visão crítica da política e sociedade. Possuo um singelo blog onde poderão ter alguma referência http://giulianomascitelli.blogspot.com/. Grato. Giuliano Ribeiro Mascitelli – São Paulo – SP.

TOM ZÉ Olá, equipe da Caros Amigos! Gostaria de parabenizar ao editor Hamilton Octavio de Souza, e aos jornalistas Cecília Luedemann, Débora Prado, Lúcia Rodrigues, Lucia Tavares, Otávio Nagoya, Paula Salati e Tatiana Merlino pela instigante entrevista com Tom Zé, “Não faço música, faço rebeldia”. Sou estudante de jornalismo, e gostei muito de ver o entrevistado conduzindo a entrevista ao invés dos entrevistadores. “Rolou” um diálogo, e não o costumeiro jogo de pergunta e respostas secas que os jornalistas normalmente propõem. Por meio da liberdade que vocês deram a ele (Tom Zé) conheci um homem que pertence a um tipo humano raro, aquele que consegue ser genial e simples ao mesmo tempo. Foi a primeira entrevista que vi sobre Tom Zé e me apaixonei imediatamente por essa personagem tão fascinante e tão bem retratada por vocês. Não deve

Rolou no Twitter e no Facebook Como sempre a @caros_amigos não aderindo à pauta padrão da mídia informativa brasileira que só tem um interesse $$. Bruno Silva Paredes - Via Twitter. Todos os jovens deviam ler @caros_amigos faz muito bem pra saúde mental! Bruna Thomé - Via Twitter. Tenho lido constantemente a Caros Amigos. Há reportagens fantásticas. Aline Godoi - Via Facebook. Parabéns pela escolha do entrevistado Tendler, o diretor dos filmes sobre os 70 anos da UNE. Flávio Renato - Via Twitter. Parabéns a Caros Amigos... Excelente revista, visão crítica, um corpo de jornalistas fantásticos, defendendo um Brasil melhor. Roberto Gomes - Via Twitter.

Parabéns pelo trabalho de vocês. São ótimos. Murilo Nascimento Nonato - Via Facebook.

FALE CONOSCO ASSINE A REVISTA www.lojacarosamigos.com.br TEL.: (11) 2594-0376 (DE SEGUNDA A SEXTA-FEIRA, DAS 9 ÀS 18H)

SÍTIO: www.carosamigos.com.br

SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

REDAÇÃO

PARA REGISTRAR MUDANÇA DE ENDEREÇO; ESCLARECER

SUGESTÕES E CRÍTICAS A MATÉRIAS.

DÚVIDAS SOBRE OS PRAZOS DE RECEBIMENTO DA REVISTA;

EMEIO: REDACAO@CAROSAMIGOS.COM.BR

RECLAMAÇÕES; VENCIMENTO E RENOVAÇÕES DA ASSINATURA.

CARTAS: RUA PARIS, 856, CEP. 01257-040,

EMEIO: ATENDIMENTO@CAROSAMIGOS.COM.BR

SÃO PAULO, SP.

NOVO TEL.: (11) 2594-0376

FAX: (11) 2594-0351

COMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,

abril 2011

-Caros leitores_169.indd 5

caros amigos

5

05.04.11 18:42:54


falar brasileiro Marcos Bagno ...

FORMAÇÃO OU DEFORMAÇÃO DOCENTE? Para quem é escritor, encontrar seus livros num sebo é uma sensação estranha, difícil de definir. Não gostaram? Não valeu a pena comprar? No meu caso, porém, a coisa assume outro aspecto. A maioria dos meus livros se destinam à formação dos professores, são livros que tratam das características do português brasileiro, da opressão exercida pela tradição gramatical sobre o ensino, de como abordar o fenômeno da variação linguística em sala de aula e coisas assim. Como é então que, tendo ido recentemente ao Sebinho (o maior e melhor sebo de Brasília, além de ter um excelente café), topei com uma prateleira cheia de exemplares de dois livros meus, justamente os que (modéstia às favas) já se tornaram leitura obrigatória nos cursos de Letras e Pedagogia? Olhei em volta e vi que outros

Mc Leonardo

TUDO PELA CULTURA,

OU A CULTURA POR TUDO? Sempre falo que não existe nada mais importante para as favelas e periferias do Rio de Janeiro (na área cultural) do que as Escolas de Samba. Porém, não posso esconder as contradições que o carnaval provoca, e vou dizer porquê. Só no estado do Rio de Janeiro tem 70 Escolas de Samba. Cada escola recebe em média 25 sambas por ano, para que possa escolher 1 que irá apresentar no seu desfile. Cada samba tem em média 4 compositores. Somando esses número chegaremos a soma de 7 mil compositores espalhados por todo Brasil (a maioria do Rio e moradores dos subúrbios e favelas), pensando e escrevendo sobre a história do nosso país. A soma de trabalhadores envolvidos com o carnaval eu nem me atrevo em fazer aqui, mas me atrevo em dizer que não existe no mundo um espetáculo que empregue tanta gente. Daí a importância a que me refiro.

6

livros “clássicos” da área também estavam lá, devidamente enfileirados, prontos para a revenda. A resposta, infelizmente, eu já sabia. Uma pesquisa empreendida numa universidade paulista revelou que os estudantes de Letras e Pedagogia, quando terminam seus cursos, não dispõem de um acervo pessoal com as obras fundamentais de suas áreas de estudo. Não bastasse a precariedade dos cursos, ou decerto por isso mesmo, os estudantes se formam (se é que se formam) praticamente sem saber os principais conceitos da área e, pior, desprovidos de qualquer recurso bibliográfico aos quais possam recorrer em momentos de dúvida. Os estudantes de Letras, por exemplo, não têm em casa uma única gramática tradicional e, quando têm, é alguma edição antiga, dos anos 1960, de quando os pais estudaram os poucos pais que estudaram, já que a retumbante maioria desses estudantes vêm de famílias com baixa escolaridade e até com escolaridade nenhuma. Não se importam em comprar o telefone celular mais sofisticado, mas quando se trata de comprar livros, fazem sempre um pequeno escândalo, alegando que são muito caros (e são mesmo!). O que for possível xerocar, mesmo sendo obra disponível no mercado, é xerocado (um verbo que soa tão feio e que remete mesmo à obscenidade do que significa). O que for possível copiar e colar da internet é copiado e colado e entregue como trabalho final de disciplina. E aceito alegremente por muitos professores.

Com o crescimento econômico a cada ano, o carnaval foi sendo aceito e usado (pelos governantes e empresas privadas) e tudo o que lhe envolve também. Falo dos patronos das escolas de samba que na grande maioria são contraventores e mesmo assim conseguem, além de fazer o carnaval junto com a Prefeitura, Governo do Estado e Governo Federal, negociar o evento com as maiores marcas do mercado brasileiro e internacional. Mas essa parceria tem um preço, e eles (governantes e empresários) sabem cobrar. Para o povo, carnaval é festa; para mídia é lucro; para as empresas, é propaganda e para o governo, o carnaval é tudo isso junto (povo, festa, mídia, lucro, empresa e propaganda). Esses interesses são ameaçados quando se fala em problemas sociais. Com isso, as Escolas de Samba quando fazem um enredo criticando ou denunciando situações do nosso cotidiano, tem uma forte chance de ser penalizadas na hora do julgamento. E os exemplos são muitos, e um dia escrevo sobre isso aqui. Mas entre tantos interesses, vou finalizar falando da propaganda governamental desse ano no carnaval Carioca. Aproveitando a “lua de mel” em que vive a Policia Militar do Rio de Janeiro e a mídia

É verdade que 70% dos estudantes de Letras só estão na universidade para conseguir um diploma superior e tentar outra coisa depois (em Brasília, paraíso do funcionalismo público, o sonho dourado é sempre passar num concurso). Não admira, sendo a educação brasileira o que é: uma tragédia ecológica pior do que as queimadas da Amazônia (já disse isso e repito sem pudor). O mais trágico é que se forma com tudo isso um círculo vicioso e viciado: estudantes vindos de uma escola pública péssima entram em cursos universitários péssimos e recebem uma formação que é mais uma deformação que qualquer outra coisa. Saem diplomados, não conseguem lugar no mercado de trabalho, porque não têm formação suficiente, e vão tentar a sorte no magistério, último reduto de quem não consegue coisa melhor na vida. E lá vão essas pessoas ensinar (o quê?) aos alunos da rede pública, que já é uma rede mais do que rasgada e furada, por onde os peixes escapam, felizes da vida. Enquanto nada for feito para dignificar a profissão docente, e enquanto os cursos de Pedagogia e Letras não forem implodidos para em seu lugar surgirem verdadeiras escolas de formação docente, vamos continuar sendo uma das dez maiores economias do mundo e o 85º país em qualidade educacional. Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Carioca, o governo não teve dúvida, e a Policia Militar foi o produto da vez. A Unidos da Tijuca teve o medo como enredo, e o nome desse enredo era a seguinte frase: “Essa noite levarei sua alma”. Frase muito parecida com a do CAVEIRÂO (veiculo blindado utilizado pelo BOPE), que assim que começou a invadir favelas falava assim: “Eu vim roubar a sua alma”. A bateria da Mangueira vestida de oficial da PM e marchando na avenida deu pra engolir, já que o saudoso Nelson Cavaquinho era da corporação, mas havia ali uma nítida intenção de valorizar a imagem da PM. Mas o fim da picada foi ver a bateria do Salgueiro vestida de BOPE, não quero censurar, cada carnavalesco que escolha como deve vir sua escola, só quero alertar que se eles estivessem falando que precisamos repensar a nossa policia, eles não teriam a mesma liberdade. No fim valeu a pena, todas elas voltaram a desfilar entre as campeãs do carnaval. Mas fomos salvos pelo rei. Parabéns a Beija Flor, e que nem tudo se acabe em carnaval! Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

caros amigos abril 2011

bagno+mc_169.indd 6

05.04.11 19:35:08


PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches ...

Anoitece em Heliópolis. É sábado, e as ruas da comunidade localizada na região sudeste da capital paulista estão repletas de gente. Pagode, forró e funk carioca explodem exuberantes em várias caixas de som. Nesta noite, há nada menos que oito opções de festas nesta que é considerada a favela mais populosa da cidade, vive intenso processo de urbanização e nem assim teve até hoje seu nome grafado como bairro nos mapas oficiais de São Paulo. As estimativas são desencontradas – Heliópolis teria 70 mil, 100 mil ou 125 mil habitantes. Em qualquer dos casos, é uma parte substancial do distrito em que está (des)abrigada, o Sacomã, com 228 mil habitantes, segundo o Censo de 2000. Sejam quantos forem os moradores, muitos deles estarão festejando nesta noite, em bailes gratuitos de funk carioca ao ar livre, em pleno asfalto, no show do sambista de fibra Almir Guineto ou no galpão onde acontece a Balada Black Educativa. As festas, gratuitas ou próximas disso, atraem gente da própria região, das comunidades vizinhas e de municípios próximos, como São Caetano do Sul. Como cantava o velho roqueiro baiano Raul Seixas em Novo Aeon (1975), as festas de Heliópolis não dão no rádio nem estão nas bancas de jornais. Por falar na Bahia, entidades da região, como a Unas (União de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco), apostam que algo como 90% dos moradores locais têm origem nordestina. O galpão da Unas sedia a Balada Black, mas não à toa o forró é onipresente por ali, como atestam os camelôs que vicejam pelas ruas e os DJs da Rádio Heliópolis, uma das mais antigas rádios comunitárias em atividade na cidade. O Nordeste compõe o DNA de Heliópolis como compõe os códigos genéticos do forró, de Luiz Gonzaga e de Raul Seixas. Heliópolis costuma aparecer de modo sofrível no noticiário “nacional”. Nos três primeiros meses de 2011, por exemplo, foi mencionada meras nove vezes na Folha de São Paulo. Um texto falava sobre a morte de um empresário durante assalto a banco, outro era uma reportagem genérica sobre troca de chefia nas delegacias locais e tráfico de drogas. Cinco textos se referiam ao Egito – versavam sobre a “chique Heliópolis”, o bairro do Cairo onde morava o ditador recém-deposto Hosni Mubarak, ou sobre o hotel Intercontinental Heliópolis, que hospedava a reportagem correspondente da Folha. www.carosamigos.com.br

-Pedro Alexandre_169.indd 7

Mensal, a Balada Black é uma matinê. Começa às 20h e atrai uma multidão atordoante de adolescentes e pré-adolescentes sedentos por... funk carioca. Há uns poucos adultos no tumulto. São pais checando o terreno onde a garotada vai se esbaldar – vários trouxeram os filhos de carro, e voltarão para buscá-los ao final da festa. “Deixa eu entrar, eu nasci em 2000!”, implora uma garotinha maquiada e caracterizada como (quase) adulta. Organizador (e DJ) da festa, Reginaldo Gonçalves sua frio para se equilibrar entre a vontade de tocar funk antigo e música brasileira variada, o brio de lotar a pista e os perigos da atração fatal entre a criançada e o funk carioca. Reginaldo sabe que generalizações do tipo “nenhum funk carioca presta” são tão obtusas quanto dizer “não gosto de nada azul”. Seleciona funks que não extrapolem nem correspondam aos estigmas ruins que o estilo carioca (e brasileiríssimo) carrega. Afinal, a balada é educativa.

PATROCÍNIO

A balada é educativa inclusive porque ali é proibido o consumo de qualquer bebida alcoólica. E é a patrocinada por uma grande cervejaria. Mais ágeis que o rádio e os jornais, as marcas se tocam rapidamente do potencial “de mercado” do mundão que se levanta nas periferias do Brasil. O jornalismo pode mal saber da existência de Heliópolis, mas o McDonald’s sabe bem: entrou na Justiça e conseguiu fazer apagar da fachada da lanchonete Mec Favela o logotipo que imitava você sabe qual. Mas e a cervejaria, o que está fazendo ali, numa balada onde álcool não entra? Reginaldo reproduz o discurso de responsabilidade social adotado pela corporação, conta do próximo projeto da cervejaria, de incentivar a suspensão, nos (inúmeros) botecos da região, da venda de novas doses para quem já bebeu demais. O interesse seria incentivar o consumo responsável e ensinar os adolescentes de hoje a beber com maior consciência de daqui a alguns anos. Enquanto isso, tomem refrigerantes – da mesma marca, evidentemente. Na aberta e convidativa Rádio Heliópolis, os locutores se alternam entre conversar com a comunidade, tocar sucessos pop do lado de cá do rio e dar vazão à (enorme) produção musical local, que abrange pagodes, forrós, rocks, raps e, claro, funks. Um militante evangélico entra no estúdio da rádio, munido de uma pilha de folhetos. Pede divulgação, explica do que se trata aos dois DJs, um rapaz e uma moça, ambos estudantes de jornalismo. O propósito não é converter infiéis religiosos, mas

ILUSTRAÇÃO: MURILO

UM PASSEIO PELO MUNDO LIVRE

sim pregar que os jovens da comunidade se inscrevam num programa de bolsas de estudos de uma faculdade privada, prestem vestibular e, se aprovados, entrem para a vida universitária. As inscrições acontecerão no domingo, numa van instalada ao lado da padaria. No panfleto estão os logotipos da universidade, do ProUni, do Ministério da Educação, do governo Lula. Propaganda eleitoral de Dilma Rousseff persiste em muros e paredes. A ex-vereadora Soninha Francine (PPS), aliada do governo demotucano, costuma aparecer para apresentar programas na rádio. Na sede da Unas, uma placa documenta a visita do presidente Lula e do ministro da Cultura Gilberto Gil, no ato de inauguração do Ponto de Cultura local. Reginaldo explica que ali não é a sede do Ponto de Cultura – segundo conceitos que talvez até a nova gestão do Ministério da Cultura tenha dificuldade de compreender, o Ponto de Cultura não tem sede física. Ponto cultural é a própria comunidade, subsidiada pelo governo federal não para receber cultura “sagrada” vinda do centro para a periferia, mas sim para fomentar e desenvolver seus próprios modelos de cultura. Um dos moradores envolvidos na organização da Balada Black tem 16 anos e formou uma banda. Quando caminho com ele por Heliópolis, pergunto se gosta de funk. De início diz que não, depois conta que a música que compôs e gravou é um... funk. E passa a se queixar do pai, que não gosta nem um pouco da ideia de ter um filho funkeiro – o que, parece, faz seus olhos brilharem. Freud também mora em Heliópolis. E, no final das contas, nem é tão difícil assim dar razão aos ímpetos funkeiros do garoto. As mensagens sombrias que fizeram a glória do rap paulista fermentaram autoestima e despertaram consciências, mas talvez hoje perigam caducar se insistirem na abordagem apenas pessimista do mundo. Goste você ou não, funks e forrós se assemelham mais à efervescência e à alegria que imperam no ar (quase) puro de Heliópolis. Não deu no rádio nem está nas bancas de jornais, mas há oito festas rolando por aqui nesta noite. Pedro Alexandre Sanches é jornalista. abril 2011

caros amigos

7

05.04.11 19:08:28


Ainda segundo Choss

Guerra

ilustração: bruno paes

Imperialismo derrama sangue pelo petróleo líbio

Por José Arbex Jr. O ataque da Otan à Líbia produziu duas reações antagônicas e igualmente delirantes. A primeira reação é a de apoio à operação militar, supostamente destinada a preservar a vida dos opositores do “sangrento ditador Muamar Kadafi”. Certo: é como se as tropas da Otan fossem integradas por uma legião de madres Teresas de Calcutá. Tratase, aqui, de pura imbecilidade, mau-caratismo ou desinformação (provavelmente, uma mistura dos três), pois qualquer pessoa minimamente informada sabe o que significa a ocupação de um país por tropas estrangeiras, especialmente no caso da Otan. É só lembrar a primeira Guerra do Golfo (1991), quando pelo menos 150 mil iraquianos (a maioria formada por crianças, mulheres e civis) morreram na “guerra sem mortes”, operada com “armas de precisão cirúrgica”. A outra reação, no extremo oposto, é a defesa

8

do regime de Muamar Kadafi, em nome de uma suposta resistência anti-imperialista. Se (e aqui vai um grande “se”) o regime de Kadafi pôde, algum dia, ostentar com alguma credibilidade uma reivindicação desse tipo, isso foi enterrado há pelo menos uma década, quando o ditador líbio (dono de uma fortuna estimada em bilhões de dólares) começou a mostrar uma face mais “civilizada”. Em 2003, anunciou sua adesão à “guerra ao terror” promovida por George Bush junior, ganhando como prêmio a suspensão de sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos contra a Líbia. Os produtores de petróleo dos Estados Unidos e HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/ Gr%C3%A3-Bretanha”Grã-Bretanha (HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/BP”BP, HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/

Exxon” \o “Exxon” Exxon, HYPERLINK “http:// pt.wikipedia.org/wiki/Halliburton” Halliburton, HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/Chevron” Chevron, Conoco e Marathon Oil) receberam carta branca para expandir as suas atividades no país, para não falar de empreiteiras brasileiras e turcas, além de outras empresas europeias. Além disso, em 2005, as “irmãs” do petróleo juntaramse a gigantes da HYPERLINK “http://pt.wikipedia. org/wiki/Ind%C3%BAstria_b%C3%A9lica” \o “Indústria bélica”indústria bélica, como HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/Raytheon” Raytheon e HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/ wiki/Northrop_Grumman” \o “Northrop Grumman” Northrop Grumman, e a multinacionais como HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/ Dow_Chemical” Dow Chemical e HYPERLINK “http://pt.wikipedia.org/wiki/Fluor” \o “Fluor”

caros amigos abril 2011

-Arbex_169.indd 8

05.04.11 18:41:20


Choss

Fluor para formar a US-Libia Business Association. Haja anti-imperialismo!

Economia petrolífera

Se o imperialismo decidiu romper a lua de mel com o Cauby Peixoto do Saara (sem pretender qualquer ofensa ao nosso grande cantor), isso se deve unicamente ao fato de que o regime de Kadafi, profundamente abalado pelos protestos estimulados pela “revolução árabe”, mostrou perigosos sinais de incapacidade de garantir o fluxo de exportação de petróleo. Em alguns dias, o volume exportado caiu para menos de 50% dos níveis normais. Como observa o economista canadense Michel Chossudovski: “Com 46,5 mil milhões de barris de reservas provadas (10 vezes as do Egito), a Líbia é a maior economia petrolífera no continente africano seguida pela Nigéria e Argélia. Em contraste, as reservas provadas dos Estados Unidos são da ordem dos 20,6 bilhões de barris (dezembro, 2008) de acordo com a Energy Information Administration. U.S. Crude Oil, Natural Gas, and Natural Gas Liquids Reserves. A Líbia está entre as maiores economias petrolíferas do mundo, com aproximadamente 3,5% das reservas globais do “ouro negro”.

Insurreição

Ainda segundo Chossudovsky, a operação da Otan (batizada com o nome “Odyssey Dawn”, algo como “Alvorecer da Odisseia”) tem como objetivo o controle direto das reservas de petróleo e gás da Líbia, sob o disfarce de uma intervenção humanitária. Até aí, tudo bem. Mas, para ele, a coisa vai muito além: “A Operação faz parte de uma agenda militar mais vasta no Médio Oriente e na Ásia Central, a qual consiste em obter controle e propriedade corporativa sobre mais de 60 por cento das reservas mundiais de petróleo e gás natural, incluindo as rotas dos oleodutos e gasodutos. Uma operação militar desta dimensão e magnitude, envolvendo a participação ativa de vários membros da Otan e países parceiros, nunca é improvisada. A operação “Odyssey Dawn” estava em etapas avançadas de planejamento militar antes do movimento de protesto no Egito e na Tunísia. A opinião pública foi levada a acreditar que o movimento de protesto se propagou espontaneamente da Tunísia e do Egito à Líbia. A insurreição armada na Líbia Oriental é apoiada diretamente por potências estrangeiras. As forças rebeldes em Bengazi imediatamente arvoraram a bandeira vermelha, negra e verde com o crescente e a estrela: a bandeira da monarquia do rei Idris, o qual simbolizava o domínio das antigas potências coloniais.” A hipótese, baseada em muitas evidências concretas arroladas pelo economista, faz muito sentido, especialmente quando se considera que os principais redutos rebeldes estão situados justamente nas áreas mais ricas em petróleo. Desde a época do Império Romano, o país está dividido em três regiões distintas: a Cirenaica (leste), a Tripolitânia (noroeste), e Fezzan (sudoeste). O coração da rebelião é a Cirenaica, onde estão as principais www.carosamigos.com.br

-Arbex_169.indd 9

tribos hostis ao ditador – Warfalhah e Zawiya. A oposição das tribos é um dado central da luta política na Líbia. A organização social do país se baseia nas 140 tribos e nos clãs familiares dessas regiões. Quando assumiu o poder por meio de um golpe que depôs o rei Idris, em 1969, Kadafi defendia uma forma confusa de panarabismo de estilo nasserista. Em nome dessa ideologia, tentou suprimir a divisão tribal. Em pouco tempo, contudo, se rendeu a ela. Kadafi ofereceu privilégios econômicos de um lado e manipulou rivalidades intertribais, de outro. Colocou grupos rivais no Exército e nas forças de segurança para se prevenir contra um golpe. As forças paramilitares, cerca de 10 mil homens bem armados e equipados, constituem o principal sustentáculo de seu poder. O imperialismo, segundo a hipótese levantada por Chossudovski, teve apenas que manipular as tensões entre as tribos. E há fortíssimas razões para a urgência da operação, apesar de todos os riscos que ela implica, especialmente após os grandes fiascos no Afeganistão e no Iraque. Com a palavra, a insuspeita revista britânica The Economist, na primeira semana de março: “O preço do petróleo tem demonstrado uma capacidade infalível de explodir a economia mundial, e o Oriente Médio, com frequência, fornece o seu detonador. O choque do petróleo de 1973, a Revolução Iraniana, em 1978-79 e a invasão do Kwait por Saddam Hussein, em 1990, são dolorosos lembretes de como a combinação regional de geopolítica e geologia pode provocar o caos. Com protestos surgindo na Arábia Saudita, o mundo caminha para um novo choque? Há boas razões para preocupação. O Oriente Médio e o norte da África produzem mais de um terço do petróleo mundial. As revoltas na Líbia mostram que a revolução pode rapidamente interromper o fornecimento (...). A produção na Líbia caiu pela metade, enquanto técnicos estrangeiros emigram e o país se esfacela.”

Reserva Saudita

As chances de uma “explosão” econômica mundial são agravadas pelo quadro de crise financeira prolongada, iniciada em 2008 com a explosão da “bolha” especulativa nos Estados Unidos. Por razões óbvias, o súbito aumento do preço do barril do petróleo – que, em fevereiro, momentaneamente, chegou a saltar dos US$ 100 para algo em torno de US$ 120 – é péssima notícia para a economia planetária. Cálculos feitos por especialistas indicam que um aumento consistente de US$ 10 no preço do barril causa a redução de 0,25 ponto percentual no índice de crescimento econômico global. Pode parecer pouco, mas é um golpe gigantesco quando se trata de um período em que os mercados tentam se recuperar da crise financeira ainda em curso. O “primeiro choque” do petróleo levou o preço do barril (em valores ajustados à inflação), até perto de US$ 50, em 1975. O “segundo choque” produziu um salto até o recorde de US$ 110, em 1980. O recorde só foi ultrapassado às vésperas da crise financeira de 2008, quando o preço do barril aproximou-se de US$ 140. O temor

atual é de que aquele teto histórico seja atingido novamente, ou mesmo ultrapassado. E o maior “nó” vem agora: a Arábia Saudita, que possui cerca de 24% das reservas mensuradas de petróleo e é o maior exportador mundial do produto, tem capacidade técnica e reservas suficientes para compensar, por algum tempo, o fornecimento interrompido ou diminuído de outros países produtores, como a Líbia. A situação escaparia realmente ao controle se até mesmo a Arábia Saudita for engolfada pela revolução árabe. A hipótese não está descartada, especialmente após o envio de tropas sauditas para Bahrain, em meados de março. A monarquia saudita caminha na corda bamba: ela é obrigada a distribuir bilhões de dólares em “programas sociais de urgência”, para atenuar as tensões sociais, mas, sobretudo, ela tem que mostrar os músculos contra manifestantes muçulmanos, o que é muito complicado e perigoso, em se tratando de um regime que deriva grande parte de seu prestígio pelo fato de ser o guardião de Meca e dos locais mais sagrados do Islã.

Fora OTAN, fora Kadafi

Outro dado imprevisível é o comportamento dos “emergentes”, incluindo Brasil, Índia e China, onde o uso do petróleo é proporcionalmente muito mais elevado do que nos países industrializados. O PIB estadunidense, por exemplo, equivale a três vezes o chinês, mas os Estados Unidos utilizam apenas o dobro do petróleo consumido pela China. O “esfriamento” da economia chinesa, um dos grandes motores da recuperação econômica mundial, poderia provocar um efeito recessivo em cadeia. No Brasil, por outro lado, embora a Petrobrás tenha força suficiente apara atenuar, por algum tempo, os impactos da elevação dos preços dos combustíveis, seria inevitável o surgimento de uma pressão inflacionária, caso a crise se prolongue no Oriente Médio, principalmente no setor de transporte de carga e de produção de insumos agrícolas, uma área estratégica da economia nacional. Assim, o ataque da Otan à Líbia não pode ser creditado nem à madre Teresa de Calcutá, nem tem como vítima um suposto herói da resistência. Trata-se de uma imensa manobra militar do imperialismo de grandes consequências – mesmo que a hipótese de Chjossudovsky não venha a ser completamente comprovada -, que deve ser firmemente repudiada pelos povos do mundo e por todos os que se alinham com a luta contra o imperialismo. Isso não se identifica com a defesa de Muamar Kadafi. “Fora Otan e fora Kadafi!”, talvez fosse uma boa palavra de ordem para os manifestantes líbios. A tragédia é que não se vê no horizonte nenhuma força política com capacidade de unificar as tribos, organizar e liderar um combate que coloque no horizonte o direito do povo líbio à sua própria soberania. O sangue que corre em terras líbias é a mais pura expressão da impotência diante da ofensiva imperial. José Arbex Jr. é jornalista.

abril 2011

caros amigos

9

05.04.11 18:41:20


amigos de papel

Sérgio Vaz

Oração de um vira-lata

Joel Rufino dos Santos ...

10

Ilustração: koblitz

Por que chamamos negros de afrodescendentes? Palavras, como tudo, nascem, vivem e morrem. Aliás, é para isso que servem os historiadores: mostrar como um país, um deus, uma palavra se transformam em outros, parecidos, mas diferentes. De passagem, reconheçamos que os historiadores também nos divertem. Hoje em dia, muitos se aborrecem quando chamados de negros, crioulos, escuros, de cor etc. Exigem o afrodescendente (ou afrobrasileiro). Outros ridicularizam o termo, se aborrecem com sua catadura politicamente correta. A palavra afrodescendente tem menos de trinta anos. A geração anterior se chamava a si de negros, rejeitando os apelativos de cor, preto, escuro, moreno etc. A mudança dessa preferência não foi aleatória, correspondeu a mudanças em outros setores da sociedade. A economia brasileira se tornou competitiva, surgiu um movimento negro, a África ganhou prestígio mundial, o mito da democracia racial brasileira virou pó etc. Nesse meio tempo, a idéia de Brasil continuou parecida, mas ficou diferente. Essa nova ideia, no que respeita aos negros (afrodescendentes), trocou o nome antigo pelo novo. Negros politizados e mídia popularizaram o termo afrobrasileiro. A África, até há pouco tempo, não era um referência popular no Brasil. Só lembrava Tarzan, Jane, Lothar. Para a maioria dos negros brasileiros, sua ascendência africana nada representava, tal a ignorância sobre o continente africano. Hoje, não. Lembra, por exemplo, Nelson Mandela. Em que somos africanos? Podemos, de verdade, usar a palavra afrodescendente para nos identificar? A UNESCO está relançando no Brasil a História Geral da África. Os mais conceituados africanistas nos mostram, nessa obra monumental, como as populações africanas mudaram desde a pré-história. Descobrimos que há muitas Áfricas dentro da África; como há muitas Américas dentro da América; Ásias dentro da Ásia; e Europas dentro da Europa. Na África, há povos que nunca se conheceram, culturas que nunca se cruzaram. A questão se repõe: somos afrodescendentes de quem? No plano genético, os brasileiros descendem em boa parte de africanos. Mas não é simples, como parece. Primeiro, todos os seres humanos descendem, genericamente, de africanos. Segundo, todos

Ilustração: koblitz

negros são afros?

os brasileiros descendem, em graus variáveis, de africanos. Valores e hábitos africanos continuaram no Brasil, entrelaçados, por vezes fundidos, a europeus, indígenas asiáticos. A civilização brasileira, isto é, a nossa maneira de ser, dá continuidade à africana, em outro ambiente (a América) e em outro tempo (os tempos modernos). Os brasileiros, e não só os negros, são, em certo sentido, neoafricanos. Quanto à dinâmica histórica, Padre Vieira lembrou que sem Angola não haveria Brasil; e sem o tráfico, para não ir longe, o capitalismo brasileiro não teria deslanchado. A palavra afrodescendente é, portanto, verossímil e aceitável. Mas há um problema. A África e o Brasil mudaram muito desde que existem. E se, ao invés de nos atermos a certos valores e hábitos, quisermos realçar o que mudou? Talvez, então, seja preferível a palavra da geração anterior: negros. Só para os religiosos há uma Palavra verdadeira. Para os historiadores há palavras, cada uma com sua verdade. Joel Rufino é historiador e escritor.

A música Wake up everybody (acordem pessoal) de John Legend e Roosts” ainda me faz acreditar no ser humano, no sonho de um mundo mais justo e melhor. Há dias eu a ouço, como um mantra, antes de sair pras batalhas das ruas, antes de enfrentar os leões que nos espreitam nas dificuldades do cotidiano, nas vielas das incertezas e na cruz da mediocridade que nos assombra. Esta música tem sido a minha bíblia, meu alcorão e meu torá, isso, é claro, sem desrespeitar a religião de ninguém, digo porque há muito tempo não sou sintonizado em algo tão sagrado e honesto. Porque muitas vezes ter juízo, é a prova de que já se está no final. Aliás, falando em religião, queria aproveitar pra dizer que sigo um Deus chamado “Amor” e é só pra ele que ajoelho, que rezo. E este Deus que habita meu coração, só me ilumina quando amo outras pessoas, quando amo o que faço. E ele só se manifesta quando as mentiras que conto pra mim não afeta o coração de outras pessoas. E que o Deus que mora em mim, não deixa que seja escravizado, nem que escravize, porque a palavra liberdade está contida em todos os versículos dos meus dias. Para recitá-la em forma poema, não em sermão de montanhas inacessíveis, mas no riso que aquece a poesia do povo que tem fé no amanhã. O Deus todo poderoso chamado Amor faz com que o sal de minhas lágrimas transforme-se em calos nas mãos, para que nunca esqueça que nada cai do céu, e que minhas derrotas e vitórias também nascem dele, e que o medo de lutar é um inferno com mil areias movediças em que o covarde se atola. O Amor que está em mim e você, não sabe o que faz, por isso muitas vezes é crucificado, por isso não deve ser seguido. Quem ama erra. Quem segue o Amor sabe que o milagre não está na vida, mas na coragem de viver. Quem acredita no amor reencarna todos os dias no paraíso. Amém. Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br.

caros amigos abril 2011

-Joel+Sergio_169.indd 10

05.04.11 19:02:07


João Pedro Stedile

CARAJÁS:

SE NOS CALARMOS ATÉ AS PEDRAS GRITARÃO! No dia 17 de abril de 1996, centenas de famílias de um acampamento sem terra do sul do Pará estavam em caminhada rumo a Marabá e Belém para exigir a desapropriação de um latifúndio de 50 mil hectares, totalmente improdutivo, que havia destruído a floresta amazônica e agora tinha apenas algumas cabeças de gado. E duas casas velhas. O Presidente do Incra de então, sr. Francisco Graziano, agrônomo paulista, de certo, profundo conhecedor da região, havia considerado que a área era produtiva e criado um impasse com o acampamento, pois desta forma não havia solução. Informes reservados da ABIN e do serviço de inteligência do exército, instalado em Marabá, revelavam a seus superiores que se tratava de perigosos radicais. Estavam exigindo demais, queriam desapropriar 50 mil ha. Era governador Almir Gabriel, do PSDB do Pará, e Fernando Henrique Cardoso presidia o Brasil sob “égide das elites paulistanas subalternas ao capital internacional. O cenário estava montado. As elites não admitiriam mais pressões sociais, incabíveis em tempos de neoliberalismo. O governo do estado determinou que a Policia Militar “limpasse” a rodovia, a qualquer custo. Dois batalhões saíram de seus quartéis de Paraupebas e Marabá para cercar o sem-terra de lados opostos. A marcha se encontrava a essa altura na curva do S, no município de Eldorado de Carajás. Os batalhões chegaram sem identificação na farda, com metralhadoras, fuzis e munição verdadeira. Mas tomaram o cuidado de avisar os hospitais

de Paraupebas e Marabá que naquela tarde haveria muito trabalho. E infelizmente, houve! Alguns anos depois, o advogado de defesa dos policias revelou num filme documentário que a poderosa empresa Vale do Rio Doce havia financiado o deslocamento dos policiais... e as despesas necessárias. O resultado todos conhecemos: 19 sem terra assassinados a sangue-frio, centenas de feridos, 69 deles inválidos para o trabalho agrícola pro resto da vida, e outros dois vieram a falecer nos anos seguintes. O mais jovem líder do acampamento, companheiro Oziel, com apenas 19 anos de muitas necessidades, preso, algemado, de joelhos, foi assassinado a coronhadas na frente dos pais, após os policiais exigirem que continuasse gritando Viva o MST! Viva a reforma agrária! A mídia burguesa ainda tentou levantar a tese do “confronto”. Mas uma repórter da SBT havia filmado todo processo. Pagou caro, ameaçada de morte, teve que deixar o trabalho e a região, até hoje. E nosso querido Sebastião Salgado fotografou tudo. A sociedade chorou. As entidades internacionais exigiram providencias. E, então envergonhado, o governo FHC agora sim considerou a área improdutiva e a desapropriou. O poder judiciário local, influenciado pelas forças reacionárias e latifundiários, instalou um processo completamente viciado. Completa-se agora 15 anos daquela tragédia. Anotem. Nenhum policial autor direto ou indireto da chacina, nenhum político mandante, nenhu-

Especial para Leitores da Caros Amigos 3 livros pelo preço de 1

ma autoridade responsável, foi punida. Tudo está impune. Na curva do S foi erguido um belíssimo monumento composto por 19 troncos de castanheiras, também queimadas pelo latifúndio... As famílias que não desistiram foram assentadas, construíram um belo assentamento e hoje a agrovila é um próspero distrito do município de Eldoraldo de Carajás, e o prefeito foi eleito pelas forças progressistas e pelos sem terra. Produzem mais de 30 mil litros de leite por dia para abastecer as cidades da região. Os movimentos camponeses de todo mundo, indignados com o Massacre de Carajás, imitaram os operários e as mulheres e declararam dia 17 de abril o Dia Internacional da Luta Camponesa. Fernando Henrique, talvez com remorso, antes de deixar o governo, assinou também um decreto, de origem no senado, que declara dia 17 de abrilo Dia Nacional da Luta pela Reforma Agrária, no Brasil. Seguiremos, portanto, lutando por reforma agrária, por obrigação até legal. Seguiremos exigindo punição e justiça a todos os responsáveis pela maior chacina ocorrida no meio rural em toda história da República do Brasil. Se não o fizermos, como denunciou em seu verso o poeta Pedro Tierra, até as pedras gritarão! João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

DE R $

POR R$

57,8 0

29,9 0

• A Salvação da Lavoura - Receita de fartura para o povo brasileiro • Depois de Leonel Brizola • O Xará de Apipucos AUTOR: GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS Jornalista, sociólogo, escritor e colunista da Caros Amigos Ligue para 011 2594.0376 ou acesse www.lojacarosamigos.com.br www.carosamigos.com.br

-JoaoPedro_169.indd 11

abril 2011

caros amigos

11

06.04.11 16:04:23


entrevista raquel rolnik

Direito à moradia

fotos: Jesus Carlos

versus especulação imobiliária

Participaram: Bárbara Mengardo, Cecília Luedemann, Débora Prado, Otávio Nagoya, Paula Salati, Tatiana Merlino. Atual relatora especial da ONU para direito à moradia adequada e professora da FAU-USP, a urbanista Raquel Rolnik é uma voz respeitadíssima no Brasil e internacionalmente. Participou da Secretaria de Planejamento na gestão Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992) e ficou no Ministério das Cidades de 2003 a 2006, quando deixou o governo por discordar das políticas urbanas e de moradia adotadas com a mudança ministerial. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, Raquel Rolnik conta episódios de sua passagem pelo governo, expõe a sua visão sobre os problemas urbanos, em especial o da moradia, e relata que tem recebido muitas denúncias de despejos violentos motivados pelas empresas que especulam com a terra nas cidades. Débora Prado – A gente sempre começa perguntando como foi a sua formação e a sua trajetória profissional e política. Eu acho legal, porque essa trajetória explica muito as minhas posições, hoje, e a leitura que eu faço das coisas. Eu estudei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) na Universidade de São

12

Paulo (USP) no início dos anos 1970 e isso foi absolutamente determinante, para mim, porque eu pude viver, não só a FAU, que é uma escola muito especial do ponto de vista de uma abertura para as dimensões humanas, artísticas e técnicas, mas também porque os anos 1970 foram os anos de luta contra a ditadura. E eu tive a oportunidade, o privilégio, de poder participar do movimento estudantil, da reorganização dos movimentos de luta contra a ditadura nos anos 1970. E também tive a oportunidade, através da Profa. Ermínia Maricato, que foi minha professora naquele momento, tinha acabado de entrar como professora, com os movimentos sociais e populares em torno da luta pela moradia que também estava se rearticulando naquele momento. Então, naquele momento era um movimento pela regularização dos loteamentos clandestinos, uma luta por conseguir urbanizar e regularizar favelas e loteamentos no Brasil. Era o começo da sua voz, no sentido: “Nós estamos aqui e queremos ser objeto de políticas.” Então, eu tive esse duplo contato, essa dupla inserção. Como movimento pelas liberdades democráticas, naquele momento, pelos direitos humanos, pela liberda-

de de expressão, através do movimento estudantil na USP, e na relação com os movimentos sociais e populares, propriamente quando o tema da questão aparece para mim. Tatiana Merlino – Então a faculdade colocou você em contato com os movimentos urbanos? Já na FAU, também, tive o enorme privilégio de poder trabalhar em conjunto com o Nabil Bonduk, que era o meu colega de classe naquele momento. Nós, por um absoluto acaso, também, estávamos desenvolvendo um projeto de pesquisa na área de sociologia dentro da escola e o nosso orientador, na época, que era o Gabriel Bollaffi viajou e nos colocou em contato com o professor Lúcio Kowarick. Naquele momento, o professor Kowarick estava no âmbito, primeiro, do CEBRAP, depois do CEDEC, começando um processo, do ponto de vista intelectual, de compreender o processo de formação da periferia e a questão da espoliação urbana e da exclusão territorial. Nós fomos estagiários do Lúcio Kowarick, depois foi com ele que nós fizemos a nossa iniciação científica junto com o Gabriel Bollaffi. Então, o nosso primeiro trabalho de

caros amigos abril 2011

-Raquel_169_ok.indd 12

05.04.11 19:12:26


iniciação científica é um trabalho sobre a formação da periferia de São Paulo. Então, é um trabalho que, de alguma maneira, inaugurou um conjunto de trabalhos de pesquisadores na área da sociologia urbana, dos estudos urbanos e urbanistas, que começaram a denunciar o processo de formação das cidades brasileiras, através de pesquisas de campo. Então, isso também foi muito determinante na minha trajetória. E, finalmente, teve um terceiro pé dessa trajetória, também, que ainda estudante, eu fui estagiária da Coordenação Geral de Planejamento de São Paulo, a antiga COGEP, que depois virou Secretaria de Planejamento, quando o Secretário era o Coordenador da COGEP, depois virou Secretário, era o Candido Malta Campos Filho, urbanista. Então foi a primeira experiência no Poder Público, trabalhando no Planejamento Urbano, entrando em contato com as questões da cidade, do ponto de vista da gestão da política urbana. Tatiana Merlino – Você combinou o ensino e a pesquisa com a gestão pública. Por isso que eu falei das três vertentes, acabou virando a minha história e o meu trabalho, porque o meu objeto nunca deixou de ser o direito à cidade, o direito à moradia, nunca deixou de ser pensar isto do ponto de vista de uma política urbana, de um planejamento urbano. E eu sempre tive uma trajetória profissional com um pé na academia, fazendo pesquisa, sendo professora. Eu dei aula na Belas Artes, numa escola de Arquitetura que foi muito inovadora e interessante nos anos 1980, mas depois foi totalmente desmontada; depois, 25 anos na PUC de Campinas, como professora na área de urbanismo; e, agora, eu sou professora na FAU, há dois anos. Então eu tive uma trajetória acadêmica, de pesquisadora e professora, com mestrado na FAU, doutorado nos Estados Unidos na New York University. Mas, eu sempre tive, paralelamente, uma trajetória profissional, como urbanista. E começou ali, na COGEP, como estagiária, mas eu tive outros momentos bem importantes, porque eu trabalhei como técnica no CDHU, para compreender o desenvolvimento habitacional e urbano do estado de São Paulo. E, depois, quando o Partido dos Trabalhadores já se constitui como uma bancada na Assembleia Legislativa, em 1987, eu fui, como funcionária do Governo do Estado, comissionada para trabalhar com a bancada do Partido dos Trabalhadores, fazendo uma assessoria para a política urbana e habitacional na bancada. Era uma bancada excepcional. Simplesmente eram deputados estaduais, naquele momento: a Luiza Erundina, a Clara Ant, o José Dirceu, o José Machado, o Celso Daniel, a Telma de Souza, entre outros. Era uma bancada incrível. Eu pude trabalhar junto com eles, fazer assessoria, também uma ligação estreita, que comecei a estabelecer com o PT, desde a sua fundação, mas através da formulação da política urbana e habitacional do PT. E foi por conta dessa inserção na Assembleia Legislativa, desse contato com os deputados do partido, que, quando a Luiza Erundina ganha a eleição como prefeita, em 1989, eu pude virar diretora de Planejawww.carosamigos.com.br

-Raquel_169_ok.indd 13

mento da área urbana, em São Paulo, trabalhando na Secretaria de Planejamento, cujo Secretário era o Paul Singer, e o Guido Mantega era o diretor da área de orçamento, naquela composição incrível que foi o governo da Luiza Erundina. Tinha a Marilena Chauí na Cultura... pessoas absolutamente excepcionais.

Débora Prado – Como você define o seu trabalho? Meu trabalho é, ao mesmo tempo, um trabalho de ativista, da luta pela moradia e pela cidade, mas é um trabalho, também, de professora, pesquisadora, formadora, e é um trabalho também de reflexão. Então, eu acho que o conjunto dessa trajetória acabou me levando ao governo federal, ao Débora Prado - Paulo Freire, na Educação... governo Lula, onde eu tive o privilégio de monPaulo Freire na Educação... Enfim, a experiêntar, junto com outras pessoas que também fizecia, então, na Secretaria Municipal de Planejamenram parte dessa luta, o Ministério das Cidades. Um to em São Paulo, na SEMPLA, trabalhando na forministério novo, com uma ideia inovadora, sob o mulação do Plano Diretor, com a Ermínia Maricato comando do Olívio Dutra, com a Ermínia Maricana Secretaria da Habitação e Desenvolvimento Urto como Secretária Executiva do Ministério e uma bano, o Nabil Bonduk coequipe. Eu fui a Secretáordenador, colocando ali “Eu acho que é muito complicado ria dos Programas Urbauma equipe muito inesse presidencialismo de coalizão nos, uma Secretaria para teressante que se constratar dos temas do Plaque nós temos.” tituiu naquele momennejamento Urbano dento. Isso foi muito importante, para mim, inclusive tro do Ministério e política fundiária, política de tive que abandonar meu doutorado no meio, porterras. E eu fiquei quatro anos no governo Lula que me envolvi totalmente com a gestão municicomo Secretária, me dedicando, também, de corpo pal. E quando acabou a gestão municipal, até para e alma, totalmente, a esse trabalho. Fiquei no priconseguir entender, processar e digerir tudo aquimeiro mandato e todos sabem que no meio do prilo que eu aprendi, enfrentei na prefeitura, eu esmeiro mandato, em 2005, longe da crise do mencrevi a minha tese de doutorado, que se chama salão, o governo, digamos, foi obrigado a passar A cidade e a lei. É um trabalho muito estruturador o ministério para o Severino Cavalcante, ou seja, do meu pensamento, porque eu penso e trabalho PP, que indicou o Marcio Fortes, como ministro. muito na relação entre a legislação urbanística, a A direção do Ministério das Cidades passou a ser regulação urbanística, e o modelo de exclusão teruma direção totalmente diferente. Eu permaneci, ritorial, o modelo de desenvolvimento urbano em ainda, a pedido do centro do governo, do gabinenossas cidades. Então, acabando essa trajetória na te do Lula e dos próprios movimentos, porque nós área de planejamento urbano, eu volto para a acaestávamos no meio da campanha dos Planos Didemia para dar aula, para continuar o meu trabaretores Participativos. Eu ainda fiquei, o ministro lho como professora e pesquisadora. novo me convidou para ficar e fiquei, mas para E sempre, desde lá nos anos 1970, eu sempre mim foi dificílimo. No final de 2006, eu pedi para tive contato com os movimentos sociais e popuser exonerada, o ministro pediu para eu ficar até lares, e sempre participei muito dos processos de a próxima eleição, para ver se ele ficaria ou não. capacitação, de formação de lideranças populares, Esperamos a eleição, Lula foi reeleito, o ministro desde o Instituto Cajamar, depois fundamos o Insfoi reafirmado como ministro, eu pedi para sair e tituto Polis. Eu sou uma dos fundadores do Instipara voltar para São Paulo. tuto Polis, uma ONG voltada para a formação na área da democratização da gestão, na área do forTatiana Merlino – Por que você saiu do Mitalecimento dos atores sociais para uma gestão denistério? Foi alguma coisa específica, foi um mocrática. E, dentro do Polis, eu constitui o grupo acúmulo, foi todo esse período? de urbanismo no Polis, que tem várias linhas de Não, não tem um fato específico, mas tem uma trabalho, e fiquei mais de 10 anos no Polis, trabaguinada na política habitacional e urbana do Bralhando e fazendo projetos, sempre muito em consil. Eu acho que a guinada foi basicamente a setato com os movimentos sociais, principalmente guinte... E, de novo, eu entendo as razões da subsos movimentos de moradia, que naquela altura já tituição do ponto de vista da governabilidade num tinha crescido, e numa articulação, desde a Conssistema como o nosso do presidencialismo de cotituinte, nos anos 1980, pela Reforma Urbana. Foi alizão (risos), que eu acho que é uma discussão uma articulação ampla de movimentos sociais e muito complexa, que é o que eu acho que puxa populares, de urbanistas, de engenheiros, de sindipara trás! Eu acho que é muito complicado esse calistas de arquitetos e engenheiros, de advogados presidencialismo de coalizão que nós temos. Endefensores dos direitos das populações de menor tão, eu entendo as razões, do ponto de vista polírenda. Então, essa coalizão do Fórum de Refortico, da governabilidade. Entretanto, eu acho que ma Urbana também participei da construção, parfoi acontecendo duas coisas. A primeira coisa foi ticipei da apresentação da emenda popular para a que, quando nós fomos montando o Ministério Constituinte, da negociação – eu fui a pessoa, gradas Cidades, ele foi montado em cima de uma ças a minha relação com a bancada do PT no Conaposta muito ligada à agenda da Reforma Urbagresso, naquele momento, acompanhando a nena. A agenda da Reforma Urbana tinha, historigociação – dentro da Constituinte, do capítulo de camente, um tripé, desde a primeira Constituinpolítica urbana para a Constituição, defendendo a te. Um pedaço dela é a afirmação dos direitos emenda popular, lá dentro. E todo esse caminho dos posseiros, dos ocupantes, daqueles que consalimentou muito todo meu trabalho. tituíram assentamentos informais, populares, por abril 2011

caros amigos

13

05.04.11 19:12:26


para ser professora na USP, e, desde então, tenho absoluta falta de acesso à terra urbanizada e à trabalhado muito. Meus artigos têm sido no sentimoradia. Então, o seu direito no sentido da sua do de eu estudar o modo de organização do Estainserção mais completa na cidade, a regularizado brasileiro na área do desenvolvimento urbano, ção, a urbanização, a inclusão territorial desses como funcionam as emendas parlamentares, qual assentamentos que são mais de 70% da área ura relação entre o desenvolvimento urbano e a pobana no Brasil. lítica, quais os setores. Voltei e pensei em ficar na O segundo ponto da agenda [da Reforma Uruniversidade, sentada, estudando, pensando, danbana] é o que a gente chama “a implementação do aula e não fazendo nada mais para refletir, esde um modelo baseado na função social da cidacrever meu livro. Mas, aí, quando chega em 2008, de e da propriedade”. A ideia de que a gestão do vem uma articulação internacional dos movimendesenvolvimento urbano, além de viabilizar os tos de moradia dizer para mim: “Olha, o relator negócios na cidade, tem que viabilizar, também, para o direito à moradia, da ONU, Miloon Khotaque a cidade seja equilibrada do ponto de visri, um indiano, acaba o mandato dele, agora, e nós ta sócio-ambiental. Isto significa que a terra e a queremos que você seja a nova relatora do direipropriedade urbana têm que cumprir uma função to à moradia na relatoria dos direitos humanos.” social, além de cumprir sua função de patrimôO governo brasileiro entrou em campo para viabinio privado de quem é o dono. E que é a política lizar também o apoio ao meu nome, além das orurbana, o planejamento urbano, o ordenamento ganizações populares, e eu acabei vencendo os outerritorial, que define qual é a função social de tros nomes, e fui nomeada como relatora especial cada pedaço da cidade. Um das funções sociais, para o direito à moradia por exemplo, da terra urbanizada, para mora”Houve uma espécie de tomada adequada junto ao Condia, é ser bem localiza- do mercado imobíliário pelo sistema selho de Direitos Humanos da ONU. E aí já me da, quando uma parte financeiro internacional.” meti, de novo, num ouda população não tem tro front global, interessantíssimo, internacional, condições de comprar essa moradia no mercaligado de novo ao ativismo pelo direito à moradia, do. Então, esse eixo da função social da cidado ponto de vista dos direitos humanos, que é um de, da propriedade, de uma política que vai nesnovo ponto de vista, para mim. Então, eu chego sa direção, é também um dos eixos da Reforma no ponto em que estou, agora. Urbana. E, finalmente, o terceiro eixo que, ao meu ver, Débora Prado - O governo Lula promoveu a está na raiz dos outros dois, é a participação, o inclusão via consumo, via mercado. Do ponto que a gente chama de gestão democrática do terde vista da política urbana, esse tipo de inclusão ritório, gestão democrática da cidade, gestão depromove também os direitos cidadãos? mocrática do país. É a ideia de que o processo Eu diria até que graças a nossa história e a nosdecisório sobre as políticas tem que incluir os exsa trajetória seria possível combinar uma estratécluídos. Historicamente, as políticas públicas no gia de inclusão ao mercado com promoção de diBrasil são excludentes, porque o processo decireitos cidadãos. Isso seria possível. A questão está sório que as definem são historicamente excluno campo do poder, da política, e não no campo da dentes. Então, toda pauta da participação direta... viabilidade técnica e até conceitual. Você poderia Porque nós temos milhões de problemas no nosso ter uma política de valorização do salário, do bolsa sistema representativo. O nosso sistema represenfamília, e, ao mesmo tempo, promove os direitos. tativo, aquilo que os partidos de esquerda chaQual a consequência se você não faz isso na pomam de democracia burguesa, o modelo repulítica urbana, do protagonismo cidadão, e abandoblicano, ele evidentemente representa e tem suas na a ideia de implementar uma política em torno virtudes, nós avançamos com o voto universal, da função social da cidade e da propriedade? Misem restrições, com eleições livres, partidos linha Casa Minha Vida é um programa que reprovres, liberdade de expressão, tudo isso fortaleceu duz programas muito semelhantes que já haviam a nossa democracia. Entretanto, nós temos que sido experimentados no Chile, no México. Agora, entender que a nossa democracia carrega uma como relatora, estudei isso mais amplamente no cultura política e um modus operandi pesadíssimundo, e se percebe que mesmo nos países onde mo, absolutamente conservador, absolutamente a moradia era uma política social, que fazia parte conservador. Nosso Estado é muito estruturado de um walfare state, durante os últimos 20 anos, em torno dessa lógica. E, portanto, a ideia que a começou nos anos 1980 com Tatcher, Reagan, e participação direta complementa a democracia, depois se intensificou e se espalhou pelo mundo, no sentido de abrir espaços de interlocução para inclusive com uma promoção muito intensa, atraaqueles que, historicamente, não tiveram acesso à vés das agências multilaterais, do FMI e do Banco mesa de decisões de políticas, é um dos eixos. Mundial, com empréstimos com condicionalidades, é a transformação da ideia da moradia como Débora Prado - O que você fez depois de sair um direito humano, como uma política social, para do governo? a ideia da moradia como mercadoria e, posteriorEu saí de lá e decidi voltar para a universidamente, como ativo financeiro. A financeirização de e ficar dois anos entendendo o que aconteceu. da moradia.Isso é internacional. Então, você tem Por que isso aconteceu? Por que a nossa agenuma versão disso nos países de transição, quando da não foi aplicada? Como funciona isso? Voltei cai o muro de Berlim, que privatizam todo parque para a PUC de Campinas, fiz o concurso na FAU

14

público construído, mas você tem também uma transformação disso na França, na Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, em todos os países que tinham uma política social. Eu não fazia ideia de que os Estados Unidos tinha uma política social fortíssima de moradia. Então, isso começa a ser desmontado e mercantilizado no sentido do Estado, do poder público, se retirar e isso tudo ir via mercado, e, nessa nova versão, via ampliação do acesso ao crédito. Foi uma espécie de tomada dos circuitos financeiros internacionais com a globalização e com a eliminação das barreiras para a circulação livre do capital financeiro. Você tem um excedente de capital global, os petrodólares dos sheiks, o dinheiro da China, que precisa encontrar campo de investimento para conseguir se reproduzir. Um dos campos de investimento fundamentais para esse excedente, historicamente importantes para os circuitos financeiros, é a produção imobiliária, porque tem uma capacidade incrível de ser ao mesmo tempo um ativo que não vira pó, é concreto, tem capacidade de valorização, não desaparece como uma ação, e, além do mais, como ativo fixo, é capaz de, por hipoteca, gerar mais possibilidades de empréstimo e giro de capital. Mas, de qualquer maneira, houve uma espécie de tomada do mercado imobiliário pelo capital financeiro internacional. Isso se enxerga, a nível global, nos processos que aconteceram de renovação urbana, revitalização urbana que abriram espaços para estes investimentos globais chegarem nas cidades, com consequências desastrosas para quem mora nas cidades, porque precisa competir com o preço da terra com o seu recurso local com o sheik do Bahrain. Isso tem consequências em cidades europeias, norte-americanas, que a gente chama de gentrificação, expulsão, etc. E a área da moradia virou uma frente para esse capital. Tatiana Merlino - Como essa financeirização aconteceu no Brasil? No Brasil, aconteceram duas coisas. Primeiro, nós começamos um processo que tem a ver com essa financeirização geral de abertura de capital em Bolsa de grandes empresas. Sete empresas construtoras no Brasil entraram em Bolsa para captar capital financeiro para aumentar sua escala de produção num movimento que já havia acontecido antes, inclusive da América Latina. As sete grande empresas construtoras captam recursos, compram terras, montam projetos para fazer um lançamento de produtos imobiliários nas cidades brasileiras e aí vem a crise financeira. A crise financeira tem a ver com essa história da financeirização da moradia, começa com a crise hipotecária. A culpa da crise financeira foi a transformação da moradia de política social em política mercantil e financeira. Eu fiz o primeiro relatório na ONU sobre isso e vou trabalhar ainda muito mais sobre isso, porque é o tema internacional. Aí, as sete grandes construtoras abriram o capital, veio a crise e iam falir. Tinham imobilizado capital, estavam com lançamentos prontos, iam dançar, mas vão bater na porta do Ministério da Fazenda e do governo federal. Junto com isso, nas medidas elaboradas no Ministério da Fazen-

caros amigos abril 2011

-Raquel_169_ok.indd 14

05.04.11 19:12:27


da, pensando em medida anticíclica keynesiana típica: “Não vamos deixar a crise chegar no Brasil. O que fazer para gerar rapidamente emprego? Construção civil.” Então, juntando as duas questões se lança um programa onde o governo, com o orçamento do governo, joga um subsídio muito grande para que as pessoas possam comprar os produtos que essas empresas já estavam prontas para lançar. Só que essas empresas tinham umas 250 mil casas e o governo fala: “1 milhão”. Muito mais do que elas tinham. O governo ampliou isso numa outra escala, salva as empresas construtoras com o nosso dinheiro, do orçamento, faz um modelo que permite que setores, isso faz parte da estratégia de inclusão do mercado. Eu entendo perfeitamente a linha de raciocínio do sindicalista Lula com o seu ministro da Fazenda, o Guido, e sua equipe: “Vamos ampliar a capacidade de consumo dos trabalhadores e vamos fazer com que esses trabalhadores possam comprar casas, entrar dentro do mercado formal com subsídio público.” As empresas construtoras vão adaptar esse produto para poder chegar em setores que antes não se chegava via financiamento: 4 salários mínimos de renda familiar mensal, 5 salários mínimos, que o mercado privado não atingia. Então, lança-se Minha Casa Minha Vida com essa perspectiva. Tatiana Merlino - Mas, desse 1 milhão de casas, qual é a porcentagem para as que contemplam de 0 a 3, de 0 a 4 salários mínimos? O modelo de 0 a 3 salários mínimos são 400 mil casas, de 3 a 6 salários mínimos mais 400 mil casas, e de 6 a 10 salários mínimos mais 200 mil casas. Débora Prado - O estudo é de que as casas para 0 a 3 salários mínimos estão lá... É óbvio. O modelo de 0 a 3 salários mínimos não viabilizou. É claro que depende muito. 0 a 3 salários mínimos lá no interior do Maranhão dá para fazer o Minha Casa Minha Vida, porque o preço da terra é baixo, mas nas regiões metropolitanas o de 0 a 3 salários mínimos está difícil. E a demanda na região metropolitana é enorme. Um dia eu ouvi uma palestra do Mike Davis, muito engraçada, ele falou de um filme onde o personagem principal era o advogado de defesa e de acusação de um réu num julgamento. Então, esse mesmo personagem fez duas narrativas de defesa e outra de acusação. Então, eu fiz a narrativa do ponto de vista da história, assim como ela aconteceu dentro de um circuito. Só que tinha uma outra história acontecendo dentro do Ministério das Cidades. O movimento popular de moradia, desde que implantou o Estatuto da Cidade e podia fazer iniciativa de projeto de lei, desde a Constituinte, apresentou um projeto de lei, criando a ideia de um sistema de habitação de interesse social, como o SUS da Saúde. Um sistema estruturado nos três níveis, governo local, com controle social, com transferência de recurso fundo a fundo, estruturando a área de desenvolvimento urbano, que nunca foi estruturada. A área de desenvolvimento urbano é um banco ou migalha distribuída a esmo. Então, esse sistema de habitação, depois www.carosamigos.com.br

-Raquel_169_ok.indd 15

de muitos anos, no governo Lula foi aprovado no Congresso em 2005 e começou a ser implementado, bem devagarzinho. Dentro desse modelo tinha um Plano Nacional de Habitação, os municípios faziam os planos municipais e os estados, os estaduais. Em cada um tinha um fundo, em cada um tinha um conselho, começou a ser implantado isso no Ministério das Cidades. Veio o Minha Casa Minha Vida. Não tem nada a ver com o modelo anterior do Ministério das Cidades. Desconstitui isso. E fala: “Não, não, a construtora faz e o governo dá o dinheiro para a pessoa comprar o negócio da construtora.” Não tem fundo, não tem sistema, não tem porra nenhuma, não tem controle social! Nada! Tatiana Merlino - O que existe efetivamente, hoje, de política social para essa população que não tem acesso à moradia pelo mercado, que mora nas encostas ? Débora Prado - Você falou que 70% da população mora em áreas irregulares... Então, essa história dessa construção na área de moradia, hoje, nós temos Minha Casa Minha Vida e o PAC das favelas, recursos para o saneamento e a urbanização de favelas. Tem muito dinheiro e está sendo implementado em muitos lugares do Brasil. O que acontece com o modelo que só pensa no mercado, como Minha Casa Minha Vida e não pensa no processo de controle do desenvolvimento urbano. O subsídio está indo, inteiro, para o preço da terra! Nós estamos vivendo um boom de preço da terra. E qual é a consequência disso? Cada vez é mais difícil, para quem tem menos renda, comprar. O Minha Casa Minha Vida, dos 4 a 6 salários que é o que está bombando. Está ocupando os extremos das periferias. E quem é mais pobre que isso? Débora Prado - Vai para onde? Tem uma política que aumentou muito o crédito, disponibilizou muito crédito, viabiliza os negócios e a totalidade disso vai para o preço da terra, porque não tem instrumento de manejo de solo urbano para tentar impedir isso. Mais. Falouse das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social). Uma das importantes consequências dos Planos Diretores foi que mais de 70% dos planos no Brasil delimitaram as ZEIS, em áreas ocupadas por favelas para ficar e ser urbanizada e áreas vazias para ZEIS na cidade, com o objetivo de baixar o preço ali. Mas, o que está acontecendo? Como você tem um descompasso total entre a política de financiamento de moradia e a política de gestão de solo, que não existe, que foi desconstituída, e sem nenhum controle social, sem nenhuma forma pública de trabalho, está se fazendo casa sem cidade. Então, nós teremos crise muito maior do que se tem na circulação. Débora Prado - Crise no transporte. Crise na infraestrutura. Crise no transporte. Porque não temos um modelo e não temos uma alternativa de acesso à terra urbanizada para a população mais pobre. A única coisa que se tem

é dinheiro para remediar quando já é construída a favela. Sinceramente, eu sempre defendi, e sempre defendereiatéosúltimosdosmeusdias,aurbanização de favelas, mas eu não posso admitir que a gente vai passar o resto da vida deixando o povo morar em favela para depois urbanizar a favela. Porque até a gente sabe que, embora tenha que fazer, nunca fica bom! Vamos falar sério! Débora Prado - Mas, este modelo continua fomentando a criação de favelas? Até aqui, em São Paulo, pelo transporte caro e a dificuldade de circulação, as favelas estão nas áreas nobres também. As favelas estão adensando. E as favelas que estão nas áreas nobres estão sendo objeto, agora, de um ataque! Como relatora de direitos humanos, eu recebo direto as denúncias de ameças de remoção. Eu faço uma geografia das denúncias. Quais são as favelas ameaçadas de remoção? As que estão nas áreas mais valorizadas. Favela lá nos quintos dos infernos, no meio da periferia, sem nada, está tranquila... Até quando? Essa aí só mexem nela quando vai passar o Rodoanel, alguma outra grande infraestrutura, e, de novo sem respeitar os direitos já constituídos. Eu não posso me conformar que nós estamos picando o Estatuto da Cidade e a Constituição quando, finalmente, a gente tem os recursos para implementar isso! Então, eu acho que o problema é esse da política urbana, hoje, no Brasil. E, por incrível que pareça, eu acho que nenhum país do mundo teria condições de fazer uma política urbana e habitacional como nós, pela trajetória, pelo que já aconteceu, pelo que já experimentou, que já tem de amadurecimento dentro dessa área. Entretanto, acho que a gente tem que entender isso. O que aconteceu no Brasil? A gente teve a Constituinte em 1988, os anos 1990 foram anos de disseminação da agenda neoliberal no mundo. Aqui, também. Então, a gente viveu uma trajetória esquizofrênica de implantação de direitos junto com a implantação de uma agenda e de uma pauta neoliberal. E um terceiro elemento que é a nossa cultura política. A qualidade dessa cultura política que é violenta, truculenta, excludente. Isso tudo a gente carrega e é uma tradição daquelas troncudas para carregar. É da combinação perverabril 2011

caros amigos

15

05.04.11 19:12:28


bano para evitar enchente, para evitar o caos no transporte. E nós não temos um modelo de Estado brasileiro na área de desenvolvimento urbano que permita que os municípios produzam urbanização ex-ante, quer dizer, que façam cidade e depois venha o povo morar. Não, é sempre primeiro o povo, depois a cidade vai atrás. Por exemplo, recursos: Tem para urbanizar a favela e para construir casa. Não é para isso que nós precisamos de recursos. Nós precisamos de recursos para produzir cidade! Isso não tem, não existe! (Risos)

sa dessas três coisas que a gente acabou fazendo esse modelo que nos deixa bastante atônitos. Mas, que dá para entender porquê. Tatiana Merlino – O Brasil continua tendo um déficit habitacional de 7 milhões. Quer dizer, mesmo com Minha Casa Minha Vida, essa população continua sem moradia? Olha, vamos fazer um cálculo assim. O déficit habitacional é um déficit que é calculado, já há muitos anos pela Fundação João Pinheiro que envolve muitas variáveis coabitação, infra-estrutura, qualidade da moradia, etc. E para se calcular o déficit habitacional, depois das intervenções de 2006, 2007, 2008, 2009, com o censo 2010. Não foi feito um novo cálculo do déficit habitacional pela Fundação João Pinheiro a partir do Censo de 2010, porque precisa dos microdados do censo. Não são esses números gerais que foram divulgados. Os microdados só serão obtidos no início de 2012. Então, não é possível dizer, com absoluta segurança, o déficit habitacional no Brasil, mas poderá dizer no começo do ano que vem com absoluta segurança e ver o que melhorou. Existem outros cálculos. Em 2005, a própria João Pinheiro fez uma Proxy, usando a PNAD e outras pesquisas, mas não tinha analisado o grande dinheiro chegando, ainda. Então, a gente não consegue enxergar isso. Então, não dá para dizer, hoje, exatamente o déficit. Tatiana Merlino - Mas, ele é aproximado com o número de imóveis vazios? Já saiu nos dados do censo de 2010 o número de imóveis vazios. São as casas e os apartamentos que não têm ninguém morando e não é segunda casa, de turismo. Enfim, são domicílios onde não tem ninguém morando. Quando havia um déficit habitacional de 6 milhões, havia 5 milhões de casas e apartamentos vazios. Onde estão? Uma parte está nos municípios que foram abandonados por sua população e que rumaram às grandes cidades. Tem uma grande porcentagem de cidades fantasmas. A cidade inteira que diminuiu. Ainda tem um movimento de migração, não é tão rural-urbana, mas tem a migração intrametropolitana, outros fluxos migratórios, outro municípios que perde população. Dois tipos de municípios estão perdendo população: esses que são inviáveis

16

do ponto de vista econômico, que perderam a sua atividade econômica, saíram do circuito territorial, não tem como viver e aí as pessoas migram. E, outro tipo, os municípios centrais dentro da região metropolitana, perdem população, porque o preço da terra aumenta tanto que não tem gente suficiente para pagar aquele preço, para ocupar aquele lugar. E é uma coisa tão absurda! Tem uma luta histórica do movimento de moradia para reabilitar as áreas centrais com prédios vazios e desocupados. E outra coisa que eu fiquei absolutamente indignada: se lança um programa como Minha Casa Minha Vida com um subsídio enorme, sem ter um componente forte de reabilitação. Poderia fazer reabilitação no Minha Casa Minha Vida, mas é inviável, porque não foi montado para isso. Foi montada para produzir casa nova. O Minha Casa Minha Vida é um lindo programa industrial, fantástico, contracíclico, keynesiano, mas não é uma política habitacional, é um programa industrial. E um programa industrial que vai na perspectiva de distribuição de renda, de ampliação do mercado, de inclusão do trabalhador no mercado. Parabéns, Ministério da Fazenda ! Mas, alguém tem que fazer política urbana nesse país! Cecília Luedemann - Seguindo aquela sua ideia de que a cidade é mais uma união de acampamentos em suas periferias, não uma cidade propriamente dita, então, agora, no lugar desses acampamentos serão essas casinhas isoladas do Minha Casa Minha Vida ? São as casinhas, são os predinhos. Ontem, eu levei os meus alunos, na disciplina de Planejamento Urbano, fomos de ônibus, e observando o caminho até chegar em Suzano. A verticalização da periferia. Que loucura! Você vai caminhando, São Miguel, e mais além, em Guarulhos. Você vê uma verticalização da periferia no Minha Casa Minha Vida, que está realmente mudando. Estão acontecendo, realmente, mudanças importantes no mercado imobiliário urbano. O Minha Casa Minha Vida está incidindo sobre isso, mas, infelizmente, como isso não vem acompanhado de nenhuma política urbana, nossas cidades estão ficando cada dia mais insustentáveis. Vão piorar as enchentes, piorar a circulação. Porque nada foi feito em relação a mudar o modelo de ocupação do solo ur-

Bárbara Mengardo - Dentro das grandes cidades, como São Paulo, por exemplo, como é essa relação entre déficit habitacional e imóveis vagos? De acordo com o censo de 2010, está batendo o número de imóveis vagos com o déficit em São Paulo. No município, está quase batendo. E os dois diminuíram: tem menos imóveis vagos e tem menos déficit no município. Bárbara Mengardo - E onde estão esses imóveis vagos em São Paulo? Eles estão muito nas áreas do centro consolidado, no anel central, bairros centrais que perderam população. Mas, agora, o que eu queria chamar a atenção de vocês, também, é que os bairros que se verticalizaram em São Paulo, recentemente, como a Lapa, perdeu população. Não ganhou. Porque o modelo de verticalização é de grandes apartamentos, grandes áreas, muitos carros, muito cachorro e pouca gente. (Risos) Então, num bairro operário, como a Lapa, e o mesmo posso dizer em relação à Mooca, que eu mesma vi os estudos, com muitos sobradinhos, um do lado do outro, e famílias grandes, esse bairro, quando se verticaliza, perde população e aumenta a renda. Débora Prado - E o limite de construção está, cada vez mais, sendo desrespeitado nas operações urbanas, com torres maiores? É o que aconteceu em São Paulo e, internacionalmente, foi uma linha, nessa trajetória de mercantilização da produção imobiliária na cidade, uma agenda de flexibilização do planejamento, quer dizer, essa ideia de criar mecanismos que permitissem flexibilizar as regras, considerando o planejamento, a partir do qual não seria possível fazer parcerias público-privadas capazes de transformar áreas da cidade, que são essas áreas de renovação urbana. Então, essa agenda fez parte da própria agenda da financeirização da produção da cidade, da renovação urbana. Tatiana Merlino - Eu queria que você fizesse uma relação entre exclusão urbana, especulação imobiliária e os megaeventos, especialmente a Copa. Primeiro, deixa eu colocar isso no âmbito internacional. Eu apresentei outro relatório temático sobre megaeventos e direito à moradia, porque eu recebi muitos estudos e muitas denúncias em todas as cidades em que estavam acontecendo megaeventos. Desde a época que sou relatora, eu peguei Beijing, os jogos olímpicos na China, peguei

caros amigos abril 2011

-Raquel_169_ok.indd 16

05.04.11 19:12:30


na África do Sul, com a Copa do Mundo, peguei os Dhoni dwells games em Nova Deli, na Índia, e em Vancouver, as olimpíadas de inverno. E eu fui acompanhando esses processos. Denúncias de remoções em massa, muitas denúncias de violação do direito à moradia, no âmbito da cidade receber um megaevento. Em função disso, eu resolvi fazer um relatório, estudar, procurei o Comitê Olímpico Internacional (COI), procurei a Fifa para conversar sobre essa questão. Com o COI comecei a estabelecer um diálogo sobre a incorporação da questão do direito à moradia, na fase da seleção dos projetos. A Fifa sequer respondeu à minha carta. Nada. A Fifa é uma das organizações internacionais mais corruptas, é puramente negócios, é absolutamente impressionante, é um perigo, um perigo! O COI tem ainda uma certa governabilidade, uma ética. E a partir, então, desse relatório, foi possível perceber, e aí eu vou usar uma expressão que o Carlos Vainer tem usado nos trabalhos dele, que se constitui um verdadeiro “Estado de Exceção” nas cidades que são sede desses megaeventos. E por que isso? Na verdade, o megaevento, dentro dessa estratégia mais geral, global, que os mercados imobiliários são âmbitos de atração de capital, é perfeito para essa estratégia, porque permite vender essa nova localização, praticamente de graça, pelo simples fato de que ali vai ter os jogos. Aquilo é o marketing puro, automático, sem investir nele, porque já é uma vitrine, todos vão falar dele. O processo de venda da cidade acontece imediatamente, sem ter que montar stand em feira de negócios. Barcelona foi emblemática dessa mudança, porque os jogos têm se transformado também em processos de transformação urbanística, em formas de fazer processos de urbanização. E com a vantagem de que esses megaeventos criam espírito, tem uma dimensão cultural e afetiva: “É o nosso país!” É uma coisa nacionalista, o esporte, o espírito da competição entre os povos, trabalhado pelo COI. Então, ao mobilizar sentimentos e patriotismos, é muito difícil criticar ou questionar, porque somos nós. Nós, mostrando ao mundo que somos lindos. Não dá para ser contra. Então, essa combinação perversa, para a cidade se preparar para uma Copa do Mundo e uma Olimpíada, ela poder passar por cima de tudo. De tudo que, em circunstâncias normais, existem resistências aqui e ali, uma legislação de proteção dos direitos humanos, uma legislação de proteção ambiental, legislação de processo licitatório, legislação de processo fiscal, etc, tudo. Para conseguir fazer alguma coisa no Brasil não é fácil. (Risos) Existem vários controles legais e sociais em várias esferas. O megaevento permite retirá-los. E já começou a acontecer isso: isenção fiscal, processo de aprovação rápida... Em nome de que? “A gente não pode fazer feio. Tem que construir logo, tem que estar pronto no dia. Então, tem que passar por cima.” Então, é isso que o Vainer define como um “Estado de Exceção”. Débora Prado - O Vainer diz que o megaevento é um instrumento para a cidade-empresa e para a cidade-vitrine, uma atração de negócios e de marketing. www.carosamigos.com.br

-Raquel_169_ok.indd 17

uma outra agenda e uma outra pauta. Exatamente. Então, a estratégia dos megaevenBárbara Mengardo - Nesse assunto, a gentos se transformou e foi totalmente capturada niste viu o que aconteceu com o Pan. As obras foso. Eu, evidentemente, porque não sou louca, não ram abandonadas, retiraram um monte de gensou contra o Brasil ter Copa do Mundo e Olimpíate para depois não ter utilização popular como das. (Risos) Eu acho, porque sou uma otimista teiera dito. mosa, que a Copa do Mundo e as Olimpíadas poDébora Prado - É uma privatização de masderiam ser um espaço de construção de um legado sa de recurso público, uma transferência direta socioambiental, para a gente poder fazer diferenpara empresa? te, fazer com outra lógica. Entretanto, os sinais que É o que está acontecendo. Eu sinto que o goestão aí sendo dados, a partir desse começo, vão verno federal tentou fazer alguns movimentos de no sentido contrário, oposto. Mas, eu acho que é controlar, pelo menos, a grande bandalheira. (Riabsolutamente necessário que os grupos, as entisos) O governo federal, por exemplo, tentou não se dades, as organizações, os intelectuais, os artistas, envolver com recursos públicos federais na consque estão percebendo que isto está acontecendo, se trução de estádios, mas articularem, rapidamente, para construírem um “Se não tiver uma vanguarda crítica, agora o BNDES está entrando... Eu sei muito outro legado. E eu posso o governo só vai para trás.” bem a insistência de codar o exemplo de Vanlocar o Henrique Meirelles a frente da Autoridade couver. Uma articulação desse tipo em VancouOlímpica contra o interesse da máfia do esporte no ver produziu mudanças muito significativas para Brasil que queria mandar na Autoridade Olímpios Jogos de Inverno e um compromisso social fez ca. Agora, o problema é: que sensibilidade tem o parte importante disso. Claro que veio a crise fiHenrique Meirelles para o legado socioambiental? nanceira, cortaram o legado social, só ficaram os (Risos) A gente fica entre o ruim, o péssimo e o estádios.(Risos) E acabou não sendo toda a platahorroroso. Porque, de fato, é verdade que a presforma negociada publicamente sendo implantada. são para a bandalheira, estilo máfia, roubo explíMas, é um exemplo de que é possível e a sociedacito, é tão grande que o esforço do governo federal de civil brasileira tem que acordar. de conseguir alguma respeitabilidade e não partiEu acho que nós estamos em uma espécie de cipação nos esquemas de roubo organizado já é anestesia, de susto. De fato, ganhamos o governo um primeiro passo. (Risos) federal, ganhamos políticas com mais distribuição Entretanto, isso está em nossas mãos. Se não de renda, o avanço que aconteceu no Brasil... Nós houver um movimento social forte que obrigue o temos que acordar para perceber que essas coigoverno a exigir uma pauta de um legado, ele não sas têm limites, têm obstáculos e que, aí falando vai acontecer, porque a força é o pior do pior. como uma pessoa que esteve no governo municipal e federal, como gestora: “Se não tiver um moOtávio Nagoya - Você comentou que o govimento social e uma vanguarda crítica, questioverno Lula fez uma certa redistribuição de nadora, organizada e forte, o governo só vai para renda, mas não mexeu com os interesses do trás!” Porque a força, no Brasil, para ir para trás capital. É possível garantir o direito à moraé tão grande que o governo precisa de um movidia para a população sem ir contra os intemento social forte, para o governo poder negociar resses das grandes empreiteiras e das granuma ida para a frente. Porque senão, é impressiodes construtoras? nante, é para continuar beneficiando quem semOlha, não se faz omelete sem quebrar ovo, não pre beneficiou. Não mudou essa lógica. O Estado existe a possibilidade de garantir o direito à mobrasileiro está montado para isso, para você fazer radia e o direito à cidade sem que esses interesses o contrário com as estruturas que tem, é dificílimo sejam contrariados. Entretanto, o que eu acho que e só com muito movimento social, só com muita estava na agenda da reforma urbana, muito forte luta da sociedade, só com muita denúncia, só com nesse momento, era a ideia de um pacto sociotermuita crítica que a gente consegue ir para frente. ritorial civilizatório, que a gente ainda não teve no Infelizmente, os partidos de oposição não faBrasil, onde os interesses das classes populares puzem isso, não são isso. Infelizmente. No mundo desse ser reconhecidos e os ganhos do grande capartidário, ou é uma situação que então não faz pital pudessem ter menos incidência. Não quer dicrítica, porque é situação, dá sustentação política zer acabar com eles, acabar com o mercado, com para o governo. E a oposição é pior do que o goos negócios. De jeito nenhum. Eu posso dar inúverno. (Risos) “Sou contra o governo, porque você meros exemplos dos países europeus, onde pactos está no poder, quero estar eu.” E com uma pauta, desse tipo foram realizados. Você olha a Itália dos que pudemos ver nas eleições, quando polarizou anos 1960 é um pacto socioterritorial para os tracom o Serra e a Dilma, que Deus me livre! Eu vibalhadores que garantiu avanços e acesso à terra e rei, com todas as críticas que eu tinha ao governo à moradia. Mas, não acabou com o setor produtiLula, fui para a rua com camiseta e bandeira. Óbvo e empresarial, pelo contrário, mas teve um mívio. Mas, o que aconteceu? O PT e os partidos têm nimo de pactuação, tem um limite. A aposta nossa que fazer uma reflexão, porque não é possível! E dos planos diretores participativos, a aposta noso movimento social, também, porque a cooptação sa do conselho das cidades, da ideia de constituié muito grande, a distribuição de pequenos benefíção de uma esfera pública era a ideia de um espacios também inclui o movimento social neste moço de pactuação, onde esses interesses pudessem mento. Eu acho isso um enorme perigo. E, para se manifestar. a gente poder avançar, a gente vai ter que puxar abril 2011

caros amigos

17

05.04.11 19:12:30


Denúncia

O vale tudo da indústria farmacêutica na busca do lucro O lobby dos empresários do setor atua para manter nas prateleiras das farmácias medicamentos que podem até matar.

Subornos e ameaças fazem parte do roteiro da trama protagonizada pela indústria farmacêutica mundial e que atua no Brasil. A intrincada rede de interesses envolve atores coadjuvantes para a sustentação dos lucros do setor na estratosfera. Médicos e advogados agem de forma articulada com essa indústria e contribuem para a manutenção dos ganhos em uma escala exponencial. A Interfarma, entidade que reúne as indústrias do setor que atuam no país, não informa os lucros de suas associadas, mas sabe-se que as farmacêuticas aparecem na quarta colocação em volume de produção atrás apenas de Estados Unidos, França e Itália. No mundo esse negócio movimenta bilhões de dólares. Em 2008, apenas o medicamento de combate ao colesterol, Liptor, da Pfizer, arrecadou sozinho US$ 13,6 bilhões em vendas. A preocupação com a saúde da população fica em segundo plano, quando o assunto é a preservação dos lucros. Vale tudo para não perder dinheiro. Até mesmo colocar em risco a vida das pessoas com medicamentos comprovadamente lesivos ao organismo. O setor não hesita em manter nas prateleiras das farmácias remédios que podem matar. A professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Soraya Smaili, revela que os medicamentos conhecidos como emagrecedores ou inibidores de apetite causam sérios danos à saúde e podem até levar à morte. Ela explica que as drogas que promovem a diminuição do apetite com base em anfetaminas, além de fazer muito mal ao sistema cardiovascular, causam dependência psíquica. “A anfetamina é uma espécie de cocaína, é um estimulante do sistema nervoso central.” O medicamento atua sobre a fome. Só que esse efeito só dura duas semanas, depois é preciso aumentar a dose. “Vários médicos dobram a dose, mas depois de um tempo, é preciso parar”, alerta. Outro tipo de droga disponibilizada pelo setor farmacêutico para o combate à obesidade é a sibutramina. O medicamento queima as gorduras, mas causa um dano enorme ao sistema

18

ILUSTRAÇão: cavani

Por Lúcia Rodrigues

cardiovascular. “A pessoa pode até ficar magrinha, mas já há casos de mortes registrados”, adverte a professora Soraya, que também é farmacêutica. “Obesidade é um problema sério, não dá para ser tratado com esses tipos de drogas. Todo mundo que é da área sabe que a obesidade não tem solução com esses remédios. Tem de ter vários profissionais envolvidos, porque depende do metabolismo de cada pessoa”, frisa. A Agência Nacional de Vigilância Sanitá-

ria (Anvisa) tenta retirar esses medicamentos do mercado, mas o poderosíssimo lobby que defende os interesses comerciais do setor tem conseguido barrar o objetivo da agência governamental até o momento. Recentemente, o presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, foi ameaçado de morte. O incidente aconteceu poucos dias antes da realização de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, onde se discutiu a proposta de proibição da comercialização de medicamentos

caros amigos abril 2011

-Lucia_169.indd 18

05.04.11 19:28:28


As 10 maiores indústrias farmacêuticas no Brasil 1) Sanofi-Aventis (França) 2) EMS (Brasil) 3) Hypermarcas (Brasil) 4) Novartis (Suíça) 5) Pfizer (Estadunidense) 6) Aché (Brasil) 7) Eurofarma (Brasil) 8) Bayer (Alemanha) 9) GSK (Reino Unido) 10) MSD (Estadunidense) Obs: Ranking das principais companhias que atuam no Brasil, em faturamento. Interfarma não divulga os valores. Fonte: Interfarma.

foto: Jesus Carlos

Barbano ressalta que o governo realizou moemagrecedores derivados de anfetaminas e sivimentação no Congresso Nacional, para que se butramina, apresentada pela Anvisa. aprove uma lei que regulamente a integralidade Assim como a professora da Unifesp, os técda saúde e reforce a importância das listas de nicos da autarquia consideram que esses iniremédios baseadas em critérios iminentemente bidores de apetite atuam no sistema nervotécnicos. “Para que o Estado não fique vulnerável so central e podem levar à morte. A indústria a essas ações judiciais”. farmacêutica tenta convencer os responsáveis Outra fórmula apresentada por ele, para pela vigilância sanitária de que os remédios tentar conter o assédio contra os médinão representam riscos. cos é investir na capacitação destes “para A decisão com o veredicto cabe à Anvisa, que não fiquem tão frágeis diante da pressão que é o órgão federal responsável pela fiscalique a indústria exerce, com a propaganda zação e regulação do setor, mas não tem prae prêmios”. zo para ser concluído. O presidente da Anvisa explica que aguarda os pareceres contrários à retirada dos medicamentos das prateleiras. Até Ética na UTI lá os emagrecedores continuam a ser vendidos Motivado por uma série de denúncias solivremente. bre a promiscuidade na relação entre médicos Barbano prefere não estabelecer uma relae indústria farmacêutica, o Conselho Regional ção direta entre as duas ameaças que sofreu e de Medicina (CRM) de São Paulo decidiu agir. o lobby do setor, que age para manter esses reOrganizou um estudo inédito para identificar o médios no mercado. Embora não seja o primeigrau de envolvimento dos médicos nessa teia. ro presidente da instituição a sofrer ameaças O resultado da pesquisa, divulgado no fidesse tipo no exercínal do ano passacio do cargo. do, é surpreendente: “Todo mundo que é da área sabe Em entrevista à 93% dos entrevistaque a obesidade não tem solução reportagem de Cados declaram ter recom esses remédios”, Soraya Smaili ros Amigos, ele revecebido brindes, benela que o lobby dessa fícios ou pagamentos indústria é fortíssimo. “Vários estudos já comdas indústrias farmacêuticas no valor de até provaram que há uma ligação grande de várias R$ 500. Enquanto 77% dos profissionais relaempresas com escritórios de advocacia para tam conhecer médicos que aceitaram produtos mover ações contra o sistema público de saúou pagamentos acima de R$ 500, nos 12 meses de, para que seus produtos sejam adquiridos anteriores à realização da pesquisa. pelo Estado e distribuídos.” Trinta e três por cento dos médicos ouviEle conta que o sistema público de saúde dos declaram que souberam ou presenciaram oferece um conjunto enorme de remédios para casos de pressão exercida pela indústria faro tratamento de praticamente todas as doenmacêutica, 28% diz saber de médicos que reças. “Mas há um mecanismo de pressão da incebem comissão por medicamentos, procedidústria, para a inclusão de novos medicamenmentos e próteses receitados e 22% afirmam tos para o tratamento das mesmas doenças, só ter ciência que existem médicos que prescreque muitas vezes mais caros.” vem desnecessariamente por pressão da indúsO presidente da Anvisa destaca que, nessa tria farmacêutica. cadeia, a indústria produz, o médico prescreve Doze por cento dos entrevistados afirmam e o advogado entra na justiça para que o Estaconhecer colegas que recebem comissões ou do compre. “Se cria um ciclo perigoso”, adverprêmios para prescrever determinadas quantite. Ele acrescenta, ainda, que esse lobby “atua dades de medicamentos. Embora nenhum deles por vezes junto ao Judiciário”. assuma que pessoalmente tenha recebido para

Soraya Smaili, farmacêutica e professora da Unifesp.

receitar bastantes medicamentos da indústria que os remunera para fazer isso. “É crescente a parcela dos médicos que têm relação com a indústria de medicamentos. Já ultrapassou os limites éticos da boa prática médica. O problema é que nunca se consegue provar, porque isso é sempre feito por baixo do pano”, lamenta a médica Silvia Helena Rondina Mateus, conselheira diretora do CRM paulista. Os números do estudo tornam–se alarmantes na medida em que o valor dos presentes oferecidos, por esse ramo da indústria que quer ganhar aliados para o esquema, aumenta. O grau da corrosão ética provocado entre os médicos que se deixam seduzir pelas benesses ofertadas pelo setor é impressionante: 34% afirmam que tiveram almoços e/ou jantares pagos pelo setor empresarial e 15% dizem ter recebido gratuitamente ingressos para eventos culturais ou de lazer. Viagens nacionais, com 49%, e internacionais, com 36%, também integram a lista de respostas de profissionais que conhecem médicos que receberam esse tipo de regalo dos proprietários da indústria de fármacos. Os médicos também são remunerados pelo setor, para prestar serviços de consultoria em congressos e eventos, como speakers. Tornamse mais ou menos os porta-vozes da indústria, no convencimento dos colegas participantes

abril 2011

-Lucia_169.indd 19

caros amigos

19

05.04.11 19:28:30


desses encontros, sobre a eficiência dos medicamentos que serão lançados. Os speakers são profissionais de prestígio ou que atuam como professores ou pesquisadores científicos em universidades. A indústria vai atrás deles e os remunera bem. Vinte e sete por cento dos entrevistados declaram conhecer Remédio caro médicos que recebem honorários da indústria Apesar da entrada dos genéricos no mercado por esse tipo de serviço prestado, embora apeter contribuído para a redução do preço de alnas 2% assumam que fazem isso. guns medicamentos, Os agrados conos remédios no Bracedidos aos profis“É crescente a parcela dos médicos sil ainda são muito sionais da área médique têm relação com a indústria caros e quem paga a ca passam ainda pela de medicamentos”, Silvia Mateus conta são os pobres. concessão de comisInformações disposões ou prêmios por níveis no sítio da Interfarma na internet, refeprescrever certas quantidades de medicamenrentes ao ano de 2009, revelam que as classes tos, além de doações de equipamentos eletroC, D e E são as mais penalizadas. Juntas reseletrônicos. ponderam por R$ 18,5 bilhões do volume de compra de medicamentos. Já as classes A e B Gastos com medicamentos despenderam apenas R$ 5,3 bilhões no mespor classe social* mo período. Classe A: 2,2 É para essa população mais pobre que indústria farmacêutica direciona sua propaganClasse B: 3,1 da. A indústria farmacêutica não exita em utiClasse C: 5,5 lizar todas as armas para vender seus produClasse D: 8,1 tos. As propagandas são feitas até em uniformes Classe E: 4,9 de times de futebol. Vale tudo para incutir nos corações e nas mentes das pessoas a marca * Em bilhões de reais; gasto anual em 2009. do remédio. “Aqui a propaganda corre solta. Fonte: Interfarma

20

fotos: cremesp

foto: Elza Fiúza/ABr

Dirceu Barbano, presidente da Anvisa.

Trinta e sete por cento, dos 600 médicos enA indústria investe parte significativa de seus retrevistados, assumem que receberam pagamencursos em marketing”, frisa a professora Soraya. tos superiores a R$ 500, nos 12 meses anterioA indústria farmacêutica multinacional conres à pesquisa. sidera o Brasil um grande mercado para obtenA fidelização do paciente ao medicamento é ção de lucros vultosos. Apesar de árdua defenoutro mecanismo antiético colocado em prática sora das patentes, as multinacionais avançam por alguns médicos, segundo a conselheira do também sobre o filão dos genéricos, que mesCRM paulista. “Eles dão um cartão para o pamo sendo mais baratos, dão muito lucro. Reciente e dizem que se ligar para o 0800 e pascentemente, a francesa Sanofi-Aventis, líder sar o nome do médico que prescreveu a mediem vendas no Brasil, adquiriu a Medley, brasicação, a cada quatro caixas, a quinta é grátis leira com atuação na área de genéricos. A meou tem desconto”, denuncia. dida com certeza vai impactar no aumento do A médica afirma que o Conselho Federal de preço dos medicamentos. Medicina já foi notificado sobre a conduta an tiética. “Os conflitos que envolvem a prática Passado que condena médica não podem privilegiar os profissionais Para o médico e professor visitante da e as empresas em detrimento do paciente”, friEscola Paulista de Medicina da Universidade sa. Ela revela também que alguns médicos esFederal de São Paulo (Unifesp), Michel Rabitariam recebendo da novitch, quem quer indústria farmacêuticompreender a for“Há uma ligação grande ca um percentual soma de agir da inde várias empresas com escritórios bre a prescrição dos dústria farmacêutica de advocacia”, Dirceu Barbano medicamentos oncohoje, deve entender lógicos mais caros. o funcionamento da “A conduta antiética tem de ser punida.” indústria do tabaco no início do século pasO CRM considera inaceitável que os médicos sado. receitem baseados em contrapartidas. “É inadEle estabelece um paralelo entre as duas inmissível que seminários, congressos, simpósios dústrias, cujo principal objetivo é obtenção de sejam pautados pela indústria farmacêutica, lucros. Os donos da indústria do tabaco foram dirigidos pelo interesse comercial. Não podeos precursores na introdução dos speakers para mos aceitar que professores universitários sirdar embasamento e sustentação à tese de que o vam de speakears desses laboratórios”, critica a médica. A conselheira do CRM quer que o Conselho Federal de Medicina edite uma resolução para coibir condutas antiéticas praticadas por maus profissionais. Ela também considera que essas benesses oferecidas aos médicos impactam diretamente no aumento dos preços dos medicamentos.

Silvia Mateus, conselheira do CRM paulista.

caros amigos abril 2011

-Lucia_169.indd 20

05.04.11 19:28:33


Medicamentos e substâncias retirados do mercado 2000 Fenilpropanolamina: substância usada em antigripais, associada a derrame e ataque cardíaco.

2001

foto: Jesus Carlos

Cisaprida: substância usada em medicamentos para refluxo, associada à arritmia grave. Foram cancelados os registros Kineprid, Normotil, Cisatec, Cispride, Cisapan, Cinetic e Cimetic. Astemizol: substância causava arritmia cardíaca. Mercúrio: metal pesado provoca dano às vísceras e ao sistema nervoso. Lipobay: medicamento para colesterol, associado a problemas musculares que pode levar à morte. Tiomersal: princípio ativo do merthiolate, associado a casos de alergia e possibilidade de intoxicação do sistema nervoso central.

2002 Fenolfitaleína: substância anticonstipante, utilizado como princípio ativo de laxantes, uso frequente poderia causar câncer intestinal.

2004 Vioxx: medicamento retirado do mercado pela empresa após o grande número de mortes, por efeitos colaterais cardiovasculares.

2008 Prexige: medicamento usado para osteoartrite que provocava problemas hepáticos. Arcoxia: medicamento utilizado para reumatismo, gota, artrite, causava problemas hepáticos. Bextra: retirado das farmácias, restrito ao ambiente hospitalar. Acomplia: Anvisa abriu investigação e fabricante retirou medicamento do mercado. Popularmente apelidado de pílula antibarriga, aumentava chance de transtornos psiquiátricos, depressão, ansiedade, problemas de sono e suspeita de tendência ao suicídio.

2009 Raptiva: medicamento usado para tratamento da psoríase que provocava problemas cerebrais no sistema nervoso central.

2010 Dextropropoxifeno: substância analgésica que provocava intoxicação levando a óbito. Avandia: medicamento utilizado para tratamento de diabetes 2, provocava infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca, derrame. Octagam 5%: imunoglobulina para tratamento de crianças com AIDS congênita, imunodeficiências primárias e mieloma que causava problemas de coagulação (trombose).

2011 Octagam 10%: suspenso de forma preventiva, pelos mesmos motivos da Octagam 5%, apesar de nunca ter sido comercializado no Brasil. Obs: Tabela elaborada a partir de informações fornecidas pela Anvisa. Fonte: Anvisa.

mercado, em 2004, após ter causado a morte de tabaco não causava câncer de pulmão. “Pagamais de 50 mil pessoas no mundo, como um dos vam cientistas que trabalhavam em conceituexemplos em que o lucro é colocado em primeiadas universidades, inclusive, em Havard, para ro lugar pela indústria de farmacos. escrever artigos afirmando que o tabaco não “A Merck (dona da marca) sabia que exisera o responsável por aquela patologia.” tiam problemas com O médico afirma o Vioxx, mas esconque os donos da in“A Merck (dona da marca) sabia deu os efeitos indedústria do tabaco que existiam problemas com o Vioxx, sejados do remédio.” começaram a agir mas escondeu os efeitos indesejados Ele explica que o medessa forma quando do remédio”, Michel Rabinovitch dicamento deixava se identificou que o os pacientes com docâncer de pulmão enças coronarianas suscetíveis à morte. estava diretamente ligado ao fumo. “A indúsA professora Soraya também relata casos tria reagiu de várias maneiras, inclusive, nede medicamentos que aparentemente são inogando essa relação. Aquilo que atualmente se fensivos, mas que podem se tornar letais. “O costuma chamar de negacionismo.” Tylenol para boa parte das pessoas é inofenRabinovitch cita o caso do medicamensivo, mas pode causar uma toxidade no fígato Vioxx, droga anti-inflamatória, retirada do

Michel Rabinovitch, médico e professor da Unifesp.

do que pode levar à morte, quando associado ao álcool. Tomar Tylenol e beber bebidas alcoólicas, nem pensar”, instrui. “Não é porque é antigripal que é inofensivo. Têm alguns medicamentos que afetam a pressão arterial, provocam broncoconstrição (bloqueio no pulmão) e levam à morte”, completa. Descongestionantes nasais também são tratados com reserva por ela. “Afetam o sistema nervoso central. Melhora a congestão nasal, mas podem aumentar a pressão arterial e levar à morte se a pessoa for hipertensa.” Soraya alerta para o fato de os médicos prescrevem muito no Brasil, influenciados pela indústria farmacêutica. O professor Rabinovitch também considera que a medicalização está em alta na sociedade contemporânea. “A indústria farmacêutica associada a cientistas descobrem ‘novas doenças’, como essa das crianças agitadas. Tudo é tratado com remédios, muitas vezes desnecessariamente. Estão cuidando crianças de dois, três anos, como se fossem casos de psiquiatria. Fazem um diagnóstico precoce para tratar com remédio”, adverte. A Interfarma foi procurada pela reportagem da Caros Amigos, mas nenhum dirigente da entidade quis se pronunciar. Lúcia Rodrigues é jornalista. luciarodrigues@carosamigos.com.br

abril 2011

-Lucia_169.indd 21

caros amigos

21

05.04.11 19:28:36


ensaio Gabriela Moncau ... México - Sobre as ruínas dos povos cujo sangue gestou o capitalismo e sob os chapéus de seus atuais camponeses urbanos e citadinos rurais vive esse México vulcão, com erupções nada menos do que constantes: da reação à conquista dos neozapatistas e tantas outras atuais lutas. Entre o Caribe e o Pacífico, entre reprimir os imigrantes da América Central e ser reprimido como imigrante pelos gringos, sufoca-se e respira esse México roto e tão cansado dos de cima como toda América Latina. Entre as montanhas e o deserto, entre a cruz do Estado e a espada do “narco”, insurge-se e ressurge, a partir debaixo, esse México rebelde e explosivo. Impetuoso. Vivo. Que viva, que mude de vez. Que nos leve junto. Texto e colaboração: Júlio Delmanto

-Ensaio_169.indd 22

05.04.11 18:51:04


-Ensaio_169.indd 23

05.04.11 18:51:09


FOTO: IGOR OJEDA

A REPÚBLICA

DE AREIA

NO MEIO DO DESERTO, VIVE UM POVO QUE HÁ 35 ANOS ESPERA VOLTAR PARA CASA. NO EXÍLIO, CRIOU SEU PRÓPRIO ESTADO, COM CONSTITUIÇÃO, LEIS E ELEIÇÕES REGULARES. NAS PÁGINAS SEGUINTES,CAROS AMIGOS CONTA A HISTÓRIA DO SAARA OCIDENTAL, A ÚLTIMA COLÔNIA DA ÁFRICA.

Por Tatiana Merlino e Igor Ojeda Até onde o olhar alcança, só há areia. O horizonte é um infinito marrom-claro. Pequenos arbustos aparecem aqui e ali, invadindo timidamente o cenário. O sol sempre forte se une à extrema aridez do clima e castiga a pele. O céu de azul eterno não permite a presença de uma nuvem sequer. Nessa terra, a temperatura chega a 55 graus à sombra durante o verão, a água é um bem escasso e o solo não dá nada. Os únicos animais que nela sobrevivem são cabras e camelos. Estamos no deserto de Hamada, a área mais seca e inóspita do deserto do Saara, no sudoeste da Argélia, norte da África. Na região, nos arredores da cidade de Tindouf, estão instalados cinco campos de refugiados onde vivem, há mais de três décadas, cerca de 170 mil pessoas expulsas

de sua terra natal, o Saara Ocidental, antiga colônia espanhola hoje ocupada pelo Marrocos. Dajna Laman Merhi, de 50 anos, é uma dessas pessoas. Assim como milhares de compatriotas, a saaraui – como é conhecido o natural do Saara Ocidental – foi obrigada a deixar sua cidade, Mahbas, em direção à Argélia, quando, no final de 1975, o rei marroquino Hassan II promoveu uma invasão de 350 mil soldados ao país. Na operação para ocupar o território e expulsar os saarauis, conhecida como “Marcha Verde”, cerca de 2 mil pessoas morreram, e muitas outras foram vítimas de bombardeios de napalm e fósforo branco. Dajna, na época com 16 anos, teve que deixar os pais e sair de Mahbas com dois primos em direção ao leste. Durante 15 dias, caminhou

pelo deserto, até chegar à região de Tindouf, na Argélia. “Poucos vinham de carro, pois não havia muitos disponíveis. A maioria veio andando. O que importava era escapar dos ataques”, conta. Para se esconderem dos aviões marroquinos que bombardeavam a população em fuga, ela e os parentes se cobriam com folhas e galhos que encontravam pelo caminho. Nos acampamentos, como os campos de refugiados também são chamados, Dajna teve cinco filhos, de dois casamentos. O primeiro marido morreu na guerra, em 1981. Do segundo, divorciou-se. Uma das maiores tristezas de sua vida é que a ocupação marroquina impediu seus pais – que só voltou a ver muitos anos depois, através de uma visita organizada pela ONU – de conhecer os netos.

abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 1

caros amigos

1

06.04.11 16:17:13


A INVASÃO

Última colônia da África, o Saara Ocidental tem quase o mesmo tamanho da Grã-Bretanha. Banhado pelo oceano Atlântico a oeste, faz fronteira com o Marrocos ao norte, Argélia ao nordeste e Mauritânia ao sul e a leste. Antes de os europeus inventarem as fronteiras africanas, a região que hoje abriga o país não ficou imune à expansão árabe que invadiu o norte do continente no século 7 e impôs seu idioma e religião. Descendentes de berberes nômades, os saarauis professam o islamismo sunita e sua língua predominante é um dialeto árabe conhecido como hassaniya. No entanto, muitos falam, também, o castelhano. Pois, no século 19, mais precisamente em 1884, foi a vez de a Espanha invadir o território saaraui, onde ficou até 1976. No final do ano anterior, quando o ditador Francisco Franco convalescia e se especulava sobre a retirada espanhola, o rei marroquino Hassan II, alegando direitos ancestrais sobre o Saara Ocidental, deu início a sua “Marcha Verde”. Num primeiro momento, o governo espanhol tentou defender o território. No entanto, não demorou muito para decidir abandoná-lo, não sem antes garantir seus interesses. Secretamente, em 14 de novembro, em Madri, assinou o chamado Acordo Tripartite, por meio do qual cedia o Saara Ocidental ao Marrocos e à Mauritânia em troca de participações na exploração dos recursos naturais. Mas os saarauis não foram meros espectadores de toda essa movimentação. Organizados em torno da Frente Polisario (Frente Popular para a Libertação de Saguia el Hamra e Río del Oro), organização político-militar que desde 1973 reivindicava a soberania sobre o Saara Ocidental, procuraram, desde o início da invasão marroquina, defender seu território, ao mesmo tempo em que organizavam a fuga em massa da população rumo à parte argelina do deserto de Hamada. Em 26 de fevereiro de 1976, o acordo de Madri se consumava com a retirada oficial da Espanha. Já no dia seguinte, para não deixar nenhum vazio legal, a direção da Frente Polisario, reunida na parte leste do país, uma vez que o Marrocos já controlava a costa atlântica, deu seu grito de independência: proclamou a República Árabe Saaraui Democrática, a Rasd, hoje reconhecida por 82 países e membro da União Africana.

e militares se preparando para um eventual retorno das hostilidades. Nos cinco campos de refugiados localizados nos arredores de Tindouf, na Argélia, estima-se que a população seja de 170 mil. Há, ainda, um grande número (não contabilizado) de saarauis que vivem no exterior, sobretudo na Espanha. A distância entre o aeroporto de Tindouf e o campo de refugiados 27 de Fevereiro, onde Dajna Laman Merhi vive, é de aproximadamente meia hora de carro. É por volta das 22 horas, e a escuridão ainda não permite avistar a paisagem do deserto de Hamada. A estrada é de asfalto, mas em suas margens quase não se vê luzes que indiquem a presença de alguma casa ou algo semelhante. Alguns minutos depois, o carro diminui a velocidade para passar por um controle do Exército argelino. O motorista, o primeiro de inúmeros “Mohamed” que conheceríamos a partir daquele momento, explica: “daqui para frente, o território é controlado pela Rasd”. Ao chegar à casa de Dajna, onde ficaríamos hospedados nas duas semanas seguintes, encontramos, além da anfitriã, sua cunhada Marian Zega e sua filha, Ahjab Ahmed. As três usam melfas, vestimenta tradicional saaraui, uma túnica de peça única com cores vibrantes que cobre as mulheres da cabeça aos pés. Elas nos instalam num cômodo de cerca de 16 metros quadrados, sem móveis e inteiro coberto por tapetes, de diversos tamanhos e cores. Então, dão as boas vindas com o ritual do chá verde, muito importante para a cultura saaraui e, por isso, repetido várias vezes ao dia. Numa pequena chaleira, Marian ferve a água, mistura-a ao chá e ao açúcar. Em seguida, despeja o conteúdo em um pequeno copo de vidro. Deste, para outro copo, e assim sucessivamente. Ela joga o chá de copo em copo da maior altura possível, até que se crie a quantidade de espuma que julgue adequada. Não derrama uma gota. Desde o começo do preparo até a primeira rodada de chá, leva-se cerca de 20 minutos. Depois que todos o tomam e devolvem os copos vazios, há a segunda e terceira rodadas. No total, o ritual dura mais ou menos uma hora. A certa altura, Sa-

leh Habub, sobrinho da dona da casa, junta-se ao grupo. Ele explica que, segundo a tradição, cada pessoa deve tomar os três copos. “Dizem que o primeiro é amargo como a vida, o segundo, doce como o amor, o terceiro, suave como a morte”. Aceitar o primeiro e recusar os seguintes é uma ofensa ao anfitrião. O prato nacional dos saarauis é o cuscuz, feito de grãos de sêmola. Muitas vezes, ele é acompanhado de carne de camelo ou cabra, base da alimentação dos nômades, e de pão, caseiro ou comprado nas vendas locais. As famílias almoçam e jantam sentadas no chão em volta do mesmo recipiente, usando, sempre, a mão direita. A casa de Dajna, onde vive com três de seus cinco filhos, é como a maioria das construções dos campos de refugiados. As paredes são de adobe (tijolo feito de terra) e os telhados, de zinco. Em volta de uma espécie de quintal central, distribuem-se seis cômodos: dois que podem servir de quarto ou sala, a cozinha, um quarto de vestir, o banheiro (dividido em dois pequenos cômodos, um para o banho e o outro para as necessidades) e uma enorme tenda de pano chamada de jaima. O campo de refugiados 27 de Fevereiro é o único com luz elétrica. De maneira geral, as construções são rudimentares, as paredes, descascadas, judiadas pela areia e pelo vento. Em Smara e Dakhla, há pequenos “currais” para as cabras e os camelos, improvisados com arame, restos de caixas d’água e tábuas de madeira. Em meio às casas e ruas, não é incomum avistar carcaças de carros e caminhões. O cenário, muitas vezes, dá a impressão de desolação.

CESSAR-FOGO

Durante os 15 anos que se seguiram à proclamação da República, a Frente Polisario se dividiu entre a guerra contra o Marrocos (a disputa contra a Mauritânia teve fim em 1979, com um acordo de paz) e a administração dos campos de refugiados do sudoeste argelino e suas quase 200 mil pessoas. Para impedir o avanço dos independentistas, a monarquia marroquina construiu, ao longo da década de 1980, cinco muros de terra e pedra dividindo o Saara Ocidental de

Pode-se dizer que a população do Saara Ocidental está dividida em quatro. No território ocupado, ainda restam cerca de 120 mil saarauis, que, além de terem que dividir sua terra com aproximadamente 200 mil colonos marroquinos, sofrem com as más condições de vida e com a forte opressão e repressão impostas pelo ocupante. Nos territórios liberados, no leste, área tomada majoritariamente pelo deserto, vivem aproximadamente 80 mil pessoas, entre famílias nômades

2

FOTO: IGOR OJEDA

VIDA NO EXÍLIO

caros amigos abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 2

06.04.11 16:17:16


ROMPENDO ESTEREÓTIPOS

Estamos às vésperas 35º aniversário da Rasd, comemorado em todo 27 de fevereiro. O clima é de festa, orgulho, esperança. Na manhã do dia

23, a rua principal do acampamento 27 de Fevereiro, a única asfaltada, é tomada por crianças com bandeiras, uniformes militares, bolas e bicicletas. Elas são seguidas por mulheres vestidas com roupas tradicionais que carregam fotos de desaparecidos políticos saarauis. O desfile é uma preparação para uma das celebrações oficiais, que seria realizada em 1º de março, no acampamento de Smara. O colorido das melfas, das bandeiras e das roupas das crianças quebra a monocromia do cenário árido do deserto. Num dia comum, no entanto, a vida dos acampamentos é pouco movimentada. As crianças vão à escola, brincam, jogam futebol. Os adultos compram nas vendinhas, visitam amigos, vão aos poucos trabalhos disponíveis. Na ruas, além dos jipes – geralmente, Land Rovers – do governo, os carros que circulam são modelos antigos MercedesBenz. Vindos da Mauritânia por cerca de 2.500 euros, são guiados por homens de turbante, o que, num primeiro momento, causa enorme impacto ao olhar ocidental, assim como as mulheres que, quando saem de casa, cobrem, além do cabelo, pernas, braços, rosto e mãos. Algumas complementam o visual com óculos escuros. Turbantes e melfas, na verdade, não são apenas frutos da tradição religiosa ou da discrição da população do Saara Ocidental, mas também um grande aliado na proteção contra o sol e a poeira do deserto de Hamada. No caso das mulheres, o costume tem a ver, ainda, com a vaidade. Takla Salen, de 25 anos, explica que, para as saarauis, geralmente de pele curtida, o padrão de beleza é ser branca. Por isso, evitam ao máximo a exposição ao sol. Apesar da dor da vida no exílio e do estereótipo difundido no Ocidente sobre os árabes em geral, de rigidez e dureza no trato, os saarauis são muito alegres e hospitaleiros. Os homens adoram futebol, principalmente o brasileiro, e conversam sobre o assunto com propriedade. As mulheres cantam, dançam e riem com frequência.

FOTO: TATIANA MERLINO

norte a sul; o maior deles, de 2.400 quilômetros de extensão. Assim, cerca de dois terços do território, incluindo a costa atlântica, ficou sob controle do Marrocos. O restante, a parte oriental do país, ficou sob o domínio da Rasd. A partir do final da década de 1980, a ONU intermediou negociações entre os dois lados, que culminaram em um cessar-fogo, em 1991. O principal ponto do acordo era a realização de um referendo por meio do qual os saarauis decidiriam se desejariam fazer parte do reino marroquino ou se tornar independentes. Por obstáculos impostos pelo Marrocos – que insiste em que os colonos marroquinos que vivem no Saara Ocidental também tenham direito de votar –, até hoje a consulta não foi realizada. A Rasd não esteve sozinha na guerra. Contou com o apoio militar, financeiro e logístico da Argélia – que ainda liberou parte de seu território para os refugiados – e a cooperação em áreas como saúde e educação de Cuba. O Marrocos esteve menos sozinho ainda. Recebeu ajuda em armamentos e dinheiro de diversos países, especialmente Estados Unidos, França, Espanha, Grã-Bretanha, Israel, Itália, Bélgica e África do Sul. O mundo vivia o período da Guerra Fria e, enquanto o reino de Hassan II se alinhava ao bloco capitalista, a Argélia apresentava uma postura mais pró-soviética. Não foi somente a “batalha contra o comunismo”, porém, que motivou a ingerência ocidental no conflito. Poucos anos antes da saída espanhola do Saara Ocidental, foram descobertas, na parte oeste do país, grandes jazidas de fosfato, mineral utilizado principalmente na produção de fertilizantes. A mina de Bu-Craa, por exemplo, é considerada uma das maiores e de melhor qualidade do mundo. Além disso, o litoral saaraui é conhecido por ser uma das melhores zonas pesqueiras do planeta.

PROTAGONISMO FEMININO

Mas não é apenas à vida na jaima que se resume a participação feminina. A mulher saaraui tem um papel bastante ativo na vida social e política do Saara Ocidental. Zhara Ramdán Ahmed, presidenta da Associação de Mulheres Saarauis na Espanha, diz que isso se explica pela origem beduína dos saarauis. “Nesse tipo de sociedade, enquanto o homem ia caçar ou tocar o gado, era a mulher que administrava e tomava as decisões do lar”, aponta. Quando o Marrocos deu início à Marcha Verde e os homens foram obrigados a ir à guerra, foram as mulheres que construíram e administraram as casas, hospitais e escolas nos campos de refugiados. Na sociedade saaraui, as mulheres têm o direito de se divorciar e casar novamente, quantas vezes quiserem. “A religião tem muito a ver com a cultura. A sociedade saaraui e mauritana pertence a uma cultura muito aberta e tolerante e tem sua forma própria de praticar o islã. Na verdade, quando estudamos o islamismo, podemos ver muitas coisas interessantes, como uma

DEMOCRACIA NO EXÍLIO Com a soberania sobre seu próprio território ameaçada por um monarquia, a Frente Polisario escolheu, como espécie de grito de independência, proclamar uma república. “A república é o mais próximo da representação da soberania popular. Os saarauis, em sua história, sempre foram representados por conselhos e assembleias. É um povo que sempre elegeu seus dirigentes”, esclarece Abdelkader Taleb Aomar, o primeiro-ministro da República Árabe Saaraui Democrática (Rasd). Desde então, a Rasd funciona como um Estado saaraui no exílio, com Constituição própria e baseado em princípios democráticos. A cada três ou quatro anos, a Frente Polisario realiza seu congresso. Os cerca de 1.400 delegados são eleitos pe-

los saarauis dos campos de refugiados, dos territórios ocupados e liberados e entre os que vivem no exterior.

ELEIÇÕES

No congresso, debate-se o programa político para os próximos anos e se elege a direção política e o secretário-geral da organização, que, na prática, é o presidente da República Saaraui. É ele quem nomeia o primeiro-ministro. Este, por usa vez, propõe quem serão os ministros de Estado que, posteriormente, são avalizados pelo presidente. Os saarauis elegem diretamente os integrantes do Parlamento Nacional, composto por 53 membros, e seus governadores e prefeitos – os campos de refugiados são divididos em províncias (as whi-

layas) e municípios (as dairas). A Rasd conta, ainda, com um Poder Judiciário. De acordo com o primeiro-ministro, a ideologia da Frente Polisario pode ser considerada “nacional-progressista”. “Progressista porque quer elevar o nível de vida de seus cidadãos e promover a igualdade e a democracia. Claro que isso repercute em nossas relações exteriores. Temos relações mais estreitas com movimentos sociais e partidos progressistas. São os que mais apoio prestam à causa saaraui”, elucida. Hoje, a Frente Polisario funciona como uma espécie de partido único, fundamental, segundo Aomar, para se manter a união necessária para se libertar o país. “Depois da independência, será instalado o multipartidarismo”, garante. (T.M. e I.O.)

abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 3

caros amigos

3

06.04.11 16:17:20


ILUSTRAÇÃO: RICARDO PALAMARTCHUK

igualdade real entre homens e mulheres”, esclarece Fatma Mehdi, secretária-geral da União Nacional de Mulheres Saarauis (UNMS). Embora as mulheres participem também nas instâncias de decisão da República Saaraui, como nos ministérios, Fatma pondera que ainda não é o suficiente. “Hoje, somos 34% do Parlamento da Rasd. Temos que conseguir pelo menos 50%.” A UNMS mantém, em sua sede, no acampamento 27 de Fevereiro, diversos cursos e atividades voltados às mulheres, como esportes e aulas de espanhol e computação. Apesar do isolamento, os refugiados estão “conectados” com o mundo. Além do incipiente acesso à internet, quase todos têm celular – não há telefones fixos. E todas as casas possuem antenas parabólicas, que permitem a recepção de programas de todo o planeta: das séries de TV estadunidenses aos noticiários da rede Al Jazeera, passando por campeonatos de futebol e novelas turcas e brasileiras. O contato com a própria terra, porém, não é propiciado pela parabólica. Takla Salen, a jovem de 25 anos, lista seus maiores sonhos: “casar, ter filhos, conquistar a dignidade do meu povo e voltar para casa”, mesmo que a tal casa, o Saara Ocidental ocupado, seja um lugar onde nunca tenha estado, pois ela já nasceu no campo de refugiados. “Aqui é a terra dos argelinos”, pondera. “Queremos ir para a nossa casa de verdade”, repete Takla, cujos avós, que nunca viu, vivem em El Aaiún, capital do país. “Não há uma única família saaraui completa”, revela Zhara Ramdán. O sofrimento da separação entre pais e filhos, irmãos, netos e avós, tios e sobrinhos por causa da guerra surge em praticamente todas as conversas com a população dos acampamentos.

TERRA DIVIDIDA

Em sua parte mais oriental, o maior dos cinco muros construídos pelo Marrocos para impedir o avanço da Frente Polisario e dividir as famílias saarauis fica a cerca de uma hora de jipe dos cam-

pos de refugiados de Tindouf. O trajeto sacolejante pelas areias e pedras do deserto de Hamada nos leva a, no máximo, 100 metros dele. Aproximarse mais é arriscado, seja pelos militares marroquinos, seja pelo solo coalhado de minas terrestres que antecede a construção, alerta Salek Hametu,

A “MALDIÇÃO” DE SER RICO OS INTERESSES OCIDENTAIS E OS PRETEXTOS PARA APOIAR O MARROCOS SÃO MUITOS. O REI AGRADECE. Basta uma visita ao museu militar dos campos de refugiados saarauis para comprovar a existência de poderosos interesses em torno do conflito entre o Marrocos e o Saara Ocidental. É no local que a República Árabe Saaraui Democrática mantém o arsenal de guerra capturado das forças marroquinas durante os 16 anos de enfrentamentos. Em exposição, figuram morteiros, bombas de fragmentações, minas antipessoais, jipes, tanques e carcaças de aviões. A origem do material é quase uma volta ao mundo: Estados Unidos, França, Espanha, Israel, Grã-Bretanha, Itália, Bélgica e África do Sul, que vivia sob o regime do apartheid. Tamanha ingerência encontra simples explicação: era época de Guerra Fria e o Marrocos se alinhava aos interesses ocidentais, enquanto a vizinha Argélia, que apoiava a Frente Polisario, pendia para o lado soviético.

4

Com a queda do bloco socialista, os interesses econômicos ficaram mais evidentes. Na parte ocidental do território saaraui, justamente a que hoje está ocupada, encontra-se uma das mais cobiçadas zonas pesqueiras do mundo, no oceano Atlântico, e grandes jazidas de fosfato, importante componente para a fabricação de fertilizantes para a agricultura. Maior exportador mundial do mineral, com cerca de 30% do mercado mundial, o Marrocos fornece-o para Espanha, França, Brasil e Estados Unidos. Juntos, o Marrocos e o Saara Ocidental detêm 32% das reservas mundiais do minério. Recentemente, um dos telegramas divulgados pelo site WikiLeaks revelou que, durante uma visita ao Marrocos, em 2007, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, estabeleceu acordos da ordem de 3 bilhões de euros com a Companhia Nacional de

Fosfatos Marroquina (OCP). Segundo um documento da embaixada dos EUA no país africano, a moeda de troca era o reforço do apoio da França em relação à questão do Saara Ocidental. Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, o país dos ideais iluministas vem, desde 1975, exercendo o poder de veto em qualquer resolução do organismo que contrarie os interesses marroquinos no tema. Um exemplo é em relação à Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso), que não tem a atribuição de observar a garantia dos direitos humanos nos territórios ocupados. Qualquer tentativa de mudar isso recebe a intransigente oposição francesa. Em 27 de fevereiro deste ano, exatamente no mesmo dia em que a Rasd comemorava seu 35° aniversário, o governo marroquino anunciou a re-

caros amigos abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 4

06.04.11 16:17:24


nosso acompanhante. O ruído do veículo chama a atenção dos soldados, que surgem de dentro de uma base militar para observar os “visitantes”. Como forma de provocação, nosso motorista pisa no acelerador enquanto o carro está em ponto morto. Não demora para avistarmos mais militares curiosos aparecerem. Ao longo do muro, a monarquia marroquina construiu inúmeras bases para vigiar a movimentação em torno. Nos cerca de seis quilômetros que percorremos, pudemos constatar seis delas. Uma média de uma a cada quilômetro. O “muro da vergonha”, como é chamado, é vigiado dia e noite por aproximadamente 115 mil soldados, munidos de radares, peças de artilharia e tanques. Além disso, ao longo da construção, o Marrocos “plantou” cerca de 9 milhões de minas terrestres, que já causaram inúmeras mortes e mutilações de pessoas e animais. Em um trabalho conjunto entre a Rasd e a organização britânica Land Mine Action, 4 milhões delas já foram retiradas e destruídas. As Nações Unidas classificam o Saara Ocidental como um dos dez territórios mais contaminados por minas terrestres ainda sem explodir. Os dias nos acampamentos demoram a passar, pelo menos nos parâmetros ocidentais. A sesta dos saarauis vai do almoço ao final da tarde. Nesse período, quase não se vê pessoas na rua. O calor é uma das justificativas. No inverno, entre dezembro e março, as temperaturas chegam a uns 30 graus durante o dia. Durante o verão, os termômetros atingem 55 graus à sombra. “Das oito da manhã às oito da noite, não conseguimos sair de casa. É impossível”, conta Saleh Habub, sobri-

nho de Dajna. Estima-se que, nessa época, os saarauis bebam, por dia, cerca de 20 litros de água. As condições climáticas do deserto onde ficam os campos de refugiados são tão extremas que até existe uma maldição árabe que diz: “Que Deus te mande ao Hamada!”. Se o clima hostil é um dos responsáveis pelos longos períodos de ócio, outro é a ausência de emprego. A república no exílio praticamente não possui economia própria. Pequena parte dos refugiados trabalha no aparato estatal, como motoristas, professores, médicos e enfermeiras. Outra, possui pequenos negócios: vendinhas, barbearias, restaurantes, mecânicas, borracharias, táxis, fábricas de tijolo. Muitos dos jovens que estudaram em Cuba, Argélia e Espanha voltaram para “casa” sem ter no que trabalhar. A população dos acampamentos depende, sobretudo, das remessas de dinheiro de familiares que vivem no exterior e da ajuda humanitária internacional. Segundo o primeiro-ministro saaraui, Abdelkader Taleb Aomar, são necessários cerca de 80 milhões de euros anuais para cobrir todas as necessidades não militares da Rasd. As principais ajudas vêm de agências da ONU, como a Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e o Programa de Alimentação Mundial. Além disso, os campos de refugiados também são mantidos com recursos provenientes de relações bilaterais da Rasd com outros países e da solidariedade de ONGs e administrações regionais europeias, principalmente da Espanha, que prestam ajuda por meio de convênios e doações em diversas áreas. Ao contrário do governo nacional administrado pelo Partido Social Operário (Psoe) de José Luis Zapatero, boa parte da sociedade civil espanhola reconhece e apoia o direito à independência do Saara Ocidental.

A sesta é geralmente feita na jaima, tenda que as mulheres ganham do governo quando se casam. Confeccionadas de pano, elas são instaladas junto à casa das famílias. O piso é forrado por inúmeros tapetes e o teto é sustentado por dois pilares de bambu de três a quatro metros de altura. É ali que a sociabilidade acontece. É onde descansam, brincam com as crianças, fazem o chá, assistem à televisão, recebem as visitas.

novação por mais um ano do acordo pesqueiro com a União Europeia, em vigor desde março de 2007. O acerto oferece à frota europeia 119 licenças de pesca – mais uma cota adicional para espécies como anchova, cavala e arenque – na costa marroquina e... saaraui. Somente os pesqueiros espanhóis contam com 100 permissões. Desde 1975, a Espanha se alinha incondicionalmente aos interesses marroquinos no que diz respeito ao Saara Ocidental, independentemente do governo de turno. Temas como imigração e terrorismo também fazem parte dos interesses ocidentais na região do Magreb. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, por exemplo, a relação entre EUA e Marrocos se estreitou ainda mais. Com Barack Obama, a parceria contra o terrorismo continua, mas, segundo Bucharaya Beyun, delegado da Frente Polisario na Espanha, a postura estadunidense em relação à questão do Saara Ocidental passou a ser de menos alinhamento ao Marrocos. O comportamento europeu, entretanto, permanece o mesmo de sempre. O território marroquino está separado da Europa pelos somente 30 quilômetros de largura média do estreito de Gibraltar,

que divide o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo. Muitos imigrantes africanos o atravessam em busca de oportunidades no Velho Mundo. Por essa razão, o Marrocos é, para os europeus, fundamental para conter tal fluxo. Em 2006, por exemplo, a União Europeia disponibilizou uma ajuda ao Marrocos no valor de 67 milhões de euros, destinados às políticas contra a imigração ilegal. “O Marrocos chantageia a Europa alertando que a independência do Saara Ocidental poderia ocasionar a desestabilização da monarquia, o que seria um risco no que diz respeito à imigração ilegal, drogas e terrorismo”, analisa Bucharaya Beyun. Segundo o Comitê de Descolonização da ONU, o Saara Ocidental era, em 2010, um dos 16 territórios não autônomos do mundo ainda por descolonizar; o único do continente africano. Já o Tribunal Internacional de Justiça de Haia, após analisar o caso, em 1975, negou a existência de qualquer relação de soberania entre o reino de Marrocos e o território saaraui anteriores ao colonialismo espanhol, como reivindica o país norte-africano. A República Saaraui é integrante da União Africana e reconhecida por 82 países, entre eles,

África do Sul, México, Panamá, Venezuela, Cuba e Irã. No entanto, ainda falta o reconhecimento de muitas nações geopoliticamente influentes. Entre elas, o Brasil. “Tomara que o país, de direção progressista, tome uma decisão, como fez em relação à Palestina. Há os que dizem que, para se reconhecer um Estado, é preciso três requisitos: um governo, um povo e um território. Temos os três”, diz o primeiro-ministro Abdelkader Taleb Aomar. Com seu agronegócio a todo o vapor e a produção de agrocombustíveis crescendo a cada ano, o Brasil é um dos maiores consumidores de fertilizantes do mundo, importando a maior parte do fosfato que necessita. Um dos fornecedores é justamente o Marrocos. Dos 532,4 milhões de dólares que o Brasil importou do país em 2007, 451,7 milhões foram de fertilizantes e produtos químicos. A Bunge, transnacional cuja divisão de fertilizantes tem sede no Brasil e cujo atual presidente é Pedro Parente, ex-ministro da Casa Civil de Fernando Henrique Cardoso, possui uma joint-venture com a empresa estatal de fosfato marroquina, a OCP, para a produção de fertilizantes no país africano. (T.M. e I.O.)

CALOR E ÓCIO

O auxílio internacional, no entanto, ainda está longe de estar suficiente. Um dos problemas crônicos dos acampamentos é a desnutrição infantil. Pesquisa de 2008 da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicou que uma em cada cinco crianças sofria desse problema. “Se compararmos com a realidade de 35 anos atrás, não estamos tão mal. Mas tampouco estamos bem”, avalia Mohamed Saleh Edjil, o Índio, diretor de Patologias Crônicas do Ministério da Saúde saaraui e enfermeiro dos campos de refugiados desde 1975. “Não temos uma dieta balanceada. Comemos o que há.” As consequências disso, explica, “são patologias em escala. A anemia em mulheres grávidas, por exemplo, persiste”. Segundo Índio, as principais doenças que acometem os saarauis são a diabete e a hipertensão. “Em relação à diabete, há um fator hereditário, mas há outro que é decorrente do chá, que tomamos 24 horas por dia, com muito açúcar”, elucida. De acordo com o enfermeiro, a dependência total da ajuda humanitária complica o atendimento à saúde nos campos. “Agora mesmo, não tenho insulina para dar aos diabéticos porque, para 2011, a ONG x ou a associação y não vieram se sentar comigo e perguntar de quanta insulina eu precisava”, reclama.

A TENDA SAARAUI

abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 5

caros amigos

5

06.04.11 16:17:27


Moradia tradicional dos nômades do deserto, a jaima é uma das mais sagradas instituições da sociedade saaraui. Muitas vezes, é nela que eles realizam algumas das cinco orações diárias em direção à Meca. É numa jaima do acampamento de Smara, situado a 20 quilômetros do 27 de Fevereiro, que conversamos com o ancião Salma Leehid. Tradicionalmente, a história da sociedade saaraui, assim como a de muitos povos originários do mundo, é transmitida oralmente pelos mais velhos. “Quando morre um velho africano, queimase uma biblioteca”, lê-se na parede de um centro cultural dos campos de refugiados. De turbante, enrolado em algumas mantas e sentado numa almofada, o senhor de barba longa e branca lembra o período anterior à guerra contra o Marrocos. Sua família, beduína, vivia do pastoreio, e não sabia o que era uma fronteira. “Vivíamos onde era melhor para nós e para os animais”. Quando a guerra começou, sentiuse “péssimo, como qualquer pessoa que tem que sair de seu território”. Não demorou para integrar o exército. Ele conta que os saarauis não tinham armas suficientes. Por isso, atacavam os inimigos durante a noite, para roubar armamentos e munição. Salma não precisou de treinamento militar. Como pastor nômade, já tinha o costume de usar armas de fogo. Ele não se recorda da própria idade – ao final da conversa, sua filha revela que o pai tem 85 anos –, mas afirma estar farto de esperar pela resolução do conflito com a mediação da ONU. “Isso já dura 20 anos!”. Porém, quer a independência por meio da paz. “Que não seja pela guerra”. Uma de suas maiores tristezas, diz, é saber que o país que ataca e mata seu povo é também árabe e muçulmano “e que quase todas demais nações árabes ajudam sempre os fortes”, referindose à falta de apoio da Liga Árabe à causa saaraui. Em relação ao aniversário de 35 anos da República Saaraui, diz desejar ser o último a passar no exílio. “Tomara que as revoltas no mundo árabe ajudem”, diz o homem, enquanto sua filha assiste às notícias sobre as rebeliões na Al Jazeera.

VOLTA ÀS ARMAS?

O entusiasmo com as mudanças no mundo árabe é geral entre os moradores dos campos de refugiados e autoridades da Rasd. Atentos às notícias sobre o assunto que passam nos telejornais, eles esperam que os protestos ganhem força no Marrocos e forcem algum tipo de mudança no regime monárquico. O primeiro-ministro saaraui, Abdelkader Taleb Aomar, acredita que as revoltas no Magreb e no Oriente Médio inauguram uma fase histórica em favor da democracia e dos direitos humanos. Para ele, embora não sejam determinantes, os novos acontecimentos podem contribuir para a solução do impasse entre Marrocos e Saara Ocidental. “Os novos governos que surgiram ou podem surgir dessas lutas têm origem em movimentos políticos e sociais que reivindicam os mesmos di-

6

reitos que os saarauis. São governos diferentes dos anteriores. Além disso, a ONU, que respaldou esses movimentos, não pode mais ignorar nossa causa. Eles entraram em contradição”, analisa. No entanto, apesar do despertar de certa esperança decorrente da nova configuração política do mundo árabe, os refugiados que nasceram nos campos estão fartos de esperar por uma solução pacífica que ponha fim à ocupação e reivindicam a volta às armas. No final do ano passado, jovens de todos os acampamentos foram pedir ao presidente saaraui, Mohamed Abdelaziz, que a Frente Polisario considerasse a opção. Um deles era Mohamed Fadel, filho de Dajna. “Estou cansado de estar aqui e não poder ver onde nasceram minha mãe e meus avós. Preciso de uma resposta. Seja a guerra, seja a paz. O povo saaraui quer a independência pela paz, mas, se necessário, que seja pela guerra”, desabafa. Fadel, de 30 anos, não conheceu o pai; ele foi morto em batalha contra as forças marroquinas quatro meses antes de seu nascimento. “São 20 anos [desde o cessar-fogo] de mentiras e mentiras, sem que nada aconteça. Não acredito numa solução via ONU. O que mais me encanta é a ideia de morrer em defesa da minha terra. Certamente, iria à guerra.” O mesmo sentimento é reiterado pela imensa maioria dos jovens, especialmente os militares. Para o soldado Laghzal Mohamed, não há mais nada o que negociar por intermédio das Nações Unidas. “Queremos voltar às armas para conquistar a independência. Pegaram nossa terra à força e temos que fazer o mesmo para tê-la de volta”. O rapaz de 28 anos, que integra o contingente militar de Tifariti, no território liberado, conta que 15 amigos e parentes estão na prisão, no Saara ocupado, onde vivia. Há três anos, procurado pela polícia por sua condição de ativista pró-independência, decidiu fugir para o leste do país. Questionado sobre como conseguiu burlar a vigilância marroquina, o muro e as minas terrestres, responde, com um sorriso no rosto: “Esta terra é nossa. Conhecemos nosso território”. As autoridades saarauis estão mais do que cientes da insatisfação dos jovens. “A entendemos muito bem. Estamos aqui [nos campos de refugiados] há 35 anos. Muita gente acha que avançamos mais durante os 16 anos de guerra do que nos até agora 20 anos de mediação política das Nações Unidas”, afirma o primeiro-ministro. Ele receia, porém, que na atual conjuntura internacional os saarauis sejam associados ao terrorismo. “Enquanto a ONU estiver no território mediando o conflito, nós temos essa possibilidade de luta, de resistência pacífica. Até agora, temos optado por seguir apostando nessa estratégia. E acreditamos que o que vem acontecendo apoia nossa tese, de que as resistências populares podem mudar as coisas.”

Em outubro deste ano, acontece o Congresso da Frente Polisario, que terá como principal tema de discussão justamente a possibilidade do retorno à guerra contra o Marrocos.

CELEBRAÇÃO DA REPÚBLICA

Caso essa opção se concretize, os saarauis acreditam estar preparados. Ao longo dos territórios liberados, a Frente Polisario mantém sete regiões militares, que abrigam um total estimado de 80 mil soldados. A maior e mais importante delas é a de Tifariti. É lá que ocorre, em todo 27 de fevereiro, a celebração militar oficial da proclamação da República Saaraui. Dos campos de refugiados, a viagem de jipe pelo deserto leva cerca de sete horas, mas não é sua duração que mais cansa. O caminho irregular, o sol forte e a grande quantidade de poeira que entra pelas janelas minam o ânimo do viajante. O motorista se orienta como se conduzisse numa cidade com ruas e avenidas. Toma uma ou outra direção com a certeza de quem conhece cada pedra e arbusto. “Aqui tem um GPS”, brinca, apontando para a própria cabeça. O cenário muda conforme o tempo passa. O “nada” do deserto do sudoeste argelino dá lugar a um ambiente menos inóspito. Os pequenos arbustos espaçados se transformam em árvores de médio porte que aparecem em “bando” e com muito mais frequência. A areia vai ganhando um tom mais avermelhado. O terreno fica mais rochoso. A entrada do acampamento militar de Tifariti é marcada por um portal que imita dois camelos frente a frente. O local está repleto de jaimas para receber os visitantes. No dia da proclamação da República, jipes com militares dentro passam de um lado ao outro com bandeiras do Saara Ocidental penduradas na antena ou coladas no capô. O clima é de entusiasmo. O desfile dos diversos batalhões do exército saaraui é assistido por soldados das sete regiões militares, civis, autoridades e representantes de países que reconhecem a Rasd, como Cuba, Venezuela, Argélia, África do Sul e México. Após o discurso do presidente, um grupo de militantes do território ocupado que desafiou a repressão marroquina e viajou a Tifariti especialmente para a celebração é homenageado. Um deles toma a palavra, e, sob muitos aplausos, defende a continuação da resistência até que a independência seja alcançada. “Saara livre!”, grita ele, seguido em coro pelo público. Muitos vieram dos acampamentos de Tindouf, dias antes, para ajudar na preparação da festa. Quando ela acaba, é hora de voltar para “casa” e para a realidade cotidiana. Aos saarauis no exílio, só resta esperar. Esperar a guerra. A independência. A chegada de medicamentos. O calor diminuir. A economia melhorar. Esperar a vida voltar ao “normal”: retornar ao território ocupado, mesmo que a vida “anormal” já dure 35 anos. Tatiana Merlino e Igor Ojeda são jornalistas

caros amigos abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 6

06.04.11 16:17:30


PRISÃO A CÉU ABERTO

POPULAÇÃO QUE VIVE NO TERRITÓRIO DO SAARA OCIDENTAL OCUPADO PELO MARROCOS SOFRE COM REPRESSÃO E PÉSSIMAS CONDIÇÕES DE VIDA.

Por Tatiana Merlino e Igor Ojeda O dia ainda não clareou quando o comerciante Mohamed Tarrizi Sarraj é despertado pelo som forte de helicópteros voando. Em seguida, ouve uma voz em um alto-falante ordenando as pessoas a saírem. Instantes depois, cerca de 50 mil policiais marroquinos invadem o acampamento de Gdeim Izik, localizado a 18 quilômetros de El Aaiún, a capital do Saara Ocidental ocupado. “Eu estava dormindo com minha mãe e mais dois irmãos quando entraram ateando fogo nas tendas, jogando gás e água quente, atirando e batendo nas pessoas”, conta Tarrizi, uma das pelo menos 20 mil pessoas que estavam ali naquele 8 de novembro de 2010. Entre os acampados, havia velhos, jovens, mulheres grávidas, deficientes. Ninguém foi poupado. “Vi crianças perdidas de seus pais, mulheres correndo desesperadas sem seus filhos, pessoas foram pisoteadas, meninas e mulheres foram violadas, pessoas foram presas... ”, relata o saaraui. O “Acampamento da Dignidade”, como foi apelidado, começou a ser montado em 10 de outubro em protesto contra as péssimas condições de vida da população saaraui nos territórios ocupados. Os saarauis fazem questão de frisar que foi essa, na verdade, a primeira das mobilizações sociais da recente onda de revoltas do mundo árabe. O acampamento chegou a ter pelo menos 20 mil pessoas, divididas em cerca de 8 mil jaimas, como são chamadas as enormes tendas de pano saarauis. “Lá dentro, tinha mais de cinco saarauis reunidos, isso é uma conquista para quem vive nos territórios ocupados. Era um ambiente de liberdade, entre aspas”, lembra o ativista mexicano Antonio Velásquez, que, com a espanhola Isabel Terraza, estava em Gdeim Izik. Liberdade entre aspas porque o governo marroquino não demorou a reagir. Cercou o acampamento com um muro de areia e pedra, tropas antidistúrbios, soldados, veículos policiais e voos de helicópteros. Dias depois, o invadiu com extrema violência.

PRÁTICAS COMUNS

Até hoje, não se sabe exatamente quantas pessoas foram presas, morreram ou estão desaparecidas como consequência da ação. Sabe-se, porém, que muitos detidos foram submetidos a métodos de tortura utilizados pela polícia marroquina contra o povo saaraui há mais de três décadas. Se nos campos de refugiados no sudoeste da Argélia o sofrimento se dá pela espera eterna, nos territórios ocupados a dor é a da opressão. Lá, os nativos já não são maioria. São apenas 120 mil entre 200 mil colonos marroquinos, incentivados ao

longo dos anos a migrar para o Saara Ocidental. Além das prisões, desaparecimentos e torturas, os saarauis também padecem com as péssimas condições de moradia e trabalho. Moram nos bairros mais pobres e não se beneficiam dos recursos naturais de seu território, especialmente o fosfato e a pesca. “Não há emprego para nós. Somente para os marroquinos, que trabalham na costa com o fosfato, que é nosso”, reclama Mohamed Tarrizi. Outro Mohamed, de sobrenome Embarer, é mais um exemplo da falta de trabalho. “Sou técnico de eletricidade, mas não consigo emprego e tampouco licença para abrir um negócio”, conta o rapaz, que já foi preso e torturado por três vezes. Sua família depende de uma aposentadoria da mãe e de

casa, desnudaram sua mãe e estupraram sua irmã na sua frente. Depois, levaram-no para a delegacia, onde o colocaram num pau de arara, queimaram seu ânus com cigarro e o estupraram. Acusado de ser mafioso e queimar a bandeira do Marrocos, foi condenado a 15 anos de detenção na Prisão Negra. “Dorme-se como uma sardinha. São 40 e tantas pessoas numa cela de 3 por 4 metros”, relata. Dois meses depois de ser preso, fez uma greve de fome de 52 dias com outros 60 prisioneiros políticos. As violações cometidas pelo Marrocos no território ocupado têm sido constantemente denunciadas por organizações de direitos humanos, entre elas, a Anistia Internacional e Human Rights Watch, que alertaram para os abusos da ação contra o “Acampamento da Dignidade”.

REPRESSÃO NA CIDADE

Depois que Gdeim Izik foi desmantelado, as forças marroquinas, ajudadas pelos colonos, passaram a perseguir os saarauis que haviam fugido de volta a El Aaiún, que àquela altura vivia outra “rebelião”. Os que tinham ficado, ao saber da repressão no acampamento, saíram às ruas para protestar. Mas a reação marroquina não demorou a chegar. Casas foram invadidas; homens, espancados; mulheres, estupradas. A polícia tinha uma lista de busca, onde constavam os nomes de Antonio e Isabel, procurados por documentar a ação com imagens e enviá-las FOTO: TATIANA MERLINO ao exterior. pequenos bicos. Os saarauis também sobrevivem Durante nove dias, os dois ficaram escondidos da ajuda em dinheiro enviada por familiares que em uma casa abandonada. “Depois do toque de revivem no exterior, principalmente na Espanha. colher, às 22h, todas as luzes da cidade se apagavam e só se escutava os caminhões militares patrulharem. Na noite do dia 11 para o dia 12 [de PRISÃO NEGRA novembro do ano passado], escutamos baterem na A monarquia sempre negou as acusações de porta da casa quase em frente. Tiraram um hoprática de detenções extrajudiciais, assassinatos e mem de dentro e começaram a torturá-lo em frendesaparecimentos. Segundo a Associação de Fate de sua casa. Escutávamos como sua respiração miliares de Presos e Desaparecidos Saarauis (Afase acelerava, como gritava e gemia. Depois de um predesa), desde o início da ocupação, 4.500 pessocerto tempo, sua respiração se acelerou tanto que as já passaram por desaparecimento forçado. percebemos que estava agonizando. De repente, Graças a entidades de direitos humanos, muideixou de se escutar. Em seguida, ao ouvirmos o tas delas foram encontradas, algumas há anos barulho de um carro, me levantei e vi, por uma sem contato com amigos e familiares. De acordo fresta, que abriam a porta traseira de uma ambucom Abdeslam Omar Lahsen, presidente da Afalância. A luz se acendeu e pude ver pelo menos 12 predesa, além dos centros secretos, há muitas pricadáveres envoltos em lençóis ou sacos brancos, sões marroquinas que, “até agora, nunca foram amontoados”, testemunha Antonio. visitadas por nenhum organismo internacional”. “Até hoje, ainda há os que não podem sair Uma delas é a Prisão Negra de El Aaiún, onde o de casa, pois estão feridos, com balas no corpo. defensor de direitos humanos Bohmud Mohamed E como os hospitais estão militarizados, se vão a Saleh ficou preso. Em 2005, logo após participar um deles, serão presos, torturados ou julgados”, da rebelião que ficou conhecida como a Intifacompleta. da Saaraui, policiais marroquinos invadiram sua

abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 7

caros amigos

7

06.04.11 16:17:34


UMA MULHER CONTRA A MONARQUIA MORADORA DO SAARA OCIDENTAL OCUPADO PELO MARROCOS, A ATIVISTA SULTANA JAYA É UMA DAS PEDRAS NO SAPATO DO REI.

Já é noite. Como no acampamento de refugiados Layounne não há luz elétrica, o pequeno trajeto a pé entre o carro e a entrada da casa torna-se mais longo do que realmente é. Caminhar pela areia do deserto do Saara sob apenas a luz da lua e cercados pelos vultos das tendas e das casas de adobe faz o coração acelerar, na expectativa do que está por vir. Ao entrar no pátio interno da residência, percebese que ali há uma festa. O cheiro e a fumaça de carne nos alcançam antes dos anfitriões, que nos recebem calorosamente, como é usual entre os saarauis. Depois dos segundos de saudações de praxe, surge, do meio da confusão, uma mulher de pele clara e óculos de grau. Logo se nota que é justamente quem procurávamos. Vestindo uma melfa azul, roupa típica das mulheres locais, Sultana Jaya nos cumprimenta sorrindo, sem cerimônias. “Vamos”, diz de forma decidida, fazendo um gesto com as mãos. Somos conduzidos a um cômodo, onde ela começa a contar sua história. Sultana é vaidosa: usa tamanco de salto, suas unhas estão feitas, está maquiada, e o pouco cabelo que se vislumbra debaixo da melfa está tingido de ruivo. É uma mulher bonita e, para os padrões ocidentais, um pouco acima do peso. Para quem não sabe o que aconteceu com a militante saaraui, o fato de seu olho direito ser de vidro passaria despercebido. Em árabe, já que, embora muitos saarauis falem a língua de seus primeiros colonizadores, os marroquinos não permitem que a aprendam, Sultana explica que, desde muito pequena, em Bojador, a cidade onde nasceu, em 1980, ela aprendeu o que era viver sob o domínio colonial. Por lutar pela autodeterminação de seu povo, foi detida inúmeras vezes. Após uma prisão ocorrida em 2005, decorrente de sua participação na “rebelião” conhecida como a Intifada Saaraui, a militante foi expulsa dos territórios ocupados. Acabou indo estudar francês em Marrakech, no próprio Marrocos. Cerca de dois anos depois, em 9 de maio de 2007, viveu o pior dia de sua vida. Sultana conta os detalhes freneticamente, deixando nosso tradutor em apuros. Ao mesmo tempo, o relato é tranquilo, sem variações de entonação, sem pausas dramáticas. É como se tivesse revelando um acontecimento trivial: parece não querer passar a imagem de sofredora, de vítima. Sob os olhares atentos dos interlocutores, ela explica que participava, juntamente com outros estudantes saarauis, de uma manifestação pacífica em solidariedade aos compatriotas prisioneiros e em comemoração do aniversário da Frente Polisario quando 700 policiais marroquinos chegaram soltando bombas de gás lacrimogêneo e agredindo os manifestantes. Em um determinado momento, agentes das forças de segurança a rodeiam e começam a dar pontapés em todo seu corpo e bater em sua cabeça com cassetetes. Um dos golpes acerta fortemente seu rosto, fazendo seu olho direito cair em suas próprias mãos. “Você arrancou meu olho!”, grita ela ao agressor. “Agora temos que tirar o

8

FOTO: IGOR OJEDA

Por Tatiana Merlino e Igor Ojeda

outro”, responde ele, virando-se para um colega. Apesar de seu estado grave, Sultana conta que, com mais duas mulheres, foi levada à delegacia. “No trajeto, levamos chutes e socos. Os policiais diziam: ‘vamos estuprá-las’, ‘vamos colocar fogo em seus corpos’”. Depois de ser interrogada e permanecer por várias horas no local, a militante, juntamente com as duas amigas, é colocada numa ambulância. No veículo, é agredida novamente. O grau de violência é tamanho que a faz cair da maca. No chão da ambulância, ela leva chutes e um dos policiais enfia dois de seus dedos no orifício do olho que acabara de perder. A dor é insuportável. Chegando ao hospital, ninguém a recebe. Lá, as torturas continuam por toda a noite. Na manhã seguinte, ainda sem receber assistência médica, um grupo entra e diz que vai costurar sua pálpebra sem anestesia. É nesse momento que chegam dois de seus amigos para tirá-la dali. As horas de horror finalmente acabam, mas a perseguição continua. Dias depois, ao comparecer em juízo, ouve que se quisesse a liberdade teria que afirmar que o que aconteceu a ela foi obra de saarauis, não da polícia marroquina. Após se negar a seguir a “recomendação” do juiz, Sultana é condenada a oito meses de prisão. Porém, graças à pressão de organismos de direitos humanos, cumpre cinco meses em liberdade assistida, período após o qual vai à Barcelona, com ajuda de uma organização sueca. Lá, é submetida a uma cirurgia para a colocação de uma prótese ocular. Sultana faz questão de mostrar que não se intimida diante das agressões e perseguições. No dia de seu retorno a El Aaiún, capital do Saara ocupado, em agosto de 2009, ela desceu do avião empunhando uma bandeira de seu país. Muitos saarauis a esperavam. A resposta veio rápida: na avenida que liga o aeroporto à cidade, o carro em que estava foi destruído pelos policiais, que enfiaram a bandeira em sua

garganta. No dia seguinte, a caminho de Bojador, teve os braços quebrados. Sultana mostra as marcas da fratura que ainda permanecem. Novamente, passa a impressão de que foi algo trivial. Para ela, tudo de ruim que acontece em sua vida “não é nada”. “Vamos dar nossa alma e nosso sangue pelo Saara Ocidental”, diz, com calma. “Queremos que as novas gerações vivam bem”. Segundo ela, nada irá fazer com que pare de lutar, nem os pedidos de sua mãe nem se “a polícia vier até mim, diariamente”. Após o desmantelamento do “Acampamento da Dignidade” de Gdeim Izik, Sultana foi à Espanha para consultas médicas e não voltou mais. Seu retorno estava marcado para 9 de março, alguns dias depois da conversa com a reportagem nos acampamentos de refugiados. “Acho que existe a possibilidade de acontecer de tudo: me prenderem, me matarem. Mas não tenho medo. Meu objetivo é aguentar, aconteça o que acontecer”, diz sorrindo. No dia previsto, Sultana voltou à terra natal com uma delegação que havia viajado ao território liberado para as comemorações do 35º aniversário da República Árabe Saaraui Democrática (Rasd). Foram recepcionados por um enorme aparato policial e violência contra muitos dos militantes. A conversa com a defensora de direitos humanos acontece em duas noites. Em ambas, ela transparece serenidade e determinação. Apesar de todo sofrimento, Sultana é alegre, sorridente e amável. Gosta de livros de política e, entre os líderes que admira, além do herói nacional saaraui Luali Mustafa Sayed, estão o sul-africano Nelson Mandela e o argentino Ernesto Che Guevara. “Gosto dos defensores dos direitos dos povos”. Questionada sobre a possibilidade de seguir carreira política, ela ri e diz que isso “está no sangue”. Já sobre a carreira universitária que lhe foi negada, não hesita: “o título que quero é meu território livre, independente. É pedir muito?”.

caros amigos abril 2011

-Encarte_Especial_169.indd 8

06.04.11 16:17:38


Gilberto Felisberto Vasconcellos

sem terra, sem poder

E sem política

Ensina o marxismo que partido político é um instrumento para tomar o poder e revolucionar as relações sociais e econômicas, embora a política não esteja adstrita ao parlamento. Se o poder do Estado não for tomado, não poderá haver transformação social, portanto a classe explorada precisa organizar-se em partido político para combater a classe dominante, que usa os aparelhos ideológicos para executar os seus interesses econômicos. Por partido político entende-se não o instrumento momentâneo e oportunista para conchavos eleitorais, nem tampouco a dramatização midiática de seus lideres. O problema é que a forma-partido de representação dos interesses de classe entrou em crise com a degenerescência stalinista da U.R.S.S, onde a burocracia dominou a classe operária, daí o colapso do socialismo e sua conversão em capitalismo gangster, tal qual existe hoje na Rússia. Paralelamente a isso, depois de 1945, a classe operária dos paises industriais do ocidente foi absorvida e cooptada pela ordem social do “capitalismo de consumo”, de modo que deixou de ser agente da

história. Assim, a noção de classe social sumiu junto com a decadência do partido. Ao binômio classe-partido sucedeu a emergência dos “novos movimentos sociais” em vários lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil com o MST. Este não se constitui como partido político, o que não quer dizer que não apóie um ou outro, por exemplo em 1989 deu força para o Lula do PT em detrimento do Brizola do PDT. Parece que o MST não almeja tomar o poder, embora esteja comprometido em transformar a sociedade com a reforma agrária, a fim de suprimir a miséria e eliminar o subdesenvolvimento causado pelo imperialismo. Mas eis a pergunta crucial: como isso será conseguido sem tomar o poder do Estado? O MST é um movimento político que não encara o poder como alvo a ser alcançado, nem como um instrumento de transformação da sociedade. E aí justamente é que está o problema da classe-partido-poder, pois sem essa articulação a questão da terra fica abstrata e pulverizada, inclusive na relação campo-cidade. Lembro que Leon Trotsky foi injustamente acusado de péssimo marxista por não acreditar em partido

de camponês como força política autônoma. Haverá diferença substancial entre o Sem Terra, o operário e o trabalhador urbano sem emprego? O roubo capitalista da terra é diferente do roubo capitalista do trabalhador assalariado? Mire o exemplo da Shell: o imperialismo está cobiçando a terra dos trópicos para produzir a energia vegetal do futuro, álcool combustível e óleos vegetais. O petróleo é a energia do pretérito, de modo que os trabalhadores rurais têm que ocupar o território. Ocupar com o quê? Produzindo simultaneamente álcool e comida em microdestilarias, ou seja, plantando comida e energia na terra. Atenção para diferença: o petróleo não é plantado, é extraído da terra. Nesta Caros Amigos, 1997, Bautista Vidal alertou contra o perigo de demonizar a cana de açúcar como planta latifundiária: “cada metro quadrado de terra, com água e sol, é uma pequena Shell, Stédile!” Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Fidel Castro

É hora de fazer alguma coisa Neste momento, a humanidade enfrenta problemas sérios e sem precedentes. O pior é que, em grande parte, as soluções dependerão dos países mais ricos e desenvolvidos, chegarão a uma situação que realmente não estão em condições de enfrentar, sem que se derrube o mundo que estiveram tentando moldar a favor de seus interesses egoístas, e que, inevitavelmente, leva ao desastre. Não estou falando de guerras, de cujos riscos e consequências já falaram pessoas sábias e brilhantes, incluídas muitas norte-americanas. Estou falando de uma crise dos alimentos, causada por fatos econômicos e mudanças climáticas que, aparentemente, já são irreversíveis, em consequência da ação do homem, mas que, de todas formas, a mente humana está no dever de enfrentar com urgência. Durante anos, que em realidade foi tempo perdido, se falou do assunto. Porém, o maior emissor de gases poluentes do mundo, Estados Unidos, se negava sistematicamente a levar em conta a opinião mundial. Deixando de lado o protocolo e outras bobagens habituais nos homens de Estado das sociedades de consumo, que após galgarem o poder costumam ficar atordoados

24

pela influência da mídia, a realidade é que não prestaram atenção ao assunto. Os problemas ganharam força, agora, de súbito, mediante fenômenos que se estão repetindo em todos os continentes: muito calor, incêndios de florestas, perdas de colheitas na Rússia, com numerosas vítimas; mudança climática na China, chuvas excessivas ou secas; perdas progressivas das reservas de água no Himalaia, que ameaça a Índia, China, Paquistão e outros países; chuvas excessivas na Austrália, que alagaram quase um milhão de quilômetros quadrados; ondas de frio insólitas e fora de época na Europa, com afetações consideráveis à agricultura; secas no Canadá; ondas inusuais de frio nesse país e nos Estados Unidos; chuvas sem precedentes na Colômbia, que afetaram milhões de hectares de culturas; precipitações jamais vistas na Venezuela; catástrofes por excessivas chuvas nas megacidades do Brasil e secas no sul. Praticamente, não existe região no mundo onde estes fatos não tenham ocorrido. As produções de trigo, soja, milho, arroz e outros cereais e leguminosas, que constituem a base alimentar do mundo — cuja população atinge hoje, segundo cálculos, quase 6,9 bilhões de habitantes, já se apro-

xima da cifra inédita de 7 bilhões, e onde mais de 1 bilhão sofre fome e desnutrição — estão sendo afetadas seriamente pelas mudanças climáticas, criando um problema grave no mundo. Quando as reservas não foram recuperadas totalmente, ou só em parte para alguns tópicos, uma grave ameaça está criando problemas e desestabilização em numerosos estados. Mais de 80 países, todos eles do Terceiro Mundo, com dificuldades reais, são ameaçados pela fome. O primeiro assunto a resolver pela comunidade mundial seria selecionar entre alimentos e biocombustíveis. O Brasil, um país em desenvolvimento, com certeza, deveria ser compensado. Se os milhões de toneladas de soja e milho que serão investidos em biocombustíveis fossem destinados à produção de alimentos, o aumento inusitado dos preços poderia parar, e os cientistas do mundo poderiam propôr fórmulas que, de alguma maneira, possam deter e inclusive, reverter a situação. Perdeu-se muito tempo. É hora de fazer alguma coisa. Fidel Castro Ruz é ex-presidente da República de Cuba.

caros amigos abril 2011

-Gilberto_Vasconcellos_169.indd 24

05.04.11 18:55:07


perfil Débora Prado ...

luiza

erundina

Uiraúna é um pequeno município no sertão semiárido paraibano. Distante quase 500 km da capital do Estado, João Pessoa, não chega a ter 15 mil habitantes hoje em dia. Para os moradores da grande metrópole brasileira, é difícil imaginar que de lá saiu a primeira prefeita declaradamente de esquerda eleita em São Paulo: Luiza Erundina de Sousa. Mulher, solteira, nordestina e socialista, não foram poucos os tabus enfrentados para ser eleita em 1988 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), realizando um mandato que marcou a história da cidade por sua ligação com os movimentos populares e pelos paradigmas de gestão democrática. Erundina nasceu mesmo antes da pequena cidade. No dia 30 de novembro de 1934 se tornou a sétima entre dez irmãos de uma família que vivia na periferia do povoado de Belém do Rio do Peixe, que somente mais tarde, em 1953, ganharia o status de cidade de Uiraúna. Trabalhou desde muito cedo, ajudando o pai, artesão de couro e trabalhador do campo, e a mãe, que vendia quitutes na feira local. Para ela, o período foi decisivo: - Com certeza, minha inclinação de ir para política nasceu deste começo, da origem de classes. As condições de vida, o sofrimento, não só da minha família, mas da maioria dos que viviam naquela comunidade me marcaram profundamente. Desde a juventude tomei consciência de uma realidade injusta que deveria ser mudada e tomei o caminho da ação coletiva. Tanto é que lutei contra padrões das mulheres da minha geração, que eram impelidas a casar muito cedo, ter filhos e ficar no âmbito doméstico, reproduzindo aquele modelo opressor. O instrumento escolhido por Erundina para superar as condições colocadas foi estudar. No povoado, estudou o quanto pode. Aos 14 anos, foi obrigada a se mudar para Patos, onde havia o ginásio - etapa escolar ainda inexistente em Belém do Rio do Peixe. Com apreço pela educação, se formou assistente social na Universidade Federal da Paraíba, em 1967. Naqueles tempos, o Brasil já sofria com a mão de ferro da Ditadura Militar. Erundina foi uma entre os milhares de brasileiros que foram perseguidos. O motivo: seu trabalho junto aos camponeses e setores progressistas da igreja na luta pela reforma agrária e, claro, a oposição ao golpe. - Tive que sair da Paraíba. Naquele tempo, quem trabalhasse com o povo, sobretudo em tor-

no da questão da terra, era considerado suspeito, subversivo e, portanto, perseguido. Com a opressão do regime, Erundina entrou mais uma vez para as estatísticas: se somou aos migrantes que rumam a São Paulo. Rompeu um novo tabu: fez mestrado na USP, se tornando a primeira mulher mestranda da Paraíba. Mas, não foi por seus louros acadêmicos que Erundina se tornou figura pública. Foi por sua ligação com os movimentos populares. Professora e assistente social, na metrópole ela dedicou sua atuação às favelas e cortiços. Aprovada num concurso para a Secretaria do Bem-Estar Social da prefeitura paulistana, ela passou a trabalhar com os movimentos de periferia que reivindicavam o direito a moradia: - Quando eu fui obrigada a vir para São Paulo, vim com a sensação de ter deixado a luta para trás. Só que chegando aqui me dei conta que os trabalhadores não eram exatamente os mesmos, mas também sofriam com a política agrária. Eram trabalhadores que viviam no campo e foram obrigados a migrar, fugindo das condições de vida que tinham lá, não só pela seca, mas pela falta de oportunidade de trabalho. A mão de obra excedente migrava para os grandes centros urbanos, como ainda hoje migra, mas naquela época numa intensidade maior. E, quando chegavam lá, acabavam indo para as favelas e cortiços, seguiam marginalizados e sem condições de sobrevivência, ocupando os espaços vazios da cidade. E de novo a questão da terra estava colocada, só que agora da terra urbana. Na década de 1970, Erundina começou também a desenvolver um trabalho sindical junto aos profissionais do serviço social. Por sua referência na categoria, foi convidada pelo próprio Lula para fundar o PT. No PT, em 1988, Erundina venceu Plínio Arruda Sampaio na prévia para escolha do candidato a prefeitura em São Paulo. Saiu candidata no mesmo ano. De virada, derrotou a oligarquia política, derrotando nomes como Paulo Maluf (PDS) e José Serra (PSDB). De herança, ganhou a dívida social e financeira deixada por seu antecessor, Jânio Quadros. O economista Odilon Guedes classifica o mandato de Erundina como bastante positivo: “ela encontrou uma situação muito difícil na prefeitura e, ao mesmo tempo, houve uma enorme má vontade da grande imprensa por ela ser mulher, nordestina e de esquerda. E apesar disso, ela parou as grandes obras que o Jânio tinha começado, convidou figuras competentes e honestas para serem secretários,

foto: André Luis Abrahão

Mulher, trabalhadora, nordestina, solteira e política de esquerda

como o Paulo Freire na educação, Amir Khair nas finanças, Ermínia Maricato na habitação e por aí vai. E o mais importante: ela sempre teve em minoria na Câmara e mesmo assim governou. Não fez as concessões que o PT posteriormente veio a fazer, não aderiu às alianças, à política da governabilidade, e fez um bom mandato”. Para ela, a prefeitura foi um grande desafio, mas com um legado importante: - Sofri muito preconceito, discriminação, perseguição, ameaças de atentados com bombas, boicote de fornecedores da Prefeitura, perseguição do Tribunal de Contas. Mas, conquistamos a independência, governei quatro anos com minoria na Câmara, numa conjuntura de inflação de cerca de 80%, desemprego em massa, arrocho salarial, e uma dívida deixada pela administração anterior. Foi realmente um enorme desafio. Mas, conseguimos fazer uma boa administração, marcada pela competência da equipe, por uma linha de atuação que priorizava o social e por um modelo de gestão mais democrático, transparente e participativo. Apesar da forte referência no PT, Erundina foi uma das primeiras figuras de esquerda a deixar o partido, muito antes de se pensar em ‘crise do mensalão’. No processo de impeachment de Fernando Collor, ela decidiu compor o governo de transição de Itamar Franco e, por isso, foi desligada do PT numa saída traumática. Atualmente, no seu quarto mandato como Deputada Federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Erundina enfrenta contradições, mas segue acreditando na luta: - O sistema político - partidário e eleitoral - está esgotado, os mandatos enfrentam dificuldades por isso. Desde que chegamos ao Congresso, buscamos lutar pela reforma política, mas não só por mudanças pontuais, e sim uma transformação que revolucione o sistema no sentido de torná-lo mais transparente, ético, democrático, com o fortalecimento dos partidos, a exigência que eles tenham projeto político e identidade programática bem demarcados, que não sejam meras legendas para disputar eleições. Débora Prado é jornalista. debora.prado@carosamigos.com.br

abril 2011

-Perfil_Erundina_169_opcao2.indd 25

caros amigos

25

05.04.11 19:10:21


entrevista noam chomsky

foto: jesus carlos

“O Ocidente fará de tudo para impedir o surgimento de democracias no mundo árabe”

Por Tatiana Merlino O ataque das potências ocidentais à Líbia de Muammar Kadafi está sendo justificado como uma intervenção humanitária. Afinal, os civis estavam em perigo. Porém, o real motivo da intervenção militar da coalizão formada por Estados Unidos, França, Canadá, Itália e Reino Unido não tem nada de boas intenções, acredita o estadunidense Noam Chomsky, um dos mais importantes intelectuais da atualidade. “Não é uma intervenção humanitária. Tudo naquela região tem a ver com petróleo”, afirma, em entrevista exclusiva a Caros Amigos, concedida por telefone. Chomsky lembra que até poucos dias atrás o ditador era apoiado pelos Estados Unidos e Inglaterra. Kadafi “não é progressista, é um assassino. Mas não é esse o motivo pelo qual se opõem a ele. Há assassinos por toda parte e eles não têm problema com isso, contanto que sigam ordens.

26

Como ele não é confiável, ficariam felizes em se livrar dele.”, analisa. A postura do ocidente, porém, não é novidade, explica o professor de Linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “Caso após caso, se há um ditador em apuros, o plano é apoiá-lo até o fim, até que fique impossível sustentá-lo e, em seguida, mudar o discurso e passar a dizer ‘sim, somos contra as ditaduras, adoramos a democracia, sempre lutamos pela liberdade’”. Segundo ele, é o que acontece também no Egito e na Tunísia. O intelectual afirma que o levante no mundo árabe é o mais significativo de que se lembra, embora acredite que “por enquanto, não deveríamos chamá-lo de revolução”. Na opinião de Chomsky, um dos aspectos mais interessantes das revoltas é sua ligação com as recentes manifestações ocorri-

das nos Estados Unidos, no estado de Wisconsin, onde milhares de funcionários públicos saíram às ruas para protestar contra projeto de lei que, segundo eles, retira direitos trabalhistas. “Um dos acontecimentos mais impressionantes das últimas semanas foi quando, no final de fevereiro, Kamal Abbas, um dos principais líderes trabalhistas do Egito, mandou uma mensagem de apoio aos trabalhadores do estado de Wisconsin”. Confira a entrevista a seguir. Caros Amigos - Qual a sua opinião sobre a intervenção militar na Líbia? Por que os Estados Unidos a atacaram? O que está por trás disso? Noam Chomsky - Bom, o que está por trás disso é sem dúvida simples. Se você analisar a reação ocidental, incluindo a reação dos Estados Unidos, as várias manifestações, irá perceber que

caros amigos abril 2011

-Chonsky_169.indd 26

05.04.11 18:46:13


vesse armas nucleares. Por toda a região, a imaa questão se deveriam ou não ter feito isso, conseguem um padrão bastante previsível: se o país gem é mais ou menos semelhante. Só isso já bastudo devemos analisar com os olhos bem aberpossui grandes reservas de petróleo e o ditador é ta para entendermos que o Ocidente fará de tudo tos. Não é uma intervenção humanitária. Tudo leal ao Ocidente, então pode agir mais livremenpara impedir o surgimento de uma democracia. naquela região tem a ver com petróleo. No caso te. Assim, na Arábia Saudita e no Kuwait houve do Egito, que não possui muito petróleo, mas uma grande demonstração da força militar, tão O senhor poderia fazer uma comparação é o país mais importante da região, os Estados intensa, que as manifestações mal puderam coentreoataqueaoIraque,quandoosEstadosUnidos Unidos seguiram o plano usual. Caso após caso, meçar – não que realmente devessem ter comeestavam mais isolados e o da Líbia? Qual a difecomo Somoza, Duvalier, Suharto [ex-ditadores çado. Não há problemas quanto a isso, pois os dirença entre os dois ataques? Você acredita que os da Nicarágua, Haiti e Indonésia, respectivamentadores possuem a maior parte do petróleo e são Estados Unidos foram mais competentes desta te] e muitos outros. Se há um ditador em apuros, leais, então essa reação é previsível. Em relação vez, ao conseguirem mais apoio? o plano é apoiá-lo até o fim, até que fique imposao Bahrein, o que preocupa, principalmente, é a Não, na verdade, acredito que são bem difesível sustentá-lo e, em seguida, mudar o discurso Arábia Saudita. Teme-se um levante xiita – que rentes. Primeiramente, os Estados Unidos atacae passar a dizer “sim, sosão maioria da popularam o Iraque juntamente com a Inglaterra. Os mos contra as ditaduras, ção – que se estenda ao “A Arábia Saudita tem uma Estados Unidos e a Inglaterra são as duas maioadoramos a democracia, leste da Arábia Saudita ditadura bastante rigorosa e brutal. sempre lutamos pela li- res forças militares imperialistas e se juntaram e ao Bahrein, que também tem maioria xiita Lá está a maior concentração de berdade”. No final das para atacar o Iraque. E, nesse caso, eles queriam conquistar o país, instaurar um “governo fantocontas, o ditador é ene possui a maior parte petróleo e é um governo leal che”, implantar bases militares americanas/ociviado para longe e tendo petróleo. Portanto, aos Estados Unidos.” dentais permanentes e obter o controle do sista-se restabelecer a sinada pode acontecer tema energético. A verdade só foi dita no final, tuação original. Isso já lá. Quando houve uma quando estavam sendo derrotados, aí sim foaconteceu muitas e muitas vezes e é exatamente tentativa de protesto na Arábia Saudita, a maniram diretos sobre os objetivos no Iraque. O que o mesmo caso no Egito. festação foi combatida vigorosamente e, os Esestá acontecendo agora é bastante diferente. Eles É difícil prever como as coisas irão se desentados Unidos disseram “tudo bem, sem problenão estão planejando – ou pelo menos não agorolar no Egito, depende da energia e dedicação mas”. ra – mandar tropas, eles provavelmente nem têm dos manifestantes. Com os militares ainda no poEm se tratando da Líbia é um pouco diferente. como fazer isso. Eles não disseram quais são os der, há nomes diferentes, mas o regime é o mesHá abundância de petróleo e o Ocidente apoiou objetivos e é possível que nem saibam exatamo. Houve, porém, uma melhora significante: fortemente o ditador. Apoiou há até poucos dias, mente, mas parece que o objetivo, a curto prazo, agora a imprensa é livre, o que representa uma na verdade. Porém, como não é confiável, ficaé tentar apoiar os rebeldes com eficiência para que grande mudança. Na verdade, grande parte desriam felizes em se livrar dele. Na verdade, o Ocieles derrubem o governo. E, assim, algum novo ses protestos foram protestos trabalhistas, o que dente tem apoiado abertamente os rebeldes. A sistema irá surgir, sabe-se lá o que será, mas que vêm de anos. O movimento que organizou o prointervenção, por exemplo, não é para deter o seja mais suscetível e obediente ao Ocidente. É imtesto na Praça Tahir é formado por jovens expeconflito, é para dar apoio aos rebeldes. E eles são possível controlar a dinâmica dessas coisas. Uma rientes. Eles se autodenominam Movimento 6 de bastante diretos em relação a isso. Para exemplivez que o bombardeamento começa, não se sabe Abril, nome que remete ao dia 6 de abril de 2008, ficar, o Ocidente ordenou um cessar-fogo às foro que pode acontecer. Em geral, esse é o caso. quando grandes ações trabalhistas – e de solidaças do governo, porém não às forças rebeldes. Se riedade – ocorreram no maior complexo indusas forças do governo violarem essa resolução, a O ataque à Líbia revela algo novo sobre a trial do Egito e foram reprimidas pela ditadura. notícia chegará às primeiras páginas dos jornais. política externa do Obama? Bom, não prestamos atenção a esse fato no ociNo entanto, as forças rebeldes podem fazê-lo – e Na verdade, não. Como disse anteriormendente, mas eles prestaram atenção lá. Como resulfarão – e não haverá problema, pois essa interte, ele está seguindo o mesmo plano que semtado do Movimento 6 de Abril, é provável que o venção está do lado dos rebeldes. Pode-se argupre é seguido. Pegue Honduras como exemplo, movimento operário ganhe alguns direitos. mentar que isso é uma coisa boa ou ruim, mas dois anos atrás. Até há relatos de trabalhadores assumindo o devemos ver isso com clareza. É, também, digno controle de fábricas, mas não posso comprovar de nota, o pouco apoio regional que a Líbia teve. Há alguma diferença entre a política exterisso. Algumas mudanças serão feitas no sisteEm relação à implantação da zona de exclusão na do Obama e do Bush? ma político, mas até onde chegarão, depende da aérea, o Egito poderia ter feito, a Turquia poderia Não, são semelhantes. O golpe militar de Honforça da oposição. Os militares não desistirão do ter feito. Eles possuem forças militares de grande duras aconteceu sob o governo Obama e a princípoder facilmente. O Ocidente não pode permitir poder, porém não farão nenhum esforço. O Egipio houve um discurso a democracia na região to diz “não é da nossa conta” e a Turquia já deisobre democracia, popor razões bastante simxou claro que não quer se envolver e nem mesmo “Kadafi não é progressista, rém, em seguida, os Esples que não são relataquer que a Otan se envolva [No entanto, um dia é um assassino. Mas não é esse tados Unidos voltaram das. Tudo que você predepois da realização desta entrevista a Turquia o motivo pelo qual se opõem a ele”. atrás e apoiaram o golcisa fazer é dar uma aceitou comandar as operações da Otan na Lípe militar – na verdaolhada nos estudos sobia]. O Ocidente fez um apelo pela autorização da de, se recusaram a chamá-lo de golpe militar. bre a opinião pública árabe. Há estudos muito Liga Árabe, mas foi pouco eficiente. O secretárioOs Estados Unidos foram um dos poucos países bons de renomados órgãos de pesquisa ocidengeral da Liga Árabe, Amr Moussa, já se afastou, que apoiaram a eleição realizada sob o governo tais, divulgados por instituições respeitadas, que portanto, basicamente, não há nenhum apoio redo golpe. A maioria dos países latino-americanão são relatados. No entanto, podemos ter cergional. Claro que o sul da África e a União Afrinos e europeus recusou-se. Porém, os EUA o fiteza que os planejadores sabem dessas pesquisas. cana estão presentes... Na verdade é muito difízeram e isso é normal. Eles apoiarão ditaduras, O que elas mostram é que se a opinião pública cil conseguir informações, pois ninguém relata o se puderem, e Honduras é importante para os Esfosse influente na política, o Ocidente estaria toque acontece no terceiro mundo, porém parece tados Unidos. É a última grande base militar estalmente fora de lá. No Egito, por exemplo, 90% que a União Africana tem intenções de organizar tadunidense. Os EUA foram expulsos de todas as das pessoas acreditam que a maior ameaça são os um acordo diplomático. Não sei se eles terão subases na América do Sul, até tiveram problemas Estados Unidos. 10% acreditam ser o Irã e 80% cesso, mas independente do resultado, o Ocidenna Colômbia. acreditam que a região estaria melhor se o Irã tite não quer prestar atenção nisso. Fica em aberto www.carosamigos.com.br

-Chonsky_169.indd 27

abril 2011

caros amigos

27

05.04.11 18:46:13


Sobre Kadafi, ele é ou foi, em um passado recente, um líder progressista? Não, ele não é progressista, é um assassino. Mas não é esse o motivo pelo qual se opõem a ele. Há assassinos por toda parte e eles não têm problema com isso, contanto que sigam ordens. Ele é imprevisível. Vale a pena lembrar que os Estados Unidos e a Inglaterra o apoiaram fortemente até poucos dias atrás. Vou dizer uma coisa que talvez não tenha sido relatada aqui, foi relatada nos Estados Unidos. Há poucos dias, houve uma reunião do Tribunal Internacional de Justiça em Haia, na Holanda, sobre Serra Leoa. Charles Taylor, que foi ditador da Libéria, está sendo acusado de cometer atrocidades em Serra Leoa. E a acusação declarou ter provas de que Kadafi também é, em parte, responsável por essas atrocidades. A Inglaterra e os Estados Unidos intervieram para impedir que isso acontecesse. Não queriam que Kadafi fosse acusado. E quando o promotor, um professor de Direito estadunidense, lhe perguntou o porquê, ele simplesmente disse: “bemvindo ao mundo do petróleo”. Ponto. Isso aconteceu há apenas alguns dias. Qual sua opinião sobre as revoltas do mundo árabe? Em entrevistas recentes, o senhor disse que esse é o levante regional mais significativo de que se lembra. Por quê? Bom, porque é verdade.. (risos) Eu nunca vi nada igual a isso. O que aconteceu na América Latina nos últimos, digamos, 10 ou 15 anos é semelhante. Mas esse levante está acontecendo em poucas semanas. Não consigo pensar em nada a que se compare, de verdade. E o que podemos esperar dos novos governos árabes? O senhor acredita que eles consolidarão a revolução ou serão contidos? Por enquanto, não deveríamos chamar isso de revolução. Quero dizer, por enquanto, as exigências são bastante limitadas. Exige-se que haja uma reforma política que permita alguma forma de democracia, sem ditadores, com eleições mais ou menos razoáveis. E, na verdade, as eleições estão sendo organizadas para que os partidos tradicionais ganhem, principalmente no Egito. Os militares continuam no poder e planejaram eleições rapidamente, o que foi confirmado no referendo ocorrido no sábado no dia 19 de março, os egípcios aprovaram alterações na constituição do país; a partir de junho ocorrerão eleições parlamentares e presidenciais]. A maioria dos analistas acredita que os únicos partidos que poderão participar são o velho partido de Mubarak – que ainda está por lá – e a Irmandade Muçulmana. Dessa forma, nenhum outro partido teria tempo de se organizar para participar das eleições. Provavelmente acontecerá algo assim. Já o movimento trabalhista tem exigências muito maiores, quer direitos trabalhistas. Até o momento não há uma mudança de governo. E por governo, digo o controle sobre todo o sistema socioeconômico. Foi desafiado, mas não sabemos o que acontecerá, depende de até que

28

americanos são bastante significativas. Para começar, são bastante expressivas em tamanho; havia 70 mil pessoas nas ruas participando de um protesto de grande escala. Eles ocuparam a capital do estado por um longo período e estão tratando o problema com seriedade. O que estão tentando fazer é proteger os direitos trabalhistas essenciais E qual a importância das redes sociais para que o governo – fortemente patrocinado pelo poos protestos? der corporativo – está tentando suprimir, como a Elas certamente foram eficientes. São um meio negociação coletiva, o que em essência significa de comunicação usado com eficácia para organieliminar os sindicatos. Os sindicatos do setor prizar os protestos, as manifestações. É evidente que vado nos Estados Unidos foram praticamente deshavia muita coisa acontecendo antes, mas elas truídos pelo poder corporativo no governo. Atuclaramente estimularam o processo. almente, a sindicalização no setor privado está abaixo de 7%. E não é por acaso ou porque os O senhor afirma que a Arábia Saudita é um trabalhadores não querem sindicatos, eles quebom exemplo da contradição da política exterrem, mas há tantas barreiras para criá-los que fica na ocidental. Poderia explicar melhor? quase impossível. E o Obama também contribuiu Na verdade, não vejo como uma contradipara isso. Contudo, os sindicatos do setor público ção. A política é tentar manter o controle sobre conseguiram sobreviver e hoje estão sob ataque os principais recursos e as vantagens da região, da maioria dos reessa é a política. A taxa No que se refere “O discurso de Bush era extremamente publicanos. de desemprego é à Arábia Saudita, que tem uma di- arrogante e isso irritava as pessoas. Obama a mesma da décasegue basicamente as mesmas políticas, da de 1930. Isso é tadura bastante rimas tem uma personalidade atraente”. muito sério. O que gorosa e brutal, é eles estão tentanlá que está a maior do fazer é transferir a responsabilidade pela crise concentração de petróleo e é um governo leal aos dos verdadeiros culpados, como o Goldman SaEstados Unidos. Portanto, é mantida a qualquer chs, para os professores, bombeiros, suas aposencusto. É a vitória suprema, a cereja do bolo. Destadorias, e assim por diante. E o que está aconse modo, permite-se que a Arábia Saudita faça tecendo em Wisconsin é uma tentativa de fazer basicamente o que bem entender. Sem protestos, isso. Por enquanto, eles tiveram sucesso, quer diquer dizer, protestos moderados, reprimendas lezer, parcialmente. Não foram bem-sucedidos em ves, que não significam nada. relação ao público, que é fortemente contra, mas Para exemplificar, houve uma tentativa de orenfrentaram a legislação. Vale a pena lembrar que ganizar um protesto, chamado de “Dia de Fúria”. os Estados Unidos são uma exceção em relação à Porém, a presença policial foi tão extrema que os incapacidade de defender os direitos trabalhistas manifestantes nem puderam começar; acho que fundamentais. Se você se voltar para a Organizaninguém nem apareceu em Riad. O mesmo no ção Internacional do Trabalho, verá que ela estaKuwait, que é menor, mas semelhante à Arábia belece princípios, sendo o primeiro deles o direito Saudita. Fazem o que querem e recebem o apoio dos trabalhadores à livre associação. Os Estados Ocidental. Mas não é uma contradição. Unidos nunca o ratificaram. Na verdade, é um dos poucos países que não o ratificaram. Se não Quais serão as consequências das mudanças me engano, isso acontece há 60 anos. Na verdado mundo árabe para os Estados Unidos? de, nunca nem foi aberto à discussão. O país é Um dos aspectos interessantes dessas manifesbasicamente uma sociedade gerida como um netações é que estão ligadas a importantes manifesgócio e o ataque aos sindicatos trabalhistas tem tações nos Estados Unidos. Um dos acontecimensido feroz por uma razão significativa. Não é só tos mais impressionantes das últimas semanas foi porque os sindicatos protegem os direitos trabaquando, no final de fevereiro, Kamal Abbas, um lhistas, eles o fazem, mas também fazem muito dos principais líderes trabalhistas do Egito, manmais que isso. Eles são a única barreira organidou uma mensagem aos trabalhadores do estado zada frente às determinações das grandes corpode Wisconsin [que protestam desde o começo de rações. Se o movimento trabalhista organizado é fevereiro contra intenção do governador do esdestruído, os indivíduos, separadamente, dificiltado de aprovar uma lei que proíbe negociações mente conseguirão erguer-se frente à tomada de coletivas para funcionários públicos, aumenta os poder político e a concentração da riqueza nas descontos sobre salários para custeio de plano de mãos de poucos. saúde e aposentadoria e possibilita que o governo Todos sabem que há grande desigualdade nos demita grevistas]. Era uma mensagem em nome Estados Unidos, mas não é comumente compredos trabalhadores do Egito que dizia “vocês nos endido que a desigualdade surgiu essencialmente apoiaram em nossa luta, nós os apoiamos na sua da riqueza estratosférica da fração de 1% da poluta”. Uma mensagem de solidariedade internapulação, que abarca diretores executivos, gerencional, dos trabalhadores do Egito aos trabalhates, presidentes, entre outros. E com a concentradores dos Estados Unidos. E isso é importante. As ção de poder econômico vem a concentração de manifestações em Wisconsin e em outros estados ponto os manifestantes estão dispostos a sustentar uma briga longa e árdua. Essas coisas não acontecem facilmente. Pegue o Brasil como exemplo. Foram anos até que algo parecido com uma eleição democrática acontecesse.

caros amigos abril 2011

-Chonsky_169.indd 28

05.04.11 18:46:13


Voltando às revoltas do mundo árabe, mesmo se não pudermos chamar de revolução, o que podemos esperar? Qual o novo cenário do mundo árabe? Qual sua expectativa? Bom, no mínimo, haverá uma base colocada para futuras batalhas que irão mais longe, resultarão na mudança do regime socioeconômico, o regime de controle, dominação e assim por diante. Devemos olhar para essas coisas com cuidado. Pegue a África do Sul como exemplo. A queda do apartheid foi uma vitória importante, mas não mudou o regime socioeconômico. A maior parte da população negra da África do Sul está tão mal quanto antes ou pior. Como o senhor vê a recuperação econômica dos Estados Unidos? É uma recuperação real? Para a população em geral não há nenhuma recuperação. O que quero dizer é que a recuperação é para uma parcela muito pequena da sociedade. Para ilustrar, bem no meio da crise em Wisconsin, que está tentando acabar com os direitos remanescentes dos trabalhadores, bem no meio daquilo, o Goldman Sachs, que é um dos principais culpados pela crise econômica, anunciou – discretamente – a distribuição de 17.5 bilhões de dólares em compensações a seus executivos. O diretor executivo recebeu 12.5 milhões de dólares e seu salário base triplicou. Eles estão saindo dessa ainda mais ricos e poderosos, e graças ao dinheiro do contribuinte. O senhor poderia comentar a decisão da Corte Suprema dos EUA, de fevereiro de 2010, que permite que as corporações financiem os candidatos nas eleições nacionais? Qual sua opinião a respeito? O senhor escreveu um artigo dizendo que a data da decisão seria marcada como um dia sombrio na história da democracia estadunidense e de seu declínio. Por quê? A decisão do Supremo permite, em essência, que as corporações comprem as eleições abertamente. Eles fazem isso de qualquer maneira. A vitória do Obama nas eleições de 2008, por exemplo. A principal fonte de seu apoio veio de instituições financeiras. Elas gostavam mais dele do que do McCain, então colocaram rios de dinheiro na sua campanha e isso foi suficiente para levá-lo à vitória. Como você deve saber, pouco depois disso, a indústria da publicidade dos Estados Unidos – que é, evidentemente, enorme – concedeu a Obama um prêmio pela melhor campanha de marketing de 2008. Os candidatos têm sido comercializados como pasta de dente desde [Ronald] Reagan e esse foi o maior sucesso. Bom, a decisão torna possível que sucessos ainda maiores aconteçam, pois agora eles não precisam nem mais esconder a compra das eleições. Já foi previsto que a próxima eleição movimentará cerca de 2 bilhões de dólares, em towww.carosamigos.com.br

-Chonsky_169.indd 29

dos os níveis, do Congresso à Presidência. Quando há números como esses em jogo, os partidos são obrigados a mergulhar nos bolsos do setor corporativo. Para os republicanos é só um reflexo, e os democratas não estão muito longe disso. Os democratas de hoje são o que antigamente chamávamos de republicanos modernos. O setor todo se deslocou, principalmente para a direita. Em parte, por causa do círculo vicioso que mencionei. Isso significa que para concorrer em uma eleição é preciso ter grandes somas de dinheiro e mais de uma fonte dele. Isso acontece na política em vários lugares. Há grande preocupação, por exemplo, em relação ao déficit dos Estados Unidos. Se essa preocupação se justifica ou não, é outra questão, mas suponha que decidimos nos preocupar com isso. Qual a origem do déficit? Cerca de metade dele são despesas militares, que estão completamente fora de controle e praticamente se igualam à soma das despesas do resto do mundo. A outra metade vem do sistema de saúde, que nos Estados Unidos é completamente disfuncional, duas vezes mais dispendioso per capita do que os de outros países industrializados e gera resultados inferiores aos de outros países industrializados. Isso porque é privatizado e não é regulamentado. Se os Estados Unidos tivessem o sistema de saúde similar aos de outros países industrializados, acredito que não haveria um déficit, e sim um superávit. Mas isso é inalcançável. As instituições financeiras essencialmente governam o país, e são elas que colocaram Obama no poder e agora querem a recompensa. É por esse motivo que o Goldman Sachs está distribuindo bônus exorbitantes enquanto 20% da população está se cadastrando para receber auxílio alimentação. E é um país riquíssimo, é inacreditável. O presidente Obama esteve no Brasil recentemente. Qual o objetivo da sua visita, quais os principais interesses dos Estados Unidos no Brasil? O Brasil finalmente ergueu-se como um poder econômico. Há um século, foi previsto – amplamente previsto – que o Brasil se tornaria o que é chamado de “Colosso do Sul” para equilibrar o “Colosso do Norte”, ou seja, os Estados Unidos. Possui recursos valiosos, muitas vantagens, não possui inimigos internacionais, e assim por diante. A expectativa era que crescesse rapidamente. Isso não aconteceu por diversos motivos que não precisamos citar, porém, nos últimos 10 anos, ele decolou e é hoje um país poderoso que desempenha um papel importante nas questões mundiais. Possui vários problemas internos que não preciso citar, você sabe melhor do que eu. Ainda assim, tem um papel expressivo e é o país mais respeitado do sul. Os Estados Unidos, portanto, querem manter boas relações com o Brasil. É bastante surpreendente ver as mudanças que ocorreram. Os programas do Lula não são radicalmente diferentes dos programas de João Goulart no início da década de 1960. Bem, quando Goulart tomou posse, a adminis-

tração do [John F.] Kennedy organizou um golpe militar para estabelecer terror e tortura por meio de um Estado de Segurança Nacional. Quando o Lula tomou posse, não foi possível fazer o mesmo. Eles tiveram que apoiá-lo, pois o continente mudou drasticamente. Obama, evidentemente, quer restabelecer as relações tanto quanto possível, pois percebeu que a América do Sul é hoje muito mais independente do que era no passado. Porém, claro que ele não quer que se torne independente demais. Quando estavam derrubando o governo de [Salvador] Allende, no Chile, a preocupação era – colocada desta maneira – “se não pudermos controlar a América Latina, como poderemos controlar o mundo?”. Bem, eles não podem mais controlar a América Latina e isso é um grande problema. Por esse motivo, houve três golpes militares na última década – ou tentativas, pelo menos. O primeiro aconteceu na Venezuela, em 2002. O segundo no Haiti, em 2004, quando os Estados Unidos e a França intervieram no sequestro do presidente e o enviaram para a África Central. Eles se esforçaram para impedir sua volta, mas não foram bem-sucedidos [o ex-presidente do Haiti, Jean Bertrand Aristide voltou ao país em 18 de março]. Seu partido político foi banido das eleições, pela simples razão que todas as eleições que participam, eles vencem. E o terceiro foi em Honduras. E esse foi bem-sucedido.

foto: sérgio castro/ae

poder político. Isso permite que eles coloquem em vigor leis que aumentem seu poder. É como um círculo vicioso e uma das suas principais barreiras é a organização dos trabalhadores. É óbvio, portanto, que estejam tentando destruí-la.

Há alguma mudança na estratégia da política externa do Obama para a América Latina em comparação à do Bush? Não muita, quer dizer, eu não vejo nenhuma mudança. Há diferenças na retórica. O discurso de Bush era extremamente arrogante e isso irritava as pessoas. Obama segue basicamente as mesmas políticas, mas tem uma personalidade atraente, menos agressiva, o que faz com que os líderes gostem dele. Tatiana Merlino é jornalista. tatianamerlino@carosamigos.com.br

abril 2011

caros amigos

29

05.04.11 18:46:14


ANIVERSÁRIO

Caros Amigos completa mais um ano de resistência A revista Caros Amigos completa em abril 14 anos de jornalismo. Apesar de todas as dificuldades que tem enfrentado, principalmente de ordem financeira, já que, por sua linha editorial, não conta com a simpatia publicitária dos grandes anunciantes privados, a revista resiste bravamente – e tem conseguido manter um conteúdo

trevistas, artigos e análises. Por isso costumamos dizer que Caros Amigos é uma publicação muito além das revistas de mercado. No nosso aniversário, quem fala sobre a revista são os leitores, assinantes, amigos, cúmplices e companheiros. Vejam os depoimentos.

Felipe Cecilio ...

José Manuel Almeida Braz ...

Tom Zé ...

Músico

Professor da rede pública estadual de São Paulo

Músico

Eu assino a Caros Amigos, porque ela trata de temas com os quais eu me identifico, me preocupo, e que não recebem o devido espaço em outras publicações. Outra coisa que me atrai na Caros Amigos são seus colunistas, mesmo que eu divirja de alguns deles. Lendo-os consigo ordenar minhas próprias ideias. As entrevistas de capa quase sempre trazem um convidado com algo a dizer e, mais importante, lhe dão a oportunidade de fazêlo. Também gosto muito das grandes reportagens que a Caros produz. A profundidade com que vocês tratam o material apurado é um exemplo para

Eu assino a Caros Amigos pela identificação com os conteúdos sociais explorados pela revista e a forma como são esclarecidos, com fundamentação sociológica e não sensacionalista. Jornalistas e colunistas escrevem sem interferência ou interesses de uma elite podre e governos medíocres. A revista é esclarecedora e transparente para a sociedade brasileira, pois aponta os principais problemas de uma sociedade tão desigual e acéfala, por lideranças em vários setores. Não dar o mesmo espaço a uma revista como Caros nas escolas públicas é demonstrar como os feudos da informação imperam neste país.

A Caros Amigos é importante pela exigência que faz ao Brasil. Propõe soluções, não considera nossas questões insolúveis. Parte pra cima. Assino a revista por garantia, para não perder nenhum texto. Como viajo um bocado, assinando não corro o risco de ter se esgotado em bancas. E assino também por cumplicidade: uma publicação de tal independência precisa prioritariamente de nós, assinantes. O que me bate na memória e que de vez em quando comento é a entrevista de Miguel Nicolélis. É um cientista do qual não podemos prescindir: brilhante, direito, dono de um espírito público alerta.

Inês Mulin ...

Guilherme Zocchio ...

Denise Giancoli Cardoso Pita ...

Técnica Cinematográfica

Estudante de jornalismo da PUC-SP

Geógrafa

A Caros dá acesso a informações aprofundadas e matérias que a grande imprensa aborda superficialmente. As matérias são sempre comprometidas com a verdade e não tendenciosas ideologicamente, dando ao leitor a possibilidade de reflexão e formação de sua própria opinião. É difícil apontar a matéria que mais gostei na revista nesse tempo em que assino, mas leio especificamente os conteúdos relacionados à política e à mídia em geral.

30

jornalístico da melhor qualidade. Caros Amigos foi “a primeira à esquerda”, num momento em que toda a mídia brasileira havia aderido ao pensamento único do neoliberalismo. E continua sendo uma publicação de referência crítica, combativa, empenhada em levar aos leitores e à sociedade brasileira boas reportagens, en-

Eu assino a Caros Amigos porque sei que ela tem o que nenhuma outra revista na banca de jornal tem, não só pelo conteúdo político, mas pelo tratamento que é dado às matérias. A revista tem uma sensibilidade para tratar de temas sérios, e esse é um modo muito bonito de fazer jornalismo. A Caros abre espaço para o debate de ideias e o confronto de projetos políticos, e é uma das poucas revistas que dá uma alternativa clara ao que pode ser o Brasil e ao que está acontecendo no país e no mundo.

Comecei a assinar a revista quando fiz pós graduação na área do ensino de Geografia, e percebi que as matérias contidas e a linguagem da revista possibilitavam trabalhar alguns temas com os alunos de forma diferenciada. Atualmente, trabalho em uma clínica odontológica como administradora, e percebo a necessidade de satisfazer alguns pacientes que não têm interesse no tipo de informação disponível nas publicações tradicionalmente oferecidas nos consultórios. Já recebi, inclusive, elogios por ter a Caros Amigos na recepção.

caros amigos abril 2011

-14anos_169_OK.indd 30

05.04.11 18:41:50


Rafael Nardini ...

Tiago Gomes ...

Gilmar Mauro ...

Jornalista

Estudante de Comunicação Social na Faculdade Campo Limpo Paulista.

Integrante da Coordenação Nacional do MST

Eu assino a Caros Amigos exclusivamente pela qualidade. A entrevista principal quase sempre traz um personagem interessante e com o qual invariavelmente ninguém falaria a não ser a própria Caros Amigos. Com vocês, o entrevistado tem espaço para estabelecer um debate e dialogar com o leitor. As edições da Caros Amigos que mais gostei foram os especiais sobre Pós-humano e PCC. A primeira por ter conseguido esmiuçar um tema complexo sem paranóias, e a segunda serve de base para um debate mais amplo, longe do simplismo bobo do “bem contra o mal”.

Ivan Valente ...

Leonardo Mendes de Campos ...

Deputado Federal pelo Psol/SP

Estudante de Gestão de Políticas Públicas da USP

A Caros Amigos é um dos poucos veículos impressos de esquerda que, compromissado com as lutas populares e não vinculado a partidos políticos ou organizações específicas, conseguiu sobreviver graças ao bom jornalismo que pratica. Com suas entrevistas e seus colunistas, a Caros Amigos também dá voz a personalidades e analistas importantes do nosso tempo, cujos discursos encontram pouca reverberação nos meios de comunicação de massa. É difícil destacar uma única reportagem ou entrevista que me marcou em meio a tanta coisa boa publicada. Mas faço uma menção especial à cobertura sistemática sobre violações de direitos humanos e sobre o tema da ditadura – que inclusive já renderam prêmios à revista.

Eu leio Caros Amigos pela sua qualidade. Procuro me manter informado a partir dos seus artigos e reportagens, os quais permitem uma ampla visão da sociedade e dos acontecimentos no Brasil e no mundo. Entre os meios de comunicação, a Caros Amigos contribui para a pluralidade de opiniões, lutando por seu espaço com os grandes grupos que detém o monopólio da informação. Gostei bastante da entrevista com o economista Carlos Lessa. O ex-presidente do BNDES demonstrou sua integridade e otimismo diante do povo brasileiro, como um verdadeiro defensor dos interesses da nação.

Maria Tereza Secco ...

Vitor Israel ...

Aposentada

Médico

A Caros Amigos nos possibilita entender mais a fundo as questões políticas, sociais, econômicas e culturais de nosso tempo. A importância da revista para a sociedade é ter um jornalismo que desvela os bastidores da política e da economia no país e no mundo, os interesses por trás das guerras, a ação de transnacionais destruindo as economias nacionais e a criminalização dos movimentos sociais. Enfim, um jornalismo que traz para o debate temas de interesse da humanidade.

www.carosamigos.com.br

-14anos_169_OK.indd 31

A Caros Amigos me foi apresentada por um amigo, e foi a chave de partida para um novo conhecimento por ter uma leitura agradável e informativa. No decorrer dos anos percebi que a revista sempre aborda conteúdos de suma importância, e os entrevistados, seja do meio político ou artístico, são sempre muito bem escolhidos. A Caros Amigos tem credibilidade a oferecer, prova disso é que conheço professores da faculdade em que estudo e de outras universidades que citam a Caros Amigos como fonte de pesquisa.

Desde que eu estava no Ensino Fundamental, a Caros Amigos é, para mim, uma referência de conhecimentos progressistas e atualidades. Mesmo com os meios virtuais, a revista mensal em papel pode ser lida com calma e sem medo de perder uma grande discussão. Gostei muito do Espe cial da Direita Raivosa, que fiz até a minha avó ler.

A revista Caros Amigos é uma das principais publicações do campo progressista da sociedade. Em todos esses anos, a revista demonstrou seu compromisso em pautar temas de interesse da classe trabalhadora do país, além de uma cobertura internacional sempre muito bem feita. Em um país como o nosso, em que a maior parte dos veículos está concentrado em uma pequena fração de uma burguesia irresponsável, entreguista e alheia ao Brasil real, é um motivo de comemoração os 14 anos da Caros Amigos. Esperamos que chegue a 28, 100, e que atinja mais e mais pessoas interessadas em uma leitura inteligente, compromissada, para que, a partir daí, possam se somar às lutas pela transformação da sociedade injusta em que vivemos. Foram inúmeros os conteúdos importantes e que marcaram tanto a mim como a militância do MST. Recentemente, a reportagem da Tatiana Merlino sobre os agrotóxicos “O veneno no pão nosso de cada dia” revelou com apuro os malefícios por trás do triste título de campeão do consumo de venenos, conquistado pelo Brasil em 2008. Parabéns e vida longa à Caros Amigos!

Heloísa Fernandes ... Socióloga e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes Descobri há seis anos que a Caros Amigos representa um precioso espaço de liberdade que seria praticamente inexistente sem ela. Tudo começou com a inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, quando fiz uma homenagem ao meu pai (Florestan Fernandes). Um antigo colega da universidade leu aquele discurso, não gostou e escreveu um longo e duro artigo contra mim e contra o nome do meu pai na Escola, publicando-o em um jornal de grande divulgação diária. Perplexa, escrevi uma carta à sua seção de leitores, mas não foi publicada. Meu protesto teria sido silenciado não fosse a Caros Amigos acolher e publicar minha resposta. Desde então, muita água correu debaixo da ponte, a Escola fincou raízes, desabrochou e já formou milhares de militantes de inúmeros movimentos populares, do Brasil e do exterior. Costumo dizer que a revista é como Florestan queria a sua sociologia: objetiva, mas não neutra, porque a Caros Amigos tem lado; contra a intelectualidade colonizada, defende a liberdade de expressão e, ao lado das lutas populares, combate o neoliberalismo e o neoimperialismo.

abril 2011

caros amigos

31

05.04.11 18:41:54


Cultura Popular

Teatro de rua resiste Geralmente sem contar com incentivos governamentais, vários grupos atuam em espaços públicos, debatem questões sociais e levam a arte para as comunidades.

fotos: Xandi - Coletivo dolores

nas grandes cidades

Coletivo Dolores encena A Saga do Menino Diamante - Uma Obra Periférica na Arena Arbórea

Por Paula Salati Pelos asfaltos, praças e parques das cidades brasileiras ocorre uma das mais antigas manifestações populares do mundo: o teatro de rua. Marcados por uma diversificada produção de dramaturgia e estética, um dos elementos que unifica a existência da maioria dos grupos de teatro de rua é a opção política que realizam no campo das artes. Ir para as ruas e para os espaços públicos e gratuitos não significa falta de alternativa e espaço nas grandes salas comerciais de espetáculos. Na verdade, é uma escolha de artistas que decidiram caminhar na contramão da mercantilização da arte e fazer da rua um espaço mais democrático. Adailton Alves, ator do grupo Buraco D’Oráculo – coletivo teatral que há nove anos atua e vive em São Miguel Paulista, leste da cidade de São Paulo – considera que o teatro de rua é capaz de modificar o espaço da cidade. “Em uma sociedade capitalista, a rua serve para escoar mercadoria e mão de obra. E quando você se coloca nesse espaço, você desorganiza isso. De transeunte, a pessoa se torna assistente de uma obra teatral e, neste momento, há uma troca simbólica entre artista e público”, diz Adailton. O ator conta que, em uma das apresentações do espetáculo Ser TÃO Ser, Narrativas de Outras Margens – peça do grupo que fala sobre a habitação nas periferias –, um morador de rua entrou em cena desesperado para socorrer a atriz Lú Coelho, que encenava a morte de uma mulher em um

32

confronto policial, ocorrido em uma ocupação de moradia. O teatro de rua faz com que o indivíduo “passe a ser solicitado, ele não é rechaçado. Para as outras coisas da vida, ele precisa pedir licença e concessão”, declara Alexandre Mate, pesquisador de teatro e professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).

Cultura Popular

Mais do que levar arte à população das cidades e das periferias, muitos grupos de teatro de rua constroem os seus textos e sua estética a partir de elementos da tradição popular e regional do local em que atuam. O grupo sergipano Imbuaça, por exemplo, desde a sua fundação, em 1977, tem como principal objeto de pesquisa a cultura popular. “No nosso repertório, sempre temos espetáculos cuja dramaturgia é inspirada nos folhetos de Cordel”, conta Lindolfo Amaral, um dos diretores do grupo que tem sede no bairro de Santo Antônio, em Aracaju. O ator cita também como referência artistas da região que são considerados Mestres da Cultura Popular: “Sr. Oscar, Euclides, Lalinha, Dona Lourdes. Foram eles que nos ensinaram danças, músicas e histórias que não existem nas Universidades”, relata Lindolfo. O nome do coletivo, inclusive, foi dado em homenagem ao artista de Sergipe Mané Imbuaça, um cantor de emboladas. Outros nomes que foram importantes para fortalecer o trabalho teatral do grupo são Augusto

Boal, Brecht, Artaud, Hermilo Borba Filho, Mário de Andrade, Luiz Antonio Barreto, Aglaé Fontes, dentre outros. Na região sul do país, o coletivo teatral Oigalê também se empenha em investigar a sua cultural local. Localizados na cidade de Porto Alegre desde 1.999, uma das linhas de pesquisa do grupo são as lendas, os contos e as histórias da cultura pampiana. Vera Parenza, atriz e fundadora da companhia, explica que “pampiana” vem de “pampa” que é um tipo de vegetação que abrange uma parte do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina. “Neste território é muito enraizada a cultura gaúcha. E quando eu falo de cultura gaúcha, não é a cultura repassada pelos Centros de Cultura Gaúcha (CTG’s), que é uma cultura rígida, cheia de regras”, conta Vera. A atriz diz que os CTG’s – entidades organizadas pela sociedade civil e responsáveis pela divulgação da tradição gaúcha – perpetuam uma imagem ultrapassada dos habitantes do sul e, nesse sentido, o grupo teatral procura romper com alguns paradigmas já enraizados na sociedade riograndense. “A tradição aqui no Rio Grande do Sul é muito masculina. Tem danças que só homem pode dançar como, por exemplo, a chula e a boiadeira. E, nos nossos espetáculos, a gente quebra com essa regra, colocando a mulher dançando também”, conta Vera. O Oigalê tem conseguido manter seus projetos por meio de verbas públicas destinadas à cultura e, atualmente, obte-

caros amigos abril 2011

-paula_salati_169.indd 32

05.04.11 19:07:25


Teatro Político

Além de aspectos culturais, os grupos de teatro popular, por terem um forte vínculo com as comunidades – muitos até são moradores delas –, retratam também os problemas sociais e econômicos vividos pelos que habitam as regiões periféricas. A montagem Ser TÃO Ser – Narrativas de Outras Margens, do Buraco D’Oráculo, por exemplo, retrata a trajetória dos migrantes e trabalhadores que vão para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida e que, ao chegarem, são levados a travarem uma luta diária pela moradia. Adailton conta que a peça foi resultado de um percurso do grupo por seis comunidades da cidade de São Paulo, onde foram coletando e registrando as histórias de vida das pessoas. “A gente pensou: ao invés de levarmos o nosso trabalho, que tal colhermos essas histórias e apresentar para elas a sua própria trajetória? E, nesse processo, a gente optou pela questão da moradia, porque a gente percebeu que a quase totalidade das comunidades nas quais passamos eram áreas de ocupação. E a gente entendeu que, de repente, falar da moradia contemplaria todas as histórias, porque as possibilidades de temas eram muitas”, relata o ator. As poucas políticas públicas de incentivo ao teatro que existem hoje, são as formas que o Buraco D’Oráculo tem para sobreviver enquanto grupo teatral. Eles foram contemplados três vezes por editais do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, instituído pela Lei de Fomento ao Teatro de 2002, importante conquista da categoria. Além disso, o coletivo também já realizou projetos através do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Outro grupo que reside na zona leste de São Paulo é o coletivo teatral do Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, que há 10 anos atua no Jardim Triana, Cidade Patriarca. Foi nesta região que o grupo ocupou um terreno abandonado que hoje é gerido por diversas organizações culturais do bairro e que está vinculado à Secretaria de Esportes, como um Clube da Comunidade (CDC). Para além das intervenções nas ruas, o Dolores apresenta espetáculos abertos e gratuitos à powww.carosamigos.com.br

-paula_salati_169.indd 33

pulação na Arena Arbórea, espaço cênico criado pelo grupo que é composto por árvores em semicírculo de frente para um barranco, na parte externa do CDC. A leitura histórica e materialista das relações sociais e econômicas é que vai servir de base para o Dolores construir a sua dramaturgia. O mais recente espetáculo do grupo, A Saga do Menino Diamante – Uma Obra Periférica, coloca em questão a sociedade do espetáculo, a construção da imagem dos heróis e o processo de formação das grandes cidades. “Na peça, trabalhamos a cidade como expressão do capital”, relata Luciano Carvalho, ator do coletivo Dolores. Propondo um teatro com recorte classista, Luciano conta que “desde o início, o coletivo Dolores sabe que não existe neutralidade. O discurso da neutralidade no campo das artes é perverso. Nós temos a função de tentar observar as relações sociais construídas pela sociedade capitalista e desnaturalizá-las.” Ele acrescenta que “as relações de trabalho, na concepção marxista, não é um recorte pequeno para fazer teatro, como muitos podem pensar, pois é um recorte que nos funda enquanto seres humanos.”

Artistas em Luta

Mesmo com a presença de diversos grupos teatrais de rua e populares pelo Brasil, ainda é pouca a documentação sobre o assunto. O pesquisador Alexandre Mate diz que, historicamente, os artistas populares nunca tiveram espaço na oficialidade da linguagem por serem irreverentes e desafiadores da ordem. E que a falta de registro sobre o tema é um fenômeno internacional e pressupõe um preconceito. “Dentro do mundo do teatro, há um grande preconceito contra o teatro popular. As pessoas não o conhecem, porém tem opiniões desenvolvidas a este respeito. Quando acadêmicos, intelectuais e artistas mais afinados com outra estética fazem referência ao teatro popular, isso ocorre de uma maneira rigorosamente preconceituosa. Trata-se de um preconceito de classe. Não é um preconceito estético, mas contra as pessoas que fazem esse tipo de teatro. Essa questão, portanto, precisa ser politizada”, afirma Alexandre. Se hoje existem materiais e espaços de divulgação sobre teatro de rua, isso se deve somente à organização e à mobilização de artistas e intelectuais. Em março de 2007, foi criada pelos movimentos estaduais de teatro a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RTBR), com o intuito de articular nacionalmente a luta da categoria. Hoje, a Rede congrega muitos estados do país como Acre, Amazonas, Ceará, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Por meio da Rede – que se configurou como uma entidade horizontal e de caráter participativo – os artistas trabalhadores se encontram anualmente para formular ações conjuntas pelo Brasil. Uma de suas principais funções é lutar por políti-

fotos: arquivo imbuaça

ve patrocínio da Petrobrás, através do Programa Petrobrás Cultural. Para ensaiar e guardar figurinos e cenários, o Oigalê utiliza uma parte do terreno do Hospital Psiquiátrico São Pedro, local público que estava sem utilização e que foi ocupado por grupos teatrais em 2002. Hoje, além do Oigalê, mais cinco coletivos de teatro gerem os Pavilhões 5 e 6 do Hospital. São eles o Povo da Rua, Caixa Preta, Falus & Stercus e Neelic. A gestão do espaço é feita de maneira comunitária. Todos os artistas são responsáveis por tarefas que vão desde a limpeza até a organização de atividades culturais. Desde a ocupação, manter-se no local sempre foi uma tarefa difícil para os grupos devido às constantes ameaças de despejamento pelo poder público.

Grupo Imbuaça leva para as ruas cultura popular cas públicas de investimento estatal em instâncias municipais, estaduais e federais. Além disso, a rede realiza reivindicações que visam incentivar a formação, a circulação e a manutenção dos grupos de teatro de rua e seus artistas para poder garantir que a população continue tendo acesso ao teatro popular gratuito. Como ação paralela ao RTBR, foi formado também um Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua em 2009, responsável por produzir acervos documentais, elaborar materiais de divulgação e organizar mostras e festivais. Os programas e leis públicas de fomento ao teatro são de fundamental importância para que os grupos possam aprofundar suas pesquisas de dramaturgia e de estética e tornar mais consistente o trabalho e a atuação nas comunidades. Na cidade de São Paulo, por exemplo, um dos recursos que garante a existência de alguns coletivos é o Programa Municipal de Fomento ao Teatro que, além de sofrer constantes ataques das gestões governamentais, não é um programa destinado somente aos teatros de rua. O tímido investimento público em teatro popular faz com que muitos artistas tenham que exercer atividades paralelas de trabalho para conseguirem sobreviver, como é o caso dos atores dos grupos Imbuaça e Dolores. A situação é apenas um reflexo de toda a concepção que existe hoje sobre a função da arte e sobre quais parâmetros ela se ergue. E, quando nos referimos ao teatro de rua, a questão se expande. Pois, não se trata somente do direito à arte. Trata-se, também, do direito à cidade e à construção de novas formas de relação com o espaço público. Paula Salati é estudante de Jornalismo.

abril 2011

caros amigos

33

05.04.11 19:07:25


Espaço Público

gestão kassab

abandona as Casas de Cultura

fotos: arquivo da casa de cultura do tendal da lapa

Importantes para o desenvolvimento de atividades da população nos bairros de São Paulo, os centros culturais foram praticamente esquecidos pela Prefeitura Municipal. Por Joseh Sillva e Otávio Nagoya As Casas de Cultura nascem, em São Paulo, com o propósito de criar um espaço para desenvolver a reflexão da cultura como direito social nas periferias da cidade. A partir desta premissa, institui-se um lugar para discussão, produção e incentivo à cultura popular. Apesar de oficializadas somente no início da década de 1990, as Casas de Cultura já eram debatidas, nas periferias, por grupos de cultura popular desde o final dos anos 1970. As Casas de Cultura partem da concepção de que as expressões artísticas não são somente eventos ou espetáculos. Por isso, Luiz Fernando Herculano, atual presidente da Casa Popular de Cultura do M’Boi Mirim, na Zona Sul, acredita que é necessário valorizar a cultura popular. “Historicamente, aquilo que vem do povo parece não ter valor. Só depois de algum tempo as pessoas perceberam que o saber popular tem importância”, reflete Herculano. A Casa de Cultura Tendal da Lapa, localizada na Zona Oeste de São Paulo, foi criada em 1989, a partir de uma ocupação cultural. “As primeiras apresentações eram feitas com luzes de lampiões, pois nem tinha luz elétrica”, relembra Marco Aurélio Ozzetti, que participa da Casa de Cultura Tendal da Lapa há 16 anos. Para Ozzetti, atualmente, a Casa de Cultura conta com boa participação da comunidade, “nas oficinas, passam em média duas mil pessoas por mês”, finaliza. Segundo o grupo Rede Nossa São Paulo, em

34

levantamento realizado em 2009, existiam apenas 85 centro culturais, espaços e casas de cultura em todo município. Desse total, apenas quatro distritos localizados na região central, Sé, Pinheiros, Lapa e Vila Mariana, concentram 64% do total. Além disso, acervo de livros, cinemas, equipamentos culturais públicos, museus, teatros e bibliotecas também estão aglomerados no centro da cidade. Para Marcelo Ribeiro, morador da Zona Sul da cidade e frequentador da casa de cultura M’Boi Mirim, “ninguém vê a opinião pública criticando isso, porque lá no centro tem financiamento, virada cultural, etc. Isso maquia muito o que está acontecendo nas bordas da cidade”.

Expansão

Apesar de já existirem algumas, as Casas de Cultura foram oficializadas em 1992, na gestão de Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo pelo PT (1989-1993) e atual deputada federal pelo PPS. Herculano, de 53 anos, relembra que a Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim recebeu a visita da prefeita: “A Erundina tinha uma ligação com o movimento popular e usou a Casa como base para o projeto Casas de Cultura. A ideia era que tivesse essa formatação: comunidade e poder público na gestão do processo”. Com o projeto, as Casas de Cultura que já existiam foram integradas à Secretaria Municipal de Cultura e outras foram construídas, somando 14. Para a ex-prefeita Luiza Erundina, as Casas de Cul-

tura “eram espaços livres, que reconheciam muito a autonomia dos sujeitos que os ocupavam através de atividades culturais. Além disso, respeitavam a produção cultural própria de cada grupo, com origens tão diversificadas em uma cidade heterogênea como São Paulo”.

Ação política

Em paralelo, foi criado o cargo de coordenador da Casa de Cultura. O cargo permanece, mas a concepção por trás dele, não. “A proposta da comunidade era que o coordenador fosse uma pessoa da região. Mas apesar do cargo, toda a gestão da casa era discutida com o coletivo”, relembra Herculano. Marco Aurélio Ozzetti, 55 anos, concorda que esse é um cargo de indicação e lembra que, na Casa de Cultura Tendal da Lapa, nunca foi a comunidade que escolheu o seu coordenador. “Nem sempre é uma pessoa que mora na região, pode ser, mas não é esse o critério principal. Depende do subprefeito”, afirma. A criadora do projeto, Luiza Erundina, acredita que “a gestão da casa de cultura é da própria comunidade. Quando a prefeitura profissionalizava alguém, era uma pessoa reconhecida pela própria comunidade e identificada com o processo de cultura local”. Para os militantes culturais, Herculano e Marcelo, não há dúvidas de que a atual situação é bem diferente. “Os políticos percebem as Casas de Cultura como um espaço político, de politicagem. Não aceitamos muito isso, aqui faze-

caros amigos abril 2011

-casasdecultura_169.indd 34

05.04.11 18:44:04


mos política cultural”, contesta Herculano. Marcelo Ribeiro, 41 anos, comenta entusiasmado sobre o histórico de luta da Casa Popular de Cultura do M’Boi Mirim, onde a comunidade participa efetivamente da gestão, pois “existem muitas Casas de Cultura que não têm essa resistência, são mais institucionalizadas”. Porém, ele tem clareza dos prejuízos causados pela intervenção municipal, que também marginaliza as produções culturais não hegemônicas. “Minha crítica é a truculência que essa gestão tem com determinadas linguagens culturais. Muitas vezes os coordenadores rejeitam porque não conhecem, eles falam: ‘isso aqui é macumba’. Nesse sentido, eles são muito autoritários”, reclama Marcelo. “Hoje, as coordenações estão divididas entre as forças políticas, então o PSDB tem uma fatia, o PMDB tem outra e o DEM também. Eles feudalizaram as Casas de Cultura, cada um tem o seu feudo”, critica Herculano. Marcelo concorda, e procura alguns motivos para os abusos, já que “a cultura é um grande filão para os votos, então isso gera interesses políticos”. Ambos fazem questão de enfatizar que esse interesse político, infelizmente, não se traduz em verbas para as Casas de Cultura.

Abandono

Herculano, que iniciou sua militância no movimento sindical, em 1979, relata os problemas com uma tranquilidade singular, adquirida durante seus anos de luta. No entanto, sua postura não reflete a atual situação da Casa de Cultura, que sobrevive com os poucos recursos que recebe da prefeitura. Segundo ele, a administração municipal ajuda no pagamento da água, luz e telefone, além de dois funcionários, um para a limpeza e outro para a segurança. Porém nenhuma verba pública é destinada para as atividades artísticas, “não existe nenhuma verba pra contratações artística. Até o som e a iluminação, nós fazemos com pernas próprias, mas estamos sempre cobrando o governo”, enfatiza. Mas cobrar o governo também é uma tarefa complicada. “Quando vamos cobrar a aplicação de verbas na subprefeitura, eles falam que isso é responsabilidade da Secretaria Municipal de Cultura. Lá, eles dizem que a administração foi descentralizada para as subprefeituras, ou seja, ninguém responde pelas Casas de Cultura”, questiona Herculano. De fato, a reportagem de Caros Amigos vivenciou a mesma situação. Quando procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Cultura afirmou que não respondia pelas Casas de Cultura e que suas administrações foram transferidas para as subprefeituras na gestão Marta Suplicy (PT). Após algum tempo pressionando a assessoria de imprensa da Coordenação das Subprefeituras, a reportagem foi surpreendida pela resposta de que a responsabilidade pelas Casas de Cultura é da Secretaria Municipal de Cultura. Na verdade, as subprefeituras são responsáveis pela administração das Casas de Cultura desde 2003 quando a então prefeita, Marta Suplicy, www.carosamigos.com.br

-casasdecultura_169.indd 35

assinou o decreto nº 42.772, que “dispõe sobre a transferência de equipamentos da Secretaria Municipal de Cultura para as Subprefeituras e dá outras providências”. Além das Casas de Cultura, o decreto transfere a administração de mais de 60 bibliotecas e sete teatros para as subprefeituras. Marcelo comenta sobre essa transferência bastante agitado, “as Casas de Cultura estão sendo sucateadas, atualmente, as casas estão subordinadas às subprefeituras, que não têm conhecimento nenhum de cultura”. “As Casas de Cultura eram ligadas à Secretaria Municipal de Cultura, quando foram criadas as subprefeituras, passaram para lá. Isso permanece até hoje, mas temos uma perspectiva de voltar à Secretaria Municipal de Cultura”, conta Marco Aurélio Ozzetti. Porém, o funcionário público garante que a mudança não alterou o funcionamento da Casa de Cultura Tendal da Lapa, “Vem funcionando mais ou menos da mesma maneira, os subprefeitos que vieram tinham a vontade de investir na cultura”. Na época em que as Casas de Cultura eram vinculadas à Secretaria Municipal de Cultura, existia, além dos coordenadores locais, um coordenador geral, que respondia por todas as Casas de Cultura. “Hoje existem 31 supervisores de cultura regional. A grande maioria é inoperante, com poucas exceções”, pondera Marcelo Ribeiro, que também considera a administração das subprefeituras como uma “zeladoria”. “Não entendem de política cultural, por isso algumas Casas de Cultura oferecem cortes de cabelos e fazem parceria com a Guarda Civil Metropolitana. É uma espécie de prestação de serviço e não cultura”.

Descentralização

As 31 subprefeituras da cidade de São Paulo foram criadas em 2002, através da Lei Nº 13.399, na gestão de Marta Suplicy. Apesar de criticar a transferência das Casas de Cultura para as subprefeituras, Marcelo apóia essa lei, “na época a proposta era a descentralização de poder, já que não era possível administrar uma cidade tão grande”. Ele também afirma que, após a transferência para as Subprefeituras, existia um suporte técnico da Secretaria Municipal de Cultura para as Casas de

Cultura. “Esse suporte técnico não existe mais, o que vem decaindo desde a gestão da Marta Suplicy”, finaliza. Quando questionada sobre a atual situação das casas de cultura, Luiza Erundina se mostra preocupada com a administração das subprefeituras, “dependendo de quem esteja à frente nessa área na subprefeitura pode dar uma condução a esse processo de maneira diferenciada”. O atual quadro de funcionários das subprefeituras mostra que a preocupação de Luiza Erundina é bastante válida. Na atual gestão de Gilberto Kassab (DEM), dos 31 subprefeitos da cidade de São Paulo, 16 são oficiais da reversa da Polícia Militar (PM). Além dos 16 subprefeitos, ainda trabalham nas subprefeituras 17 ex-coronéis como chefes de gabinetes e outros 24 ocupam cargos de segundo escalão, somando 54 em todas as subprefeituras. Juntamente com os cargos ocupados por oficiais da reversa nas secretarias municipais, são 78 ex-coronéis da PM na administração do município. Os números surpreendem quando comparados com o total de coronéis ativos na PM: 61.

Passado e futuro

Os militantes da Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim relembram que, no início da década de 1990, havia uma grande articulação entre as casas de cultura da cidade. “Assim, era mais fácil bater de frente com a coordenação das Casas de Cultura, mas isso foi abafado”, avalia Herculano. A partir da gestão de José Serra (PSDB), as relações entre as Casas de Cultura foram enfraquecidas. Para Marcelo, “não é que eles querem acabar com a cultura, mas eles têm medo de uma articulação forte entre nós. Parece que assusta”. Porém, as Casas de Cultura se articularam novamente em 2005, quando o governo do estado tentou fechar o Tendal da Lapa para construir, em seu lugar, uma unidade do Poupatempo. Com essa mudança, a subprefeitura, que funciona no mesmo prédio da Casa de Cultura, seria transferida para outro prédio e a cultura se instalaria em bibliotecas e outros espaços descentralizados. “Começou uma resistência muito forte, já que a casa de cultura é uma referência cultural na região. Tivemos 17.500 assinaturas e o abaixo assinado foi levado para o Ministério Público. Quando ocorreu outra visita, chegaram a conclusão que era prejudicial fazer isso, então escolheram um prédio abandonado para o Poupatempo”, relembra Marco Aurélio Ozzetti. Quando questionados sobre o modelo ideal para as Casas de Cultura, tanto Herculano, quanto Marcelo, não arriscam uma resposta imediata, mas indicam alguns caminhos: “É preciso uma administração que entenda as necessidades de cada local, respeitar as diversidades de cada região”, aponta Marcelo. Já Herculano destaca que “é preciso uma articulação da cultura com outras áreas da administração municipal, a cultura não consegue resolver tudo sozinha”. Joseh Sillva e Otávio Nagoya são jornalistas.

abril 2011

caros amigos

35

05.04.11 18:44:04


entrevista jean wyllys

Deputado LGBT defende casamento civil para todos Apenas em 2011 o Brasil elegeu um parlamentar que se dedica à luta pelos direitos de LGBT. Filiado ao PSOL, o Deputado Federal Jean Wyllys iniciou sua militância nas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, é jornalista e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Universidade Veiga de Almeida (UVA), ambas no Rio de Janeiro. Jean é o primeiro deputado assumidamente homossexual a defender a luta LGBT, mas faz questão de frisar que sua luta maior é pelos direitos humanos. Em entrevista a Caros Amigos, o deputado fala sobre casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, políticas públicas para a população LGBT, o projeto de lei 122, que criminalizaria a homofobia, seus embates com a bancada evangélica, as ameaças de morte que sofreu e muito mais. Caros Amigos - Você é o primeiro deputado assumidamente gay a defender a causa LGBT. Como está sendo essa experiência? Jean Wyllys – É uma experiência que me trouxe destaque em muito pouco tempo, porque a pauta é nova na Câmara, e não havia um representante legítimo da grande comunidade LGBT no Congresso. É certo que já houve um deputado assumidamente homossexual, o Clodovil, e é provável que existam outros homossexuais não assumidos no Congresso, mas eu represento as demandas da comunidade LGBT de maneira explícita, clara, com um programa de campanha voltado para esse tema. Quando tomei posse existia uma Frente Parlamentar pela Livre Expressão Sexual, que existia só no nome, porque não havia nenhum parlamentar que tocasse, e ela era estimulada pelo próprio movimento, em especial pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Eu reestruturei essa Frente, me articulei com a Senadora Marta Suplicy (PTSP), que tem acúmulo nessa questão e mudamos o nome para Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT, ela tocando no Senado e eu na Câmara. É muito diferente estar no movimento e fazer política institucional, mas eu ouço, sou pressionado e dialogo com ele. Nunca perdi o diálogo com o movimento e nem posso perder. Você já sofreu algum tipo de preconceito na Câmara dos Deputados? De parlamentares comigo não, ninguém nunca me xingou pelas costas, se recusou a sentar do meu lado ou algo do tipo. Todos tem uma relação muito cordial comigo, mesmo os deputados da bancada evangélica, que são historicamente os grandes opositores da extensão da cidadania aos

36

fotos: divulgação

Por Bárbara Mengardo

LGBTs. Mas, no momento de recolher assinaturas para Frente Parlamentar, alguns deputados falaram abertamente que não iam assinar. Uns alegaram “Não posso assinar porque eu não vou me dedicar”, e mesmo que eu dissesse que as pessoas assinam Frentes na Câmara mesmo não se dedicando, mas para fazê-las existir, para trazer o debate, muitos não assinaram. Você tem embates com a bancada religiosa? A bancada católica, em geral, é mais tolerante e progressista, mais sensível e aberta em torno, por exemplo, do casamento civil entre homossexuais, ou do Projeto de Lei 122, que muda a Lei do racismo e a estende para a discriminação de gênero de orientação sexual. A bancada evangélica historicamente se opõe à extensão da cidadania, e os deputados mais fundamentalistas tem tido embates comigo pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do casamento civil, que eu estou buscando assinaturas, e a reestruturação da Frente. Nós fizemos reuniões com o Coletivo de Entidades Negras, que reivindica, por exemplo, a criação de uma Frente Parlamentar que defenda os direitos e as liberdades civis dos adeptos às religiões de matriz africana, que é outro tema que me coloca, e a outros parlamentares que são simpatizantes dessa causa, em rota de colisão com a bancada evangélica, que quer usurpar o direito à liberdade de crença. É uma bancada que esquece que, sendo o Estado laico, deve atender igualmente todas as religiões, portanto se há culto evangélico no Congresso Nacional tem que haver reuniões como estas, com os adeptos às religiões de matriz africana, com católicos, budistas, e até mesmo ateus. Você já sofreu represálias fora da Câmara? Eu recebi ameaças pelo twitter e pelo meu site,

que tem um mural onde as pessoas podem escrever um recado. Havia um perfil no twitter atacando e pregando a morte de gays. As pessoas começaram a me informar sobre ele e eu anunciei que iria entrar com uma representação na delegacia de crimes virtuais, porque as postagens do perfil diziam com toda clareza “hoje eu vou matar um gay”, coisas desse tipo. Esse perfil foi tirado do ar pelo próprio twitter por causa do conteúdo, certamente houve uma série de denúncias contra ele. O twitter tirou do ar outro perfil, de um religioso fanático que ficava, através do twitter dele, ofendendo a mim, à senadora Marta Suplicy e o Senador Cristovan Buarque. Quando o perfil foi tirado do ar os blogs de orientação neopentecostal fundamentalista começaram uma campanha, me chamando de perseguidor de cristãos, dizendo que eu tinha censurado o perfil. Esse é um procedimento muito comum deles, já que eles tem programas de rádio, páginas na internet e jornais. Eu estava twittando do meu iPhone quando rolaram essas ameaças, e eu prontamente respondi que eu não tinha medo. Uma pessoa falou que a minha cabeça e a dos homossexuais deveria estar penduradas em postes. Depois desse episódio várias entidades se mobilizaram a meu favor. Eu obtive apoio inclusive de cristãos. Também houve uma ação articulada quando eu anunciei a reestruturação da Frente Parlamentar, uma ação orquestrada de denúncia da minha página no Facebook como sendo falsa, e ela saiu do ar. Você poderia falar um pouco sobre o Projeto Escola sem Homofobia, chamado de “kit gay” pela bancada religiosa e pela mídia? O Projeto Escola sem Homofobia é um projeto do Ministério da Educação em parceria com instituições da sociedade civil, ONGs que tem um

caros amigos abril 2011

-wyllys_169.indd 36

05.04.11 19:18:01


acúmulo histórico de ações que dizem respeito ao combate à discriminação e ao preconceito. O projeto tem o aval da Unesco, do Conselho Nacional de Psicologia e do Conselho de Medicina. O Projeto fez uma pesquisa em escolas, ouviu alunos e professores e fez um diagnóstico da homofobia nas escolas brasileiras. A pesquisa constatou que a homofobia é uma das razões da evasão escolar e depressão na infância e adolescência, portanto a homofobia está alijando parte da população de um direito fundamental, que é o direito à educação. Uma vez constatado isso, desenvolveu-se um material paradidático para professores e monitores, que inclui pequenos vídeos que usam a linguagem da telenovela, com historinhas sobre quem é vítima de bullying. Tem boletins e cartilhas para o professor ler e entender, porque tem professores que chegam na sala de aula e chamam o aluno afeminado de gayzinho. Eu ouvi isso de uma professora quando eu fui dar uma palestra para o Ensino Médio, justificando a violência que um aluno sofria porque era afeminado. Ela disse “Ele era afeminado, fazer o quê”. Para confundir a opinião pública a bancada evangélica está dizendo que o governo vái distribuir kits gays nas escolas para doutrinar as crianças, o que é de uma desonestidade intelectual, de uma má fé sem precedentes. Um dos vídeos versa sobre a questão das travestis. Você acha que o preconceito que elas sofrem é o mais grave entre os LGBTs? Eu já dei aula em escola pública, e tem meninos que, com 16, 17 anos, decidem ser travestis, e eles querem continuar estudando, mas não podem, porque eles são violentados da hora que chegam à hora que saem. O professor tem que estar preparado para isso. Por que travesti não arranja emprego? Por que travesti se prostitui? Por que gosta? Não, porque é a única alternativa que lhes resta. Se não pode estudar, se formar, ter uma profissão, o que lhes resta? Ser empurrado para a marginalização. É lamentável. Dos LGBTs, desse arco-íris de cores e diversidade, os que mais sofrem são as travestis, que fazem a inversão no corpo. O curioso é que se as mulheres passassem a pensar o quão artificial é a feminilidade delas, o quão artificial é a identidade feminina, o quanto isso é construído artificialmente, elas talvez respeitassem e entendessem melhor as travestis. Uma vez uma aluna minha na universidade falou “Eu acho um absurdo uma pessoa fazer isso”. E eu disse: “Olha, você não nasceu com o cabelo liso e está com o cabelo alisado e pintado de vermelho. Você recorre a artifícios para ficar mais bonita, então dê o direito ao outro de fazer a mesma coisa”. Uma mulher que põe silicone no peito e no bumbum, que usa botox não tem moral para criticar uma pessoa que constrói uma identidade feminina por base de artifícios, da intervenção no corpo. Você acha que uma das grandes conquistas para o movimento foi a inclusão da cirurgia de mudança de sexo no Sistema Único de Saúde? Essa foi uma conquista importantíssima, mas a cirurgia foi garantida na perspectiva da saúde psíquica. Os conselhos de medicina e psiquiawww.carosamigos.com.br

-wyllys_169.indd 37

tria entenderam que a pessoa que não tem a sua identidade de gênero correspondendo ao seu sexo biológico tem um sofrimento psíquico muito grande, que compromete a vida dela como um todo. Há pessoas que constroem uma identidade de gênero que não está de acordo com o sexo que a natureza deu. Então ela não se percebe, por exemplo, como homem, embora a natureza tenha dado a ela um sexo masculino. Ela não se percebe a vida inteira como homem, então ela recorre à identidade de gênero feminina, e vai ser uma travesti. Isso é diferente de orientação sexual. Minha identidade de gênero, por exemplo, é masculina, eu me percebo como homem, mas minha orientação sexual é homossexual. Orientação sexual tem a ver com desejo, com a libido, com a maneira para onde você dirige seu afeto, seu amor. Uma travesti tem uma identidade de gênero feminina, tanto que quando elas fazem a cirurgia de mudança de sexo, a transgenitalização, ela passa a ser mulher, e portanto ela é heterossexual. Então a orientação dela é heterossexual. Trabalhar esses temas é muito difícil, porque as pessoas não dominam as terminologias. Você defende o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas algumas pessoas do movimento também falam união civil. Você poderia explicar essa diferença? O movimento LGBT durante um tempo pleiteou a união estável, numa atitude de resignação, acreditando que o casamento civil jamais seria possível, mas isso em um outro contexto, quando não havia um deputado eleito que representasse legitimamente essas lutas, e, portanto, o movimento não tinha respaldo na Câmara, tinha apenas políticos aliados, que contemplavam as ações do movimento, os pedidos de Audiência Pública, os Fóruns, mas não tocavam as políticas e reivindicações do movimento. Com a minha entrada, tudo mudou de figura. Já havia uma discussão no movimento para que se avançasse, principalmente depois da aprovação do casamento civil na África do Sul, Espanha, Portugal e Argentina. Houve

a decisão de que era preciso dar um passo adiante, porque não existe cidadania pela metade, a cidadania inteira é ter os mesmos direitos com os mesmos nomes. Não estamos pleiteando o sacramento do casamento na Igreja Católica nem nas Igrejas Cristãs Neopentecostais, a gente está pleiteando um direito civil. O casamento civil é realizado em cartório, não é da competência das religiões. Se o Estado é laico e o casamento é um direito civil, ele tem que ser estendido para o conjunto da população. Se hoje um heterossexual quiser se casar ou se juntar a uma pessoa, pode optar pela união estável ou pelo casamento civil ou religioso. Os homossexuais não têm direito a nada, os poucos que tiveram a união estável reconhecida pelo Poder Judiciário não tiveram direito ao casamento civil. O que distingue uma coisa da outra é que o casamento civil dá automaticamente todos os direitos ligados à família, os direitos sucessórios, de herança, direito à adoção, constituição de família, conta bancária conjunta, colocar os filhos como beneficiários do plano de saúde, etc. Se a gente estende o casamento civil aos homossexuais, automaticamente o Estatuto da Família tem que ser mudado, e, por isso, há tanto movimento dos opositores e da grande mídia para confundir a opinião pública, em chamar de casamento gay, por exemplo, e não de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Como você acha que está o debate a cerca do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo na sociedade? Esse debate chegou na sociedade, principalmente, por conta da aprovação do casamento na Argentina, nossa vizinha. Eu não acredito que a sociedade, como muitos dizem, não está preparada. Se a sociedade for devidamente informada, ela vai estar preparada, mas se ela for alimentada na sua ignorância e nos seus preconceitos, ela não vai estar preparada nunca. Se a sociedade for informada, de maneira didática, se os meios de comunicação pararem de reproduzir preconceitos, para manter o status quo, aí sim a sociedade vai estar

abril 2011

caros amigos

37

05.04.11 19:18:02


essa decisão, prontamente a bancada evangélica pediu na Câmara um parecer técnico e esse parecer dizia que era inconstitucional essa decisão. Aí eles protocolaram uma ação popular contra a decisão Como você acha que a imprensa se porta em reda Receita, para suspendê-la, argumentando que a lação a esse tema? questão era técnica. Nós nos reunimos na Frente e Em geral, reproduzindo preconceitos. Quando eu fui a público desmarcar esse discurso, na verdaa imprensa se recusa a utilizar o termo casamende não é por uma questão técnica que a bancada to civil entre pessoas do mesmo sexo e faz essa resolveu entrar contra a confusão de termos, endecisão, ela decidiu entrar tre união civil, casamen“O casamento é um direito civil por homofobia. Agora os to civil, casamento gay, e tem que ser estendido para evangélicos querem susela joga com os precono conjunto da população”. pender o parecer da Proceitos da população. Se curadoria, argumentando a imprensa for pedagógique ela não tem competência para fazer esse pareca, começar a tratar o tema com seriedade, parar cer. A gente vai também considerar que a Procude fazer piadas infames contra o casamento civil radoria não tem competência e vamos suspender o e pautar o tema de maneira séria, aí a população parecer da mesma Procuradoria que permitiu que vai começar a compreender de outra maneira, pora Igreja Universal do Reino de Deus importasse que nos lugares onde eu vou dar palestras as pessem tributação pedras para a construção do Templo soas acabam compreendendo a importância desde Salomão. se direito civil. Eu acho que a imprensa vai, aos poucos, aderir Como você analisa o movimento LGBT, atuala essa postura pedagógica, de explicar para a somente? ciedade os termos, que se trata de direito civil, não Existe o movimento e a comunidade LGBT. A estamos entrando na seara das religiões. comunidade se vê muito pouco representada pelo movimento. São poucas as relações do movimenVocê poderia falar do Projeto de Lei 122/2006, to com a base social. A grande comunidade não se que ficou conhecido como Lei que criminaliza a vê representada pelo movimento, primeiramente, homofomia? por uma questão cultural, porque alguns homosEsse projeto altera a Lei do racismo, e inclui nas sexuais tem homofobia internalizada. A homofocondições previstas por essa Lei a discriminação bia não vitima só o gay com o outro, o vitima com por orientação sexual e identidade de gênero. A PL ele mesmo, porque a mesma cultura em que os hé122 trata da discriminação cotidiana, por exemteros são criados, são criados os homossexuais, enplo, um professor que é demitido pela sua orientão ele cresce em uma relação de angústia consigo tação sexual, ou não é admitido porque é homosmesmo, de conflito consigo, porisso muitos deles sexual, ou a pessoa não progredir de cargo por passam a vida inteira no armário, casam, tem uma discriminação. É uma lei que pune, por exemplo, vida dupla, uma vida homossexual clandestina. Se que o segurança de um shopping center expulse a o homossexual não consegue perceber sua orienpontapés um casal de homossexuais que exprestação sexual com orgulho, ele não vai ver o movisou o afeto publicamente. Tem uma confusão que mento que reivindica esse orgulho como algo pose tenta fazer para jogar a opinião pública consitivo. É muito comum gays dizerem: “Eu odeio a tra a Lei. Eu já vi alguns jornais populares dizenparada gay”. Aí você pergunta o porquê e eles fado que a Lei prevê pena de 5 anos de prisão para lam “Ah, sei lá, aquele monte de gay se mostranquem falar mal de gay. Isso é uma mentira delido, para ser gay não precisa se mostrar”. Como não berada para não deixar que a Lei seja aprovada. precisa se mostrar? A heterossexualidade é reafirNinguém vai ser punido por falar mal de gay ou mada e reproduzida o tempo inteiro, na publicipor odiar gays, que continue odiando quem quidade, no comercial de margarina, na telenovela, ser, quem não for capaz de amar, de respeitar. A no cinema. E então, como é que os gays não vão Lei não vai punir quem continuar odiando na esproduzir uma expressão pública da sua existênfera privada, mas vai punir se essa pessoa for, por cia? É preciso uma vida, às vezes, para passar da exemplo, um gerente de uma empresa que não vergonha para o orgulho. Por outro lado, a grancontratar um funcionário porque ele é gay, ou prede comunidade não se vê representada nos atoterir uma mulher. res do movimento por conta das identidades culturais. Tem gays da classe média que não se veem Uma das suas principais lutas, atualmente, é pela representados, por exemplo, nos atores do moviinclusão de dependentes homossexuais no Immento que são pobres. A identidade sexual não é posto de Renda. Como seria essa decisão e quais suficiente para levar o cara a aderir ao movimenforças tentam barrá-la? to. E o discurso do movimento, às vezes, não conEssa foi uma decisão da Receita Federal, e nós templa a grande comunidade, porque ela não está da Frente entramos com uma contra-ação. A Retão avançada quanto o movimento. As pessoas do ceita, baseada no parecer da Procuradoria Geral movimento já fizeram a saída absoluta do armário, da Fazenda Nacional e a partir de uma portaria do já trocaram a vergonha pelo orgulho. Tem pessoas Ministério da Previdência, decidiu aceitar para fins da comunidade LGBT que não fizeram essa passade dedução no Imposto de Renda parceiros hogem ainda. Existe uma forma de inclusão da comossexuais que tenham união estável reconhecida munidade LGBT que é a inclusão via consumo, e o pela Justiça. Quando a Receita Federal anunciou preparada, como aconteceu na Argentina, Portugal e Espanha, onde há maioria católica.

38

mercado se deu conta disso. Existem roupas, grifes, pacotes de cruzeiros em transatlânticos para gays, uma oferta enorme de baladas. Com isso, se fortalece a estrutura do capitalismo, e as questões sociais não são resolvidas, os direitos não são conquistados, mas os homossexuais têm uma ilusão de inclusão graças ao consumo. Você acha que a política no Brasil ainda é muito homofóbica? Se considerarmos o Executivo e o Judiciário, temos avanços, mas se considerarmos o Legislativo, temos uma estagnação. Se considerarmos o programa Brasil sem Homofobia, do executivo, analisarmos a atuação da Ministra Maria do Rosário na Secretaria de Direitos Humanos, pegarmos as inúmeras decisões de juízes favoráveis à união estável de homossexuais ou favoráveis à adoção de

crianças por casais homossexuais, a gente vê que a política no Brasil não é tão homofóbica. Mas o Poder Legislativo, tanto na esfera nacional quanto nas esferas estaduais e municipais, está passos atrás, está atrasado em relação a essa extensão da cidadania. Não se avançou nem no debate nem na aprovação de leis. Se pensarmos na sub-representação dos negros no Congresso Nacional, a gente vai ver que o Legislativo ainda é muito racista, e se a gente pensar na sub-representação das mulheres vai concluir que é machista, e se pensar na sub da sub-representação dos gays, onde só eu sou assumido, a gente vai ver que o Congresso é homofóbico. E aí, ao mesmo tempo, a gente diz “Certo, o Legislativo é formado por representantes eleitos pela sociedade, então o Legislativo reflete a sociedade”. Não podemos ter essa conclusão imediata, porque temos que pensar na relação da sociedade com a política, como as duas estão afastadas, como a política é tratada pela grande mídia, a imagem negativa do Congresso no imaginário popular. Temos que partir para os currais eleitorais e a compra de votos deliberada, ou seja, o cara que é eleito não necessariamente reflete os interesses da população, reflete o curral eleitoral, a compra de votos, a força da grana das grandes empresas, dos grandes empresários. Bárbara Mengardo é jornalista.

caros amigos abril 2011

-wyllys_169.indd 38

05.04.11 19:18:03


Frei Betto

BRASIL À VENDA

E HÁ QUEM COMPRE Quem costuma ir à feira, ao mercado ou ao supermercado para comprar alimentos sabe muito bem que eles têm subido de preços. A inflação começa a ficar fora de controle. O governo Dilma está consciente de que este é o seu calcanhar de Aquiles. Os juros tendem a subir e a União anunciou um corte de R$ 50 bilhões no orçamento federal. (Espero que programas sociais, Saúde e Educação escapem da tesoura). Tudo para impedir que o dragão desperte e abocanhe o pouco que o brasileiro ganhou a mais de renda nos oito anos de governo Lula. Lá fora, há uma crise financeira, uma hemorragia especulativa difícil de estancar. Grécia, Irlanda e Portugal andam de pires nas mãos. Na Europa, apenas a Alemanha tem crescimento significativo. Nos EUA, o índice de crescimento é pífio, três vezes inferior ao do Brasil. Por que a alta do preço dos alimentos? Devido à crise financeira, os especuladores preferem, agora, aplicar seu dinheiro em algo mais seguro que papéis voláteis. Assim, investem em compra de terras. Outro fator de alta dos preços dos alimentos é a expansão do agrocombustível. Mais terras para plantar vegetais que resultam em etanol, menos áreas para cultivar o que necessitamos no prato. Produzem-se alimentos para quem pode comprálos, e não para quem tem fome (é a lógica perversa do capitalismo). Agora se planta também o que serve para abastecer carros. O petróleo já não é tão abundante como outrora. Nas grandes extensões latifundiárias adota-se a

monocultura. Plantam-se soja, trigo, milho... para exportar. O Brasil tem, hoje, o maior rebanho do mundo e, no entanto, a carne virou artigo de luxo. Soma-se a isso o aumento dos preços dos fertilizantes e dos combustíveis, e a demanda por alimento na superpopulosa Ásia. Mais procura significa oferta mais cara. A China desbancou os EUA como principal parceiro comercial do Brasil. Acrescenta-se a essa conjuntura a desnacionalização do território brasileiro. Já não se pode comprar um país, como no período colonial. Ou melhor, pode, desde que de baixo para cima, pedaço a pedaço de suas terras. Há décadas o Congresso está para estabelecer limites à compra de terras por estrangeiros. Enquanto nossos deputados e senadores engavetam projetos, o Brasil vai sendo literalmente comido pelo solo. Em 2010, a NAI Commercial Properties, transnacional do ramo imobiliário, presente em 55 países, adquiriu no Brasil, para estrangeiros, 30 fazendas nos estados de GO, MT, SP, PR, BA e TO. Ao todo, 96 mil hectares! Muitas compradas por fundos de investimentos sediados fora do nosso país, como duas fazendas de Pedro Afonso, no Tocantins, somando 40 mil hectares, adquiridas por R$ 240 milhões. Pagou-se R$ 6 por hectare. Hoje, um hectare no estado de São Paulo vale de R$ 30 mil a R$ 40 mil. É mais negócio aplicar em terras que em ações da Bolsa. Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), ano passado cerca de US$ 14 bilhões foram destinados, no mundo, a

compras de terras para a agricultura. As brasileiras constaram do pacote. Estima-se que a NAI detenha no Brasil mais de 20% das áreas de commodities para a exportação. O escritório da NAI no Brasil conta com cerca de 200 fundos de investimentos cadastrados, todos na fila para comprar terras brasileiras e destiná-las à produção agrícola. O alimento é, hoje, a mais sofisticada arma de guerra. A maioria dos países gasta de 60 a 70% de seu orçamento na compra de alimentos. Não é à toa que grandes empresas alimentícias investem pesado na formação de oligopólios, culminando com as sementes transgênicas que tornam a lavoura dependente de duas ou três grandes empresas transnacionais. O governo Lula falou muito em soberania alimentar. O de Dilma adota como lema “Brasil: país rico é país sem pobreza”. Para tornar reais tais anseios é preciso tomar medidas mais drásticas do que apertar o cinto das contas públicas. Sem evitar a desnacionalização de nosso território (e, portanto, de nossa agricultura), promover a reforma agrária, priorizar a agricultura familiar e combater com rigor o desmatamento e o trabalho escravo, o Brasil parecerá despensa de fazenda colonial: o povo faminto na senzala, enquanto, lá fora, a Casa Grande se farta à mesa às nossas custas. Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Garanta já sua coleção

De R$ 142,40

Por R$ 99,00

Oferta por tempo limitado Ligue para 011 2594 0376 ou acesse www.lojacarosamigos.com.br www.carosamigos.com.br

-FreiBetto_169.indd 39

abril 2011

caros amigos

39

06.04.11 16:11:24


Mídia

venezuela,

Nove anos depois do frustrado golpe militar-midiático contra o governo constitucional de Hugo Chávez, o país constrói outro sistema público de comunicação.

fotos: Leo Drumond

Novo modelo democrático

A jornalista colombiana Maria Cristina Martinez, responsável pela área cultural do jornal Ciudad Caracas.

Por Luciana Lanza e Leo Drumond Em abril de 2002, em meio à tentativa de golpe militar contra o presidente Hugo Chávez, na Venezuela, estimulado pelo poderoso aparato da mídia empresarial conservadora, um dos golpistas chegou a afirmar em um canal de TV: “Felizmente, temos uma grande arma que são os meios de comunicação. Se o povo se der conta, o exército e as forças de segurança não fizeram um só disparo. Nossas armas foram os meios de comunicação.” A frase serviu de alerta. Ficou evidente que os meios privados tiveram papel decisivo na frustrada manobra golpista. Depois disso, o governo Chávez deu início a uma experiência inédita na área da comunicação pública, estimulou as redes comunitárias e estatais, criou jornais e revistas, apoiou a formação de comunicadores – o que hoje faz da Venezuela um importante laboratório da comunicação democrática e popular para toda a América Latina.

Meios públicos

Já em 2003, foi criada a Vive TV, um canal cultural e informativo, bem estruturado, e com a programação focada nos movimentos populares, sociais e de classe. E não só programas voltados para o povo, mas, também, programas feitos pelo povo. Como os demais veículos visitados, a Vive investe em capacitação técnica e formação política, pois a consciência da população é a mais alta prioridade da mídia revolucionária. Para a revolução bolivariana é tão necessário incluir as massas na realização dos programas, quanto for-

40

mar um público crítico. A Vive emprega quase 800 pessoas; cerca de 500 só em Caracas. Poucas tinham experiência profissional e muitas vieram de movimentos sociais. A formação é feita em oficinas e cursos, onde se trabalha o conceito de produtor integral: todos têm de saber filmar, gravar áudio, editar, etc. É, também, uma nova forma de pensar a divisão do trabalho: profissionais cientes e conscientes das etapas do processo e capazes de produzir mais conteúdo e mais relevância com equipes reduzidas. A Vive alcança 77% do território nacional e 95% da população, em sinal aberto, e já possui seis sucursais no interior do país. Segundo Gabriel Gil, diretor de programação, um dos desafios é a busca de uma linguagem que se contraponha à mídia hegemônica e seja, ao mesmo tempo, interessante e atraente. Com quase oito anos de existência, a Vive tem por meta ampliar o conteúdo regional. O objetivo, em dois anos, é ter sete sinais diferentes no país, recebendo o sinal máster de Caracas, porém com mais programas regionais exibidos localmente.

América Latina

Em 2005, a Venezuela criou, no front internacional, sua mais poderosa arma de informação: a Telesur. É uma multiestatal capitaneada pelo estado venezuelano e que já conta com a participação da Argentina, Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua. Com o lema Nosso Norte é o Sul, é o principal veí-

culo difusor de uma das bases fundamentais da revolução: a integração da América do Sul e do Caribe. Sua sede, impecável, impressiona. Tudo novo, bem iluminado, equipamentos de última geração. Ali trabalham cerca de 650 profissionais, de diversas nacionalidades, com a missão de conectar a América Latina com o mundo. Nisto, já lograram atuações de repercussão mundial, entre as mais destacadas, a libertação de reféns das FARCs, o golpe de estado em Honduras e a tentativa de golpe no Equador. Tivemos acesso aos seus planos de expansão para uma maior presença no Brasil. Aqui, quase ninguém sabe que a Telesur possui um noticiário em português, feito por brasileiros. Por enquanto, só traduzem e apresentam as notícias produzidas em espanhol. Mas o projeto vai além: ampliação da grade em português, produção própria de conteúdo e maior difusão pela internet. Porém, tal é a pressão contra a Telesur no Brasil que só a TV Educativa do Paraná transmitia o noticiário em português. Com a saída do governador Roberto Requião, nem ela mais. Alternativas para a sua presença aqui têm parcas possibilidades em Pernambuco e em Belo Horizonte. Executivos da Record News estiveram lá, mas nada se concretizou até o momento. Visitamos também a Rádio Del Sur, fundada em 2008 com proposta similar à Telesur. Seu sinal ainda está restrito à Venezuela, mas pode ser acessado pela internet. Em 2006, vem à luz a Avila TV, talvez a mais van-

caros amigos abril 2011

-VENEZUELA_169.indd 40

05.04.11 19:15:52


guardista iniciativa revolucionária em linguagem televisiva. Criada pelo ex-prefeito metropolitano de Caracas, Juan Barreto, foi concebida como TV Escola e é dirigida ao público jovem. Na sede do canal - repleta de uma garotada irreverente e bem humorada, vestindo jaquetas e bonés e fazendo a sua própria revolução no front televisivo - todos são responsáveis por tudo: técnica, reportagem, apresentação de programas, câmeras, áudio, redação e o escambau. A transmissão é restrita a Caracas, o que lhes permite liberdade de experimentação, com forte apelo musical e gráfico, junto a um público essencialmente urbano e mais aberto às inovações. A maioria é formada na EMPA (Escuela de Medios y Producción Audiovisual), dentro da qual foi incubada a Avila TV.

fotos: Leo Drumond

Jornal gratuito

Na praça Bolívar, coração da capital, fica a sede do jornal impresso Ciudad Caracas. Criado em 2009 com tiragem de 70.000 exemplares e distribuição gratuita, aposta num belo projeto gráfico e na linguagem simples para falar com o seu público. Quem nos recebeu foi a jornalista Maria Cristina Martinez, uma entre os mais de quatro milhões de colombianos que vivem na Venezuela. Ela nos contou que não poderia exercer sua profissão com segurança em seu país de origem. Maria se formou na UBV (Universidade Bolivariana da Venezuela), criada por Hugo Chávez como alternativa à tradicional UCV (Universidade Central da Venezuela), e reflete a postura do jornalismo revolucionário: “Os meios de comunicação têm uma dívida histórica com a sociedade”. Ciudad Caracas busca uma nova forma de tratar e mostrar o povo que vive nos barrios, o correspondente venezuelano das nossas favelas. Como as nossas grandes cidades, Caracas é tomada pelos barrios, e, tal como aqui, rola um forte preconceito das classes médias e altas (fomentado pelas mídias privadas) em relação a seus habitantes, sempre associados à marginalidade. Assim como o Ciudad Caracas, os novos meios de comunicação criados pela revolução preocupam-se em lançar luzes a essas pessoas que são a grande maioria da população venezuelana. Além dos veículos visitados pela reportagem, se somam outros que o tempo curto não nos permitiu conhecer in loco. São exemplos o canal Alba TV, criado em 2007 para ser um canal comunitário internacional, de debate político, articulação e integração entre os movimentos sociais da América Latina, e o jornal impresso Correio Del Orinoco, recém inaugurado em 2009, como refundação atualizada do histórico jornal de mesmo nome que foi editado por Simon Bolívar no século 19. Possui, como o de Bolívar, versão em inglês, embora circule apenas na Venezuela. Afora os novos veículos, a estrutura de comunicação pública herdada pela revolução foi reestruturada e ampliada. A estatal VTV é hoje a emissora mais bem equipada do país, tem programas de grande audiência e é a responsável pela programação oficial da revolução. O canal foi fechado à força www.carosamigos.com.br

-VENEZUELA_169.indd 41

pelos golpistas de 2002, os mesmos que hoje reclamam da falta de “liberdade de expressão” no país.

Comunicação Popular

Em julho de 2000, o presidente Chávez participava da inauguração de um ambulatório quando uma jovem, segurando um microfone rústico, pede a sua opinião sobre os meios de comunicação comunitários. “Bom, émaravilhoso!Vocêsestãoadiantados;sãoavanguarda da comunicação.” Na sequência, Chávez ordena a um vice-ministro providenciar toda a ajuda necessária àquele pessoal. Poucos meses depois, Chávez, em pessoa, participaria da inauguração de uma renovada Catia TVe. E colheu os frutos: no fracassado golpe de 2002, foram os meios comunitários, liderados por Catia TVe, que informavam a resistência popular, rompendo o blackout comunicacional dos meios privados para ocultar e facilitar o golpe. “Não veja televisão; faça!”, é o seu lema. Criada clandestinamente em 1989 e legalizada em 2001, começou como Centro Cultural, com trabalhos de teatro e música e o hoje histórico Cineclub El Manicomio, exibindo bons filmes nacionais nas paredes e muros do barrio. A necessidade de dar voz ao povo transformou a ação inicial na proposta revolucionária de filmar a própria comunidade, as festas da escola, o movimento dos bares, os jogos de beisebol, os problemas de moradia, saúde, etc, e depois editar e exibir o conteúdo. O apoio do governo tornou Catia TVe uma das iniciativas comunicacionais mais importantes da história da Venezuela. Catia TVe - Trincheira de Luta da Revolução - oferece cursos de técnica e produção audiovisual gratuitos, ou melhor, “em troca de café e açúcar”. E é lá que se formam os profissionais dos novos canais públicos, como o presidente da Ávila TV, Wladimir Sosa, e o diretor de programação da Vive, Gabriel Gil. A Rádio Senderos de Antímano completou 10 anos, e foi também uma das vozes confiáveis sobre os fatos de 2002. É uma das poucas que não foi fechada pelos golpistas. Hoje, com equipe de 15 pessoas, funciona numa escola pública no bairro de mesmo nome. Quando estivemos lá, a escola estava ocupada por desabrigados pelas chuvas. A rádio tem perfil variado, com muita música Joropó, ritmo popular e típico do pais. Todo o equipamento foi doado pelo governo. O radialista nos informa que o veículo sobrevive de verbas públicas e publicidade de pequenos comércios. E que tem gente de várias orientações políticas trabalhando lá: “o importante é se comunicar”.

Frentes de luta

A democratização da comunicação abriu espaços para criadores e comunicadores da várias áreas. O Coletivo Célula, formado por jovens de classe média, produz audiovisuais e reúne poetas, cineastas, escritores, redatores e videomakers em projetos autorais. Uma lei da revolução obriga os canais públicos e privados a exibirem a produção nacional independente. Os canais privados acharam a brecha: criaram produtoras “independentes”, das quais são eles os donos. Já os canais públicos geraram opor-

A sede do canal Vive TV.

tunidades inéditas aos produtores de todo o país. No Célula, os projetos são orçados e apresentados aos canais de TV. A produção pode ser feita pelo coletivo ou em regime de co-produção. Até o momento, o principal parceiro é a VTV. Na mesma linha atua o Ejército Comunicacional de Liberacion. Formado por designers e artistas plásticos que, graças a um contrato com a prefeitura de Caracas, se dedicam exclusivamente ao projeto, acaba de lançar a revista (Chumbo), com inovador projeto gráfico mesclando fotos e ilustrações em conteúdos altamente políticos e politizados. Além da publicação, atua na formação cultural de comunidades carentes e conduzem um programa na Rádio Nacional. Estão editando o livro Mural e Luzes sobre os murais que vimos espalhados por toda a Caracas. Mas de todas as iniciativas visitadas pela reportagem, nenhuma nos surpreendeu tanto quanto a Disciplina Livre de Comunicação Popular, na Academia Militar. A ideia surgiu quando o Ten. Cel. Menry Fernandez conheceu o jornal alternativo De Pana, realizado por um coletivo de jornalistas, dentre eles o brasileiro Leonardo Fernandes e o casal de colombianos Consuelo Alvarez e Carlos Acosta. Menry os convidou a criar, em conjunto com os cadetes, o jornal O Jovem Patriota. O sucesso do jornal os levou a um passo ousado: os três jornalistas foram convidados a ministrar a nova disciplina, dentro da Academia. Desde o golpe de 2002, o exército percebeu a necessidade de estreitar laços com a população civil, orientação que é fruto de quase dez anos de reestruturação da doutrina antes conservadora das Forças Armadas formadas na “Guerra Fria”. Somente num país como a Venezuela, empenhado num processo realmente revolucionário, é possível um casal de jovens colombianos e um jovem brasileiro lecionarem comunicação popular para militares do exército nacional. Leo Drumond e Luciana Lanza são jornalistas.

abril 2011

caros amigos

41

05.04.11 19:15:53


Pátria Grande - América Latina

Choque Geopolítico: Estados Unidos e o Mercosul Por Luis Vignolo

42

americana e latino-americana. Também evidencia que o Uruguai continua sendo “a chave da bacia do Prata e do Atlântico Sul” como queria o pensador uruguaio Alberto Methol Ferré, em seu livro O Uruguai Como Problema. É bom lembrar que uma das primeiras fontes secretas reveladas pelo WikiLeaks com referência ao Uruguai, mencionava a preocupação norte-americana e britânica quanto à possibilidade de que o porto de Montevidéu deixasse de abastecer as Malvinas. As fontes do WikiLeaks explicitaram que a incorporação da Venezuela como membro do Mercosul, hoje barrada pelo senado do Uruguai, daria ao bloco sul-americano um extraordinário poder estratégico.

ilustração: caros amigos

O Mercosul é encarado pelos diplomatas dos Estados Unidos como uma “organização anti-norte-americana” e uma “união política” que “tem conflitado com os interesses dos Estados Unidos”, segundo fontes secretas recentemente reveladas pelo WikiLeaks e publicadas pelo Página 12 de Buenos Aires e O País de Montevidéu. O texto que qualifica o Mercosul como “organização anti-norte-americana” resultou de uma reunião de embaixadores dos Estados Unidos, com Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile, realizada no Rio de Janeiro. Aí se afirmou que o “Mercosul gradualmente foi transformando-se de uma reunião aduaneira imperfeita em uma organização mais restritiva e anti-norte-americana”. A reunião aconteceu em 2007 e evidenciou a preocupação dos Estados Unidos sobre a influência exercida por Chávez. O texto do encontro afirma que a entrada da Venezuela no Mercosul altera o equilíbrio e a dinâmica da organização. Quase ao mesmo tempo foram revelados outros segredos referentes ao Uruguai, nos quais também os diplomatas norte-americanos sustentam que “o Mercosul atritou-se com os interesses dos Estados Unidos”. Os documentos referidos ao Uruguai foram redigidos em meio à confrontação dos Estados Unidos, por um lado, e Brasil e Argentina, por outro; na base das frustradas negociações de um TLC (Tratado de Livre Comércio) entre o Uruguai e a potência norte-americana durante o ano de 2006. O encarregado pelos negócios norte-americanos no Uruguai, James D. Nealon, declarou: “Nos últimos anos, o Mercosul evoluiu de um fórum comercial benigno para uma união política” que “se contrapõe aos interesses dos Estados Unidos, principalmente depois que a Venezuela se converteu em seu quinto membro”. Em compensação, simultaneamente, os diplomatas brasileiros e argentinos defendiam com razão que o Mercosul é incompatível com a ideia de que um de seus membros assine um TLC. O conflito geopolítico entre a potência norteamericana e o bloco sul-americano se agravou quando alguns integrantes do governo uruguaio, presidido por Tabaré Vázquez, em que coexistiam partidários e adversários do TLC, sondaram a possibilidade de obter apoio militar norte-americano, sob o pretexto da disputa com a Argentina pela fábrica Botnia. Esse conjunto de revelações e de fatos confirma a transcendência que o Mercosul tem como núcleo real, político e econômico da unidade sul-

Unidade latino-americana

Já nos anos 90 Methol Ferré recordava que a representante comercial dos Estados Unidos, durante o governo Clinton, Charlene Barshefsky, declarou no senado desse país que o Mercosul foi uma “distração”. A embriaguez triunfalista que tomou conta da elite yankee depois da derrubada do muro de Berlim e o fim da guerra fria (os norte-americanos ficaram com o domínio mundial sem parâmetro na História) foi a causa dessa “distração” imperialista com respeito ao nascente Mercosul. Enquanto os governantes dos Estados Unidos faziam o que queriam com os restos da União Soviética, vale a pena perguntar: “Que preocupação poderia gerar um acordo entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai”? No entanto, a “distração” não durou muito tempo. Barshefsky definia o bloco sul-americano como uma “desenvolvida união aduaneira com ambições de expandir seus acordos de associação a toda América Latina e um claro objetivo estratégico visando a expansão comercial e uma posição mais sólida nos assuntos mundiais”. A ALCA foi uma tentativa de responder ao desafio colocado pelo Mercosul. Também o ex-secretário de Estado Henry Kissinger advertiu claramente sobre o conflito: “É difícil ver como o Mercosul poderia fundir-se em um acordo mais amplo com o tratado de livre comércio (Estados Unidos, Canadá e México) para promover o crescimento geral em todo o hemisfério. É mais provável que afirme a identidade latino-americana como separada e se fosse necessário oposta aos Estados Unidos e ao TCL”. A verdade é que desde os anos 1990 a elite norte-americana concebeu o Mercosul como um provável rival. Por conseguinte, tentou dividir e

enfraquecer de diversas maneiras o bloco sulamericano através da ALCA, dos TLC, dos acordos bilaterais econômicos, das bases militares norteamericanas na América Latina e da propaganda permanente contra o Mercosul feita pelos meios de comunicação de massa. Os documentos e fontes secretas reveladas recentemente que comprovam a confrontação entre Estados Unidos e Mercosul, ainda que adicionem a importante novidade na última década da política bolivariana da Venezuela de Chávez, não representa, no entanto, uma mudança substancial na ótica do império senão uma intensificação de sua postura adversa ao Mercosul, e adversa também à unidade latino-americana. Como escreveu Zbigniew Brzezinski, é um imperativo da política imperial “impedir a união dos bárbaros”, ou seja, impedir nossa unificação. Depende de nós a possibilidade de desenvolver a consciência de que somente a união dos povos latino-americanos nos fará livres, soberanos e protagonistas verdadeiros do século 21. Luis Vignolo é jornalista e pesquisador da Fundação Vivián Trias, do Uruguai.

caros amigos abril 2011

-LuizVignolo_169.indd 42

05.04.11 19:03:33


Oriente Médio

Ahmed, símbolo dos jovens da Praça da Liberdade Por Gershon Knispel Terminando o serviço militar obrigatório, retornei para Haifa, em 1954. As autoridades militares de Haifa forneceram um andar em um prédio antigo, de pedra, para instalar o meu ateliê, em troca de que eu desse aulas noturnas de pintura e desenho para jovens soldados. O prédio ficava num velho bairro árabe, na fronteira com um novo bairro de judeus que se radicaram em Haifa entre as duas Guerras Mundiais. Esses prédios foram abandonados pela população árabe em fuga depois da tomada da cidade pelo Exército de Israel em março de 1948. Nesse conjunto se instalou o Quartel-General regional do Exército, em frente da Agência dos Desempregados. A cada dia, descendo para o meu estúdio, eu passava em frente da Agência, encontrando uma multidão mista de árabes e judeus, miseráveis, esperando em frente das portas ainda fechadas. Imigrantes judeus de origem marroquina, iraquiana, tunisiana, e árabes que permaneceram em Israel após a guerra de 1948, tinham aparência semelhante e eram difíceis de serem diferenciados entre si. Era lógico e natural esperar que, em troca de uma diária, aceitassem ser modelos para os meus alunos. Ainda atingidos pela euforia do recém-nascido Estado, pioneiro na luta contra o colonialismo inglês, cegos diante do resultado horroroso da derrota sofrida pelos palestinos, encantados pelas palavras da famosa canção “Um homem acorda de manhã e de repente percebe que é um povo. E começa a caminhar” O encontro diário com as verdadeiras vítimas dessa tragédia num ateliê nos levou a cada vez mais perceber o seu sofrimento. Eles marcaram as minhas pinturas com uma agonia crescente. Espontaneamente, sem planejamento, meus “heróis” se ajuntaram nos desenhos e pinturas, ganhando ossos e pele, numa composição monumental, de uma tela de 3,56 metros por 1,90 metro, retratando a Agência dos Desempregados. A figura dominante dessa pintura era Ahmed, um jovem árabe, de uma família de felás (camponeses) do vilarejo de Maalul, uma entre milhares de famílias expulsas de dezenas de vilarejos na Galileia, destruídas e apagadas dos mapas oficiais de Israel. Procurando abrigo em Nazaré, a capital árabe da Galileia, que era uma cidade aberta a refugiados e dobrou a sua população, os migrantes árabes a tornaram o maior foco de desemprego do país. Ahmed, como muitos dos jovens árabes, desceu para Haifa, mas achou as portas da Agência fechadas. Era o modelo preferido dos alunos e, sem querer, virou o protótipo do jovem árabe revoltado. Eu também aproveitei a presença dele, que ganhou inúmeros esboços em desenho e pintura. As ligações se aprofundaram; afinal ele encontrou emprego permanente como gráfico do jornal oficial www.carosamigos.com.br

-gershon_169.indd 43

"Um homem acorda de manhã e de repente percebe que é um povo. E começa a caminhar." do Partido Comunista em árabe, El Itjachad, o único jornal partidário em Israel que existe até hoje. Em 1956, ao terminar a pintura da Agência dos Desempregados, ela foi escolhida pela curadoria para a Bienal Internacional dos Jovens Artistas Plásticos, no Festival da Juventude, em Moscou, em 1957. A reação não demorou. O Ministério das Relações Exteriores vetou a participação da pintura na exposição em Moscou, argumentando que “essa pintura vai desmoralizar nossos esforços de apoio à emigração judaica da União Soviética para Israel”. O Ministério da Cultura vetou a decisão, argumentando que era um ato contra a liberdade de expressão. A exposição foi enviada, via Viena, para Moscou, mas seus 50 trabalhos jamais chegaram ao destino. Preocupados com o impacto negativo de um pavilhão israelense vazio, entre o pavilhão egípcio e o sírio, o que provocaria ondas de boatos de caráter político, a curadoria decidiu expor em Moscou 24 trabalhos meus, e enfim o pavilhão de Israel ganhou a medalha de ouro. Em seguida, vim para o Brasil. Na minha volta a Israel, fugindo do golpe militar de 30 de março de 1964, fui avisado que a pintura desaparecida em Viena, sem moldura, estava enrolada num armazém do porto de Haifa, e assim ela voltou para meu ateliê. Em 1978, recebi em Haifa a visita da curadora do Museu de Tel Aviv, Sara Breitberg, pedindo que eu expusesse a Agência dos Desempregados como obra principal na exposição da vanguarda A Geração dos Fundadores de 1948, nos 30 anos da fundação de Israel, na mostra Artistas e Sociedade. Essa exposição foi o início do coming back. Todos os livros sobre arte de Israel apresentaram a pintura como a mais fiel expressão dos primeiros anos do Estado. A reabilitação foi confirmada num leilão de arte de 1988, quando a Federação Sindical

Histadrut concorreu pelo trabalho com o Museu de Haifa. Usando o orçamento total do ano para compra de obras de arte naquele ano, o Museu ganhou afinal o leilão e ficou com a obra. Agora, nestas últimas semanas, quando tento atender os museus de Israel que querem minhas obras relacionadas a obra monumental, tentei recriar três retratos de Ahmed e duas reproduções reduzidas da tela “Agência dos Desempregados”, tão danificados, pois os originais não podiam ser restaurados. Tentei ser fiel aos originais, mas inconscientemente não retratei mais a humilhação revoltada, com Ahmed tendo suas mãos de trabalhador totalmente paralisadas. A linguagem do corpo de Ahmed se transformou numa energia explosiva irrefreável. Nos meus ouvidos metralhavam cada vez mais fortes as palavras da canção, esquecidas décadas antes: “Um homem acorda de manhã e de repente percebe que é um povo. E começa a caminhar”. Nem é preciso lembrar que tudo isso decorreu dos acontecimentos na Praça Taharir no Cairo (minhas palavras não são suficientes, desta vez, para elogiar a cobertura da mídia internacional). Como um povo, de repente, se está manifestando, aos milhares, espontaneamente, de todas as camadas sociais, jovens, velhos, estudantes, operários, classe média, intelectuais, deixando seus lares, universidades, escolas, empregos para trás, rumo à Praça da Liberdade, para exigir durante semanas a redenção. Não deixei de me perguntar: Onde estava toda essa multidão, há décadas? Onde eles se esconderam? Ahmed, símbolo dos palestinos revoltados, se transformou num símbolo dos jovens da Praça da Liberdade. Gershon Knispel é artista plástico. abril 2011

caros amigos

43

05.04.11 18:53:21


Tacape

Emir Sader

Rodrigo Vianna ...

VELHA E NOVA MÍDIA

A FOLHA E A GUERRA DOS TUCANOS EM SÃO PAULO Peço a atenção dos leitores – especialmente daqueles que não acompanham de perto a política paulista – para um caso que parece puramente paroquial. E de fato é. Mas a disputa provinciana passa a ter importância porque diz muito sobre uma facção política que já governou o Brasil – sempre tentando vender a imagem de “moderna” e “cosmopolita”. Essa facção encontra-se agora em adiantado processo de desagregação. Falo dos tucanos. Os tucanos de São Paulo. Primeiro, algumas informações de fundo: o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, é dos poucos remanescentes da equipe de Serra que foram mantidos por Alckmin. Como se sabe, Serra e Alckmin travam uma batalha surda pelo controle do PSDB paulista. Na época em que Alckmin montava seu gabinete, em novembro de 2010, a Folha de S. Paulo vazou a informação (plantada sabe-se lá com que interesses, mas podemos imaginar) de que a saída de Ferreira Pinto significaria a vitória da “banda podre” da polícia paulista. A reportagem foi assinada pelo jornalista Mario Cesar Carvalho. Guardem esse nome. Depois disso, Alckmin ficou de mãos amarradas: se tirasse Ferreira Pinto, ganharia a pecha de beneficiar a “banda podre”. Se mantivesse Ferreira Pinto, teria cedido a pressões e manobras de um homem nomeado pelo antecessor Serra. Alckmin optou pela segunda decisão. Mas mandou um recado a Ferreira Pinto (e a Serra), nomeando para a Secretaria de Transportes Saulo Abreu de Castro. Saulo era o homem forte da Segurança na gestão anterior de Alckmin (2003/2006). É como se Alckmin dissesse a Ferreira Pinto (e, indiretamente, a Serra): você ganhou o primeiro round, mas a qualquer momento o fantasma de Saulo pode avançar sobre a Segurança de novo! Pois bem. Com menos de dois meses da nova gestão Alckmin, Ferreira Pinto foi bombardeado. Lembram-se da imagem da escrivã humilhada por uma equipe da Corregedoria de Polícia de São Paulo? Ela teve a roupa arrancada por um delegado, atrás de propina supostamente escondida na calcinha... Assessores de Ferreira Pinto (a quem a

44

Corregedoria está subordinada) dizem em off que o vídeo pode ter partido da turma de Saulo – interessado em desgastar o atual titular da Segurança. Ferreira Pinto foi para o contra-ataque. Como? Poucos dias depois, no início de março, a Folha, em reportagem de Mario Cesar Carvalho (de novo!), trouxe a informação de que um assessor da secretaria de Segurança recebia grana como consultor - “vendendo” dados sigilosos para particulares. O nome do assessor: Tulio Kahn. Ele é muito próximo de quem? Saulo de Castro. Parece complicado esse emaranhado, mas é importante prestar atenção: Saulo (= Tulio Khan) = Alckmin X Ferreira Pinto = Serra. Tudo isso dentro do tucanato - cosmopolita e modernizante, como sabemos. Logo depois do Carnaval, começou a circular pela internet um vídeo que mostra o secretario de Segurança Ferreira Pinto (aquele, nomeado por Serra, e mantido a contragosto por Alckmin) andando por um shopping de São Paulo. A imagem é de 25 de fevereiro (4 dias antes da reportagem da Folha sobre Tulio Khan ter sido publicada). Ferreira Pinto circula, com um envelope pardo na mão, até que chega um homem de jaqueta branca. Quem é esse homem? O jornalista Mario Cesar Carvalho. A imagem mostra que o jornalista e o secretário andam juntos até um café, sentam numa mesa e conversam. Qual a hipótese mais evidente? O secretário Ferreira Pinto é que teria sido a fonte da Folha. Ou seja: Ferreira Pinto forneceu munição contra Tulio Khan, para atingir Saulo (o rival dele na disputa fratricida travada entre os tucanos). O secretário admitiu o encontro (claro), mas não revelou o que havia no envelope, nem deu mais detalhes. Trata-se de mais um episódio didático a mostrar como se articulam os jornais e o PSDB. E é também um claro indicativo de como as relações entre os tucanos estão envenenadas. Para a Folha (e para os serristas), Alckmin é só um “caipira”; assim, como Lula era um “semianalfabeto”. Serra, não. Serra é um estadista! Rodrigo Vianna é jornalista e responsável pelo blog. Escrevinhador www.rodrigovianna.com.br

Um dos jornais da velha imprensa paulista me convidou para escrever no espaço principal dos domingos para se penitenciar de matéria totalmente manipulada que haviam feito. Eu respondi que, primeiro, teriam que pedir desculpas públicas. E ofereci que mandassem o artigo para o meu blog, onde teriam reproduzidas suas opiniões textualmente, chegando a um público muito maior do que aquele atingido pelo jornal, além de chegar aos jovens – que já não leem mais jornais -, mas teriam que ler tudo o que fosse escrito como comentários. Não aceitaram, porque têm medo da interatividade da internet, preferem a covardia da escrita unilateral do seu velho jornal. Esta é a última geração da velha imprensa escrita brasileira. Claro que, antes de tudo, pela superioridade da internet: por sua rapidez (os jornais dão sempre notícias que já conhecemos), pela democratização (dispensável a enorme quantidade de recursos para montar um jornal) e interatividade (participação ativa de todos). Mas também porque a velha mídia se desmoralizou, assumindo papel de partido político da oposição, perdendo credibilidade ao editorializar tudo, ao não se tornar um lugar de debate minimamente pluralista. Como todo ser que tende a desaparecer, lhes bate o desespero, exacerbam seus lados negativos, justamente aqueles que aceleram sua desaparição. Transformam seus funcionários e pobres escribas, que repetem mecanicamente o que os chefes pensam, recebendo baixos salários e pressionados pela enorme fila de desempregados. A função social que tinham foi desaparecendo. Falam cada vez mais para si mesmos. Um dos sintomas do novo Brasil vem da mídia alternativa, em grande parte concentrada na internet, dando combates com meios desiguais, mas contando com a superioridade moral de defender pontos de vista independentes, críticos, de produzir espaços de debate público, pluralista. SUGESTÕES DE LEITURA: • TRABALHO E SUBJETIVIDADE NO TOYOTISMO Giovanni Alves, Boitempo Editorial • POLÍTICAS CULTURAIS E O GOVERNO LULA Albino Rubim, Editora da F.P.A. • OS ANOS SOMBRIOS. Paris na década de 1930 William Wiser, José Olympio Editora Emir Sader é cientista político.

caros amigos abril 2011

-Rodrigo_169.indd 44

05.04.11 19:33:05


IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu ...

“SALAZAR”, ENTRE ALGUNS DOS LANÇAMENTOS MAIS IMPORTANTES DOS ÚLTIMOS TEMPOS

O livro Salazar – biografia definitiva, de mais de 800 páginas, do pesquisador português, radicado na Irlanda, Filipe Ribeiro de Meneses, que já está na quarta edição em Portugal, tem finalmente uma edição brasileira, recém-lançada pela Leya. Trata-se de um levantamento isento e exaustivo da vida e obra de António de Oliveira Salazar (1889-1970), que governou seu país durante 32 anos, de 1932 a 1968, lançando o chamado Estado Novo, que sobreviveu a ele durante quatro anos, só tendo sido derrubado pela Revolução dos Cravos, em 1974. Esse livro, seguramente um dos principais lançamentos em português no que já vai do século 21, é de leitura obrigatória para todos os brasileiros interessados em política. Como é que se explica que Portugal, um país de tradições radicais, que passou nos anos 1820 por transformações que em grande parte da Europa só se www.carosamigos.com.br

-Ideias_botequim_169.indd 45

deram a partir de 1848, que proclamou a República antes de qualquer outro país europeu, com exceção da França e da Suíça, se tenha deixado dominar por um regime autoritário de direita, eivado de clericalismo, durante quase quatro décadas? Convém procurar as respostas lendo esse livro. Outro livro importante é de Robert Kurz, um dos mais renomados teóricos políticos alemães da atualidade, que partiu de Marx para buscar superá-lo dadas as mudanças que ocorreram depois da morte do fundador do comunismo. Razão sangrenta = ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus valores radicais, publicado pela Hedra, é um requisitório contra as tradições do Iluminismo (a tradução preferiu o termo Esclarecimento), que na visão do autor confundiu a emancipação humana com o triunfo do mercado e do fetiche da mercadoria que cega os seres humanos. Kurz investe especialmente contra os defensores da chamada democracia ocidental e também contra largos setores da esquerda, que na sua visão apresentam a ideologia mortífera do mercado como uma ideologia de progresso que aponta os rumos para um maior bem-estar social. Diz a apresentação: “Desde 11 de setembro, os ideólogos da ‘democracia e da economia de mercado’ evocam, mais confiantes do que nunca, suas raízes na filosofia do Esclarecimento; em 2004, o ano de Kant, o Ocidente comemora juntamente com o pensador da razão burguesa o seu domínio mundial. Esqueçam a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, esqueçam a crítica ao eurocentrismo; até mesmo uma parte da esquerda aferra-se a uma suposta ‘promessa de felicidade burguesa’, enquanto a globalização do capital devasta o planeta”. Também de alto nível é a obra A dádiva – como o espírito criador transforma o mundo, do pensador americano Lewis Hyde, lançado pela Civilização Brasileira. É uma crítica da economia do mercado do ponto-de-vista da situação dos artistas, considerados como pessoas que querem doar suas criações aos demais seres humanos, e não lucrar com elas. Afirma Hyde: uma obra de arte “pode ser vendida no merca-

do e continuar a ser uma obra de arte. Porém é verdade que, no comércio essencial da arte, uma doação se efetua entre o artista e o público. Por outro lado, se é possível dizer que quando não há doação não há arte, é verdade também que se pode destruir uma obra de arte ao convertêla em mera commodity ou mercadoria. É assim que penso. Não digo que uma obra de arte não possa ser vendida ou comprada, o que afirmo é que seu componente de pura doação não se enquadra no conceito de mercado”. Finalmente, entre tantos lançamentos importantes neste início de ano para quem quer construir uma visão pessoal de mundo mais elaborada e mais consciente, temos Integralismo e hegemonia burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (1945-1965), do pesquisador Gilberto Grassi Calil, publicação da Edunioeste. O PRP do título é o Partido de Representação Popular, herdeiro da Ação Integralista Brasileira dos anos 1930 e, como ela, liderado, enquanto durou – da redemocratização após o Estado Novo até a extinção dos partidos pelo regime militar – pelo teórico e militante Plínio Salgado. O autor procura demonstrar como a retórica anticapitalista do integralismo se transformou, nas mãos do PRP, no pós-Segunda Guerra Mundial, numa defesa dos valores da burguesia mais conservadora. A introdução diz que o PRP se manteve “atuante e organizado, com uma intervenção sistemática e efetiva na defesa de posições conservadoras, anticomunistas e antidemocráticas, reforçando assim a hegemonia burguesa e a manutenção da ordem vigente, ao mesmo tempo em que incidia no sentido de imprimir contornos particularmente antipopulares e excludentes”. Um longo caminho entre o discurso anticapitalista e anti-imperialista do integralismo até o conservadorismo burguês do PRP. Em suma, quatro lançamentos importantíssimos justamente nestes tempos em que o capitalismo se torna ainda mais destrutivo em sua ânsia de autoconservar-se.

Renato Pompeu é jornalista e escritor. www.renatopompeu.blogspot.com rrpompeu@uol.com.br>

abril 2011

caros amigos

45

05.04.11 18:57:29


-claudius_169.indd 46

05.04.11 18:49:26


! s a c n a B s a n Jรก www.lojacarosamigos.com.br

-anuncio47_169.indd 47

07.04.11 12:24:30


Música Teatro Dança

Português Matemática

Artes Visuais Inclusão Digital

A CSN investe em projetos que visam à transformação social por meio da cultura. O Projeto Garoto Cidadão atende crianças da rede pública de ensino em situação de vulnerabilidade social e é desenvolvido pela Fundação CSN em parceria com as prefeituras de Araucária(PR), Arcos e Congonhas (MG), Itaguaí e Volta Redonda (RJ) e Mogi das Cruzes (SP). No contra-turno escolar, crianças e adolescentes praticam atividades culturais como dança, música, artes visuais e teatro, e têm aulas de português, matemática e inclusão digital, além de recreação. Em 2010 o projeto atendeu 1904 crianças e, em 2011, chegará a 2300 atendimentos. Conheça mais sobre o Garoto Cidadão e outros projetos da Fundação CSN em www.fundacaocsn.org.br

-anuncio48_167.indd 44

07.02.11 18:11:55


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.