Utopia #1

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“Basta de verdades baratas. Arrancai o ranço do coração! As ruas são nossos pincéis e paletas as nossas praças. No livro do tempo ainda não foram cantadas as mil páginas da revolução. Para a rua. futuristas, tambores e poetas!” __Vladimir Maiakóvski __Foto Francisco Milhorança

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Esse é um projeto que nasce da paixão pela poesia. Poesia escrita em versos e em prosa. Poesia da imagem, dos traços, do design, da arte. Além de nossos trabalhos, teremos sempre alguns mestres visitando algumas páginas. Aqueles que com suas obras nos ensinam e preenchem nossa vida, nos convidando sempre a (re)visitar nossos sonhos. No mais, queremos que essa revista seja sinônimo de alegria e leveza. E, se possível, inspire tantos quanto for possível. Aproveitem! Inspirem-se!

Francisco Milhorança & Teresa Catarino

Fotos | Textos Francisco Milhorança e Teresa Catarino Edição de arte e diagramação Francisco Milhorança

milhorancadesignartesvisuais.com

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Onde fica ocentro da Terra?

Desde sempre ele acreditara que tudo o que existe, inclusive ele mesmo, era obra de Deus, que em sua infinita sabedoria e poder criara o mundo e todas as coisas e seres que nele existiam. Essa certeza lhe permitia viver sua vida sem sobressaltos, resignado até. Afinal, ele não passava de uma pequena peça que compunha toda a criação divina, e não cabia nenhum questionamento quanto a isso. Ao contrário, sentia-se orgulhoso em ser escolhido para fazer parte de tal obra, pois mesmo o mais insignificante parafuso da engrenagem é imprescindível para o perfeito funcionamento da máquina. Para Juliano, tudo gravitava em torno de Deus, o centro de todas as coisas.

Carla era uma moça bonita, rosto delicado e um jeito discreto – quase tímido – de andar. Naquela manhã tomou um café preto na padaria e rapidamente se dirigiu ao ponto de ônibus. Tinha uma entrevista para um emprego e estava um bocado ansiosa. Professora de Geografia, fazia um tempo que fora dispensada da escola municipal aonde lecionara como substituta por três meses. Desde então já passara diversas vezes por essa situação, sem sucesso. Carla adorava ensinar, principalmente sobre o Planeta e suas conformações subterrâneas. Costumava dizer que a Terra é como um ser, e os vulcões inativos seu coração, ou melhor, corações. E quando entram em atividade, dependendo da magnitude, pode significar uma leve taquicardia ou um ataque cardíaco fulminante. O centro vital reagindo a um esforço excessivo do resto do corpo. Lembrava com um sorriso de como era fantástico sermos regidos por um ser tão complexo e perfeito. E de como era vital que cuidássemos melhor dele.

Maria está sentada em sua poltrona. Com o controle remoto na mão, vai trocando os canais da TV em busca de algum filme, de preferência algum com Tyrone Power, seu ídolo de mocinha. Ela gosta muito de assistir televisão. Ainda mais agora, que quase não consegue andar sozinha. Antes ela ainda ia na igreja, assistia a missa e encon-

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trava antigas amizades do tempo em que era Filha de Maria. Mas aos poucos as amigas foram partindo e ela já não tinha forças pra sair de casa. Seus filhos contrataram um pacote de TV a cabo com muitas opções de programação e assim ela preenchia o dia – pela manhã a missa do Padre Marcelo, depois um filme daqueles sem violência, à tarde Vale a Pena Ver de Novo – e assim seguia. Sempre confortavelmente sentada em sua poltrona. Adorava quando um de seus netos ou algum filho aparecia para assistir com ela. Não precisava falar nada, bastava ficar ali, ao lado. Quando muito, uma explicada no enredo do filme. Afinal, o que valeria na vida mais do que esses momentos? __Francisco Milhorança

ONDE FICA O CENTRO DA TERRA? Não fica...justifica submerge no insólito poema que nada traduz viaja para longe...voa plano e segue o horizonte largue pelos cantos as velhas bocas murchas os olhares pasmados e sem viço as mãos pálidas e sem vida. Não fica Aprofunda o fio solto a métrica pobre e o mar revolto Seja forte...agarre A corrente não segura... arrasta! Um belo dia de sol areia quente vento morno velas içadas... Não fica A velha rica pasmada e triste diz adeus O que se perde aqui logo ali se recupera Quimera Já nem sei se viajo ou sonho se fico ou se parto Terra minha!! retornei Serei pó ... no centro da terra que me espera.

__Teresa Catarino 5


e tudo se esvai lâmina cega não tem como na veia seca o pulso aberto o amor preenche os vazios água correndo pelas frestas não sangra a alma vazia o que era desolação um belo oásis se presta escapa e o que sou e o meu deserto senão casca não é mais obstáculo o sol ardendo no céu atrás daquelas dunas não aquece mais os ossos seu olhar apenas cega os olhares o espetáculo a leveza do ar nas areias que deixo pelo caminho pesa insuportável o rastro de quem fui em um simples sopro numa estrada a vida sufoca que ainda não enxergo um aceno seu espero por mim um sonho __Francisco Milhorança

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Mundo de lá, volte aqui... Explique a metáfora da lua roxa, rubra, branca... Explique a cor que não vejo, mas queria... Ser a atriz da estória mal contada: aquela que abraça árvores e chora luas! Cegueira injusta mas se assim é...não volte e não me diga nada! no mundo de cá sonhar é preciso!

__Teresa Catarino

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solidariedade

“O mineiro só é solidário no câncer”. Naquela manhã ele acordou com essa frase na cabeça. Lembrava dela, era de um filme – qual era o nome, mesmo? Tinha uma professorinha, que na verdade era puta… sim, era do Nélson Rodrigues, aquele velho que fez um monte de histórias cheias de sacanagem… qual o nome, mesmo? Ele vira o filme na TV, no Corujão Nacional, há um tempão, nem lembrava quando. Enquanto o café subia e o pão esquentava na tostadeira – pela manhã, nada supera um café com leite e pão na chapa – a frase continuava passeando na sua cabeça. “O mineiro só é solidário no câncer”. Ela insistia, agora entrava até pelos fones de ouvido, no lugar das músicas que sempre escutava durante o percurso do ônibus até o trabalho. Nunca se preocupou com a frase. Aliás, nem entendera muito o que o personagem do filme quis dizer quando falou isso. Não lembrava de nenhum mineiro na história. Mas a Lucélia Santos tirando a roupa, hummmm... essa sim, aquela safada. Na saída pro almoço, uma manifestação do MST travando o trânsito dos carros e das pessoas. – Esses caras são muito folgados… querem tudo de graça. E a gente quem paga, olha só, tá tudo bloqueado. À tarde, ainda irritado com o almoço tumultuado, a frase continuava passeando na mente. Olha a todo momento para o relógio, como que tentando adiantar os ponteiros para dar a hora de ir pra casa. – O dia hoje foi perdido, pensou. Às 20 hs, chave na fechadura, ele finalmente entra no apartamento. Se joga no sofá e com o controle remoto nas mãos liga a TV. Como toda noite, um pouco de telejornal antes de tomar o banho e jantar. Na telinha, cenas de refugiados na guerra do Oriente Médio. – Coitados. E ninguém faz nada… murmura, com os olhos colados nas imagens de famílias fugindo de bombas e um pai desesperado carregando nos braços seu filho morto. Muito impactado, corre para o notebook atrás de alguma informação para poder ajudar aquela gente. Entre links de notícias do conflito e protestos nas redes sociais, nem se deu conta que já a algum tempo a frase deixara de perturbá-lo.

__Francisco Milhorança 8


Geometria

Vazio esparso e elevado longe a alma perdida se atira da janela SupĂľe-se ave de rapina... triste sina! Findou o tempo e quem o mediu, mediu e disse: aprisionou as nuvens e foi ter com elas... Hoje? Sonha esquadros __Teresa Catarino

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Silêncio... há névoas cobrindo a face e impedem a flor de brotar, desabrochar e ser novamente cheiro. Aroma com tempo escameado. Não há jeito...há silêncio! O velho mutante que esfacela e redime; nada há. O fio gigante de água goteja 10


no rio que lacrimeja no espelho que agora mostra nua a alma vazia. Não há jeito; fez-se peito e já não bate... há silêncio e assim partiu a alma mais leve! __Teresa Catarino | Foto Júlio Aires

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Nós invisíveis aprisionam o vento e amarram sujeitos perdidos e banidos do tempo. A prisão aqui é escolha... tenho asas de borboleta __Teresa Catarino

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Pegou o vinho tinto seco na geladeira, abriu a garrafa e deixou-o na mesa, respirando. No fogão, um risoto de funghi quase pronto. Sentia-se bonita naquele vestido vermelho que comprara durante o almoço. O tecido era macio e tinha um decote sensual nas costas. No pescoço, o colar com pingente de madrepérola, que fora da mãe. Mesa posta, serviu duas taças de vinho. Olhou o risoto, estava no ponto. Hora de comer – aprendera com a mãe que risoto se come assim que fica pronto. Ergueu um brinde e provou o risoto, com um leve sorriso de aprovação. Estava saboroso. Como sempre. Comeu e bebeu e imaginou sentir-se feliz. Na outra ponta da mesa, uma taça com vinho e um prato servido lhe faziam companhia. Como sempre.

DUAS VEZES SOLIDÃO

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A festa estava agitada, muita bebida, muita gente. Mesmo com algumas taças de champanhe e a companhia dos muitos amigos ali com ele, não conseguia espantar o tédio que parecia impregnado, como uma segunda pele. Notou de repente um belo par de olhos que o seguia desde o outro lado da sala. Desvencilhou-se dos amigos meio embriagados, atravessou o salão e parou diante daqueles olhos que o atrairam. A festa não terminaria ali. Levantou-se cedo – na verdade nunca conseguia dormir a não ser sozinho – e vestiu-se com cuidado para não acordar sua companhia que dormia profundamente. Preferia sair assim, tranquilo e sem rodeios. Sem tempo de passar em casa, o jeito era ir direto para o escritório. No carro, uma música para animar e tirar aquela sensação de vazio. Nunca funcionava.

__Francisco Milhorança

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etérea esperando por ti nos braços da bruma densa que envolve minha alma e o coração me turva Tu não viestes, porém e diante de tua não presença me atirei ainda mais nessa branca transparência sem imaginar que eras tu em tua etérea essência tingindo de saudade a ausência quem me abria os braços e minha alma recebia __Francisco Milhorança 14


s a t r a C o t n e V de Riscado muro com mensagens de paz... perdida... Hoje a entrega se evadiu neste tempo que suponho nunca existiu Me perdoe a espera Não temos entrega! Aquela mensagem riscada além de largada e sem juízo fez-se pó extraviada com o muro que ruiu __Teresa Catarino

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A banda O lastro da porteira não avisa – Quem é ela que se avista da janela? Não segue passos tortos e não tem rima E pula cerca elétrica da esquina Numa possível soleira surrada de menina... Veste, reveste e testa o caminho Sem destino se ajeita ali – único ninho! Porto inseguro de coragem resumida Presumida segura e sem fiança Não avança Morre ali...duas rodas sem nenhum pé Ao ritmo da banda que passa. __Teresa Catarino Foto Francisco Milhorança

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espelho refletindo conjunto duplicado a pele enferrujada ressecada olhar que busca รกvido para a alma cansada um repouso viagem nas frestas de um tempo que nunca oferece retorno

__Francisco Milhoranรงa 18


Desfolha Camadas de pó Muitas... Escamas soltas e perdidas mal paridas pelo vento Tormento! Solte as cascas da tua ingênua santidade! e renegue agora qualquer grito oculte as trancas .... quase entrada sem nenhuma saída o surdo tempo já te espera és escravo... Lamento! __Teresa Catarino

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na pouca luz que resta a escuridão se reparte e os sentidos se aguçam bússola no coração meu norte é qualquer parte não importa a direção nestas idas e vindas na penumbra, se tanto me pego ali, num canto, esquecido de mim entregue à lembranças de uma vida que nem lembro se vivi apesar de ter ouvido que o oeste é the best aponto para o norte e, novamente no caminho vou ao encontro de minha sorte

__Francisco Milhorança

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SÚPLICA

Rasgo lento a seda roída do chapéu e rogo a Deus se é que existe em vários tons de uma fé sofista verde, azul ou cabalista... sete ou oito infinita Senhor! Quero voar pelo telhado quebrado mas... nesta hora não há vento. Qualquer malandro já teria fugido e sem ruído... estaria no céu Não sou malandro, Senhor! Quiça um diabo perdido... o que me sobra? Um rogo colorido um velho chapéu rasgado e um céu inatingível

__Teresa Catarino 22


__Fotos Francisco Milhoranรงa

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_Fernando Pessoa | Foto Francisco Milhoranรงa 24


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