Utopia #2

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#2

PREGO

O prego, a ponte, as janelas... Arautos em meio tom: Urgente. A semente nasceu pó. Nesse cenário crú, os sonhos tenros não vingarão Deserto!

Por certo, a secura da alma abalará o fio que sustenta o mundo débil, frágil Exangüe se entrega Morte ao rei sem nenhum súdito...


Imagens... versos, prosa... um lugar! Utopia navega em luz, sombras e cores diversas. Baila manhosa... leve e solta. Utopia do querer ser. E é. Nesta edição o grande poeta português Joaquim Pessoa nos visita e questiona: “Ainda há por aí alguém que goste de poesia?! Ainda há por aí alguém que perca tempo a agarrar a poesia com as duas mãos? Ainda haverá poesia por aí?” Nós sempre ganhamos tempo com a poesia. E você, que nos lê agora?

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Francisco Milhorança | Teresa Catarino


Fotos | Textos Francisco Milhorança e Teresa Catarino Edição de arte e diagramação Francisco Milhorança Capa poema Teresa Catarino foto Francisco Milhorança

milhorancadesignartesvisuais.com

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O tosco conforto em que vivemos faz-nos aceitar o inaceitável, pedir dispensa de pensar e utilizar apenas os pensamentos dos outros como roupa em segunda mão. E enquanto o resto do mundo toma o pequeno-almoço, o poeta ajuda-se a si mesmo tentando com velhas palavras um discurso diferente, tão novo quanto possível, mastigando os caules das palavras como um coelho devoraria a relva dos jardins dos melhores palácios. Ainda há por aí alguém que goste de poesia?! Ainda há por aí alguém que perca tempo a agarrar a poesia com as duas mãos? Ainda haverá poesia por aí?

__ Joaquim Pessoa | Foto Francisco Milhorança 4


Dinâmica

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Menos te mpo inseguro pulso e reflexos tardios fala mansa...menti ras que sus tenta m a correnteza Crenças que subtraem e escrevem as horas que res ta m A verdade? Menos, sempre menos __Teresa Catarino

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Meia hora ...e quase esparsa gravetos longos e afiados pequeno fulgor ritmado que por ora, apagou-se... Foi-se o tempo Sentimento suspenso no fio do cordel... dão conta de que o perdido Não faz falta Um trisco e nada acende? nenhum amor e pouca ilusão 6

Meio lume sem fôlego e por pouco...muito pouco e só por hoje ainda vive. Isto é nada! Basta-me o vento que serve às vontades e desejos sopra com força o lume do sentimento que teimoso ainda balança no cordel da vida mansa __Teresa Catarino


Por universo entende-se grão passado marcado com cores quentes naquela velha silhueta de alma em corpo errante. Debilitado, exausto e finito Presente sem norte Menos forte que a escrita no chão escaldante Futuro? Adiante...distante como o velho olhar fincado em areia que se move e já não movimenta minha espera parado no tempo esqueceu...só restou a memória __Teresa Catarino

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ร CARO

__Francisco Milhoranรงa

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Coração encolhido na vitrine Reserva de felicidade Olhar sedutor acompanha a vida que passa Corpo expandido na cabine Mise en scène da vida conjugada __Teresa Catarino | Foto Francisco Milhorança

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f e i t i ç o puseram um feitiço em mim não sei se por maldade, inveja ou medo para que eu não mais vivesse para que de mim me esquecesse para que cedo, em vida eu morresse garras leves e afiadas minha alma rasgaram e dores nela fincaram gazes invisíveis envolveram meu coração de mim mesmo prisioneiro me tornei e aos meus próprios carcereiros docilmente me entreguei e tudo o que era meu deixou de sê-lo acreditando que o amor encontrava na verdade nunca pude tê-lo puseram um feitiço em mim trabalho feito no mar mas o que o mar trouxe

o mar de volta levou e da minha alma toda a maldade lavou seu sal que recobre meu corpo minha vida renovou lanças retiradas da alma cicatrizada lavo dos olhos a poeira acumulada numa vida inteira aos poucos reconheço de novo minha história e a lembrança de meus enganos ressurge no espelho da memória guardado no fundo do peito o coração agora livre de encantos a ti ofereço, meu amor cigana que me resgatou peço que dividas comigo aqui ou em qualquer dos quatro cantos o que ainda me resta viver nesta festa

__Francisco Milhorança 10


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QUE HORAS TEM? O tróleibus descia lentamente a Rua Augusta. A agitação das últimas compras de Natal já passara. O comércio já baixara as portas há algum tempo, quase nenhuma pessoa na rua. Suavemente, o ônibus deslizava pelo asfalto, como que preocupado em interromper aquele silêncio. Era um modelo antigo, dos anos 50, um dos primeiros a circular na cidade. Suas pequenas janelas de cantos arredondados que abriam apenas metade de seu vidro, tornavam a circulação de ar algo raro. Seu interior era baixo e apertado. Mas era lindo. 12

Dentro dele, poucos passageiros, visivelmente impacientes com a vagareza com que cumpríamos o trajeto. Talvez atrasados para a ceia com suas famílias ou na casa de algum amigo. – Cobrador, que horas tem? A pergunta veio numa voz lamentosa, de uma senhora sentada num dos bancos da parte dianteira do ônibus. Era uma mulher obesa, roupas bem simples e já bastante gastas. Na cabeça um lenço listrado espremia os sujos cabelos ainda pretos, forçosamente acomodados dentro do pano. Nos pés, sandálias de dedos que traziam o peso da sujeira de um dia que insistia em não terminar. Carregava pesadas sacolas com muitos embrulhos e sacos de plástico com o que parecia ser comida (sua ceia, talvez?).


Parecia muito cansada, um ar de derrota na face. Contrastava com os outros poucos passageiros, alinhados, um ar de banho tomado, prontos para celebrar. – São 11 e 35 – respondeu secamente o cobrador. A mulher obesa de lenço na cabeça soltou um suspiro, um quase lamento. O tróleibus continuava sua descida em linha reta, agora ladeado por lojas de carros importados e mansões guardadas por altos muros e portões de grades desenhadas. Os poucos passegeiros iam ficando pelo caminho.

No banco lá da frente, a cabeça com lenço listrado da mulher obesa agora pendia um pouco para a frente, como que sentindo o peso do cansaço. Seu destino provavelmente incluia ainda mais um outro ônibus. A ceia, celebração, ou o que fosse que a esperasse, teria de ser paciente pois ela não chegaria em tempo. – Cobrador, que horas tem? – 11 e 50 – respondeu ele, com o mesmo desinteresse anterior. A mulher obesa de lenço na cabeça apenas soltou mais um suspiro.

__Francisco Milhorança 13


a vida me sorri com sua boca banguela e eu imóvel diante dela desisto de tentar decifrá-la me rendo e aceito seu sorriso e tudo o mais que ela oferece (inclusive um leve mau humor esporádico): a luz macia de uma tarde de primavera que abraça os muros do passado e abre caminho para o futuro inevitável, incerto como uma manhã quente de verão __Francisco Milhorança

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Ponto de fuga Muita fumaça encobre o olho e faz verdade parecer verdade! Nenhum engano... até os anjos correm no escuro e os cegos pulam de cima do muro e ninguém enxerga a própria sombra Visão... Um medo fugaz e sem vergonha que revela o que ninguém viu ou verá... ponto negro da minha estória contada apenas para surdos __Teresa Catarino

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Insano sonho meu medo real que furta risos e lágrimas e supõe encontros de formas que invento revisito e espanto! Surpreso...apegos de vento encham de sol o vazio que resta na cor indefinida dos meus olhos... viole os sentidos... retenha comigo a visão dos espaços perdidos permita-me um sorriso roubado e deixe-me descobrir quem de verdade se olha no espelho? O palhaço? Eu? Continuo com medo... __Teresa Catarino pintura Francisco Milhorança 17


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As fronteiras se avizinham vejo a guerra... em olhos mudos a girar Secretos sonhos postos na mesa sem ninguém para sonhar Gira o tempo... gira o peito de quem nunca se perdeu velho medo que encontro nesses trilhos de morfeu Veja agora aquela ali que se prende à liberdade vai embora sem mais nada nesta roda de inverdades... Salta a luz sobre os escombros e faz ver suas feridas mal suporta o grande corpo que se joga pelo ar esta lida lhe transporta ao finito que é amar Veja a guerra ou Rode a vida ... pois que a lida é de matar __Teresa Catarino

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ALMA GITANA Relevo de flores mudas espaço com ares de poesia garantia de vida? menos sofrida, talvez! Invejas gordurosas e raivas fritas em óleo velho sintomas de tristeza passada. A velha carroça arcada esconde sutil a leveza com que voa branca, alva, transparente a alma gitana. Sua sombra? doa-se inteira ao riacho que corta a terra fria e segue livre o seu caminho Assim és! __Teresa Catarino

Imaginário pedras pisadas pelo tempo e temores também! nada se ouviu nunca mais voltou nenhum daqueles que partiu desconhecido medo verdadeiro o mal que nunca se espelha deixa a mente atenta desperta a alma inquieta... o real perigo está no medo de pisar o caminho gasto e trilhado pelo tempo que escorrega e anuncia as marcas do que foi e do que ainda está por vir __Teresa Catarino Foto Francisco Milhorança

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E a luz se fez fraca, tímida... Um pouco distante O bastante pra se sentir segura Sombras fugidias se movendo num suspiro de claridade Serão meus sonhos em busca de seus caminhos? Olho através da janela e a luz não se abala Já não teme, apenas observa Encantada em apenas ser um pequeno farol ilusão a guiar sonhos perdidos

__Francisco Milhoramça

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Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não se dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta, é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta. __Fernando Pessoa | Foto Francisco Milhorança 23


__Paulo Leminski | Foto Francisco Milhorança

“pelos caminhos que ando um dia vai ser só não sei quando (...)” 24

Uma oportunidade gostosa pra falar de fotografia, fazer novos amigos e saborear um delicioso café. Visite a página e se informe sobre os próximos encontros


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