FOTO » TEXTO » POESIA » ILUSTRAÇÃO » #3 » ANO 1 » 2017
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E cruzam-se as linhas no fino tear do destino. Tuas mĂŁos nas minhas Guilherme de Almeida
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Francisco Milhorança
Desatando os nós da vida e arrastando sentimentos nesse grande oceano da nossa existência. Viver não é preciso e em nossa rede cabem sempre sonhos diversos. Imagens e palavras que nos distinguem e permitem sentir e acreditar, pois só isso nos justifica. Teresa Catarino
Francisco Milhorança
Fotos | Textos Francisco Milhorança e Teresa Catarino
Edição de arte e diagramação Francisco Milhorança
milhorancadesignartesvisuais.com
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Cruzou a linha de chegada! na bagagem amontoada vieram palavras frias e cortadas pelo medo admitir a existência pífia quebrava o vidro que o protegia. Quem diria? O velho monge de hábitos nobres chegou nú ao seu destino deixou pra lá vontades de mártir e se excluiu do quadro negro. Sua vida não precisa de resenhas... Expõe feridas sem cicatriz e sequer sabe medir o espaço que o acolhe Chegou onde? espera o que? Olho no olhos espelhos da alma vê de longe, bem longe, quase infinito o menino que partiu Tão miúdo e sem destino e morreu de cansaço nos braços do palhaço de barbas brancas enfim... chegou no céu! Teresa Catarino
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Lรก fora A chuva fria Cai intensa Sobre a mesa Francisco Milhoranรงa 6
Nas asas da borboleta Vai-se embora Toda a tristeza Aqui dentro A luz do sol Brilha imensa
AnUncio Permutam-se: olhos de ver sonhos de inventar lágrimas de beber e sorrisos de voar! Aceitam-se: Amores sem razão liberdades sem porão e fermentos para o sim e para o não! Doam-se: Dores de achar medos de chegar e certezas mal paridas! Compartilham-se: Um pequeno ser errante vibrante e sem juízo. Anúncio perdido no ventre semente... somente! Teresa Catarino Francisco Milhorança
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abandono Única torre De barro queimado, rachado Sem santo para ser rezado Álbum morto e sem história Folhas em branco Um vaso Flores murchas e sem perfume O maior tesouro já aqui depositado O canto dos pássaros Longe... muito longe Nostalgia da guerra sem soldado Sem armas e sem bandeira Fileira! Velho herói sem medalhas Guarda com honras a única homenagem: Soldado desconhecido Perdeu-se da guerra e de si. Teresa Catarino Francisco Milhorança
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Delírios
Naquela manhã, como sempre, seguia sua rotina. Saíra cedo para o trabalho, balançara no ônibus por uma meia hora e encarava agora a pequena distância a pé até o escritório. Sempre cortava caminho passando por dentro de uma galeria comercial. Gostava de olhar as vitrines das lojas ainda fechadas, em especial uma de roupas jovens, com manequins na vitrine e uma decoração que lhe chamava muito a atenção. Teve a impressão que um dos manequins, uma moça, piscara pra ele. “Deixe de bobagem”, pensou. “Acho que ainda estou dormindo”. Chegou no escritório e foi direto à copa tomar um café duplo. Sem açúcar, pra acordar mesmo. Na outra manhã, a impressão deixou de ser apenas imaginação. Ela piscou pra ele e virou levemente a cabeça, seguindo-o com o olhar até completar a travessia e sair pelo outro lado da galeria. Aquilo mexeu com ele. Mas, se no início chegou a pensar em ir à um psiquiatra, logo começou a achar a coisa toda no mínimo interessante. Afinal, não era todo dia que literalmente virava a cabeça de alguma mulher. E, naquela vitrine, ela era a mais linda, com seus cabelos negros lisos e uma boca carnuda. Além dos olhos, pretos e vivos. O rapaz que ficava ao seu lado mal aparecia diante de seu sorriso luminoso. E assim seguiram os dias seguintes. Sempre mais ansioso pra chegar, querendo que o ônibus andasse mais rápido e acelerando o passo depois de descer. Mas fora a troca de olhares, não conseguia se aproximar dela. Até que, passado mais de mês, tomou coragem e foi abordá-la. Era um domingo e a loja estava com muita gente passando entre as araras de roupas. Aproximou-se discretamente, por trás, já que ela estava trabalhando e não podia se virar para o interior da loja. Num movimento como se estivesse verificando detalhes da roupa que ela usava, tocou-lhe leve e suavemente nas costas. O coração disparou e sua mão tremeu. Saiu de lá decidido a um encontro mais romântico.
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Naquela madrugada voltou à galeria e com um tijolo arrebentou o vidro da vitrine, fazendo disparar ruidoso alarme. Pulou dentre restos de vidros presos nos bastidores de metal e quando ia pegá-la pelas mãos foi duramente golpeado na cabeça. No chão, antes de perder completamente os sentidos, pode ver seu agressor também golpeá-la na cabeça. Um golpe violento, que descolou a cabeça do resto do corpo. Apesar do alarme, a polícia demorou a aparecer. Já era dia quando chegaram no local e se depararam com uma cena um tanto bizarra. Um homem morto dentro da vitrine da loja, agarrado a um manequim sem cabeça. Talvez tivesse flagrado um ladrão e este o atingira antes de fugir. Ou ainda podia ser ele um desastrado ladrão que se enrolara ao quebrar o vidro na tentativa de invadir o estabelecimento. Enquanto os policiais cobriam o corpo e tentavam afastar os curiosos, uma funcionária da loja recolhia os restos do manequim sem cabeça e também o outro manequim, o masculino, todo sujo de sangue. Estranhamente, ele parecia ter uma expressão irada no lugar daquele sorriso padrão de fábrica. Em uma das mãos, um pedaço do tijolo também sujo de sangue.
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Corte profundo Sulco de sangue Imaginário Jorro perfeito Lembra do seio Que jorra leite Imaginário Não há sustento... O ventre mirrado O olhar aerado A pele em migalhas A fome some! Junto carrega a vida Perdida no pulso Do último jorro Teresa Catarino Francisco Milhorança 12
Corte profundo Sulco de sangue Imaginário Jorro perfeito Lembra do seio Que jorra leite Imaginário Não há sustento... O ventre mirrado O olhar aerado A pele em migalhas A fome some! Junto carrega a vida Perdida no pulso Do último jorro
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Olhos vendados Mortos fardados Cruzes de além... A saudade assim posta Sem bancos na mesa Mais perguntas sem resposta Solidão: eis mais um refém! Ficou tão distante aquela lembrança... Todas as trevas ao alcance das mãos. Construção que principia espera E acaba num jogo sem vencedor Sem méritos e sem luz Carrego lenta e pesadamente Uma vida inteira Só de poentes! Teresa Catarino Francisco Milhorança
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Aquele vento de lua cheia Bate certeiro na nuca e me acorda do sono profundo Desperta sentidos latentes e quase difusos De uma existência pálida e rapineira A lua inspira mudanças e provoca vontades Retira as manchas e o bolor do pensamento Produz uma entrega incondicional e abre as portas do porão, Coração! A coragem? O que é? Está no mesmo balaio que o medo... Embrulhados, ambos, para presente! Tudo o que tenho... o meu dote mais valioso: Um embrulho cheio de medos e coragem fugidia Uma vadia no porão e uma lua de rapina Vento, vá e leve a lua Hoje só quero dormir Teresa Catarino
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num domingo de futebol
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spremida no ônibus no meio daqueles caras suados, bêbados, que gritavam e cantavam o tempo todo, ela não parava de pensar no que faria com ele quando o encontrasse. Quatro dias sem dar as caras em casa era demais até pra ela, que sempre suportara as chegadas de madrugada, o cheiro da bebida e perfumes fortes, o humor instável e muitas vezes violento. Compensava tudo com seu beijo quente, a maneira como lhe pegava na cama, penetrando-a com força e gana, deixando-a entregue. Só que ali, empurrada e apalpada por aqueles caras feios e fedidos, essas lembranças não tinham espaço no meio da raiva. Ao descer do ônibus e dar de cara com aquele estádio gigante, lembrou-se imediatamente da reação de sua amiga quando lhe contou seu plano. – Está louca? Como vai encontrá-lo no Morumbi lotado? Aliás, nem sabe se ele estará lá. Ela sabia, não tinha dúvida. Ele não perderia aquele jogo por nada, sua fidelidade ao time do coração era maior que tudo.
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O calor era forte, mas a multidão nas ruas ia apressadamente na direção das entradas sem demonstrar qualquer incômodo. Enfiou-se no meio daquele mar de gente e deixou-se levar. Passada a revista da policial, estava dentro. Pôs-se então a andar pelos degraus já tomados pelos torcedores, tentando ignorar os elogios e olhares gulosos que provocava. Andou muito e nada. Esgotada pelo calor e confusa por tantos rostos, que se misturavam e formavam um grande caleidoscópio de caras e bocas, encostou ao lado de um dos bares nos corredores de acesso. Suada e cansada, pensava na humilhante situação em que tinha se colocado, indo atrás de um homem que não estava nem aí pra ela. O jogo estava no intervalo e uma multidão apareceu nos corredores atrás de uma bebida pra aplacar o forte calor. Nessa hora, um sujeito grande, bastante suado e com uma camiseta verde amarrada na cintura, se aproximou oferecendo uma cerveja. Sem pensar muito ela pegou o copo descartável e tomou quase de um gole só.
— Veio torcer sozinha, perguntou o sujeito grande e suado, mas também bonito (percebia agora num olhar um pouco mais demorado). Novamente sem pensar, ela foi contando o porque de estar lá e da loucura de achar que encontraria alguém em um estádio com 80 mil pessoas. — Ora, quem disse que não encontrou – devolveu na lata o sujeito grande, suado e bonito. O jogo recomeçou e o bar foi esvaziando. Ali, no canto, o agora casal se entrelaçava em carinhos e beijos cinematográficos, quando ela sentiu um cutucão nas costas. — Que porra é essa? – berrou um cara grande, vestindo uma camiseta branca empapada de suor. Era o seu marido. — É só eu sair por um tempo que tu já se enrosca com o primeiro macho que aparece? — E ainda por cima inimigo. Antes que se desse conta, sentiu a mão pesada estalar no rosto. Naquele instante teve a firme certeza de que era amada. E isso era tudo que importava.
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Serpenteia minha casa Cheira o po que ainda ha Rodopia de saudade E marca com luz sem claridade Todos os passos que ainda dara Abra a janela.. Entra suave e sem pedir Serpenteia minha casa Antes que amanha Um alvo tardio lhe apareca Tenha pressa Serpenteia minha casa Abrace forte e destrua Malditos sonhos grudados nas paredes No telhado e nas portas Serpenteia a casa toda Mas nao feche a minha janela Uma alma no escuro nao sente medo A cegueira me cura disto Transporta sem dor E me ergue solene No pequeno parapeito Que me leva ao infinito Seja bem vinda A casa e sua..
Vida mansa?
Ele todo Mar de lodo Nós de ferro, peso morto Cansa... Espera o trem, ele vem Pra se esticar Descansa Vida mansa! Rema duro nesse mar De trilhos soltos Espelhos de suor Reflexos de vapor Descansa Vida mansa O trem só segue Se o esqueleto Se dobra à lança Não se dobre Vida mansa Descansa Mais valia Ter fundado um partido
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Olhar atento Nem tanto A chave que entra Na fechadura Não abre a porta Quem se importa? Pela janela Acompanha o voo do pássaro Cortando o espaço Lá embaixo As ruas frenéticas, movimento Então o corpo Se entrega à gravidade E no encontro com o asfalto Um som seco e alto Que não causa sobressalto Lá embaixo As ruas continuam frenéticas
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Alice: Quanto tempo dura o eterno? Coelho: Às vezes apenas um segundo. Lewis Carroll, in Alice no País das Maravilhas
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