CAMILA DE OLIVEIRA ALVES
FENDAS DO COTIDIANO: Intervenção urbana no centro da cidade de São Paulo
Trabalho de conclusão de curso apresentado como parte dos requisitos necessário à obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário SENAC. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luís Silva
São Paulo 2019
AGRADECIMENTO Cinco anos, foi o período que passei entre as salas e corredores brancos, mas esses lugares não podem contar as histórias que vivi, as amizades que construí e o todo conhecimento que levarei comigo pra sempre. A educação é transformadora e a arquitetura também. Agradeço em primeiro lugar a minha família por todo apoio e em especial a minha mãe Jô, que sempre acreditou em mim, me aconselhou, incentivou e me guiou nessa jornada, que não acaba aqui. Aos meus amigos, que por todos esses anos estiveram comigo, nos momentos de trabalho, de festas, euforia, desespero e de tristeza. Que me ouviram e puderam ser ouvidos. Obrigada, Carol Pimenta, Natalia Paixão, Gabriela Gomes, Thais Campus e Jennifer Cintra além dos inúmeros nomes não citados aqui, vocês fizeram parte dessa história e contribuíram com ela, seguiremos juntos enquanto amigos e colegas de profissão. Não posso esquecer também da Técia Martins e Paloma Nonato que estiveram sempre por perto. Ao Raphael Bittencourt, um agradecimento especial, pela paciência, por me ouvir e me ajuda nos dias de maior angústia e dúvidas. Deixo aqui, minha admiração e gratidão a todos os professores com quem tive o prazer de aprender. Obrigada Valéria Fialho pelo apoio e sensibilidade nos momentos que mais precise. E nada mais justo que agradecer ao Ricardo Luiz, meu orientador, que teve paciência e atenção comigo até o último momento de produção deste trabalho, obrigada por partilhar seu conhecimento, por me fazer enxergar a cidade através do homem ordinário, por provocar em mim encanto pela alteridade urbana e por me fazer questionar o mundo. Por isso minha eterna gratidão a todos vocês. Este é meu último trabalho acadêmico do curso de arquitetura e urbanismo, mas apenas o começo. A educação me mudou, agora é hora de mudar o mundo.
ABSTRACT This work is based on methods of survey and territorial recognition of authors such as Michel de Certeau, Guy Debord and Georges Perec. The purpose of this research, through analysis and understanding of the daily practices experienced by characters and banal individuals of urban life in public spaces of downtown SĂŁo Paulo, is to foster and enhance urban life in the spaces of passage and transition belonging to the day to day. City day. The urban intervention project arises from the reading, reflection and understanding of these places. Its focus is to broaden the perception of visitors, revealing the identity of each place providing transformation and appropriation of spaces - which results in projects that qualify everyday practices, rescue human experiences and transform ordinary individuals into protagonists.
Keywords: urban intervention project, passages, ordinary look, daily life
RESUMO Este trabalho está fundamentado em métodos de levantamento e reconhecimento territorial de autores como Michel de Certeau, Guy Debord e Georges Perec. O objetivo desta pesquisa, através de análise e compreensão das práticas cotidianas vivenciadas por personagens e indivíduos banais da vida urbana em espaços públicos do centro da cidade de São Paulo, é fomentar e potencializar a vida urbana nos espaços de passagem e transição pertencentes ao dia a dia da cidade. O projeto de intervenção urbana surge da leitura, reflexão e entendimento desses lugares. Seu foco é ampliar a percepção dos frequentadores, revelando a identidade de cada local proporcionando transformação e apropriação dos espaços – o que resulta em projetos que qualificam as práticas cotidianas, resgatam as experiências humanas e transformam os indivíduos ordinários em protagonistas.
Palavras chaves: projeto de intervenção urbana, passagens, olhar ordinário, cotidiano
Figura 1: Fonte: Foto da autora.
SUMÁRIO Prólogo ........................................................................................ 11 Primeiro ATO - pé na rua .............................................................. 13 O cotidiano ............................................................................ 14 Área de estudo ...................................................................... 16 Pistas ..................................................................................... 18 O rastreio ...............................................................................19 O toque ................................................................................. 22 O pouso ................................................................................. 27 Segundo ATO - roteiros ................................................................ 39 Estudo de caso ...................................................................... 40 Paredes e pinturas - Intervir no personagem ........................ 42 Bambuzal + Fundão - Intervir no cenário .............................. 45 Huellas artes - Intervir na cena ............................................. 49 Terceiro ATO - o intervir ............................................................... 53 O reconhecimento atento ..................................................... 54 Calçadão Hospital Nove de Julho .......................................... 57 Praça Avanhandava ............................................................... 70 Escadaria da Rua Líbero Badaró ............................................ 82 Escadaria Vale do Anhangabaú ............................................. 96 Epílogo ................................................................................. 107 Listas de imagens ................................................................. 108 Referências bibliográficas .................................................... 110
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Figura 2: Fonte: Foto da autora.
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PRÓLOGO Este trabalho pretende investigar a dinâmica da vida cotidiana nos espaços públicos e refletir as formas de ocupação e apropriação. Toda ação habitual na vida humana consiste em elementos que compõem o cotidiano. Estes comportamentos estão presentes na vida urbana e em todo território, mas o olhar sobre a cidade nas circunstâncias que desenvolve o cotidiano é inconsciente. Por esta razão, foram estabelecidos métodos de reconhecimento e análise da área de estudo. A construção de todo conteúdo apresentado no primeiro ato foi levantada simultaneamente, por isso o processo de pesquisa não possui ordem fixa de investigação, mas sim fundamentação seguindo os princípios do livro ‘Pistas do método da cartografia’. Nas etapas de levantamento e aprofundamento foram adotados para análise da região estudada a ‘Teoria da Deriva’ de Guy Debord, que consiste em “perder-se” pela cidade como forma de reconhecimento, e o livro de Georges Perec, “Tentativa de esgotamento de um local parisiense”, no momento de investigação do cotidiano e outros autores que também influenciaram na compreensão teórica. Os estudos de caso também forneceram base projetual. O objetivo foi estudar diferentes projetos de intervenção que apresentassem o mesmo desejo: intervir em espaços pertencentes à vida urbana e cotidianas das cidades, com resultados que impactam no indivíduo (reflexão), no território (infraestrutura) e no cotidiano (movimento), classificados como: personagem, cenário e cena. Ainda que os três estudos apresentem o mesmo interesse, o método e a aplicação final são diferentes, enriquecendo o repertório das práticas projetuais. O projeto de intervenção pretende invocar os espaços de travessia no centro da cidade de São Paulo, com foco na transformação e apropriação dos locais, potencializando-os a ponto de quase esgotar os acontecimentos e práticas que existem nesses espaços.
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Figura 3: Fonte: Foto da autora.
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O COTIDIANO Cotidiano é um conjunto de ações, comuns e banais, que praticamos dia após dia. Esses acontecimentos ordinários, quando inseridos na metrópole, causam impacto na vida urbana e nas relações de indivíduos e território: carne e pedra. Na esfera da condição de ser urbano e das experiências cotidianas, notamos um personagem em destaque: o homem ordinário, um figurante diante de situações extraordinárias, um herói comum. Para análise e compreensão desse sujeito, segundo o historiador Michel de Certeau em seu livro “A invenção do cotidiano: artes de fazer (1990)”, precisamos descer, ir até a visão “baixa”, deixar de lado a perspectiva do urbanista e cartógrafo para estar em meio à multidão e assim poder vivenciar a cidade na prática. “Mas “embaixo” (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, Wandersmãnner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso. [...] Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracteriza as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra.” CERTEAU (1990, p. 170)
Os sujeitos, chamados por Certeau de praticantes ordinários, são os indivíduos que fazem parte da massa, da multidão. No livro eles não são apresentados em sua particularidade, mas na sua condição de sociedade dentro da metrópole. E é nesse pensamento que o autor trata os “modos de fazer”, de praticar os espaços, de caminhar pela cidade como forma de apropriação além do traçado previsto pelo arquiteto e urbanista. 14
Indivíduos que transitam no território, personagens que atravessam espaços, que vivem encontros e desencontros, que trocam olhares e se relacionam. O ato de caminhar proporciona estes eventos em contato com a cidade, a alteridade urbana. Mesmo inserido nesse estado de experimentação da urbanidade, os pedestres apresentam um olhar inerte a cidade – nossa percepção está cada vez mais objetificada, o olhar mecanizado e coordenado procura apenas evidenciar o funcional e o útil. É aí que chegamos, a prática de caminhar dentro da vida cotidiana não apresenta vínculo e nem atenção ao território. O olhar sobre a cidade nestas circunstâncias é inconsciente e banal, próprio de um corpo desatento e passivo. Os espaços “ocultos”, chamados de espaços do entre, entre dois, não-lugar e meio-lugar, são em sua maioria espaços públicos, escadarias, vielas, passarelas, praças etc. O lugar do outro. “[...] O grande jogo do caminhar transurbante seria, então, buscar esses espaços nômades, opacos, lisos, dentro da própria cidade luminosa - espaço estriado por excelência.[...]” JACQUES (2013 in. CARERI, 2002, p. 13)
Para propor novas formas de ver e se relacionar com a cidade, principalmente com os espaços públicos, é necessário primeiro quebrar as condições que o olhar ordinário cria sobre a vida urbana. Consistindo na troca de papéis entre sujeito e território, o protagonismo está voltado ao “invisível” ao homem ordinário, nos possibilitando investigar a vida cotidiana, olhar o que não se vê, destacar as ações que se repetem, as informações que não possuem impacto e nem geram mudança na vida urbana. A intenção é experimentar a cidade e potencializar o convívio.
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ÁREA DE ESTUDO Para encontrar na cidade os espaços do entre, já classificados como lugares de passagens e travessia, é preciso ter atenção à dinâmica da cidade. Podemos perceber sua movimentação através dos fluxos, da morfologia urbana, da rede de serviços, da força de trabalho e da circulação de pessoas. Em São Paulo não é diferente, e mobilidade é a ação mais evidente que podemos levantar: todo o movimento é dado por visitantes, trabalhadores e moradores de toda extensão da cidade. As regiões que apresentam intensa movimentação dentro do aspecto, origem e destino, são as zonas centrais e periféricas. Isso ocorre porque o centro detém maior oferta de emprego devido aos grandes centros comerciais e de serviço estarem aliados à presença de grande parte dos equipamentos de lazer e cultura, enquanto as aglomerações habitacionais se fazem maiores nas regiões periféricas. Dentro desse pensamento e debruçado em conhecimento e experiências empíricas, pode-se afirmar que as relações construídas, pelos indivíduos, nestes dois ambientes são diferentes. Para tanto, foram observados espaços articuladores na cidade (cruzamentos, ruas, vielas, escadarias e passarelas) inseridos nos dois cenários: lugar de moradia e lugar de trabalho. Nas periferias, os becos e vielas são elementos que sempre estiveram presentes no bairro e incorporados nas práticas cotidianas dos moradores. Podemos até dizer que esta relação existe desde sua “criação”. Desacompanhadas de um planejamento urbano e com densidade demográfica alta, as regiões periféricas foram construídas, em sua maioria, sem espaços livres para recreação. Hoje esses caminhos não são apenas passagens, mas também o principal acesso de casas e comércios em outra situação, são áreas de lazer, socialização e encontros. Com olhar de pesquisadora, e também moradora do extremo sul da cidade, posso dizer que os laços criados no cotidiano entre morador e território são mais íntimos nesses lugares. Já na análise dos espaços de transição inseridos na dinâmica do centro, é perceptível que a aproximação dos indivíduos com os locais, na maior parte do tempo, é impessoal. O olhar criado sobre o próprio uso é anônimo e se perde no dia a dia da cidade.
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Com base nisso, a área para estudo e aplicação do projeto aqui pretendido é a zona central da cidade de São Paulo, a subprefeitura da Sé. O propósito agora é levantar os lugares em que ocorrem trocas entre indivíduo, multidão e território; que aconteça atividades, vivências, experiências; que também de alguma forma não seja evidente ao olhar ordinário do frequentador.
Figura 4: Mapa de localização estado e capital de São Paulo.
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PISTAS O aprofundamento da investigação tem como base o livro ‘Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade’. Este volume foi produzido por um grupo de professores e pesquisadores no ano de 2005 a 2007, com o objetivo de criar pistas do método da cartografia. O estudo usado foi ‘Pista 2: O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo’. Este processo de pesquisa não pretende coletar informações que já estão prontas, isto é, dados que podem ser retirados de qualquer plataforma, tais como levantamento do uso e ocupação do solo, zoneamento ou gabarito de altura. A intenção dessas pistas é perceber as ações que existem nesses locais, mas que não são evidentes. Estruturado na atenção do pesquisador, o método é divido em quatro momentos de investigação: rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento.
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O rastreio é o momento onde não se conhece o campo de pesquisa, nem o alvo de análise. A atenção está aberta, deve-se localizar signos, pistas, alguma mudança de ritmo ou posição.
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O toque é o instante que aciona o processo de seleção, um elemento que ganha relevo num conjunto homogêneo na paisagem. Um acontecimento que exige atenção, mas sem imposição e interferência do pesquisador.
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O pouso indica uma pausa na percepção, visual, auditiva ou outra. Num zoom o campo visual se fecha e atenção muda de escala.
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O reconhecimento atento é a revelação dos acontecimentos, a pausa compreender o objeto, o momento da expansão cognitiva.
É importante, durante o processo, manter a atenção uniforme. Essa atenção aberta permite a captação dos elementos destacados sem ignorar o que ainda acontece em volta. Foi fundamental durante a pesquisa dos locais ter consciência da experiência como pesquisador e também como personagem-indivíduo que ocupa e se apropria do lugar. Cada etapa aqui apresentada será retomada ao longo do trabalho, indicando em que momento da investigação a pesquisa se encontra. O RASTREIO Para dar início às investigações da área de estudo, foi preciso voltar alguns semestres, à matéria de Projeto Interativo III (PI 3), especificamente em uma atividade, A deriva. De autoria do pensador francês membro do grupo Internacional Situacionista, Guy Debord, a teoria da deriva é um procedimento psicogeográfico que trata os efeitos que o ambiente urbano causa no comportamento e nas emoções dos indivíduos que o praticam.
“Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio.” JACQUES (2003, p. 87)
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Figura 5: Mapa Psicogeográfico de Guy Debord.
O método consiste em lançar-se no território, perambular em meio à multidão, sem rumo, sem guia, sem rota, aberto às experiências e ao acaso. A pessoa ou o grupo deverá elaborar um mapa psicogeográfico do percurso construído e ilustrar as anotações que os levaram a perseguir tal trajeto. O motivo de terem virado à esquerda e não à direita, parado na praça e não na calçada, sobretudo entender a razão que os levaram a seguir estes caminhos, situações agradáveis ou não. Na prática, consiste em perder-se para assim reconhecer e reconstruir a cidade, o urbanismo e o cotidiano. Partindo deste princípio, as derivas foram realizadas com poucos itens: 1 bloco de notas, para descrever a percepção sensorial do corpo na cidade. 1 câmera, para captura da paisagem e vida urbana, e 1 mapa, para registrar o trajeto percorrido e destacar todos os pontos de travessias e passagens encontrados no caminho. 20
Antes mesmo de começar a investigar, procurei primeiro pontuar algumas estações de metrô dentro da área de pesquisa, a subprefeitura da Sé. Sendo o meio de transporte usado para me levar até o local de estudo, foi definido então que o ponto de partida para todas as derivas seria as estações. Ressalto que o método de deriva não se restringe a limites geográficos, nem a meios de transporte, podendo assim ampliar o raio de reconhecimento. A intenção agora é rejeitar todas as ações habituais que praticamos na cidade e deixar o ambiente urbano junto com o movimento das pessoas conduzir o caminho. Vaguear de bicicleta, de carro, de ônibus, mas principalmente a pé. Sem rumo, com escolhas ao acaso ou simplesmente com base em sensações e impressões, aqui botamos o pé na rua.
Figura 6: Mapa inicial com as estações de metrô.
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O TOQUE As notas do processo da deriva registram situações encontradas durante o reconhecimento, decisões tomadas, questionamentos, pensamentos e as primeiras impressões dos locais demarcados como possíveis pontos de intervenção. As fotos também fazem parte do registro
Figura 7: Notas, praça Avanhandava.
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Figura 8: Notas, escadaria do vale do AnhangabaĂş.
Figura 9: Notas, escadaria Rua Riachuelo.
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Figura 10: PĂĄtio do colĂŠgio.
Figura 11: Rua Dep. Salvador Julianeli, Barra Funda.
Figura 12: Rua General Carneiro.
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Figura 13: Rua do Tesouro.
Figura 14: Av. Nove de Julho.
Figura 15:Rua Peixoto Gomide.
Figura 16: Viaduto Prof. Bernardino Tranchesi.
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Figura 17: Escadaria da Av. Nove de Julho
Figura 18: Largo São Francisco.
Figura 19: Rua Líbero Badaró.
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Ao final do ato de perambular e de se perder pela cidade, foram levantados 33 lugares. Todos os pontos marcados são trechos urbanos usados para conectar espaços ou para atravessá-los. Estes pontos foram divididos em três categorias: passarelas, escadarias, ruas e vielas. Nesta etapa, o conhecimento sobre esses locais e a relação que possui com os frequentadores dentro das práticas cotidianas da vida urbana ainda não é compreendido.
Figura 20: Pontos levantados.
O POUSO
Para a representação das informações levantadas durante o processo de investigação e exploração da cidade, a deriva, foram coletadas e reunidas notas e fotografias realizadas na perambulação. O resultado a seguir são cinco mapas psicogeográficos que descrevem as práticas encontradas e as experiências vividas. Além da produção gráfica que ilustra os acontecimentos e percepções, o texto elaborado auxilia na leitura das informações. 27
Deriva 9: 19 de setembro – quarta-feira
Com saída na estação Trianon - Masp, a Paulista está cheia nesta quarta-feira (nada incomum), carros, ônibus, ambulantes, ciclistas, patinetes, músicas e muitas pessoas, maioria uniformizadas (horário de almoço, né). Hospital nove de julho à esquerda, hospital IGESP logo a frente, informa a placa, neste ponto na rua Itapeva com a São Carlos do Pinhal vemos muitas artes, ‘galeria de arte a céu aberto’ que segue pelo viaduto Professor Bernardino Tranchesi. Avista aqui é encantadora, quanto história da pra se contar da cidade de São Paulo, olhando para a esplanada da nove de julho? Do alto o MASP, de baixo a escadaria do mirante, pra frente a memória de um rio, a direita o bairro mais italiano, Bexiga, sigo o viaduto passo sob a rua Peixoto Gomide onde recomeça a São Carlos do Pinhal, ali as tintas do grafite pintam os muros e as frutos da pitangueira colore a calçada. Seguindo um muro incansável dos edifícios vizinhos, percebo que a identidade de cada condomínio não é notada na escala do pedestre. Os carros neste ponto são de monte. Contínuo até chegar no hospital nove de julho, a padaria Dom Gomide me parece um bom lugar pra um pão de queijo, (médicos com jaleco, fora do consultório?). Ao chegar na abertura da calçada que dá acesso ao viaduto pela Peixoto Gomide, percebo que aquele espaço é cortado pela via. Suas duas partes são bem distintas, o lado da banca apresenta mais um movimento constante, as pausas são feitas apenas para a compra do jornal, na foto dos grafites, na vista do mirante e no intervalo para o cigarro. A outra metade tem mais espaço vago, essa conformação possibilita aos funcionários e taxistas da região relaxarem. Um momento de bate papo pós almoço, o cochilo de 20 min, as conversas no celular e até o cigarro antes de voltar para o trabalho. Na esquina de todos esses acontecimentos vemos um edifício cor coral (ou vermelho desbotado), a placa que que dá nome a rua Carlos Comenale, está presa na fachada e a moça de dentro do estabelecimento da edificação olha o movimento aqui de fora.
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Deriva 11: 24 de setembro – segunda-feira
Praça da Sé, marco zero da cidade, o movimento de pessoas às 11 horas da manhã ressalta além dos carros na via lateral. A diversidade de atividades que acontecem aqui no mesmo minuto é intensa. Conversas e gritos, vendas e pedintes, caminhadas e pausas, compro e vendo ouro, rodas de apresentação e religião, engraxates, bancas de jornal e criança que corre observa o homem dormindo no chão. Seguindo uma carroça de reciclagem, chegamos ao pátio do colégio, passamos direto pelo impostômetro, pela sede da SPTrans, pela ladeira porta geral até surgir o largo São Bento. De frente para uma empena, pintada com quadrados, tem um grande deck de madeira que recepciona a todos, a variedade de pessoas ali é aconchegante, até parei pra observar. O catador de papelão encosta sua carroça para um descanso, o homem de terno acesso ao celular (pelo wifi livre será?), algumas pessoas conversam, outras comem, dormem, a senhora pede informação ao homem sentado quanto o policial, do posto ao lado, fica atento a possível briga de dois indivíduos. Continuando a deriva, desço pela rua Líbero Badaró, na esquina com a São João tudo me parece com um tom de marrom, fora o antigo prédio do Banespa (será que o Martinelli voltou a fazer visitas?). Sigo pela rua, me deparo com a banca de jornal e a abertura de uma das escadarias do vale (acho que nunca tinha vista ela daqui da rua). O banco Bradesco faz entrada pelo vão, isso deve explicar alguns bancos de praça e uns vasos pingados com planta nesse lugar, são mais de 13 horas e as pessoas aproveitam o sol para se esquentar do vento frio. Alguns são funcionários do próprio banco, outros clientes ou apenas estão a transitar por ali. Comem, conversam, fumam, leem e até dormem. Decidi descer pro vale, mas continuar o sentido da caminhada até o viaduto do chá, os balizadores de concreto são usados como banco próximo da banca de jornal e dos edifícios empresariais. A segunda escadaria tem uma área verde fechada por grade, que impede de identificar a estátua presa lá dentro, o único lugar de “pausa” feito perto dessa passagem é o ponto de ônibus na Líbero Badaró.
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Deriva 14: 4 de outubro – quinta-feira
O dia estava quente, o sol pleno fazia jus às 12:38. A multidão de passageiros da estação Barra Funda me carregava até a saída, direto para o terminal de ônibus. Me perdia entre eles e entre as plataformas. Ao me encontrar na praça Dr. Osmar de Oliveira o fluxo de carros me direcionou ao Memorial da América Latina. Observando a abertura da avenida, as placas informativas e a própria arquitetura do museu, não notei como cheguei tão rápido até ali. Só havia uma grande esplanada de cimento sob 30º graus e algumas pessoas pingadas. Então decidi voltar a praça! Porém o caminho de volta foi mais árduo que o de ida, como num escorregador, desci até o memorial em segundos (me pareceu ao menos), já a volta foi como a subida da escada, precisaria de esforço (essa foi minha sensação de andar contra fluxo). De volta a praça me deixei levar pelos pedestres, passando entre os carrinhos de comida, barracas de roupas, algumas bijuterias, conversas, latidos e choro de bebê. Atravessei direto a Rua Deputado Salvador Julianelli, que conecta a praça à Av. Francisco Matarazzo, uma passagem nada atrativa, a não ser o conjunto de árvores que recobre um canteiro de mato, usado como encosto pelos transeuntes para refrescarse do sol na sombra das copas. Avista-se uma construção caracterizada pela arquitetura típica de um faroeste estadunidense, é uma casa de shows! Villa Country. Ali as placas estão de monte: Retorno, 50 km/h, só ônibus: de 2ª a 6º - 4 23h e aos sábados - 4 - 15h e nunca feche o cruzamento. Resolvi cruzar, por debaixo do viaduto, com o semáforo em pane, rastreando os aliens invasores do jogo Space Invaders desenhados na estrutura do elevado. Ao entrar na rua lateral a presença de pessoas “voltaram”, até que me levaram ao fim da deriva, numa rampa espiral.
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Deriva 15: 9 de outubro – terça-feira
Estação Higienópolis-Mackenzie, terça-feira, o dia está ótimo para uma caminhada, o sol está na temperatura ideal e dessa vez não esqueci a garrafa de água. A primeira pessoa que vi na saída do metrô me levou até uma das entradas da estação, lado ímpar, assim ela seguiu sentido avenida Paulista, então eu decidi ir pelo lado contrário (do contra ou do ímpar?). Chegando na esquina da Consolação com a Visconde de Ouro Preto me deparo com um casarão, Casa Amarela (ouvi falar que ali aconteciam eventos), que dizia na fachada: a rua é a arte, quilombo afroguarany, agenda, vana, minas, bart, masro, irmão, buerme, preta treta. Continuando a caminhada, suponho que às 10:40 é o horário de saída dos dogs, numa única rua contei quatro passeios. De frente para o muro longo e alto do parque augusta encontrase o edifício sete quedas (sete quedas! o que aconteceu para ele receber esse nome?). Na esquina do comércio Petz, o cheiro de comida do bar logo a frente é de causar inveja. Ali do lado lembro de um lugar perfeito pra pausa, praça da Avanhandava. Descendo sua escadaria, o amontoado de árvores não me deixa ver de lá de cima. São quase 13 horas, a deriva continua pela rua Avanhandava. Ao chegar embaixo do viaduto Júlio de Mesquita Filho percebo duas passagens, uma que nos leva até a avenida nove de julho, ela é repleta de grafites e uma de suas laterais é fechado em um trecho por uma grade, grande esta que pertence a floricultura sob o elevado (assim dá pra espiar um pouco da loja que estava fechada). O outro caminho vai até a rua Augusta de frente para praça Roosevelt, esta conexão é aberta, o viaduto passa ao lado, e o sacolão criado pela prefeitura possibilita a permanência de pessoas no período de funcionamento.
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Deriva 18: 13 de outubro - sábado
A deriva inicia na av. nove de julho na altura 556, o dia está nublado, desanimado eu diria, o fluxo de carros contrasta com o vazio das escadarias que surgem ao longo da via. Mas não tira de mim a vontade de explorar o que elas, escadas, podem me levar. Passando sob o viaduto Major Quedinho sigo sentido terminal Bandeira, mesmo com a constante presença de veículos o ambiente não é nada acolhedor. Subo nas escadarias que me levam ao viaduto nove de julho, o ladrilho com forma do estado de São Paulo reveste toda o calçadão do elevado que guia meu olhar direto para o edifício Viaduto, do Artacho Jurado. A tentativa de descer de volta pela escada oposta a que subir, é barrada quando noto que ao lado de alguns equipamentos públicos de ginástica o acesso a escada está fechado com lonas e barracas de alguns moradores de rua. De volta a nove de julho, continuo o caminho, passando por grandes momentos da história de SP, o antigo hotel Cambridge, edifício Joelma e muitos outros, percebi só ali que avenida guiou toda a deriva até a chegada da passarela que nos leva direto para o terminal de ônibus.
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Figura 3: Fonte: Foto da autora.
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ESTUDOS DE CASO No fim da etapa de levantamento e análise do território, a busca por material referencial fornece base projetual necessária para compreender a importância e o impacto da intervenção urbana nos espaços públicos, porém “anônimos”, do cotidiano da cidade. Para referenciar os estudos foram escolhidas três intervenções, cuja intenção é a mesma, intervir num espaço que possibilite estreitar as relações corpo / cidade com impacto também sobre a paisagem / identidade. No entanto mesmo com objetivos comuns, diferem em seus métodos. A intenção de estudar os três projetos foi para compreender, unicamente, a estratégia usada na identificação e escolha do objeto de intervenção. Como dito acima, cada caso apresenta um foco projetual, que me possibilitou separá-los em três categorias:
Intervir no personagem O lugar existe, a relação também. Constrói a percepção.
Intervir no cenário A relação existe a percepção também. Constrói o lugar.
Intervir na cena O lugar existe, percepção também. Constrói a relação.
Para construir melhor o raciocínio e ampliar o estudo sobre os projetos, escolhi um local que apresentasse as três classificações. O largo da memória, este ponto serviu de base para construção de ensaios projetuais, que permite aplicar as estratégias usadas em cada caso. Breve apresentação do local de ensaio. 40
Figura 22: Largo da Memรณria.
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PAREDES PINTURAS Intervir no personagem
O projeto “Paredes Pinturas” surgiu do mestrado da artista plástica Mônica Nador e acontece desde 1996 em bairros da cidade de São Paulo. O objetivo da intervenção é integrar os moradores a região que vivem, periferias. Utilizando a técnica do estêncil, o projeto convida as pessoas a pintar muros e fachadas de suas casas seguindo um padrão gráfico, desenvolvido pelos próprios moradores. Com resultado visual plástico e marcante, a intervenção olha para os personagens, identifica seus espaços (casas, muros e paredes) e 42
a forma como foi construída. A partir daí, reforçam a relação e o vínculo da vizinhança. Evidenciando através das cores e pinturas a identidade de cada família, antes não percebida pela paisagem uniforme do bairro. Isso proporcionou ações positivas e culturais na comunidade.
Figura 23: Resultado final do projeto Paredes Pinturas.
O objetivo neste projeto é construir a percepção dos usuários, frequentadores ou moradores com o lugar de intervenção. Virar a chave para esse outro olhar, o foco neste caso como referência é o trabalho que eles apresentam de se aproximar do personagem e da vizinhança. Quando olhamos para o largo da memória, vemos que seus frequentadores são sempre novidade, a cada dia um outro personagem. O lugar está ali, não precisa dizer muito sobre a forma de ocupar, o corpo já se apropria sem muita explicação, a relação está clara. Mas o que não se nota é a banca ao lado da passarela, que se perde nos tons de cinza das muretas, o bar a frente só é notado quando suas cadeiras invadem o calçadão e o vazio da quadra é visto quando ocupado.
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Situação atual
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Como espaço de grande movimentação, os personagens frequentes neste lugar são os trabalhadores, como forma de evidenciar a relação destes espaços construídos, foram destacados os muros, que através das cores complementares, permite que cada uso revele o outro e assim destaca também sua própria identidade.
BAMBUZAL + FUNDÃO Intervir no cenário
O instituto Cidade em Movimento (IVM) com sede na França, já realizou concursos nas cidades de Barcelona, Xangai, Toronto e Buenos Aires. No ano de 2017, lançou para a cidade de São Paulo o concurso “Passagens Jardim Ângela”, que propõe para a região da zona sul um novo olhar. O objetivo é revitalizar passagens do bairro, para melhorar a qualidade da mobilidade local. A equipe vencedora foi do escritório de arquitetura e urbanismo, Estúdio + 1. O grupo desenvolveu propostas para as passagens do Bambuzal e do Fundão. A escolha das duas passagens para intervenção, foi determinada 45
pela relação desses lugares com a dinâmica do bairro e facilidade de mobilidade nas ações cotidianas dos moradores. Através do reconhecimento espacial e social, foi possível propor um projeto que se adeque a realidade do bairro e as dinâmicas do lugar. Levando infraestrutura e acesso. Os parâmetros de leitura do lugar de passagem seguem uma ordem: a importância da travessia na escala da vizinhança (acessos) e do bairro (conexões), envase na infraestrutura existente e por fim, reconhecimento da relação do lugar pelos moradores. A busca nesse projeto é reforçar a percepção e relação já existente do lugar com os usuários.
Figura 24: Situação anterior ao projeto, Estúdio + 1.
Figura 25: Relação com o lugar.
Figura 26: Reconhecimento dos personagens.
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Preocupação em qualificar o lugar, mas sem excluir a relação e forma de ocupação dos individuos. O projeto de estudo, tem foco na intervenção do cenário, isto é, o território. Neste ponto do largo da Memória, é onde se concentra maior número de frequentadores, conversando, comendo, cochilando, namorando, mexendo ao celular e mais. Assim, podemos notar que a relação e a percepção desse vínculo acontecem, se constrói o ambiente. O projeto se apoia na infraestrutura do lugar
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HUELLAS ARTES Intervir na cena
Realizado no ano de 2014, pelo estúdio 100Architects, o projeto de intervenção Huellas Artes foi desenvolvido sobre uma estação de metrô no centro de Santiago, Chile. A área é uma praça com pouca funcionalidade, mas altamente cultural. Alimentado pelo fluxo de passagem dos habitantes e visitantes o projeto interpreta o movimento e o caminho como forma de valor expressivo e artístico. A intervenção propõe reconfigurar o espaço através do destaque das rotinas, trazendo para os usuários um novo olhar. O programa estabelece diversas funções que modificam a percepção espacial através das cores, linhas, fotografias e palavras, incentivando maior relação social. Trouxe aos usuários um novo reconhecimento espacial, fomentou novas experiências e a atenção sobre o lugar.
Figura 27: Etapa de levantamento.
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Figura 28: Intervenção urbana Huellas Artes.
Situação atual
A atenção está voltada ao movimento e a ocupação dos frequentadores. As práticas mais repetitivas serão destacadas no ambiente.
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Figura 29: Fonte: Foto da autora.
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O RECONHECIMENTO ATENTO
Após reunir todo o material coletado nas derivas, foi necessário criar critérios para a escolha dos locais onde será feita a construção projetual, tais como: Presença do corpo: (transitando ou permanecendo) Trocas entre indivíduo e lugar: (existência de uma prática, uma ação
ou atividade)
Olhar ordinário: vago, banal e anônimo (sem atenção as experiências
vividas no local).
Diante dos 33 pontos levantados foram selecionados os quatro a seguir: O calçadão do Hospital Nove de julho: Apresenta uma dualidade, o local é divido pela rua Peixoto Gomide enquanto um lado é protagonista o outro é figurante. A
praça
da
rua
Avanhandava: Mesmo com baixa
infraestrutura os usuários usufruem do espaço que também nos conta sua história através do som do córrego.
As escadarias do Vale do Anhangabaú: Em princípio seria escolhido apenas uma das escadarias, mas pela continuidade da deriva e reconhecimento dos locais, foi compreendido que mesmo sendo distintas elas apresentam forte vínculo de conexão da rua Líbero Badaró com o vale. Enquanto uma se abre para a rua a outra está voltada para o vale.
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Considerando também, as três camadas do cotidiano estudado anteriormente nos estudos de caso do segundo ato, personagem, cenário e cena. Inicialmente foram selecionados seis lugares para a produção dos projetos de intervenção. Devido ao surgimento de problemas pessoais e a extensão criada em cada proposta, foram definidos quatro dos seis lugares para a construção dos projetos aqui pretendidos. “Em primeiro lugar, se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades (por exemplo, por um local por onde é permitido circular) e proibições (por exemplo, por um muro que impede prosseguir), o caminhante atualiza algumas delas. Deste modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. [...] E se, de um lado, ele torna efetivas algumas somente das possibilidades fixadas pela ordem construída (vai somente por aqui, mas não por lá), do outro aumenta o número dos possíveis (por exemplo, ele se proíbe de ir por caminhos considerados lícitos ou obrigatórios).” CERTEAU (1990, p. 178)
A situação descrita por Certeau no trecho acima exemplifica as potencialidades que um lugar pode apresentar diante da dinâmica urbana. Os transeuntes não hesitam em tomar acessos, caminhos e travessias mais curtas, reconfigurando o espaço. Este tipo de condição criada pelos próprios usuários é uma virtude que condicionou também na escolha dos pontos de intervenção. Com os lugares de projetos já definidos, pretendo agora diminuir a escala, me aproximar mais das práticas urbanas e investigar a vida cotidiana que acontece nos locais. Assim como o escritor francês Georges Perec (1936 – 1982) fez em seu livro “Tentativa de esgotamento de um local parisiense”, pretendo olhar para a cidade e buscar os atos mais banais. O livro trata de resgatar e exaltar a experiência humana ordinária, que um indivíduo tem na vida urbana. Perec se instala na praça Saint55
Sulpice, em Paris, nos dias 18,19 e 20 de outubro de 1974, e num papel de contemplador e narrador descreve e anota tudo ao alcance de seu olhar: “[...] aquilo que em geral não se nota, o que não tem importância: o que acontece quando nada acontece, a não ser o tempo, as pessoas, os carros e as nuvens” (TELP, 2016, p.11)
A princípio a obra pode parecer unicamente um exercício de descrição, mas nos apresenta uma outra forma de entender as práticas e experiências urbanas, levando-nos a enxergar com consciência a cidade. Para o autor não há nada mais rico que as ações ordinárias e inúteis, nada pode esgotá-las. O convite está feito: Perec nos propõe observar a rua minuciosamente, anotar tudo em detalhes, mesmo que pareça tolo. As cenas a seguir é um compilado de eventos ocorrido em diferentes dias da semana. Sabendo que o cotidiano é uma sucessão de possibilidades e infinidades, apresento um recorte da rotina de cada lugar, com hora, data e clima marcados. Isto se fez necessário para registro do instante específico, dos acontecimentos, ocorrido nos dias de levantamento. Os acontecimentos aqui registrados foram ferramentas de compreensão da relação entre indivíduo e território. Apresenta um conjunto de ações praticadas, que nos evidencia as possibilidades de intervenção que cada lugar permite explorar. Procuro através desses pontos conduzir o meu olhar nas práticas ordinárias, dos locais escolhido, para identificar e classificar cada lugar dentro das três esferas que compõe o cotidiano: Personagem, cenário e cena. No fim de cada registro, o projeto será apresentado.
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CALÇADÃO – HOSPITAL NOVE DE JULHO
Descrição do ambiente: Compreendido como um único conjunto o local é cortado pela Rua Peixoto Gomide, estas duas partes foram nomeadas de: lado A (par) e lado B (ímpar, seguindo a numeração dos lotes). O acesso para as calçadas pode ser feito através de rampas e escadarias, conexão com a Rua São Carlos do Pinhal, ou diretamente pela via de mão única, Rua Peixoto Gomide. Os muros e empenas das edificações estão cobertas por grafites, a banca de jornal (banca de Paula) fica de frente para a esplanada da cidade, voltada para Avenida Nove de Julho. O ponto de táxi está sob duas grandes árvores, que fazem sombra sobre um único banco de madeira. Os vasos com as plantas “humanizam” a calçada de cimento que recebe também uma caçamba de lixo. Empresas, condomínios e restaurantes compõem o entorno, mas seu principal vizinho é o Hospital Nove de Julho.
lado A
lado B
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Dia: Quinta-feira, 3 de janeiro de 2019 Hora: 14:00 Local: Rua Peixoto Gomide, lado B da calçada. Tempo: O dia está quente com o céu parcialmente fechado.
Sob a árvore próximo do ponto de táxi, vejo que sentar ao chão não é incomum por aqui (a falta de bancos colabora para essa condição), próximo de mim três funcionários do entorno se recostam na mureta de proteção e dão risadas de algo no celular de um deles. - Olha isso cara, acredita? Hahahaha - Caramba! É verdade? - Claro que é! Olha ai! De certo despertou me curiosidade. Os táxis atrás de mim não deixam de falar “políticos”, a única palavra que falavam de boca cheia o resta da conversa parecia mais pessoal, sem muito falatório auto. Os vasos de plantas dão apoio a um rapaz que procura seu isqueiro na mochila. O hábito de fumar não é atípico por aqui. O fluxo de pessoas que acessam as duas vias pela rampa do lado A da calçada é bem menor que o lado B, isso mostra que a maioria dos transeuntes veem do viaduto, lado da Nove de Julho. Próximo a banca de jornal, um médico dá uma pausa para fumar. Ao mesmo tempo um visitante desembarca no hospital e o pedestre aproveita a parada do carro para atravessar fora da faixa. A faixa está de frente para o hospital, na área de acesso de pessoas, mas o fluxo e ritmo que a pessoa vem subindo a escada do lado B faz com que ele apenas continue o percurso até o outro lado da calçada, sem precisar fazer a curva até o farol. Um dos funcionários na mureta deita no chão e cobre seu rosto com o boné, o único que decide tirar um cochilo antes de voltar ao trabalho.
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A banca de jornal está de costas para mim, daqui só posso ver a metade de um homem que procura algo ao folhear o monte de revistas. Algumas pessoas passam desapercebidas outras notam o grande grafite, do artista o Kobra, pintado na empena do Hospital, com o crachá do Dr. Edson. O horário de almoço acabou, os funcionários perto de mim voltam para o serviço. Um outro médico para pra fumar (médicos que fumam, isso me lembra um ditado popular). Um ou dois taxistas saíram pra uma corrida, já o único que sobrou está atento as minhas anotações. A pequena placa verde na mureta do hospital indica: ponto de encontro emergência. Enquanto a ficha do estacionamento apresenta sua tabela de valores num tom de vermelho. Carros, carros, taxi, carros e o foral abre para poucas pessoas atravessarem. Essa sequência é regular até que um motorista dispara a buzina para um ciclista que passa em sua frente. Isso virou assunto para os taxistas.
Dia: Sexta-feira, 18 de janeiro de 2019 Hora: 19:00 Local: Banca de jornal Tempo: A noite está fresca e o vento está gelado.
O fluxo de pessoas e carros aqui, é reduzido durante a noite. Entre a banca e o hospital espero acontecer alguma ação para que eu posso registrar. O lado B é mais iluminado que o lado A, já que recebe incidência de luz da entrada do hospital, da banca de jornal e de um poste de luz. A outra metade ganha claridade produzida pelo ponto de táxi e por um único poste de luz ao lado do estacionamento, criando na calçada um breu. Um carro de manutenção elétrica encosta no poste próximo a banca, estes serviços são mais comuns durante a noite, enquanto isso um homem na outra calçada passeia com um cachorro e zapeia pelo celular. 59
Durante a noite a movimentação no hospital é mais constante (ou visível?). Um visitante entra e uma senhora aguarda o carro que vem lhe buscar. O taxista sozinho no ponto esperar sua próxima corrida dentro do carro. Mais um paciente / visitante desce na recepção e o valet faz seu serviço. Outras duas senhoras saem, mas elas vão embora a pé sentido a Rua Frei Caneca. Um senhor de mochila que carrega uma sacola passa pela banca, um casal também, outras três pessoas passam juntas, nenhuma delas notou o garoto sentado no chão encostado sob a luz da banca, ele lia um jornal que pegou no lixo a sua frente. Uma mulher sobe a rampa da Rua São Carlos do Pinhal até a Rua Peixoto Gomide e vira sentido a Avenida Paulista. Outras três mulheres aguardam sua carona, todas de pé. Ao atravessar na faixa com o farol aberto para o pedestre, uma senhora com etiqueta de visitante aguarda o valet buscar seu veículo no estacionamento ao lado dos vasos de planta, ela não está confortável com a escuridão, seu olhar atento e rápido a toda movimentação a sua volta demonstra isso. Um catador de rua passa à procura de latinhas e cochicha alguma coisa com duas enfermeiras que fumam, juntos dão uma risada simpática. Nas estreitas calçadas da São Carlos do Pinhal um morador de rua se aconchega entre seus pertences e dentro de um cobertor plástico, ele não estava ali nas minhas últimas visitas, antes de dormir ele lê o que parece ser um livro. Pessoas transitam para os dois sentidos da via, carros não deixam de chegar e sair do hospital, outros visitantes e funcionários conversam sentados na escada da recepção enquanto bebem um refrigerante e os taxistas batem papo no ponto até sua próxima chamada.
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Figura 30: Ação dos personagens, lado A.
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Figura 31: Ação dos personagens, lado B.
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Figura 32: Maneiras de usar.
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Figura 33: Sobre e sob a passagem.
As fotos acima, apresentam as ações repetitivas do lado A e do lado B da calçada. Situações que ocorrem de dia e de noite, como dito anteriormente o lado B é o protagonista, enquanto o lado A passa por figurante. Os personagens desse lugar, possuem o mesmo roteiro dia após dia, esta repetição não percebida. 64
Com análise nas fotos e registros do cotidiano, podemos perceber que a relação do lugar com os frequentadores é evidente, eles usam, ocupam e se apropriam. O cenário é conhecido, os grafites tornaram ponto turístico da região. Mas toda essa ação e prática não é vista, isso nos levar a construir a percepção dessa troca. A ação será: Intervir no personagem O projeto se resume num mobiliário, mais precisamente um palco, que traz visibilidade para os atores da cena e evidencia sua presença no local. Permitir que continuem com seus hábitos, porém com maior conforto. A relação e o vínculo são reforçados, o material (mobiliário) não tem voz e os personagens são revelados desse lado da calçada. As cores das pinturas do lado B destacam suas artes, na metade oposta, os corpos, as roupas e os pertences dos frequentadores fazem a tinta dessa outra paisagem. A materialidade usada neste projeto é levada também para todas as outras intervenções, desta forma podemos construir uma identidade e família para o conjunto de projetos apresentados.
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PRAÇA AVANHANDAVA
Descrição do ambiente: A rua Avanhandava dá acesso a praça chamada de: recanto palhaço Sputnik, mas popularmente conhecida por: praça da Avanhandava. O pátio pavimentado tem um formato curvo, esta configuração é dada pelo muro que sustenta a terra do nível acima. Com acentos que lembram “ondas”, o muro também faz parte do banco da praça. No centro do pátio tem um poste de luz e ao lado da rampa de acesso possui uma única árvore de canteiro circular. As demais árvores surgem conforme sobe o nível da cota, para isso existe outros muros de arrimo para conter toda a terra. Ao lado da praça a escadaria em formato de Y conecta três ruas, nas duas pontas de cima une a Rua Frei Caneca com a Caio Prado, na ponta de baixo, liga à Rua Avanhandava. Entre alguns degraus, postes e bueiros compõe a escadaria. Mas é na união das três pontas, da escada, que se pode ouvir o córrego Augusta, que percorre por baixo. O entorno é predominantemente residencial, os bares e restaurantes são mais presentes na Rua Frei Caneca e na Avenida Nove de Julho.
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Dia: Quarta-feira, 2 de janeiro de 2019 Hora: 13:23 Local: Sentada no banco, de costas para a escadaria. Tempo: O dia está ensolarado e a temperatura está amena.
Sentada neste ponto, tenho visão panorâmica de toda a praça, a minha esquerda o desnível do terreno, a direita a Rua Avanhandava e a frente o muro, pintado de verde, do condomínio ao lado. No centro do pátio o conjunto de lixeiras, presas ao poste, está com uma metade quebrada e emborcada no chão logo embaixo. No canteiro, a existência de sacolas e garrafas são vestígios da presença de pessoas. Daqui não se escuta o som dos pássaros, mas o movimento de carros constante na avenida Nove de Julho, é perceptível. A quantidade de carros estacionados, segue por toda extensão da rua até fazer a curva. Um carro passa em direção à avenida, logo em seguida vem outro, mas este é um carro dos correios. Um homem desce a escadaria, resmungando algo. A mulher na janela, no prédio em frente a praça, me observa enquanto estende a roupa no varal. Chega um pequeno caminhão com galões de água e estaciona em frente ao carro da companhia de luz, dois homens descem e encostam na lataria, eles parecem descontraído para uma entrega. Um rapaz magro carregando um cobertor e papelão, chega até a praça e vai em direção ao banco de cimento, estende seus pertences no chão e deita sobre eles. Outro homem desce a escadaria. O garoto do cobertor remexe seus bolsos, até tirar um cigarro de maconha. Do outro lado da rua, uma mulher sai da portaria em direção aos entregadores de água, segurando um galão na mão ela entrega para eles. Meu olhar volta ao rapaz, ele me parece muito confortável, chegou até a me oferecem um trago. Um casal passa apressado pela calçada, outras três mulheres andam dando altas risadas. O garoto do cobertor passa por mim e se despede e dando oi para os entregadores. Um carro prato chega e estaciona, um homem sai e vai direto a portaria. Uma senhora sobe a escadaria com algumas sacolas de compra. 71
Mais um rapaz chega até a praça, este se senta no banco próximo ao muro do condomínio, discretamente ele fuma da mesma erva enquanto zapeia pelo celular. Preso entre as árvores no desnível do terreno, noto um colchão e dois lençóis. O carro de água vai embora, mas não falta tempo para esta vaga ser ocupado por outro veículo. Dia: Sábado, 12 de janeiro de 2019 Hora: 10:30 Local: Sentada no banco de frente para a rua. Tempo: O céu está com nuvens, mas não impede o sol de aparecer.
A condição em que a praça se encontra hoje é semelhante a outras situações já vistas. A grande fileira de veículos se repete, as garrafas e comidas estão agora no canteiro da frente e a lixeira que ainda permanece quebrada. Descendo a rua, sentido a avenida Nove de Julho, uma moça passeia com seu cão, o cachorro faz ela parar toda vez que tem interesse em algo. O senhor corre apressado no outro lado da rua, com roupas de ginástica ele faz seu exercício matinal. A senhora que puxa seu carrinho de compras carrega na mão um jornal. Um casal desce as escadarias e para em um dos patamares. A mulher que empurra o carrinho de bebê segue seu caminhar pelo meio da via, realmente neste horário não se passa muitos carros. O casal por fim desce a escadaria e vão até a portaria do prédio em frente. Um rapaz sobe as escadas, outra mulher desce e um homem com papeladas na mão e uma jaqueta no ombro sobe os degraus sem pressa. Um carro passa, a garota com o cão volta pelo mesmo caminho, outro carro passa, mas agora uma mulher e três crianças chegam até a praça. Ela avisa: - Depois vamos pra fera, aí comemos pastel! As crianças correm, pulam e escalam, o muro de arrimo que também é banco tornou-se para elas a escada de acesso para a cota superior. O poste de luz no centro do pátio é o piquis da brincadeira 72
pega-pega. O barranco de terra entre a escadaria e a praça tornou um espaço de escalada, uma criança ajudava a outra a subir. A mãe com o olhar no celular, apenas escutavam os pequenos brincarem. Um, dois e três passam correndo por mim, as pessoas que circulam pela rua dão uma olhada na movimentação dos jovens. Minutos depois, a mãe os chama para sair, um ciclista passa por eles, poucas janelas do condomínio a frente apresentam movimentação.
Figura 33: Praça Avanhandava.
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Figura 34: Usos na praรงa.
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Figura 35: Situação atual praça e escadaria.
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Figura 36: Tipologias das tampas de bueiro atual.
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Como percebido nos registros, os indivíduos reconhecem o lugar e possuem relação e uso no local, mas o ambiente apresenta problemas estruturais. O foco é qualificar a escadaria e a praça, torná-los adequados a realidade e a dinâmica do lugar. Assim, o projeto de intervenção na Avanhandava é direcionado ao território. Intervir no cenário A presença do córrego, ainda vivo embaixo da escadaria, nos conta um pouco da história desse lugar, porém não há nada que identifique ou que localize esse elemento no local. Foi proposto, como parte do projeto, a criação de uma tampa de bueiro, que indicasse a presença do córrego e seu nome. Este modelo torna única a linguagem das tampas ao longo da escadaria e também possibilita sua replicação em outros córregos, enterrados / esquecidos, em toda São Paulo. O banco curvo ondulado, recebe um revestimento de madeira em seu assento, isso permite maior conforto para os usuários ao sentar em dupla ou quando desejam deitar sobre. Com a mesma materialidade, num trecho, o banco é transformado em escadaria para acesso aos níveis superiores. Nas cotas acima, dois platôs foram colocados, são mirantes para a avenida Nove de Julho, porém também proporciona aos moradores de rua, uma área com maior comodidade quando buscam local para dormir. Essa intervenção não tem potência suficiente para zelar por essas pessoas nem força para sanar os problemas sociais, mas volta um olhar para estes indivíduos que são parte do cotidiano e da realidade da cidade. Preso ao muro de arrimo, que sustenta a terra ao lado da escadaria, um trepa-trepa auxilia as crianças a subirem até o último platô, as garras de escaladas também dão apoio a brincadeira.
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ESCADARIA DA RUA LÍBERO BADARÓ
Descrição do ambiente: A escadaria de cor creme e formato curvo conecta a Rua Líbero Badaró com o vale do Anhangabaú. O pátio na lateral tem abertura para a rua que possibilita a ampliação da calçada resultando também num mirante para o vale. O guarda corpo de balaústres caracteriza a arquitetura de época da grande São Paulo. Nas laterais do pátio estão distribuídos nove vasos de planta e próximos a eles quatro bancos de madeira fazem recepção aos transeuntes. O acesso ao banco do Santander é feito nesta área, sendo ele, um dos edifícios vizinhos que fazem sombra sobre o local em certos momentos do dia. A banca de jornal localizada no limite da calçada tem abertura apenas pra rua. No nível do vale ao lado da escadaria, uma área pertencente ao mirante, revela um espaço arborizado, mas que está fechado por grades. De frente para este local uma segunda banca de jornal tem abertura para o mirante e em sua volta segue uma fileira de balizadores de cimento que percorrem quase toda a extensão do vale.
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Dia: Segunda-feira, 17 de dezembro de 2018 Hora: 10:00 Local: O céu está com nuvens, mas isso não impede o sol de aparece. Tempo: O vento hoje está gelado.
Na praça, as ações acontecem na escadaria em idas e vindas de pessoas. No banco Santander as atividades começaram agora a pouco, pela janela vista daqui de fora, posso perceber a movimentação dos funcionários. O fluxo de veículos é interrompido apenas quando o farol é aberto, a cada dois minutos, em média. Desta posição não consigo ver bem o que acontece na banca de jornal, apenas um homem que pede informação para o jornaleiro. Na janela do banco, o segurança fecha a persiana, os primeiros usuários chegam à agência. Do outro lado da calçada, na esquina da Rua Dr. Miguel Couto, um senhor arruma seu material de trabalho sobre o piso de pedra portuguesa, um banco para sentar e uma cadeira vermelha para os clientes, ele é um engraxate. O movimento de pessoas aumenta, outros vendedores passam com suas grandes sacolas de produtos. Alguns moradores de rua passam com seus cobertores e papelões, eles dormem sobre a marquise do edifício Mercantil Finasa, à direita da praça (a cobertura do edifício, em dias de chuva, já resguardou muitos pedestres, inclusive eu). Na minha frente, um rapaz senta no banco e mexe ao celular; um funcionário do Santander sai pra fumar e são quase 11:20. Uma garota senta ao banco de costas para o vale, ela abre a bolsa e tira um livro, parece esperar alguém. Muitas pessoas que descem pela rua Dr. Miguel Couto atravessam a rua e se dispersam, três seguem sentido viaduto do chá, um vai para o lado oposto e o casal com uma moça vão até o vale. O canto dos pássaros me faz perceber seus voos até o canteiro da escadaria. Algumas pessoas procuram andar nos trechos com sol, o dia está frio. A moça com o livro sai em direção ao viaduto, os pombos caminham até o centro da praça e bicam migalhas no chão. O ônibus de cor laranja passa próximo ao mercado da Lapa, o amarelo vai até o Butantã, neste horário eles não estão cheios.
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Dia: Sábado, 10 de janeiro de 2019 Hora: 12:00 Local: Encostada na mureta da agência, de frente a banca e ao lado da rua. Tempo: O céu está sem nuvens o dia parece esquentar.
São 12 horas, está quase no horário do almoço, o jardineiro de pé em frente a banca observa o movimento das pessoas. Na agência a persiana da janela já está fechada e o segurança na porta recepciona todos os clientes que entrem. Num banco da praça, um grupo de 4 pessoas conversam, dois estão de pé e dois sentados, um diálogo só de risadas. Com o farol fechado, a multidão de pessoas cruza para todos os lados e lá no mesmo lugar, na esquina da rua Dr. Miguel Couto, o senhor, engraxate, espera para seu próximo serviço. No fim da travessia um homem com seu filho para na banca de jornal e começa a troca assunto com o jornaleiro, depois de alguns minutos outro homem chega para a conversa, o garoto já cansado senta no degrau da banca e aguarda seu pai para ir embora. Passando por eles, uma moça com bebê de colo, segue em direção a agência e entrar pela porta automática, perco ela de vista quando um rapaz sai. Ele está vestido com roupa social (deve ser funcionário do banco), passa por mim, e com as mãos no bolso encosta no corrimão da escada de acesso (do banco) e procura algo: um cigarro e um isqueiro. O grupo de amigos que davam risadas, descem para o vale, uma senhora senta num dos bancos comendo um salgado e três pombos se aproximam dela atrás de migalhas. O sol começa a tomar conta da praça, outro funcionário do Santander sai para fumar próximo a escada de acesso (só notei mais tarde que ali tinha uma bituqueira). Um senhor vai até o banco, posicionado de costas para a agência, e deita para um cochilo de minutos, seu uniforme indica a empresa que trabalha, VIVO. Um casal aproveita o trecho com sol mais a frente para arrastar o banco de madeira até o meio da praça. Na falta de bancos, dois garotos, utilizam o largo corrimão da escadaria para se sentar, eles não foram os únicos.
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Figura 37: Formas de ocupar; acesso pelo vale.
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Figura 38: Formas de ocupar; pรกtio.
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Figura 39: Formas de ocupar; acesso pela Rua LĂbero BadarĂł.
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Com base nas fotografias e situações encontradas nas visitas ao local. Percebemos que as ações cotidianas, que acontecem no pátio e na escadaria estão voltadas quase sempre a área do corrimão, como forma de assento, ou no pátio junto aos bancos móveis. A cada instante uma nova pessoa usa o mobiliário existente, adaptam quando estão em grupos, sozinhos, em casal ou com crianças. A cena que acontece nesse lugar é influenciada também pelo sol, quando os frequentadores procuram se aquecer movimentam o banco em direção a luz, quando não retornam para a sobra. Apoiada nessas constatações é notório que o foco de projeto no local são as práticas, atividades ações que ocorrem ali. Intervir na cena. O projeto é um conjunto de mobiliários que possibilita combinar diferentes formas, para melhor adequar ao uso e interesse do frequentador. A cor dos bancos, reforça a movimentação feita em cada cena, modifica a percepção dos indivíduos deixando um rastro, uma memória da presença de um corpo. A banca de jornal é um elemento que faz parte das atividades da área, por isso um ensaio projetual foi feito, para integrar a banca ao espaço de intervenção. Ainda no pátio, uma jardineira, com espécies de planta adequada a insolação local, serve de proteção visual para as funções, agência bancária, vistas do lado de fora. No nível do vale, o canteiro antes fechado por grade foi aberto, espécies próprias ao local foram plantadas e este espaço antes excluído, agora é uma área de potencialidades para novas práticas.
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banca de jornal
Ravenala
Guaimbê
Alpinia
Especies próprias para insolação do local: pleno sol. 91
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Toten
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ESCADARIA VALE DO ANHANGABAÚ
Descrição do ambiente:
Uma segunda escadaria, que liga o vale do Anhangabaú a Rua Líbero Badaró, tem como vizinhos laterais os edifícios Mercantil Finasa e o Conde Prates. Logo a sua frente, também se encontra o edifício Sampaio Moreira. Esta escadaria também de cor creme tem em sua calçada, próximo ao guarda corpo, um ponto de ônibus de cor cinza. A maior parte do lote, cerca de 2/3, está fechada por grandes. Dentro desse limite há uma estátua com aproximadamente 4 metros de altura e o restante da área está arborizada. Dia: Sábado, 5 de janeiro de 2019 Hora: 11:40 Local: A descrição deste dia aconteceu nos dois níveis, da rua: sob o ponto de ônibus e no vale: ao lado do orelhão. Tempo: ensolarado e com nuvens. Hoje está quente.
No ponto um senhor e uma senhora aguardam os ônibus sentados no banco. Uma moça de pé sobre a faixa amarela de piso tátil segura sua bolsa e um envelope branco. O homem logo atrás de mochila se distrai com fone de ouvido. Um rapaz sobe a escadaria e vira em direção ao viaduto do chá, uma mulher e uma criança passam cheias de sacolas (o natal está chegando). Na calçada do edifício Conde Prates, um morador de rua se ajeita para deitar, enquanto isso outros dois estão jogando baralho. Ficaram curiosos com as minhas anotações, pensaram que eu fosse funcionária da prefeitura. Ao conversar com eles, disseram, embaralhando o monte: - Jogamos apenas um jogo, pife! Só sabemos um mesmo. - É bom, porque assim não brigamos. De volta ao ponto, um homem ao celular desce a escadaria, finalmente o ônibus da senhora chega, mas ela parece dar uma dica ao senhor que aguardava junto a ela. - O ônibus é laranja! De cor laranja! 96
Ele não enxerga o letreiro com o destino, um rapaz diz pegar o mesmo carro e ele pede ao senhor que o acompanhe ao embarcar. O movimento de veículos aqui, não para! Um casal sobe a escadaria, outro homem desce. Duas mulheres na outra calçada procuram algo embaixo dos carros que estão parados no sinal vermelho. Um gato. Laranja como Garfield, ele corre de um lado para o outro da via (ai meu coração). Com o alerta das mulheres, os motoristas esperam o felino atravessar de volta e correr para dentro do estacionamento do edifício Campos de Piratininga. A relação com este lugar é quase exclusivamente de passagem. Nível do vale. A estátua aprisionada pela grade apresenta uma placa que enquadra o nome: Verdi. Homenagem feita ao compositor italiano, Giuseppe Verdi. Poucas pessoas notam a presença desse monumento. Vão e vem a pé, de skate, de bicicleta, de carros (viaturas ou veículos de manutenção) e raramente notam esse espaço arborizado. Agora sentada num dos balizadores de cimento, vejo um grupo grande de jovens saindo do edifício Mercantil Finasa. Eles se dispersam, vão até o trecho com grama do vale, uns ficam de pé e outros sentam nos balizadores como eu. Conversam durante alguns minutos, aproveitam o sol, a companhia e vão embora. Curiosa, vou até a entrada do prédio e descubro que são funcionários de uma empresa de telemarketing, segundo o recepcionista, eles trabalham de segunda a sábado no período da manhã e tarde.
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Figura 41: Escadaria e relação com os usuários.
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Figura 42: Escadaria e frequentadores.
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O mapa apresenta a relação de cada escadaria com seu entorno. Na passagem, de conexão com o vale, a área verde fechada por grade impossibilita seu uso e exclui os usuários e o local de construir vínculo. Mesmo com a maior área do terreno sem acesso, os usuários da escadaria do vale, conseguiram construir relação com o ambiente. Usam a passagem para conversar, negociar programas, fumar e descansar entre os degraus. Com um ambiente que “repulsa” o usuário devido sua infraestrutura, o projeto implantado nesse ponto é direcionado ao território. Intervir no cenário. O projeto inicia com a abertura do gradil, as plantas que envolvem a estátua foram retiradas, para trazer visibilidade a obra, e realocadas no próprio terreno. Um deck de madeira foi implantado seguindo as cotas de níveis, a escada de acesso para as diferentes alturas do deck, faz um percurso que desvia das plantas existentes, de modo a mantê-las. Em detalhe, o encontro das ripas com o tronco apresenta uma abertura que intercala grama e terra, da árvore, com o piso de madeira. Para finalizar a intervenção, um canteiro com plantas foi colocado para proteger e separar o vidro do edifício vizinho com o deck.
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Figura 43: Fonte: Foto da autora.
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Epílogo Este trabalho contrapõe os discursos que alegam empobrecimento, abandono e inexistência da vida e experiência urbana, no cotidiano do centro da cidade de São Paulo. Reafirma, que diante das práticas errantes realizada na área de estudo, mesmo em lugares mais inóspitos e hostis as relações urbanas resistem e se fazem presente nas fendas e brechas do cotidiano muitas vezes invisíveis ao olhar ordinário. O foco foi trabalhar exatamente com os espaços despercebidos na dinâmica da vida urbana, os lugares de passagem e travessia. Os vazios plenos: os não lugares, onde não se faz história e nem se constrói experiências. Como processo de (re)conhecimento e (re)apropriação foi preciso estabelecer uma outra forma de potencializar essas práticas e “construir” as relações. Se fez necessário encontrar nos corpos dos indivíduos, personagens, e não na cidade as possibilidades. Todos os projetos produzidos, apresentam um olhar particular sobre o cotidiano e o vínculo do lugar com seus frequentadores, reforça o uso e as práticas, qualifica a infraestrutura e potencializa a relação e a alteridade, a ponto de, quase, esgotá-las. Ao fim, faço o convite a todos, caminhe pela cidade, pratique a alteridade, atualize o urbanismo e os espaços através da vivência e experiências urbanas. Torne por alguns minutos, dias ou meses um praticante ordinário.
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Lista de figuras Figura 1: Fonte: Foto da autora. Figura 2: Fonte: Foto da autora. Figura 3: Fonte: Foto da autora. Figura 4: Mapa de localização estado e capital de São Paulo. Fonte: Produção autoral. Figura 5: Mapa Psicogeográfico de Guy Debord. Fonte: Revista digital Vitruvius: http://www.vitruvius.com.br/revistas/ read/arquitextos/03.035/696 Figura 6: Mapa inicial com as estações de metrô. Fonte: Produção autoral. Figura 7: Notas, praça Avanhandava. Fonte: Produção autoral. Figura 8: Notas, escadaria do vale do Anhangabaú. Fonte: Produção autoral. Figura 9: Notas, escadaria Rua Riachuelo. Fonte: Produção autoral. Figura 10: Pátio do colégio. Fonte: Foto da autora. Figura 11: Rua Dep. Salvador Julianeli, Barra Funda. Fonte: Foto da autora. Figura 12: Rua General Carneiro. Fonte: Foto da autora. Figura 13: Rua do Tesouro. Fonte: Foto da autora. Figura 14: Av. Nove de Julho. Fonte: Foto da autora. Figura 15: Rua Peixoto Gomide. Fonte: Foto da autora. Figura 16: Viaduto Prof. Bernardino Tranchesi. Fonte: Foto da autora. Figura 17: Escadaria da Av. Nove de Julho com a Rua Álvaro de Carvalho. Fonte: Foto da autora. Figura 18: Largo São Francisco. Fonte: Foto da autora. Figura 19: Rua Líbero Badaró. Fonte: Foto da autora. Figura 20: Pontos levantados. Fonte: Produção autoral. Figura 21: Fonte: Foto da autora. 108
Figura 22: Largo da Memória. Foto da autora. Figura 23: Resultado final do projeto Paredes Pinturas. Fonte: http://www.jamac.org.br/projetos-jamac Figura 24: Situação anterior ao projeto, Estúdio + 1. Fonte: http://concurso.cidadeemmovimento.org/finalistas/estudio-1/ Figura 25: Relação com o lugar. Fonte: http://concurso.cidadeemmovimento.org/finalistas/estudio-1/ Figura 26: Reconhecimento dos personagens. Fonte: http://concurso.cidadeemmovimento.org/finalistas/estudio-1/ Figura 27: Etapa de levantamento. Fonte: ttps://100architects.com/project/huellas-artes/ Figura 28: Intervenção urbana Huellas Artes. Fonte: ttps://100architects.com/project/huellas-artes/ Figura 29: Fonte: Foto da autora. Figura 30: Ação dos personagens, lado A. Fonte: Fotos da autora. Figura 31: Maneiras de usar. Fonte: Fotos da autora. Figura 32: Sobre e sob a passagem. Fonte: Fotos da autora. Figura 33: Praça Avanhandava. Fonte: Fotos da autora. Figura 34: Usos na praça. Fonte: Fotos da autora. Figura 35: Situação atual praça e escadaria. Fonte: Fotos da autora. Figura 36: Tipologias das tampas de bueiro atual. Fonte: Fotos da autora. Figura 37: Formas de ocupar; acesso pelo vale. Fonte: Fotos da autora. Figura 38: Formas de ocupar; pátio. Fonte: Fotos da autora. Figura 39: Formas de ocupar; acesso pela Rua Líbero Badaró. Fonte: Fotos da autora. Figura 40: Paisagem e território. Fonte: Fotos da autora. Figura 41: Escadaria e relação com os usuários. Fonte: Fotos da autora. Figura 42: Escadaria e frequentadores. Fonte: Fotos da autora. 109
Referências bibliográficas CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 3ª. ed.: Editora Vozes, 1998. JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da deriva: Escritos situacionistas sobre a cidade. 1958. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio Aos Errantes. Salvador: Edufba, 2012. 331 p. PASSOS, Eduardo et al. (Org.). PISTAS DO MÉTODO DA CARTOGRAFIA: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. 4ª. ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2015. 207 p. PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense / Georges Perec; Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Gustavo Gili, 2016. 60 p. SILVA, Ricardo Luis. Elogios à inutilidade: a incorporação do trapeiro como possibilidade de apropriação e leitura da cidade e sua alteridade urbana. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017. Sites: NADOR, Mônica. Paredes Pinturas. Disponível em: <http://www.jamac. org.br/projetos-jamac>. Acesso em: 26 nov. 2018. ESTÚDIO + 1, Escritorio. BAMBUZAL E FUNDÃO. Disponível em: <http:// concurso.cidadeemmovimento.org/finalistas/estudio-1/>. Acesso em: 26 nov. 2018. 100ARCHITECTS, Escritório. Huellas Artes. Disponível em: <https://100architects.com/project/huellas-artes/>. Acesso em: 26 nov. 2018.
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