De Lucy a Luzia - A longa jornada da África ao Brasil - Eugênio Marcos Andrade Goulart

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EUGÊNIO M. A. GOULART

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O PROJETO MANUELZÃO O Manuelzão é um pr

Ao lerversão a primeira versão ler a primeira ascinantedeste livro fascinante senti-me livro senti-me aspirado o para dentro do para túneldentro do túnel cronológico da história. A bacia gico da história. A bacia do Rio das Velhas, no coração das Velhas, no coração Minas Gerais, país de nossos as Gerais,de país de nossos ancestrais e guardiã de imporais e guardiã de importantesosregistros egistros para estudos para os estudos paleontologia, ontologia,daarqueologia e arqueologia e antropologia opologia da está produzin- está produzindo mais um grande intérprete. s um grande intérprete. Esta obracientíde divulgação cientíra de divulgação fica certamente amente contribuirá para contribuirá para transformação ormaçãoada mentalida- da mentalidade da nossa sociedade. Devenossa sociedade. Deveeste rotineilivro ser texto rotineilivro serriatexto para jovens jovens eroadultos, e se e adultos, e se circular pelo mundo. l circularpossível pelo mundo. A pré-história istória da humanidadeda humanidade aqui, de forma didática a aqui, decontada forma didática e prazerosa, poderá, sem dúvirosa, poderá, sem dúvimexer com a imaginação xer comda, a imaginação do estudante africano, asiático dante africano, asiático europeu, eu, alémede ser umaalém re- de ser uma reparade os americanos de a para osferência americanos todos os três continentes. Nós, s três continentes. Nós, do Projeto Manuelzão, do qual eto Manuelzão, do qual Goulart o GoulartEugênio faz parte, sen- faz parte, sentimos-nos com mais os realizados com realizados mais esta ação educativa de profunão educativa de profunsignificância ificânciadacultural, am- cultural, ambiental e humana. e humana. Apolo Heringer Apolo LisboaHeringer Lisboa Coordenador Geral do Coordenador Geral do Projeto Manuelzão - Projeto UFMG Manuelzão - UFMG

pesquisa, ensino e mob

O Manuelzão é um projeto de da Universidade pesquisa, ensino social e mobilização de Minas Gerais que tem social da Universidade Federal jetivo de Minas Gerais que tempromover por ob- a revit bacia hidrográfica do jetivo promover adarevitalização Velhas. Suas da bacia hidrográfica do Rio dasatividades início em 1997 na Facul Velhas. Suas atividades tiveram início em 1997 naMedicina, Faculdadepela de iniciativa Medicina, pela iniciativa de um grupo de professores qu grupo de professores queque perceberam saúde não é beram que saúdemente não é uma basicaquestão méd mente uma questão médica: ela está diretamente relacio está diretamente relacionada às e ao m condições sociais condições sociais biente e ao meio amem que as pessoa biente em que as pessoas vivem. Com atuação em 51 mu Com atuação em 51 municípios da bacia, o Manuelzão i da bacia, o Manuelzão incentiva a participação e o com a participação e o comprometimento urbanas das populações mento das populações e rurais, dos órgãos gove e rurais, dos órgãos governamene da iniciativa tais e da iniciativa tais privada. Dessa privad forma, o Projeto forma, o Projeto tem como eixo tem co de atuação a promoção de atuação a promoção da saúde, do ambiente de, do ambiente e da cidadania. e da cid A volta do peixe aoArio é odo símbovolta peixe ao rio é o lo de sua luta. lo de sua luta. O AUTOR

O AUTOR

Eugênio MarcosEugênio Andrade Marcos A Goulart é Professor da FaculGoulart é Professor da dade de Medicina da Universidade de Medicina da U dade Federal de Minas Gerais dade Federal de Minas e Diretor de Publicações Ciende Publicaçõe tíficas do Projetoe Diretor Manuelzão. do Projeto Man Além de diversastíficas publicações de diversas pub na área médica, Além publicou em na área médica, publi 2001 o livro Nos Ermos e nas o livro Nos Ermo Brumas da Serra 2001 do Espinhaço Brumas da Serra do Es e foi editor do livro Navegando o Rio das Velhas edas foiMinas editor aos do livro Nav Gerais, lançado em 2005. o Rio das Velhas das M

Gerais, lançado em 200


De Lucy a Luzia


As histórias relatadas neste livro receberam uma versão livre ao serem descritas, mas são todas baseadas em documentos científicos.


EUGÊNIO MARCOS ANDRADE GOULART

De Lucy a Luzia A LONGA JORNADA DA ÁFRICA AO BRASIL

2006


De Lucy a Luzia A longa jornada da África ao Brasil Eugênio Marcos Andrade Goulart Editora Coopmed Av. Alfredo Balena, 190 - Santa Efigênia CEP 30130-100 • Belo Horizonte • MG e-mail: editora@coopmed.com.br Editoração eletrônica: View Produções Ilustrações - José Eduardo de Freitas Cezar Revisão de texto - Myriam Goulart de Oliveira

Direitos exclusivos Copyright © 2006 by

FICHA CATALOGRÁFICA G694d Goulart, Eugênio Marcos Andrade De Lucy a Luzia: a longa jornada da África ao Brasil/ Eugênio Marcos Andrade Goulart. Belo Horizonte: Ed. Coopmed, 2006. 120 p. ilus. 1.Paleontologia 2.Homem pré-histórico 3.Evolução humana 4.Homem primitivo 5.Homem fóssil I.Título NLM: GN 281 CDU: 569.9 ISBN: 85-85002-88-3

Todos os direitos autoriais reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de1998. É proibida a duplicação desta obra, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação fotocópia ou outros), sem a permissão prévia, por escrito, da Editora.


Aos garimpeiros da histรณria da humanidade, criaturas quase insanas a acreditar que no passado pode estar a chave do nosso futuro. Especialmente para o primeiro em terras mineiras e, para nรณs, o maior de todos: o angustiado cientista Peter Wilhelm Lund.



Um agradecimento sincero aos professores André Prous e Cástor Cartelle, da Universidade Federal de Minas Gerais, pelas muitas sugestões e críticas. Algumas imprecisões que permaneceram no texto, como as “meras suposições” por eles identificadas, são todas de responsabilidade exclusiva do autor.

Também gostaria de deixar registrado um reconhecimento à professora Mônica Meyer, amiga especial que, quando Diretora do Jardim Botânico e Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, apoiou a elaboração deste livro, colocando à disposição do autor todo o rico acervo bibliográfico da instituição.


PREFÁCIO

Lucy, Luzia e Minas Gerais João Amílcar Salgado 1

Quando os primeiros europeus chegaram às Américas ficaram surpresos com o comportamento gentil e alegre dos nativos, bem como com seu aspecto bonito e sadio. Ao se revelarem numerosas riquezas, muitas desconhecidas até então, e como pretexto para a pilhagem, os estrangeiros substituíram aquela primeira imagem favorável por estigmas cada vez mais graves. Tudo culminou com vergonhosas justificativas para a corrupção, a contaminação e a morte dos nativos. De permeio, rapinaram tesouros históricos e destruíram sítios paleontológicos e arqueológicos. Os sucessivos administradores, religiosos, professores e demais membros da elite brasileira foram e são formados para se julgarem europeus. Como resultado, nossos escritores, sociólogos, antropólogos e cientistas da natureza adotaram e ainda adotam, inconsciente e até conscientemente, os falsos juízos e as falsas razões inventados para respaldar o menosprezo e a agressão aos indígenas. Tal ultraje foi imediatamente estendido aos escravos trazidos da África e daí aos povos orientais. Para culminar, a infâmia e o preconceito abrangeram o ambiente desses seres humanos, tachado de inóspito e infecto. Esboçou-se, então, a idéia de que o mundo digno era o europeu ou ocidental - o primeiro - enquanto o resto da humanidade eram os indignos segundo e terceiro mundos. Sobre tão lamentável alicerce é que, por cinco séculos, foram construídos o colonialismo e seu sucessor, o imperialismo. Este último hoje perdura sob disfarces e sofisticações tão variados quanto cínicos. Ora, sempre houve evidências de que a espécie humana floresceu e frutificou exatamente nesse ambiente por tanto tempo estigmatizado de indigno. Mas estabeleceu-se, ao longo do tempo, uma espécie de pacto para desconsiderá-las. Acontece que recentemente tais evidên1

Professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador de história da Medicina


cias não só se avolumaram, como não é mais possível deixar de considerá-las. Exatamente nesse ponto, percebemos que os meios de comunicação coletiva (vocalizados por intelectuais ocidentais ou ocidentalizados) deixam transparecer inédita surpresa, cujo tom, apesar do esforço para não fugir à linguagem científica, acaba sendo indiscutível exclamação de despeito. Em outros termos, os recentes dados da paleontologia, da arqueologia e da biologia molecular estão a obrigar os cientistas e demais intelectuais do Ocidente a um mea-culpa pelo desdém de cinco séculos e a uma revisão conceitual da história humana, sem precedentes na própria História. E a pergunta que se impõe é a seguinte: como os próprios cientistas e demais intelectuais dos países tropicais pretendem comportar-se diante disso tudo? Mais uma vez vão posar de europeus? Ou arregaçarão as mangas de modo a participar, com brilho e independência, do esforço para se reescrever, desta vez sem hipocrisia, a história da humanidade? O exemplo foi dado pelo médico mineiro Antônio da Silva Melo, que audaciosamente escreveu, na metade do século XX, e sem dispor dos dados ora acumulados, um livro cujo título diz tudo: A Superioridade do Homem Tropical. Tal reescrita certamente passará por Minas Gerais. Dois arautos de importantes acontecimentos científicos encontraram-se em Minas, no século XIX: o médico dinamarquês Peter Lund, precursor das conclusões do ex-estudante de medicina Charles Darwin, e o médico prussiano Hermann Burmeister, prenunciador da descoberta da doença de Chagas. Lund, cujo bicentenário de nascimento comemoramos em 2001, chegou a Minas em 1833, para realizar pesquisas na paisagem de Lagoa Santa, antes denominada Prodigiosa. Veio a ser o vanguardeiro da paleontologia nas Américas, quando descreveu o homem americano primitivo e o tigre dente-de-sabre - sem deixar de estudar também o abacaxi nativo.


Seu desejo de ter foguetes em vez de lágrimas, por sua morte, levou ao trágico uso de seus preciosos livros para a confecção daqueles. A suplementação arqueológica da paleontologia de Lund foi iniciada pelo notável médico mineiro Basílio Furtado. Outro fato ligado ao dinamarquês: um de seus conterrâneos vindos para Lagoa Santa era tio, pelo lado Aarestrupp, de Charlie Chaplin, deixando aqui parentes mineiros do genial artista. Já Burmeister, após ter-se formado em medicina, fez-se naturalista, sendo dos primeiros subespecializados no estudo dos insetos. Provavelmente levado por Lund a descer grutas, fraturou a perna, que foi imobilizada por este. Um e outro não deram suficiente valor ao repouso, sendo necessário que um terceiro médico - este inglês e rigoroso, da mina de Morro Velho - obtivesse a consolidação óssea. Declarado inimigo dos ouro-pretanos, Burmeister foi para a Argentina, onde descreveu um grande percevejo depois identificado por Carlos Chagas como vetor da doença de Chagas - e onde organizou importante museu. Assim, existe nexo entre aquela hostilidade mineira a Burmeister e o atual brilho da escola argentina de paleontologia. Sabemos muito bem que, quando foram anunciados dinossauros patagônios maiores que o tiranossauro, houve manifestações de ciúme científico e até de interesses econômicos contrariados. O mesmo aconteceu com a novidade chinesa dos dinos emplumados e com o reconhecimento da epopéia matricial dos bosquímanos. A reconstituição das feições da mineira Luzia, cujo apelido é evocação proposital de Lucy, causou também desde perplexidade científica até murmúrios enraizados em irrecuperável racismo. Há também farto repertório de juízos de valor referentes às civilizações originais das Américas. Sabemos que apreciações sobre as pirâmides, as múmias, a escrita, a medicina, as demais técnicas e os cos-


tumes dos povos daqui sempre significaram comparações tendenciosas com as civilizações egípcia e mesopotâmica. O mais ridículo é que estas últimas apareciam nesse contexto como se elas e a Europa fossem um só processo edificado pela raça branca. Há, de fato, em Minas Gerais, forte tradição de pensamento ousado entre ficcionistas, outros artistas, ensaístas, inventores, cientistas e políticos. Entre todos, há importante contingente de médicos (nativos e adotivos), que, desde o alvorecer da mineração, se mostram afeiçoados à cultura, à erudição e à versatilidade. O médico Eugênio Goulart, honrando essa respeitável e múltipla linhagem mineira, escreveu texto excelente, DE LUCY A LUZIA, em que resume com maestria a gigantesca distância entre estas duas mulheres tropicais. É livro que será avidamente lido por jovens e adultos, por educandos e educadores, e por leigos e especialistas. Isso porque é raro, em livro tão condensado, tanta abrangência atualizada e é igualmente raro, em assunto tão especializado, linguagem tão agradável e tão clara.


Árvore genealógica desde os hominídeos até o Homo sapiens, evolução ocorrida nos últimos quatro milhões de anos

Migração do Homo sapiens da África para todos os continentes, ocorrida nos últimos 100 mil anos


SUMÁRIO



CAPÍTULO

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A BREVE HISTÓRIA DE LUCY HÁ TRÊS MILHÕES DE ANOS



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C

orpo ereto, pescoço esticado, atenta a qualquer sinal das hienas - o grande perigo do final da tarde - Lucy complicou-se ao atravessar no lusco-fusco o pequeno riacho, avaliando mal a espessura do lodo a seus pés. Uma lama fluida e movediça a engoliu, e sem o auxílio de sua tribo, da qual se desgarrara durante a busca por folhas e raízes comestíveis, acabou por afogar-se onde menos esperava haver riscos. Mais tarde as hienas chegaram, mas não se arriscaram a enfrentar o traiçoeiro pântano. Apenas um pequeno roedor mordiscou-lhe o quadril, deixando marcas de dentes no osso pélvico. Devido à água, seus músculos e vísceras rapidamente se decompuseram, e o cálcio de seus ossos foi substituído por minerais do meio líquido. Por acaso, seu esqueleto ficou preservado através dos tempos. Lucy tinha pouco mais de 20 anos de idade, media 1,10 metro, pesava cerca de 30 kg e, embora tivesse o mesmo volume de cérebro que os chimpanzés, possuía uma característica inovadora fundamental: era bípede. Exatamente por isso, apresentava uma particularidade que seria fundamental para a evolução da espécie. As mãos, com dedos de grande mobilidade, similares às dos humanos atuais, estavam livres e eram sua mais importante arma. Lucy e sua pequena tribo


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Devido à mudança do clima, com o início de uma longa era de glaciações, quando o hemisfério norte cobriu-se de gelo, a África, terra natal dos hominídeos, tornou-se mais seca, sofrendo grandes períodos de estiagem, e as florestas foram cedendo espaço para as savanas. Os ancestrais de Lucy tinham abandonado a vida na copa das árvores e habitavam o chão. Os riscos eram imensos, assim como eram bem maiores as chances de encontrar comida. De dieta variada, consumiam vegetais e carnes. Acompanhavam os grandes carnívoros para aproveitar os restos de alimentos deixados por eles. Esta, sem dúvida, era uma estratégia perigosa, já que se tornavam uma presa fácil. Talvez pelo fato de haver quase sempre algo mais substancial disponível aos predadores, a espécie de Lucy sobreviveu e passou adiante seus genes. Fazia parte da família dos hominídeos, da qual se originaram os humanos modernos. Viveu há três milhões de anos, na região conhecida hoje como Chifre da África, então um lugar verde e cheio de vida. O bipedismo foi o grande salto evolutivo, já que gerou uma espécie bastante diferenciada em relação às outras. Entretanto, hoje sabemos, suas conseqüências foram desastrosas para boa parte da vida na Terra. As mais antigas provas de primatas bípedes foram descobertas em 1978, também na África, na região de Laetoli, na Tanzânia, datadas de quatro milhões de anos. São 75 pegadas de dois hominídeos adultos acompanhados de uma criança, as quais ficaram perfeitamente preservadas em cinzas vulcânicas. As marcas se estendem por 24 metros de trilha e são semelhantes às que deixaria o homem moderno.


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Pode-se inventar uma história sobre o momento em que os rastros foram deixados para a posteridade, ficção que certamente não estaria distante daquilo que realmente ocorreu. Suponhamos que, após dias de terremotos, estrondos e chuvas ácidas, um período de calmaria tenha se iniciado. A erupção da montanha ainda estava visível, mesmo tendo diminuído seu ímpeto. Um céu escarlate nunca visto, devido à poeira fumegante que saíra do interior da terra, e um calor intenso, provocado por um inusitado efeito estufa, criavam um ambiente pouco propício à vida. A pequena família de bípedes o pai, com altura bem próxima a 1,40 metro; a mãe, perto de 1,20 metro; e uma pequena cria - procurava abrigo distante do vulcão e encontrou cami-

Pegadas de quatro milhões de anos, em Laetoli, na África

nho sobre a lava morna de dias anteriores. Com alguma dificuldade conseguiu atravessar a torrente de lama parcialmente ressequida. O primeiro a passar foi o macho adulto, seguido pela fêmea, que procurava colocar os pés sobre as pegadas já impressas pelo companheiro. A criança saltitava ao lado e, por um momento de dúvida, talvez por pressentir o perigo, ou talvez por mera curiosidade infantil, deteve-se por um instante, voltou-se para a esquerda e em seguida continuou a marcha. Tudo indica que conseguiram


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sobreviver. Seus rastros solidificaram-se e resistiram aos ventos e temporais até os nossos dias. Para a história da humanidade, são mais importantes que as famosas pegadas deixadas pelo homem na Lua, quatro milhões de anos depois. Os hominídeos talvez tenham se originado há cerca de 10 milhões de anos, quando gradativamente começaram a se distanciar dos demais primatas. O chimpanzé é o primata atual geneticamente mais próximo do homem moderno, mas pode ser considerado nosso primo, e não nosso avô. O ancestral comum, pertencente a um tronco único, é um possível fóssil que ainda não foi encontrado. São poucas as esperanças de que um dia o encontremos, já que viveu na floresta, em regiões úmidas, o que não favorece a preservação dos ossos. A fossilização é um fenômeno muito raro na natureza. É necessário que a morte aconteça em ambientes não ácidos e que a sedimentação se faça de forma rápida, como em pântanos, ou em locais com enxurradas de lama. Dessa forma, a matéria orgânica é substituída lentamente por minerais, e o esqueleto vai se petrificando. Em situações excepcionais, os tecidos moles são preservados, como, por exemplo, os insetos que foram encontrados no âmbar, que é uma resina de vegetais, e os mamutes em perfeito estado de conservação encontrados no gelo, na Sibéria. Crânio e cérebro de um chimpanzé e de um humano


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Lucy era com certeza bípede, pela conformação de seu arco plantar, e do sexo feminino, inferência possível a partir de detalhes de seu osso pélvico. Era jovem, mas adulta, devido às suas extremidades ósseas calcificadas e suturas cranianas soldadas, além de já ter tido a erupção dos dentes sisos. Tinha as mãos quase idênticas às nossas, com quatro dedos em oposição ao polegar. Como elas estavam disponíveis durante a marcha, foram sua grande arma para a perigosa vida no solo. Sua espécie ganhou o nome científico de Australopithecus afarensis, sendo que austral é sinônimo de sul, pitecos significa macaco, e afar é uma homenagem à região da Etiópia onde foi encontrada. A datação dos sedimentos nos quais repousavam seus ossos comprovou que viveu há 3,2 milhões de anos. Como é possível para a ciência precisar a data de fósseis? O processo foi descoberto há algumas décadas, quando se desenvolveu a técnica para medir o carbono 14 retido pelos organismos. O carbono 14 é um isótopo radioativo do carbono comum, que é o carbono 12, e tem dois nêutrons a mais em seu núcleo. Na atmosfera terrestre encontra-se o carbono 14, resultante da radioatividade cósmica, que é absorvido pelos seres vivos. Assim, durante a vida, a quantidade desse tipo de carbono no organismo e na atmosfera é a mesma. Quando ocorre a morte, o radiocarbono começa a desintegrar-se até desaparecer totalmente, transformando-se em carbono 12. Dessa forma, tem-se um autêntico relógio do tempo: determinando-se a quantidade de carbono 14 em um fóssil pode-se calcular a idade, já que sua meia-vida, ou seja, o período em que a metade se desintegra, é de 5.700 anos para esse átomo. Como o carbono 14 proporciona datações de até 40 mil anos, é utilizado apenas para fósseis mais recentes. Para datações mais antigas usam-se isótopos


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de potássio, argônio, estrôncio e outros átomos, que possuem meiavida mais longa, alguns atingindo milhões de anos. A ciência moderna desenvolveu uma ampla variedade de métodos de investigação do passado. Alguns são muito exóticos, como o que estuda pólens fósseis e consegue estimar a época em que as plantas viveram e o clima que predominava. Sempre que possível, mais de um teste é utilizado nos estudos. Os fósseis de Lucy, por exemplo, foram datados cruzando-se informações de quatro diferentes métodos. Até recentemente, Lucy era o hominídeo mais antigo já descoberto. Mas, em 2001, no Chade, em pleno Deserto de Saara, foi desenterrado um crânio, parcialmente destruído, cuja parte posterior era semelhante à de um chimpanzé e a anterior, à de hominídeo. A


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datação mostrou ter a idade de sete milhões de anos. Recebeu o nome de Sahelanthropus tchadensis e passou a ser considerado o mais primitivo hominídeo. Todavia, por não terem sido encontrados outros ossos além desse pedaço de crânio, não se sabe se era bípede. Na escala evolutiva, surgiu há cerca de dois milhões de anos o Homo habilis, assim denominado porque foi o primeiro a fabricar ferramentas. Uma pedra encontrada na Etiópia, com datação de 2,5 milhões de anos, que foi usada para quebrar conchas e ossos, é provavelmente o mais antigo instrumento já descoberto fabricado pelo homem. Provavelmente, o Homo habilis tinha comunicação pela fala, o que é sugerido por pequenas alterações na conformação óssea da base do crânio. Ainda não dominava o fogo, mas o mantinha aceso temporariamente, quando iniciado por raios. Talvez usasse para isso uma pequena estrutura empregada até hoje por tribos primitivas: um arcabouço de osso como campânula, com um pequeno carvão fumegante embebido em óleo de origem animal. Os fósseis dessa espécie foram encontrados na Tanzânia e no Quênia. Essa espécie é considerada a primeira do gênero Homo, devido ao fato de apresentar uma capacidade craniana em torno de 700 cm3 - um terço maior do que o de Lucy -, apesar de ser ainda um terço menor do que o volume cerebral dos humanos modernos. Segundo controversa opinião de antropólogos, o marco iniHomo habilis


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cial da cultura se deu no momento em que um Homo habilis, intencionalmente, lascou uma pedra de tal forma a criar um gume que o auxiliasse a cortar carne. Polêmicas à parte, reside a certeza de que, forçados pelas mudanças climáticas, primeiro fomos bípedes e somente em uma fase posterior, mais inteligentes. A teoria da evolução, que postula que mutações aleatórias permitem que o ambiente selecione os mais aptos a sobreviver, é hoje aceita sem restrições no meio científico, dado o enorme acúmulo de evidências que foram coletadas nas áreas da paleontologia, da genética e da anatomia comparada. Todavia, uma forte e ainda muito popular corrente de religiosos, que se intitula criacionista, nega a evolução e não admite outra versão que não a da Bíblia para a história da vida na Terra. Insiste que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e que os fósseis encontrados seriam apenas macacos, sem qualquer vínculo com a humanidade. Além do bipedismo e da expansão do volume do cérebro, que se deu principalmente na região frontal, que é a área associada à inteligência mais elaborada, como o raciocínio a partir de associação de idéias, a memória e a fala, foram várias as particularidades anatômicas que os estudiosos consideraram para definir o gênero Homo. Devido ao aumento do crânio, ocorreram alterações, tanto na mãe como no filho, para permitir o parto. A cintura pélvica feminina tornou-se mais larga, e como os ossos cranianos da criança, ao nascer, ainda não estavam fundidos, permitiam ser parcialmente comprimidos. Disso resultou uma perda de maturidade ao nascimento, com o prolongamento do período da infância e da dependência dos pais.


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Além disso, os humanos podem produzir uma grande variedade de sons devido a pequenas, mas importantes, alterações na posição das cordas vocais na laringe. É possível constatar também, a partir do calibre dos orifícios do crânio, Uma gorila, uma mulher e as diferenças do osso pélvico o aumento progressivo do diâmetro dos nervos que comandam os movimentos da língua. Em parte, devido às modificações na alimentação habitual,- como redução da consistência - os dentes caninos e os molares tornaram-se menores, da mesma forma que a mandíbula, que não necessitava mais sustentar uma musculatura reforçada. E, ainda, não se sabe por quê, ocorreu uma diminuição generalizada dos pêlos, que deixaram de cobrir todo o corpo. O fato é que isso permitiu que o organismo perdesse temperatura quando fosse necessário e, assim, se adaptasse melhor a um ambiente quente. Com passar do tempo, a região do Chifre da África deixou de ser úmida e fértil e se transformou em um deserto. Um clima extremamente hostil começou a tomar conta da África Oriental há cerca de um milhão de anos, e o local onde Lucy morreu é hoje uma árida extensão de pó e pedras, em que a temperatura atinge 50 graus no meio do dia. Em 1974, na região de Afar, na Etiópia, Donald Johanson, paleontologista norte-americano, caminhando por um sulco ainda não


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percorrido, mesmo estando palmilhando os arredores há vários anos, encontrou aflorado em uma área pedregosa um fino osso de braço, que imediatamente identificou como sendo de um hominídeo. Aquele indivíduo certamente não usaria um membro tão delgado como apoio para a marcha. Logo em seguida viu surgir sob uma pequena camada de areia parte do crânio, um fêmur, a pélvis e, posteriormente, centenas de fragmentos de ossos, cerca da metade do esqueleto. Ainda hoje, permanece como o mais completo fóssil de hominídeo encontrado. Naquela noite, comemorando o achado histórico, toda a equipe que o acompanhava bebeu e dançou ao som dos Beatles. A música Lucy in the sky with diamonds, repetida à exaustão, serviu como sugestão para denominar a frágil criatura, destinada a um tardio sucesso após prolongadíssima espera no anonimato.

O que restou de Lucy


CAPÍTULO

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O CRUCIAL DOMÍNIO DO FOGO HÁ UM MILHÃO DE ANOS / 29

A

sequidão do ar oprimia toda a tribo, escondida em um abrigo de pedra para fugir do causticante sol. Entediados, aguardavam o frescor do fim da tarde para sair em busca de alimentos, raros naquele período de seca que acometia toda a região central do continente africano. Alguém mais curioso teve a idéia de repetir a estranha experiência de dias anteriores, quando o atrito repetido de uma vareta girando sobre a madeira plana chegou a criar uma pequena fumaça e a deixar marcas escuras de carvão, tanto na extremidade da haste, como na outra superfície de contato. Dessa vez o experimento foi realizado com uma pequena, mas fundamental, modificação. Foi agregado um chumaço de capim fino e seco à área de atrito. A fumaça começou logo a se formar, e, aumentando-se a velocidade de giro da vareta, em poucos minutos surgiu, para espanto geral, uma pequena chama, que logo se esvaiu com a queima do capim. Provavelmente, a tribo dividiu-se entre o temor e a euforia. Afinal, não sabiam se no futuro aquele inusitado fogo significaria castigo ou prêmio. Os espíritos aprovariam que os humanos lidassem com poderes que até então pertenciam somente aos deuses? Por uns tempos a experiência foi deixada de lado, pois o medo havia vencido. Mas, com o passar dos dias, com a fome aumentando e o risco iminente de serem Forma primitiva de se iniciar um fogo


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atacados pelos insaciáveis predadores - os grandes carnívoros, seus velhos conhecidos -, alguém resolveu arriscar de novo e repetiu a delicada manobra, agora com maior quantidade de capim. Novamente, o surgir da chama maravilhou a todos, mas, dessa vez, a mantiveram acesa, agregando galhos para uma pequena fogueira. Os dias seguintes foram de expectativa. O que aconteceria? Mas seguiram-se tempos de tranqüilidade e segurança, uma vez que os inimigos foram afugentados pelo fogo. Não se sabe ao certo se já possuíam sentimentos místicos, mas caso os tivessem teriam concluído que os deuses não estavam raivosos. Muitas utilidades foram sendo lentamente descobertas para o fogo. Perceberam mais tarde que a carne chamuscada ficava mais macia, além de resistir mais tempo sem deteriorar. Notaram que raízes e folhas quando aquecidas eram também mais facilmente trituradas pelos dentes. Mas a fogueira, que agora era mantida acesa permanentemente, representava antes de tudo um excelente meio de defesa contra conhecidos rivais, como leões, leopardos e hienas. Naquele momento, há cerca de um milhão de anos, aconteceu a grande mudança de rota da humanidade. Em pouco tempo - aliás, na escala evolutiva, em pouquíssimo tempo -, deixamos de ser apenas uma espécie a O fogo como poderoso e temível aliado


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mais para, perigosamente, nos tornarmos os senhores da Terra. O domínio do fogo nos fez quase-deuses. Sem dúvida que, para a vida do planeta, teria sido melhor que não tivéssemos adquirido essa habilidade. Enquanto o Homo habilis utilizou-se do fogo, mas não sabia principiá-lo, seu sucessor, o Homo erectus, conseguiu a grande façanha de saber dar-lhe início. Pôde então ocupar regiões frias e foi, assim, o primeiro a sair da África. Há aproximadamente um milhão de anos, grupos de Homo erectus começaram a migrar em direção à Ásia e à Europa. Provavelmente atravessaram o Mediterrâneo pelo Estreito de Gibraltar, onde os continentes africano e europeu quase se tocam, separados por pouco mais de 20 quilômetros de água. Para a Ásia migraram simplesmente caminhando, pela ponte de terra do Deserto de Sinai.

Mar Mediterrâneo, com setas no Estreito de Gibraltar e no Deserto de Sinai

Na Europa, o Homo erectus permaneceu por quase um milhão de anos, tendo sido extinto há cerca de 100 mil anos. Sobre-


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viveu a várias glaciações alpinas e ocupou, de forma esparsa, todo o sul do continente. Suas ferramentas eram mais elaboradas, pois tinha o cérebro mais desenvolvido. Tinha o mesmo peso dos humanos modernos, porém a estatura era um pouco inferior. Existem provas seguras de que o Homo erectus habitou o sudeste asiático, pelo menos até há 800 mil anos. Por todo o sul da China e em sua fronteira com o Vietnã, poucos ossos - mas inúmeras ferramentas de pedras - foram encontrados. Existem também, espalhados em uma vasta região entre a China e a Austrália, pequenos fragmentos de uma rocha muito rara, chamada de tectite, que tem uma composição peculiar, vinculada a meteoros. Muito provavelmente um grande meteoro atingiu a área em tempos passados, apesar de não existir hoje uma cratera visível, que com certeza já teria sido naturalmente coberta. Mas, sem dúvida, a devastação foi imensa, pois existem vestígios de grandes incêndios e de alteração marcante do clima. Nessas circunstâncias, certamente teria ocorrido o extermínio de muitas espécies, inclusive a dos primeiros humanos. Um fato significativo reforça essa teoria: os sedimentos onde foram encontradas as tectites e as ferramentas mais recentes dos Homo erectus foram datadas e ambas mostraram ter a idade de 803 mil anos. Fato semelhante, se bem que em outras proporções, aconteceu há 60 milhões de anos, quando um enorme meteoro caiu provavelmente sobre o Golfo do México e, por décadas, alterou drasticamente o clima em toda a superfície do globo terrestre. Grandes animais, como os dinossauros, foram exterminados. Apesar de ser uma teoria que ainda encontra ressalvas, não existe outra


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explicação mais convincente para que os fósseis dos dinossauros, que dominaram a Terra por milhões de anos, abruptamente desaparecessem, já que não são encontradas ossadas em idades mais recentes que 60 milhões de anos. Assim sendo, por um golpe de sorte, a humanidade escapou, pelo menos temporariamente, do destino dos dinossauros. Nosso parente, o Homo erectus, teria sobrevivido apenas porque não estava concentrado no sudeste asiático e porque a destruição provocada pelo meteoro foi restrita a essa região da Terra. Ainda não foi encontrado um fóssil que faça o elo entre o Homo erectus e a espécie que o sucedeu, o Homo neanderthalensis. Sabese, entretanto, que ambos coexistiram por muitos milênios em territórios comuns na Ásia e na Europa.

Homo erectus

Homo neanderthalensis


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O primeiro fóssil de um neandertal foi descoberto em 1856 no Vale do Rio Neander, na Alemanha. A princípio foi considerado pelos cientistas que o analisaram como o esqueleto de um símio. Somente um século após, com a descoberta de novos fósseis, foram situados de forma inequívoca na escala sucessória da humanidade como um dos ramos mais recentes da árvore evolutiva dos primatas. Novos achados estão sempre surgindo: no final da última década, ou seja, passados quase 150 anos, ao se escavarem novas áreas próximas ao local, foram encontrados ossos de vários indivíduos, sendo que três estavam enterrados em um mesmo lugar. Nessa cova, foram identificados um úmero de macho adulto, um de fêmea, também adulta, e um dente de leite de criança. Acredita-se que faziam parte de um mesmo grupo familiar. A espécie Homo neanderthalensis teria chegado à Europa e à Ásia há cerca de 200 mil anos. Os indivíduos tinham a compleição atarracada, uma evidente crista frontal logo acima dos olhos, o nariz alargado, o corpo coberto por um pêlo espesso e duro, e a barba cerrada encobrindo o pequeno queixo. Os anatomistas descobriram que apresentavam maior amplitude de movimentação da base do crânio, o que indica maior capacidade de emitir sons e articular palavras. Provavelmente, os machos eram caçadores e as fêmeas coletoras de raízes e folhas, assim como em tribos indígenas mais recentes. Faziam cestas tecidas com fibras e escavavam troncos para esculpir gamelas. Para cozinhar legumes e tubérculos aqueciam pedras junto ao fogo e em seguida as passavam para as bacias de madeira com o alimento mergulhado na água. As pedras iam aquecendo a água e, após alguns minutos, eram substituídas


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por outras da fogueira, até que houvesse a fervura. Trabalhavam com o couro para a confecção de primitivas roupas, sapatos e cordas. Também nessa área conseguiram um grande avanço tecnológico, que foi a invenção da costura. Nada como calçar uma protetora bota para caminhar sobre pedras, ou na neve. A linha era obtida cardando-se crinas de animais e fibras vegetais. Suas armas também eram mais sofisticadas. As lanças foram aperfeiçoadas pelo afilamento das extremidades, seguido pelo endurecimento por meio do fogo, ou, então, eram-lhes encaixadas ponteiras de pedra lascada ou chifres, tornado-as mais eficazes. Isso pode ser comprovado pelo achado de uma ponta de pedra profundamente incrustada na vértebra de um cavalo primitivo, que foi encontrada junto a fósseis neandertais em uma caverna no Iraque. Outros inovadores e poderosos instrumentos de caça, como as boleadeiras e as fundas, foram também desenvolvidos e aperfeiçoados com o tempo. As boleadeiras são constituídas de três a quatro tiras de couro, de comprimento desigual, unidas entre si Boleadeiras


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em uma das extremidades, cada qual com uma pedra amarrada na ponta oposta. Após vários giros eram arremessadas em direção às pernas dos animais e, pela força centrífuga adquirida no lançamento, embaraçavam-se Funda aos membros, derrubando a caça. A funda é uma tira de couro com um abaulamento central, onde se encaixava uma pedra arredondada. Dobrada ao meio, era girada rapidamente sobre a cabeça do caçador e, repentinamente, soltando-se uma das pontas, a pedra era desprendida e saía pela tangente, em grande velocidade. Em mãos hábeis eram armas mortíferas. Os neandertais sabiam também como caçar em grupo, quando almejavam um animal de grande porte, como o bisão. Atacavam em um local onde fosse possível formar um círculo de guerreiros para impedir a fuga da caça e a perseguiam de forma escalonada, com um revezamento de caçadores. Já para enfrentar um mamute, tinham que utilizar técnicas diferentes. Com o uso do fogo, encurralavam o grande animal em um desfiladeiro estreito, e alguém mais corajoso cortava-lhe os tendões das pernas traseiras, impedindo-o de caminhar. Em seguida, o mamute era abatido com compridas lanças. Era uma operação de grande risco, mas necessária para que sobrevivessem ao rigor do inverno. A abundante gordura do animal, além


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de aproveitável na alimentação, era utilizada como cosmético, para proteção contra o frio, e ainda como combustível para as candeias primitivas. Viviam pouco tempo, em média apenas 30 anos. Supõe-se que tinham uma organização social hierárquica, com chefes e curandeiros. Há indícios de que praticavam uma medicina baseada principalmente na flora e na invocação aos espíritos bons e de que faziam uso de substâncias alucinógenas, restritas às cerimônias religiosas. É provável que acreditassem em algum tipo de existência após a morte, já que seguiam complexos rituais de sepultamento. No Iraque, em uma caverna chamada Shanidar, foi encontrado pólen de flores silvestres junto ao corpo de um neandertal cuidadosamente recoberto por pedras. Historicamente foram os primei-

Ritos da morte no enterro de um neandertal

ros seres a colocar flores em túmulos. Também foi encontrado o fóssil de um adulto que tinha os bra-


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ços atrofiados por um defeito congênito, demonstrando que nesse estágio já havia um sentimento coletivo de proteção aos membros mais frágeis da comunidade. Da mesma forma, outro fóssil apresentava uma grave fratura consolidada, evidenciando que o indivíduo havia recebido cuidados prolongados. Na Hungria foi achado um dos poucos objetos conhecidos da arte neandertal, já que não tinha a finalidade prática de uma ferramenta. É um dente de filhote de mamute, datado de 80 mil anos, com as bordas trabalhadas em ângulo, que deve ter tido uma utilidade ritualista e espiritual. Numa sociedade certamente conservadora, inovações deviam ser mal vistas e não apresentavam boa capacidade de adaptação aos desafios que um dia surgiram, como a mudança do clima e o contato com novas espécies. De fato, conviveram com o Homo sapiens por longo tempo. Ocuparam os mesmos espaços geográficos na Europa e na Ásia entre 50 mil e 30 mil anos atrás e provavelmente foram extintos devido a essa interação. Os mais recentes fósseis neandertais datam de 30 mil anos e foram encontrados no sul da Espanha. O último refúgio do Homem de Neandertal foi o Rochedo de Gibraltar, o

Rochedo de Gibraltar


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extremo meridional da Europa, que abriga 140 cavernas. Não existem evidências de guerras entre os neandertais e os humanos modernos que expliquem o desaparecimento dos primeiros. Mas é pouco provável que essa convivência tenha sido pacífica. Estudos moleculares recentes confirmam que os neandertais não deixaram rastros genéticos na humanidade atual. Se houve cruzamentos entre eles que tenham gerado filhos, não ficaram sobreviventes que tenham passado adiante seus genes. De forma semelhante a muitos outros ramos da árvore da evolução humana que não sobreviveram, o destino do neandertal foi a extinção. Em conseqüência, o Homo sapiens ficou sendo o único remanescente do gênero Homo a permanecer na face do nosso planeta. Em termos evolutivos, somos muito jovens, com pouco mais de 150 mil anos de existência. Segundo os cientistas, a formação do Universo, a partir da grande explosão inicial, o Big Bang, deu-se há 15 bilhões de anos. A formação da Terra ocorreu há cerca de quatro bilhões de anos e foi seguida, milhões de anos após, pelo surgimento da vida nos mares já existentes. Os primeiros primatas são bem mais recentes e apareceram há 60 milhões de anos, enquanto os hominídeos surgiram há cerca de 10 milhões de anos. Para que se possa perceber a diferença entre números tão estratosféricos é utilizada a comparação com o nosso curto ciclo anual de 365 dias. Se o Big Bang tivesse ocorrido no dia 1º de janeiro, a Terra teria surgido no dia 14 de setembro, os primatas teriam aparecido em 29 de dezembro e os hominídeos no dia 30 de dezembro. A espécie humana, do jeito que somos há 150 mil anos, teria tido início oito minutos antes da meia-noite do dia 31


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Diagrama comparativo do tempo transcorrido desde a formação do Universo, usando-se como escala os 12 meses do ano


CAPÍTULO

O DRAMÁTICO ÊXODO DA ÁFRICA HÁ 80 MIL ANOS

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O DRAMÁTICO ÊXODO DA ÁFRICA HÁ 80 MIL ANOS

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E

m certas horas do entardecer, a luz do sol batendo nas distantes montanhas do outro lado do mar refletia um verde inacreditável. Como poderia haver vegetação tão próxima ao deserto? A atração era enorme, assim como o medo de enfrentar o desafio. Mas tinham que tentar, pois era tudo ou nada. Permanecer era aceitar a morte lenta, pela sede e pela fome. Lançar-se às águas era a única chance de sobreviver. Ou morreriam afogados, ou alcançariam a outra margem, certamente um verdadeiro paraíso. Estavam adiando a jornada marítima há anos, esperando que o clima amainasse na terra-mãe. Mas a piora era gradativa, restavam poucas folhas, raras raízes, algumas últimas poças de água barrenta. Os bichos desapareceram todos - ou morreram, ou tentaram a migração através do infindável deserto. Estavam sós! Eram poucas centenas de seres humanos, remanescentes de tribos que sempre viveram separadas, mas que agora tentavam juntos uma última batalha pela sobrevivência. Eram negros e esquálidos, os corpos nus vagavam pela orla, carregando seus poucos pertences, junto a raras crianças de colo.

A expectativa da travessia marítima da África para a Ásia


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Em um dia de tempo calmo, iniciaram finalmente a temida travessia. Sabiam que teriam de caminhar pela água durante todo o dia. Tinham estudado detalhadamente o vaivém das marés. Por horas seguiram pela água ainda rasa, mas a profundidade aumentava sempre. A meio caminho do objetivo as ondas quase os engoliam. Alguns perderam o pé e foram arrastados pela correnteza. Por momentos, as montanhas em frente desapareciam e a água cobria tudo. No limite de suas forças, perceberam que o fundo de areia voltava a subir lentamente. Mais algumas horas e, extenuados, deitaram em terra firme, abraçando o chão que seria agora seu novo lar. Adultos e crianças, deslumbrados, viram pela primeira vez em suas vidas rios de águas claras correndo. Viram campinas e grandes árvores e constataram que as montanhas verdes eram reais. A visão à distância não era ilusão, como alguns temiam. Uma nova vida recomeçava. Hoje sabemos que a travessia do Homo sapiens da África para a Ásia, através do Mar Vermelho, deu-se há cerca de 80 mil anos, e estudos recentes comprovam que uma única leva de migração deu origem a todos os povos primitivos não africanos. Eram provavelmenRegião do Chifre da África e o Mar Vermelho


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te não menos que 200 e não mais que 250 indivíduos, agrupados em pequenas famílias de cerca de cinco pessoas. Como a ciência obteve esse detalhamento de informações? A resposta veio pela genética. Das bactérias até o gênero Homo, as células contêm um ou mais conjuntos de DNA, o material genético que é transmitido aos descendentes. Cada espécie tem seu DNA característico. Por exemplo, no ser humano, cada uma de suas trilhões de células têm DNA no núcleo, agrupado em 46 cromossomos, e nas mitocôndrias, que se situam no citoplasma. Há menos de duas décadas, cientistas descobriram que o DNA das mitocôndrias tem origem apenas materna, sem a participação dos genes do pai. A modificação que sofre o DNA através das gerações é mínima, e pelo estudo de sua composição pode ser


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traçada uma árvore genealógica mitocondrial. Isso porque ocorre, em média, apenas uma mutação mitocondrial a cada 20 mil anos. Enquanto o DNA contido no cromossomo Y é transmitido pelo pai, por meio do espermatozóide, para os filhos homens, o DNA mitocondrial é herdado por filhos e filhas, a partir do óvulo materno. Como as mitocôndrias dos espermatozóides se perdem no gasto energético de encontrar e penetrar o óvulo, herdamos apenas as mitocôndrias da mãe, já que as do pai foram destruídas. Supõe-se que a estranha particularidade de a mitocôndria ter um DNA próprio se deva a bactérias primitivas que no processo de evolução foram incorporadas por células maiores. Seriam, assim, simbiontes, ou seja, seres independentes que se uniram. É difícil estudar detalhadamente a seqüência do longo DNA do cromossomo Y, mas é relativamente mais fácil estudar a seqüência do DNA das mitocôndrias, que é muito mais curto, e compará-lo entre populações e também com fósseis. Dessa forma, é possível identificar o DNA mitocondrial que atravessou várias gerações e o tempo que transcorreu desde a nossa ancestral comum que o transmitiu. Pelo rastreamento do DNA, nos mais diversos povos do mundo contemporâneo, comprovaram-se os achados citados: a humanidade descende de uma pequena população da região central da África; parte desse grupo, há cerca de 80 mil anos, deixou a África e ocupou o Oriente Médio, atravessando o Mar Vermelho; esse grupo migrante não passava de pouco mais de duas centenas de indivíduos. Com certeza, outros grupos de Homo sapiens emigraram da África, mas o único que obteve sucesso, que perdurou até os nossos


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dias, foi essa tribo em particular. Por exemplo, uma outra migração havia ocorrido anteriormente, há 110 mil anos, mas todos morreram, provavelmente em conseqüência de uma seca prolongada que atingiu a África e a Ásia. Esses dados baseiam-se no achado de 13 esqueletos na Galiléia, na Palestina, em 1933, sendo que um deles é de uma mulher que foi encontrada junto a uma criança, que estava encolhida a seus pés. Não deixaram descendentes, já que seus traços genéticos, obtidos a partir do DNA dos fósseis, desapareceram totalmente, não havendo vestígios deles em nenhum povo da atualidade. Assim, sabe-se hoje que, no tempo da migração que deu origem a todos nós, a espécie humana não passava de cerca de 10 mil indivíduos, em grande risco de extinção. A seca africana e os predadores quase nos exterminaram. Um grupo obteve sucesso dirigindo-se para o sul, e outro grupo foi empurrado em direção ao mar, onde, a princípio, ainda havia alimento. Para complicar, o Mar Vermelho passou por uma época de extrema salinidade, o que afugentou os peixes. Recentemente, na Eritréia, também no Chifre da África, ferramentas de pedra lascada de 125 mil anos, incrustadas em recifes, junto a conchas quebradas, comprovam a coleta de alimentos na praia. Mas da África continua-se avistando, assim como há 80 mil anos, o Golfo de Áden, no Iêmen, hoje um deserto, em contraste com o território verde e fértil que já foi. O local é chamado por tribos mais recentes de Os Portões da Tristeza. Na época dessa migração, o nível do mar estava 45 metros mais baixo, e várias ilhas afloravam. Os humanos aventuraram-se em um determinado momento e finalmente conseguiram vencer os 16 quilômetros de água entre a África e a Ásia.


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Tem-se agora a comprovação genética de que o grupo sobrevivente que deixou a África deu origem aos asiáticos, europeus, polinésios e americanos. E que, pela análise do DNA mitocondrial, descendemos todos de uma mulher, chamada por alguns cientistas de Eva Genética, por outros de Eva Africana, ou, ainda, Eva Mitocondrial, que viveu há cerca de 150 mil anos, em alguma tribo subsaariana. É a mesma época do surgimento do Homo sapiens. Muitas outras mulheres existiam na época, assim como inúmeras outras existiram anteriormente, mas apenas uma conseguiu passar sempre seus genes adiante, e dela recebemos a influência genética. Inúmeras outras mulheres o conseguiram por algum período de tempo, mas seus descendentes acabaram por desaparecer.

Diagrama da linhagem mitocondrial iniciando por “Eva”


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O resultado da pesquisa genética foi de fato surpreendente: todas as variações do DNA mitocondrial da humanidade atual mostraram-se insignificantes, e foi possível determinar o tronco comum de onde viemos, a nossa Eva. Tem-se também a certeza de que as filhas das filhas de Eva estavam presentes na primeira migração que obteve sucesso em colonizar a Ásia. Os geneticistas descobriram mais: aproximadamente por essa época, mas não necessariamente na mesma região do continente africano em que vivia a nossa Eva, existiu também nosso Adão Genético, nosso mais remoto ancestral masculino a deixar descendentes diretos, que foi identificado a partir da árvore genealógica do cromossomo Y de populações de todo o mundo.

Diagrama da linhagem do cromossomo Y iniciando por “Adão”


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Pois então, a partir do Iêmen, foram migrando lentamente pela orla marítima, sempre em direção ao nascente. Ocuparam a região costeira do sul do Oriente Médio, a Índia, e caminharam ou atravessaram em primitivas jangadas de ilha em ilha do sudeste asiático, até atingir a Austrália. Não se sabe ao certo se a sede de expansão por novos territórios, uma característica permanente da humanidade, foi movida sempre por necessidade de alimentos e abrigos, ou também por uma incorrigível curiosidade. No trajeto pela Índia e sudeste asiático não existem vestígios arqueológicos da época, já que as migrações foram costeiras, e a subida das águas do mar, que ocorreu ao longo dos últimos milênios, apagou os sinais. Mas os geneticistas sabem que a humanidade passou então por um “gargalo” evolucionário, quando, a partir de uma quase absoluta homogeneidade inicial, o ser humano começou a se diferenciar. E esse fato teria ocorrido há aproximadamente 70 mil anos, diz um porta-voz da análise molecular. Acredita-se hoje que foi um violento fenômeno geológico que obrigou a humanidade a mudar seu rumo, após outra grave ameaça de extinção. Pois, há 74 mil anos, uma poderosa explosão do vulcão Toba, em Sumatra, provocou seis anos de intenso inverno vulcânico. Foi grande a destruição em todo o sudeste asiático, e como a atmosfera ficou carregada de espessa camada de pó, a temperatura média da Terra chegou a cair alguns graus por vários séculos. Após essa catástrofe supõe-se que a humanidade tenha ficado restrita a cerca de 15 mil indivíduos, e este foi provavelmente o momento em que tal grupo se dispersou em tribos, que migraram em várias direções.


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Localização do vulcão Toba, em Sumatra

Não foi um acidente a chegada à Austrália há 60 mil anos, pois no período de cinco milênios várias levas migratórias atingiram esse continente, conforme evidências baseadas também em estudos do DNA das populações da região. Sabe-se ainda que os seres humanos alteraram o ambiente e extinguiram várias espécies da megafauna local, desde o início da colonização. Há 40 mil anos atingiram a Europa, muito tempo depois de terem ocupado a Ásia e a Austrália. O motivo era o deserto no Oriente Médio, que era uma barreira intransponível, o qual somente foi ultrapassado quando houve uma melhoria das condições climáticas. Inicialmente acreditava-se que as primeiras tribos passaram pela Turquia e, seguindo a orla do Mediterrâneo, ocuparam a Europa, a partir do sudeste. Todavia, estudos genéticos recentes são taxativos


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em afirmar que o europeu partiu originalmente da Ásia Central, exatamente onde hoje se situa o Cazaquistão. Isso pôde ser postulado pelo achado de raras mutações do DNA do cromossomo Y, encontradas em indivíduos da região. Como uma era glacial isolou em seguida os europeus por muitos milênios, as alterações climáticas fizeram com que ficassem progressivamente com um aspecto diferente dos demais povos da Terra. A genética ajuda também a definir a origem dos povos de uma mesma região: os bascos, povo do sul da França e norte da Espanha, residentes na Cordilheira dos Pirineus, seriam os povos mais antigos da Europa. Isso pode ser inferido pelo estudo do fator Rh no sangue, uma peculiaridade bioquímica de cada indivíduo. Metade dos bascos tem o fator Rh negativo, achado único em toda a humanidade. Essa característica foi gradativamente sendo diluída com a miscigenação dos povos. Por exemplo, entre os europeus, essa porcentagem é em torno de 5% a 30%, sendo bem mais rara entre povos africanos, americanos e asiáticos. Hoje, uma importante estratégia da ciência é a arqueologia molecular, que consiste em resgatar o DNA humano de múmias e fósseis e reconstituir sua estrutura genética. Foi a partir dessa metodologia que ficou estabelecido, pela análise de uma ossada de 30 mil anos, que o Homem de Neandertal não foi um antepassado direto do homem moderno, mas sim um ramo da nossa árvore evolutiva. Um fato cientificamente comprovado é que não existem raças humanas. Não existe diversidade genética suficiente na nossa espécie para que sejam diferenciadas raças, já que todos os seres humanos são geneticamente 99,999% idênticos. Podemos dizer que existem etnias, mas não raças.


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Quando o Homo sapiens chegou ao norte da Europa, cerca de 50 mil anos após o dramático êxodo da África, tinha a pele clara, era louro e de olhos azuis. Como ocorreu uma transformação tão evidente no aspecto externo, sem ter havido qualquer alteração genética significativa? Fora do tórrido clima africano, o ser humano foi perdendo lentamente a cor negra, o que ocorreu com o asiático e de forma mais intensa com o europeu. A melanina é o pigmento que dá cor à pele, e nos africanos é encontrada em maior quantidade que nos povos de pele branca. É útil para impedir a absorção em excesso de luz ultravioleta nos climas tropicais, que provoca queimaduras e, a longo prazo, câncer de pele. O efeito nocivo imediato talvez seja o mais importante, já que provoca grande desconforto e perda da capacidade de adaptação ao meio. O efeito tardio, o câncer, talvez não tenha influência na seleção natural, já que aparece após a idade reprodutiva, portanto, quando geneticamente a morte passa a ser um evento sem impacto futuro. Mas, em regiões com pouca insolação, o excesso de melanina pode provocar raquitismo. A luz do sol é um importante fator na calcificação dos ossos, já que é por meio dos raios ultravioleta que é sintetizada na pele a vitamina D, que vai regular a mineralização. O raquitismo é uma doença em que aparecem deformidades ósseas, como, por exemplo, encurvamento dos membros e fraturas decorrentes de mínimos traumas, sendo prevenida pela exposição à luz solar. O fato é que a pele branca favoreceu a absorção da radiação ultravioleta nos indivíduos que habitaram as regiões frias do norte europeu, evitando o raquitismo.


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Existem evidências de que os povos que habitavam a Malásia, no sudeste asiático, há seis mil anos, e que viviam em região ensombreada por uma compacta floresta, já apresentavam a cútis muito mais clara que seus antepassados africanos. Assim, a cor da pele é, em última análise, uma conseqüência do ambiente. Estima-se que sem o sol intenso a pele tornou-se branca, ao longo de gerações vivendo em uma mesma região, em cerca de 20 mil anos. Também como conseqüência dos baixos níveis de melanina explicam-se os cabelos louros e os olhos de íris azuis. Já os cabelos crespos são úteis para reter o suor no couro cabeludo, o que impede o superaquecimento em climas equatoriais. Por fim, como explicar os olhos puxados, com a característica prega epicântica, dos asiáticos do norte? Trata-se de um tema polêmico; segundo alguns, seria uma defesa contra o gélido e impertinente vento siberiano. Diferentes faces do homem moderno, todos de mesma origem


CAPÍTULO

4

A OC U PA Ç Ã O C O M P L E TA D A ÁSIA E E U R O PA H Á 4 0 M I L A N O S



A OCUPAÇÃO COMPLETA DA ÁSIA E EUROPA HÁ 40 MIL ANOS / 5 7

D

urante uma migração rumo ao norte, à procura de um novo território de caça, o clã teve um inesperado contato com os Outros. Estavam a caminhar por uma pradaria nas encostas setentrionais dos Alpes, acompanhando uma manada de bisões e aproveitando os últimos dias de outono para acumular alimentos para o inverno, quando, por uma boca de caverna, à meia altura em uma montanha, viram uma pequena fumaça subir vagarosamente às nuvens. A princípio imaginaram ser outro clã que tivesse resolvido migrar na mesma direção, com o mesmo objetivo que eles. Aproximaram-se devagar, já que, mesmo sendo do mesmo grupo humano, certos rituais deveriam ser seguidos para manter a paz, e explicações tinham que ser dadas para que entendessem que não estavam disputando o mesmo território. Havia terra em abundância, caça com fartura e cavernas em grande número, que garantiam abrigo a todos. Desfeito o equívoco, partiriam então

A ocupação humana do norte da Europa


5 8 / A OCUPAÇÃO COMPLETA DA ÁSIA E EUROPA HÁ 40 MIL ANOS

para outras regiões, respeitando o direito daqueles que chegaram primeiro de permanecer como senhores da área. Falando alto, gesticulando e intencionalmente fazendo barulhos para serem notados, caminharam lentamente em direção à boca da gruta. Para espanto de todos, o que viram foram alguns guerreiros de aspecto totalmente diverso a se posicionarem em atitude de defesa na entrada da caverna, com as lanças em riste. Logo chegaram outros homens semelhantes, igualmente apreensivos, com tacapes e escudos, o medo estampado nos rostos. Eram uma tribo dos Outros e não se tinha notícia de que viviam tão perto. A face era característica, com saliências supra-orbitárias, a testa inclinada para trás, o corpo atarracado, as pernas arqueadas e um grosso pêlo difusamente distribuído. A tribo intrusa estancou, evitando o combate. Não tinha interesse no confronto, pois sabia da ferocidade com que os Outros se defendiam quando acuados. Afastaram-se respeitosamente, mas sem perder a dignidade, não deixando transparecer que também estavam com medo. Ambos os grupos, o Homo sapiens e o Homo neanderthalensis, evitavam o contato, por se julgarem diferentes e sem parentescos. Histórias antigas, relembradas pelos mais veUm neandertal e um humano moderno


A OCUPAÇÃO COMPLETA DA ÁSIA E EUROPA HÁ 40 MIL ANOS / 5 9

lhos, contavam de homens e mulheres dos Outros que conviveram com alguns clãs, em tempos passados. Eram fatos ocasionais, assim como as guerras entre um grupo e outro também eram raras. Havia um respeito mútuo e uma distância consensual. Os Outros tinham os mesmos hábitos, mas, segundo a opinião generalizada entre os clãs, eram feios, brutos e primitivos. Sua linguagem não passava de grunhidos. Suas ferramentas e instrumentos de caça eram grosseiros, mal acabados e de péssima qualidade. Os neandertais, ou seja, as tribos designadas como os Outros, conviveram com os humanos modernos por muitos milênios, até desaparecerem há 30 mil anos. Não se sabe ao certo como se extinguiram, mas o fato é que disputaram os mesmos campos de caça e as mesmas grutas de moradia e que, ao final, restou apenas uma espécie. Somos hoje os descendentes do chamado Homem de Cro-Magnon, nome em homenagem a uma caverna da França, onde foram encontrados os primeiros Homo sapiens europeus.

Localização da Caverna de Cro-Magnon, na França


60 / A OCUPAÇÃO COMPLETA DA ÁSIA E EUROPA HÁ 40 MIL ANOS

Algumas das características que favoreceram os cro-magnons foram seus significativos avanços tecnológicos. Se algumas inovações podem parecer óbvias, especialmente quando já se conhece o desfecho, e que até mesmo possamos estranhar que tenham demorado milênios para serem implementadas, outras continuam surpreendentes e dignas de admiração. Quem foi o primeiro a ter a idéia de construir um arco, encurvando uma haste e tensionando-a com uma fina corda, de tal forma que lançasse uma flecha em alta velocidade e com precisão na pontaria? Certamente que foi um incorrigível especula, inicialmente taxado de maluco, e que afinal poderia ter ganho o Prêmio Nobel Cro-Magnon. Pois essa revolucionária invenção aconteceu há aproximadamente 23 mil anos e foi tão importante que logo em seguida mereceu registro em pinturas rupestres. As pontas das flechas passaram a ser mais elaboradas, sendo o sílex, que é uma rocha dura e cortante quando lascada, cada vez mais utilizado. Grandes animais, como o rinoceronte lanoso e o elefante, já haviam sido extintos na Europa, sem que se saiba o motivo. Caçavam então bois selvagens, chamados de auroques, cervos, cavalos e ursos. Uma tática de caça freqüente era a construção de um fosso, disfarçado por uma camada de folhagens, na trilha por onde passava um grande animal. Arpões encontrados a partir dessa época indicam que o peixe passou a ter maior presença na dieta. É também desse período o desenvolvimento da técnica de charquear a carne, que consiste em um processo de desidratação e salgamento, que permite sua conservação por meses. Outra grande idéia foi a invenção da cerâmica, a partir da observação de que o barro ficava pétreo ao redor das fogueiras.


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Auroque

Desenvolveu-se o processo de moldar a argila em formato de vaso e de outros utensílios e aquecê-la no fogo à temperatura ideal para que se solidificasse. Ocorreu também o aprimoramento da costura, com a invenção da agulha feita de osso e de sovelas primitivas, que eram ferramentas perfuradoras de couro. Em seguida, surgiu a tecelagem, a partir da arte de fiar e tecer, quando as primeiras mantas de linho, algodão e lã foram manufaturadas. A comunidade humana tornou-se mais complexa em todos os sentidos. O rito funerário, por exemplo, tornou-se mais elaborado, pois os mortos, então freqüentemente colocados em posição fetal, eram enterrados junto a objetos pessoais, como potes e enfeites de conchas e ossos. Fogueiras rituais ardiam sobre as sepulturas por vários dias. Uma pequena flauta feita de osso de pássaro, encontrada na França e datada de 25 mil anos, e um tambor de crânio de mamute, encontrado na Ucrânia, aproximadamente da mesma idade,


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são os mais primitivos instrumentos musicais de que se tem notícia. Muitos objetos da arte cro-magnon foram descobertos, principalmente esculturas e pinturas. É bastante famosa a Vênus de Willendorf, uma pequena estatueta de uma mulher obesa, achada na Áustria, esculpida há cerca de 30 mil anos, que era o símbolo da fertilidade. Cavernas, especialmente no sul da França e norte da Espanha, preservaram artísticas pinturas rupestres de cavalos, rinocerontes, bisões e mamutes, datadas de 30 mil a 10 mil anos.

Vênus de Willendorf

Existem registros do início da agricultura, há 13 mil anos, quando ocorreu a formação das primeiras aldeias. Passamos a ser horticultores e não mais nômades. É empregado o termo sedentarismo (que hoje ganhou uma conotação negativa, que nada tem a ver com sua origem, já que não significava imobilidade) para caracterizar essa nova forma de atividade

humana. A observação do ciclo das plantas e da fantástica função das sementes permitiu o cultivo de trigo, cevada, tubérculos, frutas e hortaliças. Posteriormente, plantas selvagens foram sendo cruzadas experimentalmente em busca de maior produtividade. A partir da captura de filhotes cujos pais tinham sido caçados, aprendemos a criar animais, o primeiro passo para a domesticação, cujo objetivo era a obtenção de carne, pele e leite. Os primeiros animais a conviver de perto com a humanidade foram o cavalo e o lobo. Os mais remotos indícios da domesticação do cavalo datam de seis mil anos e foram encontrados na Ucrânia.


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São vários dentes que, ao serem examinados microscopicamente, revelaram desgastes fortemente sugestivos de atrito contínuo de cordas, que teriam sido usadas no animal como freio. O processo de domesticação do lobo, talvez mais antigo, resultou ao longo de milênios em um animal alegre, brincalhão, submisso e dependente do homem. O cão de raça não teria hoje qualquer chance de sobreviver em um ambiente selvagem. Como foi possível surgirem animais extremamente dóceis e sempre carentes de atenção e afagos? Uma seqüência de cruzamentos entre animais, determinada pelo homem, selecionou indivíduos que mantinham por mais tempo durante a vida a característica infantil de docilidade e a aptidão de implorar polidamente por comida. Mas, na essência do DNA, o mais frágil cãozinho de luxo é ainda praticamente idêntico ao feroz lobo das estepes asiáticas. A vaca selvagem deu origem a um animal que pode produzir até 30 litros de leite por dia, quantidade suficiente para matar qualquer bezerro. De fato, todo fazendeiro sabe que se não apartar o Lobo asiático filhote da mãe ele provavelmente terá uma diarréia fatal. Fizemos a galinha virar uma neurótica fábrica de ovos, e o porco, um preguiçoso monte de banha. Pois, então, domesticamos também os cabritos selvagens e nos tornamos pastores. Os rebanhos tinham que ser vigiados para


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que não se dispersassem, ou para evitar o ataque de predadores. Surgiu um problema inusitado, que era a conferência dos animais sob vigilância. Como quantificá-los? Para pequenos plantéis era fácil, bastava contar nos dedos. Temos cinco em cada mão porque, em última análise, somos descendentes de um peixe do remoto Período Devoniano, que possuía cinco séries de ossos em suas nadadeiras. Intuitivamente, damos preferência a usar a base dez na aritmética, e isso somente porque temos dez dedos em ambas as mãos. Se tivéssemos sido anatomicamente diferentes, utilizaríamos, por exemplo, a base oito, ou a doze, que têm a mesma lógica da base dez.

Peixe do Período Devoniano

Mas, e para rebanhos maiores? Não havia dedos suficientes. Alguém mais inventivo criou o sistema de uma pequena pedra para representar cada animal. Uma abstração que na atualidade é corriqueira, mas que significou um grande degrau evolutivo. Pela manhã, jogava-se em um embornal um seixo para cada animal que saía para pastar. Ao entardecer, retirava-se uma pedrinha a cada animal que retornasse. Uma operação bastante complexa para a primitiva cultura da época, certamente restrita a alguns indivíduos mais “escolarizados”. Foi o início do sofisticado cálculo matemático atual, e a palavra cálculo, desde sua origem e até hoje, também


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significa pedra. Por isso, dizemos cálculo nos rins, ou na vesícula, e calcário para designar um certo tipo de rocha. Mais ou menos em seguida veio o desenvolvimento da metalurgia, quando teve início a Idade do Bronze. Primeiro, há 6.500 anos, começou-se a trabalhar com o cobre, encontrado na natureza em forma de pedras esverdeadas que, se derretidas em altas temperaturas, davam origem a armaduras, machados e pontas de lanças. Porém, era ainda muito maleável. Há indícios de que, aproximadamente mil anos depois, descobriu-se que a adição de estanho fazia uma liga que resultava em um metal mais resistente: o bronze. A Idade do Ferro somente viria milênios após, em torno de 1.500 anos antes de Cristo. Durante a Idade do Bronze teve início grande aumento populacional, e a humanidade já ultrapassara o primeiro milhão de indivíduos. Ocupávamos, de forma dispersa, quase toda a superfície do globo terrestre, com maior concentração no Oriente Médio e no sul da Europa, onde havia cidades de até 10 mil habitantes. Ainda hoje, novos vestígios surgem a nos contar mais detalhes de nossa história. No outono de 1991, turistas andarilhos estavam caminhando por uma trilha nos Alpes, entre a Itália e a Áustria, e logo após transpor o marco da fronteira italiana tomaram um rumo fora do usual, já que o degelo, mais intenso naquele ano, permitia que se saísse do roteiro tradicional. Em uma encosta entremeada de neve e pedras, a 3.350 metros de altitude, viram um corpo mumificado, parcialmente exposto ao tempo. Os estudos que se seguiram, empregando-se a mais recente tecnologia disponível, deram resultados minuciosos.


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Foi constatado que é a mais antiga múmia européia já descoberta. Tratava-se de um pastor da Idade do Bronze, que morreu há 5.300 anos, em função de vários ferimentos de adaga e flecha. Fora atacado por um adversário e na luta corpo-a-corpo recebeu dois cortes na mão e pulso direitos, feridas ainda sem sinais microscópicos de cicatrização, ou seja, adquiridas pouco antes de morrer. Também foi descoberto um pequeno, mas profundo, corte no ombro esquerdo, resultante de uma ponta de flecha. Passou a ser chamado de Oetzi, em homenagem à região em que foi encontrado. Os estudos radiológicos realizados em seus ossos nos informam que tinha 46 anos, o que é uma idade bastante avançada para a sua época. Media 1,65 metro e pesava em torno de 40 kg, mas quando foi encontrado havia encolhido para 1,58 metro e, devido à desidratação, não passava de 13 kg. Horas antes de falecer havia feito uma refeição à base de carne: cabra montesa e veado vermelho, identificados pela análise do DNA dos resíduos. Possuía artrites em sua coluna lombar e nos joelhos e sofria de uma infecção intestinal que lhe provocava diarréia crônica. Altos níveis de cobre foram dosados em seus cabelos, o que leva a supor que participou da fabricação de seus próprios instrumentos metálicos. Sua pele apresentava tatuagens em vários pontos, que provavelmente não tinham a função de adorno, mas sim finalidades terapêuticas. Oetzi, o Homem do Gelo


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Estava vestido com roupas e sapatos de couro, e uma grossa capa de palha, informam os restos encontrados junto ao corpo. Foram recolhidos também um arco, flechas, uma adaga e uma bem construída machadinha de cobre. Em seu alforje havia grãos, cogumelos e ferramentas que lhe permitiam fazer consertos em suas armas. Certamente morreu no verão, inferência possível a partir do tipo de pólen que foi encontrado em suas vestimentas. E ainda, duas pulgas mumificadas foram localizadas nas dobras de suas roupas. Oetzi é mantido hoje a seis graus negativos, a mesma temperatura em que permaneceu por cinco milênios, numa câmara especial do Museu de Arqueologia de Bolzano, no norte da Itália. Por um único momento foi parcialmente descongelado para que amostras de seus tecidos fossem retiradas para estudos genéticos. Virou atração turística, podendo ser visto através de uma janela de vidro; e é hoje objeto de uma disputa diplomática. A Áustria reivindica sua posse, já que foi encontrado em seu território. Entretanto, historiadores italianos querem provar que vivia na Itália, em uma aldeia pré-histórica situada a 15 quilômetros do local onde morreu. Oetzi não conhecia a roda, avanço tecnológico imposto por uma necessidade de ordem prática, que foi inventada cerca de dois milênios após sua morte. Com o Reconstituição do Oetzi, momentos antes de sua morte


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sedentarismo surgiram novas preocupações, tais como a reprodução do rebanho, a fertilidade das sementes, a escolha da época mais propícia ao plantio e a necessidade de estocar os alimentos para fazer frente aos períodos de carência. Os ciclos de penúria e abundância acabaram por aumentar e refinar o misticismo e a crença de que forças sobrenaturais interferiam nos destinos da humanidade. Surgiram os primeiros templos dedicados aos deuses, altares que foram se tornando cada vez mais grandiosos. Pesados blocos de pedras longilíneas, chamados de menires, eram enterrados parcialmente no solo, de forma alinhada, geralmente em círculo. Eram locais de cerimônias sagradas, e todo o empenho de uma comunidade era exigido na sua construção, às vezes por várias gerações. Como mover as pedras, com freqüência por longas distâncias? Um exemplo desse tipo de templo é a famosa ruína de Stonehenge, na Inglaterra, e alguns de seus menires, que pesam várias toneladas, são de diabase, uma rocha magmática cuja extração mais próxima fica nas montanhas do País de Gales, distante 300 quilômetros.

Ruínas de Stonehenge, na Inglaterra

Uma boa forma de transportar as rochas era fazê-las deslizar sobre toras de madeiras. Todavia, muito trabalhoso! Quem sabe cilindros curtos em lugar das toras? Como eles se desalinhavam,


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quem sabe alguns conjuntos de dois cilindros curtos, com um eixo central, e sobre os eixos uma plataforma fixa? Mas o atrito no eixo fazia com que a engenhoca se aquecesse até se incendiar. Alguém experimentou introduzir um talo de bananeira (será que no Oriente Médio existiam bananeiras?) ou outro vegetal macio e úmido, para diminuir o atrito na junção. Por fim, surgiu a idéia de untar com óleo ou gordura. Heureca! E estava inventada a roda. Nos milênios seguintes, a evolução tecnológica da humanidade se deu de forma vertiginosa, com o aprimoramento do sistema de enUma roda primitiva grenagens que permitiu a construção de moinhos de vento, monjolos, rodas d’água, carros com tração animal e barcos cada vez maiores. Novas ferramentas, agora de ferro, permitiam que a madeira fosse facilmente esculpida para as mais variadas finalidades. Uma das novas exigências da vida em comunidade foi o armazenamento de informações. Os primeiros escribas eram os registradores de operações comerciais, como créditos e débitos. A escrita, em uso desde quatro mil anos antes de Cristo, foi tão importante para a humanidade que o tempo anterior à sua criação é referido como Pré-História e, a partir dela, até o presente, é definido como História. A Pré-História é subdividida em Paleolítico, período da pedra lascada, que se estendeu de 3,5 milhões de anos a 10 mil anos antes de Cristo, e Neolítico, período da pedra polida, de 10 mil a quatro mil anos antes de Cristo.


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A primeira forma sistematizada de anotação foi criada pelos babilônicos, que usavam um bloco de argila úmida em que eram impressos com uma caneta de bambu símbolos em forma de cunha; por isso, ganhou o nome de escrita cuneiforme. Com o passar dos séculos foi desenvolvido um complexo “alfabeto”, com cerca de 900 sinais. Da função inicial puramente contábil, passou a servir para registrar também feitos de reis, histórias de guerras, preces de sacerdotes e posição das estrelas. O papiro, que é um tecido formado por fibras de plantas aquáticas entrelaçadas, foi inventado pelos egípcios logo em seguida, na época dos primeiros faraós. Uma nova e rica escrita foi Texto babilônico, em escrita cuneiforme elaborada, baseada em hieróglifos. Apesar de inicialmente não conhecer a roda, a civilização egípcia construiu enormes pirâmides e deixou sua história pormenorizadamente registrada para o futuro. No Museu Britânico existe um rolo de papiro de 41 metros de comprimento, com 79 folhas coladas em seqüência, cuidadosamente preenchidas com sinais. Foi também muito utilizado o pergaminho, que é uma delicada pele de carneiro ou cabra, curtida com a finalidade de servir como superfície para anotações. Os mais famosos são os Manuscritos do Mar Morto, datados de um século depois de Cristo, que foram encontrados em uma caverna na Palestina, em 1947. O papel é


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uma invenção chinesa bem mais recente, do século II da era cristã. Um parêntese merece ser aberto para que seja contada a história da decifração dos hieróglifos egípcios. Por cerca de vinte séculos foram um enigma para os estudiosos. Imaginava-se que cada desenho significava uma palavra ou frase, mas não havia quem pudesse obter um sentido lógico a partir do emaranhado de rabiscos. A chave para desvendar seu significado veio por puro acaso, ao ser descoberta uma aparentemente despretensiosa laje de granito, que fazia parte de um templo da época do domínio grego sobre o Egito e que foi encontrada nas escavações de suas ruínas. Estavam gravados em baixo-relevo três textos curtos, de tamanho semelhante, cujo significado era, em princípio, obscuro. Era chamada de Pedra da Roseta, em função do nome que os colonizadores franceses davam à cidade em que fora encontrada, em 1799. Já havia algumas décadas que essa pedra estava em poder do exército francês, pois tinha sido roubada do Egito por Napoleão Bonaparte, sem que seu imenso valor fosse percebido. Jean François Champollion, um brilhante estudioso de velhas escritas, ao examinar a pedra, conseguiu traduzir o último texto, redigido em grego antigo. Enaltecia o reinado de Ptolomeu, que assumiu o trono 200 anos antes de Cristo. O primeiro texto, com hieróglifos, tinha a disposição e o tamanho semelhantes à escrita grega. Além disso, um conjunto de hieróglifos assinalados com um grifo se repetia várias vezes e correspondia aos locais em que a palavra Ptolomeu estava escrita no texto em grego. Champollion supôs corretamente que eram equivalentes e pôde então comparar as duas formas de expressar o mesmo nome. Descobriu finalmente que os símbolos egípcios, na maior parte das vezes, correspondiam a sílabas, e não a significados mais complexos.


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A partir daí, montando-se o alfabeto, todas as escritas deixadas desde os tempos dos faraós puderam ser decifradas. A preocupação de povos primitivos em deixar mensagens para o futuro resultou em outros legados igualmente preciosos. Voltando-se a um passado mais remoto que a civilização egípcia, textos rudimentares contaram a históPedra da Roseta ria de grandes cataclismos que ocorreram no início do processo de aldeamento. Foi por essa época, há cerca de 10 mil anos, que ocorreu o fim da última era glacial e o clima tornou-se gradativamente mais ameno. Porém, com o degelo das calotas polares, a Terra ainda sofreria importantes transformações. Uma delas foi a invasão de regiões costeiras pelas águas dos oceanos, geralmente de forma gradual e progressiva, mas às vezes de forma intempestiva. Um desses fenômenos, ocorrido há quase oito mil anos em áreas já povoadas, mereceu registro oral pela humanidade e mais tarde em textos, que incrivelmente chegaram até os nossos dias. Antigas placas de argila de escrita cuneiforme, tesouro que ficou enterrado por milênios e que foi descoberto por uma equipe inglesa em 1850, no Iraque, contam em versos uma lenda da tradição oral babilônica, em que um herói chamado Uta-napishti sobrevivera a uma grande inundação construindo um barco. O jovem inglês George Smith, que decifrou o texto décadas mais tarde, ficou literalmente louco ao término da tarefa, quando extasiado se


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deu conta de que tinha traduzido o primeiro poema escrito por um ser humano. A Bíblia fala também do dilúvio, quando Deus, insatisfeito com as criaturas a quem havia dado vida, resolveu reiniciar sua obra. Determinou que Noé construísse uma grande arca que abrigasse casais de seres humanos e bichos domésticos e selvagens, e mandou sobre a Terra 40 dias e 40 noites de chuva torrencial contínua. O Antigo Testamento, parte da Bíblia, que foi escrito muitos séculos antes do nascimento de Cristo, sendo que algumas passagens talvez datem de milênios antes, relata no livro do Gênesis: “...e romperam-se todas as fontes do grande abismo e abriram-se as cataratas do céu (...) e veio o dilúvio (...) e as águas engrossaram prodigiosamente sobre a terra, e todos os mais elevados montes que há sob todo o céu ficaram cobertos”. O texto bíblico, inclusive, detalha geograficamente o ocorrido: “E no sétimo mês, (...) parou a arca sobre os montes da Armênia”. Recentemente, os cientistas descobriram provas de uma grande inundação na região do Mar Negro, ocorrida há 7.500 anos, quando a água subiu cerca de 150 metros e invadiu terras da Turquia, Rússia, Ucrânia, Romênia e Bulgária. A Armênia foi poupada, pois apesar de ser vizinha da Turquia, situa-se em terreno bastante montanhoso. Mar Mediterrâneo, Mar Negro, Turquia e Armênia


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O fenômeno foi conseqüência do derretimento das geleiras, iniciado há 12 mil anos, quando a água do mar foi lentamente se elevando por todo o globo terrestre. No extremo leste do Mar Mediterrâneo, uma barreira de rocha separava a água salgada de um grande lago de água doce, com aproximadamente mil quilômetros de comprimento e a metade de largura. Apenas um estreito vale fazia a ligação entre as duas grandes massas de água. O fluxo, que inicialmente se dava no sentido do lago para o mar, inverteu-se com a elevação dos oceanos. Em um dado momento, a pressão se fez de tal intensidade que a barreira rompeu-se, e um volume correspondente a 200 cataratas do Iguaçu inundou de água salobra o grande lago de água doce. Calcula-se que durante certo período a água subiu cerca de 15 centímetros por dia, e a margem deslocouse nas regiões planas por centenas de quilômetros, às vezes no ritmo de um quilômetro por dia. Após alguns meses o nível da água estabilizou-se no patamar em que se encontra hoje. Provavelmente ninguém morreu afogado, mas cidades, plantações e mesmo casas não puderam ser salvas. Uma das evidências descobertas nos últimos anos para ajudar a comprovar essa teoria é que a parte mais profunda do Mar Negro ainda é predominantemente de água doce e a parte mais superficial é de água salgada. Nas zonas mais inferiores foram encontrados fósseis de conchas de moluscos de água doce e em águas mais rasas, conchas de espécies de água salgada. Pela datação com o carbono 14, a transição de um grupo de moluscos para outro se dá, de forma abrupta, há 7.500 anos. Além disso, foram encontrados por sonar, e filmados por um pequeno submarino teleguiado, vestígios de cidades a 150 metros de profundidade.


CAPÍTULO

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H

á aproximadamente 75 mil anos teve início uma nova era glacial, que seria das mais intensas e que se estenderia até há dez mil anos. Em tempos anteriores muitos animais migraram da Ásia para a América pelo istmo então existente entre a Sibéria e o Alasca, no Estreito de Bering. Assim, eram abundantes nos dois continentes mamutes, ursos, bisões, cervos, felinos e outros grandes mamíferos. Tribos humanas, em busca da caça que estava se tornando rara devido aos invernos cada vez mais rigorosos, migraram também pela ponte de gelo, ocupando novas áreas. A faixa litorânea de terra surgiu devido aos grandes blocos de gelo que cobriam todo o Oceano Ártico, chamados de glaciares, que chegavam a cinco quilômetros de espessura e continham tamanha quantidade de água que fizeram o mar baixar 150 metros. Mas, como os seres humanos puderam sobreviver em um clima tão hostil, o temerário mundo das sombras longas, já que o sol nunca se distanciava do horizonte, com suas noites de seis meses de duração, a temperatura que chegava a 70 graus negativos e a cor verde deixando de fazer parte do cotidiano? Estreito de Bering entre a Sibéria e o Alasca


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Uma grande façanha era matar um urso, não apenas por bravata, mas por uma questão de vida ou morte no duro inverno ártico. Muito mais que a carne, a pele era de extrema valia, já que resultaria na melhor vestimenta que podiam confeccionar. Somente com ela seriam suportáveis as tempestades de vento e neve do Pólo Norte. Mas como enfrentar esse monstro ágil e forte, que quando enfurecido podia correr 60 quilômetros por hora, com garras afiadas - um tapa rápido e mortal -, e com uma espessa capa de gordura que amortecia as estocadas de qualquer lança? Pois, engenhosamente, descobriram um jeito. Faziam uma bola de gordura de foca, parcialmente petrificada pelo congelamento, de um tamanho que o urso pudesse abocanhar, e em seu interior envergavam em arco quase fechado um osso de baleia cuidadosamente lixado nas extremidades, para que ficasse pontiagudo. O calor do estômago liberaria o terrível estilete, eficaz perfurador de tripas. O grande desafio era aproximar-se do urso e fazer com que ele optasse por engolir o petisco oferecido, ao invés de atacar o atrevido caçador. Essa estratégia de caça somente era possível no auge do inverno, quando a escassez de alimentos fazia com que todos, humanos e bichos, insensatamente devorassem qualquer alimento disponível à sua volta. Mas o problema não estava resolvido com a ingestão da farpa. A grande chance era que, de fato, o urso morresse com as entranhas em frangalhos,

Urso polar


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mas isso poderia demorar vários dias. E o animal, dobrado de dor, sairia desatinado, sem rumo e sem prazo para cair. Se o caçador não o seguisse de perto, o fruto de todo o seu esforço seria prazerosamente degustado pelos carnívoros competidores, como as raposas e os linces. Assim, uma caçada como esta envolvia, além dos vultosos riscos imediatos, o risco da perseguição, que era o de obter o troféu a dias de distância de casa, sem um abrigo contra o frio. O impulso de migrar rumo ao sol a pino, ou seja, em direção ao sul, foi imediato, em busca de regiões mais amenas para se viver. Provavelmente, os primeiros aproveitaram-se da Passagem de Alberta, uma sinuosa faixa de terra que degelou antes das demais. Hoje se sabe que foram pelo menos quatro as principais ondas migratórias a descer pelas Américas. A primeira talvez há 20 mil anos, outras por volta de 12 mil anos atrás, e algumas ainda mais recentes. Os pioneiros na ocupação do nosso continente são chamados pelos estudiosos de paleoíndios, e estima-se que se deslocavam em média, a cada nova geração, 25 quilômetros no sentido sul.

Possível corredor de migração na América do Norte e o Sítio Clovis


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É bastante polêmica a teoria da ocupação humana em solo americano. Por décadas foi considerado, quase sem questionamentos, o sítio arqueológico denominado Clovis como o mais antigo de todos. Foi descoberto em 1932 e fica situado no Novo México, nos Estados Unidos. Datado precisamente, foi ocupado entre os anos 11200 e 10900 antes da nossa era e deu origem a uma bancada de ferrenhos defensores que empunhavam o lema Clovis first. Advogavam que uma única migração teria resultado através dos tempos no índio moderno. Recentes descobertas, entretanto, vieram abalar esses conceitos. Em 1996, foi desenterrada no noroeste dos Estados Unidos, às margens do Rio Colúmbia no Estado de Washington, uma ossada humana de 9.300 anos, que gerou uma grande polêmica arqueológica e jurídica. Trata-se de um fóssil raro, já que pouquíssimos esqueletos com essa idade foram achados na América do Norte. Recebeu o nome de Homem de Kennewick, em homenagem ao local onde foi encontrado. Tribos indígenas reivindicam a guarda do fóssil, para enterrá-lo novamente, já que seus ancestrais são considerados sagrados e devem repousar no solo em que viveram. Entraram com um pedido judicial de reintegração de posse, baseando-se em leis que garantem a devolução aos povos nativos dos artefatos e esqueletos indígenas que se encontram em museus. Mas um grupo de antropólogos entrou também na justiça com uma ação contra o retorno do fóssil ao próprio túmulo. Alegam que estudos recentes mostraram que o Homem de Kennewick não tem os traços faciais indígenas, e sim um aspecto não mongólico. Seu rosto seria parecido com o dos povos do leste asiático, ou talvez com o dos


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polinésios. Dessa forma, teria pertencido a uma leva de migração mais primitiva do que aquela que deu origem ao índio atual e que teria se extinguido. Não sendo um ancestral comprovado das nações indígenas que o solicitam, elas não teriam pela lei esse direito de propriedade. A disputa promete se estender por alguns anos, certamente Crânio do Homem de Kennewick chegando até à Suprema Corte, já que as duas partes não abrem mão do fóssil. Os índios alegam que a tradição oral de suas tribos diz que habitam a região “desde o início dos tempos”. E os cientistas questionam exatamente quando os tempos começaram para a chegada dos humanos nas Américas. Outros fósseis são igualmente enigmáticos. Há nove mil anos, em uma caverna do Estado de Nevada, no oeste dos Estados Unidos, um debilitado ser humano ferveu uma última sopa de carpas, provavelmente pescadas no riacho próximo, e aguardou resignadamente a morte, que viria horas após. Um profundo abscesso dentário havia disseminado bactérias por todo o seu organismo, e uma infecção generalizada decretou seu fim. Sua tribo providenciou o enterro, cavando uma rasa cova no chão da gruta. Depositaram seu corpo sobre uma esteira de bambu e cobriram-no com uma manta de pele de coelho. Seu par de mocassim de couro, costurado com cordão de fibra vegetal e duplamente amarrado nos calcanhares e nos dedos, foi deixado intacto. Certamente, poderia fazer-lhe falta no lugar em


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que estivesse então vagando. Por fim, uma camada de pedras cobriu o respeitoso túmulo. Os arqueólogos que o desenterraram deram-lhe o nome de Spirit Caveman, devido ao nome que hoje tem a gruta. Ganhou mais importância quando a reconstituição de sua face, a partir de mínimos detalhes do formato de seu crânio, mostrou um rosto asiático, porém bastante diverso dos índios americanos atuais. Mais um estímulo à controvérsia de que, não uma, mas várias migrações atingiram a América, sem que todas tenham deixado descendentes.

Reconstituição da face do Spirit Caveman

E então, mais recentemente, surgiram os resultados da datação do Sítio de Monte Verde, no Chi-

le, que comprovadamente é pelo menos dois mil anos mais antigo que o Sítio Clovis. E mais: seus habitantes não eram apenas nômades caçadores, já que tinham desenvolvido horticultura rudimentar, usavam plantas medicinais e viviam o ano todo no mesmo local. Nesse aspecto, sua cultura era mais evoluída que a de seus contemporâneos do hemisfério norte. Certamente que para chegar ao Chile seus antepassados vieram da América do Norte, milênios antes. Para desestabilizar ainda mais a primazia do Sítio Clovis, em uma gruta da Carolina do Norte foram desenterradas ferramentas de 16 mil anos, que, por sinal, tinham técnicas de clivagem seme-


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Reconstituição do Sítio Monte Verde, no Chile

lhantes às usadas pelos chineses há 32 mil anos. Outro sítio nos Estados Unidos, denominado Meadowcroft, também provou ter antiguidade de 19 mil anos, mudando de vez os conceitos ortodoxos da chegada do homem na América. Apesar de não haver consenso sobre a época, sabe-se ao certo que no fim do Pleistoceno, a chamada Idade do Gelo, era geológica que teve início há 1,7 milhão de anos e término há 10 mil anos, com o fim da última era glacial, o Homo sapiens migrou da Sibéria para o Alasca e se espalhou pelas Américas. Incrivelmente, a última das migrações, que ocorreu há cerca de


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oito mil anos (ou quatro mil, segundo outros estudos), permaneceu no Pólo Norte até os dias de hoje, recusando-se a abandonar seu inóspito habitat. São os esquimós, nome dado pelas tribos canadenses mais ao sul, que significa comedores de carne crua. Mas eles próprios se denominam inuítes, que significa Os Homens. Em seu entendimento, todos os outros povos são considerados bárbaros. Os inuítes são os únicos seres humanos exclusivamente carnívoros e, para se ter uma pálida idéia do ambiente em que vivem, sua língua possui duas dezenas de palavras diferentes para significar branco, dados os múltiplos matizes que essa cor, que domina suas vidas, apresenta. Fazem uso da gordura de foca como combustível para aquecer seus gélidos iglus e para proteger a pele, constroem trenós com ossos de baleia e couro de rena, e domesticaram o lobo do Ártico para servir de meio de transporte, alimento e companhia. Atualmente, cerca de 50 mil inuítes ainda habitam a calota polar, vivendo do mesmo modo que seus antepassados e recusando-se a ser ocidentalizados. As outras levas migratórias buscaram passagem para Região do Pólo Norte e os principais povoados esquimós


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o sul, provavelmente também pelo Corredor de Alberta, no interior do Canadá, a faixa de terra que ficou mais precocemente livre do gelo. Atingiram então a região dos Grandes Lagos, com suas intermináveis planícies, um bom lugar para se estabelecer. Apesar de o inverno ser bastante rigoroso durante a metade do ano, os outros meses explodiam de vida vegetal e animal. Em poucas semanas o capim das pradarias crescia, florescia e frutificava com fartura, e manadas de bisões, mamutes, caribus e de vários outros animais procriavam abundantemente, como se estivessem no paraíso. Foram descobertos na região os restos de uma grande caçada de bisões, quando cerca de 200 foram mortos. Os fósseis de animais de todas as idades estão voltados para a direção norte, encurralados no estreito desfiladeiro de um riacho. Os caçadores provavelmente não foram percebidos devido à direção do vento e conseguiram direcionar (com fogo? com sons?) a manada rumo a um labirinto de rocha. Muitas ferramentas de pedra lascada foram encontradas nesse sítio arqueológico. Todavia, apesar de terem sido muito caçados pelos paleoíndios, enormes populações de bisões perduraram até 300 anos atrás, quando começou seu rápido declínio. Na famosa corrida Bisão americano


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para o oeste, uma prática corriqueira era alvejar, com uma Winchester, bisões das janelas das locomotivas em marcha, apenas por esporte. Em 1700 estima-se que eram 50 milhões de bisões, e atualmente sobrevivem em parques nacionais norte-americanos e canadenses cerca de 200 mil. É interessante notar que uma confusão de nomes ocorreu no início da colonização da América do Norte pelos ingleses. O bisão foi chamado de búfalo, que na realidade é uma espécie que ocorre apenas na Índia e sudeste asiático e que nunca migrou para as Américas. Atualmente fica difícil corrigir o equívoco, que implicaria até mesmo mudar o nome da populosa cidade de Buffalo, na margem sul dos Grandes Lagos. Faz parte da história da humanidade a mácula de ter levado à extinção várias espécies animais, por ação direta ou indireta. Não se sabe ao certo o nosso grau de responsabilidade, mas assim que chegamos desapareceram, por exemplo, o mamute, que habitou a Eurásia e a América do Norte, e o mastodonte, um outro parente do elefante que era encontrado na América do Sul. O fato é que, por curiosidade, ou necessidade de novos campos de caça e coleta de alimentos, os três continentes americanos foram colonizados do extremo norte ao extremo sul, já que foram encontrados vestígios humanos antigos do Ártico à Terra do Fogo. Na América do Sul, ocuparam primeiro a Colômbia, depois a Venezuela e em seguida a floresta amazônica brasileira. A grande discussão que agita o meio científico arqueológico sobre a origem das levas migratórias ganhou combustível com o achado, em vários pontos da América do Sul, de fósseis humanos com características faciais negróides. Na Colômbia, na cidade de


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Mamute

Mastodonte

Tequendama; no Brasil, na região central de Minas Gerais; e no extremo sul da Argentina foram encontradas ossadas antigas cujos estudos mostraram a conformação da face semelhante à dos africanos, ou à dos aborígenes australianos. A explicação seria que os povos negróides, supostamente os primeiros a ocupar o continente americano, foram assimilados ou exterminados pelos povos mongolóides que vieram milênios após, e que somente estes últimos sobreviveram até os nossos dias.


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São estudos ainda iniciais, e novas pistas necessitam ser descobertas para clarear o que realmente ocorreu. Parte do quebracabeça, porém, já foi montado, a partir de evidências provenientes de vários campos científicos. Por exemplo, o uso da zarabatana é comum entre os índios sul-americanos, assim como em tribos da Oceania, mas não faz parte do arsenal das tribos mongóis e dos índios norteamericanos. Surgiu então, por certo período, uma teoria de que teriam sido os polinésios os primeiros a chegar na América do Sul. Essa tese foi derrubada recentemente, com a descoberta de que a ocupação das ilhas da Polinésia data de apenas dois mil anos, além do que eles não tinham tecnologia para a navegação em alto mar. O mais certo é que nossos índios aprenderam com tribos negróides - que trouxeram a técnica de seus ancestrais - a fabricar tubos nos quais eram colocadas minúsculas flechas com veneno e que, sopradas fortemente, eram armas eficazes na caça de pequenos e grandes animais. As mais antigas ruínas de uma cidade no continente americano foram encontradas no Peru, a 200 quilômetros de Lima, junto à costa do Pacífico. Foram datadas de 4,6 mil anos, e muitas informações puderam ser inferidas ao se estudar o local. Possuíam, por exemplo, canais de irrigação e cultivavam feijão, Índio sul-americano caçando com uma zarabatana


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goiaba e algodão, mas não o milho. Apreciavam muito um tubérculo nativo, que hoje é injustamente conhecido como batata “inglesa”. Surpreendentemente não conheciam a cerâmica. Foram ricos e poderosos e no auge de seu domínio construíram grandes pirâmides, a maior com 18 metros de altura e 150 metros de base. Irradiaram povoamento e cultura por todas as regiões circunvizinhas. Foi o povo que deu origem aos maias e astecas ao norte e aos incas ao sul. Após alguns séculos de ocupação, abandonaram a cidade e desapareceram misteriosamente, mas tiveram o cuidado de enterrar suas construções, preservando, para deleite dos historiadores, seus tesouros arqueológicos. Os índios brasileiros atuais são descendentes de levas migratórias mongólicas que chegaram pela bacia amazônica há cerca de dez mil anos. No Pará, próximo a Santarém, na caverna da Pedra Pintada, foram encontradas as mais antigas cerâmicas e pinturas rupestres do Novo Mundo, datadas de nove mil anos, e, nos arredores, vestíÁrea de ocupação territorial dos astecas, maias e incas


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gios de uma grande cidade. Conheciam o milho, que trouxeram na sua passagem pela região que é hoje o México, e o cultivavam, já que era então a principal base alimentar, junto com a carne de caça. A cerâmica, com tecnologia já bastante desenvolvida, era um utensílio quase imprescindível para o armazenamento e consumo do milho triturado, transformação necessária para torná-lo mais digerível. Sobreviveram e se multiplicaram por milênios, tendo sido estimados em cerca de cinco milhões em território

brasileiro

por volta do ano de 1500. Com a chegada do colonizador europeu, foram dizimados à bala e também atingidos pelas doenças contra as quais não estavam Localização das principais tribos pré-colombianas

imunizados, como a tuberculose, o saram-

po e a gripe. Hoje restam 300 mil, lutando para se manterem vivos como povo. Devido ao isolamento entre as tribos, 1.300 línguas eram faladas apenas em território brasileiro. Um importante método de investigação antropológica é a lingüística, que estuda as semelhanças


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e diferenças entre línguas com a finalidade de estabelecer o parentesco entre elas. A partir desses estudos foi possível determinar os troncos macro-jê e tupi. O primeiro começou a diferenciar-se há cerca de seis mil anos e o último há quatro mil anos. Os estudiosos usam os termos protolíngua, família lingüística, subfamília, ramos, etc. Calculam ainda, por meio de técnicas estatísticas, em que período uma língua-mãe era falada, a partir do número de palavras preservadas do vocabulário básico de duas línguas geneticamente relacionadas. Um exemplo da importância da lingüística como ferramenta para desvendar o nosso passado é o estudo da língua dos bascos, chamada de Euskara, que é antiqüíssima e totalmente diversa de qualquer outra no mundo. É mais um fato na direção de identificar esse povo, que vive incrustado nos Pirineus franceses e espanhóis, como o mais antigo da Europa, descendente direto das tribos cromagnons que habitaram a região. O território brasileiro, dadas as suas características climáticas, é particularmente rico em fósseis humanos. Foi encontrada recentemente no município de Serranópolis, em Goiás, a ossada de um homem que ao morrer tinha cerca de 25 anos, e foi enterrado em posição fetal. Foi chamado de Homem da Serra do Cafezal, “Zé Gabiroba” para os mais íntimos, e foi descoberto a dois metros de profundidade em uma camada datada de 11 mil anos. Na área foram encontrados instrumentos de pedra lascada ainda envoltos em bainha de fibras vegetais trançadas e encapadas por folhas, com a mesma idade do fóssil. O clima seco do cerrado permitiu tal conservação, que é extremamente rara.


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Em 1970, a arqueóloga paulista Niède Guidon atravessou o sul do Piauí em um precário, porém audaz, jipe, à procura da cidade de São Raimundo Nonato. A caatinga denunciava a aridez do terreno, e a poeira e o calor eram quase insuportáveis. Estava à cata de pinturas rupestres e fósseis, dos quais havia tido notícias vagas e esparsas. Era sua segunda tentativa de chegar à isolada área, já que na primeira, seis anos antes, vários contratempos a haviam impedido de atingir o local. Sabia que exploraria uma vasta região ainda não estudada, mas sequer suspeitava de que estava a caminho de encontrar indícios capazes de mudar as teorias sobre a chegada da humanidade ao continente americano. Após se instalar no pequeno arraial, Niède percorreu a pé e sozinha, apenas nos três meses iniciais de estadia, cerca de 700 quilômetros de montes, vales e chapadões. A experiência foi tão gratificante que a fez para sempre uma genuína piauiense. Na Serra da Capivara, particularmente na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, mas também em várias outras grutas e abrigos, encontrou fósseis humanos, que posteriormente foram datados de 10 mil anos, e ossos da megafauna extinta. Catalogou também milhares de pinturas rupestres na região, algumas com 17 mil anos. Entretanto, sua mais importante descoberta foram prováveis restos de fogueiPedra Furada, na Serra da Capivara, Piauí


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ras estruturadas com seixos, próximas a artefatos de pedra lascada e lenha. A grande novidade é que essas fogueiras estavam um metro abaixo de uma camada datada de 48 mil anos. Seria, assim, o mais antigo registro humano nas Américas e foi a chama principal para que fosse criado, duas décadas após, o Parque Nacional da Serra da Capivara, com 130 mil hectares. Foi também criado no local o Museu do Homem Americano, e, em 1991, a região passou a ser considerada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. A publicação dos achados causou rebuliço na comunidade acadêmica. Imediatamente surgiu uma grande controvérsia, que, como é usual, balançou entre argumentos científicos e bairristas. Os céticos argumentam que não há provas contundentes de que o fogo tivesse sido provocado pelo homem, e que poderia ser uma simples combustão de um incêndio. Os pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades que passaram então a estudar as cavernas piauienses têm uma resposta: se fossem camadas de carvão de incêndios naturais elas estariam espalhadas pelo sítio arqueológico, o que não aconteceu. Outras escavações no local deram resultado negativo, pois o carvão foi encontrado em apenas uma pequena área que havia sido habitada por humanos. Em sua maioria, os influentes estudiosos dos Estados Unidos ainda defendem a tese de que nossos mais primitivos antepassados americanos não teriam mais que 12 mil anos. Mas, recentemente, alguns já se dobram às novas evidências, mesmo que de forma ainda relutante. Todavia, fica a pergunta: por que o sítio mais antigo já descoberto no nosso continente estaria no fim do mundo que é a Serra da Capivara, no mais inóspito sertão piauiense?


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Niède Guidon responde que os arqueólogos seguiam sempre a norma de interromper as escavações quando se atingia a datação de 20 mil anos, já que não haveria vestígios humanos em eras anteriores. Não seria, portanto, um fato isolado, e outros sítios, se bem estudados, poderiam revelar novas surpresas. Como ela subverteu essa regra e cavou mais, encontrou um tesouro que pode alterar todo o conhecimento sobre a chegada do Homo sapiens nas Américas.


CAPÍTULO

6

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U

ma fita de folha de palmeira previamente cortada era dobrada sobre outra fita semelhante. Esta segunda fita era igualmente dobrada sobre a primeira, que por sua vez era trançada entre dobraduras anteriores. Dessa maneira, formava-se uma resistente malha de tiras entrelaçadas, com a qual se podia fazer cestos, redes e mantas. Sentada no chão, Luzia terminou de tecer o cesto de palha que iniciara dias antes. Trabalhara lentamente, mas com afinco. Dominava com destreza as diferentes técnicas de dobradura das palhas, uma para cada função que se desejava com o tecido criado. O cesto novo ia substituir o antigo, já roto no fundo, de tanto carregar cocos e raízes. No dia seguinte ia levá-lo na longa caminhada que pensava fazer. Queria chegar à margem do grande rio, que chamavam de “Guaicuy”, onde os coqueiros macaúbas eram mais numerosos. Teria de andar todo o dia e somente ao anoitecer estaria de volta à gruta em que residia. Certamente retornaria com o cesto repleto de pequenos cocos, dos quais extrairia apetitosas castanhas. Dessa vez iria sozinha. As outras mulheres da tribo não se interessaram por uma jornada tão extenuante. Mas Luzia estava acostumada a esse trabalho, que executava todo final de outono, quando os Técnica de trançar as fitas de palha


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cocos amadureciam e caíam. Como tinha vivido cerca de 20 ciclos anuais, e fazia a tarefa desde que deixara de ser criança, pelo menos uma dezena de vezes tinha ido à várzea do Guaicuy. Apenas não podia prever que esta seria sua última viagem. No retorno, já próxima do ansiado conforto do lar, parou para descansar em uma gruta, sua velha conhecida, situada no território em que habitava. Por um descuido fatal, ao penetrar demasiadamente no interior escuro, caiu de mau jeito em uma vala de quatro metros de profundidade, tendo fraturado o pescoço. Morreu, assim como Lucy, de forma solitária e sem os rituais de sepultamento. Seu corpo ficou parcialmente protegido do ataque de animais carnívoros, devido ao local onde permaneceu. O ambiente da caverna propiciou sua fossilização, pois sedimentos o recobriram. A natureza lentamente encarregou-se de construir sua sepultura. Após muitos anos de caminhada, migrando rumo ao sul, os antigos ancestrais de Luzia haviam encontrado essa região do interior do continente americano. Por ali ficaram, satisfeitos com as inúmeras cavernas, tantas que não precisavam mais se preocupar com moradias. Ficavam entre rios caudalosos e montanhas baixas, apenas uma

Minas Gerais, com destaque para a Serra do Espinhaço e o Rio das Velhas (Rio “Guaicuy”)


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cordilheira mais alta, na direção do nascente. Muito longe do mar e das montanhas nevadas, que, perdidos no tempo, certamente não mais faziam parte da memória de seu povo. A região era coberta por uma capa florestal e rica em animais propícios para a caça. Apesar da chuva freqüente, a temperatura mantinha-se relativamente alta, mesmo nos meses de inverno. Ali poderiam permanecer tranqüilos, sem sobressaltos além daqueles a que estavam acostumados. As tribos eram formadas por vários grupos de indivíduos, que se organizavam em clãs e se encontravam apenas raramente, nas festas religiosas, geralmente anuais. Nesses encontros fazia-se também um intercâmbio genético, por meio da formação de casais entre grupos distantes. Cada clã era formado por cerca de 20 a 30 membros, com uma estrutura social hierárquica: o chefe; o curandeiro; o grupo dos caçadores, formado pelos homens adultos; o grupo das mulheres, que se incumbia da coleta de folhas, raízes, moluscos e pequenos animais; e o grupo das crianças. Como antes, viviam não mais que 30 anos, mas eram bastante saudáveis. Tinham baixa incidência de cáries dentárias, devido à ausência de açúcar na dieta, e não sabiam o que era vida inativa, obesidade ou hipertensão. Se durante uma temporada de privações apresentassem desnutrição, toda a tribo sofria solidariamente do mesmo mal. Eram nômades e migravam assim que percebiam que os alimentos estavam escasseando. A caça de grandes animais era uma atividade complexa e elaborada, que tinham aprendido observando a estratégia usada pelas alcatéias dos cães selvagens. Um pequeno grupo de caçadores seria incapaz de cercar e abater um agressivo cavalo pré-histórico, ou um arisco veado, ao contrário de um grupo planejadamente posicionado e atuando em conjun-


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to. De início, procuravam isolar de seu grupo uma presa mais frágil, que fosse mais velha, ou estivesse ferida, ou uma fêmea com sua cria. Atacavam cercando o animal, mas não todos ao mesmo tempo. Quando um pequeno grupo de caçadores cansava-se da corrida, passava para a função de cercar a presa, enquanto outro grupo tomava o lugar do ataque. Por fim, com o animal exausto e encurralado, o abate era realizado com grandes lanças, que tinham as extremidades afiladas e endurecidas a fogo, ou com ponteiras de cristal lapidado. Tinham como inimigos naturais cães, felinos e pequenos ursos. A tribo de Luzia conviveu também com uma megafauna, composta por preguiças gigantes de quatro metros de altura, mastodontes e com os temíveis tigres dentes-de-sabre. Dados científicos obtidos nos últimos anos, a partir da datação de ossos, comprovam a existência desses grandes mamíferos na região desde há cerca de 10 mil anos. A extinção desses animais coincidiu com a chegada dos humanos, mas não existem indícios da nossa interferência em seu desaparecimento.

Fóssil do tigre dente-de-sabre

Fóssil da preguiça gigante


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De quais evidências dispomos? Uma delas começou a aflorar em um passado não muito distante, com os estudos dos fósseis da região central de Minas Gerais. Entre 1930 e 1950, três paleontólogos amadores residentes em Belo Horizonte, o visionário cônsul inglês Harold Walter, o enciclopédico clínico-geral Arnaldo Cathoud e o circunspecto professor Aníbal Mattos, que empregavam seus fins de semana para investigar as grutas vizinhas à cidade, recolheram centenas de fósseis de inúmeras espécies de animais, incluindo vários esqueletos humanos. Fotografias da época, com os três empedernidos senhores, britanicamente engravatados em pleno trabalho dentro das grutas, ficaram preservadas. Posteriormente, seus achados foram doados por seus familiares ao Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, onde estão expostos. Em 1970, o pesquisador norte-americano Alan Bryan se propôs a rever essa coleção e, estudando detalhadamente fósseis de um mastodonte, identificou ranhuras em um osso ilíaco, que tinham passado despercebidas pelos três pesquisadores e por todos aqueles Aníbal Mattos, Arnaldo Cathoud e Harold Walter, posando no interior de uma gruta em Lagoa Santa


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que o haviam analisado anteriormente. Postulou que se tratava de uma intervenção humana destinada a desarticular e retirar a perna do grande animal. Descobriu também que, além desses cortes no osso, havia vestígios de golpes, indicando que houve a tentativa de se obterem lâminas ósseas, certamente para a confecção de instrumentos. A recente divulgação da idade dos fósseis da megafauna por métodos mais sofisticados veio apenas confirmar aquilo que já se sabia por meio de outros indícios. A segunda metade do século XX foi de intensa pesquisa científica na região e fértil em novas descobertas. O corpo de Luzia foi desenterrado em 1975, por arqueólogos de uma missão francobrasileira, que exploravam uma gruta chamada Lapa Vermelha, situada no município de Pedro Leopoldo, também na região central mineira e próxima à cidade de Lagoa Santa. O crânio e o restante do corpo foram encontrados distantes um do outro e estavam sob 13 metros de detritos minerais e orgânicos. Os ossos eram de uma mulher de 1,50 metro de altura, com cerca de 20 anos de idade. Do telúrico e despojado túmulo em Minas Gerais, Luzia foi levada para o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Ao serem datadas com carbono 14 as camadas de sedimentos que recobriam o esqueleto, surgiu o primeiro motivo para que se tornasse famoso: tinha aproximadamente 11.680 anos, sendo assim o fóssil humano mais antigo até então descoberto nas Américas. Escolheram para ela o nome de Luzia, com o propósito de estabelecer um vínculo com o nome de sua longínqua irmã Lucy. Entretanto, Luzia ainda nos reservava outra grande surpresa. Quinze anos depois, em 1990, ao ser feita a reconstituição de sua face por meio de computador, estudo realizado na Universidade de


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Manchester, na Inglaterra, a imagem final revelou um rosto bastante diverso do esperado para nossos índios, que apresentam sempre traços asiáticos. Apesar de não sabermos a cor de sua pele, tinha a face negróide: os olhos arredondados, o nariz larCrânio de Luzia go e o queixo proeminente. Seu rosto era mais parecido com o dos africanos, ou então, com o dos aborígenes da Austrália. Um enigma parecido com aquele com o qual se depararam os pesquisadores norte-americanos, quando reconstituíram o Homem de Kennewick e o Spirit Caveman. Um importante método de análise antropológica consiste em estudar estatisticamente a variação entre algumas dezenas de medidas do crânio, tais como a largura da face e fossas nasais, a distância entre as órbitas, e compará-las em conjunto com as características morfológicas de grupos populacionais. É possível então diferenciar asiáticos, africanos e europeus. Qual teria sido a origem da tribo de Luzia? Infelizmente não foi possível extrair o DNA de seus ossos, o que seria muito esclarecedor. Talvez seu povo tenha pertencido à primeira onda migratória a Reconstituição da face de Luzia


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atingir as Américas, há bem mais de 20 mil anos. Vieram provavelmente do sul da Ásia, pela rota que acompanhava o litoral. Também atravessaram o Estreito de Bering e se espalharam pelo continente americano, colonizando-o lentamente do norte ao extremo sul. Por um longo período não tiveram concorrentes humanos. Os descendentes de Luzia, três ou quatro milênios após sua morte prematura, viram surpresos e temerosos a lenta invasão de humanos de aparência estranha, que insistiam em chegar ano a ano, sempre provenientes do norte. Eram arredios e medrosos; todavia, extremamente sagazes nas artimanhas de tomar posse de terras. De início, eram raras as aparições, e os contatos somente ocorriam quando fortuitos. Mas chegavam progressivamente, sempre em número crescente, parecendo ter a capacidade de se multiplicar enormemente a cada geração. Tinham os olhos puxados e oblíquos, a pele amarelada e os cabelos lisos e negros. Ocupavam desrespeitosamente todos os territórios de caça e as boas cavernas de moradia. A coexistência pacífica do princípio começou a ficar impossível. Escaramuças na disputa por uma gruta, ou por uma manada de caititus, passaram a se tornar cada vez mais freqüentes. Até que, um dia, o ódio acumulado dos dois lados, por gerações, fez explodir uma guerra franca e impiedosa. Os intrusos eram ardilosos e imprevisíveis na arte de guerrear e se valiam da superioridade numérica. Mesmo assim evitavam o confronto direto, somente atacando quando tinham algum outro tipo de vantagem. Com isso, geralmente venciam as batalhas. Bastaram algumas gerações para que se tornassem soberanos de toda a região, exterminando os primeiros colonizadores. De fato, todas as ossadas que datam de menos de oito mil anos, encontradas na região, mostram as feições mongolóides, en-


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quanto as mais antigas, encontradas em menor número e datadas em torno de 12 a 10 mil anos, têm a característica negróide. A 60 quilômetros da Lapa Vermelha, onde Luzia foi encontrada, pesquisadores descobriram no subsolo abaixo de um paredão repleto de pinturas rupestres o maior cemitério paleoíndio estudado cientificamente nas Américas. Trata-se do Grande Abrigo de Santana do Riacho, situado no contraforte oeste da Serra do Espinhaço, próximo a várias nascentes, local estrategicamente privilegiado para um aldeamento.

Grande Abrigo de Santana do Riacho, na região central de Minas Gerais

Enquanto nos Estados Unidos apenas seis esqueletos humanos com mais de oito mil anos foram encontrados, no Grande Abrigo, em apenas um único local de escavação, mais de 40


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corpos foram desenterrados. Muitos indivíduos são semelhantes a Luzia, ou seja, são negróides (na atualidade, mais de 80 crânios da região central de Minas Gerais, de mesma datação, têm essa conformação facial, segundo o professor Walter Neves, que hoje coordena os trabalhos). As escavações em Santana do Riacho ocorreram entre 1976 e 1979, e a pesquisa no local foi interrompida após análise de uma área restrita. Foram encontrados, além dos fósseis humanos, ferramentas de pedra lascada e polida, artefatos de ossos, chifres e dentes, vértebras de peixes, ossos de animais, tecidos de fibra trançada, sementes de milho e restos de cerâmicas. Futuras escavações serão realizadas somente quando tecnologias inovadoras justificarem outras amostragens arqueológicas. Hoje, os arqueólogos praticam quase sempre essa boa norma, que é chamada por eles de bloco testemunho. Inúmeras outras grutas de Minas Gerais mostram registros de ocupações dessa época. Na gruta do Balé, em Matozinhos, região de Lagoa Santa, tribos primitivas deixaram para a posteridade desenhos de um ritual da fertilidade. São várias figuras estilizadas de homens, alguns com cabeças de pássaros, que parecem movimentar-se numa dança, e uma mulher em cena de parto. No vale do Rio Peruaçu, no norte de Minas, estão as pinturas mais bem preservadas do Brasil, espalhadas por centenas de painéis. Investigadores mais Ritual da fertilidade pintado na Gruta do Balé, em Matozinhos


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delirantes identificaram figuras de seres antropomorfos com capacetes, que teriam sido astronautas que visitaram nossos antepassados. As especulações estão apenas começando, já que existem enigmáticos fatos ainda sem ex“Astronauta” pintado em uma gruta do plicação. Estudos de fezes fossilinorte de Minas Gerais zadas de paleoíndios brasileiros, com datação de sete mil anos, mostraram ovos de ancilóstomos, um parasita intestinal típico de regiões quentes, e muito comum na África, no Mediterrâneo e na Ásia Meridional. Esse verme jamais teria resistido à prolongada passagem do hospedeiro humano por regiões frias, já que não resiste a baixas temperaturas. Ressurge então uma velha teoria, ainda considerada fantasiosa: teria havido também uma migração transoceânica, através do Atlântico? Para apoiar a tese, em Montalvânia, perto da divisa de Minas Gerais com a Bahia, as inscrições rupestres são diferentes do usual, pois foram gravadas em baixo-relevo no paredão de calcário. Apesar de se situarem em pleno sertão, é possível identificar cenas marítimas. Para aumentar o mistério, também em Cocais, região central de Minas Gerais, existe uma pintura rupestre de um estranho barco com três cruzetas e um leme, sem dúvida um modelo fenício, segundo alguns estuBarco “fenício” pintado em uma gruta na região central de Minas Gerais


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diosos mais entusiasmados. Para finalizar, dando corda às mentes mais alucinadas, inscrições em fenício arcaico foram encontradas na Serra do Sincorá, na Bahia. As cavernas brasileiras guardaram por milênios muitos tesouros arqueológicos, sem que ninguém os perturbasse. Os índios habitavam as entradas das grutas e quando se arriscavam na escuridão do interior preservavam respeitosamente o que viam. Com a chegada do homem europeu e em seguida a do escravo africano, o assédio destruidor se iniciou. A riqueza que procuravam e que extraíam das cavernas era o salitre, uma substância orgânica formada por bactérias a partir das fezes de morcegos. Era utilizado na fabricação de pólvora, que é uma mistura explosiva de salitre, enxofre e carvão. Por séculos, o salitre foi retirado das grutas, até que quase nada restou. Posteriormente, a exploração das grutas voltou-se para o calcário, primeiro como componente na fundição do ferro e, na atualidade, para a fabricação de cimento. A exploração desordenada e voraz destruiu vastas áreas, mas o que restou, e que agora recebe um tratamento um pouco mais rigoroso, é ainda uma verdadeira mina de riquezas. Foi criada em 1990 a Área de Proteção Ambiental do Carste de Lagoa Santa, com 35 mil hectares, próxima ao grande Rio Guaicuy, hoje chamado Rio das Velhas, com o objetivo de disciplinar a exploração do calcário e proteger as grutas ainda existentes. As cavernas mais extensas e exuberantes são formadas no calcário, uma rocha sedimentar lentamente solúvel, que permite a circulação da água. O calcário foi formado há cerca de 500 milhões de anos no fundo dos oceanos primitivos, pelo acamamento de carapaças de animais marinhos. Com o tempo, essas rochas afloraram, empurradas para o alto pelos movimentos tectônicos da crosta terres-


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tre. As águas de chuvas e córregos penetram nas fraturas das rochas, dissolvendo-as e abrindo galerias. Pela ação da gravidade, a rocha dissolvida acumula-se verticalmente formando estalactites (de cima para baixo) e estalagmites (de baixo para cima), e outros espeleotemas horizontais e mesmo inclinados. O relevo formado por cavernas, cânions, sumidouros e ressurgências recebe o nome de carste. O interesse científico por nossas grutas teve início há aproximadamente 200 anos, com a descoberta da enorme quantidade de fósseis que podiam ser desenterrados em seus interiores. Tudo começou com um naturalista dinamarquês chaSalão principal da Gruta Rei do Mato, em Sete Lagoas mado Peter Wilhelm Lund, que, para fugir do rigoroso inverno de sua terra e do risco de contrair tuberculose, que acometia vários de seus familiares, aportou em terras brasileiras em 1825. Ao passar pela região de Lagoa Santa, na Província de Minas Gerais, Lund maravilhou-se com o novo campo da ciência que se descortinava para ele. Abandonou a botânica, sua predileção inicial, e, após décadas de descobertas e meticulosas descrições de seus achados, tornou-se o “pai da paleontologia brasileira”, como hoje é justamente reconhecido. Enviou para a Dinamarca cerca de 12 mil fósseis, muitos ainda não estudados, e escreveu milhares de páginas de relatórios.


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Em 1837, ao explorar uma gruta na entrada do município de Lagoa Santa, Lund desenterrou pela primeira vez nas Américas um fóssil humano. Surpreso, constatou que o esqueleto, apesar de se encontrar em camadas inferiores da gruta, junto a ossadas de animais exóticos, todos já extintos, apresentava semelhança com os humanos modernos. Isso não era esperado, pois a teoria corrente na época era que os seres pré-históricos diferiam dos atuais, representan-

Peter Wilhelm Lund (1801-1880)

do duas etapas distintas da Criação Divina. Num primeiro momento, Deus tinha criado diversos seres com as mais variadas formas e, em seguida, teria recomeçado, aniquilando a vida existente e criando novas formas de vida. A ciência por essa época tinha forte influência religiosa, e quem divulgasse teorias heréticas certamente sofreria as conseqüências da conhecida e temida ira da Igreja. A teoria do catastrofismo era o pensamento científico vigente e advogava que um inusitado evento natural, provavelmente um grande dilúvio, teria marcado as duas etapas da vida na Terra. A versão da Bíblia, com Noé e sua arca, não precisava ser aceita na íntegra, mas era consenso que teria havido uma Pré-História e, agora, a História, e que os bichos eram imutáveis. Lund procurava ansiosamente o fóssil de um homem préhistórico, que diferisse do atual, para que seu mundo de idéias e crenças não entrasse em colapso. Referia-se a ele como o Homem


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de Lagoa Santa, que seria o maior trunfo de sua carreira de cientista. Todavia, jamais o encontrou. Por essa época, o inglês Charles Darwin estava elaborando, mas ainda não tinha publicado, seu famoso livro A Origem das Espécies, o que somente ocorreu décadas após, em 1859, quando provava que a seleção natural determinava modificações morfológicas ao longo dos milênios. O seu conteúdo, bastante revolucionário para a época, recebeu contundentes críticas, tanto das academias de ciências, como dos religiosos. Demonstrava que os seres mais adaptados ao ambiente sobreviviam e passavam adiante suas características, enquanto os menos adaptados tendiam a desaparecer. Darwin cita várias vezes em sua obra a “admirável coleção de fósseis recolhida por Lund”, como uma das provas da sucessão das espécies. Lund, isolado em pleno sertão brasileiro, sentia-se angustiado diante de suas próprias descobertas, que negavam o conhecimento de famosos sábios europeus. Não se sentia nada confortável em contrapor-se aos seus queridos e reverenciados mestres, que muito admirava e com os quais desejava voltar a conviver em um futuro próximo. O acúmulo de evidências contrárias à Caricatura de Darwin publicada por teoria do catastrofismo, que coletajornais londrinos de sua época va involuntariamente, fez com que abandonasse as atividades de cientista, de forma repentina, aos 44 anos de idade, recusando-se também a voltar à Europa.


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A gota d’água para sua decisão parece ter sido o achado do esqueleto de um pequeno rato da zona rural de Lagoa Santa, cujos ossos petrificados desenterrou em camadas muito profundas. Sem qualquer dúvida, o fóssil era absolutamente idêntico ao rato que ainda corria esperto pelas bocas de todas as lapas da região. Deus teria aniquilado toda a vida pré-histórica, tendo, porém, o cuidado de preservar aquele mísero rato? Qual mensagem poderia haver nesse incompreensível ato divino? Ou os homens, com sua peculiar arrogância, punham nas mãos de Deus teorias que eles próprios tinham criado? Lund sentiu-se frágil e incapaz diante de tantas dúvidas e preferiu desistir. Isolou-se ainda mais em Lagoa Santa, mal saía de casa, abandonou definitivamente todas as atividades relacionadas à paleontologia. Viveu até o último de seus dias no pequeno vilarejo, onde morreu aos 79 anos de idade, com a mente ainda fustigada por fantasmas inquisitoriais. Aos poucos a cidade foi se esquecendo daquele velhinho amalucado, solitário, de sotaque esquisito, que um dia tinha surgido de terras estrangeiras. Chamava a atenção de todos seu aspecto bizarro, devido a seus olhos de um azul aguado, a pele muito clara e pontilhada de sardas e, principalmente, pela insana mania de se interessar por esqueletos antigos. Pouco restou de sua obra na região que escolheu para trilhar o tempo que lhe foi dado para a sua existência. Seu descuidado túmulo, em área próxima à cidade que ele tanto se empenhou em planejar, construir e resguardar, é hoje uma prova da insensibilidade contemporânea. Não ficou qualquer vestígio do magnífico templo de pedra, que tanto o encantava, onde descobriu o primeiro fóssil humano das Américas. A seu pedido, o pintor norueguês


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Peter Andreas Brandt desenhou um belo quadro do interior da caverna, preciosa relíquia hoje de propriedade do Museu de Zoologia de Copenhague. A gruta, que também tinha o nome de Lapa Vermelha, foi totalmente destruída para a fabricação de cimento, e hoje é uma horrorosa cratera na entrada do município.

Pintura de Andreas Brandt da Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, gruta hoje inexistente

Entretanto, muitas outras grutas encontram-se preservadas e algumas de forma idêntica à vista por Lund. Uma é bastante especial, pois, em seu interior, terríveis visões teriam assaltado a mente já fragilizada do cientista. É a gruta de Cerca Grande, anteriormente conhecida como Rochedo dos Índios, distante poucas horas a cavalo de Lagoa Santa, duas léguas no rumo do oeste. Quando Lund viu Cerca Grande pela primeira vez, em 1837, ficou deslumbrado e relatou sua emoção numa carta a seus familiares: “Julguei ter diante de mim as ruínas de um vetusto palácio de gigantes, e meus olhos demoraramse na contemplação de uma série de altas arcadas escavadas na sua


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asa esquerda, como se eu esperasse descobrir ali os vestígios de seus habitantes misteriosos”.

Pintura de Andreas Brandt da Lapa de Cerca Grande, em Matozinhos, em 1837

Segundo consta, as alucinações o acometeram quando estava no interior da gruta, durante uma noite em que, em vão, procurava repousar após importantes escavações, quando recolhera novamente intrigantes fósseis. Em pânico, conseguiu após algumas intermináveis horas se arrastar para o exterior, fugindo de íntimos terremotos. A partir de então, Peter Lund nunca mais voltaria a pôr os pés dentro de uma caverna. Felizmente, a gruta hoje está tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Escondida no meio do cerrado, sua beleza selvagem está praticamente intocada. A Lapa de Cerca Grande fica à meia altura em um imponente bloco de calcário e tem o formato de vários túneis interligados, alguns na penumbra e outros na escuridão total.


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Foto atual da Lapa de Cerca Grande, em Matozinhos

Parte da densa floresta que a circundava resistiu heroicamente. Grossas raízes de gameleiras escorrem pelas pedras por dezenas de metros, em busca de solo. Estalactites, que se supõe sejam minerais sem vida, em alguns locais crescem de forma enigmática em direção à luz. Centenas de pinturas rupestres adornam suas paredes, representando cervídeos, aves, peixes, seres antropomorfos e símbolos esotéricos que ainda não conseguimos decifrar. No seu interior, o tempo estanca, tem outra dimensão, e percebe-se na pele que sopros do passado circulam entre as galerias. Sem dúvida, nossa Luzia conheceu seus múltiplos e intrincados labirintos e certamente considerou-a também como uma sublime catedral. Para explorá-la hoje, além de escalar vários metros do paredão, há que se pedir licença aos bandos de irritadiças maritacas, as atuais residentes. Merecem reverência, já que escrupulosas e responsáveis guardiãs.



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DE LUCY A LUZIA - A LONGA JORNADA DA ÁFRICA AO BRASIL

Neste livro é contada a pré-história da humanidade nosé últimos milhões dedaanos. Tem início na África, Neste livro contada três a pré-história humanidade onde viveu ode hominídeo queinício ganhou nome de Lucy, que, os últimos três milhões anos. Tem na oÁfrica, apesar de que ter oganhou cérebro do tamanho um chimpanzé, nde viveu o hominídeo o nome de Lucy,de que, uma faria toda a diferença no pesar de ter possuía o cérebro docaracterística tamanho de que um chimpanzé, ossuía uma característica que faria a diferença no evolução nos futuro: era bípede. Nas toda etapas seguintes da turo: era bípede. Nas etapas seguintes da evolução nos dominamos tornamos progressivamente mais inteligentes, rnamos progressivamente inteligentes, dominamos o fogo e com mais isso pudemos ocupar quase toda a superfífogo e com cie issoda pudemos ocupar quase toda a superfíTerra. O Homo sapiens teve sua origem também na e da Terra. OÁfrica Homohá sapiens sua mil origem também na cerca teve de 200 anos. Pressionado pela seca rica há cerca de 200 mil anos. Pressionado pela seca migrou para a Ásia e aos poucos foi ocupando a Austrália, igrou para a Ásia e aos poucos foi ocupando a Austrália, a Europa e finalmente as Américas. Achados arqueológiEuropa e finalmente as Américas. Achados arqueológicos, paleontológicos e lingüísticos, associados a pesquisas os, paleontológicos e lingüísticos, associados a pesquisas genéticas, muito nos relatam sobre a seqüência das migraenéticas, muito nos relatam sobre a seqüência das migrações. Na região central do Brasil os primeiros humanos ões. Na região central do Brasil os primeiros humanos chegaram provavelmente háe12 mil anos e tinham a face hegaram provavelmente há 12 mil anos tinham a face negróide, mostra-nos mais humano antigo fóssil humano egróide, mostra-nos Luzia, o mais Luzia, antigo ofóssil até hojenas encontrado Américas, cerca de 80 outros é hoje encontrado Américas,nas e cerca de 80e outros fósseis com características faciais semelhantes. Esse prisseis com características faciais semelhantes. Esse pripovo foileva extinto pela leva seguinte, eiro povo foimeiro extinto pela seguinte, de feições asi-de feições asiáticas, queaos deuíndios origem aos índios atuais.deNas grutas de icas, que deu origem atuais. Nas grutas inas Gerais repousam muitos fósseis muitos de seres humanos, Minas Gerais repousam fósseis de seres humanos, e diversos animais, alémanimais, da megafauna Temosextinta. Temos de diversos além daextinta. megafauna erdadeiras bibliotecas de pedra a nos contar fascinantes verdadeiras bibliotecas de pedra a nos contar fascinantes stórias de nosso passado remoto. histórias de nosso passado remoto.


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