Navegando Rio das Velhas das Minas aos Gerais_VOLUME 2_Estudos Sobre a Bacia_Capítulos 1 ao 16

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VOLUME 2: E STUDOS SOBRE A BACIA HIDROGRÁFICA DO

Belo Horizonte 2005

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© Projeto Manuelzão/UFMG Coordenação editorial Eugênio Marcos Andrade Goulart Co-editores para os capítulos da área de Ciências Biológicas Carlos Bernardo Mascarenhas Alves Paulo dos Santos Pompeu Revisão de texto Marilia de Albuquerque Salgado Direção de criação e design gráfico Guilherme Seara Pesquisa iconográfica e seleção de imagens Luís Augusto de Lima Fotografia Cuia Guimarães Direção de arte Ana Cristina Cintra Arte-final Túlio Linhares Produção gráfica Marden Diniz Assistente de pesquisa Júlia Parizzi Moysés Impressão Rona Editora

ISBN: 85-98659-02-9 N323

Navegando o Rio das Velhas das Minas aos Gerais/organizado por Eugênio Marcos Andrade Goulart. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy-SOS Rio das Velhas/Projeto Manuelzão/UFMG, 2005 2v. il. color. ; 31,5 cm. Inclui bibliografia ISBN: 85-98659-01-0 Conteúdo: v.1. A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas v.2. Estudos sobre a bacia hidrográfica do Rio das Velhas 1. Velhas, Rio das (MG) – Descrições e viagens 2. Velhas, Rio das (MG) – História 3. Expedição Manuelzão (2003) I. Goulart, Eugênio Marcos Andrade II. Universidade Federal de Minas Gerais III. Projeto Manuelzão CDU: 910.4 CDD: 918.1

Projeto Manuelzão Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais Av. Alfredo Balena, 190 - 10º andar - sala 10.012 - Santa Efigênia CEP 30130-100 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil Tel.: (31) 3248 9818 - Fax.: (31) 3248 9959 manuelzao@manuelzao.ufmg.br www.manuelzao.ufmg.br


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“Esta expedição tem o objetivo de mobilizar as pessoas e transformar o leito do Rio das Velhas num palco iluminado para o debate da proposta de recuperação desta bacia hidrográfica com o povo de Minas Gerais e de toda a bacia do Rio São Francisco”. Apolo Heringer Lisboa Coordenador Geral do Projeto Manuelzão/UFMG

Trecho da ata da primeira reunião preparatória da expedição, em 21 de fevereiro de 2003.


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LEGENDAS DAS PÁGINAS ANTERIORES

Figura 1

Figura 10

Grupo de turistas na Cachoeira das Andorinhas, década de 1940.

Richard Burton no Rio das Velhas,1867.

Autor desconhecido. Coleção Bráulio Carsalade Villela.

Figura 11

Figura 2

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas.

Rio das Velhas em Curvelo, década de 1910. Fotografia: Raymundo Alves Pinto. Arquivo Público Mineiro .

Fotografia: Cuia Guimarães. Figura 12 Figura 3

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas.

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas. Fotografia: Cuia Guimarães.

Fotografia: Cuia Guimarães. Figura 13 Figura 4

Garimpeiros no Rio das Velhas, circa 1950. Fotografia: Marcel Gautherot.

Figura 5 e 6

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas. Fotografia: Cuia Guimarães.

Sabará em 1842. Litografia de Heaton & Rensburg. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Figura 14

Arraial de Lagoa Santa, em 1842. Litografia de Heaton & Rensburg. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Figura 7

Piso de cascalho do Rio das Velhas, século XVIII. Antiga Casa da Intêndencia e Fundição de Sabará, atual Museu do Ouro. Fotografia: Cuia Guimarães.

Figura 15

Recepção festiva às margens do Rio das Velhas em Sabará, circa 1890. Coleção do antigo clube Derby. Acervo Museu do Ouro, Sabará.

Figura 8

Campos pontilhados de matas junto ao Rio das Velhas, circa 1820. Figura 9

Cachoeira do Ribeirão do Palmital, perto de Sabará, circa 1820.

Figura 16

As futuras poetisas Laura Margarida e Anna Amélia de Queiroz. Usina Esperança, Itabirito, circa 1910. Coleção Luiz Philippe Carneiro de Mendonça.


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Figura 17

Figura 27

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas.

Ruínas da Igreja Bom Jesus de Matozinhos, Barra do Guaicuí.

Fotografia: Cuia Guimarães. Fotografia: Cuia Guimarães. Figura 18

Freiras na clausura do Convento de Macaúbas.

Figura 28

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas.

Fotografia: Louraidan Larsen. Fotografia: Cuia Guimarães. Figura 19

Anjo Protetor do Brasil. Pintura anônima sobre tela. Minas Gerais, final do século XIX. Coleção particular.

Figuras 20, 21 e 22

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas. Fotografia: Cuia Guimarães.

Figura 23

Richard Burton em sua tenda no Oeste da África, circa 1862. Figura 24

Embarcação do Rio São Francisco, circa 1950. Fotografia: Marcel Gautherot.

Figura 25

A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas. Fotografia: Cuia Guimarães.

Figura 26

Grupo de turistas em Lagoa Santa. Fotografia de Harold Walter, sem data. Coleção Jeanne Milde. Acervo Museu Mineiro.

Iconografia O BRASIL na visualidade popular. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2000. BRÉSIL, deux cent dix-sept photographies de A. Bom, M. Gautherot et P. Verger. Paris: Paul Hatmann ⁄ Agir, 1950. Introdução de Alceu Amoroso Lima, notas de Antoine Bom. LOVELL, M. S. A rage to life: a biography of Richard and Isabel Burton. New York: W.W. Norton, 1998. MARTIUS, C.F. P. von. A viagem de von Martius; flora brasiliensis (vol I). Rio de Janeiro: Index, 1996.


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A parceria entre a Secretaria de Estado de Educação e o Projeto Manuelzão funda-se na convicção de que atividades de educação ambiental formal, aliadas a iniciativas de mobilização social como a Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas, contribuirão para a definição de novos rumos na relação entre os seres humanos e seu ambiente. Estamos certos de que este livro será um importante instrumento para que crianças e jovens conheçam a bacia do Rio das Velhas e participem das ações para sua revitalização, através da participação nos comitês de gestão das sub-bacias hidrográficas onde estão as escolas.

Vanessa Guimarães Pinto Secretária de Estado de Educação

Foi com muita honra que a Cemig se colocou como parceira do Projeto Manuelzão nesta expedição pelo Rio das Velhas. A Cemig tem uma forte ligação com o Rio São Francisco através do aproveitamento da Usina de Três Marias, onde realiza uma série de ações ambientais. O resgate da memória e do diagnóstico atual das utilizações da água e de seus recursos naturais torna-se uma importante fonte de informações para a busca da melhoria das condições sociais e ambientais do Rio das Velhas.

Djalma Bastos de Morais Presidente da Companhia Energética de Minas Gerais – Cemig

O Governo de Minas está dando um exemplo de como se deve pensar e agir grande, especialmente em relação ao meio ambiente e à qualidade de vida. Para transformarmos Minas Gerais no melhor estado brasileiro para se viver, temos de ousar e trabalhar muito para que o Rio das Velhas volte a ser navegável e ter peixes, tornando-se, novamente, uma grande área de lazer para os mineiros. A Copasa está integrada a esse projeto de governo, investindo em estações de tratamento de esgotos em toda Bacia do Rio das Velhas, começando pelo exemplo que Belo Horizonte está dando a todo Brasil: tornar-se, já em 2005, a primeira capital brasileira a ter capacidade de tratar todos os esgotos coletados.

Mauro Ricardo Machado Costa Presidente da Copasa

O Grupo Belgo Arcelor sente-se honrado em participar juntamente com o Projeto Manuelzão de ações como da expedição e da produção do livro Navegando o Rio das Velhas das Minas aos Gerais. A parceria com o Projeto Manuelzão, sobretudo no movimento de revitalização de rios, córregos, proteção de nascente, matas ciliares e outras atividades, inclusive de educação ambiental, está produzindo avanços na política ambiental de Minas Gerais. Nossa participação na concretização da Meta 2010 reflete a posição de nossa empresa em fazer parte da construção destes novos tempos.

Grupo Belgo Arcelor Márcio Mendes Diretor Administrativo e de Recursos Humanos

Carlo Panunzi Diretor Presidente

A Minerações Brasileiras Reunidas S⁄A–MBR reconhece a importância da expedição e da publicação deste livro, organizados pelo Projeto Manuelzão, como parte do esforço em nos adequarmos à nova realidade de política ambiental que se constrói no Brasil, graças à tomada de consciência da sociedade, governo e empresas de que sem desenvolvimento sustentável social, econômico e ambiental, o progresso econômico não promove a qualidade de vida nem vale a pena. Por isto, estamos comprometidos com a conquista da Meta 2010, pois a despoluição do Rio das Velhas será um importante marco na história ambiental de Minas Gerais.

Minerações Brasileiras Reunidas S⁄A


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Acredito que os sonhos podem ser realizados, desde que haja fé e empenho. Por isso, a Prefeitura de Belo Horizonte abraçou a causa e é parceira do Projeto Manuelzão na política de gestão das águas, no objetivo comum de defesa do meio ambiente e pela recuperação e preservação da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Temos certeza de que, concretizando a Meta, no futuro estaremos conquistando uma significativa melhoria em favor das águas e beneficiando a qualidade de vida das populações que vivem nas suas proximidades ou que delas necessitam. Que nesses próximos cinco anos o Rio das Velhas, entre Sabará, Belo Horizonte e Santa Luzia, esteja recuperado para se navegar, pescar e nadar, proporcionando a interação com que sonhamos entre o ser humano e a natureza preservada.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, CBH–Velhas e o Instituto Guaicuy–SOS Rio das Velhas estão convencidos de que a mobilização social e a gestão ambiental compartilhada entre instâncias governamentais, empresas e sociedade civil organizada constroem novo capítulo de nossa História, quando concretizam com suas intervenções o desenvolvimento sustentável, a conservação dos ecossistemas regionais e das bacias hidrográficas.

Fernando Damata Pimentel Prefeito de Belo Horizonte

Apolo Heringer Lisboa Presidente do Instituto Guaicuy – SOS Rio das Velhas Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas

A Rede Globo, por meio da Globo Minas e do Globo Rural, acreditou desde o princípio no sucesso da expedição idealizada pelo Projeto Manuelzão. As dezenas de dias que convivemos em campo geraram centenas de horas de imagens gravadas, que transmitiram a todo o país uma esperança renovada de dias melhores para todos. Este livro é certamente uma contribuição à cultura brasileira.

Marcelo Matte Diretor Regional da TV Globo Minas

Humberto Pereira Editor-chefe do Globo Rural

O Governo do Estado de Minas Gerais orgulha-se de estar associado, por meio de seus diversos órgãos e secretarias, ao Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais, na expedição e na produção deste livro. Estamos hoje unidos, trabalhando pela concretização da Meta 2010 — navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas na Região Metropolitana de Belo Horizonte até o ano de 2010 — marco definitivo para sua completa revitalização. Atingir essa meta significa o resgate da qualidade de vida, através do exercício da cidadania. Significa a viabilização do desenvolvimento econômico e social sustentável em 51 municípios mineiros. Traduz o resultado da articulação e compromisso dos diversos setores sociais com a solução de problemas, na gestão ambiental. Dá à Universidade uma nova dimensão para atuação, possibilitando a aplicabilidade das pesquisas e conhecimentos nela produzidos. A realização do projeto tem um ponto alto nesta publicação, na medida em que resgata a importância histórica das minas e das gerais, ou seja, das riquezas naturais do nosso Estado, que o fazem destaque no país. Esta publicação faz ver e rever conceitos, mostrando de forma concreta o nível de degradação dos ecossistemas aquáticos e terrestres a eles associados, e a importância da sua recuperação para a saúde humana. Indo ainda além, este projeto mostra que, nesse processo, a história determina, mas não limita os protagonistas. O Governo de Minas Gerais, através do Manuelzão, reitera o compromisso com a conservação da biodiversidade, com o povo mineiro, sobretudo com os habitantes da bacia do Rio das Velhas. Aécio Neves Governador do Estado de Minas Gerais.


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SUMÁRIO

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O imaginário do Projeto Manuelzão Apolo Heringer Lisboa

73

As ações do Projeto Manuelzão Marcus Vinicius Polignano

95

A organização social e a defesa do rio: Os comitês Manuelzão Antônio Leite Alves Radicchi Marcílio de Oliveira Castro

115

A expedição de Richard Burton Paulo Roberto Azevedo Varejão Alice Conceição Christófaro


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135

Lund, o coletor do passado Cástor Cartelle

153

A Pré-História da região e sua importância para a Arqueologia americana André Prous

183

A história da ocupação humana na versão do próprio rio Núbia Braga Ribeiro Eugênio Marcos Andrade Goulart Rômulo Radicchi

209

As histórias submersas do rio que não quer morrer João Amílcar Salgado


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241

A história geológica da bacia hidrográfica Carlos Maurício Noce Friedrich Ewald Renger

265

Recursos minerais, mineração e siderurgia Friedrich Ewald Renger

291

A plataforma geológica e o desenvolvimento sustentável Edézio Teixeira de Carvalho

317

Sensoriamento remoto: imagens e aplicações Luciano Vieira Dutra Maria Márcia Magela Machado Christian Rezende Freitas


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329

O uso e a ocupação do solo, erosão e assoreamento Maria Giovana Parizzi Frederico Garcia Sobreira Terezinha Cássia de Brito Galvão

349

A ocupação rural pela agricultura Argileu Martins da Silva Maurício Roberto Fernandes Flávia Cristina Leão Soares

367

A pecuária bovina Élvio Carlos Moreira

393

O êxodo rural e a ocupação urbana e industrial Marcelino Santos Morais


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Resíduos Apolo Heringer Lisboa

447

O esgotamento sanitário: a saúde humana e a qualidade ambiental Léo Heller José Cláudio Junqueira Ribeiro

471

Poluição das águas com metais tóxicos: impacto ambiental Maria Adelaide Rabelo Vasconcelos Veado

491

Saúde humana e ambiente Antônio Thomaz Gonzaga da Matta Machado


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511

Produção-consumo e ambiente: uma visão da saúde do trabalhador Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

537

A qualidade da água ao longo do rio Zenilde das Graças Guimarães Viola

555

Inverterbrados aquáticos como bioindicadores Marcos Callisto José Francisco Gonçalves Jr Pablo Moreno

569

Os peixes sob a ótica dos viajantes do passado e do conhecimento atual Carlos Bernardo Mascarenhas Alves Paulo dos Santos Pompeu


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Aves regionais: de Burton aos dias de hoje Marcos Rodrigues Fernando Figueiredo Goulart

605

Mamíferos diversidade e representatividade André Hirsch Bárbara Maria de Andrade Costa

631

A diversidade da vegetação Maria Rita Scotti Muzzi João Renato Stehmann

653

Plantas medicinais regionais Maria das Graças Lins Brandão João Renato Stehmann


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673

A bacia hidrográfica e a construção de uma nova cidadania Letícia Fernandes M. Diniz Luciano José Alvarenga Luciano Luz Badini Martins

689

Os desafios do patrimônio cultural Américo Antunes

711

Novos caminhos para o turismo Bernardo Machado Gontijo

733

O Velhas e o Velho Chico: irmãos para sempre unidos Marco Antônio Tavares Coelho


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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador Geral do Projeto ManuelzĂŁo


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Histórico

Foto de Manoel Nardi, o Manuelzão, com 91 anos. Arquivo Projeto Manuelzão.

Páginas seguintes: foto histórica de Manuelzão em frente à Faculdade de Medicina da UFMG, em 7 de janeiro de 1997. Fotografia: Elier Faioli.

Manuelzão se entusiasmou com a idéia de emprestar seu nome a um projeto ambiental. E o fez por amor à natureza, por gostar de participar de reuniões, fazer amigos, contar histórias e de viajar. Participou de muitas reuniões do Projeto Manuelzão, orgulhoso como membro e patrono. Foi sua segunda festa de amor, do sertão da Samarra, perto da barra do Rio de Janeiro, pequeno afluente do Rio das Velhas, ao campus da Universidade Federal de Minas Gerais, que o reconheceu patrono.Vivera no sertão mineiro, conhecendo o cerrado antes dos cortes para a produção do carvão das usinas siderúrgicas e do desmatamento generalizado para o plantio de eucaliptais, soja e outras monoculturas extensivas. Abominava esse tipo de progresso sem conservação, que aniquila as veredas, a fauna dos Gerais, desfigurando suas características naturais e o modo de vida sertanejo. A linguagem de outro sertanejo, João Guimarães Rosa, é toda impregnada da relação homem natureza e o contador de histórias Manuelzão materializava essa situação e linguagem. Conheceu veredas no grande sertão e a força das águas do São Francisco com seus peixes, e não aceitava a destruição desses ecossistemas. Na bacia do Rio das Velhas viveu em Buenópolis, Corinto, Cordisburgo, mas transitou muito mais, e atribuía à capital de Minas a razão de tanta poluição das águas do mais importante afluente do São Francisco. Percebeu que seu nome seria uma bandeira de uma causa boa e estava feliz quando a morte o levou dia 5 de maio de 1997, com quase 93 anos, pois no dia 6 de julho de 1904 foi quando nasceu no distrito de Saúde, hoje Dom Silvério, Zona da Mata mineira. Único vaqueiro velado no salão de reuniões da Congregação da Faculdade de Medicina da UFMG, instituição que conferiu a Guimarães Rosa o diploma de médico, seu nome para sempre estará associado à revitalização da bacia do Rio das Velhas e do São Francisco. O Projeto Manuelzão contribuiu para preservar seu acervo, transferindo-o para a Biblioteca Central da UFMG que o guardou até a transferência para o Memorial Manuelzão, em Andrequicé, no município de Três Marias. Hoje, o Projeto Manuelzão e o Memorial estão integrados e trabalhando juntos, numa área geográfica que vai de Ouro Preto a Três Marias e Ibiaí, no Rio São Francisco, abaixo de Pirapora e da Barra do Guaicuí, incluindo toda a bacia do Velhas e a região de sua inserção no São Francisco. A partir do ano de 2005, será realizado anualmente o “FestiVelhas”, que incorpora o sertão próximo ao Velhas e ao São Francisco e a literatura de Guimarães Rosa. Literatura, música, teatro, folclore e artesanato estarão congregando pessoas de dezenas de municípios, fortalecendo a identidade cultural de pertencimento à região dessas águas. É nossa contribuição à transformação da mentalidade cultural nessa parte da bacia do São Francisco. Com o FestiVelhas a agenda cultural e artística soma-se à agenda ambiental do nosso Projeto.

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O primeiro texto do Projeto Manuelzão tinha o nome Projeto Rio das Velhas e está preservado em nosso acervo. Datado de novembro de 1990 e divulgado em algumas dezenas de cópias, precedeu em alguns anos a concretização da sua existência. Em 1996, ele foi revisto como Apresentação do Projeto Manuelzão e dizia o seguinte: “Do ponto de vista técnico, a Região Metropolitana de Belo Horizonte, com seus rejeitos industriais e esgotos domésticos, constitui-se na grande fonte de agressões ao Rio das Velhas. A proposta que trazemos é de mobilização da população e lideranças políticas e empresariais, para tornar a questão da revitalização do Rio das Velhas um fato de primeira grandeza no Estado. Este objetivo enquadra-se na concepção mais ampla de meio ambiente e desenvolvimento econômico sustentável com vida saudável. Enumeramos oito pontos importantes na recuperação econômica dos municípios da bacia do Velhas, que viriam através da revitalização: 1) combate à fome, pela restituição da fonte de proteínas com o retorno à produção natural de peixes; 2) pequenas atividades comerciais relacionadas com a pesca, envolvendo a população ribeirinha; 3) fonte abundante de água para consumo humano; 4) fonte para dessedentar animais silvestres e da produção animal; 5) fonte de água para irrigação agrícola; 6) espaço de lazer para as populações destes municípios; 7) hidrovia, pelo menos para o comércio e transporte de pessoas nas pequenas e médias distâncias; 8) turismo. Tudo isto incide na determinação da saúde e desenvolvimento desta região. Hoje, praticamente em toda extensão da bacia, o Rio não é capaz de atender a nenhum destes quesitos. Prevalece a lógica da morte.” De novo, em mais um evento histórico, Manuel Nardi, o Manuelzão, estava ali presente, ao lado de estudantes e professores. Foi no dia 7 de janeiro de 1997, em frente ao prédio da Faculdade de Medicina da UFMG, fato registrado fotograficamente. Assim, foi dado início à mobilização da sociedade, adotando o nome atual. Precedeu a Lei federal 9.433 ⁄ 97, que definiu a gestão das águas no Brasil pelos comitês de bacias hidrográficas, sancionada um dia depois. As experiências geram crises existenciais, dúvidas sobre os conhecimentos herdados e rupturas com compromissos assumidos. Nestas condições surge o desejo e o imaginário da transformação. Foi assim que surgiu a proposta de construção do Projeto Manuelzão. É importante ressaltar que na origem do projeto já existia a experiência política e o conhecimento aprofundado da situação de vida do povo. Não é um projeto meramente acadêmico, mas uma tentativa de colocar a academia a serviço da transformação social e de cada um de nós. Seus fundadores são professores do Internato em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da UFMG (Internato Rural), calejados no trabalho de campo e de articulação entre prefeituras, envolvendo a secretaria de Estado da Saúde, levando assistência médica, mobilização social e conceitos de prevenção às comunidades rurais e aos menores municípios de Minas Gerais, desde janeiro de 1978.

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Em 1997, no momento de sua implantação, questões práticas e conceituais se recolocaram no caminho do Projeto Manuelzão. Era necessário fazer opções gerenciais, financeiras e políticas, e partir para estabelecer contato com o território definido. Surgiram os convênios entre prefeituras e a UFMG, permitindo o envio de estagiários do último ano médico para residirem em toda a bacia do Velhas, supervisionados pelos fundadores do Manuelzão. Conseguimos recurso federal para editar o jornal Manuelzão e adquirir um veículo. Enfim, foi tomando forma o que estava no papel e em nossas cabeças. Situação delicada, pois qualquer descuido poderia sepultar a proposta nascente, que enfrentava resistências diversas.

Marco conceitual e prático

A definição de um território coerente com a natureza da nossa proposta onde pudéssemos desenvolver nova práxis foi um passo fundamental. Tendo em vista a percepção da importância do saneamento como determinante positivo de saúde, com grande impacto no atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), intuímos que uma ação inicial neste sentido teria grande repercussão para a saúde da população, e nos introduziria no campo da saúde coletiva, com a possibilidade de obter resultados palpáveis. Esta temática levou a descobrir a importância da água, evidenciada em cada discussão sobre lixo, esgotos e doenças infecto-contagiosas. Havia um território demarcado pelas águas, a bacia hidrográfica, unindo a população de uma região e não sendo reconhecido pela divisão política administrativa do país. Afirmamos este território como base de planejamento e operacionalização, caindo fora do municipalismo e do medicinismo na estratégia por saúde coletiva. Em 1998, agradecendo uma homenagem do Serviço de Limpeza Urbana, responsável pela gestão dos resíduos sólidos de Belo Horizonte, nos referimos aos lixeiros e aos demais funcionários do saneamento como trabalhadores da saúde e aos funcionários de hospitais como trabalhadores com doentes. Num outro aspecto, apesar de afirmarmos o território de bacia hidrográfica, a inércia trabalhava para manter o território municipal como a grande referência, e nossos primeiros comitês Manuelzão tiveram caráter municipal. Isto os inviabilizava no cipoal das intrigas eleitorais do poder local. Os comitês Manuelzão são uma instância de poder em afirmação, e tem como base a mobilização social em todos os afluentes e sub-afluentes do Rio das Velhas. Participam dele, em caráter paritário, para a gestão descentralizada e democrática das águas no território da bacia hidrográfica, três segmentos distintos: empresários usuários de água, associações civis com interesse nesta gestão e órgãos de governo. Nossos comitês só se desenvolveram plenamente quando assumiram totalmente, e em todas as conseqüências, o território de bacia, e não de bairro, escola, distrito ou município. Como se sabe, os municípios originaram-se do

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sistema das capitanias hereditárias, por obra e graça do rei de Portugal. Do seu desmembramento em sesmarias e grandes fazendas, processo sem preocupação com a racionalidade ambiental, surgiu mais tarde a divisão político-administrativa do país, em função do domínio dos grandes proprietários rurais e dos processos eleitorais montados em função desses interesses. O trabalho de gestão das águas tem racionalidade, planejamento e objetivos de outra natureza. Uma das principais razões da gestão do território pelos três segmentos, na estrutura dos comitês, é que as águas dependem da mentalidade que dirige o processo de uso e ocupação do solo, e da necessidade de negociações entre os diversos atores sobre os limites sociais de seus interesses e atividades, com base no respeito à legitimidade de todos. Nossos conceitos foram abrindo caminho nos embates diários, nas palestras e nas mídias. Saúde, meio ambiente e cidadania foram se afirmando como nosso lema. Desde o início, percebemos que uma dimensão política maior impregnava nossa proposta, sendo nossa concepção de saúde coletiva apenas parte dessa dimensão, a mais diretamente vinculada ao nosso trabalho profissional, que nos exigia respostas imediatas. Com a definição do território e do eixo temático, percebemos a necessidade de definir os indicadores de avaliação da evolução da nossa proposta. A água trouxe mais este presente: o peixe seria o principal indicador da qualidade das águas e do meio ambiente no território da bacia do Rio das Velhas, permitindo avaliar os resultados obtidos em nosso trabalho. Nesta concepção, a biota das águas de uma bacia, simbolizada pelo peixe, refletiria a qualidade do uso e ocupação do solo e a situação dos ecossistemas do conjunto desse território drenado e irrigado por chuvas e rios. A água foi se afirmando como “sangue da Terra” e como eixo metodológico de monitoramento, mobilização e avaliação do nosso trabalho, trazendo o indicador de saúde mais geral: o peixe. Peixe este representando a biodiversidade histórica dos ecossistemas regionais da bacia, qualidade de vida e de meio ambiente. Nas atuais condições históricas da bacia hidrográfica do Rio das Velhas, a qualidade ambiental das atividades agro-silvo-pastoris, industriais, de expansão urbana e das minerações refletida nas águas e avaliada na qualidade de sua fauna ictiológica e bentônica, mostraria também a mentalidade cultural dessa sociedade. Esta hipótese foi fundamental para o direcionamento de nossas atividades e construção do Projeto Manuelzão. Construímos assim um sistema de referência e de avaliação da qualidade de vida da população e da mentalidade cultural do território, com indicadores compatíveis com nova conceituação política e ambiental de saúde coletiva e qualidade de vida, integrando o mundo social, geológico, flora e

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fauna. Levamos às últimas conseqüências nossa vinculação ao pensamento sistêmico e transdisciplinar, criticando com esta práxis modelos acadêmicos centrados em disciplinas e departamentos onde prevalecem estímulos ideológicos e critérios burocráticos de carreira incompatíveis com uma saudável relação com a sociedade e o desenvolvimento científico independente. A região da bacia hidrográfica do Rio das Velhas saltou aos nossos olhos pela simples consulta ao mapa. Ela vai de Ouro Preto até Barra do Guaicuí, no Rio São Francisco e inclui todo o município de Belo Horizonte, onde se situa a sede da UFMG. Permite incorporar a maior parte da região metropolitana às regiões mais distantes do interior, integrando ecossistemas regionais e realidades sociais, como Mata Atlântica e Cerrado, áreas industrializadas e o sertão. Tornaria possível uma participação maior da UFMG em diversos projetos integrados de pesquisa, extensão e ensino, com foco numa região e se comprometendo com resultados e a participação da sociedade, a custo reduzido para a UFMG. O Projeto Manuelzão se esforça para atrair a participação de professores e alunos de todas as unidades, departamentos e disciplinas em torno de um objetivo comum articulando a sociedade e a academia. A opção de ter como objeto uma bacia hidrográfica reside no fato de que ela representa uma unidade de diagnóstico, de planejamento, de organização, de ação e de avaliação de resultados. A bacia permite integrar natureza e história, meio ambiente e relações sociais, possibilitando que um complexo sistema social seja referenciado na biodiversidade dos corpos d’água da bacia. O objetivo operacional pontual comum do Projeto Manuelzão está na volta dos peixes às águas da bacia do Velhas. Ele é fundamental por ser simples, complexo, mobilizador, científico e popular ao mesmo tempo; correlaciona e permite equacionar todo o complexo sistema natural e social de uma bacia hidrográfica. É uma alavanca fundamental da estratégia de ação e da afirmação do pensamento sistêmico. Permite, exige e assegura a possibilidade de êxito de uma ação transdisciplinar, transetorial e interinstitucional num espaço definido. Foi fundamental coroar a escolha do território e do eixo temático com a definição clara do objetivo operacional pontual comum. Comprovamos o acerto desta escolha por meio de diversas pesquisas da ictiofauna da bacia do Velhas, que mostram a sobrevivência de mais de 100 espécies de peixes e apontam o impacto negativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte sobre o Rio das Velhas como o principal responsável pela atual situação. Mas o grande objetivo conceitual geral do Projeto Manuelzão é a transformação da mentalidade cultural da nossa sociedade, de alcance muito mais abrangente. Há aqui uma manifesta e inextricá-

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vel conexão entre história natural e história da sociedade humana, entre ação local e pensamento global. A crise ambiental, que se tornou uma realidade globalmente percebida e começou a mobilizar setores sociais importantes do mundo ocidental mais rico, no último quartel do século XX, colocou em discussão conceitos como desenvolvimento sustentável, pobreza, aquecimento global, qualidade e quantidade da água doce disponível, qualidade do ar e dos alimentos. O planeta Terra começou a ser percebido como frágil diante da sistemática ação humana sem sustentabilidade social, econômica e ambiental, numa escala cada vez mais intensa, por força do aumento do consumo, da população e do crescente poderio tecnológico. E as águas foram se destacando como elemento natural mais sensível, revelador da crise ambiental e eixo de integração do conjunto de fenômenos produzidos pela relação homem natureza. A água assume papel metodológico e transcendente no parto de uma nova mentalidade cultural, eixo de um movimento político por uma ordem social e econômica mundial democrática e sustentável. Assumimos nosso caráter plenamente político e universal, optando por reivindicar os direitos políticos da sociedade prejudicados por estruturas burocráticas. O fim do monopólio partidário das eleições e da governança está se constituindo numa destas reivindicações. A água, como eixo de mobilização, como referência universal de avaliação ambiental, instrumento de monitoramento e de solução da crise ambiental integrando sistemas e pessoas, está contribuindo para o renascimento do pensamento sistêmico na interpretação dos fenômenos, na gestão ambiental das águas e no planejamento econômico. Trata-se de papel metodológico e filosófico. Porém mais importante ainda foi perceber a possibilidade de avaliar a mentalidade cultural da sociedade que vive nessa bacia a partir do monitoramento biológico das águas. Isto significa a possibilidade de integrar conceitos próprios da história natural e conceitos próprios da história social num mesmo modelo interpretativo. Conforme Einstein: “Quanto maior for a simplicidade das suas premissas, maior será a teoria. Quanto maior for o número de tipos de coisas diferentes que relatar, mais extensa será a sua área de aplicação”. A teoria do Projeto Manuelzão se desenvolveu neste sentido. Em 1997, o professor do Instituto de Ciências Exatas da UFMG, Francisco César de Sá Barreto, nos deu importante declaração de apoio. Ele foi reitor da UFMG no período 1998 ⁄ 2002; foi presidente da Sociedade Brasileira de Física e é membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Recentemente, solicitamos que nos enviasse uma avaliação do Projeto Manuelzão, rememorando sua declaração e dele recebemos o seguinte texto: “O raio emitido durante uma tempestade, o contorno da costa brasileira, a folha de samambaia renda-portuguesa, terremotos na Califórnia, o batimento de um coração saudável, o movimento financeiro das ações na bolsa de va-

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lores, são acontecimentos ou fenômenos que possuem características comuns. São sistemas complexos, caóticos, que apresentam propriedades de auto-similaridade e auto-organização e possuem dimensões geométricas fractais. Fenômenos dessa natureza podem ser construídos ou simulados a partir de regras muito simples e, em geral, possuem uma variável de controle, a mais relevante, que é responsável pelo seu comportamento. A projeção das demais variáveis nesta variável controle permite o acompanhamento da evolução do sistema complexo. A volta do peixe ao rio, mote do Projeto Manuelzão, é a expressão-síntese que representa um sistema complexo, a bacia hidrográfica do Rio das Velhas, um sistema integrado e diversificado, cuja variável relevante é o peixe. Se o peixe volta ao rio, tudo mais acontece, acompanhando simultaneamente, ou quase, esse retorno, da mesma forma que muitos fenômenos aconteceram antes fazendo o peixe desaparecer. Toda a região se organiza nos mais diferentes aspectos: sociais, administrativos, políticos, econômicos, ecológicos, educacionais, nas suas tradições folclóricas, etc. É um sistema integrado, apesar de diversificado; um sistema complexo funcionando na sua criticalidade; um sistema cujo comportamento global é definido a partir do peixe de volta ao rio. O Projeto Manuelzão é um exemplo de sucesso a ser seguido, um exemplo de complexidade tão comum na natureza.” O texto do professor Francisco César sobre a proposta do Projeto Manuelzão converge com Einstein: “O físico teórico necessita primeiramente de captar da natureza princípios gerais a partir dos quais vai deduzir. A seguir, e só a seguir, têm importância para ele os fatos particulares da experiência. Não há método definido para buscar os princípios, eles são detectados através dos grandes conjuntos de fatos experimentais e aí explicitados”.

Reflexões sobre o processo de criação do Projeto Manuelzão

Começamos a dizer na Faculdade de Medicina: saúde não é uma questão basicamente médica; é basicamente qualidade de vida. A ideologia da indústria da doença é hegemônica no curso médico e em toda a sociedade; confunde-se saúde com assistência médica; a indústria da doença fatura com este tipo de SUS e se vende como promotora de saúde ao lado dos planos de seguro médico. A volta do peixe ao Rio das Velhas é o indicador de saúde mais importante neste território no momento. O SUS real representa a assistência médica no quadro do apartheid social e mostra os limites da saúde pública brasileira; o SUS constitucional é a utopia da saúde coletiva que não se concretiza por razões de ordem social e política. Na produção animal e na veterinária, saúde animal é que dá lucro, pois significa conquistar mercados de carne, ovos, leite e pele, enquanto na sociedade humana a promoção de saúde não tem viabilidade políti-

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ca e de mercado no sistema internacional. Saúde está associada com qualidade de vida, e qualidade de vida é incompatível com o modelo de desenvolvimento econômico-social sugerido ao Brasil pelos organismos internacionais. Estas declarações causaram estranhamento sobretudo por estarem acompanhadas de uma crítica à forma de funcionamento do SUS, cujo limite prático coincide com as limitações conceituais e políticas da Saúde Pública brasileira. Cresceu o estranhamento quando afirmamos que, nas condições históricas do Rio das Velhas, os peixes, simbolizando sua biota, poderiam ser considerados importantes indicadores ambientais e de saúde coletiva nessa bacia hidrográfica. No ensino médico, a água é abordada ora como substância química, ora como produto distribuído por empresas de saneamento, ora como diluente dos sais que compõem o meio interno dos seres vivos. Escapando do aprisionamento imposto pelo pensamento disciplinar ou setorial, fizemos a descoberta de outras dimensões que a água poderia assumir, a partir de suas características naturais. Isto foi fundamental para equacionarmos a nossa problemática conceitual visando a um projeto de transformação social, assumindo a água papel de referencial metodológico e eixo de mobilização e de monitoramento. A água em nossa leitura passou também a refletir a nossa mentalidade cultural; elemento sensível, ela está assumindo papel transcendental na superação da crise ambiental e na transformação cultural ensejada por este processo. Em nossa cultura, a água dos rios foi convertida em lixeira e esgoto, ironicamente como solução “sanitária”. A água está refletindo o desajuste da nossa cultura e das relações sociais que construímos. Também o lixo não faz parte do cardápio do ensino médico no Brasil, mesmo em disciplinas tão afins como bioquímica, parasitologia, saúde coletiva, medicina preventiva, clínica geral de adultos e de crianças. Estranho, mas compreensível. O fundamento da universidade está nas disciplinas, nos departamentos, no ensino compartimentado. Certas conexões importantes ficam esquecidas, ou sem efeito prático, diante da ausência de enunciados conceituais claros do objeto e do objetivo da formação médica, ou mesmo das limitações destes enunciados. Estamos procurando preencher esta lacuna e isto é uma das nossas contribuições. Saneamento é visto como coisa de engenheiro ou de lixeiro, embora estes não se considerem trabalhadores da saúde. Já os médicos, que são considerados profissionais da saúde, pois no âmbito do ministério da Saúde, trabalham as doenças, como setor assistencial. Tal quadro é a explicitação institucional da nossa mentalidade fragmentada. Saúde tem caráter sistêmico, seria função de todo um Governo da Saúde, do seu planejamento econômico, junto com a

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sociedade; não se enquadra num setor, seja ministerial, empresarial ou técnico. Nos seguros de assistência médica, o termo plano de saúde é propaganda enganosa. A criação do Projeto Manuelzão nos autoriza a fazer algumas reflexões em teoria do conhecimento, quando se trata de romper com uma visão anterior e fazer autocrítica. Ele nasceu da necessidade de equacionar os elementos de uma crise prática e conceitual que nos tornava insatisfeitos com os parâmetros da nossa rotina intelectual, política e profissional, de cidadãos e professores de Medicina, e do desejo de criar algo novo no campo do conhecimento. Para romper com a velha prática, passamos por um período com dúvidas e incompreensões, embora a alegria da descoberta nos trouxesse grande disposição para transpor barreiras. Este processo de mudança de referenciais nos faz hoje pensar sobre os mecanismos de funcionamento do nosso cérebro e das características da nossa prática social, que nos prendem a coisas passadas. É muito difícil romper com nossas próprias idéias antigas, ficando a busca da verdade subordinada a esquemas ultrapassados de pensamento e ação. Aprendemos que é necessário agir periodicamente “descarregando” do nosso cérebro o excedente de conhecimento que nele está armazenado e que torna lento e dependente seu funcionamento O essencial não o abandona, é importante ressaltar, mas o “descarrego” permite dar asas à imaginação, tornando possível novas descobertas, a abertura de campos ainda obscuros e nossa própria contribuição ao conhecimento novo. Vimos que há também outros jugos metodológicos a sacudir, pois o conhecimento nasce do interesse em resolver problemas inerentes às atividades humanas, e estas questões estão socialmente determinadas ou condicionadas. Daí a relevância dos cuidados metodológicos e do desenvolvimento da consciência autocrítica dos nossos condicionamentos históricos e culturais. Significa a necessidade de adquirir consciência sobre o processo de formação da nossa própria consciência, contextualizando-a. Com a criação da memória artificial e do tratamento de dados a partir dos programas de computadores, expandimos as possibilidades do nosso cérebro em direção ao infinito, no armazenamento e rápido tratamento de dados. Não precisamos nem podemos ficar competindo com o computador, ocupando nosso cérebro com funções menos importantes de mero armazém de conhecimentos e de máquina de processar dados. Grandes pensadores como Ticho Brahe, Copérnico, Newton, Einstein foram obrigados a memorizar e a fazer operações e tabelas que hoje um computador está preparado para fazer melhor que eles, e num tempo infinitamente mais curto. Mas que não podem fazer as perguntas que fizeram, tirar as conclusões ou formular os princípios que foram capazes.

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Até agora, somente o cérebro humano tem sido capaz de estabelecer, de forma livre e potencialmente ilimitada, hipóteses e conexões imaginárias, intuindo e deduzindo a partir da observação e da experiência. Nosso campo privilegiado é o da livre imaginação e formulação de hipóteses, do acúmulo cultural e da sabedoria. Conforme Albert Einstein declarou em entrevista ao jornal The Saturday Evening Post, na edição de 26 de outubro de 1929, a imaginação é superior ao conhecimento. Entre os fatores que nos moveram na fundação do Projeto Manuelzão estava uma exigência ética de declaração política da UFMG sobre a sua realidade particular e a do país. Diante das dificuldades salariais e de verbas as pesquisas e os cursos de extensão voltaram-se para o atendimento disperso de demandas de consultoria, prestação de serviços ou se adequando a editais de pesquisa, num esforço de captação de recursos para a Universidade. Isto em detrimento da excelência do conhecimento e da liberdade de pensamento acadêmico que fosse mais amplamente comprometido com a emancipação social e política do país. Esta situação fragmenta o pensamento, a identidade e o papel da Universidade, desorientando o conteúdo do ensino, da extensão e da pesquisa. Esta situação é agravada pela concepção disciplinar e departamental da Universidade que cria obstáculos metodológicos para a abordagem sistêmica das questões sócio-ambientais. Nós nos propusemos a superar esta tendência, afirmando os princípios da universidade pública gratuita, de excelência e comprometida com o interesse público. O paradigma antrópico de domínio da natureza ignorou duas questões: que a natureza associa o ser humano ao restante da fauna e flora; e que as atuais relações sociais excluem a maioria dos seres humanos das conquistas sociais e técnico-científicas, cassando suas cidadanias e o direito à saúde. Nestas relações, somente o dinheiro confere cidadania. Este paradigma entrou em confronto agudo com o ambiente e a sociedade, ameaçando a vida da atual e das futuras gerações. As doenças são sinais e sintomas de uma crise paradigmática e o estoque de saúde na sociedade é politicamente promovido. O governo do Canadá, na década de 1980, interessado em saber onde investir os recursos públicos para a obtenção de melhores níveis de saúde para a população, motivado pelo movimento denominado Promoção da Saúde, elaborou pesquisa para conhecer quais eram os principais determinantes que causariam impacto sobre o perfil das doenças. O resultado demonstrou que o meio ambiente tinha uma relação mediata ou imediata com 60% dos agravos à saúde, a alimentação representava 25% e a assistência médica tinha um impacto de somente 5%. Desde então, vem crescendo em escala mundial, o conceito de que a saúde decorre muito mais da qualidade de vida que das intervenções médicas, sendo o próprio avanço do saber médico e da Biologia, que avaliza esta conclusão, como a questão da manifestação das possibilidades genéticas.

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A crítica ao SUS

Um dos impulsos para criar o Projeto Manuelzão foi a percepção crítica da relação do SUS com a questão da saúde. Sentíamos a necessidade de mudar o SUS para viabilizá-lo como sistema decente. Sua origem tem um viés, pois foi viabilizado não apenas pela força do movimento social, mas pelo proveito que deste fizeram os lobbies da “indústria da doença”. Tal indústria é a única do sistema capitalista a ter 100% do mercado garantido por lei do Estado brasileiro ao garantir a assistência universal. Esta hegemonia ideológica da “indústria da doença” está perpetuando um modelo social excludente incompatível com a saúde coletiva. Caso o objetivo fosse realmente saúde, e não a assistência médica, obteríamos melhores resultados com o direito universal à alimentação, à moradia, à escola pública, mesmo em detrimento da assistência médica, cuja propalada universalidade e eqüidade pelo SUS não passa de delírio de gestores não-usuários do sistema. Isto só foi possível pela natureza ambígua das teorias ou ideologias subjacentes à proposta da Reforma Sanitária, que, na prática, considera saúde como uma “questão médica” com base em princípios como da municipalização da gestão e da universalidade assistencial, como modernização do Estado, mas com conteúdo conservador. A clara contradição entre a declaração da proposta constitucional do SUS (SUS legal) e o sistema erigido na prática na verdade atesta que a ambigüidade da gestão está associada à fraqueza teórica da Reforma Sanitária que em nenhum momento fez a distinção radical e necessária entre saúde pública e saúde coletiva. Isto pode ser conferido no Título Oitavo da Constituição Federal, sobretudo nos artigos 196 e 200, na Lei federal 8080 ⁄ 90 e nas Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Saúde de 1996 (NOB–96), capítulo 3. Fica clara a dissociação entre a excelência da declaração constitucional e o sistema que está sendo erigido. Já se pode falar em interesses corporativos da burocracia do SUS, contrários aos interesses da sociedade. Sua proposta é complemento do sistema financeiro internacional e da divisão internacional do trabalho, que vem há décadas ou séculos estrangulando as economias mais frágeis através de regras injustas de comércio internacional, de políticas tecnológicas e de política financeira. O SUS trata saúde como objetivo setorial de um ministério ou de uma secretaria, mostrando o caráter limitado da própria racionalização administrativa gerada pela reforma. A ausência do pensamento sistêmico na abordagem deste processo social impede-o de incorporar o caráter amplo da questão saúde. A questão assistencial, esta sim, é setorial. A questão da crise ambiental ainda não foi internalizada pelo SUS, haja vista o que está acontecendo com o Programa de Saúde da Família, reproduzindo a prática do tradicional atendimento no posto médico. O SUS não pode continuar sendo a medicina do

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apartheid social brasileiro, nem manter a incoerência de ser gerido por pessoas não-usuárias, que não confiando no sistema que dirigem contratam para suas famílias planos de assistência médica privados. O que não é bom para eles é receitado para a população. O pensamento hegemônico neste setor do poder é o mesmo desde os últimos governos militares até hoje, e sendo a racionalidade de Estado, sobrevive a qualquer governo de “direita” e de “esquerda”. Daí a importância da discussão nos marcos da saúde coletiva, introduzida pela abrangência da questão ambiental e da promoção da saúde. Em vez de ministério da saúde e governo da doença, ministério da assistência e governo da saúde. E que a solidariedade dirija a construção da nossa sociedade em escala mundial.

Meta 2010 — Navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas na Região Metropolitana de Belo Horizonte

Concretamente, estamos empenhados na Meta 2010, que é um compromisso celebrado entre atores governamentais, da sociedade civil e empresários, e que tem como objetivo navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas, em sua passagem pela Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), até o ano de 2010. Para tanto, será necessário enquadrar a qualidade desse trecho do rio na Classe II, padrão do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A intervenção, além da RMBH, inclui a bacia do Rio Cipó, por motivos ligados à recuperação dos ecossistemas aquáticos próximos a Belo Horizonte. A meta exige que interesses e sonhos dos vários segmentos socioeconômicos da bacia hidrográfica do Rio das Velhas sejam articulados, com a determinação estratégica de, agindo em seu pior trecho, beneficiar todo o rio. Trata-se de meta ousada, mas tecnicamente viável, que marcará a História de Minas Gerais. Para sua realização, será importante o incentivo à mobilização de toda a comunidade da bacia, o estabelecimento de parcerias público-privadas, o fortalecimento do planejamento estratégico considerando-se, sempre, como espaço geográfico de ação a bacia hidrográfica, que ultrapassa o território dos municípios. A lógica exclusivamente municipalista não permite resolver as questões ambientais da bacia. A Meta 2010 significa salvar o conjunto da bacia do Rio das Velhas, significa não pulverizar recursos públicos e privados.

Desenho de Júnior Jorge Ernesto. Escola Estadual Dom Cirilo de Paula Freitas, Raposos.

A Meta 2010, que expressa a crença em novos tempos, é fruto do movimento social, do Projeto Manuelzão, do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, do Governo de Minas Gerais, prefeituras, empresários, fazendeiros etc. Este objetivo comum envolve uma série complexa de ações transdisciplinares, transinstitucionais e transetoriais.

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Bibliografia

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 776 p. CALAPRICE, Alice. Assim falou Einstein. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. LISBOA, Apolo Heringer. Projeto Rio das Velhas. Belo Horizonte: Projeto Manuelzão; UFMG, 1990. 12 f. Projeto apresentado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais. Manuscrito. POLIGNANO, Marcus Vinicius et al. Saúde e ambiente: Bacia do Rio das Velhas. Belo Horizonte: Projeto Manuelzão; UFMG, 2003. Manuscrito.

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Abstract

The Manuelzão Project’s imaginary The common punctual operational objective of The Manuelzão Project is in the reinstatement of fish into the waters of The Velhas River. Following this path, we ensure better life quality, promote collective health and citizenship in our work region, with a new type of strategic action. The defined operational objective was fundamental because of its simplicity, but, at the same time, because of its complex, mobilizing, scientific and popular facets; correlating and permitting the equation of the whole natural and social system existing in this water basin. It is the main leverage of our strategic action and the affirmation of systemic thought. This objective permits, demands and ensures the possibility of succeeding in an action that involves various disciplines, sectors and institutions in a defined space. Completing the choice of territory and thematic axis with a clear definition of our objective was fundamental. We could confirm that these choices were correctly made through researches that pointed out the negative impact of Belo Horizonte’s metropolitan area on The Velhas River as being the biggest responsible for the present situation. But The Manuelzão Project’s general conceptual objective is in the transformation of our society’s cultural mentality, of a much broader reach. Here we find a manifested and inextricable connection between natural history and the history of human society, between local action and thinking on a global scale. Concretely, we are pledged to the 2010 Goal, which is a commitment celebrated amongst governmental actors, civil society and businessmen. Its main objective is to make it possible to navigate, fish and swim in The Velhas River along its passage through Belo Horizonte’s metropolitan region by the year 2010. Within this goal, the preservation of the Cipó River Basin is also contemplated, the affluent which is capable of promoting the revitalization of The Velhas River with its crystal water and rich aquatic ecosystem.


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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador do Projeto ManuelzĂŁo


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2 As ações do Projeto Manuelzão Marcus Vinicius Polignano 1

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Introdução

Ao longo de sete anos, o Projeto Manuelzão cresceu e fez crescer o sentimento de revitalização da bacia do Rio das Velhas, buscando rever a atual relação homem ⁄ natureza. O Projeto inspirou-se nas histórias vividas e relatadas por Manuelzão e seus companheiros nas suas andanças pelas Gerais, demonstrando as relações de convivência, de harmonia e de comprometimento do homem com a natureza. Manuelzão, portanto, não é somente um nome, mas um exemplo e um símbolo que vem inspirando corações e mentes na construção de um grande projeto. Discorrer sobre todas as ações desenvolvidas pelo Projeto Manuelzão ao longo da sua existência é tarefa árdua, visto que, do pequeno grupo de docentes que o idealizou, o projeto se expandiu e criou vida própria, passando a fazer parte do imaginário de um número incalculável de pessoas que habitam a bacia do Rio das Velhas. Isso fez com que as ações adquirissem uma dinâmica própria, com tal velocidade e em tal quantidade, que se tornou difícil o registro de todas elas. As ações desenvolvidas sempre foram estruturadas e alicerçadas no arcabouço teórico defendido pelo Projeto, sofrendo, evidentemente, a forte influência do pensamento e da dinâmica pedagógica da universidade, em função do seu processo de “gestação”. As atividades do Projeto Manuelzão podem ser agrupadas e sistematizadas no seguinte conjunto temático: produção do conhecimento, pesquisas e diagnósticos, desenvolvimento de subprojetos, educação ambiental, mobilização social e construção de políticas públicas saudáveis.

Produção do conhecimento

É importante destacar que a ideologia defendida pelo Projeto Manuelzão constitui-se em si mesma numa importante contribuição pedagógica para o entendimento e o avanço das ações referentes à saúde, ao ambiente e à cidadania na bacia hidrográfica do Rio das Velhas. O Projeto nasceu no seio da academia — UFMG, impregnada pelo processo de reflexão intelectual, próprio da universidade, porém profundamente sintonizado com o sentimento de mundo relativo às questões do meio ambiente, qualidade de vida e saúde. Essa formulação teórica foi fundamental para definir a abrangência do campo de atuação do Projeto Manuelzão. O eixo temático

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saúde, ambiente e cidadania permitiu aglutinar instituições governamentais, empresas privadas e setores organizados da população em torno da questão ambiental. O Projeto adotou a bacia hidrográfica como a idéia de unidade de planejamento. A solução de inúmeros problemas ambientais está no cuidado, na manutenção das bacias hidrográficas. A bacia contém fauna, flora, territórios geológicos diversos, populações humanas, a calha do rio e seus afluentes. A legislação brasileira incorpora a idéia de bacia hidrográfica como unidade de planejamento desde 1997 (Lei 9433 ⁄ 97), definindo bacias internacionais, nacionais e estaduais. Propõe, também, a criação de Comitês de Bacia, compostos de representantes da União, Estados, Municípios, usuários da água e sociedade civil. O Projeto concentrou-se num espaço geopolítico coerente (bacia do Rio das Velhas), numa distância de até 500 quilômetros de Belo Horizonte, sede da UFMG e capital do estado, incluindo-a necessariamente, sendo ela a maior cidade e uma das principais fontes de poluição das águas da bacia do Rio São Francisco. A definição desse território permitiu o desenvolvimento de um trabalho com um eixo temático único para acadêmicos, docentes, instituições públicas e a população em geral. A este agregou-se um objetivo operacional pontual comum — a volta do peixe ao Rio das Velhas — assegurando ao trabalho uma dinâmica e ao mesmo tempo um caráter estrutural multidisciplinar e transdisciplinar, permitindo que toda a sociedade, de forma simples, se engajasse dentro da metodologia e da estratégia didático-pedagógica do trabalho, ampliando as salas de aula ao povo, aos estudantes, políticos, professores, pesquisadores e técnicos, sem comprometer o nível de cientificidade do trabalho de pesquisa e a necessária complexidade de ações. Para o Projeto Manuelzão, a recuperação da calha do Rio das Velhas está diretamente relacionada à recuperação dos seus afluentes (subbacias) com as suas nascentes, córregos e riachos. Na região do Velhas existem diferenciações importantes quanto à qualidade das águas das sub-bacias e a sua contribuição para a poluição do Rio das Velhas, o que é importante na definição das áreas prioritárias para o desenvolvimento das ações. A Região Metropolitana de Belo Horizonte (sub-bacia do Onça e Arrudas) constitui-se na principal fonte de poluição do Rio das Velhas. A sub-bacia Cipó-Paraúna, por sua vez, constitui-se numa das principais fontes de depuração das águas do Rio das Velhas e um reservatório genético da ictiofauna da região. Todo esse conjunto de idéias possibilitou a consolidação da imagem pública do Projeto como INSTITUINTE muito mais do que como INSTITUIÇÃO, o que permitiu a adesão de diferentes atores sociais na elaboração de propostas e no desenvolvimento de ações.

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No conjunto da sociedade, o crescimento do Projeto se deu pela força ética, e não pela estética. Isso foi fundamental para conquistar o apoio e o respeito dos mais variados atores sociais, desde o pescador da margem do rio ao morador da cidade, do professor ao trabalhador rural, do operário ao empresário, do cidadão ao prefeito.

Pesquisas e diagnósticos

Desde o início, o Projeto Manuelzão adotou os princípios da metodologia científica e procurou realizar pesquisas e diagnósticos sobre saúde, ambiente e cidadania na bacia do Rio das Velhas. Não há como intervir sobre uma realidade sem conhecê-la em toda a sua profundidade e complexidade. A discussão da questão ambiental envolve complexa e intrincada rede de conhecimentos, o que coloca o ambiente no campo da transdiciplinaridade e da intersetorialidade. Dessa forma, o Projeto procurou agregar conhecimentos de diferentes áreas da ciência como a Geografia, Biologia, Medicina, Geologia, Sociologia, dentre outras. No campo da pesquisa, o Projeto Manuelzão recuperou as contribuições históricas e científicas mais importantes sobre a bacia do Rio das Velhas como: - expedição realizada pelo inglês Richard Francis Burton (1867) e descrita no livro Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico; - o precioso levantamento da ictiofauna feito pelo dinamarquês Fr. Lütken, em 1875; - o relatório do Cetec (1983), baseado numa rede de monitoramento de 42 estações distribuídas ao longo da bacia do Rio das Velhas, demonstrando a deterioração importante da qualidade das águas do Rio das Velhas, provocada principalmente pelos ribeirões Água Suja, Sabará, Arrudas e Onça; - os relatórios da Feam (1996 ⁄ 97 e 1998 ⁄ 99) sobre os dados de monitoramento do IQA (índice de qualidade das águas) da bacia do Rio das Velhas . Baseado nestes documentos, o Projeto Manuelzão procurou investir em outros projetos de pesquisa a fim de atualizar o conhecimento sobre a realidade da bacia do Rio das Velhas dentro de uma abordagem transdisciplinar. No período 1999 ⁄ 2000, o Projeto Manuelzão realizou uma importante pesquisa intitulada Integração Homem ⁄ Natureza e Seus Efeitos na Saúde (UFMG, 2000), que reuniu profissionais e professores da UFMG de diferentes áreas do conhecimento — médicos, biólogos, farmacêuticos, geólogos, químicos — com o objetivo de avaliar diversos aspectos referentes à degradação ambiental e seus impactos sobre a qualidade das águas e da vida na bacia do Rio das Velhas, abordando os seguintes temas:

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- inventário da fauna de peixes no curso médio do Rio das Velhas; - diagnóstico saúde-ambiente na bacia do Rio das Velhas; - estudos geológicos e ambientais como critérios para um desenvolvimento ordenado do turismo na sub-bacia do Riachinho; - as plantas medicinais como instrumento para a saúde e o desenvolvimento sustentável; - avaliação do grau de impactação por mercúrio na bacia do Rio das Velhas; - análise de pesticidas em amostras de água da bacia do Rio das Velhas. Os resultados obtidos permitiram identificar os principais impactos da degradação ambiental e os efeitos na qualidade de vida e ambiental da bacia do Rio das Velhas, a saber: Ictiofauna – No médio Rio das Velhas, principalmente nas proximidades da RMBH, as alterações do meio ambiente modificaram os padrões das comunidades ictiofaunísticas em termos de riqueza, diversidade e abundância, principalmente em função do despejo de esgotos domésticos e industriais que provocaram a diminuição do oxigênio dissolvido na água. As ocorrências de fortes chuvas nas cabeceiras do rio e na própria região metropolitana agravam o problema, uma vez que há o revolvimento dos sedimentos, ricos em matéria orgânica, depositados no leito e no fundo do rio, e uma “lavagem” dos mais variados tipos de poluentes acumulados na estação seca, em toda bacia de drenagem, seja na área urbana ou rural, o que provoca episódios de mortandade de peixes, demonstrando que esse não é um fenômeno ocasional mas sistêmico. Por outro lado, foi possível constatar grande riqueza de peixes nas áreas de maior preservação, como no Rio Cipó, o que torna possível o repovoamento de toda a bacia caso a qualidade das águas do Rio das Velhas seja melhorada . Ocupação do solo – A ocupação urbana tem sido um dos principais responsáveis pelo processo de degradação que a bacia vem sofrendo. Tendo como exemplo o estudo realizado na bacia do Rio Cipó, região da Lapinha da Serra, município de Santana do Riacho, verificou-se que uma ocupação inadequada do solo, no caso uma desordenada expansão do turismo, tenderá a comprometer a qualidade dos recursos hídricos da sub-bacia, além da agravar as precárias condições atuais de saneamento. A preservação dessa área depende de prévio planejamento de uso e ocupação, respeitando-se as vulnerabilidades do meio físico. As diretrizes para a ocupação dessas áreas devem ser repassadas à população local e aos turistas, para que haja a compreensão do processo de desenvolvimento sustentável a ser implantado e, somente assim, evitar futuras degradações e deterioração da qualidade de vida.

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Plantas medicinais – Apesar da existência de grande atividade reflorestadora e agropastoril ao longo dos trechos médio e baixo do Rio das Velhas, verificou-se grande riqueza em plantas medicinais importantes nessas áreas. Essas plantas são de amplo conhecimento da população local, que as utiliza para fins terapêuticos. Algumas delas, pelo valor e interesse comercial, vêm sendo exploradas de forma inadequada, o que compromete o manejo sustentável. Agrotóxicos e mercúrio – A metodologia desenvolvida para detecção de contaminação da água por agrotóxicos demonstrou eficiência e apontou leve contaminação nas águas analisadas em localidades do médio Rio das Velhas. A água também mostrou possuir maior mobilidade do contaminante mercúrio utilizado nos garimpos, sendo este elemento encontrado em índices próximos ao limite permitido pela legislação estrangeira em três das dezoito amostras de peixes analisadas. Saúde e ambiente – constatou-se que houve melhora no abastecimento da água, de esgotos, e na coleta de lixo com repercussão importante nos indicadores tradicionais de saúde da população. No entanto, o destino final dos esgotos e lixo tem sido inadequado, comprometendo o ambiente e, em especial, os cursos d’água. Foi possível constatar que parcelas significativas da população vivem em ambientes não favoráveis à saúde. Em 2001, o Projeto Manuelzão promoveu um debate sobre a renaturalização de córregos com a participação de Walter Binder, coordenador da divisão de Engenharia Estadual de Recursos Hídricos de Munique-Baviera (Alemanha), manifestando, nessa oportunidade, o seu posicionamento contra a canalização de córregos. Em 2002, o Projeto publicou Rios e Córregos — Preservar, Conservar Renaturalizar, em parceria com o Planágua ⁄ GTZ, contribuindo desta forma para disseminar o debate sobre o tema. No mesmo ano, numa parceria entre Projeto Manuelzão ⁄ Copasa foi editado o livro Rio das Velhas: Memórias e Desafios, escrito pelo jornalista Marco Antônio Tavares Coelho, relatando a história da ocupação humana e da degradação ocorrida na bacia do Rio das Velhas nos séculos XIX e XX. Ainda em 2002, foi elaborado um novo Diagnóstico de Saúde e Ambiente na Bacia do Rio das Velhas que constatou mudanças significativas nos indicadores de saúde, saneamento ambiental, mobilização social e gestão da bacia. No entanto, as mudanças ocorridas não se mostraram ainda suficientes para provocar as melhorias desejadas na qualidade das águas do rio.

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Desenvolvimento de subprojetos

A partir das pesquisas e diagnósticos realizados, foi possível dimensionar a complexidade dos problemas envolvidos no processo de degradação ambiental da bacia e propor a concepção de subprojetos direcionados para cada um dos fatores impactantes.

PRINCIPAIS PROBLEMAS EXISTENTES NA BACIA . . .

. . . E ESTRATÉGIAS DE TRANSFORMAÇÃO

Insuficiência da rede e não tratamento dos esgotos e efluentes

Manuelzão cuida do esgoto

Coleta e destinação final do lixo inadequado

Manuelzão cuida do lixo

Mortandade de peixes e má qualidade da água

Manuelzão SOS Rio das Velhas

Desmatamento e falta de preservação do ecossistema natural

Manuelzão cuida da mata

Turismo predatório

Manuelzão faz ecoturismo turismo rural

Degradação dos manaciais e cursos d’água

Manuelzão bebe água limpa

Doenças relacionadas a fatores ambientais e de saneamento básico

Manuelzão no Programa de Saúde Familiar

Inadequação e falta de integração das pesquisas na bacia

Manuelzão faz ciências

Educação ambiental insuficiente e não direcionada aos problemas na bacia

Manuelzão vai à escola Manuelzão faz arte

Práticas inadequadas na produção agrícola, animal e agroindustrial

Manuelzão cuida da fazenda

Desconhecimento e não aplicação da legislação ambiental

Manuelzão legal

Desinformação e desmobilização

Manuelzão dá o recado

Produção industrial e mineral degradadora

Manuelzão na indústria

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Através da mobilização social, das ações desenvolvidas pelos comitês Manuelzão e da construção de parcerias, os subprojetos avançaram e obtiveram resultados e conquistas expressivas, conforme descrito no Quadro 1.

Quadro 1. Subprojetos do Manuelzão: ações e resultados SUBPROJETO

AÇÕES E RESULTADOS

Manuelzão cuida do esgoto

Foram realizadas discussões técnicas, elaborados projetos e ações de mobilização social com o objetivo de apresentar soluções para o destino dos esgotos dos municípios situados na bacia do Rio das Velhas, contando com a parceria da Copasa e das prefeituras. Consideramos como exemplos desse esforço coletivo: • implantação da ETE Corinto; • implantação da ETE Arrudas; • construção da ETE Onça; • implantação da ETE Lagoa Santa; • elaboração de projeto – ETE Rio Acima • projetos de recuperação do Córrego Santa Terezinha (Alto Vera Cruz), Córrego Tamboril (Jardim Felicidade) e de outros córregos de Belo Horizonte incluídos no DRENURBS. • recuperação da ETE de Funilândia.

Manuelzão cuida do lixo

• Discussão técnica e mobilização social para a melhoria da coleta e do destino final do lixo nos municípios da bacia; • Realização, em parceria com a Feam, de um diagnóstico sobre a situação do lixo em todas as cidades da bacia do Rio das Velhas com discussão técnica e elaboração de projetos para o adequado destino final do lixo; • Implantação de coleta seletiva em várias cidades da bacia; • Elaboração de um documento técnico do Projeto Manuelzão sobre a gestão de resíduos sólidos.

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SUBPROJETO

AÇÕES E RESULTADOS

Manuelzão vai à escola

Em parceria com a secretaria de Estado da Educação estão sendo mobilizadas 1.456 escolas públicas – municipais e estaduais – situadas na bacia, com o objetivo de desenvolver educação ambiental direcionada para os problemas existentes na região.

Manuelzão faz ciências

Foram desenvolvidas e concluídas as seguintes pesquisas: • inventário da fauna de peixes do curso médio do Rio das Velhas e os impactos dos usos da bacia sobre a diversidade ictiofaunística; • diagnóstico saúde-ambiente na bacia do Rio das Velhas; • estudos geológicos e ambientais como critérios para um desenvolvimento ordenado da expansão do turismo e da ocupação do meio físico na sub-bacia do Riachinho – Serra do Cipó, município de Santana do Riacho; • estudos sobre as plantas medicinais existentes na flora da bacia do Rio das Velhas; • análise de pesticidas organofosforados e organoclorados em amostras de água da bacia do Rio das Velhas; • avaliação do grau de impactação por mercúrio na bacia do Rio das Velhas através de estudo de especiação do metal em solos e sedimentos.

Manuelzão cuida da saúde

• ações assistenciais e de promoção da saúde visando à criação de ambientes saudáveis; • integração das ações de saúde/ambiente dentro do Programa de Saúde Família (PSF);

Manuelzão: SOS Rio das Velhas

Em parceria com o IEF, a Polícia Militar e os núcleos organizados da população, ONGs; • monitoramento da mortandade de peixes. • projeto amigos do rio (núcleos ribeirinhos).

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SUBPROJETO

AÇÕES E RESULTADOS

Manuelzão dá o recado

• Elaboração e publicação de 20 edições do Jornal Manuelzão com 100.000 exemplares/edição • videoteca • produçao e divulgação do site: www.manuelzao.ufmg.br

Manuelzão o legal

• convênio com a promotoria pública para a defesa dos interesses ambientais da bacia

Educação ambiental

A educação ambiental é uma das mais importantes ações do Projeto Manuelzão, uma vez que o processo de degradação das águas é fruto da mentalidade civilizatória, expressa no comportamento e nas atitudes da sociedade. Ao longo de 3 anos, o Projeto Manuelzão ⁄ UFMG vem consolidando uma parceria com a Seemg e as secretarias municipais de Educação com o objetivo de desenvolver a educação ambiental nas escolas, direcionada para a realidade da bacia do Rio das Velhas, dentro dos princípios definidos pela Lei 9.795 e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). O “Manuelzão Vai à Escola” aborda o ambiente como tema transversal dentro de uma visão sistêmica, capaz de instrumentalizar as pessoas para discutir e intervir nas questões ambientais. A elaboração da transversalidade implica na discussão de temas como a relação homem ⁄ natureza, os valores humanísticos, o descaso para com o ambiente natural, a poluição das águas e do solo, o problema do lixo e outros. Estes temas não dizem respeito somente ao professor de Ciência ou Geografia, mas também ao de História, ao de Português, de Matemática e de outras disciplinas. Logo, pode-se afirmar que a educação ambiental é multidisciplinar e requer o envolvimento de profissionais de diferentes áreas do conhecimento. Trabalhar a educação ambiental só é possível quando se resgata o indivíduo na sua valoração humana, revelando a ele “a estreita e indissolúvel ligação entre os seres vivos e as fontes de vida”, como afirma o professor Hugo Werneck. Um trabalho pedagógico interdisciplinar é capaz de trazer, à luz da razão, o entendimento e a possibilidade entre o progresso da técnica e da ciência e a volta dos valores essenciais como a solidariedade, a parceria e a partilha, o bem

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comum, a delicadeza e o bom-senso, tudo aquilo capaz de levar o indivíduo a se formar cidadão responsável e participativo. E a despeito do seu papel de Homem no modelo econômico, político e social, fazer a ponte com a sacralidade da vida, resultando numa ação maior de transversalidade. O salto transdisciplinar capacita o indivíduo a interpretar o mundo e agir sobre ele a partir de ações conscientes e qualificadas, reconhecendo a interdependência fundamental de todos os fenômenos e que somos todos parte dos processos cíclicos da natureza e deles dependentes. O conceito de bacia permite trabalhar o conhecimento de uma forma sistêmica e holística, em que a cada um cabe papel essencial para manter o sistema (bacia hidrográfica) vivo e sadio. Um sistema doente compromete a vida de todos que dele dependem. O conceito de bacia permite, ainda, romper com a fragmentação do conhecimento, a dicotomia entre urbano ⁄ rural, entre degradação ⁄ preservação, uma vez que são faces de uma mesma moeda, partes integrantes de uma mesma bacia. Torna possível, também, a inserção da escola no ambiente do seu entorno e no da bacia. O desenvolvimento de um projeto interdisciplinar numa escola localizada em um determinado ponto da bacia terá efeito positivo para a bacia como um todo. O Projeto Manuelzão almeja a mudança de comportamento e hábitos através de educação ambiental comprometida com a formação da cidadania, procurando incorporar o sentimento de pertencimento, ou seja, de que fazemos parte do ambiente seja ele construído ou natural, que dele dependemos para a nossa existência, e que somos os agentes do processo da sua transformação e da sua preservação. O acúmulo de experiências e conhecimentos adquiridos ao longo dos anos permitiu fixar os fundamentos essenciais para construção de prática pedagógica transversal de educação ambiental. No quadro 2 estão explicitadas as principais ações desenvolvidas pelo Projeto em parceria com a secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais e secretarias municipais.

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Quadro 2 – Avaliação das ações de educação ambiental do Projeto Manuelzão AÇÕES

DESCRIÇÃO

AVALIAÇÃO

Produção e distribuição do jornal Manuelzão

Foi criada uma seção do Manuelzão Vai à Escola dentro do Jornal do Manuelzão (edição bimestral), com 17.000 exemplares distribuídos/edição para as escolas da rede pública.

O jornal tornou-se importante meio de divulgação das ações do Projeto e material didático para a educação ambiental. A distribuição tem sido feita em parceria com as SREs, consolidando o processo de integração com a SEE/MG.

Publicação de material didático

Além da criação da seção Manuelzão vai à Escola, foram feitos banners educativos para utilização em seminários nas escolas, e foi elaborado um livro-texto que foi distribuído para toda a rede pública de ensino, dentro da bacia do Rio das Velhas, num total de 17.000 exemplares.

A publicação do livro-texto contribuiu de forma importante para a educação ambiental voltada para os problemas existentes na bacia do Rio das Velhas, abordando temas que vão desde a caracterização da bacia do Rio das Velhas até a questão da mortandade de peixes, passando pela discussão dos problemas do lixo e esgoto.

Seminários de capacitação e de sensibilização

Foram realizados seminários em diferentes pontos da bacia, envolvendo todas as SREs que pertencem à bacia do Rio das Velhas.

Pode-se afirmar que, hoje, o Projeto, é conhecido e está inserido em todas as escolas públicas da rede de ensino.

Núcleos Manuelzão vai à escola

A partir dos seminários, foram criados núcleos do Projeto em todas as escolas da rede pública

O desenvolvimento de um projeto de educação ambiental dessa envergadura somente irá se consolidar com inserção efetiva de ações dentro de cada escola.

Produção de vídeo

Vídeo contendo uma coletânea de filmes sobre a questão das águas e da bacia hidrográfica do Rio das Velhas, que tem sido amplamente divulgado nas escolas.

O vídeo consolidou a produção de material didático para distribuição às escolas da rede pública.

Adoção de córregos e áreas de proteção ambiental

As escolas já estão desenvolvendo projetos neste sentido em diversos pontos da bacia, conforme pode ser constatado pelos trabalhos apresentados no concurso para as escolas.

As escolas estão começando a desenvolver um conjunto de projetos voltados para estas áreas que precisam de apoio e acompanhamento técnico.

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AÇÕES

DESCRIÇÃO

AVALIAÇÃO

Concurso relativo aos projetos de educação ambiental

O concurso tem sido uma forma importante de conhecer, divulgar e estimular os professores que estão desenvolvendo trabalhos de educação ambiental.

Foram premiados 40 professores de diferentes cidades e SREs para uma semana de vivência ecológica na Serra do Cipó. A perspectiva futura é de manter o concurso e ampliar o programa de vivência ecológica na Serra do Cipó.

Eventos de comemoração do Dia do Meio Ambiente

2001 – desfile de cerca de 5.000 escolares pela Av. Afonso Pena 2002 – evento na Praça da Liberdade com mais de 6.000 participantes numa grande manifestação cultural pelo ambiente. 2003 – evento no Centro de Referência do Professor com apresentação de projetos desenvolvidos pelas escolas

Os eventos comemorativos do Dia do Meio Ambiente têm sido importantes para manifestar publicamente a preocupação quanto ao futuro do meio ambiente na bacia do Rio das Velhas, além de demonstrar as ações e o trabalho desenvolvido pelas escolas e pela sociedade civil organizada.

Visitas técnicas

As visitas técnicas na área da bacia do Rio das Velhas com os alunos e professores têm sido direcionadas para trilhas ecológicas no Parque das Mangabeiras, ETE, ETA e Aterro sanitário.

As excursões técnicas têm papel fundamental para desenvolver o conhecimento e a sensibilização voltada para questões ambientais da bacia.

Mobilização social

O Projeto Manuelzão adotou a mobilização social como o grande eixo propulsor das suas ações, uma vez que o processo de transformação da realidade somente ocorrerá com o envolvimento da sociedade. Para permitir a participação da sociedade no processo, foram criados os comitês Manuelzão, que serão mais bem abordados em outro capítulo deste livro. Neste capítulo, no entanto, é preciso destacar a participação, o envolvimento e o papel dos comitês no crescimento e no desenvolvimento das ações do Projeto Manuelzão. Os Comitês Manuelzão vêm-se estruturando dentro da lógica de bacia hidrográfica e não dentro da visão municipalista, priorizando-

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se a criação de comitês por sub-bacias como o do Ribeirão da Mata, Cipó, Arrudas e outros. Essa nova unidade de planejamento e de organização tem permitido superar e suplantar as visões e interesses particulares em prol de uma mentalidade mais ampla e comprometida com a preservação de todo o ecossistema de uma determinada sub-bacia. Existem, hoje, 65 Comitês Manuelzão atuantes (2003). No dia 22 de junho de 2002, foi realizado o II Encontro dos Comitês, com a participação de mais de 100 representantes de diferentes regiões da bacia. Nesse evento pôde-se constatar a importância, o envolvimento e o poder de mobilização da sociedade civil no monitoramento e no desenvolvimento das ações para a preservação das águas e da vida em toda a bacia do Rio das Velhas. Outro momento no qual pôde-se perceber a capacidade de ação e mobilização dos comitês foi durante a realização da Expedição Manuelzão (setembro ⁄ outubro de 2003), ocasião em que milhares de pessoas manifestaram o seu carinho e respeito pelo Rio das Velhas quando da passagem dos expedicionários pelos diferentes pontos do seu trajeto, fortalecendo o sentimento de solidariedade e pertencimento à bacia hidrográfica.

Políticas públicas saudáveis

O processo de revitalização da bacia do Rio das Velhas requer, necessariamente, o desenvolvimento de políticas públicas saudáveis. Essas políticas têm de estar comprometidas com o desenvolvimento sustentável e a criação de ambientes saudáveis. Para o Projeto Manuelzão a qualidade de vida e saúde é a expressão máxima e o reflexo direto da qualidade do ambiente. O ambiente degradado e doente produz doenças no homem, uma vez que somos parte, e não à parte da natureza. As áreas ambientalmente degradadas comprometem a auto-estima das pessoas que nela habitam, acumulam tensões sociais que se traduzem no aumento da violência, principalmente nos grandes centros urbanos.

Crianças da Vila Vera Cruz. Fotografia: Rogério Sepúlveda. Demais fotografias do capítulo: Cuia Guimarães.

É importante afirmar que as políticas desenvolvidas pelo poder público em muito contribuíram para a melhoria dos indicadores sociais e de saúde da população que habita a bacia, como a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida. No entanto, o foco antropocêntrico dessas políticas, por vezes, relegou para segundo plano o ambiente natural, quando não o subjugou totalmente, dentro de uma visão imediatista e focal dos problemas. Assim, os esgotos foram canalizados e drenados para os cursos d’água, o lixo coletado e depositado a céu aberto, as áreas verdes destruídas, os córregos canalizados e o solo impermeabilizado com asfalto e cimento.

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O desenvolvimento de políticas públicas saudáveis significa intervir no saneamento ambiental propiciando destinação adequada aos esgotos domésticos e indústrias, ao lixo, à elaboração e aplicação de leis adequadas de uso e ocupação do solo, à preservação das áreas verdes, de nascentes e cursos d’água. Portanto, a revitalização do Rio das Velhas, proposta pelo Projeto, perpassa a agenda social, política e da saúde à medida que o seu objetivo é a construção de um desenvolvimento sustentável social e ambientalmente. A implantação de políticas públicas saudáveis na bacia do Rio das Velhas tem que estar comprometida com um modelo de gestão ambiental sistêmico, que envolva efetivamente a participação da população, do poder público e da iniciativa privada, dentro de uma visão de mudanças de paradigmas e de responsabilidade coletiva para com o futuro da bacia hidrográfica. Dentro desses princípios, o Projeto Manuelzão tem participado da discussão e da implantação de importantes políticas públicas, a saber: • promulgação e efetiva implantação da Lei 9433 ⁄ 97, que definiu novos parâmetros para a gestão das águas no país; • implantação e participação no Comitê de Bacia do Rio das Velhas (1998); • implantação de nova política de saneamento ambiental pela Copasa, assumindo o seu compromisso para com o passivo ambiental (esgotamento sanitário), tendo como marco dessa nova postura a construção e operacionalização da ETE Arrudas (2002) e o início da construção da ETE Onça; • comprometimento cada vez maior das prefeituras, escolas e da sociedade civil com o movimento de recuperação da bacia, com participação efetiva nos comitês e nas ações promovidas pelo Projeto Manuelzão; • criação do Drenurbs pela prefeitura de Belo Horizonte, estabelecendo nova política de recuperação dos córregos e fundos de vale da cidade e não mais de canalização; É importante afirmar que as políticas públicas, dentro do processo de reprodução social, são sustentadas por paradigmas construídos socialmente, e que podem ser reformuladas em função de novos conceitos e demandas introduzidos pelos movimentos sociais.

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Conclusões

O Projeto ainda é muito jovem, tem somente 7 anos de vida. Mas não há como negar o quanto já fez e vem fazendo pela revitalização da bacia do Rio das Velhas, contribuindo também de forma importante para a revitalização do Rio São Francisco. A revitalização une a todos, revigora sentidos e sentimentos de vida, constrói imaginários, edifica ações transformadoras, mobiliza energias vitais, nos insere na natureza, revive e “encanta” o Manuelzão. A revitalização nos permite “ouvir a voz dos peixes”. Os peixes, como habitantes naturais das águas do rio, clamam, reclamam e manifestam, com a sua própria morte, a insensatez humana no cuidado com a natureza. O homem não sobreviverá à destruição da flora, da fauna e dos rios. O Projeto Manuelzão luta por rios vivos. É preciso entender os limites e as conseqüências sistêmicas para os ciclos vitais do atual modelo de reprodução socioeconômica. A partir desses limites é possível estabelecer parâmetros para a construção de um novo modelo de desenvolvimento sustentável que estabeleça uma nova relação homem-natureza, privilegiando a qualidade de vida do ambiente e a cidadania.

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Abstract

The Manuelzão Project Actions The chapter begins describing the basic concepts that have always guided The Manuelzão Project’s actions since 1997. After that, key actions that have been developed in fields like the production of knowledge, research and diagnostics, development of subprojects, environmental education, social mobilization and the construction of healthy public politics are presented and analyzed. The results obtained show that, even though the Manuelzão Project is still fairly young – only seven years in function -, the actions developed have contributed in an important way to the mobilization and articulation of social strength towards the revitalization of The Velhas River Basin and, consequently, the revitalization of the São Francisco River.

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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador do Projeto Manuelzão Articulação e Suporte dos Comitês Manuelzão

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Filósofo, Coordenador do Grupo de


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3 A organização social e a defesa do rio :

Os comitês Manuelzão Antônio Leite Alves Radicchi 1 Marcílio de Oliveira Castro 2

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Introdução

A crise ambiental, que emergiu a partir dos anos 1970, colocou de forma contundente a fragilidade e a insustentabilidade da economia contemporânea, quando então seus critérios, ritmos, padrões de produção e consumo e perspectivas foram questionados. A questão ambiental tornou-se universal e entrou definitivamente na agenda política, econômica e social dos povos e nações. Tornou-se o “sentimento do mundo” e conseguiu sintetizar os grandes desafios do nosso tempo, à medida que passou a incorporar, além dos temas propriamente “verdes”, também as questões referentes à pobreza, aos padrões tecnológicos, às formas de propriedade, ao controle e regulação das atividades produtivas, à legislação, planejamento e gestão de territórios, à organização da sociedade civil como apontam Milton Santos e Henrique Rattner. Nesse processo, a água tem sido o principal elemento a sofrer as maiores conseqüências dessa crise ambiental. Caso não sejam tomadas medidas de proteção, conservação e recuperação das bacias hidrográficas, o acesso à água de boa qualidade bem como a garantia de utilização da água por gerações futuras estará prejudicada. Para que essas medidas sejam efetivamente implantadas, a participação social, a organização social pela defesa das águas serão fundamentais. Participação que envolverá a proposição e definição de políticas públicas para a melhoria do ambiente e da qualidade de vida, o acompanhamento e controle das atividades e ações desenvolvidas, a mudança de hábitos e estilos de vida, enfim, um completo compromisso com a questão.

A política das águas

Vista a necessidade de cuidar desse bem precioso, foi criada a Lei federal 9433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e estabeleceu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, para garantir o direito ao acesso à água de boa qualidade para nossas atividades produtivas, bem como para sua utilização pelas futuras gerações.

Reunião de um Comitê Manuelzão. Arquivo Projeto Manuelzão.

Assim, a Política Nacional e as políticas estaduais de Recursos Hídricos definiram alguns princípios básicos para uma boa gestão das águas, tais como: gestão descentralizada e participativa; adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento; usos múltiplos da água e reconhecimento do valor econômico da água.

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A gestão descentralizada e participativa aplica-se no conjunto de atividades que estão diretamente envolvidas na implementação e no estabelecimento de políticas públicas. O que garante essa forma de gestão, descentralizada e participativa, são os Comitês de Bacia Hidrográfica e o Conselho Estadual de Recursos Hídricos, instrumentos criados pela Lei das Águas e definidos como princípio básico de gestão. Dessa maneira, os comitês expressam o envolvimento político da sociedade civil organizada, do setor empresarial como usuário da água e do setor público como regulador e normatizador da política hídrica local e regional.

Os comitês Manuelzão

Duas imagens do Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte. Fotografia: Foca Lisboa.

Consoante ao espírito da lei e traduzindo uma iniciativa da sociedade civil, o Comitê Manuelzão é um grupo organizado que promove um espaço aberto para exposição de idéias e proposição de soluções alternativas no que se refere aos problemas de interesse socioambiental, com olhar para a bacia hidrográfica como unidade de planejamento. Ele busca concentrar esforços das diversas instituições, diversos setores e diversas disciplinas presentes nas várias áreas do conhecimento, a fim de que todas as atividades dentro da bacia sejam desenvolvidas de forma sustentável e trabalhadas integral e sistemicamente. A bacia hidrográfica do Rio das Velhas faz a experiência de gestão dos comitês Manuelzão em várias sub-bacias. Desde a nascente até a foz, essa forma descentralizada e participativa tem mostrado seu grau de credibilidade diante da sociedade. Trabalhando de forma voluntária, o integrante do Comitê Manuelzão busca exercer seu poder de cidadania ativa e efetivamente. A experiência com os comitês tem refletido um avanço de concepção ambiental e a consciência de co-responsabilidade pelo fato do pertencimento ao território da bacia hidrográfica. Se todos fazem parte do problema, da mesma forma, todos fazem parte da solução. A partir deste princípio, os comitês Manuelzão vêm superando antigos conceitos colonialistas da administração pública por meio da mobilização social, entendendo esta como “convocação de vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhado”

Páginas seguintes: Córrego poluído que serve como depósito de lixo na periferia de Belo Horizonte. Fotografia: Foca Lisboa.

Os comitês em ação: algumas experiências

Foi através de cursos de educação ambiental que o Comitê Manuelzão de Ouro Preto, pertencente à cabeceira do Rio das Velhas,

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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conseguiu, em parceria com a Ufop — Universidade Federal de Ouro Preto —, reunir e sensibilizar alunos e professores do município. Justificou-se esse curso com o interesse de frisar o ambiente como sofredor de processo contínuo de agressão e degradação antrópica, comprometendo todo o patrimônio histórico, cultural e natural que herdamos. As águas dos rios espelham toda a nossa mentalidade civilizatória, e onde deveria haver peixes, hoje há rios mortos. A água é essencial para a vida de todas as espécies da fauna e flora, inclusive do próprio homem. Esse curso teve o objetivo de apoiar os professores da rede pública do ensino fundamental na divulgação e implementação de programas de educação ambiental. Buscou a compreensão do processo de recuperação e o conceito ecossistêmico de bacia hidrográfica, tendo como enfoque a bacia do Rio das Velhas. E teve como perspectiva a implantação de projetos que interfiram na realidade local, construídos pela participação dos alunos e professores das escolas. Trabalho fundamental com os comitês Manuelzão está sendo realizado em Belo Horizonte, nas respectivas sub-bacias Arrudas e Onça. Este gerou uma consensual concepção sobre a gestão dos recursos hídricos a respeito da não canalização dos córregos na região. Para tal, a Prefeitura criou o Drenurbs — programa de tratamento de fundo de vales e córregos em leito natural. A situação do Ribeirão Arrudas é precária devido à sua canalização, porém deseja-se recuperá-lo através da revitalização dos seus afluentes e os comitês Manuelzão são meios de mobilização social para atingir os objetivos e os resultados desejados com a participação social. O processo de discussão nas bases fica cada vez mais evidente com a efetiva atuação das comunidades nos momentos decisórios da política pública. Os reais moradores da bacia são os principais atores sociais na implementação de qualquer programa socioambiental. Todo movimento gerado em torno da questão proporcionou a construção da ETE — Estação de Tratamento de Esgotos Arrudas. Desta forma, espera-se melhorar a qualidade da água do Ribeirão Arrudas, principal contribuinte do Velhas com sua poluição. A sub-bacia do Ribeirão Arrudas contém três municípios: Contagem, Belo Horizonte e Sabará. Nestes tem-se constituído comitês Manuelzão com o intuito da revitalização da sub-bacia.

Região do baixo Rio das Velhas onde a água já está parcialmente recuperada. Fotografia: Cuia Guimarães.

O Comitê do Córrego do Ferrugem, assim chamado, está localizado no município de Contagem e foi constituído com a finalidade de trabalhar parte da cabeceira do ribeirão, entendendo que a outra parte está localizada no bairro do Barreiro, no município de Belo Horizonte. Esse comitê conseguiu, no ato de sua criação, através da

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mobilização social, a criação do Parque Ecológico do Eldorado, uma região de área verde dentro do perímetro urbano do município. A área é importante pelo fato de conservar nascentes com grande volume de água. O parque servirá de referência local para o comitê, contribuirá como espaço de visitação para educação ambiental de escolas e entidades afins. O comitê conta com a participação do poder público (prefeitura, câmara dos vereadores), da sociedade civil (associações de bairro, ONGs e escolas), e usuários de água (Copasa). Esse grupo está se preparando para desenvolver um projeto de conscientização contínuo no município, observando os interesses comuns: a revitalização do córrego, o resgate da relação da população com o córrego com água limpa e a atitude de destinar o lixo para o lugar certo. A outra parte da cabeceira tem um comitê Manuelzão de relevância, pois preocupa-se com a preservação da Serra do Rola Moça, onde nascem os córregos Barreiro e Jatobá. A serra guarda as nascentes do Ribeirão Arrudas. Ela tem sofrido com a exploração de mineradoras e a especulação imobiliária. Apesar do Comitê Manuelzão do Jatobá atuar como vigilante da área de preservação ambiental, os trabalhos têm tido pouca evolução porque o comitê não tem poder legal para impedir as ações locais. Além da exploração mineradora na serra, a invasão de moradias clandestinas tem aumentado o grau de degradação de sua área. O espaço tem sido usado por invasores não desejados, impedindo o turismo local. Com a população moradora da micro-bacia do Córrego do Jatobá, os trabalhos têm sido direcionados para a educação ambiental, a diminuição do lixo doméstico e com a implantação do projeto “caça esgoto” da Copasa com a construção de interceptores ao longo do Córrego Jatobá. Essa área tem sido sufocada com o adensamento urbano e as áreas verdes têm perdido seu espaço de proteção. O Comitê Manuelzão do Jatobá tem se fortificado cada vez mais com a sua formação através de cursos ambientais. O Ribeirão Arrudas agradece a atuação do Comitê Manuelzão da Microbacia do Córrego do Cercadinho, onde conserva grande área de proteção ambiental usada como reservatório da Copasa. Por outro lado, a dificuldade e obstáculos aumentam quando se trata da especulação imobiliária. Esta não tem respeitado a lógica das águas e dos córregos, construindo grandes prédios nos morros sem a preocupação com o lançamento do esgoto no respectivo córrego. Os moradores ao se depararem com a situação desagradável do cheiro do esgoto e a constrangedora visão, pedem a canalização do córrego. O comitê Manuelzão tem investido na discussão para a revitalização do córrego e a freada das construções antes que acabem com toda área verde. A microbacia já sofre com a invasão clandestina e, conseqüentemente, com a formação de grandes vilas sem infra-estrutura

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de saneamento básico, o que obriga a prefeitura a tomar medidas paliativas. O comitê tem a certeza de que a mobilização é um processo contínuo de ações direcionadas neste sentido. O Córrego Santa Terezinha foi pioneiro no trabalho de formação de comitê Manuelzão. Pode ser contextualizado pelo que Enrique Leff caracteriza como impulso de emancipação social: “A problemática ambiental do desenvolvimento deu lugar a um movimento, na teoria e na prática, para compreender suas causas e resolver seus efeitos na qualidade de vida e nas condições de existência da sociedade. O custo social da destruição ecológica e da degradação ambiental gerada pela maximização do lucro e dos excedentes econômicos a curto prazo deram, pois, impulso à emergência de novos atores sociais mobilizados por valores, direitos e demandas que orientam a construção de uma racionalidade ambiental”. Assim, o processo democrático e participativo na gestão ambiental iniciouse em julho de 1998, quando foi formado o Comitê Manuelzão pela qualidade de vida dos moradores do Alto Vera Cruz, resultado da parceria entre a Prefeitura do município, o Projeto Manuelzão ⁄ Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, a Copasa ⁄ MG — Companhia de Saneamento de Minas Gerais, o Ciame Flamengo — Centro de Apoio ao Menor do Bairro Flamengo e o Centro de Ação Comunitária Vera Cruz. Tendo como objetivo a recuperação e a revitalização do Córrego Santa Terezinha foram conquistadas melhorias, como a implantação de coleta de lixo porta a porta, limpeza periódica do curso d’ água e aprovação dos recursos para elaboração do Plano Global específico do Alto Vera Cruz no orçamento participativo 1999 ⁄ 2000, composto por quatro etapas: atualização da base cartográfica, levantamento de dados, pesquisa cartorial, diagnóstico e proposta de intervenção. Em 1999, o superintendente da Sudecap juntamente com os superintendentes da SLU — Superintendência de Limpeza Urbana e da Urbel — Companhia Municipal de Habitação, o secretário municipal de Planejamento e a Coordenação do Projeto Manuelzão definiram pela elaboração de estudos específicos para toda a bacia do Córrego Santa Terezinha, visando a sua recuperação. Sendo assim, a Sudecap contratou a elaboração desses estudos, cuja conclusão se deu em maio de 2001. No momento, a comunidade aguarda a liberação dos recursos financeiros pelo BNDES — Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para o início das obras de tratamento e revitalização da bacia do Córrego Santa Terezinha. A sub-bacia do Onça apresenta melhor situação porque conserva a maior parte do seu leito em estado natural, acompanhado pelos seus afluentes. Semelhante ao trabalho na sub-bacia do Arrudas, o Onça está construindo a sua ETE Onça. As duas estações construídas e em pleno funcionamento apresentarão melhora significativa das

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águas do Rio das Velhas. Os comitês Manuelzão das duas sub-bacias desenvolvem trabalhos importantes nas áreas de educação ambiental, através de cursos, oficinas, trilhas ecológicas e outras ações que buscam integrar a comunidade. Dessa maneira, os diversos públicos são sensibilizados e passam a assumir a co-responsabilidade na gestão ambiental. São experiências como estas acima citadas que se fortalecem e avançam em expressão. É o que fez o Comitê Manuelzão da SubBacia do Rio Taquaraçu no município de Nova União, que amadureceu a idéia da construção de uma usina de compostagem. Visto que para essa população seria necessária a construção de uma estação para tratamento de esgoto (ETE) de maior porte e, conseqüentemente, de maior custo, achou-se mais viável a implantação de uma unidade de menor dimensão. A gestão de uma bacia hidrográfica, no que concerne aos aspectos e divulgação, orientada para dar conhecimento das ações pretendidas e realizadas, bem como de sua performance em relação às metas idealizadas, deve estar amparada em um documento consolidado segundo objetivos específicos e que atendam a um público-alvo previamente selecionado. Assim, torna-se viável o surgimento espontâneo e ⁄ ou aprimoramento de um processo integrativo e participativo entre os usuários e entidades intervenientes em questão que aborde os recursos hídricos. É neste enfoque que se enquadram as propostas de se conceber um Programa de Diretrizes de Ação para a Bacia do Ribeirão da Mata, objetivando nesse trabalho a instrumentalização dos mecanismos para a sua gestão. O Comitê de Augusto de Lima, pertencente à sub-bacia do Rio Curimataí, em parceria com a Ana — Agência Nacional das Águas e a Emater, desenvolveu um projeto de gestão de bacia. O projeto conta com a participação e o envolvimento de comunidades rurais e urbanas, prefeituras, sociedade civil organizada e instituições parceiras, por meio de consultas, estudos e forte mobilização institucional e da sociedade. Para a sub-bacia hidrográfica do Rio Curimataí está sendo elaborado projeto executivo de caracterização e manejo integrado, com vistas à recuperação, preservação e manejo sustentável dos seus recursos naturais.

Esgoto não tratado sendo despejado no Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte. Fotografia: Foca Lisboa.

O projeto de recuperação ambiental da sub-bacia hidrográfica do baixo Rio Curimataí e microbacia do Córrego Tamboril (nascente principal), é uma experiência piloto de gerenciamento da bacia hidrográfica do Rio das Velhas na região. Os trabalhos vêm sendo desenvolvidos em parceria com o governo municipal, desde 1998,

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através do levantamento de dados e contatos com a população usuária, o que permitiu a realização do diagnóstico da situação ambiental da sub-bacia hidrográfica do baixo Rio Curimataí, microbacia do Córrego Tamboril e a promoção do plano gestor junto à comunidade. Outra ação do Comitê Manuelzão de Augusto de Lima resultou na implantação da Estação de Tratamento de Efluentes da Fábrica de Tecidos Santa Bárbara. Atuando desde o início do século passado, essa indústria têxtil vem poluindo o Riacho da Areia, tributário do Rio Curimataí e um dos principais afluentes do Rio das Velhas. Tal poluição prejudicou a comunidade de Areias, situada à jusante da fábrica, impossibilitando o abastecimento de água, a pesca e a atividade agrícola. Após várias reuniões do Comitê Manuelzão com a participação da comunidade de Areias, do prefeito e da direção da indústria, esta comprometeu-se a implantar a Estação de Tratamento dos Efluentes Industriais. O acordo foi cumprido e a estação encontra-se em funcionamento desde 2001, o que propiciou uma significativa recuperação da qualidade das águas do Riacho da Areia e o retorno de seu pleno uso pela comunidade. Marísia, uma pequena comunidade rural de Augusto de Lima, com cerca de 45 famílias, localizada próxima ao Rio das Velhas, também foi objeto de ação do Comitê Manuelzão. Após constantes reclamações da comunidade sobre a qualidade da água de abastecimento, o Comitê promoveu reuniões entre a Associação Comunitária e o prefeito para discutir as possibilidades de solução da questão. Inicialmente, foi realizada a análise da água utilizada — captada no lençol freático — pela Copasa — e constatada alta salinidade, corroborando a reclamação popular que denominava tal água como “água salobra”. Em seguida, analisou-se uma fonte de água situada a 4 km de distância, localizada no sopé da Serra do Cabral. A análise da nascente revelou uma salinidade dentro dos padrões de potabilidade, mas apresentou um índice significativo de coliformes fecais, apontando possível contaminação por fezes animais. Como solução, a Emater local sugeriu e foi construído um filtro de areia e cascalho no ponto de captação e implantado o encanamento até a comunidade com recursos da Prefeitura Municipal. O Comitê de Buenópolis, no município banhado pelo Rio Curimataí, trabalhou a questão do lixo na respectiva sub-bacia. O projeto prevê tratamento do lixo urbano das cidades de Buenópolis, Joaquim Felício e Augusto de Lima que se associarão com recursos financeiros para resolverem o problema do lixo das respectivas comunas. A princípio, foi feita consulta aos prefeitos de Joaquim Felício e Augusto de Lima que aceitaram a idéia como vantajosa para seus municípios, evitando-lhes a construção de um aterro ou de uma usina. Augusto de Lima dista 32 km da cidade de Buenópolis e Joaquim Felício 17 km.

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Córrego coberto pela espuma branca que indica poluição. Fotografia: Cuia Guimarães.


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A usina foi projetada para o lixo gerado durante 25 anos pelas populações das três cidades. A previsão de operação da usina é para 20.000 habitantes, com geração de 12 toneladas de lixo por dia. A participação social nesse caso é fundamental. Quando a sociedade percebe seus problemas e parte conjuntamente para assumir a solução os resultados são favoráveis a todos. O rio é extensão da vida no território da bacia. Agredi-lo é sinal de desumanidade. Além disso, devido à atuação do Comitê Manuelzão local, Buenópolis também foi contemplada pela Feam — Fundação Estadual do Meio-Ambiente, com um projeto técnico de gerenciamento de resíduos sólidos. Esse projeto realizou um estudo completo do sistema de geração, recolhimento e tratamento final do lixo municipal, resultando na implantação de nova sistemática de coleta do lixo, aquisição de nova área para aterro controlado e introdução de um programa de educação ambiental para a cidade, com ênfase na população escolar.

Conclusões

Em sete anos de atuação, o Projeto Manuelzão criou mais de 50 comitês ao longo da bacia hidrográfica do Rio das Velhas. Mesmo considerando a grande diversidade no tocante ao grau de mobilização social, à capacidade de articulação intersetorial e influência nas políticas públicas ambientais, os comitês Manuelzão trouxeram novos ares para a questão ambiental mineira, notadamente para a gestão das águas. As inúmeras ações de educação e promoção ambiental, as conquistas de revitalização, recuperação e conservação de sub-bacias e microbacias, a participação nos conselhos e comitês oficiais de bacias hidrográficas atestam a vitalidade do movimento social desencadeado pelo Projeto Manuelzão e o acerto de sua metodologia para a organização social. A grande tarefa dos comitês Manuelzão, a defesa do Rio das Velhas, no entanto, só terá êxito quando a mentalidade dos cidadãos que habitam essa bacia for mudada, quando passarem a considerar os rios como organismos vivos e tratarem de conservá-los sempre saudáveis.

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Crianças moradoras da região do médio Rio das Velhas. Fotografia: Cuia Guimarães.


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Bibliografia

LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis: Vozes, 2001. PAULA, João Antônio de; BARBIERI, Alisson F. Biodiversidade, população e economia: uma região de Mata Atlântica. Belo Horizonte: UFMG - CEDEPLAR, 1997. 671 p. RATTNER, H. Meio Ambiente: apontamentos para uma perspectiva interdisciplinar. PADCT/CIAMB, 1994. Mimeografado. SANTOS, M. A questão do meio ambiente: desafios para a construção de uma perspectiva interdisciplinar. PADCT/CIAMB, 1994. Mimeografado. TORO, J. B. Mobilização social: um modo de construir a democracia e a participação. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 1997. 45 p.

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Abstract

Social Organization and the defense of the river – the Manuelzão Committees The Manuelzão committees are organized groups which promote an open space to expose ideas and propose alternative solutions to social and environmental related problems, having the Velhas River basin as target. They concentrate efforts and knowledge from many institutions and different academic areas with the objective of creating maintainable actions which can be systematically developed as a whole. The committees are arranged and managed by dividing the Velhas River basin into smaller areas. From the spring to the mouth of the river, this decentralized and participative form has shown its degree of credibility amongst society. Through voluntary work, members of a Manuelzão committee can actively exercise their citizenship. The committees have reflected an advance in people’s conception of environment and consciousness of their coresponsibility, being residents of the territory where the river basin is situated. If everybody is part of the problem, then they are also part of the solution. In over seven years of activities, The Manuelzão Project has created over 50 committees along the Velhas River basin. Even though the level of mobilization, articulation and influence over environmental politics varies, the Manuelzão committees have brought new perspective to the address of environmental issues in Minas Gerais, especially concerning water management. The many environment education actions, revitalization achievements, recuperation and conservation of areas within the river basin and the participation in Official Councils and Committees for River Basins attest the vitality of the social movement set off by the Manuelzão Project and the correct choice of social organization methods. But the great task faced by the Manuelzão committees, the defense of the Velhas River, will only succeed when the inhabitants of this river basin change their mentality, considering rivers as living, healthy organisms and doing everything to keep them that way.


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Professor do Departamento das Ciências da Educação da Universidade Federal de São João Del-Rei Federal de São João Del-Rei

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Acadêmica do Curso de Pedagogia da Universidade


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4 A expedição de Richard Burton Paulo Roberto Azevedo Varejão 1 Alice Conceição Christófaro 2

Pintura de Wilhelm Lehman.

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Dados históricos e biográficos

Richard Francis Burton nasceu em Hertfordshire, Inglaterra, em 1821, vindo a falecer em Trieste, no ano de 1890. Foi um dos maiores exploradores que a Era Vitoriana jamais produziu. Dentre as suas principais façanhas está o ingresso na cidade santa de Meca e a sua participação na expedição que acabaria por descobrir as nascentes do Rio Nilo. Poliglota e orientalista, traduziria para o seu idioma clássicos da literatura asiática como o Kama Sutra e As Mil e Uma Noites. Acabaria seus dias como diplomata inglês, chegando a ocupar o consulado de seu país em Santos, São Paulo. Homem de espírito andejo, dedicou-se por um período a explorar o Império brasileiro. De sua passagem pelo Brasil, Burton legou-nos uma obra que trata da navegação fluvial desenvolvida por ele, entre agosto e novembro de 1867, saindo de Sabará no Rio das Velhas até atingir a foz do São Francisco. Neste trabalho, nos deteremos no exame da passagem de Burton pelo Rio das Velhas, argüindo também dos motivos que levaram o oficial britânico a eleger justamente essa região como palco para as suas aventuras no Brasil. Edward Rice, biógrafo do aventureiro vitoriano, deixa transparecer em várias passagens de seu livro interessantes vínculos entre a vida de Burton e o mundo português. É sabido que, entre 1842 e 1849, serviu como oficial das tropas coloniais na Índia e que, logo após haver desembarcado em Bombaim, ele seria transferido para a 18ª Infantaria Nativa na cidade de Baroda. Nesse percurso, ele se faria acompanhar por uma comitiva de criados originários dos territórios portugueses da Costa do Malabar pois, dizia Rice que (. . .) como todo oficial, todo inglês e toda família branca sempre tinha o número de empregados que pudesse se permitir, ele contratou uma família de Goa, encabeçada por um certo Salvador Soares.

Richard e Isabel Burton na Ilha da Madeira, 1863.

A família Soares seria composta de mestiços de portugueses e hindus, e não parariam por aí as afinidades de Burton com o mundo ibérico indiano. Os goeses continuariam fazendo parte da vida íntima do militar britânico, inclusive no que diz respeito ao processo de experimentação religiosa por que ele passou a vivenciar nesse período. Ainda de acordo com o seu biógrafo, foi pelas mãos de um religioso hindu, oriundo da principal cidade lusa na Índia, que Burton iniciou ligeiro flerte com a Igreja Romana, a qual já gozaria, ao que tudo indica, das simpatias de setores acadêmicos de elite na Inglaterra, pois segundo Rice diz (. . .) no período de Baroda, Burton, com a agradável lembrança do dr. John Henry Newmann e o vibrante neocatolicismo em Oxford, começou a freqüentar as missas católicas. Deve ter sido uma grande conquista para o padre, um mestiço de Goa. Ainda é digno de nota que, na biografia escrita sobre a sua vida pela esposa Isabel Arundell, Burton afirmou textualmente que havia desistido (. . .) de “ficar debaixo” do capelão da guarnição, e me

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transferi para a Igreja Católica do padre goês cor de chocolate, que ministrava consolo espiritual aos copeiros (mordomos e principais empregados) e outros empregados do quartel. Observe-se que Burton, fugindo às prédicas do capelão anglicano, dirigidas a seus colegas oficiais, resolveu optar por uma adesão ao catolicismo pregado a indianos de baixo status que trabalhavam no quartel. Essa aproximação de um tenente com os nativos da terra não poderia deixar de impressionar a comunidade inglesa da Índia, na qual os preconceitos de superioridade social e racial estavam muito arraigados. Encerrados em seus cantonments, bairros exclusivos enquistados no seio das mais populosas cidades indianas, os britânicos governavam a Índia ao abrigo de qualquer olhar nativo. Resguardando-se profilaticamente do contágio da cultura e dos valores da raça dominada, os europeus isolavam-se socialmente da massa hinduísta e muçulmana, e abominavam acima de tudo o intercurso sexual com as mulheres nativas.

Vinheta da edição de The Higlands of The Brazil, relato da viagem ao Brasil do Capitão Richard F. Burton, publicado em Londres, em 1869. Acervo Casa de Borba Gato ⁄ Museu do Ouro, Sabará.

Burton, desde sempre, caminhou na contra-mão dos preconceitos de seus patrícios. Defendia os benefícios de uma política colonial fundamentada em um alargamento do espaço da mestiçagem entre europeus e colonizados. Neste particular, o modelo português contrapunha-se frontalmente ao britânico; e outro inglês, Robert Southey, invectivando os pruridos racistas de seus conterrâneos rebatia, segundo Maria Odila da Silva Dias: (. . .) os que condenavam a experiência portuguesa como deletéria e que sustentavam que a mestiçagem acabara rebaixando os portugueses ao nível dos nativos e que os casamentos mistos tenderiam a aculturar os colonizadores ao invés de civilizar os nativos. Em artigo escrito, em 1807, Southey recusava-se, peremptoriamente, a acreditar que a degeneração dos portugueses de Macau pudesse ser causada por casamentos mistos. Em boa hora, percebera Albuquerque as vantagens de assegurar o Império português através de uma raça mista, a qual, “falando a língua e professando a religião dos pais seria para todos os fins portuguesa”. A raça mista de fato sobrevivera ao Império e continuava a falar o português. Provavelmente, continuaria na Índia quando os ingleses já lá não estivessem mais (. . .) O referido Southey escreveu de sua lavra três tomos de uma História do Brasil entre 1810 e 1819, antecipando posturas mais tarde assumidas por Burton. Aquele historiador inglês comparava vantajosamente a experiência colonial portuguesa quando cotejada com a britânica, dizendo a estudiosa Maria Odila que (. . .) para Southey, nenhum povo europeu soubera adaptar-se tão bem ao meio ambiente dos trópicos e embora fosse elevado o preço que pagavam, o dinamismo e a atividade dos portugueses parecia incomparável. As teses de Southey lastreariam também aquelas defendidas por Gilberto Freyre em 1933, quando foi enfatizada a predisposição dos lusitanos para os empreendimentos

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coloniais nas zonas equatoriais. Afirmou o sociólogo que, (. . .) de qualquer modo, o certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de retardarem como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses. Burton foi leitor assíduo de Robert Southey, a quem cita nas suas obras sobre o Brasil, o que sugere uma constância na preocupação de setores intelectuais ingleses com Portugal e seu mundo colonial. A pequena potência latina seria percebida como referência e modelo a nortear as práticas colonialistas britânicas, principalmente naquilo que dissesse respeito a uma possível correção da política imperial anglo-saxônica até então empregada na Índia. Crítico da mentalidade “apartheísta” que dominava a comunidade britânica na Índia, Richard Burton temia pela continuidade do domínio colonial de seu país no subcontinente, mercê dos ressentimentos que se acumulavam no espírito dos nativos. É ainda Edward Rice quem afirma:

Vinheta da edição de The Higlands of The Brazil, relato da viagem ao Brasil do Capitão Richard F. Burton, publicado em Londres, em 1869. Acervo Casa de Borba Gato ⁄ Museu do Ouro, Sabará.

Richard Burton aos 46 anos de idade, em 1867, ano da expedição no Rio das Velhas.

Por toda parte que ia, Burton sabia que os brancos eram odiados — informação que recolheu disfarçado nos bazares ou, de uniforme, como um oficial inglês sensível aos sentimentos dos outros povos. Ele menciona reiteradamente essa profunda aversão. Sentiu-a no sul da Índia. Agora ele tinha tanta experiência da Índia e uma tal compreensão da mentalidade do povo, rico ou pobre, soldado, governante, camponês, comerciante, servo, hinduísta ou muçulmano, que achava que uma grande calamidade aguardava os ingleses naquele país. A calamidade ocorreria no ano de 1857, quando Burton não mais se encontrava na Índia. Foi a “Revolta dos Cipaios”, que redundou na chacina dos residentes ingleses de Cawnpore, além de haver colocado em grandes apuros a guarnição britânica de Delhi. Um irmão de Burton, o capitão Edward, participou das lutas e delas carregou seqüelas. O intenso calor indiano, as cruas imagens de sangue e desordem, e a terrível carnificina perpetrada por ambos os contendores acabaria por comprometer definitivamente as suas faculdades mentais. Richard Burton chocou-se com a sina do irmão, que passaria os anos que lhe restavam internado no Manicômio do Condado de Surrey, Inglaterra, temendo ainda pelo futuro do domínio inglês na Índia. Burton não poderia deixar de se tocar, caso tivesse tido essa oportunidade, com aquelas palavras de Southey a um amigo do Colonial Office, em que o historiador do Brasil, tendo em mente a sensibilidade lusa no trato com os nativos indianos, dizia que (. . .) se essa política não for adotada eu profetizo que por volta do ano 2000 haverá mais remanescentes do Império português que do Império britânico. Conforme já foi observado, desde os seus primeiros tempos na Índia, já era perceptível uma aguda identidade de Burton com as possessões portuguesas naquela região. E é do ponto de vista das

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experimentações religiosas que marcaram a passagem de Burton pelo subcontinente, que se pode intuir a existência de um vínculo mais fundamental entre a personalidade individual do oficial e o caráter nacional português. Burton, depois de ser iniciado na seita hinduísta dos brâmanes nagares, fixou-se de modo permanente no credo de Maomé. Edward Rice sustenta que a conversão de Burton ao islamismo não foi meramente formal nem passageira. Este seu biógrafo, o tempo todo, caracteriza o aventureiro como muçulmano devoto: a sua peregrinação a Meca teria sido executada basicamente como dever religioso.

O anão Chico, “braço direito” de Richard Burton no Brasil.

No tocante ao que nos interessa, é necessário destacar que em nenhum outro país da Europa ocidental mais do que em Portugal variados asiatismos permearam a vida social. E que dentre todos aqueles orientalismos sugeridos que teriam moldado o ethos lusitano, ou seja, a identidade nacional do povo português, nenhum deles seria maior do que a herança muçulmana em sua história. A presença do Islã na Península Ibérica se estenderia por oito séculos, entre os anos 711 e 1492. Portugal, mais do que uma Espanha dramaticamente católica, absorveria de seus conquistadores árabes várias características de sociabilidade que o singularizariam bastante dentro do contexto europeu. Quando, no alvorecer do século XV, a pequena nação ingressou na aventura marítima das Grandes Navegações, ela já estava curtida por um contato prolongado com povos de cor, semitas morenos ou mesmo negros provenientes das regiões islâmicas do Norte da África. Formalmente cristã, tanto a elite quanto a plebe lusa entregavam-se a práticas poligâmicas usuais entre os seus antigos conquistadores islamitas. Toda essa experiência foi útil aos portugueses sob mais de um aspecto: atenuou consideravelmente a sua estranheza em face de um “outro” extra-europeu, como também, e complementarmente, facilitou a atividade genésica de varões lusitanos junto às mulheres dos povos conquistados, criando uma prole de mestiços que, via de regra, se mantinha leal às autoridades metropolitanas em Lisboa. Em poucas palavras, esta teria sido a chave do sucesso português em sua obra colonial nos trópicos. Burton, como bom muçulmano, não deixaria de se sentir atraído por uma política colonial que, a exemplo da portuguesa, se fundamentasse na aproximação com os nativos e no trato poligâmico com as mulheres de cor. Isabel Arundell, prefaciando a obra do marido sobre o Brasil, faz referência à defesa que Burton faz das virtudes da poligamia para a ocupação de terras tropicais, prática que ela vitorianamente denuncia como “desnaturada”. Tais circunstâncias sugerem que Burton não veio ao Brasil por acaso; não se tratava de ocupar uma vaga consular ociosa, acima de tudo teria atuado sobre ele a sua velha atração pelo mundo de fala portuguesa. Pode-se suspeitar de que ele teria tentado encontrar, no Brasil, uma Goa

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Portuguesa. Não seria essa, aliás, a primeira vez que Burton adentraria territórios tropicais portugueses sem revelar os verdadeiros motivos de para lá haver se deslocado. Deve ser acentuado aqui que na sua juventude, e dando vazão a seu persistente mas algo encoberto filolusitanismo, vinte anos antes o então tenente quedou fascinado pela obra de Luís Vaz de Camões, assim como ele soldado aventureiro europeu no Extremo Oriente, e de quem verteria para o inglês Os Lusíadas, seu maior texto épico. Desejando tomar maior contato com a obra do seu ídolo, Burton pretextou uma enfermidade, pediu licença para tratamento de saúde e disse seguir rumo a uma estância sanitária para a recuperação de ingleses na Índia. Isso não é exatamente correto; a real explicação para sua jornada, no entendimento de Edward Rice, estava no seu interesse em dar um mergulho profundo na Índia portuguesa: Cinco meses na umidade escaldante de Bombaim perfaziam um longo período para alguém que se dizia seriamente enfermo, mas agora ele estava pronto para ir até Ootacamund, cidade no sul da Índia, recente balneário e centro de convalescença nas montanhas Nilgiri para oficiais britânicos com suas famílias. Mas Burton não estava indo diretamente para Ootacamund. Acabava de se interessar pelo poeta português Luís Vaz de Camões (Camoens, na grafia de Burton), que havia passado grande parte de sua vida adulta no Extremo Oriente e na Índia como soldado das tropas portuguesas, tendo composto uma grande obra, embora relativamente desconhecida, Os Lusíadas, que agora absorvia a atenção de Burton. Não havia nada como um interesse intelecutal para redespertar um Burton febricitante. Não temos mais nenhuma palavra sobre o cólera e apenas algumas, se tanto, sobre as “febres”. Seguia animado nos rastros de Camões. E se realmente estava doente, levou um tempo relativamente longo para chegar até o saudável refúgio de Ootacamund. A doença pode ter sido uma desculpa para sair de Sind e dar um pulo até a colônia portuguesa de Goa, para investigar Camões in situ.

Páginas seguintes: Mapa da expedição empreendida no Brasil por Richard Burton, em 1867. Acervo Casa de Borba Gato ⁄ Museu do Ouro, Sabará.

Resta-nos ainda indagar as razões das dissimulações de Burton. Por que ele teria que esconder os reais motivos de sua vinda para o Brasil, e também por que seria que, dentro do nosso país, ele teria optado por percorrer preferencialmente as regiões das bacias do Velhas e do São Francisco? Edward Rice, a respeito da manifesta circunspeção de Burton no tocante à abordagem de suas crenças religiosas íntimas, sustenta que ele aderiu ao sufismo, uma variante esotérica do islamismo. Dessa maneira, Burton não teria liberdade, em meio à ortodoxia muçulmana, de declarar abertamente a sua condição. Os sufis, tanto quanto os xiitas, para não serem perseguidos pela maioria sunita, desenvolveram uma técnica de velamento de suas convicções espirituais, chamada taqiya. O mesmo autor afirma que Burton (. . .) logo aprendeu a guardar certas opiniões e interesses para si mesmo, e se tornou mestre na prática muçulmana xiita conhecida como taqiya — dissimulação ou ocultamento —, que consiste em esconder as crenças

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religiosas pessoais. E é digno de nota, ainda, que o nosso oficial possivelmente não lançava mão da prática da taqiya apenas para ocultar a sua heterodoxia islâmica; em pelo menos numa ocasião, o seu biógrafo suspeita que ele sacou daquele recurso para não tornar visível o propósito de uma de suas viagens, qual seja, a exploração das nascentes do Nilo: Nessa época, a viagem já estava muito bem planejada, tendo como destino expresso a aldeia de Ujiji (pronuncia-se Uwiwi), a cerca de 1600 quilômetros para o interior, à margem do lago Tanganica, relativamente desconhecido. Supunha-se que os habitantes de Ujiji eram comerciantes árabes, e Burton achou que poderiam ajudar na busca. Ao que parece, ele manteve seu verdadeiro objetivo deliberadamente vago — talvez aqui estivesse operando a taqiya ou dissimulação —, e não tornou pública sua intenção de prosseguir até o próprio rio e sua nascente.

Richard Burton vestido de beduíno circa 1849. Autor desconhecido.

Ao assumir o seu cargo consular no Brasil, Burton não estava apenas assumindo um cargo vago no serviço diplomático inglês. Em algum nível, estava operando a sua velha curiosidade acerca do mundo colonial português. Se ele não afirma isso textualmente, talvez seja porque a taqiya estivesse em uso. E resta-nos indagar ainda porque, dentro do Brasil, ele manifestou uma especial predileção por excursionar pelo Rio das Velhas, território a respeito do qual, invocando como penhor a própria sinceridade, Burton diz ser impossível (. . .) exagerar os dons de uma região que prefiro a todas que percorri até hoje.

Orientalismos na bacia do Velhas

Não deixa de causar espécie o fato de que um viajante experimentado como Burton afirme, textualmente, a sua preferência pela bacia do Velhas, mais do que qualquer outra parte do planeta percorrida por ele. O que o teria encantado nesse percurso? Uma sugestão de resposta talvez possa ser encontrada nas similitudes percebidas por Burton entre o entorno daquele rio mineiro e as de diversas áreas asiáticas por ele percorridas. Tais similitudes não nos devem surpreender; o nosso país, isolado por mais de trezentos anos do mundo europeu, entabularia nesse período laços muito íntimos com o mundo luso afro-asiático, com Goa e Macau principalmente. Do caráter antes asiático do que europeu do Brasil Colonial, assim se exprime Gilberto Freyre: Pois o que parece é que, ao findar do século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra área americana o palanquim, a esteira, a quitanda, o chafariz, o fogo de vista, a telha côncava, o bangüê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de mulher, a casa caiada de branco ou pintada de cor viva e em forma de pagode, as pontas de beiral de telhado arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz, o alfeolo, o alfenin, o arroz-doce com canela, o chá da

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China, a cânfora de Bornéu, a muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da China e da Índia, os perfumes do Oriente, haviam se aclimado com o mesmo à-vontade que no Brasil; e formado com os valores indígenas, europeus e de outras procedências o mesmo conjunto simbiótico de natureza e cultura que chegou a formar o nosso País. É como se ecologicamente nosso parentesco fosse antes com o Oriente do que com o Ocidente. Burton quedou-se agradavelmente surpreso com o espetáculo de uma região e de uma sociedade não só racialmente como culturalmente miscigenada. Os portugueses enxertaram no Brasil não só filhos mestiços como, também, souberam harmonizar em nosso território valores europeus e asiáticos, criando assim o lastro híbrido que sustentou a sua obra colonial. Navegando entre Sabará e a Barra do Guaicuí, Burton observaria que não só a paisagem social como também a ecológica do Rio das Velhas estava varada por aproximações com o mundo português da África e da Ásia. Uma propriedade rural com nome de peixe situada às margens do rio evocou a Burton a seguinte lembrança da África Portuguesa, dizendo ele que (. . .) grandes blocos de arenito estratificado (lapas) inclinam-se em ângulo agudo na direção do rio e vão formando sombrias cavernas, recessos e pilares até a próxima fazenda do Mandim, — de Mandim ou roncador. A última vez que ouvi falar da música desse peixe foi em São Paulo de Luanda. A vida animal à beira d’água, apreciada pelo viajante inglês, daria ensejo a que Burton, nitidamente, externasse de soslaio, usando como pretexto o trinado de um pássaro, a sua contida preferência pela sensibilidade portuguesa sobre a anglo-saxônica, naquilo que diz respeito à gestão das coisas americanas: O ar estava deliciosamente puro e eu me sentei por algum tempo ouvindo a conversa de um velho amigo. “Pst” o assobio “Whippoorwhil”, do caprimulgídeo. Este só começa a cantar pelo crepúsculo, mais ou menos como certas corujas, especialmente o Strix aluco da Europa e seu grito agudo é ouvido por intervalos rio abaixo, a grandes distâncias no Rio São Francisco. Seus hábitos, conforme pudemos observar, são semelhantes ao dos seus irmãos dos Estados Unidos, e muitas vezes vimos de dia aos pares, aninhando-se na areia. O português chama-o joão-corta-pau e é curioso comentar esta teoria onomatopaica: uma raça ouve “Pst-Whip-poor-Will” e outra “joão-corta-pau”. Repetindo mentalmente as palavras, eu conseguia produzir qualquer dos sons, mas a versão latina parece preferível. Perscrutando a flora do Rio das Velhas com o olhar de um autêntico botânico, e detendo-se na observação de um abandonado pomar, Burton nem por isso, estando envolto em um panorama tão brasileiro, impediria que o seu pensamento divagasse de retorno às velhas paragens da Índia Portuguesa de sua juventude, assimilando a decadência do local por onde passava com as ruínas de um velho tribunal religioso luso em sua capital indiana. Dizia ele que,

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(. . .) abaixo de nós, um pouco para a direita, um maciço de laranjeiras, pitas e bananeiras, mostra o local da antiga Contagem das Abóboras, agora mais desolada que a Inquisição de Goa. Os sobrados, fazendas e outras edificações de porte nas margens do Rio das Velhas lembravam sempre a Burton, espicaçado pelas similaridades arquitetônicas que encontrava, uma transposição de formas senhoriais de morar e habitar mais próximas de populações maometanas ou hindus, do que propriamente ocidentais e européias. De uma residência particular da Bacia, pertencente a um latifundiário, Burton dizia que, (. . .) defronte dela, numa pequena elevação em campo desolado, ficava a casa grande senhorial, com um curioso pórtico verde, como o de Mtoni, perto da cidade de Zanzibar. Depois, transitando em direção ao Convento das Macaúbas, o capitão inglês nos deixou uma detalhada descrição da distribuição de seus espaços de convívio, contando-nos que (. . .) ligadas e de ambos os lados da igreja ficavam duas alas assobradadas e de taipa caiada, assentadas como o de costume sobre a bela pedra calcária azul. Todas as janelas são avaramente gradeadas e têm gelosias. A referência feita por Burton às gelosias nas janelas remete ao instinto de privacidade muçulmana tão arraigado no Brasil colonial, onde a segregação do sexo feminino, tanto em conventos quanto em lares privados constituía a regra e não a exceção. Ainda durante a sua visita ao recolhimento religioso de Macaúbas, Burton novamente viajou em sentido figurado para a velha cidade de Afonso de Albuquerque, dizendo que lá dentro (. . .) as galerias são compridas, os quartos grandes e arejados lembraram-me, pela rudeza das grandes traves de madeira, um estabelecimento de Goa que descrevi há perto de vinte anos. A política colonial portuguesa amparava-se numa delicada obra de engenharia social em que a mestiçagem cultural lastreava a estabilidade do sistema, inserindo no caso brasileiro elementos da sociabilidade asiática que não passaram desapercebidos a Burton. Ele não deixaria de encantar-se com a cálida acolhida que lhe prodigalizou uma senhora mineira que habitava nas margens do Velhas, a qual orientalmente (. . .) sentou-se sobre as pernas enrodilhadas à beira da cama à moda da Índia, mas sua extrema capacidade de comunicação e o gosto pelo que chamamos palração, substitui a graça da postura. E logo em seguida, malgrado a evidente indianidade do modo de sentar de sua anfitriã, Burton, surpreso pela oportunidade que teve de um contato social com mulher de família, justificou essa exceção dizendo que a (. . .) reserva semi-oriental e portuguesa começa a desfazer-se à medida que penetramos no interior. E se assim se comportavam as pessoas do sexo feminino em sua vida íntima, também os machos brasileiros da beira do Velhas, toscos proprietários de terras das barrancas do rio, iniciavam o seu dia de trabalho com um ritual observável em toda a região do Oriente Médio Islâmico pois, segundo Burton, (. . .) a vida do fazendeiro é fácil de contar-se. Levanta-se de madrugada. O seu escravo-aio lhe traz o café e um jarro de sólida prata. Esse costume é ainda conservado

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na Turquia, Egito e Pérsia. No Rio das Velhas o metal é preferível a qualquer outro material, pois os negros quebram tudo que pegam. E se a vida dos brasileiros da elite era assim dominada por uma liturgia social de matiz asiático, também a classe popular não estaria infensa aos orientalismos que impregnavam o dia-a-dia da América Portuguesa. Referindo-se à tripulação do barco em que navegava no Rio das Velhas, Burton, observando o gosto que seus marujos tinham pela música e instrumentos musicais, disse que (. . .) gostam também da bandurra, ou pequena viola, espécie de guitarra de cordas metálicas e do marimbau, harpa judia (“jew’s harp”) ou antes “jaw’s harp”. O nome é visivelmente português de Angola. Tenha-se em vista, entrementes, que se o berimbau é angolano e portanto africano, o explorador britânico acuradamente empresta àquele instrumento uma filiação judia e, assim, semita como os árabes. Está pago aí, desta forma, o tributo prestado pelo berimbau ao asiatismo da vida brasileira. A vida econômica brasileira, na região do Rio das Velhas, também foi surpreendida por Burton como estando permeada por variegados traços do Oriente. Enquanto navegava de Santa Luzia à Jaguara, o inglês avistou a fazenda da Carreira Comprida, da família Fonseca, a qual produzia provisões e “restilo”, como era chamada uma aguardente de alto teor alcoólico. O nosso aventureiro, fixando o seu olhar na maquinaria em movimento, observou que (. . .) o engenho fica numa elevação junto ao rio, com a face para o sudeste. Estava funcionando quando por lá passamos, e a música do maquinismo trouxe-me à lembrança agradáveis recordações de certas rodas-d’água no Sindh, Egito e Arábia. Nessas terras do futuro qualquer lembrança do passado é um dom inesperado. Mas foi durante a sua passagem pelos territórios da bacia do Velhas, situados no entorno do antigo Distrito Diamantino, que Burton mais se fixou na observação do caráter marcadamente indiano que orientou não só a descoberta como também a exploração dos diamantes no Brasil. Aludindo ao reconhecimento das primeiras pedrinhas diamantíferas nas proximidades do Arraial do Tijuco, ele reproduziu a tradição local dominante que dizia não haverem sido os diamantes inicialmente reconhecidos como tais; era como se eles fossem apenas pequenos cacos de vidro branco, que só serviriam como contas para jogo. Porém, ainda mais significativo, Burton sublinha o fato de que foram portugueses dos territórios ultramarinos indianos que desfizeram o equívoco, repondo os diamantes em seu devido lugar. Um desses lusos se chamaria Bernardino da Fonseca Lobo, sobre quem nos diz Burton, (. . .) há uma tradição local de que este último era um frade que havia estado na Índia e que, cerca de 1727, vendo as curiosas pedras brilhantes que usavam como fichas os jogadores de gamão, mineradores de ouro do Jequitinhonha, fez uma coleção e enviou-as a Portugal. Outros atribuem a descoberta a um Ouvidor recém-chegado de Goa.

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Já familiarizados com a opulenta região diamantífera indiana de Golconda, os lusitanos de Goa não tiveram nenhuma dificuldade em reconhecer como diamantes, as antes desprezadas pedrinhas brancas com que jogavam gamão os habitantes do Tijuco. O curioso é que, como Richard Burton afirma, muitos portugueses metropolitanos inicialmente duvidaram da descoberta, bem como os seus compatriotas britânicos. Estes últimos se arrimariam na opinião de estudiosos como Jeffries para afirmar que os supostos diamantes brasileiros seriam na verdade indianos. Em vista disso, e lançando mão de um estratagema engenhoso, os colonos brancos de Minas Gerais remetiam os seus diamantes primeiro para a Índia Portuguesa, de onde eram reexportados com lucro para o Ocidente Europeu: Se os portugueses duvidaram da existência de diamante no Brasil, os ingleses fizeram outro tanto. Há uma diferença na gravidade específica entre o nobre Vieille Roche da Índia e a profusão do Novo Mundo. No último século, Jeffries e outros lapidários sustentavam que os diamantes do Brasil eram pedras informes exportadas do Hindustão. Os mineiros inteligentemente viraram a mesa sobre seus antagonistas cientistas enviando suas pedras a Goa, de onde foram exportadas para a Europa como autenticas pedras da Índia Oriental.

“Richard Burton no Rio das Velhas”, 1867.

Mais do que a descrição de uma esperta jogada comercial, o trecho acima transcrito fala-nos muito da íntima relação existente, nos tempos coloniais, entre a América e a Índia Portuguesa. O mundo ultramarino lusitano parecia estar amarrado a vínculos de permanência bastante significativos; quase se poderia dizer que uma mística asiática cimentava a unidade de um Império que, de outra maneira, não poderia ser conservado por uma potência européia bastante debilitada demográfica, econômica e politicamente. Não seria talvez ousado afirmar-se que, solidariamente, o Brasil e a Índia se autogeriam; um e outro território constituindo um mesmo complexo cultural, o qual acabaria por compartilhar técnicas de aproveitamento econômico no tocante, por exemplo, ao sistema de lavagem dos diamantes, que Burton bem lembrou que os mineiros da Bacia do Rio das Velhas adotaram dos nativos do Hindustão. A identificação dos melhores diamantes requeria uma visão aguda de seus lavadores, ou seja, olhos bem descansados. É por isso que Burton afirma que, no Brasil como na Índia, (. . .) após vinte e cinco anos poucos olhos merecem confiança e as crianças são sempre os melhores lavadores. Vez por outra, uma pequena diferença de método pode ser percebida entre brasileiros e indianos; a maneira de servos e escravos surrupiarem diamantes para si não é a mesma para ambos os países. Burton nos recorda que é durante a lavagem (. . .) que ocorrem a maior parte dos roubos. Poucos engolem diamantes no Brasil, não por considerarem-no venenoso como os indianos, mas pela dificuldade de o fazerem sem serem percebidos. Na Índia, o mineiro esconde-o dentro da boca, ou enfia-o no canto do olho. De doze a quinze fiscais são necessários para um grupo de cinqüenta homens de dedo leve.

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A infância mineira ribeirinha, a criançada que habitava as barrancas do Rio das Velhas, são alvo do olhar carinhoso do navegante. É ele quem nos diz que, se do ponto de vista de suas ocupações econômicas aquelas crianças se orientam por métodos indianos, como no caso da lavagem dos diamantes, a sua educação formal obedece a toda uma pedagogia de raiz maometana. Quando esteve na Barra do Guaicuí, Burton se deu conta de que no educandário local empregava-se o método de ensino baseado na repetição musicada das palavras do professor, algo que ele já havia observado nas escolas corânicas (onde se estudava o Alcorão, livro sagrado do islamismo), e que no Brasil se perpetuaria na tradição das sabatinas cantadas. Burton é ambíguo na apreciação de tal sistema; em algum momento ele é crítico, dizendo que ao se passar pelas proximidades das salas de aula (. . .) ouve-se um concerto infernal e monótono, uma espécie de canto descompassado e confuso, composto de gritos de uma modulação especial. Grita o mestre, grita o discípulo, gritam os monitores, todos gritam e finalmente ninguém aprende. Em outras ocasiões, porém, rendendo-se ao fascínio que a cultura árabe sempre exerceu sobre ele, Burton enxerga com bons olhos a herança mourisca na educação brasileira. Deixando-se conduzir pelo delegado da Barra do Guaicuí ao estabelecimento de ensino do lugar, ele agora diria que (. . .) nosso amigo levou-nos à escola da vila, que poderia ser facilmente localizada pelo barulho. Os brasileiros têm descrito com espírito o sistema a viva voce, tomado dos árabes. Não deve ser porém condenado precipitadamente: ajuda a formar a pronúncia, fixa o assunto na memória e acostuma a abstração do pensamento. Pulsante cadinho de raças, o Império Colonial Português configurava-se, ao olhar de Burton, como sendo um todo orgânico em que os seus territórios europeu, americano e asiático compartilhavam de herança cultural comum, que seria européia na forma, porém prenhe de conteúdos islâmicos e hinduístas no seu interior. Aqui em Pindorama, o testemunho disso é nítido. A viril inspiração do Islã poligâmico criaria a prole mestiça que seria o sustentáculo do empreendimento colonial; as cores, os sons e cheiros da Índia permeariam a moldura européia de nossa civilização tropical, emprestando-lhe ainda com a sua mística o sentido maior, mesmo espiritual, da fundação do próprio Brasil. Possivelmente, seria em busca desse conhecimento arcano que Burton empreenderia a sua navegação pelo Rio das Velhas, mais do que de uma procura de um modelo colonial para o ultramar britânico. Como disse uma vez Edward Rice, (. . .) Burton passou a idade adulta numa busca incessante da sabedoria secreta que dava a ampla denominação de “gnose”, na esperança de que lhe permitisse perceber a própria fonte da existência e o sentido de sua presença na terra. De alguma maneira, aqui e ali, Burton nos dá indícios de que a região da bacia do Rio das Velhas poderia se constituir no porto de

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destino daquela busca referida pelo seu biógrafo. Extasiado com as suas águas, o viajante inglês freqüentemente as envolvia em uma aura lendária; quando seu barco passou pelas proximidades da Lagoa Santa, ele disse que: Em épocas remotas o povo fez dela um poço de Batesda, e o Dr. Cialli, em 1749, verificou que as águas tinham também propriedades medicinais. A história narrada por Henderson acerca de uma película prateada cobrindo inteiramente a água é absolutamente desconhecida. Todos, porém, conservam a tradição de que “era uma vez” uma mulher que aparecia sobre as águas atrás da qual uma cruz de prata surgia do fundo das águas. Muita gente, sem dúvida em lamentável estado de nervos, remava furiosamente para pegar e tocar o precioso metal e era arrastada por um misterioso sorvedouro quando, como dizem os árabes, passavam, sem perda de um minuto, da água para o fogo. Burton, beduíno de alma, e remando no Velhas, das águas deste rio teria visto emergir o fogo de sua própria Iluminação.

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Iconografia

Bibliografia

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Abstract

Richard Burton on the Velhas River The aim of this study is to investigate, in a concise manner, some moments of the itinerary explored by Richard Burton during his trip across the Velhas River. In this approach, priority will be given to the connection established by Burton between his experiences while a young officer in the Portuguese India, and his mature look, twenty years afterwards, over his Asian reminiscences observed in the course of his canoe trip to the Brazilian inland in 1867. From this investigation, a constructive parallel emerges between the British and Lusitanian colonial processes in the tropics during the XIX century.


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Professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais e Curador da coleção de paleontologia do Museu de Ciências da Pontifícia

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5 Lund, o coletor do passado Cรกstor Cartelle 1


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Peter Wilhem Lund, dinamarquês, chegou ao Brasil em 1826 financiado pelo governo de seu país, para trabalhar em pesquisa botânica. Três anos depois voltou à Europa e em 1833 regressou definitivamente ao Brasil para continuar o trabalho que já realizara anteriormente. Nesse mesmo ano, juntamente com um botânico alemão, Ridel, iniciou uma longa e arriscada viagem de pesquisa: partindo de São Paulo iriam até Goiás realizando levantamentos e estudos a respeito da flora do sertão. Após um ano, quando já estavam no Estado de Goiás, doenças e cansaço interromperam a viagem o que fez com que entrassem em Minas Gerais, dirigindo-se a Paracatu. A fim de regressar ao distante Rio de Janeiro, a martirizada expedição atravessou o São Francisco e prosseguiu ao longo do percurso do Rio das Velhas, caminho natural para atingirem Ouro Preto. Desde lá a viagem prosseguiria com a comodidade da Estrada Real. Foi por acaso que Lund encontrou em Curvelo um compatriota, Peter Claussen, ficando hospedado na fazenda do mesmo. Claussen mostrou-lhe, então, uma série de ossos fósseis coletados em diversas cavernas das numerosas que havia na região, os quais vendia para alguns museus da Europa. Iniciavam-se, desta maneira casual, três ciências até então desconhecidas na América: a paleontologia, a arqueologia e a espeleologia. Todas elas relacionadas com as grutas que, em grande número, espalham-se por diversos municípios de Minas Gerais, especialmente os situados à margem esquerda do Rio das Velhas. Lund tivera contato durante sua estada na Europa com uma nova ciência, a paleontologia, que estuda a vida do passado por meio de fósseis. Ao perceber a novidade que estava escondida à beira do Rio das Velhas, o naturalista dinamarquês foi intuitivo e radical: mudou de especialidade, abandonando o trabalho de pesquisa botânica, acompanhou Ridel até Ouro Preto, de onde este seguiu para o Rio de Janeiro, e regressou à bacia do Rio das Velhas para realizar sua primeira escavação em uma gruta. Ao longo de dez anos acabaria explorando mais de duzentas e cinqüenta, sempre no entorno do Rio das Velhas, em territórios dos atuais municípios de Vespasiano, Pedro Leopoldo, Matozinhos, Confins, Prudente de Morais, Cordisburgo e Lagoa Santa, cidade que escolheu para residir e onde viveu até sua morte em 1880.

Lapa de Cerca Grande, Matozinhos (MG). Fotografia: Miguel Aun.

A primeira escavação, na mágica Gruta de Maquiné, ocorreu em 1835. Ela situa-se no município de Cordisburgo e ficou eternizada nos escritos de um filho da terra, o genial e inimitável Guimarães Rosa. Lund narrou a nova experiência redigindo longo trabalho no qual já citava as três ciências das quais, na América, deve ser considerado como o pioneiro.

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Cerca Grande, Matozinhos, MG. Gravura de P.A. Brandt. Reprodução fotográfica: Miguel Aun.

Gruta da região de Lagoa Santa. Fotografia: Miguel Aun.

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Assinalou, nesse trabalho, que a gruta encontra-se à beira de um regato chamado Córrego do Cuba, que desemboca no Ribeirão do Onça o qual, por sua vez, é afluente do Rio das Velhas. No amplo trabalho interpreta que o Córrego do Cuba, num distante passado, teria escavado a rocha calcária compacta formando a gruta. Descreveu com precisão os magníficos salões e formações (espeleotemas) que neles encontrou e chega a confessar “que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte”. Chegou a denominar um dos salões, admirado pela beleza que presenciava, de Castelo das Fadas. Além de descrever o entorno da Lapa e o calcário de que foi formada, calculou a sua localização e altitude, fez observações relacionadas com a atividade da água na caverna, a respeito da umidade, da conformação dos solos, da orientação dos salões, forneceu medidas e, inclusive, realizou o desenho de um mapa. Foi o primeiro registro topográfico de uma caverna na América. O trabalho a respeito de Maquiné pode ser considerado como a primeira publicação sobre a espeleologia americana. Ainda nesse seu primeiro trabalho da nova fase de pesquisador encontra-se, também, a sua primeira observação arqueológica ao indicar que achou no salão de entrada na gruta um objeto lítico “trabalhado com arte, o que prova que a entrada da caverna foi visitada por habitantes selvagens”. Posteriormente, faria registros de pinturas

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Vista de Lagoa Santa, circa 1865.

rupestres (uma figura publicada por ele seria a primeira do gênero) e descreveria ossadas humanas. Voltaremos a este ponto mais adiante.

Desenho de E. Warning.

O paleontólogo Lund está especialmente presente nessa publicação a respeito de Maquiné. Além de identificar e assinalar a localização das peças fósseis encontradas, levantou hipóteses quanto aos fenômenos de fossilização e tentou responder por que se encontravam as peças fósseis no interior da caverna. Merecem registro as pitorescas hipóteses e arrazoados a este respeito, assim como a identificação das primeiras espécies encontradas por ele. Lund acreditava que Deus criara cada ser vivo e que em tempos remotos ocorrera, conforme a narrativa da Bíblia, o dilúvio. Por esta razão, partiu do pressuposto que as peças fósseis de mamíferos que coletara na sua primeira escavação foram introduzidas no mais profundo da Gruta de Maquiné pelo dilúvio, que teria sido universal. O vale, a planície, tudo fora inundado à frente da gruta que, também ela, teria sido invadida pelas águas. Lund concluiu, todavia, que os cadáveres dos animais cujos ossos encontrara não poderiam ter sido introduzidos na gruta como resultado dessa inundação porque a entrada estaria inteiramente coberta pelas águas. A hipótese de que feras, como onças, tigres-dente-de-sabre ou cães selvagens levassem para o interior da gruta suas vítimas para lá devorá-las, como acontecera em algumas cavernas da Europa nas quais se encontraram os restos carregados por ursos, tampouco era razoável,

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porque nenhuma peça das que Lund recuperou tinha qualquer marca na superfície que pudesse ser atribuída a dentes de feras. Lund imaginou uma solução criativa. Os animais da região, cujos ossos encontrara no interior da gruta como fósseis, ao perceberem que a inundação ia tudo ocupando refugiaram-se, aguardando a bonança, no salão de entrada da gruta. Como a enchente não se deteve, todos os que estavam acolhidos nesse local foram arrastados pela subida das águas para os salões mais internos onde morreram afogados. Não foi isto o que aconteceu porque um conjunto de animais diferentes não ficariam, feito viajantes na venda, aguardando a estiagem. Este modelo “diluviano” seria, durante muito tempo, usado por Lund para explicar os achados que, posteriormente, realizou em outras grutas. Nelas percebia, além dos ossos fósseis, sedimentos, paredes e chão freqüentemente com cobertura calcítica. Tudo isso era como que evidências da enchente catastrófica ocorrida no passado: o dilúvio universal. Mas como explicar, então, a presença de ossadas no interior das mais de sessenta grutas nas quais Lund e sua equipe as resgataram ao longo dos dez anos que dedicou à pesquisa paleontológica? Mamíferos de pequeno porte tais como alguns roedores e morcegos podem usar as grutas como locais de moradia. Ao morrerem, seus restos poderão preservar-se no interior das mesmas. Há grutas nas quais moram corujas. Após efetuarem suas caçadas elas regressam à sua vivenda onde regurgitam as partes duras das suas vítimas que não digerem. Lund coletou numerosos espécimes que tiveram essa origem. Numa gruta de uma fazenda chamada Escrivania chegou a coletar um barril desses pequenos ossos regurgitados por corujas, chegando a calcular o número de indivíduos vomitados e deduzir o tempo durante o qual as corujas estiveram depositando aquele material no interior da gruta. Alguns animais poderiam entrar nas grutas e perder-se no seu interior. Mas esse acontecimento seria muito raro. Outros que habitualmente ocupassem as entradas, como alguns carnívoros, poderiam morrer nesses locais de moradia e ser encontrados fossilizados, mas não nas profundezas das grutas, como aconteceu com os achados realizados em Maquiné e na maioria das outras exploradas por Lund que não resultaram estéreis. Para o fato de se encontrarem ossadas no interior das grutas existe uma explicação diferente da fornecida por Lund. Há onze mil anos, no final do Pleistoceno, houve um aumento do frio e as chuvas ter-se-iam concentrado num período de tempo curto em regiões do Brasil intertropical. Córregos e rios aumentavam seus volumes de

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Feto fossilizado da pequena preguiça terrícula Nothrotherium maquinense. A escápula, em primeiro plano, à direita, tem 4 cm de comprimento. Fotografia: Miguel Aun. Coleção IGC.

água habituais em certos períodos. Geralmente, animais doentes, velhos, ou com crias, ficam próximos das águas e, quando acontecem enchentes, podem ser arrastados pela correnteza. Estas, invadindo as grutas e atravessando-as, teriam introduzido nelas os cadáveres desses animais os quais poderiam ficar presos nos labirintos ou estreitamentos que, ao longo delas, não raro ocorrem. De fato, quando se encontram esses fósseis, percebem-se indícios da presença das águas nos sedimentos carreados para o interior, no chão com crostas de calcário, nos níveis atingidos pelas águas que estão registrados nos paredões, nas diversas camadas do solo, nas próprias peças fossilizadas recobertas por sedimentos ou camadas calcárias, assim como, também, no material transportado para o interior das mesmas: pedras, areia, argila, galhos. . . Certamente, no passado remoto pesquisado por Lund não ocorreu um dilúvio que causou morte e destruição. Houve sim, múltiplos “dilúvios” que ocorriam na estação das chuvas os quais acidental-

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mente transportaram animais nos rios crescidos que, nessas condições, os carregavam gruta adentro. Lund, em Maquiné, resgatou e conseguiu identificar seus primeiros fósseis. Aos poucos, com a prática, iria determinando com mais exatidão as ossadas que resgatava. Trabalho difícil de realizar porque, a paleontologia era uma ciência que estava no seu início, havia poucas publicações e elas dificilmente chegavam até o isolamento de Lagoa Santa. Ao todo conseguiria coletar, durante os dez anos em que trabalhou nas grutas da bacia do Rio das Velhas, quase treze mil peças! Na primeira escavação reconheceu ossos da menor das preguiças extintas que já existiram no Brasil (Nothrotherium maquinense), de um pequeno cervídeo (Mazama americana), ossos de um pássaro e de paca (Agouti paca). Além dessas, havia peças de diversos morcegos e de roedores (por exemplo, o preá Cavia aperea), que faziam parte das bolotas regurgitadas por corujas, assim como de tapeti (Silvilagus brasiliensis), o coelho silvestre americano. A respeito da primeira espécie Lund escreveu: “denomino a espécie maquiense para lembrar o lugar aonde seus restos foram descobertos”. O sábio dinamarquês acabou fixando sua residência na estratégica Lagoa Santa, em cujo entorno localizavam-se numerosas grutas, as quais guardavam o retrato de um passado que tinha, pelo menos, onze mil anos. Na época da seca ocorriam os trabalhos de escavação enquanto que nos meses chuvosos Lund, pacientemente, preparava o material coletado, o qual ficava guardado num galpão nos fundos da sua casa de onde avistava-se a lagoa que dá nome à cidade. Não teria sido fácil o trabalho realizado à luz de fachos e candeeiros fumegantes no interior das lapas, nem o transporte de material feito por tropas que se locomoviam em região sem caminhos.

Crânio e mandíbula do urso Arctotherium brasiliense. Comprimento do crânio: 23 cm. Fotografia: Miguel Aun. Crânio, coleção MHN. Mandíbula, coleção IGC.

Páginas seguintes: Ao alto, festa religiosa em Lagoa Santa (MG). Desenho de P. A. Brandt. Originais no MZ.


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Crânio e mandíbula de indivíduo do sexo masculino do Homem de Lagoa Santa, encontrado em Confins (MG). Altura: 16 cm. Fotografia: Miguel Aun. Coleção IGC.

Após a preparação, era realizado o estudo das peças e a redação de Memórias, que foram publicadas na Dinamarca e na França. Lund acabaria falecendo na cidade que nunca abandonou, a não ser para realizar suas pesquisas em seu entorno. Consta que a população, em peso, participou do enterro do mais respeitado morador. Lund, além de ter alforriado vários escravos, dava aulas graciosamente e fundou uma banda de música que até hoje está em atividade. Numa gruta localizada às portas da sua cidade adotiva realizou um grande achado: pela primeira vez encontrava o homem fóssil americano. O local deveria ser hoje um santuário mas, infelizmente, da Lapa Vermelha preservam-se algumas raras fotografias e dois desenhos feitos pelo seu desenhista e secretário, o norueguês Andréas Brandt. A Lapa, que se localizava à beira da principal estrada de acesso à cidade, foi destruída por indústria que fabrica cimento. As descobertas foram se sucedendo ao longo da década que durou a pesquisa. Em cada artigo enviado para publicação à Europa, Lund fornecia novidades. Podemos citar uma série de espécies extintas, até então desconhecidas, como eram diversas preguiças terrícolas (além

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de Nothrotherium maquinense, Eremotherium laurillardi, Catonyx cuvieri e Ocnotherium giganteum), o primeiro fóssil de macaco (Protopithecus brasiliensis), um tatu gigante (Pampatherium humboldti), um gliptodonte — semelhante a tatus mas com carapaça e cauda rígidas — (Hoplophorus euphracthus), mastodontes com o porte e o tamanho de um elefante (Stegomastodon waringi), cães ferozes, excelentes caçadores (Protocyon troglodites), cavalos (Equus (Amerhippus) neogeus e Hippidion principale), capivaras gigantes (Neochoerus sulcidens), um urso (Arctotherium brasiliense) e o fantástico tigre-dentes-de-sabre (Smilodon populator), dentre outras. No galpão da casa do sábio em Lagoa Santa iam sendo depositados restos de animais que ninguém suspeitaria que fizessem parte de um Brasil antigo. Como os que citei. Todos eles, exceto o mastodonte, receberam suas denominações de Lund; e não foram só estes. Também encontrou nas cavernas fósseis de animais que ainda sobrevivem na atualidade como antas, capivaras, tatus, cervos, gambás, porcos-do-mato, carnívoros variados, roedores e morcegos diversos. . . Aos poucos, foi Lund descrevendo um mundo fascinante e rico até então inexplorado. Todo esse tesouro científico fora acumulado, pacientemente, pelas águas que eram recebidas pelo Rio das Velhas. Se Lund fez um retrato de um passado tão magnífico e desconhecido foi porque, indiretamente, o Rio das Velhas e seus afluentes foram os pacientes guardadores da memória de um passado que depositavam nas entranhas escuras das grutas. Merece destaque o cachorro-do-mato-vinagre (Speothus venaticus) espécie descoberta por Lund. Numa gruta do maravilhoso maciço de Cerca Grande, Lund encontrara o crânio de um grande canídeo que denominou Speothus pacivorus. O nome significa “cachorro das cavernas devorador de pacas”. Tal denominação ocorreu-lhe porque na mesma gruta havia numerosas ossadas desse roedor e porque a dentição e estrutura do crânio indicavam tratar-se de um eficiente carnívoro.

Crânio e mandíbula do cão Protocyon troglodytes. Comprimento do crânio: 21 cm. Fotografia: Miguel Aun. Coleção IGC.

Por outra parte, Lund escreveu numa das suas Memórias: “alguns caçadores tinham-me falado de um animal que se encontra às vezes nas matas, semelhante a um cão. . . É encontrado em pequenos bandos. . . Depois de ter prometido durante muitos anos um prêmio elevado à pessoa que me trouxesse um destes animais, tive o prazer de ver satisfeito meu desejo antigo. . . Alguns rapazes. . . ouviram. . . latidos. . . e. . . depararam com um bando de animais desconhecidos. . . Com auxilio de cacetes conseguiram derrubar dois deles que me trouxeram. Um estava muito machucado e morto; o outro ainda vivia. . . Reconheci imediatamente que se tratava de uma espécie nova, ainda não descrita.” Lund não percebeu que a espécie pertencia ao mesmo gênero do cão que encontrara na Cerca Grande. Pela primeira vez um carnívoro

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vivo (Speothos venaticus, que significa “cachorro das cavernas caçador”) foi atribuído a um gênero que primeiramente foi descoberto como fóssil. O cachorro-do-mato-vinagre é muito raro. Em Minas Gerais o achado de Lund, ocorrido por volta de 1840, foi a última vez em que se deu o registro da espécie. Em 1843, Lund escreveu longa carta a uma sociedade científica na qual dava conta de uma das suas principais (se não a principal) descobertas realizadas na Lagoa do Sumidouro, localizada no atual município de Pedro Leopoldo. O Córrego Samambaia, que enche a lagoa, secara e ela ficou reduzida a uma poça central. Toda a superfície do fundo da lagoa, de lamaçal escuro, tornara-se chão duro rachado pelo sol a pino. Lund teve a oportunidade que esperava: poderia explorar o túnel de escoamento, que se tornara galeria seca de gruta. Quando penetrou no sumidouro havia, ainda, uma pequena lagoa interna que mandou esvaziar. Os resultados foram excepcionais. Alguns dos animais que usavam o córrego e a lagoa e que mortos foram arrastados até o sumidouro ficaram presos nas irregularidades do túnel e foram sepultados pelos sedimentos transportados pelas águas que escoavam. Ação lenta e constante a realizada pelas águas. Tempo houve para que isso pudesse acontecer. A descoberta de Lund foi, além de importante, tão surpreendente que poucos acreditaram nela: passou como que despercebida. O túnel que esvaziava a lagoa encerrava um fato à época inacreditável, ou absolutamente revolucionário. Numerosos esqueletos humanos e fósseis de animais extintos e atuais estavam lado a lado, indicando que os três conjuntos conviveram. Hoje sabemos que isso aconteceu há pouco mais de onze mil anos. Na Europa, onde residia o saber, ninguém deu crédito ao sábio de Lagoa Santa que afirmava ter convivido o homem com a fauna extinta. Ainda faltavam quinze anos para que Darwin publicasse, em 1859, seu célebre livro a respeito da Teoria da Evolução. A explicação vigente à época e seguida por Lund para explicar as faunas de animais diferentes que ocorriam ao longo dos tempos era a de Cuvier, célebre anatomista e paleontólogo, diretor do Museu de História Natural de Paris. Acreditava que ocorreram, ao longo da História, catástrofes sucessivas que eliminavam a vida na face da Terra. Deus criava, posteriormente, novas formas de vida que substituíam as que se extinguiram. O registro de tipos de vida sucessivos percebia-se nas camadas sedimentares que guardavam fósseis diferentes. A última catástrofe ocorrera com o dilúvio. Pouco antes, o homem fora criado. Sobreviveram à catástrofe ocupantes privilegiados da Arca de Noé, o homem e os animais modernos que foram cria-

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dos no mesmo tempo que Adão e Eva, sendo que alguns dos quais eram citados como moradores do Paraíso. No esquema catastrofista de Cuvier, o homem e os animais atuais e extintos não poderiam estar associados no mesmo sedimento. Mas, como cientista, e mesmo sendo um fervoroso luterano que acreditava nos ditados bíblicos ao pé da letra, Lund não podia negar a evidência que ele descobrira. A teoria estava equivocada. Na Europa a sua afirmativa a respeito da coexistência do homem com animais extintos era tão nova que não foi levada em consideração. Esse local, a Lagoa do Sumidouro, deveria ter um tratamento especial. Ela foi palco de uma descoberta de grande importância histórica e científica. O estado atual da lagoa, do paredão em cuja base escoa a água e do entorno é lamentável. A lâmina de água foi cortada por um aterro, para se fazer uma estrada, o entorno recebe detritos em grande quantidade e o paredão é alvo constante de pichações que conseguiram estragar uma série de pinturas que testemunham o homem primitivo. A Lagoa do Sumidouro é um monumento ao descaso e ao abandono de um patrimônio cultural. Ainda bem que está protegida pela lei. . . Pelo escrito anteriormente, deduz-se que o Rio das Velhas foi a causa principal da existência de fósseis nas grutas da região de Lagoa Santa. Sem a ação das águas haveria nas grutas, no máximo, pequenos mamíferos troglófilos (que podem refugiar-se ou habitar em grutas como os morcegos e roedores), os depositados por corujas e os raros que penetrassem acidentalmente nelas. Mas nunca na quantidade que Lund encontrou. Após dez anos de pesquisas, o notável sábio abandonou seu trabalho de paleontólogo. Dificuldades econômicas, revoluções do período colonial, que tornaram perigoso o trabalho de campo, os achados repetitivos que pouca novidade lhe traziam, o medo do erro, uma vez que era difícil receber publicações novas na solidão de Lagoa Santa, as novas tendências da Biologia e as descobertas que fizera na Lagoa do Sumidouro, que esvaziaram seu paradigma científico, fizeram com que optasse por uma aposentadoria paleontológica. Preparou sua coleção e enviou-a para sua distante pátria onde está depositada no Museu de Zoologia da Universidade de Copenhague. Por meio do material fóssil, coletado por ele, ou por outros pesquisadores, foram determinadas cerca de cento e trinta espécies que ainda sobrevivem e trinta extintas no vale do Rio das Velhas, o qual, por séculos, foi depositando no interior de numerosas grutas excepcional amostragem da vida do passado que Lund recolheu. Ele foi, na verdade, o cientista que resgatou o que as águas arquivaram. Mais uma que devemos ao Rio das Velhas e a seus afluentes.

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Bibliografia

CARTELLE, Cástor. Há doze mil anos: a grande extinção. In: MACHADO, A. B. M. et al. (Ed.). Livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção da fauna de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 1998. p. 31-35. ______. Tempo passado: mamíferos do Pleistoceno em Minas Gerais. 2. ed. [Belo Horizonte]: Acesita, 1994. 131 p. ______, LUND, Peter W. A naturalist of several sciences. Lundiana, v. 3, n. 2, p. 8385, 2002. COUTO, C. de Paula. Memórias da paleontologia brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950. 589 p.

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Abstract

Lund, the collector of the past Facts about the life and findings of the Danish naturalist Peter Wilhem Lund are shown here. Lund, considered the "father of Brazilian paleontology", developed his activities mostly around the city of Lagoa Santa (Minas Gerais), where he fixed his residence from 1835 until his death (1880). During the first ten years of his stay, he headed many excavations in limestone caves in that region, many of them connected to the Velhas River basin. He published memoirs with the results of his studies about the mammal fossils he collected, determining a large number of species, some even extinct. Lund is also credited for discovering the first human fossils of the Americas which, like the fauna fossils, dated from the end of the Pleistocene Era (around 12 thousand years ago).


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Professor do Departamento de Sociologia e responsável pelo Setor de Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais e pela Missão Arqueológica Franco-Brasileira de Minas Gerais

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6 A Pré-História da região e sua importância para a Arqueologia americana André Prous 1


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Histórico das pesquisas na bacia do Rio das Velhas

A bacia do Rio das Velhas tornou-se conhecida pelos então chamados Antiquários (aqueles que estudavam vestígios anteriores das antigas culturas) da Europa, já em meados do século XIX, pois foi na gruta do Sumidouro, perto de Lagoa Santa, que o naturalista P. W. Lund encontrou ossadas humanas misturadas a ossos de animais extintos no Pleistoceno. O pesquisador dinamarquês foi o primeiro a levantar a hipótese de que, nas Américas, o homem teria sido contemporâneo da fauna “antediluviana” como se dizia então. Por isto, desde o início do século XX, as cavernas calcárias da bacia do Rio das Velhas passaram a ser periodicamente estudadas por expedições científicas que buscavam demonstrar a hipótese de Lund: missões do Museu Nacional em 1929 e 1937, americano-brasileira em 1954 ⁄ 55, franco-brasileira entre 1971 e 1977, Universidade de São Paulo, desde 2001, além da atuação dos arqueólogos e paleontólogos amadores reunidos na Academia de Ciências de Minas Gerais em meados do século XX. Desde os anos 1970, demonstrou-se a grande antigüidade da ocupação humana na região (os dois mais antigos esqueletos datados das Américas foram achados na Lapa Vermelha IV — a famosa “Luzia” — e na Lapa Mortuária de Confins) e a sua efetiva coexistência com preguiças gigantes e outros grandes mamíferos hoje desaparecidos. Pela primeira vez no Brasil foi possível obter datações para desenhos rupestres (na Lapa Vermelha IV). A partir de 1975, o Setor de Arqueologia da UFMG, criado por um membro da missão francobrasileira de Lagoa Santa, deu continuidade às pesquisas na região, assim como em outras partes do estado, até então desconhecidas. Em 1982, foi encontrado um importante sítio a céu aberto, perto da confluência do Rio das Velhas com o Rio São Francisco, na cidade de Buritizeiro. Embora esse sítio não tenha sido ainda estudado sistematicamente, as primeiras sondagens mostraram que comporta um cemitério pré-histórico datado em pouco mais de 6.000 anos e vestígios de intensa ocupação, com muitos restos de instrumentos de pedra e de alimentação; parece tratar-se de uma estação de pesca que aproveitava as correntezas do grande rio. No entanto, foi no sopé da Serra do Cipó, ao longo dos rios Cipó, Paraúna e Parauninha, afluentes do Rio das Velhas, que as pesquisas da UFMG concentraram-se no final dos anos 1970 e no início dos 1980, conseguindo sucessos notáveis.

Arqueólogos da Missão Francesa escavando na Lapa Vermelha de Pedro Leopoldo (região arqueológica dita “de Lagoa Santa”), em 1974.

Arqueologia da região do Rio Cipó

Já em 1893, o engenheiro J. Reis mencionava a existência de sítios com arte rupestre na Serra do Cipó . Quase 60 anos depois, o den-

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tista J. Penna localizou a Lapa do Gentio e o então acadêmico M. Rubinger (1956) visitava um sítio próximo a Conceição do Mato Dentro. Entretanto, nenhum trabalho sistemático havia sido realizado até os anos de 1970; pelo contrário, “amadores” destruíram as ricas camadas sedimentares dos abrigos de Sucupira, do Gentio, e da Lapinha de Jaboticatubas para enriquecer suas coleções. Desta forma, não se conhecia nada de concreto sobre os primeiros habitantes da região. Em 1974, A. Laming-Emperaire, então chefe da Missão Arqueológica Francesa, decidiu estender o campo de pesquisa ao norte da região de Lagoa Santa, cujos sítios mais ricos já haviam sido destruídos pelo vandalismo, e procurar, na região do Rio Cipó, locais ainda intactos que permitissem escavações. Foi nessa ocasião que fui designado para realizar as primeiras prospecções sistemáticas ao longo do sopé da serra. Iniciamos em 1976 as escavações e o levantamento das pinturas no Grande Abrigo de Santana do Riacho em colaboração com o recém-criado Setor de Arqueologia da UFMG. As escavações nesse sítio continuaram até 1979, mas foram completadas por outras realizadas em locais vizinhos (particularmente por nossos colaboradores P. Junqueira e I. Malta) e novos levantamentos de arte rupestre até os anos 1990. Desta forma, numerosos pesquisadores receberam sua formação de campo na região e o rico material, coletado em cerca de 30 sítios do Cipó, vem sendo analisado até hoje nos laboratórios da UFMG e de centros de pesquisas no exterior (Inglaterra, Argentina, França e Estados Unidos). Serão apresentadas, sucessivamente, caracterização dos sítios e breve síntese das culturas que se sucederam na região, o resultado das escavações e a arte rupestre da Serra do Cipó.

Os sítios Os sítios até agora conhecidos pertencem a várias categorias, algumas das quais são típicas de uma determinada cultura, enquanto outras são comuns a muitos grupos que ocuparam a região. São os sítios sob abrigos, as ocupações a céu aberto e as habitações subterrâneas.

Esqueleto de criança, Grande Abrigo de Santana do Riacho. Fotografia: Paulo Junqueira.

Os abrigos naturais (chamados “abrigos sob rocha”) são grutas, cavernas ou espaços pouco profundos cobertos apenas por uma marquise e só existem onde há afloramentos rochosos. Nos terrenos calcários, a dissolução dos carbonatos provocou a formação de cavidades profundas (cavernas como Lapinha do Cipó, Morro Vermelho, Lapa do Gentio). Enquanto as galerias e os cantos escuros não foram utilizados pelos homens pré-históricos (não eram “homens das cavernas”, como se imagina!), as entradas — bem iluminadas, arejadas e

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protegidas do intemperismo — foram aproveitadas casualmente por pequenos grupos. Lá ficavam periodicamente acampados, vinham sepultar seus mortos ou realizar outras cerimônias; os paredões serviam também de suporte para pinturas. Mas, ao contrário do que ocorre em Lagoa Santa, o calcário aparece pouco na Serra do Cipó, onde domina o quartzito. Nesse contexto geológico, os abrigos são criados pelos desabamentos periódicos, que formam abrigos pouco profundos, sem galerias. Os maiores (Santana do Riacho, Jaracussu III, Sucupira) foram aproveitados intensivamente do mesmo modo que as entradas de cavernas calcárias, enquanto que os abrigos menores (Cedro Cachoeira), com poucos metros quadrados, eram apenas decorados com desenhos. Muitos dos grandes abrigos encontram-se na proximidade de cursos de água menores e apresentam vários ambientes: patamares em alturas variadas (sítio de Santana); divisões feitas por formações concrecionadas (Sucupira); amplo salão dividido em pequenos espaços por colunas estalagmíticas (Niactor), facilitando uma utilização diferenciada de cada setor, conforme mostraram as escavações. Os grupos pré-históricos que mais utilizaram esses locais são os mais antigos encontrados na região, entre 12.000 e 8.000 anos atrás; as populações mais recentes freqüentaram-nos de maneira menos intensiva até o início da nossa era. Assim, os locais sob abrigo, por serem facilmente reconhecidos na paisagem, são os mais numerosos dos sítios cadastrados. São também os que forneceram a maior quantidade de informações porque, não recebendo água das chuvas, permitiram a preservação de matérias perecíveis como osso e vegetal, normalmente destruídos em outras situações. As populações pré-históricas — tanto os caçadores-coletores quanto os horticultores mais recentes — devem ter ocupado preferencialmente locais a céu aberto à proximidade dos rios e outros pontos de água; mas esses sítios são difíceis de serem localizados, sobretudo numa região ainda pouco explorada arqueologicamente. Assim sendo, encontramos apenas os restos muito erodidos de um pequeno “acampamento”, distante cerca de 1 km do Grande Abrigo de Santana.

Plaina feita em casca de caramujo; região de Lagoa Santa. Fotografia: Ezio Rubbioli.

Nos férteis terraços aluviais que se estendem ao longo do rio principal (o Cipó), há notícias de vestígios de aldeias a céu aberto atribuídas a populações de horticultores mais recentes; mas elas foram geralmente muito perturbadas por trabalhos agrícolas e não foram objeto de trabalhos arqueológicos específicos. Novas pesquisas seriam, portanto, necessárias para caracterizar as ocupações a céu aberto da região.

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Em 1979, F. Lopes de Paula & M. E. Solá encontraram um terceiro tipo de sítio até então desconhecido no Estado de Minas Gerais. São as chamadas casas subterrâneas, covas abertas no chão, com até 3 m de profundidade e 12 m de diâmetro, cujo acesso era facilitado por degraus cavados na terra. Encontram-se na região dos morros, abaixo da escarpa da serra, entre Santana do Riacho e Baldim. Eram provavelmente cobertas por um teto de sapé ou de folhas de palmeira, oferecendo excelente proteção contra os ventos frios do inverno. Não se chegou a estudar esse tipo de habitação de maneira sistemática; portanto, não se sabe se essas estruturas eram habitações permanentes, ou se estavam ligadas a aldeias a céu aberto, sendo ocupadas sazonalmente ou para fins cerimoniais. A última categoria de sítios registrada na região inclui os locais de extração de matérias-primas. Entre eles, a Lapa do Gentio, cujo piso, riquíssimo em pigmentos vermelhos, amarelos e brancos mostrava, quando da nossa primeira visita, em 1974, marcas de exploração, provavelmente pré-históricas. Infelizmente, o turismo selvagem e as explorações atuais para fins econômicos destruíram esses vestígios antes que fossem estudados. Atualmente, as argilas de outro local, a Lapinha do Cipó, são ainda utilizadas pelos camponeses como tinta para caiar as casas.

As culturas As culturas arqueológicas são definidas a partir dos artefatos deixados pelos homens do passado, que chegaram até nós por se conservarem melhor. É como se as culturas históricas fossem caracterizadas sucessivamente, como “fabricantes de objetos de ferro” , “utilizadores do motor a vapor” e “fabricantes de plástico”. Portanto, as escavações mostram que a região foi habitada inicialmente por artesãos da pedra que fabricaram artefatos requintados, utilizando várias técnicas de lascamento, assim como o picoteamento e o polimento das rochas. Seus sucessores preocupavam-se em ter instrumentos de pedra lascada eficientes, mas não “bonitos”. Bem mais tarde notamos a presença de ceramistas com potes não decorados (“Tradição Sapucaí”) e outros, com cerâmica decorada (“Tradição Tupi-guarani”).

Instrumentos lascados em cristal de quartzo da Lapa do Carroção (mun. de Pedro Leopoldo, região arqueológica de Lagoa Santa). Fotografia: Ezio Rubbioli.

Paralelamente, o registro gráfico preservado nos paredões dos abrigos registram a sucessão de gerações de pintores responsáveis pelo que se convencionou chamar de “arte rupestre”. Os mais antigos desenhavam sobretudo animais representados em vários estilos, todos pertencentes ao que chamamos “Tradição Planalto”. Mais tarde, a figura humana passa a ser a mais importante (“Tradição Agreste”). Trata-se do mesmo tipo de registro complexo que se notaria num monumento ibérico, onde os visitantes pudessem ver hoje as sucessivas decorações

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deixadas pelos muçulmanos (versículo do Alcorão) e pelos cristãos (crucifixo, santos, passos, dos períodos gótico e renascentista) numa antiga mesquita transformada em igreja após a reconquista.

Os vestígios da vida quotidiana: o grande abrigo de Santana do Riacho Esse sítio, excepcional pela sua riqueza arqueológica tornou-se um marco internacional quando se discutem as ocupações mais antigas do continente, pois trata-se do mais antigo cemitério conhecido das Américas. O sítio abre-se no sopé quartzítico da Serra do Cipó, onde o contato entre duas séries geológicas provocou desabamentos, formando um espaço abrigado de mais de 100 metros de comprimento. Os escorrimentos de água saturada de sais minerais deixaram o paredão colorido de lilás, amarelo e preto; desta forma, destaca-se de longe do fundo escuro do cerradão e da massa rochosa que o circunda. O espaço protegido aproveitável para moradia nunca ultrapassa 8 metros de largura. Nossas escavações evidenciaram várias ocupações pré-históricas, durante as quais os diversos ambientes foram utilizados para atividades diferenciadas. Na base da estratigrafia (ou seja, nos sedimentos mais antigos) e no meio dos blocos desmoronados (cuja queda provocou a formação do abrigo) encontramos carvões que foram datados em 18.000 anos antes do presente. Não temos, no entanto, certeza se a sua origem é antrópica ou natural (existem fogos devido à queda de raios), pois não havia nenhum vestígio de origem antrópica associado. Outrossim, a presença do Homem no Brasil, em data tão remota, ainda não é comprovada definitivamente. Os mais antigos vestígios inquestionáveis de ocupação do abrigo são datados de 12.960 anos antes do presente. São vestígios de grandes fogueiras que continham algumas lascas de quartzo e grãos de pigmento trabalhado. Infelizmente, logo após essa ocupação, houve uma modificação climática, caracterizada por fortes chuvas que provocaram enxurradas no abrigo, destruindo os vestígios da maior parte dessa primeira ocupação. Apenas sabemos que foram feitas tintas nessa época, mas não obrigatoriamente para pintar o paredão (podem ter colorido tanto o corpo quanto vestimentas, etc.). A partir do período entre 9.700 e 8.000 anos atrás, os vestígios tornam-se numerosos, variados e característicos. Nesse momento, os homens se instalam no meio dos blocos desabados, que a terra

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cobria progressivamente, proporcionando espaços cada vez mais amplos. A população dessa época estabelece seu cemitério no patamar superior, ocupando o abrigo baixo para suas outras atividades. Esse período antigo corresponde à presença, no Brasil central, da chamada “raça de Lagoa Santa”, conhecida desde os trabalhos de Lund na primeira metade do século XIX. Representada por mais de 40 esqueletos no abrigo, foi inicialmente estudada por M. Alvim e S. Souza e, mais tarde, por W. Neves. Muito diferente das populações indígenas mais recentes, era caracterizada por uma estrutura pequena, poucas diferenças entre a estrutura óssea dos homens e a das mulheres, bastante frágil em ambos os sexos. A grande semelhança entre todos os indivíduos, notada não só pela morfologia óssea, mas também por características qualitativas ditas “epigenéticas” (por exemplo, a presença de um buraco no osso do cotovelo) sugere, para Souza, uma forte endogamia. Isto significa que os casamentos se realizavam dentro de uma comunidade pequena, seja porque a densidade populacional era baixa e os contatos entre aldeias limitados em razão da distância, seja em razão das normas culturais proibindo o intercurso sexual com forasteiros. A observação dos maxilares mostra uma erupção inesperadamente tardia dos dentes, enquanto o número de cáries — normalmente ausentes entre populações antigas como essa — sugere uma alimentação muito mais rica em carboidratos que em proteínas (e, portanto, baseada em vegetais). O exame pelos raios-X dos ossos longos mostra que as interrupções de crescimento eram freqüentes durante a adolescência, devidas a doenças ou períodos de má nutrição. Este fato, juntamente com a curva demográfica estabelecida a partir da análise dos sepultamentos, sugere uma população bastante fraca e, talvez, demograficamente em decadência. Os ossos evidenciam também fusões patológicas de vértebras, artroses diversas, fraturas, lesões inflamatórias com periostite e osteomielites graves.

Parte de um painel da Lapa de Sucupira (no sopé da Serra do Cipó), mostrando pinturas de idades diferentes ocupando níveis distintos de descamação. As mais antigas são vestígios de peixe; as mais recentes, bastonetes.

Os “Homens da Lagoa Santa” enterraram seus mortos ao redor de uma grande laje desabada há cerca de 11.000 anos, na plataforma superior do sítio. Os corpos foram depositados inteiros, com os membros fletidos dentro de uma pequena cova; muitos usavam um colar de contas feitas de semente de Scleria sp. Estavam às vezes embrulhados numa rede forrada de entrecasca, cujos restos preservaram-se em várias covas. A fossa era salpicada de pigmento vermelho escuro, quase marrom, particularmente abundante, tratando-se de crianças. Foram encontrados fetos ainda na bacia da mãe e um recém-nascido que, ao ser sepultado, foi deixado no colo de uma adolescente, provavelmente uma jovem morta durante o parto. Acendiase, por vezes, uma fogueira perto da cova, queimando-se nela sementes de palmeiras Licuri e frutos do pequizeiro. Os carvões eram eventualmente utilizados para preencher parte da fossa; os blocos retirados ao se cavar a cova eram amontoados acima do sepultamento, protegendo-o. Alguns instrumentos de pedra e osso encontram-se

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junto aos sepultamentos; podem, no entanto, ser provenientes de ocupação anterior, cujos vestígios foram perturbados ao se cavarem as covas. Fora ou dentro dessas estruturas funerárias encontram-se, ainda na área do cemitério, alguns raspadores de cristal de quartzo. Os vestígios alimentares dessa época incluem sementes de jatobá, de uma convolvulácea não identificada, frutos de pequi e Symplocos sp. Mas sobretudo, cocos de licuri. É possível que muitas outras plantas tenham sido consumidas, porém, por não terem sido carbonizadas, não chegaram até nós. Os ossos de animais encontrados nas escavações do patamar inferior são poucos, não tendo se preservado no sedimento dos setores mais intensamente ocupados. Foi possível verificar ainda a existência de dois gêneros de tatus (Euphractus e Dasypus), cervídeos, aves e peixes pequenos, fragmentos de cascos de tartaruga; um osso de macaco acompanhava uma mulher. Anzol de osso proveniente da Lapa Vermelha IV, região de Lagoa Santa. Fotografia: de Ezio Rubbioli.

Os instrumentos de pedra encontram-se sobretudo nos locais de trabalho situados no patamar inferior. Os homens pré-históricos utilizavam o quartzo, encontrado a menos de 2 km, na encosta da serra, para obter pequenas lascas cortantes, através da técnica de lascamento “sobre bigorna” (para as piores variedades de quartzo) ou da técnica “a mão livre” (para os materiais de melhor qualidade). Parte dessas lascas eram utilizadas imediatamente, sobretudo como facas, e rapidamente descartadas. Outras eram retocadas ainda por percussão, para serem transformadas em furadores ou raspadores (estes utilizados para trabalhar peles e ⁄ ou raspar pigmentos). As análises traceológicas (estudo dos vestígios microscópicos de utilização dos gumes de pedra, que permitem saber o tipo de movimento efetuado com o instrumento e as matérias trabalhadas) foram realizadas por M. Lima. Trabalhava-se também o sílex, na elaboração de instrumentos bastante complexos como peças “foliáceas” e “plano convexas”. Mas essa matéria-prima valiosa (não existe na região e devia, portanto, ser importada) é representada no sítio por poucas peças, sobretudo refugo (pequeno, porém característico) de fabricação dos artefatos. As peças acabadas eram conservadas preciosamente por seus donos e levadas embora, para infelicidade dos arqueólogos que não as acharam no abrigo. Para tarefas mais pesadas e particularmente para trabalhar a madeira precisava-se de instrumentos feitos com matérias mais resistentes. Para tanto, lascavam-se plaquetas de quartzito, transformando-as em raspadeiras; essas plaquetas eram obtidas na serra, um pouco além das jazidas de quartzo. Alguns quilômetros adiante ainda, um afloramento proporcionava rochas básicas, matérias resistentes que eram trabalhadas sucessivamente por lascamento, picoteamento e polimento, transformandose em lâminas de machado e mãos de pilão.

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Além da pedra, os homens dispunham de conchas, fibras, madeiras e ossos para fazer instrumentos, a maioria dos quais, porém, apodreceu. Sobraram algumas pontas de furadores de osso, espátulas polidas feitas com osso da pata de cervídeos, uma fivela de chifre de veado e uma peça quebrada de osso em forma de gancho (talvez um anzol). Restos de trançados primitivos (cordas, rede, tecido) foram achados em várias covas funerárias, assim como um brinquedo de palha. Entre 8.000 e 4.500 ⁄ 5.000 anos atrás, o patamar superior deixa de ser utilizado como cemitério. Não se sabe, portanto, por falta de esqueletos, se os freqüentadores do abrigo ainda pertenciam ou não à “raça de Lagoa Santa”, mas supõe-se que os grupos “mongolizados” (com traços asiáticos marcados, ancestrais diretos dos indígenas atuais) já dominavam o Brasil central. Os blocos desabados do abrigo já estavam completamente recobertos por sedimentos e os ocupantes dispunham de espaços maiores e mais planos para se instalarem em ambos os patamares. A variedade de vestígios disponíveis é menor que a da ocupação anterior e o trabalho do arqueólogo é complicado pela ação dos animais que cavaram tocas, perturbando a estratigrafia nessa época. Assim, não se pode ter certeza, por exemplo, se os grãos de milho, coletados no patamar superior, têm realmente idade de quase 5.000 anos (seriam, neste caso, os mais antigos conhecidos do Brasil) ou se foram enterrados por pequenos animais. Uma curiosidade é o achado, em ninhos de mais de 5.000 anos, de coprólitos de lagartos e roedores, os quais foram analisados no Instituto Oswaldo Cruz. Verificou-se que os répteis comiam, entre outros insetos, isópteros atualmente desconhecidos no Brasil (Nasutitermes sp.). Encontraram-se também ovos de parasitas intestinais (nematodos do gênero Parapharyngodon e Trichuris) . Os ateliês de trabalho da pedra dessa época são bem preservados, incluindo os locais onde fabricavam pontas de projétil em cristal de quartzo (com pedúnculos e aletas) e machados confeccionados com hematita compacta — um mineral de ferro que tinha de ser trazido desde algumas dezenas de quilômetros do abrigo.

Adorno de pedra (tembetá de quartzo Tupiguarani), Lapa do Sumidouro (região arqueológica de Lagoa Santa). Fotografia: Ezio Rubbioli.

O período entre 2.800 e 4.500 anos atrás fornece muitas informações. Algumas pessoas foram enterradas na plataforma inferior; trata-se, porém, de crianças ou adultos que tiveram seus ossos parcialmente destruídos, o que impede caracterização da população. Perto desses sepultamentos, duas pequenas covas, cheias de pigmento vermelho, continham colares de sementes de vegetais e de dentes perfurados de porco do mato, veados e homens. O espaço de ambos os patamares devia ser subdividido por paredes, como sugerem os vários alinhamentos de postes encontrados (os

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arqueólogos reconhecem a existência dos postes por mudanças de coloração e compacidade do sedimento que preencheu o buraco, resultante da decomposição destes). Os homens pré-históricos fizeram um pequeno muro de pedra perto do talude externo para desviar as águas de enxurrada que, de outra forma invadiriam o patamar superior. Pintaram também um bloco (caído depois de 4.300 e decorado antes de 3.700 anos atrás) com várias figuras vermelhas, que estão até hoje entre as figuras rupestres mais bem datadas da América do Sul. Os indícios de preparação dos pigmentos são muito abundantes no patamar inferior, onde encontramos pilões manchados, assim como pequenas quantidades de pó vermelho claro, alaranjado, amarelo e paletas para mistura das cores. As fogueiras alimentares, por vezes instaladas sobre plaquetas e cercadas por blocos de pedra, continham restos de caça, horticultura e coleta. Destacam-se caramujos gigantes terrestres e alguns bivalvas de água doce. Os restos vegetais, além de sementes de cabaça e grãos de milho, numa das fogueiras mais recentes desse período, incluem numerosos coquinhos (licuri, patuá), frutos de pitomba e Myrtaceae, de erva de passarinho, Symplocos, endocarpo de Vantanea e muitos restos de jatobá, além de outros vestígios não identificados. Os restos faunísticos continuam os mesmos do período antigo: tatus, veados, peixes, tartarugas, aves, preá e paca — assim como um único osso de preguiça arborícola. Os instrumentos de pedra são sobretudo lascas de quartzo, obtidas preferencialmente por lascamento a mão livre, utilizando por vezes uma modalidade peculiar desta técnica (debitagem dos cristais em fatias transversais). Os machados eram feitos com pedras verdes de tipo basalto e anfibolito. Todavia, nota-se a importação de duas lâminas polidas de silimanita, um mineral que, pelo que se sabe atualmente, somente poderia ser obtido em fragmentos de tamanho tão grande perto de Salinas (Vale do Jequitinhonha) ou no baixo Rio Doce, a centenas de quilômetros do abrigo. Os três últimos milênios de ocupação do sítio são pouco conhecidos, pois o pisoteio do gado perturbou as camadas sedimentares superiores, que permitiriam separar os diversos momentos de ocupação uns dos outros se fossem intactas. No entanto, nota-se claramente uma modificação na temática da arte rupestre. Nessa época, blocos recém-caídos do teto do abrigo foram decorados com grandes figuras humanas, muito diferentes dos grafismos anteriormente traçados nos paredões. Essa modificação temática, que observamos também em outros sítios, reflete mudança “ideológica” (e, talvez, de população) que pode ter coincidido com o crescimento dos produtos cultivados na alimentação, enquanto a ocupação dos abrigos estava definitivamente substituída por aldeias semi-estáveis situadas na planície, ao longo do Rio das Velhas. É nessa última região que deveria se procurar, doravante, as moradias das populações de horticultores.

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A arte rupestre nas cabeceiras do Rio Cipó: a expressão do mundo simbólico Conhecemos, atualmente, um pouco mais de 20 sítios com inscrições rupestres nas cabeceiras dos afluentes do Rio Cipó, mas deve haver um número bem maior ainda a ser descoberto. Mesmo quando vizinhos entre si, esses sítios variam muito em tamanho, aspecto e riqueza gráfica, o que faz supor que possam ter sido decorados para finalidades distintas. Os mais ricos, com centenas e até milhares de figuras, são vastos abrigos protegidos, porém bem iluminados, no sopé da Serra. Apresentam um ou vários conjuntos (os painéis) decorados, separados um do outro por alguns ou até centenas de metros. Cada painel ocupa geralmente uma superfície lisa da rocha com dimensões de poucas, até várias dezenas de metros, sendo decorada até 2,20 metros de altura na maioria dos locais. Em casos excepcionais, há desenhos feitos a mais de 5 metros de altura, particularmente quando grandes árvores facilitavam a subida dos pintores. Os sítios que comportam um número menor de grafismos incluem tanto pequenos blocos isolados quanto grutas com amplos suportes, no entanto pouco aproveitados (Morro Velho). As figuras estão sempre expostas ao sol ou, pelo menos, podem ser vislumbradas na penumbra sem luz artificial, não havendo decoração de galerias totalmente escuras. A maioria dos sítios apresenta algumas dezenas de pinturas ainda visíveis, embora seja geralmente difícil avaliar a quantidade dos grafismos efetivamente pintados. Não se sabe ainda quais eram os critérios para se selecionar uma parede a ser decorada pois, para se chegar a uma conclusão a esse respeito, seria preciso fazer um levantamento comparativo tanto dos suportes virtuais, não decorados, quanto dos que foram efetivamente utilizados. Por outro lado, é possível que muitos locais não abrigados tenham sido também aproveitados: neste caso, o intemperismo destruiu os grafismos, deixando uma idéia errada sobre as exigências dos “artistas”. Em todo caso, nem uma orientação especial, nem a proximidade da água ou de um espaço plano para se estabelecer eram condições indispensáveis: as 570 figuras de Altamira — um sítio da Tradição Planalto próximo à Serra do Cipó — estão no topo de uma subida extremamente íngreme, onde a vegetação rupestre não propicia nenhuma sombra, estando a água mais próxima bem distante. O sítio da Cia. Cedro Cachoeira, embora de acesso menos íngreme, encontra-se também longe de todo lugar favorável a um estabelecimento. Em compensação, não faltam sítios localizados em zonas mais próximas aos riachos — por vezes, uma pintura única sobre a parede natural, como ocorre nas imediações de Cardeal Mota.

Técnicas de elaboração dos grafismos A técnica mais utilizada foi a pintura, realizada com pigmentos minerais: óxidos de ferro vermelho ou alaranjados (hematita),

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hidróxidos de ferro amarelo (goetita) e dióxido de manganês (preto). São elementos abundantes localmente, na forma de mineral de ferro na região de Conceição de Mato Dentro e, sobretudo, de concreções (couraças) espalhadas nas superfícies erodidas da serra, testemunhas de um clima mais árido que o atual. Encontramos ainda nas escavações fragmentos de ninhos de cupim que podem ter sido aproveitados para fazer tintas. As poucas figuras brancas não foram ainda analisadas, mas devem ser argilas de tipo caulim, ou produtos da alteração de carbonatos (calcita?) facilmente encontrados na zona calcária. O carvão de lenha pode ter sido utilizado. Os pigmentos brutos eram raspados com instrumentos de pedra e, a não ser o carvão, provavelmente concentrados por decantações e evaporação sucessivas para se obter partículas finas que pudessem entrar em suspensão na água. Análises estão sendo realizadas para se saber se o pó assim obtido era misturado a óleos vegetais ou resinais e partículas minerais que entrassem como carga e liga. A aplicação foi geralmente feita com o dedo (nota-se pela espessura e a forma das extremidades dos traços), mas também com pincéis, provavelmente vegetais (as marcas das fibras são ainda visíveis em Santana) largos ou muito finos (alguns traços têm menos de 1 mm de espessura). Bastões de pigmento seco foram esfregados na parede como lápis. Outra técnica, bem mais rara, consiste em gravar pequenas depressões, picoteando a superfície a ser trabalhada com um batedor de pedra. Essas depressões sobressaem-se por sua cor diferente; tais gravuras aparecem em raros sítios e somam poucas dezenas de figuras em toda região (Sucupira, Santana e Laranjeiras), sempre em blocos caídos no chão.

Elementos estilísticos no tratamento das figuras

Detalhe de um painel de Tradição Planalto, com uma família de cervídeos. Fotografia: André Prous.

As figuras pintadas são quase todas monocromáticas, sendo a maioria vermelhas ou amarelas. Os animais são representados segundo convenções específicas: os peixes aparecem de perfil; a maioria dos mamíferos e as aves mostram o corpo e a cabeça de perfil, enquanto as extremidades e elementos pares (orelhas, patas, cascos ou dedos, chifres, asas) são desenhados como se fossem vistos de frente (“perfil torcido”). Os olhos não são representados e apenas alguns quadrúpedes e peixes têm a boca visível, por estar aberta. Os sauros são representados em plongée (corpo e cauda vistos de cima), com as pernas esticadas lateralmente. O sexo nunca é indicado, e só pode ser deduzido no caso dos cervídeos, pelas características da galhada. A cabeça e o pescoço são sempre chapados (completamente cobertos por tinta) e às vezes também o corpo, mas este é freqüentemente delimitado por um contorno linear, no interior do qual pontos, linhas contínuas ou tracejadas subparalelas preenchem parcialmente o espaço. Talvez se trate de uma medida para economizar as tintas, pois há uma tendência em preencher totalmente as figuras

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menores e apenas contornar e tracejar internamente as maiores. Os membros, por sua vez, são simples traços, geralmente sem a preocupação de mostrar as variações de largura, as articulações ou as inserções anatômicas. Excepcionalmente, encontram-se figuras apenas pontilhadas. O tamanho dos animais varia de 5 cm até mais de 1,5 m, sendo geralmente entre 20 e 60 cm. As figuras antropomorfas da Tradição Planalto são, na sua imensa maioria, simples evocações, bem mais esquematizadas e menores (menos de 15 cm) que os animais aos quais estão associadas. São formadas por 5 traços retos lineares finos: um para o tronco, e um para cada membro; não há cabeça nem sexo, nem dedos figurados e o conjunto sugere uma vista frontal. Uma outra categoria de figuras humanas, bem mais rara e mais recente (a maioria, atribuída à Tradição Agreste), inclui grafismos maiores (até 60 cm de altura), mais naturalistas, com o corpo chapado, cabeça, sexo e dedos bem indicados e articulações. Vê-se, portanto, que as normas estilísticas não visam a representar a realidade individual nem os detalhes dos seres vivos de maneira “fotográfica”, mas apenas evocar categorias naturais, usando “chavões” estereotipados que privilegiam sobretudo as cabeças (a parte mais característica de cada espécie). Até o número de dedos pode não corresponder à realidade: as patas dos veados, embora apresentem muitas vezes dois cascos, podem ter uma terminação simples, ou trífide; as representações antropomorfas mais “naturalistas” têm entre três e seis traços para indicar os dedos.

Os temas

O autor escavando um sepultamento com mais de 8.000 anos no Grande abrigo de Santana do Riacho (Serra do Cipó), em 1977. Fotografia: Paulo Junqueira.

A temática é formada pelas figuras isoladas e por conjuntos “cênicos”. Nota-se logo que os animais representados são sempre os mesmos: em quase todos os sítios aparecem cervídeos, havendo eventualmente machos, fêmeas e ⁄ ou filhotes. Os animais mais numerosos são, a seguir, os peixes. Entre eles reconhecem-se peixes de escamas e peixes de couro, mas não é possível conseguir identificações zoológicas mais precisas. Bem mais raramente aparecem onças e aves, sendo as onças reconhecíveis pelo rabo longo, as orelhas, a cabeça e as patas redondas. Excepcionalmente, encontram-se representações de tamanduá, macaco, porco do mato, tatu, lagarto e tartaruga, além de quadrúpedes não identificáveis. As figuras zoomorfas sempre dominam visualmente. As figuras humanas do tipo razoavelmente naturalista são, como foi dito, raríssimas (não mais de 25, entre as milhares de figuras fichadas), mas as evocações esquemáticas e filiformes podem ser numerosas, embora pouco destacadas. As figuras geométricas (sinais) apresentam freqüências muito variáveis, sendo sobretudo numerosas nos maiores sítios, como Santana, Cocais ou Sucupira, enquanto costumam não alcançar 10% nos sítios mais modestos. Não são muito variadas: a

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maioria constitui-se de alinhamentos de bastonetes, ou conjuntos de pontos que, somados, costumam totalizar mais da metade das figuras geométricas. Bem menos numerosos, embora presentes em quase todos os sítios, são os círculos preenchidos por pontos e ⁄ ou círculos concêntricos, com um apêndice reto. Parecem ter desempenhado papel importante, pois eram freqüentemente reavivados pelos homens préhistóricos, que pintavam novos pontos sobre os antigos, cuja cor estava empalidecida. Acreditamos que possam ser representações de caixas de abelha. Outros grafismos geométricos compõem-se de conjuntos de linhas formando ziguezague, desenhos em forma de cruzes, pentes, grades, etc. As representações de instrumentos limitam-se a bastonetes cravados no dorso de quadrúpedes (representando dardos em cenas de caça) e duas grandes figuras cercando peixes em Santana do Riacho, que interpretamos como redes de pesca. Notamos que não há figuração explícita de vegetais ou de corpos celestes.

As cenas associativas Ao olharmos os paredões pintados, a primeira impressão que temos é de uma grande confusão: figuras em toda parte, em todas as posições, às vezes justapostas, freqüentemente parcial ou totalmente superpostas entre si, sem perspectiva nem composição aparentes. No entanto, existem princípios de organização, só que estes não têm nada em comum com nossas preocupações em “compor um quadro”, por exemplo. Às vezes, vários pequenos grupos de grafismos, cada um elaborado num dado momento parecem formar um todo significante sem relação direta com os outros, vizinhos ou superpostos. Por exemplo, notamos que os cervídeos e macacos (e também os porcos ou tatus na Serra do Passa Cinco) costumam compor grupos de três ou quatro indivíduos, formando uma família, com o macho, a fêmea e uma ou duas crias. Os peixes, por sua vez, formam pares em certos sítios (Santana) e “cardumes” em outros (Campo das Lajes). As pequenas figuras antropomorfas esquematizadas também costumam aparecer agrupadas, enquanto as maiores, mais “realistas”, apresentam-se isoladas. Da mesma forma, grafismos geométricos como bastonetes e pontilhados, tendem a agregar-se em determinados setores. Alguns conjuntos sugerem uma ação, mais do que a descrição de uma cena. As mais numerosas são as que sugerem uma caçada: vários antropomorfos esquemáticos cercam um quadrúpede que, em alguns sítios (Jaracussu, Serra do Macedo), aparece flechado com um dardo segurado por uma figura antropomorfa. Em Santana, é freqüente a representação de um cervídeo associado a uma “grade”, provavelmente a representação de uma armadilha. No mesmo sítio, já mencionamos a

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figuração de grandes redes envolvendo peixes, enquanto círculos associados aos quatro tatus de um dos painéis poderiam evocar um laço para capturá-los. De qualquer forma, as representações inequívocas de caça ou de captura são sempre raras. Ainda em Santana existe uma única representação de cópula entre seres humanos, enquanto a Lapa do Gentio mostra uma cena de parto. Estes mesmos temas aparecem, embora raramente, com atores exclusivamente animais: onças perseguindo veados, cópula entre cervídeos.

A cronologia e as unidades estilísticas As escavações realizadas em Santana, a observação do painel setentrional de Sucupira, assim como a análise das superposições de figuras, permitem tentar uma reconstituição da seqüência estilística na região. Apresenta-se, a seguir, este esboço ainda hipotético. Podemos definir a existência de vários conjuntos estilísticos. O mais antigo, que chamamos “Tradição Planalto” é representado pela maioria das figuras de animais (dominando os veados e os peixes). Num dos momentos iniciais, são desenhados contornados e formam as “cenas” de caça, juntamente com os antropomorfos esquematizados. Mais tarde, a tendência será de representar os grupos “familiares” sem figuras antropomorfas, sendo os animais chapados e, freqüentemente, pequenos. Em alguns sítios, um período ainda mais tardio é caracterizado por nítida diversificação dos animais, alguns de grande porte, em que as onças tornam-se elemento importante nas composições. Durante os milênios em que perdurou a Tradição Planalto, houve momentos em que foram pintados essencialmente sinais pontilhados (nuvens de pontos no abrigo de Cocais) ou linhas de bastonetes (Sucupira), sem que saibamos se isto representa a intrusão de uma cultura distinta, ou se os próprios portadores da Tradição Planalto acrescentaram, num dado momento, estes temas aos zoomorfos, normalmente dominantes. A esse momento, demos o nome de Tradição Sumidouro, alguns anos atrás. Nos últimos milênios, cresce o número das figuras antropomorfas que sugerem uma influência de tradições procedentes do Nordeste do Brasil. Quase todas essas representações, ligadas à Tradição Agreste, são relativamente grandes e detalhadas em certos sítios (Santana, Sucupira). Outras são pequenas, mas com cabeça e o sexo indicados; formam por vezes alinhamentos sugerindo uma procissão (Serra do Gentio, Cocais). Páginas seguintes: Figuras antropomorfas ditas “Bonecões”, da Tradição Agreste na Lapa de Sucupira. Fotografia: Paulo Junqueira.

Finalmente, a Gruta do Morro Velho recebeu as últimas figuras rupestres da região, já nos séculos XVIII ou XIX, com lindas representações da cidade de Mariana, provavelmente deixadas por um saudoso habitante desse mais antigo bispado de Minas Gerais. Essas

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pinturas rupestres históricas recobrem alguns grafismos pré-históricos que o pintor colonial provavelmente não chegou a perceber.

O significado das obras rupestres Uma das perguntas mais intrigantes relativa à arte rupestre é: quem fazia as pinturas e por quê? Mais uma vez, não podemos oferecer respostas, apenas elementos de reflexão. Em primeiro lugar, cada uma das sucessivas culturas da região pode ter tido razões diferentes para “decorar” os paredões. Em segundo, certamente não se trata de “obras de arte” no sentido que damos hoje a essa expressão (criações sem objetivo material e de valor apenas estético) pois esta noção é desconhecida da maioria das culturas. Por outro lado, a repetição dos mesmos temas, pouco numerosos, apesar de modificações menores de um período para outro, sugere que são projeções, nos paredões, de conceitos e símbolos permanentes. Certamente, falar de uma “magia simpática” destinada a favorecer a caça ou a reprodução dos animais não seria explicar muita coisa, mesmo porque a maioria das figuras zoomorfas não são flechadas nem cercadas, e muitos dos animais que os homens pré-históricos certamente caçavam não estão representados.

Conclusão: a Pré-História da Bacia do Rio das Velhas no panorama da Arqueologia brasileira e americana Os vestígios arqueológicos encontrados na Serra do Cipó não diferem muito dos que já foram encontrados na região de Lagoa Santa e no centro mineiro em geral. Nota-se a presença do Homem no final do período geológico pleistocênico, quando acontece a grande mudança climática que provoca, entre 12.000 e 10.000 anos atrás, uma elevação geral das temperaturas e uma pluviosidade bem superior. Nos milênios seguintes e após várias oscilações menores, chegou-se às características climáticas atuais. Em Lagoa Santa nasceu a Paleontologia Brasileira e foi verificada a contemporaneidade do Homem com os grandes animais extintos; as datações recentemente conseguidas por W. Neves mostram que não apenas as preguiças gigantes, mas também o temível tigre-dentes-de-sabre poderia ter vivido na mesma época que “Luzia”. . . Durante o Holoceno, notamos o surgimento de várias técnicas, bem mais cedo do que se supunha até então no Brasil: utilização da pedra polida, talvez do anzol e técnicas rudimentares de tecelagem, mais de 8.000 anos atrás. A abundância do quartzo e as peculiaridades desta matériaprima fazem com que os instrumentos de pedra lascada fossem

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feitos predominantemente por percussão “bipolar” (sobre bigorna). Isto tem como conseqüência uma grande homogeneidade do instrumental, pois esta técnica não permite um leque muito variado de formas; torna difícil, portanto, a discriminação de tradições tecnológicas. Mesmo assim, estudar os instrumentos de quartzo no vale do Rio das Velhas foi muito importante, porque pudemos entender os processos de lascamento do quartzo, até então muito mal conhecidos no mundo, onde os pré-historiadores tinham-se dedicado a analisar essencialmente o lascamento do sílex. O reconhecimento pioneiro da tecnologia pré-histórica utilizada no centro de Minas Gerais permitiu que se entendessem indústrias do Sul do Brasil, do Uruguai, da Argentina e, mais recentemente, do Norte da Espanha. A circulação das matérias-primas para elaboração de peças mais rebuscadas — lascadas ou polidas — , as transformações da arte rupestre, semelhantes às que ocorriam em regiões vizinhas, indicam que os habitantes da bacia do Rio das Velhas eram bem menos isolados do que deixariam supor a compartimentação topográfica e a provável endogamia mencionada para a população de tipo “Lagoa Santa”: idéias e objetos circulavam. Assim sendo, a existência de “vias de circulação” fica evidente no sentido sul-norte e leste-oeste, havendo vários indícios de contactos com o Vale do Jequitinhonha e com o Rio Doce desde o período pré-cerâmico. Isto não impede que existam particularidades regionais, sobretudo visíveis através da arte rupestre da Tradição Planalto, cujas figuras animais não apresentam, na Serra do Cipó, o naturalismo, a elegância e o movimento dos grafismos do Jequitinhonha ou da Serra do Cabral, mas que inclui vários temas ausentes na região de Lagoa Santa. Parece que o povoamento mais antigo da região era formado por vários grupos pequenos (algumas dezenas de indivíduos) com território fixo, de cerca de 15 km de diâmetro, talvez centrados cada um ao redor de um grande sítio ritual de referência (com muitas figuras rupestres). Com a importância crescente da agricultura, certamente trazida de fora, os vales principais passaram a ser ocupados por aldeias de horticultores da Tradição Sapucaí (prováveis ancestrais dos modernos índios Jê), que procuravam terras mais férteis e cuja coexistência com os últimos grupos caçadores pode ter sido difícil. Os tupi-guarani — outro grupo importante na Pré-História tardia do Brasil — colonizaram o Vale do Rio Doce, mas não parecem ter penetrado duravelmente no vale do Rio das Velhas: os poucos sítios tupi-guarani conhecidos encontram-se no rio principal, um pouco a jusante de Lagoa Santa. Foram, provavelmente, rechaçados pelos portadores da cultura Sapucaí, bem representada na região de Lagoa Santa.

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Mesmo após a multiplicação das pesquisas arqueológicas numa área cada vez maior no território nacional, a exploração dos sítios a montante da bacia do Rio das Velhas (Lagoa Santa, cabeceiras do Cipó) continua sendo essencial na elaboração da Pré-História do país e da América, em razão da boa preservação de vestígios variados. O debate internacional sobre a data e as características da primeira colonização americana explica o investimento do bioantropólogo da USP W. Neves desde os anos 1990, no estudo das coleções esqueletais de Lagoa Santa e, no alvorecer do novo milênio, na escavação de novos sítios (Lapas das Boleiras e do Santo). Infelizmente, o curso médio e inferior do Rio das Velhas ainda não foi contemplado por nenhum programa de Arqueologia sistemática. No entanto, seria uma região chave para explicar as relações entre as populações que povoavam o platô e as serras do centro mineiro e os grupos pré-históricos que percorriam a grande planície do Rio São Francisco e aos quais a UFMG dedicou boa parte dos seus esforços nos anos de 1980 e 1990. Seria essencial agora estudar arqueologicamente o entorno da confluência entre essas duas grandes vias fluviais. A tarefa dos arqueólogos apenas começou. O material arqueológico coletado de hoje está longe de ter sido completamente analisado cientificamente; falta encontrar e estudar sítios ricos e bem preservados que sejam representativos dos diversos períodos mais recentes da Pré-História ao longo do Rio das Velhas. Para tanto, só podemos esperar que o turismo que vem se desenvolvendo na região seja controlado, de tal maneira que os últimos sítios intactos não sejam depredados e destruídos e que as autoridades responsáveis pela instalação e o manejo dos parques e áreas de preservação ambiental não se esqueçam de incluir a pesquisa arqueológica em suas prioridades. Cabe às autoridades proteger os sítios, assegurando ao mesmo tempo sua visitação monitorada para que o remoto passado da serra seja incorporado à memória e ao imaginário popular. Cabe às instituições de fomento à pesquisa ajudar as equipes universitárias a descobrir os milênios desconhecidos do passado de Minas Gerais.

O crânio de “Luzia” aparece na Lapa Vermelha de Pedro Leopoldo. Fotografia: Sydney Picasso Mission Française de Lagoa Santa (1975).

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Bibliografia

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Abstract

The region’s pre-history and its importance in American Archeology The Velhas River Valley became archeologically known in the nineteenth century because of research done by naturalist Peter Lund, whose findings in Lagoa Santa led him to the hypotheses that there is a great antiquity concerning human presence in America. Many international expeditions were carried out in Lagoa Santa during the twentieth century, allowing the verification of man’s coexistence with a huge variety of fauna from the pleistocene era. The oldest documented american skeleton was found in Lapa Vermelha, where the first elements of pre-historic paintings in Brazil were also found. The excavations that took place in the Cipó Mountain Range, near Lagoa Santa, showed evidences of a rich cemetery over 8,000 years old which brought lots of information concerning the rituals and physical and pathological characteristics of the so called population "from Lagoa Santa". Later occupation of sheltered places in the region left behind traces of pre-historic pictorial art, technology and feeding habits. Research carried out at the Cipó Mountain Range in Lagoa Santa is used as reference when debating the origins of the American Man, pre-historic paintings and technology in the central part of Brazil. In the most recent pre-historic periods of the region, a dense Sapucaí population has developed – villagers dedicated to agriculture who contained the penetration of tupiguarini groups from the beginning to the middle of The Velhas River’s course. The river’s final course is almost archeologically unknown, having undergone only preliminary excavations in the important pre-ceramic sites of Buritizeiro, near the confluence of The Velhas River with The São Francisco River. Even so, the first observations, made from traces of rock instruments and prehistoric engravings found at the lower part of the Velhas River basin, suggest a distinct cultural development, different from the ones documented upstream.


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“Entrada para Minas”. Pintura de Oscar Pereira da Silva. Sem referências ⁄ Acervo Museu Paulista. Coleção Luís Augusto de Lima.

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Professora do Curso de História do Centro Universitário de Belo Horizonte Historiador, Mobilizador Social do Projeto Manuelzão

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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais


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7 A história da ocupação humana na versão do próprio rio Núbia Braga Ribeiro 1 Eugênio Marcos Andrade Goulart 2 Rômulo Radicchi 3


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Reconstituição da face de “Luzia”. Agência Estado.


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Origens, povoamento e formação

O Rio das Velhas e seus arredores guardam histórias impressas nas suas margens, cidades, natureza e em seus moradores. A história é uma construção, cada fonte histórica ou documento encontrado nos aproxima do conhecimento das diferentes sociedades. Esses documentos estão nos arquivos, nos vestígios da passagem do homem e na História oral muitas vezes fruto da tradição, contada de pai para filho, guardando a memória de um grupo. Navegar pelo Rio das Velhas é vasculhar suas origens e mudanças, desvendando uma região que faz parte do núcleo formador de Minas Gerais. Os primeiros humanos chegaram há cerca de doze mil anos, em pequenos grupos e pouco intervieram no ambiente. Entretanto, traziam um conhecimento e uma habilidade que transformariam a região: o domínio do fogo. À noite, armavam uma fogueira sob o manto da floresta e agrupavam-se em círculo para enfrentar o frio da madrugada. Muito curiosos, logo descobriram lapas e abrigos de pedras para servir como moradias. Aos poucos, foram explorando e ocupando todos os recantos, fixando-se principalmente na planície repleta de grutas calcárias da porção média do Rio das Velhas. Viviam da caça de animais de pequeno e médio porte, da coleta de tubérculos e frutas. Por milênios, viveram sem maiores sobressaltos, em tribos esparsas e de baixo crescimento populacional. São poucos os fósseis dessa época e um deles é de uma mulher de face negróide, que recebeu o nome de Luzia, dado pelos arqueólogos que a descobriram. Viveu há 11.680 anos, segundo recentes datações, sendo assim o fóssil humano mais antigo já descoberto nas Américas. Foi desenterrada em uma caverna próxima à cidade de Lagoa Santa, em Pedro Leopoldo e a reconstituição de seu imprevisto rosto, a partir de detalhado estudo do formato de seu crânio, foi realizada na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Aliás, os fósseis desse período mais remoto possuem esta intrigante característica facial, que os aproxima dos africanos, ou dos aborígenes da Austrália. As tribos com feições asiáticas chegaram por volta de oito mil anos atrás. Não se sabe exatamente o que ocorreu, mas o fato é que os primeiros habitantes não sobreviveram. Diferentes grupos povoaram mais densamente a região e deixaram muitos vestígios como ferramentas, cerâmicas e pinturas rupestres. Os índios de Minas Gerais, em sua maioria, pertenciam ao tronco Jê, e eram nômades ou seminômades. Na bacia do Rio das Velhas, havia vários povos indígenas como os Abaetés, Caiapós, Cataguás, Goianás, Guarachués, Cariris e outros. Os botocudos ocupavam parte do território e foram assim denominados pelos portugueses porque usavam botoques - rodelas de madeira nos lábios inferiores e nas

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orelhas. Eram conhecidos pelos outros índios como tapuias, que significa bárbaro, por serem muito ferozes e por terem um modo diferente de viver. A vida dos povos indígenas alterou-se de forma drástica em função das primeiras expedições chamadas de Entradas — grupos de homens brancos desbravando o sertão que vinham da Bahia, de Pernambuco e do Espírito Santo. No entanto, foram as Bandeiras, expedições saídas de várias regiões de São Paulo, com centenas de homens denominados bandeirantes que povoaram e encontraram o ouro em Minas. Além de buscar riquezas, os bandeirantes foram caçadores de índios, responsáveis pela escravidão e extermínio de muitos grupos. Algumas entradas iniciaram o desbravamento: Francisco Bruza de Espinosa, em 1554, navegou pelo Jequitinhonha e Rio Pardo; Sebastião Fernandes Tourinho, em 1573, saiu de Porto Seguro, chegou até o Rio Doce e Jequitinhonha. A bandeira de Lourenço Castanho Taques, em 1675, foi responsável pela morte de boa parte dos cataguases. Em 1681, a expedição de Guedes Brito matou muitos índios e esse sertanista recebeu como prêmio sesmarias na barra do Rio das Velhas com o Rio São Francisco.

Índios botocudos. Gravuras de Anton Krüger sobre esboços de Maximilian Wied-Neuwied Biblioteca IEB ⁄ USP.

A mais organizada e conhecida foi a bandeira de Fernão Dias Paes. Partiu de São Paulo, em 1674, em busca de esmeraldas. Subiu a Serra da Mantiqueira, atravessou o vale do Rio Grande e em seguida o vale do Rio das Velhas. Procurava a lendária Serra Resplandescente, ou Sabarabuçu, que segundo relatos de indígenas ficava no interior do imenso sertão, em local incerto. Reproduziam a lenda de que era uma grande montanha de forma piramidal e brilhante à distância, de tanta pedra preciosa que continha. Os bandeirantes acreditavam com fé na sua existência, pois tinha sido descoberta pelos espanhóis, mais de um século antes, uma montanha quase toda de prata em território inca, em Potosi, no alto da Cordilheira dos Andes. Fernão Dias estabeleceu-se inicialmente nos arredores da Serra da Piedade, uma grande pirâmide rochosa de 1.746 metros, na nascente do Rio Sabará, margem direita do Rio das Velhas. Como não encontrou esmeraldas e sendo a região muito acidentada e coberta por densa floresta, resolveu transferir-se para uma área mais plana. Fundou as vilas de Sumidouro e Fidalgo, seis léguas rio abaixo, hoje situadas no município de Pedro Leopoldo, margem esquerda do Rio das Velhas.

“Chegada de João Leite da Silva Ortiz, primeiro povoador das terras de Belo Horizonte, em 1701.” Detalhe de pintura a óleo de Gentil Garcez, s.d. Acervo Museu Mineiro.

Permaneceu na região por quatro anos repletos de contratempos quando teve que enfrentar fome, febres e motins. Um de seus filhos, o mameluco José Dias, tramou contra ele para ficar na liderança, mas Fernão Dias sentenciou-lhe pena de morte, enforcando-o. Partiu em seguida para a região do Pico do Itambé, outra imensa montanha de formato triangular, no vale do Rio Jequitinhonha. Fernão vas-

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culhou grande área do que viria a ser a região central do Estado de Minas Gerais e, após oito anos de labuta, encontrou apenas um punhado de turmalinas, pedras de menor valor. Morreu no retorno a São Paulo, com grande sentimento de glória, uma vez que julgava ter encontrado as almejadas esmeraldas. Manuel Borba Gato, genro de Fernão Dias, tornou-se chefe da bandeira após sua morte e fundou a Vila Real (Sabará). Outros bandeirantes ficaram conhecidos como Antonio Rodrigues Arzão, que passou para a História por ter encontrado o ouro pela primeira vez na região em 1693. O fato se deu em uma encosta do vale chamado pelos indígenas de Tripuí, onde surgiria posteriormente a cidade de Ouro Preto, quando um escravo, integrante de sua expedição, ao descer a um riacho, encontrou umas estranhas pedras escuras. Daí o nome Ouro Preto, já que o ouro revestia-se de uma camada de óxido de ferro tornando-se enegrecido. O Rio das Velhas era chamado pelos índios de Guaicuí, que significava: Guay – indivíduo, habitante; Cuye – velha; Y- rio, água. O nome Minas Gerais surgiu de Minas de Ouro Preto, Minas do Rio das Velhas e Minas do Ribeirão do Carmo. Também eram empregadas as denominações de Minas dos Cataguás, Capitania de Minas e São Paulo, Minas do Ouro e, somente a partir de 1730, nas Cartas Régias, é usado Minas Gerais. Nos rios foram encontrados ouro de aluvião e utilizavam-se as bateias — gamela de madeira ou de estanho em forma de cone — e os almocafres para a mineração. O diamante foi descoberto casualmente em 1714, na região do planalto da Serra do Espinhaço, onde viria a ser construída a cidade de Diamantina. Por quinze anos a exploração ficou clandestina, sem que a Coroa Portuguesa tomasse conhecimento. Em 1729, oficializou-se a descoberta, quando foi promulgado o primeiro regimento diamantino, por uma Carta Régia que criou a Demarcação Diamantina, com 42 léguas de circunferência, onde era proibido qualquer tipo de mineração não autorizada pelo Rei.

Campos às margens do Rio das Velhas. Litografia de Engelmann a partir de desenho de Rugendas, circa 1835.

Com a descoberta do ouro e do diamante, iniciou-se intenso povoamento da região das Minas por escravos negros, que até então tinham permanecido na faixa litorânea, trabalhando nos engenhos de açúcar. Os africanos começaram a chegar ao Brasil por volta de 1550 e por cerca de 300 anos, aproximadamente quatro milhões de negros foram capturados em sua terra e escravizados. Suas origens vêm de diversos grupos da África como os bantos (Congo, Angola e outras regiões), ou sudaneses (com suas divisões nagô, gegê e mina). Os escravos vieram para Minas Gerais a pé, desde o porto do Rio de Janeiro, uma jornada de várias semanas. Acorrentados e caminhando em fila indiana, aqueles que sobreviveram à travessia do Oceano Atlântico tinham que se submeter a longa viagem de mais de cinco

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centenas de quilômetros, para então começar a trabalhar na mineração. Muitos não resistiam às condições sub-humanas da jornada e morriam pelo caminho.

A vida nas vilas

O grande legado da bandeira de Fernão Dias foi o início da colonização de Minas Gerais. No rastro da sua expedição formaram-se as mais antigas cidades mineiras: o Arraial do Ribeirão do Carmo tornou-se Vila do Carmo em 1711 e cidade com o nome de Mariana em 1745, ano em que foi fundado o primeiro Bispado de Minas Gerais. A atual Ouro Preto, em 1711, foi elevada a Vila Rica e no mesmo ano também a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Outros arraiais foram elevados a vila: São João del Rei em 1713; Vila Nova da Rainha, hoje Caeté, em 1714; Serro, em 1714, cujo primeiro nome foi Vila do Príncipe, e Nossa Senhora da Piedade do Pitangui, em 1715. A vila era um espaço territorial e administrativo, onde eram estabelecidas a cadeia e as câmaras municipais. As câmaras tinham funções judiciárias, legislativas e gerenciais. Na vila era erguido o pelourinho – coluna de pedra ou madeira – para simbolizar a presença das autoridades civis no local, além de ser usado para os castigos públicos. Nas vilas construíram-se ruelas, becos e chafarizes para levar água das fontes e abastecer seus habitantes. Havia intenso comércio nas lojas, quitandas e tavernas. As negras de tabuleiros vendiam seus bolos, pães e doces, o que foi uma forma importante da participação feminina. Surgiram os artistas e artífices, a maioria mulatos ou negros.

Sabará em 1842. Litografia de Heaton & Rensburg. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Vista de Vila Nova de Lima, atual Nova Lima, circa 1910. Postal Casa Aristides. Coleção Luís Augusto de Lima.

Para administrar a região dividiram-na em três Comarcas, criadas em 1714: a Comarca de Vila Rica, com sede em Vila Rica; a do Rio das Velhas, com sede em Vila Real; e a do Rio das Mortes, com sede em São João del Rei. Depois criou-se a Comarca do Serro Frio e por fim, no início do século XIX, a de Paracatu. Até 1709, Minas, Rio de Janeiro e São Paulo formavam uma só capitania e, a partir de 1709, a capitania foi dividida ficando Minas e São Paulo agregadas. Em 1720, formou-se a Capitania de Minas separando-a de São Paulo. Mesmo assim, as fronteiras foram se definindo aos poucos. A Comarca do Rio das Velhas, ou Comarca de Sabará, tornou-se a mais populosa e com maior número de negros escravos. A Vila Real contava, em 1719, com 5.771 negros escravos e 127 lojas e vendas. Em 1808, Sabará tinha 11.318 brancos, 30.976 pretos e 34.071 mulatos. A população negra, mulata, forra (ex-escravos) e escravos era numericamente superior à população branca. Em 1735, Minas tinha um total aproximado de 100 mil cativos e, em 1776, já possuía no

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total mais de 300 mil habitantes. A comarca do Serro Frio tinha a menor população da capitania e a do Rio das Mortes o maior contingente de brancos em relação às outras. A religiosidade de Minas está ligada às irmandades leigas que cuidavam do sepultamento de seus membros, dos inválidos e doentes, além de serem as guardiãs da fé católica. Dividiam-se em irmandades de brancos, pretos e pardos, reforçando as diferenças étnicas e sociais. Na Comarca de Sabará, só para citar algumas, em Congonhas do Sabará havia Nossa Senhora do Rosário, santa de devoção dos negros, de 1773; Nossa Senhora do Pilar, de devoção dos brancos, de 1752. Em Macaúbas, Nossa Senhora do Rosário, de 1761, além do Convento de Macaúbas, criado em 1716. Em Sabará, Nossa Senhora do Rosário, de 1713; Nossa Senhora do Carmo, de 1761. Por toda Minas surgiram as irmandades com seus santos de devoção.

Um cenário de conflitos

Páginas anteriores: Mapa da Comarca de Sabará de Bernardo José da Gama, circa 1815. Inglaterra, C. Hullmanall Coleção Bráulio Carsalade Villela

Arraial de Lagoa Santa, em 1842. Litografia de Heaton & Rensburg Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Entre 1707 e 1709, ocorreu a Guerra dos Emboabas, conflito entre paulistas e portugueses, na região do alto Rio das Velhas, principalmente entre as cidades de Caeté, Sabará e Cachoeira do Campo, com combates também no Rio Doce e Rio das Mortes. Emboaba era um apelido pejorativo que recebiam os portugueses, designando forasteiro qualquer um que não fosse paulista. A palavra, de origem indígena, era o nome de um pássaro de pernas emplumadas, alusão aos portugueses que usavam botas de cano longo. Borba Gato era o líder dos paulistas e teve a função de guarda-mor, superintendente das Minas do Rio das Velhas e seu provedor, residindo em Sabará. Manoel Nunes Viana foi líder dos emboabas, estabeleceu-se na Bahia e, posteriormente, fixou-se em Caeté. Foram várias as batalhas, com muitas mortes de ambos os lados, cidades incendiadas e pontes destruídas. Ao término dos combates os dois grupos recuaram, sem um vencedor. Afinal, o ouro, que era o motivo da luta, ainda era abundante e dava para todos. A Comarca do Rio das Velhas tinha sua jurisdição incluindo o sertão do Rio São Francisco, local de muitos motins contra os impostos cobrados pela Coroa, dos quais o mais pesado recaía sobre o ouro extraído. O Regimento de 1702 definia a área aurífera — datas minerais — cedidas pela Coroa, variando seu tamanho conforme o número de escravos que detinha um senhor. A maior porção ficava para os proprietários que possuíam mais escravos. Ao lado da mineração do ouro e do diamante, desenvolveu-se a agricultura e a pecuária, para suprir o mercado interno na capitania e as demais regiões da colônia. A aguardente, com restrições legais, integrou-se também à economia. O transporte de mercadorias e a comunicação das regiões era exercida pelos tropeiros.

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O fisco sobre o ouro dava-se de várias formas: primeiramente, de bateias - cobrava-se uma quantia sobre a mão-de-obra na mineração; depois foi o sistema de capitação, que funcionou até 1725, voltando somente em 1735, e que recaía sobre cada escravo que exercesse a mineração ou outras atividades. Por essa época, estabeleceram-se as casas de fundição que eram os locais onde se recolhia o ouro que era fundido em barras e então retirado o quinto (20% da produção destinado ao rei). O ouro de aluvião escasseava desde o final de 1740, mas Portugal continuava exigindo a mesma carga de impostos. Em 1750, um alvará definia que deveriam ser entregues ao rei 100 arrobas de ouro. Por esses anos, passava pelas precárias estradas mineiras um homem, em cima de uma montaria, afirmando que ainda iria consertar o mundo. Era conhecido como Tiradentes e falava a língua do povo, exprimindo em seus discursos a insatisfação de todos. Com a independência das treze colônias norte-americanas em relação à Inglaterra, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789, ventos libertários insuflaram as mentes mais avançadas das colônias espanholas e portuguesas nas Américas. Uma conspiração, visando a livrar-se do domínio português começou a brotar em Vila Rica, reunindo intelectuais que haviam estudado nas universidades da Europa ou que haviam lido sobre os teóricos iluministas. Devido à delação de um dos revoltosos, a conspiração foi descoberta e duramente reprimida. Ganhou o nome de Inconfidência Mineira. Tiradentes (o alferes Joaquim José da Silva Xavier) foi preso e, após alguns anos de processo, enforcado e esquartejado, em 21 de abril de 1792. As revoltas não ficaram somente na esfera dos senhores e autoridades coloniais, ou acerca dos impostos, pois os escravos também se rebelaram. Os escravos fugidos recebiam a denominação de quilombolas, pois eram os habitantes dos quilombos. A palavra quilombo tem origem africana e significa acampamento. No Brasil Colônia, mais que um refúgio ou esconderijo, o quilombo foi a forma de resistência e ameaça ao sistema escravista. Ao fugir o escravo buscava sua humanidade, deixava de ser coisa, para ser dono de si. Muitos foram os quilombos em Minas, calcula-se 127 em vários locais, alguns próximos a Mariana, Tejuco e Rio das Velhas abaixo. Em Sabará, datam de 1720, 1738, 1753; em Caeté 1738, 1755, 1770 e outros. O quilombo do Ambrósio, próximo à Serra da Canastra, destruído em 1746, resistiu cerca de 20 anos. A existência dos quilombos demonstra o grau de organização e consciência dos negros e da luta pela liberdade. Nesses quilombos não viviam só negros fugidos, os elementos principais, mas também índios e ex-escravos. O Rio das Velhas presenciou ainda ferozes batalhas entre os homens, que tingiram várias vezes suas águas de sangue. Em 1842, estourou em São Paulo e Minas Gerais uma rebelião contra o governo federal, chamada de Revolução Liberal. Em Minas, os revoltosos chegaram a

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aclamar um novo presidente para a Província, mas foram derrotados pelas armas em Barbacena, Ouro Preto, Sabará e, numa batalha final, em Santa Luzia. Um dos comandantes dos liberais era Teófilo Otoni, e do outro lado o comandante das forças federais foi o Barão de Caxias, que, pela vitória, foi elevado a Duque. Em uma colina da periferia de Santa Luzia, no palco em que o exército rebelde foi vencido, foi erguido um monumento enaltecendo o chefe vitorioso. Infelizmente, nenhuma lembrança existe no local para homenagear os combatentes desconhecidos de ambos os lados, mortos na batalha.

Pelos muitos caminhos das Minas Gerais

A malha de estradas coloniais foi-se expandindo e melhoramentos foram sendo gradativamente realizados nas trilhas, como calçamentos, pontes e albergues. Afinal de contas, o Distrito Diamantino, que englobava terras dos vales dos rios das Velhas, Doce e Jequitinhonha, chegou a ser considerado como a região mais rica do mundo. Por volta dos Setecentos, Ouro Preto era a maior cidade das Américas, com mais de cem mil habitantes. Vias de tráfego chegavam de todas as direções à região central de Minas Gerais. A mais famosa foi a Estrada Real do Mato a Dentro que ligava Ouro Preto a Diamantina, atravessando a floresta atlântica que recobria o vale do Rio Doce. No vale do Rio das Velhas, um importante caminho ligava a região de Sabará e Santa Luzia com o oeste, em direção a Paracatu, e em seguida a Goiás. Outra via dirigia-se do Rio das Velhas ao São Francisco, em direção à Bahia, e era conhecido como o Caminho dos Currais. De fato, nessas várzeas criavam-se boiadas, que produziriam o charque, o que levou ao estabelecimento dos latifúndios de homens ricos e poderosos, formando os potentados do sertão. Havia ainda uma importante trilha entre Sabará e Diamantina que galgava a Serra do Espinhaço e que transpunha do vale do Velhas para o vale do Jequitinhonha na região do Pico do Itambé. Era conhecida como a Estrada Real do Sertão e teve intenso tráfego por mais de dois séculos, até que foi abandonada ao ser substituída por estradas de rodagem que preferiam as baixadas, fugindo das escarpas e desfiladeiros. Ainda hoje existem trechos escondidos nos altos das montanhas, cobertos de mato, mas as pedras de bordas polidas que atapetam algumas rampas testemunham os tempos de glória de um passado distante. A Comarca do Rio das Velhas possuía vários Registros, uma espécie de alfândega, onde todos que entrassem com gêneros com fins comerciais como gado ou cargas de secos e molhados deviam pagar impostos. O Registro das Abóboras deu origem a Contagem, datada de 1716 e outros surgiram como o de Sete Lagoas, Jequitibá, Olhos d’Água e Ribeirão da Areia.

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A ocupação da bacia do Rio das Velhas foi ocorrendo gradativamente, de início de forma lenta, mas no último século de forma vertiginosa. Novas cidades foram sendo construídas a partir dos antigos povoados. Na parte alta do rio surgiu Itabirito, que inicialmente tinha o nome de Itabira do Campo e era distrito de Ouro Preto. Nova Lima desmembrou-se de Sabará e Raposos desmembrou-se de Nova Lima. No médio Rio das Velhas surgiram Lagoa Santa, Jaboticatubas e Santana do Riacho (antes Riacho Fundo), que pertenciam a Santa Luzia. Do município de Curvelo, no baixo Rio das Velhas, separaramse Santana de Pirapama (antes Traíras), Cordisburgo, Corinto (antes Curralinho), Lassance e Várzea da Palma. Hoje, 51 municípios compõem a bacia do rio e os seres humanos já ocupam todo o território, à exceção das áreas inóspitas nos altos das montanhas.

A era das grandes transformações

O século XIX marca uma série de transformações incluindo, no Brasil, o início da lenta transição da mão-de-obra escrava para a assalariada. Em Minas, uma série de atividades foram desenvolvidas, como a mineração, a siderurgia e a indústria têxtil. O café, antes uma plantinha de fundo de quintal, passa a ocupar importante lugar na exportação nas três últimas décadas desse século, quando Minas assume o segundo lugar na produção (atrás apenas de São Paulo).

Um eremita e um oficial da cavalaria de Minas Gerais. Desenho de Jas Henderson e impressão de C. Hullmandel, Inglaterra, século XIX. Coleção Bráulio Carsalade Villela.

Páginas seguintes: Ponte provisória sobre o Rio das Velhas, Sabará, 1907. Fotografia: Raymundo Alves Pinto. Acervo Museu do Ouro, Sabará.

As estradas de ferro expandiam-se para todas as regiões de Minas e a maria-fumaça contornava montanhas, chegando a distantes localidades. A malha ferroviária iniciou-se com a Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1869, e mais tarde várias outras também cortaram o estado. Ao longo do Rio das Velhas, o trem de ferro percorreu toda a sua extensão. Passava por todas as cidades importantes da época da construção como Ouro Preto, Itabirito, Rio Acima, Sabará, Santa Luzia, Sete Lagoas (Jequitibá, sob protestos, ficou de fora do roteiro), Curvelo, Corinto, Várzea da Palma e Pirapora. Todavia, seu período áureo durou poucas décadas e hoje grande parte do trajeto está desativado e o que ainda funciona transporta carga, ainda assim em escala reduzida. A hidrovia foi também outro sonho que teve vida curta. A partir de 1870, os barcos a vapor começaram a singrar os rios das Velhas e São Francisco e, antes que esse meio de transporte completasse um século de existência, foi totalmente abandonado, devido ao assoreamento dos rios. A mineração, sob controle do capital inglês, inicou-se com vários grupos, sendo um deles a Imperial Brazilian Mining Association, em Gongo Soco, município de Caeté, em 1824. Há quase 300 anos o rico Quadrilátero Ferrífero da região central de Minas vem sendo explorado intensivamente. O processo de fundição do ferro, antes executado de

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forma artesanal em pequenas forjas, foi implantado de forma industrial na bacia do Rio das Velhas, em Caeté, por volta de 1860 e, em 1917, instalou-se em Sabará a Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. O processo de industrialização intensificou-se com a criação, em 1941, do Parque Industrial de Contagem. A produção têxtil caseira, desde o século XIX com suas rocas, teares manuais, fiandeiras e tecedeiras supria o mercado interno. O cultivo e fiação do algodão cresceu em vastas regiões de Minas Gerais, incluindo a bacia do Rio das Velhas. Na segunda metade do século XIX algumas fábricas têxteis foram criadas, inicialmente aproveitando as quedas d’água para mover as máquinas e posteriormente utilizando-se de energia elétrica, gerada pelas próprias cachoeiras vizinhas. Em poucas décadas, passaram a exportar tecidos para outras regiões, especialmente para o nordeste brasileiro. Eram vários os barcos a vapor que transportavam a produção rio abaixo e retornavam com algodão. No final do século XIX, Ouro Preto, por não poder se expandir devido ao terreno acidentado em que se situava, já não comportava mais as atividades de capital mineira. Iniciaram-se estudos para definir novo local que abrigasse o centro administrativo de Minas e, dentre quatro analisados, foi escolhida a área em torno do vilarejo do Curral del Rei, que pertencia a Sabará. O primeiro nome da capital foi Cidade de Minas, depois mudado para Belo Horizonte, construída entre 1894 e 1897, ano de sua inauguração. Ao final do século XIX e início do XX, a política do café com leite levou o Estado de Minas Gerais a um cenário de destaque político juntamente com São Paulo, mesmo com momentos de desacordos entre ambos. A década de 1930 viria a lançar as bases do autoritarismo, com Getúlio Vargas estabelecendo o Estado Novo, em 1937, e imprimindo um corte nos direitos básicos da cidadania. Após o período Varguista, ensaiou-se uma frágil democracia novamente, que mais tarde culminou com o governo do mineiro Juscelino Kubitschek, marcado pelo incentivo ao processo de industrialização, ao transporte e à energia.

Vista da Cerâmica Nacional, em Caeté, circa 1910. Fotografia: Raymundo Alves Pinto.

Nas cidades da bacia do Velhas também foram geradas idéias e atos dos quais não se deveria orgulhar. Na década de 1960, forças políticas conservadoras, insatisfeitas com os rumos que o governo João Goulart dava ao país, iniciaram uma conspiração, orquestrada principalmente em Belo Horizonte, que resultou no golpe de 1964. Implantou-se, então, vinte anos de ditadura militar no país. Para interromper esse regime de força foram necessárias grandes mobilizações populares, quando as praças das cidades tornaram-se o palco em que se exigiam eleições diretas para todos os níveis de poder e o retorno da regra do jogo democrático. Nessas ações, Minas Gerais se fez presente de forma incisiva, redimindo-se de erros do passado.

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Mais recentemente, a tônica da política ambiental e a urgência em se pensar o espaço ocupado pelo homem na natureza ganharam ênfase. Em função das atividades predatórias sobre o meio ambiente, da busca de riquezas ao longo de toda a história colonial e posteriormente com as empresas ansiosas em lucrar no período de surgimento e incremento da industrialização, as bacias hidrográficas foram alvo de ações que as levaram à degradação, poluição e abandono. Por fim, após séculos de agressões ao Rio das Velhas, a todos os seus afluentes e também às suas milhares de pequenas nascentes, uma tomada de consciência começa a se difundir entre as pessoas e a tomar corpo em ações localizadas. O sentimento de irmandade com a natureza é a marca das últimas décadas e, sem dúvida, um diferencial entre as gerações atuais e as anteriores. Hoje, o Rio das Velhas é uma fonte de problemas, mas também de soluções para os mais de quatro milhões de habitantes da sua bacia. O novo capítulo da História que se inicia no século XXI é o da sua recuperação e o sucesso dessas ações sobre o rio está estreitamente vinculado a um futuro melhor para suas comunidades, seus patrimônios naturais, culturais e históricos, refletindo-se na vida de milhões de brasileiros.

Trecho da Avenida Afonso Pena nas imediações da Igreja São José, Belo Horizonte. Editora Lunardi e Machado, s/d.

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Iconografia

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Abstract

The history of human occupation told by the river itself This chapter’s goal is to retell the history of human occupation of The Velhas River basin, important region of the nucleus that formed the State of Minas Gerais. Aspects of social and human history were considered, along with their relations, not only concerning urbanization and technical development, like roads and cities, but also how its inhabitants built their lives and survival strategies, in spite of intricate power relations. The first traces of humans go back twelve thousand years. A mark of that era are the fossils of a woman, with negroid face, known by the name of Luzia. The indian tribes that populated the riverbanks, especially at the end of the seventeenth and along the eighteenth centuries, had their lives changed because of pioneer expeditions and conflicts with settlers. The search for gold and diamonds accelerated the inhabitation of the territory, with the coming of African slaves. Throughout the region, rebellions started breaking out due to disputes over territories. On top of that, road expansions brought forth the development of that region, like the trail that runs from Sabará to Diamantina and the Currais Path, which passed along The Velhas River. The nineteenth and twentieth centuries brought along with them the transition from slavery to a free work force that got paid for their labor, culminating in capitalist forms of work, which accentuated the rivers’ degradation even more. Railroads spread and the industrialization process intensified. More recently, the country went through a political period with the military dictatorship, result of a coup d’état orchestrated mostly in Belo Horizonte. Today, a new chapter of history has been started with the quest to improve the relationship between man and nature, and make things happen different from past generations.


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Lavadeiras. Acervo Casa de Borba Gato ⁄ Museu do Ouro, Sabará.

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Professor de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisador de História da Medicina


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8 As histórias submersas do rio que não quer morrer João Amílcar Salgado 1


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As águas do Rio das Velhas é que urdiram os primeiros causos de Minas, ou seja, os causos mineiros começaram a existir quando foram narradas as primeiras coisas e loisas relacionadas a este nosso rio umbilical. Vejamos o exemplo do trágico naufrágio do cadáver de Fernão Dias. O bandeirante estabelecera que caso falecesse por aqui deveria ser recambiado a São Paulo, para jazer no Mosteiro de São Bento. Como de fato faleceu antes de regressar, seu corpo foi mumificado e, junto com as pedras verdes por ele recolhidas, foi colocado numa embarcação para subir o Rio das Velhas. O barco adernou e com muita dificuldade conseguiram retirar o ilustre corpo desse túmulo que lhe ficaria bem. Foi levado para o tosco mosteiro da época. Já no século XX, seus restos foram transferidos ao atual mosteiro. A preservação de parte do cadáver causou admiração, especialmente seus cabelos arruivados semi-encanecidos. O Projeto Manuelzão pretende reconstituir seu semblante e estudar sua morte, após nova exumação. Outro desenlace ligado a esse rio nos chega do relato oral de que as águas de um seu afluente na hoje cidade de Nova Lima teriam sido desviadas para inundar escavação aurífera. O objetivo seria afogar acidentados sem esperança de resgate e pode ter sido inédito procedimento de eutanásia coletiva. De outra feita, as águas subiram tanto e em tão poucas horas que foi talvez a maior enchente já vista na cidade de Sabará, a ponto de figurarem nas “Efemérides Mineiras”, de Xavier da Veiga. Próximo a Sabará, em Roça Grande, nas Congonhas das Minas de Sabará, havia uma lagoa, de início também chamada Grande, depois Prodigiosa, mais tarde de Nossa Senhora da Saúde e hoje Lagoa Santa. Suas águas curaram as perebas crônicas de um dono de engenho, que parecia necessitado mais de banho do que de outra terapia, e o prodígio, relatado em dois textos, foi divulgado na Europa, em 1749. A fama do local veio atraindo gente e cem anos depois ainda trouxe o próprio médico Peter Lund. Inevitável foi atrair também leprosos cujo número crescente causou, além da mudança toponímica, a inspiração para o célebre Vínculo da Jaguara, que resultou na Santa Casa de Sabará e, principalmente, no leprosário pioneiro, este instalado a distância conveniente da lagoa. Na primeira metade do século XX, migrantes contaminaram a lagoa com a esquistossomose, então balneário dos ricos, produzindo nestes inusitada epidemia de doença tão típica dos pobres.

Guerra dos Emboabas (detalhe). Painel de Caribé, 1962. Acervo Museu Mineiro.

Nada, entretanto, rivaliza com a tragédia maior da degradação do Rio das Velhas, que fez do rio paterno dos mineiros verdadeiro riocadáver, como o cadáver do indômito Fernão. A diferença é que o Governador das Esmeraldas ficou bem mumificado. Sim, mesmo depois do naufrágio, seu corpo não estava fétido e nem foi vilipendiado, como acontece hoje com seu rio.

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Perto de sua nascente, ergue-se um menino de pedra e o próprio nome das águas fala de mulheres velhas sem nome, que talvez tenham ficado anônimas por serem meras índias. Na corrida inaugural por ouro e pedras, o povoamento alienígena se deu por adultos sem crianças e a ausência destas deve ter reforçado a percepção do contorno “colomi”. Muitas das que daí passaram a nascer vieram da conjunção forçada com índias que não eram gente, tanto que, velhas, de seu nome sequer sabemos. E de tal modo gente não eram que explicações outras para este Velhas vêm sendo propostas, agravando-se mais o vexame histórico. Essa discriminação que madrugou tão confessadamente, aconselha-nos a reescrever toda a História mineira, para nela incluirmos, tintim-por-tintim, moeda-por-moeda, não só velhas, crianças e índios, mas negros, judeus e árabes. E até a Geografia é mal contada. Que conciliábulos houve para impedir que Minas tivesse mar? Basta olhar a América do Sul e comparar o lado castelhano com o lusitano para vislumbrarmos o risco de fato havido de que o Brasil viesse a ser repartido em várias unidades nacionais. Uma das explicações terá sido a providência de abortar a independência antecipada das Minas, que, quase certo, teria ocorrido se tivéssemos tido acesso ao oceano. E tal providência teria sido decidida não em Portugal mas onde os diamantes e o ouro eram controlados. E dessa decisão resultou a chamada Guerra dos Emboabas, cujo nome mais apropriado seria Guerra do Rio das Velhas. Duas outras subseqüentes arremetidas mineiras foram igualmente abortadas, uma na Inconfidência, tramada desde próximo à nascente do mesmo rio, e outra em 1842, às suas margens, na epopéia santa-luziense, onde Caxias sofreu sua única derrota. Inventar a província do Espírito Santo e espichar os mapas da Bahia e do Rio de Janeiro foram conspirações adrede orquestradas, sem qualquer devassa conseqüente. E desse constrangimento participou a Igreja, pois a diocese de Olinda chegava a Paracatu, a diocese baiana de Jacobina chegava a Minas Novas e a de Goiás chegava ao Triângulo. A ligação por terra entre Jacobina e os vales do Mucuri e do Jequitinhonha traria a citada esquistossomose a Minas Gerais, enquanto já em 1729, Antonio Pereira Garcia já levava diamantes mineiros para a Bahia. E, se Minas se tivesse transformado em país, é provável que o resto da colônia não se fragmentasse, pois aqui nascia não um mas dois rios da unidade nacional e éramos mais cultos, mais preparados e mais competentes que a própria metrópole. Aqui se fez um completo iluminismo, tão livre e tão desabusado que não houve igual nem na América do Norte, nem na Ibéria. E, se o ouro e o diamante daqui não fossem expropriados para financiar a revolução industrial inglesa, esta poderia muito bem ter ocorrido aqui, caso vingasse a

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miragem de Hanequim ou a idéia americocêntrica tropical de Thomas Jefferson. Sim, as escolas brasileiras não ensinam uma verdade basilar, qual seja o fato incontestável de que a reviravolta industrial na Europa teve dois insumos essenciais, originários da América do Sul: nossa batata nativa (cinicamente chamada batata inglesa) e os minérios preciosos revelados a partir da miragem do Sabaraboçu. O conflito entre emboabas e bandeirantes vinha sendo narrado sob o ângulo destes, até que Isaías Golgher (1956) oferecesse a interpretação de que os emboabas eram a modernidade e os paulistas o atraso. Foi então que Simeão Ribeiro Pires (1979) levantou inédita documentação do outro lado, o dos currais da bacia Velhas–São Francisco (um deles Curral-del-Rei, hoje Belo Horizonte). Espanta saber que a maioria desses currais era abrangida pelo maior latifúndio do mundo, o dos Guedes-de-Brito, que se estendia do Recôncavo às águas do Rio das Velhas. Os historiadores oficiais de Minas pigarrearam, flagrados na ingênua versão que professavam. Isso permitiu a Raimundo Fernandes confirmar que a disputa na verdade foi uma guerra civil, a primeira das Américas, com triunfo dos oprimidos. Apoiados em dez mil homens em armas (na Colônia toda não havia nada igual) e em desafio aos brios da nobreza — derrotaram os opressores, expulsaram o governador Mascarenhas Lencastre, elegeram em seu lugar Nunes Viana, praticaram outros atos privativos dos delegados da Coroa e enviaram um dos líderes a Lisboa para exigir atrevidamente que tudo isso fosse sancionado. Depois de insurgência tão irreversivelmente vitoriosa, nada restou a Antônio Albuquerque, pragmático representante metropolitano, do que acatar e conciliar. Verificamos então que houve um continuum de insubmissão destas montanhas, pois a altivez tapuia, causadora de sumário genocídio, foi seguida da aclamação de Viana, vindo depois o desafio de Felipe dos Santos, o sonho de Tiradentes e a bravura de Teófilo Otoni. Quem melhor definiu esta vocação foi seu primeiro inimigo, o conde de Assumar: A terra evapora tumultos; a água exala motins; destilam liberdade os campos; o clima é tumba da paz e berço da rebelião. Como a responder ao conde, o poeta Augusto de Lima disse das ruas de Ouro Preto ou das tementes penhas mineiras: Este é um livro de pedra: há nele escrito, ⁄ com o sangue dos mártires, um poema. Na Praça da Estação de Belo Horizonte, bem junto ao outrora piscoso Arrudas, afluente do Velhas, há um monumento em louvor dessa sangrenta mas insigne continuidade. Infelizmente, hoje ninguém lê sua inscrição, ainda mais em latim: Montani semper libri (os habitantes destas montanhas serão sempre livres). O mau cheiro do Arrudas derrota o perfume das maltratadas flores da praça, no ofício de enobrecer a frase totêmica de Minas. Devemos aproveitar o mote e

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Crioulo. Litografia de Engelmann a partir de desenhos do natural de Rugendas.

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Rita Cassimira de Paula, mulher do Capitão Evaristo de Paula, fazendeiro em Curvelo, circa 1850. Coleção Heloísa de Paula Pinto.

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Antônio Pedro Pinto, professor em Caeté, no século XIX. Era irmão do famoso erudito Alferes Luiz Antônio Pinto e avô de João Pinheiro, governador de Minas Gerais em 1890 e 1906–1908.

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Pintura anônima. Acervo Museu Casa João Pinheiro, Caeté.

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José Severiano de Lima, minerador em Congonhas do Sabará, no século XIX. Conhecido como Juca da Califórnia, era pai de Bernardino de Lima, de Antônio Augusto de Lima, poeta e governador de Minas Gerais em 1891 e da professora Emília de Lima, entre outros Desenho de J. Araújo, s.d. Coleção Luís Augusto de Lima.

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Índio maxakali. Desenho de Rugendas, 1824. Acervo Academia de Ciências da Rússia.

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6 “Um sertanejo”. Sem referência. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

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Quintiliana Jardim Wanderley e José Francisco Ribeiro Wanderley, moradores da Fazenda Boa Vista, em Honório Bicalho, circa 1870. Coleção Luís Augusto de Lima

11 8 e 9 Fotografias da Expedição Científica do Instituto Oswaldo Cruz à região do Rio São Francisco. Fotografia: João Stamato e Cipriano Segur.

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10 Mulher de Santa Luzia. Desenho de Rugendas, 1824. Acervo Academia de Ciências da Rússia.

11 Índia coropó. Litografia de Engelmann a partir de desenhos do natural de Rugendas.


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erguer nova palavra de ordem, em resposta a Assumar: que as águas, em vez de exalar podridão, exalem o motim verde do respeito radical à natureza. Não seria justo deixar de ouvir o lado bandeirante, onde Borba Gato é tido como desbravador extraordinário. Além de ter sido o primeiro, foi enérgico e hábil administrador de Minas Gerais. Demais, era casado com Maria Leite, filha de Fernão Dias. Se Fernão não descobrira as verdadeiras esmeraldas, ele, Borba, salvara o empreendimento do sogro. Ao descobrir o ouro do Rio das Velhas, ele confirmara algo há muito procurado. Sim, o eldorado de Sabaraboçu deixara de ser lenda para ser grata realidade não em gemas mas em ouro, representada por concretas 50 arrobas. Com seus cunhados (legítimos e bastardos) e demais parentes, deveria aspirar exclusividade sobre toda e qualquer riqueza das minas descobertas e por descobrirem, daí seu confronto com Viana e com Castelo Branco. O comando bandeirante sabia da urgência metropolitana por ouro. De fato, o desespero do regime filipino prolongou-se no desespero maior da ultra-endividada nobreza lusa, composta de ex-sabujos de Castela. A perspectiva de ruína era clara diante dos tratados anglolusos de 1642–54-61, assinados num crescendo de humilhações inauditas, sendo a maior delas indenizar a Holanda por tê-la derrotado. Tudo trouxe a impaciência para com os métodos bandeirantes, precipitada pelo fiasco das falsas esmeraldas. Cumpria destituir os paulistas, que, percebendo a manobra, desconfiavam de contrabandistas, arribados da Bahia pelo Rio das Velhas, tanto quanto de representantes do reino, por mais credenciais com que se apresentassem. Provocação maior foi o monopólio de gêneros, inclusive o sal, nas mãos de dois “frades” emboabas, denominados apenas Menezes e Conrado. De fato, não só para Borba Gato, como para todos seus primos e parentes engajados em caçar índios e riquezas, Nunes Viana não passava de contrabandista, enquanto Castelo Branco era mero suspeito de estar a serviço de interesses ainda ligados ao poder filipino. Infelizmente para Gato, ele só teve êxito pela metade, pois, além de eliminar Castelo Branco, eliminaria também Viana se tivesse vencido. Com tais premissas, podemos supor que, caso fosse outro o desfecho, o diamante do Tejuco teria ficado com descendentes de Fernão Dias e Borba Gato. O mais irônico é que o filho de Dias foi cooptado justamente em favor da construção do Caminho Novo, empreendimento capital da marginalização bandeirante. Outro sinal de mudança de poder foi a conveniente mudança de sobrenomes, por exemplo, a troca do Bueno, de origem bandeirante, para Martins-da-Costa, no Calambau. Reciprocamente, várias famílias importantes de Sabará, Caeté, Ouro Preto e Lafaiete são de origem baiana e conservam parentes em Salvador.

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Rubens Fiúza, ao historiar o diamante de Abaeté, esclareceu mais ainda tais acontecimentos. Ele confirma que os emboabas incluíam assalariados de Antuérpia disfarçados de contrabandistas, razão por que o sobrenome não-luso havia de ser também disfarçado. E, para comprovar, cita seu próprio cabalístico sobrenome, denotador da fidúcia monopolista. Concluímos disso que o expediente inicial de seqüestrar um território diamantino, cercado pelo resto da colônia, fracassara e que o mais inteligente e eficaz veio a ser, em vez de combater o contrabando, fazer dele um instrumento ideal. Assim, o domínio seguro do comércio tanto intermediário como final, quer de ouro quer de gemas, prevalece até hoje. Fez parte de tal controle vulgarizar como semipreciosas gemas de fato preciosas e até únicas. Finalmente, de toda esta já longa história permanece o mistério da prata, pois, se desde o início ela foi procurada, de certo modo não deixou de ser encontrada e até hoje sabe-se que dela existe imensa quantidade. Podemos até dizer que, tal como a de outros eldorados, a lenda do Sabaraboçu foi fomentada de propósito, a partir de 1550, por Filipe de Guillén, para deflagrar as entradas — 39 anos após a invasão espanhola do império inca. De fato, esse misterioso espanhol, que era boticário e matemático, diz, em carta escrita de Salvador a El-Rei, que índios chegaram a Porto Seguro e falaram de certa montanha de cor amarela resplandecente, sita além de grande rio, donde se obtêm utensílios de ouro. O nome da serra seria sol terrestre, ou ita-berá-guaçu. Se a referência real da lenda inclui a notícia de artefatos dourados e refere um rio grande do sul — indígenas andinos e tupis-guaranis podem ter comungado dela por meio dos quíchuas, que alcançavam o Atlântico via Rio da Prata. De fato, bem antes de Guillén, em 1516, no litoral hoje de Santa Catarina, o náufrago Aleixo Garcia teve notícia de um reino da prata, em busca do qual chegou, em 1524, às minas de Charcas na Bolívia. A inventividade para o contrabando foi um dos pilares de nossa decantada criatividade ou jeitinho, que percorre desde o esconderijo anal e vaginal (de gente e de animais), passa pelos santos de pau-oco até chegar à carapinha de Xico Rei. Um dos pontos sentinelas contra contrabandistas do baixo Rio das Velhas foi a hoje Sete Lagoas, pois ali era a boca do sertão — e um dos responsáveis pelo posto foi o alferes Tiradentes. Ciro Loures, o maior estudioso do herói, presenteou-nos com seu trajeto de Vila Rica até ali, que, em nossos dias, está programado para ser revivido a cavalo em plenas vias públicas de Belo Horizonte. Do alto da Serra do Curral, Tiradentes desceria o lado direito do Córrego Acaba Mundo, passaria por uma favela, atingiria a hoje Praça JK, desceria a Avenida Uruguai, a Rua Grão Mogol, a Rua Professor Morais e a Avenida Afonso Pena até o cruzamento desta com a Rua Pernambuco. Atravessaria então pequena ponte para orar na capela da Boa Viagem, retomaria o caminho, passaria

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pelo Parque Municipal, refrescar-se-ia na pequena cachoeira ali existente, para, margeando o Rio Arrudas, rumar a Sete Lagoas (hoje deprimente boca do carvão). A cavalgada evocativa terá por comitente o ginete-historiador Hélio Tavares Filho. O contrabando mais fascinante teria sido perpetrado por gente brasonada ou de altas patentes. Mexer nisso era temerário naquele tempo. Remexer agora causa compreensíveis arrepios aos historiadores. Fidalgos, capitães e conselheiros, com fortunas misteriosamente acumuladas e misteriosamente dilapidadas, fazem da região do Rio das Velhas inspiração fértil, quer para promissores suspenses cinematográficos, quer para intrigantes roteiros turísticos. Tivemos até um conde de Monte-Cristo mineiro. Foi o barão de Catas Altas que, ainda simples sacristão, herdou a mina de Gongo Sôco. Em 1824, durante dois meses somou 200 kg de ouro. Acompanhado de fiéis 40 áulicos, passou a dar banquetes que culminavam com baixelas de porcelana e cristais despedaçados, logo substituídas, enquanto os comensais eram brindados com almôndegas de ouro maciço. Além da mansão principal em Catas Altas, mantinha outras em Caeté, Ouro Preto, Sabará, Santa Luzia e Brumado, cada qual com apetitosa mesa sempre ao dispor de quem chegasse. Em Sabará, presenteou Pedro I com baixela de ouro puro. Depois foi apresentado ao imperador, que ouviu seu nome: João Batista Ferreira de Souza Coutinho. Vendo-o bem baixote, Pedro diz: um nome tão grande para pessoa tão pequena! . . . Ao ser advertido de que o alvo do chiste foi quem lhe dera a baixela, o imperador de pronto o fez barão. Mas logo sua fortuna se esvaiu. Com o pouco que restava, arriscou a compra da mina de Macaúbas. E não é que voltou a ser riquíssimo? Foi levado, entretanto, a vendê-la por apenas 90 mil libras à Imperial Braziliam Mining. Em 12 anos, os ingleses obtiveram ali 1,2 milhão de libras. Atormentado por credores, faleceu na miséria, em 1839, e seu único filho ainda vivia em 1890, num casebre de Caeté. Outros que despertam igual curiosidade são o visconde de Caeté e os barões da Jaguara, do Rio das Velhas e de Cocais, sendo que o primeiro e o último estão envolvidos, respectivamente, na Independência e na Revolução de 1842. A lenda desacreditada diz que, de tanto manter o segredo de suas fortunas, o tempo foi passando e a morte dos que algo sabiam fez desaparecer o mapa do tesouro principal. O fator decisivo para seu êxito aparente foi beneficiaremse da falsa idéia do fim do ouro, no momento exato em que o ouro de subsolo, em vez de findo, estava ao alcance deles e em quantidades espantosas. Se a revolução industrial tornou viável empreitar o ouro de subsolo, a derrota napoleônica, em 1815, abriu todos os caminhos à expan-

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são do império britânico, desta vez em moldes vitorianos. Foi quando o controle de materiais preciosos passou a um novo arranjo da antiga aliança bucaneira entre ingleses e neerlandeses. Assim como as lavras de diamante e ouro do século XVIII corresponderam ao desfavorecimento da escravidão indígena e ao apoio aos emboabas, também a nova geopolítica do século XIX implicou o desfavorecimento da escravidão negra e o apoio à independência de colônias, desde que estas não fossem as inglesas. Para alcançar tais objetivos, foram acionados brasileiros ligados por parentesco ou por veladas razões a mercadores flandrinos. Agiram inicialmente em prol da independência, para, em seguida, se fazerem testas-de-ferro das minas de subsolo. A figura mais marcante dessa ação foi Felisberto Caldeira Brant Pontes, alçado a interlocutor do novo país com os ingleses, na verdade entregandolhes tudo de mão-beijada, em subserviência que espantaria mais tarde o próprio britânico Burton. O mais coincidente é que os Brants são originários da localidade onde houve a batalha final contra Napoleão, ou seja, Waterloo, ducado de Brabante. Assim, a propalada influência mineira na independência ganha novo significado. Até agora, os historiadores enfatizaram o acaso da amizade entre o príncipe e um ou outro mineiro, para desaguar num grito emocional. Doravante, o papel de Brant Pontes, José Teixeira Fonseca Vasconcelos (o citado visconde de Caeté) e Bernardo Pereira Ribeiro Vasconcelos (ambos também parentes de Van-der-Borgs, de Antuérpia), padre Belchior Pinheiro de Oliveira (confidente do príncipe, ligado aos Brants e parente dos Andradas), conselheiro Fernando Barradas (parente dos Vasconcelos), João Gomes da Silveira Mendonça (marquês de Sabará, iniciador do Jardim Botânico do Rio), João Severiano Maciel da Costa (marquês de Queluz, governador da Guiana Francesa e pioneiro fruticultor) e Francisco Pereira de Santa Apollonia (cônego) adquirem esclarecedora luz emanada do subterrâneo de nossas montanhas.

Família indígena. Litografia de Engelmann a partir de desenhos do natural de Rugendas.

Coisas notáveis então aconteceram. Por exemplo, em 1818, o capitão-mor José Alves da Cunha retirou 170 kg de ouro de um só veeiro de jacutinga aurífera, em Gongo-Sôco. Em 1824, saem os referidos 200 kg do ex-sacristão. Em 1829, foram retirados dali 347 kg em 16 dias, de tal modo que, em 1830, essa mina já era da mesma Imperial Brazilian Mining. De imediato, seu perplexo superintendente inglês apurou dez quilos do minério que lhe chegou às mãos no chapéu de um escravo. E isso se repetiu nas outras minas: Macaúbas, Passagem de Mariana, S. Bento, Juca Vieira, Cuiabá de Minas, Descoberto, Vazado, Onça, S. Quitéria, Vira-Copos, Guanhães, João Pinto, Xicão, Ouro-Fala, Sapucaí e Morro Velho. Esta, em 1834, já era da St. John d’El-Rey Mining.

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Estando o ouro abertamente em mãos de protestantes anglicanos, não era mais necessário continuar dourando os templos católicos — esperta ostentação de sinceridade cristã praticada por suspeitíssimos cristãos-novos (ao mesmo tempo, concretização aparente do sonho do cristão-novo padre Vieira de unir os credos do novo e do antigo testamento). De modo análogo, a velha inteligência templária da Ordem de Cristo, por ser estreitamente católica, foi pactuadamente substituída pela rede igualmente iniciática da franco-maçonaria oitocentista, que veio se organizando na Inglaterra desde 1717, a partir de corporações medievais alsacianas. Em substituição à beleza invencível das peças barrocas, os ingleses vieram com a modernidade industrial do trem-de-ferro. Com isso, desvalorizaram a navegação, mesmo contra o entusiasmo de empreendedores e estudiosos quase esquecidos. Navegar não mais era preciso, pois as águas, antes abusadas na lavagem de veios e gangas, teriam de ser pensadas, no século XX, exclusivamente como refrigério para o imenso calor das siderúrgicas. Para historiar a navegação no Velhas–São Francisco, urge conhecer a vida e obra de um outro alferes Joaquim: o trovador edenista Joaquim José de Lisboa, e também de Henrique Dumont (construtor da ponte em Sabará, primeiro megaempresário brasileiro, em São Paulo, e pai do semi-sabarense Santos Dumont), de João Salomé de Queiroga e de Josefino Vieira Machado (barão de Guaicuí, que de tanto se ligar ao Rio das Velhas morreu de suas febres, tal como Fernão Dias). Valem também os estudos mais gerais feitos por Henrique Halfeld (mercenário do primeiro exército nacional, depois mineiro por adoção e pioneiro de Juiz de Fora), Inácio Accioli Cerqueira, Teodoro Sampaio, Orlando Carvalho, Antônio Magalhães Mosqueira (autor de texto precioso, de 1870, sobre perspectivas industriais mineiras), Lucas Lopes (bisneto deste último e ministro de Kubitschek) e Carlos Lacerda (que estudou o vale franciscano ainda como militante marxista, sob o codinome Júlio Tavares). Da ternura que a ponte de Dumont evoca, disse Afonso A. M. Franco: “[Emílio] Moura, triste como um sabiá na muda, fic[a], da ponte preta de Sabará, olhando o velho rio das Velhas carregar, no dorso escuro, o corpo trespassado de D. Rodrigo de Castel Blanco.” Das trovas de Lisboa, eis uma que descreve o parto indígena, talvez no próprio Rio das Velhas: “Logo que a gentia páre, ⁄ haja calma ou haja frio, ⁄ mete-se toda no rio, ⁄ e o tenro filho também.” 1, 2 e 3 A Expedição Manuelzão desce o Rio das Velhas Fotografia: Cuia Guimarães.

4 Um vaqueiro. Fotografia: Maureen Bisilliat. Acervo Museu Casa Guimarães Rosa, Cordisburgo.

Em retribuição à rendosíssima parceria oferecida aqui e alhures pelos flamengos, o império britânico inventou a autonomia do grão-ducado de Luxemburgo e presenteou-os, em 1885, com uma colônia, o Congo, logo denominado Belga — coincidentemente uma das fontes de escravos para Minas. Exatamente da província de Catanga do Congo sairia o minério no qual Maria Curie descobriu o radium, apresentado então como revolucionária tecnologia médi-

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ca. Pois bem, logo depois que a Escola de Minas ingenuamente anunciou, em Estocolmo, em 1910, a altíssima qualidade e a infinita quantidade de nosso minério de ferro, os mesmos belgas adquiriram quase todas as jazidas. Em 1921–22, dentro de irônicas comemorações da Independência do Brasil, foram inaugurados a usina Belgo-Mineira e o Instituto do Radium, com a visita do próprio soberano belga. A primeira universidade do país foi inaugurada às pressas para fazê-lo doutor honoris causa. E a própria Maria Curie esteve aqui em 1926. Trágico por sua ingenuidade aparente, merece estudo à parte um fervoroso divulgador de nossos segredos minerais no exterior, o engenheiro, erudito e poliglota, Joaquim Cândido da Costa Sena. Estando a vaidade, a ingenuidade e, principalmente, a cobiça a pairar sobre tudo, foi soberano o desleixo com tudo o mais e principalmente foi mínimo o escrúpulo com os seres vivos. Tudo isso levou à devastação de árvores, animais e homens. Flora e fauna vêm sendo exterminadas por incêndios tricentenários, que, de início, foram até institucionalizados culturalmente. Sim, a agressão estava justificada pela espantosa crença de que em agosto, justo o mês mais ventoso (de preferência o dia 24, de São Bartolomeu), era próprio para botar fogo em campo e mata, pois se aproveitava para queimar o demônio, distraído a dançar nos redemoinhos. Quem visita as igrejas e casarões coloniais em Sabará e em outras localidades antigas fica admirado do madeirame sem o qual não estariam ainda de pé, mas já não há quem diga de que árvores foi extraído. A escolha para infinitos usos era feita em magnífico repertório de gêneros e espécies: jequitibás branco, cedro e rosa, jacarandás rosa, branco, -tã, -buçu e roxo, ipês amarelo, branco, rosa e peroba, aroeiras do sertão e da mata, sucupiras amarela, verdadeira e sucupirunaçu, paus–tatu, ferro, brasil, pereira, e mulato, cedros comum e vermelho, guatambus de caroço e amarelo, perobas rosa e mirim, angelins rosa e de pedra, pequiás comum e marfim, canelas sassafrás e preta, óleos bálsamo, rajado, pardo (jataúba) e copaíba, vinhático, jatobá, candeia, cabiúna, sapucaia, sapucarana, araribá, gameleira, cabreúva, sobrasil, braúna, angico, canjico, maçaranduba, imburana, tamboril, pessegueiro, amoreira, araucária, pequizeiro, guararema, cambuí, tapinhoã, sucanga, gonçalo-alves, sebastião-darruda, ubatinga, mutamba, munjolo, jacaré, gibatão, muçambé, catuá, tambuí, oiticica, cutucanhém, arapoca, jataipeba, putumuju, pajeú do sertão, licorama, grumarina, araçá, guaritá, guarantã, landim, tatajuba, ubatã e caixeta. Não bastassem tantas, nossas palmeiras eram: buriti, juçara, macaúba, indaiá, iri, guariroba, brejeúba, catolé, ouricuri, butiá, tucum, baguaçu, titara, piaçava, geribá, pindoba, caranda e condeúba. Do buriti disse Lund: “a mais nobre criação do reino vegetal na natureza tropical”.

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E o sem-número de plantas alimentícias e medicinais? Sobre as primeiras basta citar o nome de três localidades: Congonhas de Sabará, Congonhas do Norte e Congonhas do Campo. Antes do atual hábito do café, o chá-de-congonha foi o mate mineiro, considerado melhor que o do sul. Além disso, o congonhal nativo sinalizava local próprio para a pecuária, coisa vital quando aventureiros preferiam morrer de fome a cuidar de gado ou lavoura — o que resultou em três ou mais tragédias de fome epidêmica. Os topônimos Roça Grande e Roças Novas indicam a generosidade carbonatada do Rio das Velhas, pronto a alimentar os que o vieram afligir. Outro alimento indígena depois quase abandonado é o mangarito, um inhame refinado, iguaria tapuia por milênios. Todo o justo louvor hoje feito ao pequi e ao buriti deveria ser igualmente dedicado ao mangarito, ao abacaxi, ao marolo e às mirtáceas. As diferentes espécies de jabuticaba e a pitanga preta, ao lado do abacaxi e do marolo, deveriam ser proclamados as frutas típicas do Rio das Velhas. No lado da flora medicinal vale a denúncia da extinção predatória da poaia ou ipeca, antes soberana de Minas ao Mato Grosso, sem esquecer que quase toda a magnífica farmacopéia amazônica, andina e de quase toda a América do Sul tem correspondentes na flora mineira, inclusive a própria quina. Para se ter uma idéia de como foi devastada a fauna mineira durante três séculos, basta ler o que escreveu Senna em 1926: Da caça às feras e animais selvagens resulta animado comércio de venda de grandes peles de onças, veados, tamanduás, preguiças, lontras, ariranhas, sucuris, etc. Dos bandos de garças brancas, que povoam, aos milhares, as margens dos nossos grandes rios e lagoas, retiram os caçadores ótimo lucro com a extração de alvíssimas aigrettes e nitentes plumas, que se vendem caríssimas para os mercados estrangeiros. Da pesca, principalmente do surubim e do dourado, deriva a exportação de peixes secos e em conserva, muito consumidos em todo o sertão setentrional mineiro. Também em Pirapora e beira do S. Francisco são aproveitados os cardumes de manjuba (um pequeníssimo peixe) para o fabrico de sabão; e ainda do surubim e outros peixes de couro extrai-se a cola de peixe, muitíssimo procurada. (. . .) Do couro da anta fazem também grande emprego os seleiros de Minas, fabricando duráveis e luxuosas peças de arreamento, ornadas de passadores, fivelas de prata lisa ou lavrada. Da gordura do tapir, bem como da enxúndia da capivara, faz a medicina sertaneja grande emprego, nos chamados óleo de cacho d’anta e óleo de capivara. Do resistente couro de veado e caititu fazem-se botas de montaria e perneiras, etc. As penas da ema (o avestruz do Brasil) são empregadas na fabricação de espanadores; e das plumagens variegadas e coloridas de vermelho, verde, azul-ferrete, amarelo e encarnado, arrancadas das araras, tucanos, canindés, papagaios, etc., aproveita-se a indústria para muitos misteres (enfeites de chapéus para senhoras, de leques, mantos, etc.). Das nossas garças brancas são extraídas as referidas aigretes de alto preço e tão cobiçadas pela moda feminina no

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Velho e no Novo Mundo. Das galhadas e pontas cornígeras do suassuapara e outros grandes cervídeos tiram os cuteleiros cabos de facas e punhais, e ainda são matérias empregadas em castões de bengalas e guarda-sóis, em cortadores e facas de papel e outros objetos artísticos e de escritório. Dos grandes búzios e conchas fluviais (dos rios Paraná e S. Francisco) fazem-se muitos artigos de comércio, alguns delicadamente pintados e de diferentes formatos. Aves e animais embalsamados ou taxidermicamente preparados pelos naturalistas-viajantes são destinados a coleções científicas de museus nacionais e estrangeiros, sendo também objeto de comércio coleções de borboletas e outros insetos, e dos ovos dos nossos pássaros, tão diversa e naturalmente coloridos. Aves canoras (canários, cardeais, arapongas, patativas, sabiás, inhapins, bicudos, etc.) são igualmente muito procuradas por apreciadores do seu canto e chilro, dentro e fora do Estado. Na alimentação das populações do campo e das roças, no interior de Minas, entra o grande contingente das carnes de caça selvagem, algumas muitíssimo apreciadas (pacas, veados, capivaras, cotias, antas, galinholas, mutuns, macacos, perdizes, inhambus, etc.) . . . O mesmo autor enumera, como objeto de comércio, em 1926, os seguintes produtos naturais da terra: algodão bruto, amendoim, bagas de mamona, baunilha, borracha de mangabeira e de maniçoba, cacau, cascas medicinais, casca de angico e barbatimão para curtume, castanhas, cocos, carvão vegetal, cera virgem, chá mineiro, cinzas vegetais, cola, extratos de plantas, crina vegetal, favas, frutas, fumo em folha, fibras diversas, lenha, madeiras, macela, tubérculos alimentícios, mel, paina, plantas vivas, poaia, resinas e sementes. O certo é que os primeiros seres vivos caçados foram os indígenas. Talvez seja também certo que o uso do botoque pelos tapuias tenha atemorizado os tupis, mas os europeus deram um jeito de alegar que o mesmo uso do beiço-de-pau era o argumento final para destituir aqueles selvagens de algum resquício de condição humana. E, em nome disso, dizimaram-nos. Não obstante, parece que outras guerras semelhantes à dos emboabas ocorreram no território hoje de Minas, antes de 1700 e mesmo antes de 1500. Assim, o papel de Minas como confluência da gente de Pindorama é mais antigo do que se pensa. De fato, tupiniquins e trememberés chegaram do norte até as montanhas do sul. Índios cariris do atual Ceará chegaram até a região hoje de Januária, e sua presença gerou conflitos que alcançaram o século XX, a tempo de figurarem no Grande Sertão, de Guimarães Rosa, transfigurados no embate entre Zé Bebelo e Hermógenes. Quem eram os primitivos donos da nascente do Rio das Velhas e de seu curso inicial? Seriam caetés nativos ou carijós que chegaram antes dos europeus, escorraçados do litoral fluminense? Ou caiapós? Ou cataguás banidos pelo trauma do genocídio perpetrado por Castanho, o Velho, já em 1675, após a primeira transposição efetiva da Mantiqueira? Parece que os mais originais do local eram os

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guarachuês, também chamados de guarachos ou gualachos, e os aredês. O mais triste é saber que, para os sucessivos massacres, de ponta a ponta nas Minas, foram usados índios tupis e guaranis escravizados do sul da colônia ou até gente da tribo goiá, amansada já em Minas. E o medo do contrabando causou pelo menos um efeito benéfico, que foi reservar emprego público a famílias de reinóis desde que casados com índias, punindo quem chamasse seus descendentes de “caboclos”. Os guaranis podem ter trazido o tripanosoma (que causa a Doença de Chagas) para nossos triatomíneos (barbeiros). Certamente, os índios originais sabiam lidar com pragas locais, como os carrapatos capazes de produzir a febre maculosa, mas os forasteiros os trataram a fogo. Mataram os índios e queimaram a flora, mas os carrapatos e a febre (que mataria o padre Eustáquio) ficaram. O mesmo se aplica ao escorpião amarelo, peculiar à mata contígua a Belo Horizonte. Carreado na lenha doméstica (lenha de Santa Bárbara), antes do gás de cozinha, asilou-se no esgoto da cidade e é levado na bagagem de migrantes e viajantes pelo mundo afora. A malária pode ter chegado com os currais, antes de Fernão Dias, mas ele (e seus índios forasteiros) pode ter sido vítima da febre do carrapato. Quanto à escassez de iodo, o indígena pode ter-se adaptado a ela pelo nomadismo ou pelo nanismo, sem desenvolver o bócio. Já o bicho-de-pé não é tão grave e é singular exacerbador erótico do cafuné, a partir do inventivo lava-pés vespertino sob a mesa do jantar.

Índios coroados e coropós. Litografia de Engelmann a partir de desenhos do natural de Rugendas.

Nenhum estudante mineiro aprende nas escolas a verdade do genocídio, inclusive aqueles que trazem no rosto os traços fortes das vítimas. O registro que existe é quase indireto e principalmente envergonhado. Nele há escassas notícias de índios tanto gigantes como anões, tanto dóceis como traiçoeiros, tanto pacíficos como indomáveis e tanto belos como horrendos, aos olhos tupis ou europeus. Sejamos sinceros e confessemos conhecer melhor tribos norte-americanas nomeadas em faroestes do que os seguintes nobilíssimos patronímicos mineiros: os musculosos crauatás, os nômades guanhães, os pequenos trogloditas abatinguaras, os mártires bonitós, chonins e malilis da serra chamada do padre Ângelo Peçanha (trucidados sem piedade sob o pretexto piedoso de amenizar-lhes o limbo), os mandimbóias — cobras enroscadas do Sapucaí, os escravizados maripaqueres (um deles seria Peri que não era guarani), os zarabataneiros pajauris ou pajuruns, os mariquitás mantiqueiros, os saltadores pampãs, os nacnenuques do Renault, os mutuns da mata, os pataxós de entre o Jequitinhonha e o São Francisco, os sagitários samixumás, os xopotós do Doce, os defumadores bucãs, os almiscarados cachinês, os machetados matipós, os pacíficos airuãs, os ferozes abaíbas, os belicosos aimberés-verdadeiros (alegados devoradores de bispos e guerreados até 1850), os

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catolês e mongoios do Tremedal, os cotoxês do Rio Casca, os comilões guarus (egressos do Paraíba), os cururuanhas carinhanhas, os dêndes da Condreúba, os urucunados jirunas, os crenaques do Cuieté, os bocaiús do Rio Pomba, os berens da selva fechada, os maloqueiros engerecenungues, os arrebenta-machados giporoquês, os cataranhas da Serra de Itacambira, os crafunós e crixás do Urucuia, os macuxis, maconés, maquaris ou macuiris do Rio Mucuri e os malacaxi, macaxans ou maxacaris do Rio Araçuaí. Na época da criação do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, foram feitas tentativas frustradas em favor do cultivo da fala e da literatura jê, o verdadeiro linguajar original de Minas. Quanto aos negros mineiros, muita gente culta os iguala aos que chegaram à Bahia. No entanto, estes eram predominantemente nagôs, do Norte da África, enquanto os de Minas eram predominantemente bantos, africanos do sul. Essa diferença tem várias conseqüências. Por exemplo, os nagôs regem-se por orixás enquanto os bantos veneram antepassados, prática coerente com o monoteísmo, que teria sido inventado por seus primos núbios. Era-lhes, pois, natural a adesão ao cristianismo. Por outro lado, a minoria que se mantém fiel a crenças e ritos que julgam fundamentais se entrega à religiosidade hermética, bem mais dissimulada que no caso baiano. Outra diferença está na imunidade a infecções, pois a baixa imunidade dos bantos levou-os ao paradoxo de serem acusados do contágio da lepra ou de outras pestes, exatamente por se mostrarem mais suscetíveis que os europeus. Outra aparente peculiaridade dos negros mineiros foi sua reprodução intra-racial em fazendas de recria, antes e depois dos obstáculos ao tráfico e ao contrabando. Estes coincidiram com o declínio do ouro fácil, o que tornou a recria, ou seja a produção interna de rebanho escravo (ao lado do manejo de gado, tropa e suínos), uma das fontes de enriquecimento rápido, substitutas da mineração. A manutenção do status de algumas hoje importantes famílias mineiras foi possível pela cumulativa atividade no uso do escravo como mercadoria. Acumulou-se a importação inicial, estendida ao seqüestro de quilombolas e acrescida da recria, tudo desaguando em movimentado comércio, que incluía compra-e-venda, leilão, catira e escambo. Ora, se Minas hoje é reconhecida como capaz de ter apurado raças de eqüinos (campolina, mangalarga, pega) e outros animais (capado-de-banha, vaca-leiteira, boi-de-corte, galinha-de-pescoço-pelado), houve aqui mais de uma linhagem humana apurada seletivamente, com método análogo.

Tipos crioulos. Litografia de Engelmann a partir de desenhos do natural de Rugendas.

Esse componente fundamental da questão escrava vem sendo censurado em nossa História pela razão óbvia de que a totalidade dos cronistas descende de tais mercadores ⁄ criadores, ou seja, a versão oficial dos fatos corresponde ao ponto de vista escravista. Outra cen-

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sura, mais drástica ainda, é ligada à primeira, mas tem caráter francamente sexual. Trata-se do tráfico de escravas de cama-e-mesa. O valor de mercado de tais Isauras (negras, mulatas ou cativas convenientemente esbranquiçadas) sempre constou como de amas-de-leite, ou seja, era eufemisticamente deslocado da esfera erótica para a da lactação e da culinária. Nossos primeiros historiadores estavam submetidos ao moralismo vitoriano e jamais considerariam um tema deste em suas obras hoje clássicas. Seus sucessores igualmente o desconsideraram por covardia, incompetência ou carolice. Por sinal, padres seculares e até ordens religiosas se envolveram na própria recria de escravos. Hoje pode haver até quem se cale por medo de ser rotulado de racista — evidente contra-senso, pois os fatos devem ser enfrentados por simples respeito à realidade social e por mera fidelidade à verdade histórica. Diferentemente dos setentrionais, os bantos tendem à adiposidade glútea ou esteatopigia, que ocorre extrema nos hotentotes, mas que é harmoniosamente sensual nas mulheres cabindas, formosas calipígias. Estas, em vez do acúmulo flácido, apresentam as nádegas tônicas, que, sobre coxas esculturais, em tronco espigado, compõem esbelto conjunto. O corpo atraente ocorre também nos homens, o que fez deles escravos também de terreiro-e-cama, com a conseqüente gravidez de nhanhás fogosas ou solitárias. Filhos mulatos da elite quase não foram, em Minas, hostilizados como bastardos incômodos. Sua existência e sobrevivência eram resolvidas com a transfiguração deles em nepotes (‘sobrinhos’ de pais padres), pupilos ou afilhados, estes antes ou depois de expostos cuidadosamente em rótulas de santas-casas ou de orfanatos. Foi comum que os filhos legítimos se enlanguescessem no ócio, enquanto os bastardos se agarrassem aos estudos e ao refino de habilidades. Resultou daí invejável galeria de mulatos e negros que, como bispos, doutores, arquitetos, escultores, músicos, beletristas, políticos, atletas, taumaturgos e fidalgos ornam a história mineira. Sim, além da beleza física, é peculiar aos cabindas (ou bavilis) três qualidades de espírito: a altivez, a inteligência e um senso de humor brejeiro e finamente crítico — atributos que mais tarde, juntamente com a tendência totêmica, viriam a ser apontados como próprios da cultura mineira. Essa tipicidade ocorreu em Minas graças ao aproveitamento da experiência escravista acumulada pelo Brasil nos dois séculos antecedentes, que permitiu até saber quais tribos (atlânticas ou moçambicanas) podiam chegar já pré-qualificadas à mineração. À primeira vista, os nagôs seriam adequados à latitude do nordeste e os bantos à frialdade e à umidade das minas, mas parece ter prevalecido também o maior poder de compra e de escolha dos nhonhôs mineiros — associado à escassez feminina após a eliminação indígena. Tais especificidades do escravismo mineiro certamente foram estendidas da mineração ao cultivo do café, não só na Zona da Mata

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mineira e no Sul de Minas, mas alcançando o interior fluminense e o noroeste paulista, sendo parcialmente modificado com a abolição da escravatura e a chegada de imigrantes europeus. Antes disso, uma outra forte especificidade mineira fora imposta pela predominância de imigrantes minhotos e rio-doirenses (galegos), somados a imigrantes açorianos. O próprio linguajar entre Ouro Preto, Sabará e Belo Horizonte veio-se atualizando com o intercâmbio culto, mas no baixo Rio das Velhas e no médio São Francisco sofreu o isolamento do grande sertão. Com isso, a língua sertaneja fez-se aí um quase fóssil lingüístico, a ponto de conservar aspectos reconhecidos como galeguidades na própria Galiza, como observou Andrade, ao ler Rosa. Afinal, somamos até aqui três componentes distintivos de nossa cultura: a insubmissão tapuia, a altivez cabinda e o peculiar misticismo campoestelar dos celtas (que entre galegos e minhotos refunde e transcende o messianismo judaico). No confim leste do vale das Velhas, outro fator de atração sexual pode ter existido em Minas, pois eram habitados por índias aimberês, havidas como dotadas de aparelho genital espontaneamente sugador. Imigrantes árabes, com domínio milenar no assunto, foram os primeiros a verbalizar o fenômeno, decerto bem sabido desde Fernão Cardim. Isso é digno de nota na medida em que Richard Burton, estudioso das habilidades tântricas e primeiro tradutor ocidental do Cama Sutra, viajou de Sabará ao Atlântico, margeando exatamente o território aimberê. Ainda no âmbito da fantasia erótica, Burton margeou também o território onde uma verdadeira mulher-jagunço, disfarçada de macho, contrabandeara diamante — muito provavelmente aquela que inspirou Rosa a criar Diadorim. Por artimanhas premonitórias do destino, aconteceu que o mesmo Burton foi atraído, num banco de areia do Rio das Velhas, pelo maçarico de água doce apelidado manezinho-da-coroa, ave símbolo de Diadorim — coincidência bem documentada pelo roseólogo Savassi Rocha. Vejamos agora as conseqüências da mineração propriamente dita. A lenda de Morro Velho mais persistente é a das mulas cegas. Elas eram mantidas permanentemente no subterrâneo da mina, mas por superstição eram de lá retiradas, às Sextas-Feiras Santas, para a luz do dia, contra a qual ficavam definitivamente cegas. Deram azo à difusão e à manutenção, com outro significado, de outra superstição, a da mula-sem-cabeça, antes forjada para, sem sucesso, coibir o concubinato de padres.

Negros cabinda. Desenho de Hercules Florence, 1828. Acervo Academia de Ciências da Rússia.

Do antídoto falaz contra o pecado, passemos aos venenos secundários à mineração, que podem ter contaminado o solo de modo muito mais definitivo e há muito mais tempo do que se pensa. Tal fato era de conhecimento de técnicos, mas que foram convenientemente silenciados. Mesmo assim, gente séria e insuspeita ficou sur-

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presa e indignada ao saber da captação do Rio das Velhas para o abastecimento de Belo Horizonte. A voz dos professores José Carvalho Lopes e Lincoln Continentino fez-se ouvir, não só para apontar o que lhes parecia um disparate, mas para formular evidentes alternativas mais seguras. Razões políticas fizeram a coisa acontecer do jeito em que ora se encontra. Continentino, aliás, foi vanguardeiro no estudo técnico da transposição norte do São Francisco. Tão grave quanto contaminar solo e água é impregnar o pulmão dos mineiros. Para muitos médicos, silenciar diante da desgraça de gente tão humilde foi compensador. Não o foi para um notável médico nascido nas mesmas margens do Rio das Velhas, Carlos Martins Teixeira, cujo exemplo deve ser reiteradamente lembrado à juventude. Seu estudo sobre a silicose hoje é obra clássica na História da Medicina mineira. Demais, outro galardão que alcançou foi o privilégio de ser médico pessoal de Juscelino Kubitschek. Para mostrar como tem sido pouco estudado o conjunto de doenças eventualmente resultantes da intensa, prolongada e variada extração mineral, ultimamente somado a outro conjunto produzido por venenos agrícolas, algas e toxoplasmas, basta lembrar um exemplo. Durante décadas as famílias ricas de Minas julgaram de alto bom gosto servir bebidas em vasilhame de estanho, outra riqueza da província. Acontece que as peças desse tempo, em geral de fino lavor, implicavam o risco de saturnismo. Ora, há quem, na história do império romano, atribua o desvario de alguns césares a vinho contaminado por chumbo. Diante disso, será instigante hipótese de pesquisa indagar igual origem para casos semelhantes — com bárbaras-belas, irmãs-germanas, ismálias, josés, morros-falantes, moçasrolantes, sinhás-brabas, marias-tangarás e casas-assassinadas — freqüentes nas melhores famílias mineiras. Neste ponto, podemos sintetizar o significado histórico do Rio das Velhas, afirmando que as riquezas de suas imediações possibilitaram, no plano mundial, a recuperação parcial e transitória de Portugal, após o precoce colapso de seu império, e deflagrou a revolução industrial inglesa, cujo principal insumo foi nosso ouro. No plano interno, ocorreram por aqui seis episódios ou conjunto de realizações fundamentais na formação da nacionalidade brasileira: o afluxo e convergência de gente de toda a colônia e do exterior, a Guerra dos Emboabas, a Inconfidência Mineira, a revolução liberal de 1842, o brilho da arte mineira (música, literatura, artes cênicas, escultura e arquitetura, esta de Aleijadinho à Pampulha) e, sem contar a vanguarda na imprensa, um invejável conjunto de acontecimentos fundamentais na História da ciência brasileira. Já que está mencionada a revolução industrial, foi nas margens do Rio das Velhas que nasceu Antônio Gonçalves Mascarenhas, o

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criador de uma dinastia de tecelões, precursor da industrialização brasileira. Ainda criança, ele, dois irmãos, sua mãe índia, seu pai luso e escravos dirigiam-se ricos a Portugal. No meio do Caminho Novo, os genitores faleceram de varíola fulminante e os meninos foram deixados em prantos, abraçados aos cadáveres. Um deles, o mameluco Antônio, separado dos irmãos e dos bens, foi reconduzido à fazenda de seu padrinho, o mesmo citado visconde de Caeté, e veio a ser o iniciador de uma das mais importantes famílias mineiras. A pertinácia deste e de outros caetanos lusomineiros foi celebrada por um cantor membro da grei, o já referido Emílio Moura, no poema intitulado “Ser Caetano”. Entre os fatos ligados à ciência, salientam-se: o insólito manual clínico Erário Mineral, relatando a primeira intervenção neurocirúrgica no Brasil (em Sabará), o início, em Vila Rica, do ensino médico efetivo no Brasil, a influência científica do novalimense marquês de Sapucaí sobre o jovem Pedro II, a fundação da Academia Imperial de Medicina pelo sabarense Joaquim Soares Meireles, a vanguarda de Vicente Teles na química lusófona, o inventor João Manso Pereira no aperfeiçoamento de nossa cachaça, o pioneirismo na psiquiatria de Antônio Gonçalves Gomide (em Caeté), a primeira escola de Farmácia da Ibero-América (graduando brasileiros de todo o país), bem como a modernidade da escola de engenheiros-de-minas (ambas em Ouro Preto), a projeção médica em Paris e no Rio de Paula Cândido (profeta da interiorização e da atual expansão agrícola), as descobertas de Peter Lund (inaugurando a Paleontologia nas Américas, quando descobre os primeiros fósseis do homem americano e do tigre-dentede-sabre, além de inspirar Darwin em sua teoria evolutiva), a dianteira de Sinfrônio Abreu na anestesia inalatória, Bernhauss de Lima sugere o mosquito como vetor da filariose, a obra amazonense do naturalista marianense Domingos Ferreira Penna, a descoberta da doença de Chagas em Lassance (até hoje a maior realização da ciência brasileira), a edificação do Instituto do Radium em Belo Horizonte (o primeiro das Américas, visitado por Maria e Irene Curie), incitamento à criação da primeira universidade no país (antes proposta para Caeté, em 1823), a descrição do escorpião amarelo (o mais tóxico), a caracterização endêmica do bócio e da febre maculosa, a singular contribuição de Canabrava Barreiros a nossa cartografia histórica e a revelação paleoantropológica de Luzia. A organização do hospital de Morro Velho pode ter sido a primeira no Brasil a receber as inovações de Florence Nightingale.

Antônio Gonçalves da Silva Mascarenhas. Acervo da família

Lund (antes um botânico) também estudou e divulgou o dulcíssimo abacaxi nativo do solo calcáreo lagoa-santense. Seu sábio desejo de ter foguetes em vez de lágrimas, por sua morte, levou ao trágico uso de seus preciosos livros para a confecção daqueles. Coincidência notável cumula o Sumidouro, pois, se é dali o primeiro fóssil descoberto nas Américas, foi antes pousada preferida de Fernão Dias

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e triste fim de Castelo Branco. Já sobre a descoberta da doença de Chagas, vale salientar que um fazendeiro de Curvelo, de nome Evaristo de Paula, o Vô Varisto, bem antes de Carlos Chagas, desconfiara de que um percevejo tão grande, a sugar tanto sangue de pessoas e bichos, pudesse produzir alguma doença. O cientista soube da suspeita de Vô Varisto pelo engenheiro ferroviário Cantarino da Mota. Em outra vertente da pré-história da doença de Chagas, esteve por Lagoa Santa, Nova Lima e Ouro Preto (desta foi expulso) o médico prussiano Hermano Burmeister, que mais tarde, na Argentina, descreveria zoologicamente o inseto provocador da suspeita de Vô Varisto. Merece também registro Antônio Gonçalves Gomide, que foi aluno na escola médica de Edimburgo, a mesma freqüentada por John Locke e Adam Smith, ou seja, nas margens do Rio das Velhas tivemos um médico mineiro representante do iluminismo escocês. Gomide, além de figura de projeção no início do império, sobressai na História da Medicina como pioneiro da Psiquiatria brasileira, pois contestou aparente milagre em beata, na serra da Piedade — no que antecede estudiosos europeus da histeria, bem como antecipa conceitos freudianos. Por outro lado, em sua argumentação, antecipa também Pavlov, ao descrever, décadas antes, o reflexo condicionado: O capitão João Gomes de Araújo tem uma tropa de bestas com que em todos os sábados exporta da roça mantimentos para a Vila do Caeté. As bestas aparecem espontaneamente em todos os dias de manhã e de tarde para tomar a ração de milho no que são infalíveis e até importunas; porém nos sábados não só não vêm por si à casa, como se escondem e fogem, sendo preciso as procurar e tanger para receber as cargas. Auguste Saint-Hilaire, em sua “Viagem no Distrito dos Diamantes e sobre o Litoral do Brasil”, publicada na França, em 1833, cita a observação de Gomide, salientando ser aquela revelação de grande interesse científico. Quem garante que Pavlov não leu tal livro? Nem todos os milagres são falsos nessa região. Em antítese à circunspeta devassidão inerente a nossa História, acorrem a inamovível castidade de Macaúbas e a hierática singeleza da Piedade da Serra, ambas congênitas à aurora de Minas e cada qual contemplando a outra, na despojada diagonal de poucos quilômetros. E ambas receberiam da austeridade do Caraça a feliz angulação de uma trindade tão poderosa que jamais falhou em remir os mais feros de nossos pecados tropicais.

O Capitão Evaristo Antônio de Paula, fazendeiro em Curvelo, circa 1850. Coleção Heloísa de Paula Pinto.

Para provar que o Rio das Velhas é ecumênico, lembramos que Xico Xavier, o maior médium brasileiro, é filho de uma lavadeira das margens desse rio, nascida em Santa Luzia. Tinha o significativo nome de Maria João de Deus e era de família católica, mas a orfandade precoce com que deixou o menino Francisco causou neste o desenvolvimento de mediunidade psicográfica. Já médium feito,

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Xico recebe um consulente, em quem de imediato exclama reconhecer a reencarnação de Fernão Dias. O homem era um simples carroceiro e, tocado por tal revelação, compenetra-se de tal maneira do espírito do encarnado que vem a ser um dos mais ricos empresários do vale do Rio das Velhas. E esse ecumenismo é mais abrangente ainda, pois a presença aqui de Lund fez vir para Lagoa Santa Odin Aarestrupp, que era nada menos que tio de Charles Chaplin, o gênio polimorfo do cinema. Chaplin era filho de pai dinamarquês e mãe inglesa. Os Aarestrupps comparecem com brilho na arte de seu país, principalmente na poesia. Assim temos o privilégio de ter conosco, em mistura a ilustres troncos mineiros, certo número de amorenados parentes do querido Carlitos.

Guimarães Rosa em expedição no grande sertão. Fotografia: Eugênio Silva

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Abstract

Submerged stories of the river that doesn’t want to die The part of Minas Gerais’ history that connects to the Velhas River is revisited here. The official chronics tend to partial interpretations and, most of all, omissions. Because of the stagnant family trees connected to our classic historians and religious and moral positions, facts haven’t always been described with fidelity. There were difficulties in the approach of subjects like environmental depredation, indian genocides and the saga of slavery, full of peculiarities in Minas Gerais. Without a doubt, essential characters were, and still are, expunged from memory. Not only amerindians, but also black and jewish people. On the other hand, a naïve version about the dimension and localization of our environment’s richness and its international destination has been consolidated out of continuous repetition. Authors like Bernardo Guimarães, Agripa Vasconcelos and Guimarães Rosa seem to have noticed these distortions and indirectly begged for a record of fundamental events, even if that happened to be in the form of romance novels, legends or anecdotes.


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1 Professor do Departamento de Geologia e do Centro de Pesquisa Professor Manuel Teixeira da Costa, Instituto de GeociĂŞncias da Universidade Federal de 2 Professor do Departamento de Geologia e do Centro de Pesquisa Professor Manuel Teixeira da Costa, Instituto de GeociĂŞncias da Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais


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9 A história geológica da bacia hidrográfica Carlos Maurício Noce 1 Friedrich Ewald Renger 2


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I – História da exploração geológica da bacia do Rio das Velhas

1 – Os Pioneiros As primeiras notícias geológicas e mineralógicas de cunho científico devemos ao Dr. José Vieira Couto, mineiro natural do arraial do Tejuco, hoje Diamantina, incumbido por aviso régio de 18 de março de 1797 . . . do exame das minas das comarcas do Serro Frio e Sabará e o partido que das mesmas se pode tirar . . . Isso aconteceu cerca de um século depois da descoberta das imensas riquezas de ouro no curso superior do Rio das Velhas. Até então, a preocupação da coroa portuguesa tinha sido unicamente a rigorosa arrecadação do quinto, sem nenhuma iniciativa de pesquisa sistemática ou de melhoramento dos arcaicos métodos de lavra. Vieira Couto formou-se em Medicina e Ciências Naturais na Universidade de Coimbra, em 1777; tinha percorrido toda a Europa e era dotado de vasta cultura. Recebendo a incumbência do aviso régio, anota este no prefácio da sua Memória sobre a Capitania das Minas Gerais, seu território, clima e produções metálicas: . . . Pus vontade e diligência nesta empresa: suspendi no mesmo instante de prosseguir no costumado trilho da minha vida: voei ao pico mais alto das serras, desci às profundezas das cavernas e recolhi-me das minhas peregrinações com as amostras de quase todos os metais, que neste cofre exponho aos pés do Trono . . . As atividades científicas de Vieira Couto estendem-se até 1806, empreendendo viagens de pesquisa, coletando amostras, preparando mapas e escrevendo relatórios. Dentre outros trabalhos, deixou uma Memória sobre as salitreiras naturais do Monte Rorigo; maneira de as auxiliar por meio das artificiais; refinaria de nitrato de potassa, ou salitre, escrita em 1803. Esta memória é acompanhada de um mapa topográfico da região da barra do Rio Paraúna no Rio das Velhas, com a localização das nitreiras, que eram comuns nas grutas dos vales do Rio São Francisco e das Velhas e forneciam a matériaprima para a confecção da pólvora. O grande mérito de Vieira Couto consiste em ter realizado o primeiro inventário dos recursos minerais da capitania. Morreu aos 15 de setembro de 1827, com 75 anos de idade, na sua Fazenda do Gavião, nas vizinhanças do Pico do Itambé. A chegada da corte de D. João, a abertura dos portos e a conseqüente abertura do país a estrangeiros em 1808 tiveram profunda influência nas pesquisas geológicas, e a Capitania de Minas Gerais foi uma das que mais se beneficiaram com a visita de viajantes estrangeiros. O alemão Barão de Eschwege chegou em agosto de 1811 em Vila Rica, como encarregado das indagações geognósticas e montanísti-

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cas, e permaneceu ali até 1821. Empreendeu muitas viagens, tanto em Minas Gerais como em regiões vizinhas. Publicou suas observações geológicas, e também sociais e antropológicas, em diversos livros na Alemanha, dos quais o mais famoso é o Pluto brasiliensis, de 1833. Nos seus trabalhos que abrangem a bacia do Rio das Velhas, Eschwege distinguiu quatro unidades geológicas principais: a) uma formação primária, composta de granitos e gnaisses, correspondendo ao atual embasamento; b) uma formação secundária, constituída de rochas metamórficas como aquelas designadas por Eschwege de itacolumito (i.e., quartzito) e itabirito (formação ferrífera), e que corresponde hoje aos supergrupos Rio das Velhas e Minas no Quadrilátero Ferrífero; c) uma terceira unidade, chamada de Transição, composta de ardósias, calcáreos e grauvacas, e que são os grupos Bambuí e Macaúbas da coluna estratigráfica adotada atualmente; d) uma quarta unidade, que representa as coberturas mais recentes, essencialmente o Cretáceo na bacia do Rio São Francisco. Eschwege deu ênfase em todas suas publicações aos recursos minerais, especialmente ouro e diamante. Porém também chamou a atenção para as imensas jazidas de minério de ferro, que só viriam a ser exploradas de forma sistemática cerca de 150 anos depois. Muitos dos naturalistas europeus que vieram ao Brasil no século XIX incluíram em seus roteiros as famosas minas de ouro ou de diamantes do Centro e Norte de Minas Gerais. Apesar da maioria deles serem zoólogos ou botânicos, tinham conhecimento e interesse em Geologia e Mineralogia, de modo que as suas descrições de viagem são muitas vezes recheadas de observações de natureza geológica. Este fato, porém, não significou necessariamente um novo desenvolvimento para a Geologia de Minas Gerais. Tais naturalistas, como o francês Auguste de Saint-Hilaire, os alemães Spix e Martius, o austríaco Johann Emmanuel Pohl, e o cônsul-geral da Rússia no Brasil e também alemão Barão de Langsdorff, fazem repetidas referências às obras de Eschwege em seus diários ou descrições de viagem. A contribuição do dinamarquês Peter Wilhelm Lund foi muito mais importante e duradoura. Em outubro de 1834, Lund hospedou-se na fazenda do conterrâneo Peter Claussen, localizada a meio caminho entre Curvelo e a Gruta de Maquiné. Claussen havia feito fortuna como colecionador e comerciante de objetos das Ciências Naturais: plantas, animais, fósseis e minerais, sendo o primeiro a explorar sistematicamente as grutas calcáreas do vale do Rio das Velhas. O fascínio dos fósseis no jovem Lund, então com 33 anos, foi imediato. Em fevereiro de 1835, fixou residência em Lagoa Santa, onde viveu até seu falecimento em 1880. Lund explorou centenas de grutas nas redondezas, descrevendo as ossadas fósseis de uma fauna pré-histórica

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de preguiças e tatus gigantes, tigres-dentes-de-sabre e muitos outros animais, o que lhe valeu o título de “pai da Paleontologia brasileira”. A amizade inicial entre os dois dinamarqueses durou pouco; as desavenças levaram a acusações de plágio por parte de Lund. Em trabalho publicado em 1841, no boletim da Academia de Ciências de Bruxelas, com o título Notes géologiques sur la province du Minas Gerais au Brésil, Claussen incluiu extensa lista dos fósseis das grutas do vale do Rio das Velhas, lista essa que lhe foi fornecida por Lund. A despeito de tais controvérsias, este trabalho de Claussen merece ser citado, pois contém perfis e um mapa geológico da região entre Ouro Preto e Santa Luzia, além das descrições e ilustrações das grutas calcáreas do médio vale do Rio das Velhas. Também na década de 1830, viajou o francês Aimé Pissis pelo Brasil, resultando na apresentação, em 1842, à Academia de Ciências de Paris de sua Memoire sur la position géologique des terrains da la partie australe du Brésil et sur les soulevants qui, à diverses époques, ont changé le relief de cette contrée. Este trabalho dedica especial atenção à evolução do relevo e formação das cadeias montanhosas, descrevendo no capítulo sobre as serras de Minas Gerais aquelas montanhas do alto Rio das Velhas (Serras de Ouro Branco, chamada “Deus-te-livre”, Itacolomi, Antônio Pereira, da Cachoeira, Caraça, Gongo Soco e Serra da Piedade). A instalação das companhias inglesas de mineração de ouro, a primeira em 1824, visando a explorar a famosa Mina do Gongo Soco (entre Caeté e Barão de Cocais), uma outra, em 1834, no Morro Velho perto de Congonhas de Sabará (hoje Nova Lima), e muitas outras mais, resultou em diversos estudos no campo da Geologia econômica. Vieram muitos ingleses, e com eles outros europeus, tais como Ferdinand Halfeld, Johann Carl Hocheder, Virgil von Helmreichen e Johann Jacob Sturz, alguns dos quais publicaram interessantes contribuições à geologia da região das minas de ouro. Helmreichen deixou três perfis geológicos que cobrem boa parte de Minas Gerais, sendo que dois deles passam por Lagoa Santa. Outras pesquisas geológicas no vale do Rio das Velhas devemos a Emmanuel Liais, astrônomo e naturalista francês que foi contratado para o Observatório Nacional no Rio de Janeiro. Na década dos 1860, foi encarregado de um estudo da navegabilidade do Rio das Velhas, cujos resultados publicou em 1865 em Hydrographie du haut SanFrancisco et Rio das Velhas, um atlas de grande formato com 20 mapas, representando minuciosamente todo o curso do Rio das Velhas entre Sabará e sua barra no Rio São Francisco. Publicou suas observações geológicas numa obra intitulada Climats, géologie, faune et geographie botanique du Brésil (Paris 1872), contendo também inúmeras referências à Geologia e Paleontologia do vale do Rio das Velhas e alto São

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Francisco. Na parte da Paleontologia, baseou-se essencialmente nas pesquisas de Lund, de quem se tornou amigo. Um personagem de difícil caracterização é o inglês Richard Burton, que veio para o Brasil em 1865. Cônsul de Sua Majestade britânica em Santos, antes explorador e agente secreto na Índia, Arábia e África, mas também escritor e tradutor. Cansado do serviço burocrático no consulado, deixou o posto e pôs-se em viagem na companhia da esposa Isabel. O primeiro alvo foram as minas de ouro de Minas Gerais; visita quase todas, ativas ou abandonadas (Cata Branca, Morro Velho, Roça Grande, Gongo Soco, Catas Altas, Passagem de Mariana, Ouro Preto). Numa segunda etapa resolveu descer de canoa pelo Rio das Velhas. Parte no dia 7 de agosto de 1867 do porto da Ponte Grande de Sabará, chegando ao porto de Guaicuí em 15 de setembro, incluindo no percurso uma excursão de cerca de 10 dias a Diamantina e minas de diamantes das redondezas. A partir da barra do Rio das Velhas desceu o Rio São Francisco até o Oceano Atlântico, uma aventura de dois mil quilômetros. Sua descrição da viagem é até hoje uma fonte riquíssima de informações, não só geográficas e geológicas, como também históricas e socioeconômicas do segundo reinado. Critica, às vezes cáustica e sarcasticamente, seus conterrâneos envolvidos nas minerações, seja na parte técnica, seja pela especulação financeira em torno das minas de ouro.

2 – A exploração científica: da segunda metade do século XIX aos dias atuais Em 1865 ⁄ 66, veio ao Brasil a expedição científica liderada pelo naturalista suíço Louis Agassiz, radicado nos Estados Unidos. Essa expedição e outras subseqüentes tiveram uma enorme importância para o desenvolvimento da Geologia como ciência no Brasil. Agassiz veio com numeroso séquito, do qual dois eram geólogos: Charles Frederick Hartt e Orestes Saint-John. A expedição percorreu em grupos menores grande parte da Amazônia, do Nordeste e Sudeste do Brasil. Hartt fez cinco viagens ao Brasil no período de 1865 a 1875, quando foi convidado para chefiar a Comissão Geológica do Império, infelizmente de curta duração, pois já em maio de 1877 foi suspensa por motivos de economia. Hartt morreu desgostoso e decepcionado em 18 de março de 1878, de febre amarela, com 38 anos incompletos, no Rio de Janeiro. Deixou dentre outras muitas publicações o famoso livro Geologia e Geografia Física do Brasil (a primeira edição de 1870). A terceira viagem de Hartt, em 1870, tinha dois estudantes de Geologia como integrantes: John Caspar Branner e Orville A. Derby. Este último, fixando-se mais tarde no Brasil, torna-se o continuador da obra de Hartt. Um dos seus relatórios, Reconhecimento Geológico dos Vales do Rio das Velhas e Alto São Francisco, publicado em 1882, trata especificamente da geologia da bacia do Rio das Velhas. Distingue cinco grupos

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litológico-estratigráficos seguindo o esquema de Eschwege. Porém separa um grupo de quartzitos passando a conglomerados, que se assemelham muito em aspecto e composição mineral aos quartzitos do 2º grupo, mas destacam-se pela sua posição estratigráfica, . . . que são . . . as rochas predominantes na região da Diamantina . . . [e] parecem dominar em toda Serra do Espinhaço, pelo menos até à chapada diamantífera da Bahia . . . Essa unidade representa o que hoje chamamos Supergrupo Espinhaço. Derby tornou-se um dos maiores vultos da Geologia no Brasil. Publicou centenas de artigos, dos quais podemos destacar dois a respeito da geologia da bacia do Rio das Velhas, uma com o título A Serra do Espinhaço (1906) e a outra sobre as jazidas de minério de ferro no Brasil, com especial ênfase naquelas do centro de Minas Gerais. Este trabalho, apresentado no Congresso Internacional de Geologia de Estocolmo, em 1910, revelou ao mundo as imensas reservas de minério de ferro de Minas Gerais. Outro marco importante da História da Geologia, não só de Minas Gerais como do Brasil, é a instalação da Escola de Minas de Ouro Preto, em 1876, sob a direção do químico e mineralogista francês Henri Gorceix. Uma instituição deste gênero foi proposta já no início do século por diversos homens do ramo, tais como o Intendente Câmara e Eschwege. Junto com seus colegas e alunos, Gorceix foi responsável por grande número de publicações sobre a geologia de Minas Gerais, especialmente do Quadrilátero Ferrífero. Dos professores da escola notabilizou-se Paul Ferrand com sua famosa obra Ouro em Minas Gerais, publicada originalmente em 1894, que reflete o estado da arte do conhecimento e trata do descobrimento, minas e métodos de lavra das jazidas auríferas. Entre os seus alunos destacam-se, entre muitos outros, João Pandiá Calógeras, famoso por sua obra As minas do Brasil e sua Legislação (1904 ⁄ 1905) que narra a história dos descobrimentos das jazidas de ouro, ferro, diamantes e outras, no centro de Minas Gerais e outras regiões do país. A Comissão Geográfica e Geológica de Minas Gerais, criada em 1892, iniciou suas atividades com uma série de explorações e produziu um mapa geológico da província que não chegou a ser impresso. O primeiro mapa geológico impresso de Minas Gerais data de 1934, compilado por Octávio Barbosa e Djalma Guimarães. A Comissão teve vida curta, pois já em 1898, foi dissolvida por motivos de economia. As bases do conhecimento geológico da bacia do Rio das Velhas, lançadas pelos exploradores e cientistas do século XIX, serão expandidas e refinadas ao longo do século seguinte até chegar ao estágio atual sintetizado na segunda parte deste capítulo. Seria impraticável discorrer sobre a contribuição específica das sucessivas gerações de geólogos que trabalharam sobre o tema. Para a primeira metade do século XX, poderíamos destacar o papel de Luciano Jacques de Moraes, nascido em 1896, próximo à atual cidade de Itabirito, nas cabeceiras do Rio das Velhas.

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Como integrante do antigo Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, depois Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), realizou nas décadas de 1920 e 30 extensos levantamentos geológicos no Norte de Minas Gerais, tendo Diamantina como centro. L. J. de Moraes era um incansável geólogo de campo, deixando um conjunto de descrições, perfis e mapas geológicos que foram fundamentais para o entendimento da geologia da Serra do Espinhaço e áreas adjacentes. Uma nova etapa na Geologia brasileira inicia-se a partir da segunda metade do século XX, com os projetos de mapeamento geológico sistemático, levados a efeito por geólogos de órgãos estatais e das universidades. O trabalho pioneiro dessa natureza foi justamente realizado no Quadrilátero Ferrífero por uma equipe de geólogos do DNPM e do USGS, o Serviço Geológico Norte-Americano, chefiada por John van N. Dorr. Os mapas e relatórios gerados nesse projeto tiveram grande importância para o desenvolvimento da indústria mineral na região e são uma referência básica para o estudo de sua geologia.

II – Geologia da bacia do Rio das Velhas

1 – Aspectos gerais: substrato geológico da bacia e sua idade O substrato geológico da bacia do Rio das Velhas é bastante diversificado, embora essencialmente de idade pré-cambriana. O PréCambriano compreende as várias etapas de evolução da Terra que se estendem até 0,54 Ga (bilhões de anos), sendo dividido em duas grandes unidades de tempo, conhecidas como Éons, que são o Arqueano (mais antigo que 2,5 Ga) e o Proterozóico. Este último, por sua vez, é subdividido em três Eras denominadas Paleoproterozóico (2,5 a 1,6 Ga), Mesoproterozóico (1,6 a 1,0 Ga) e Neoproterozóico (1,0 a 0,54 Ga). Pode-se distinguir três grandes domínios geológicos no âmbito da bacia (Figura 1). O alto curso do Rio das Velhas, entre suas cabeceiras e a região de Santa Luzia, situa-se no domínio do Quadrilátero Ferrífero. Este compreende as unidades geológicas mais antigas, arqueanas e paleoproterozóicas, e de evolução mais complexa de toda a área da bacia. No restante do seu curso, o rio e seus afluentes da margem esquerda correm sobre o Grupo Bambuí, que representa uma extensa bacia sedimentar do Neoproterozóico. Os afluentes da margem direita, nesse mesmo trecho do rio, têm suas cabeceiras em um terceiro domínio geológico representado pela Serra do Espinhaço Meridional. A serra é erigida principalmente sobre rochas metamórficas de origem sedimentar, quartzitos e filitos, pertencentes ao Supergrupo Espinhaço, depositado durante o final do Paleoproterozóico e o Mesoproterozóico. Essa mesma unidade é encontrada na Serra do Cabral, no extremo norte da bacia.

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Figura 1

Mapa geológico simplificado da Bacia do Rio das Velhas

2 – Descrição dos domínios geológicos

2.1. O Quadrilátero Ferrífero e os terrenos granito-gnássicos O nome Quadrilátero Ferrífero resulta da abundância de formações ferríferas e jazidas de minério de ferro contidas em uma área aproximadamente retangular em mapa, definida pela orientação de um conjunto de serras, as quais representam grandes estruturas dobradas, do tipo sinclinal e homoclinal, deformando as rochas do Supergrupo Minas. O contexto geológico do Quadrilátero Ferrífero compreende, principalmente, dois grandes conjuntos litológicos separados por sua idade e história evolutiva. O primeiro é de idade arqueana, compreendendo os terrenos granito-gnáissicos e o Supergrupo Rio das Velhas. O segundo é representado pelo Supergrupo Minas, de idade paleoproterozóica.


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Além de uma área com formato em mapa grosseiramente ovóide, situada na região das cabeceiras do Rio das Velhas e denominada Complexo Bação, a área mais expressiva da bacia situada sobre rochas granito-gnáissicas localiza-se a norte da Serra do Curral. Recebe o nome de Complexo Belo Horizonte e é principalmente composta por um gnaisse bandado, de composição tonalítica a granodiorítica, que exibe feições de migmatização. Esses gnaisses resultam do metamorfismo e deformação de rochas graníticas que se cristalizaram majoritariamente por volta de 3,0 Ga. Além dos gnaisses bandados ocorrem também corpos intrusivos de composição granítica, com idades de cristalização magmática entre 2,78 e 2,70 Ga, faixas de rochas vulcano-sedimentares com dimensões de poucos metros a vários quilômetros, e enxames de diques básicos. Estes últimos são particularmente expressivos na região de Contagem e Ribeirão das Neves. O Supergrupo Rio das Velhas compreende uma unidade basal, o Grupo Nova Lima, que encerra os principais depósitos auríferos do Quadrilátero Ferrífero. Essa unidade é composta por uma associação de rochas de origem vulcânica e sedimentar, metamorfoseadas em baixo grau. As rochas vulcânicas incluem komatiítos, basaltos toleíticos, rochas vulcanoclásticas e raras rochas vulcânicas félsicas, enquanto dentre as rochas sedimentares encontram-se pelitos, formação ferrífera, grauvacas e arenitos. A unidade de topo do Supergrupo Rio das Velhas é o Grupo Maquiné, constituído por quartzitos e metaconglomerados, subordinadamente filitos e metagrauvacas. O Supergrupo Minas é uma unidade metassedimentar do Paleoproterozóico, dividida em três grupos: unidade clástica basal (Grupo Caraça), unidade química intermediária (Grupo Itabira) e unidade clástica de topo (Grupo Piracicaba). O contato entre os dois primeiros grupos é transicional, enquanto o Grupo Piracicaba exibe discordância erosiva na base. A espessura total do Supergrupo Minas atinge 3.500 m. O Grupo Caraça apresenta, na base, a Formação Moeda, constituída por quartzitos com intercalações de filito e níveis conglomeráticos (principalmente em posição basal). Tais conglomerados podem ser ricos em ouro e urânio. A Formação Moeda transiciona para a Formação Batatal, onde predominam filitos sericíticos, por vezes carbonosos ou ferruginosos. O Grupo Itabira inicia pela Formação Cauê, composta por itabiritos (formações ferríferas bandadas). Os itabiritos são quartzosos ou

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Gnaisse da regiĂŁo de Belo Horizonte, de idade arqueana.


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dolomíticos, mais raro anfibolíticos, e encerram corpos lenticulares de minério de ferro rico. Filitos ferruginosos e dolomitos são também descritos nessa unidade. A Formação Gandarela, no topo do grupo, exibe mármores dolomíticos, subordinadamente itabiritos e filitos. A unidade basal do Grupo Piracicaba, Formação Cercadinho, caracteriza-se pela alternância de quartzitos e filitos, freqüentemente ferruginosos. A Formação Fecho do Funil é constituída por filitos quartzosos, filitos dolomíticos e lentes de dolomito. As formações Taboões (ortoquartzitos) e Barreiro (filitos grafitosos) são de ocorrência restrita. No topo do Supergrupo Minas ocorrem os grupos Sabará e Itacolomi. O primeiro é constituído de clorita xistos e filitos, metagrauvacas, metatufos, metaconglomerados e quartzitos, e ocorre principalmente na região de Ouro Preto e na vertente norte da Serra do Curral, onde atinge até 3.000 m de espessura. O Grupo Itacolomi é restrito a uma área ao Sul de Ouro Preto, onde forma a serra de quartzitos do mesmo nome.

2.2. O Grupo Bambuí O Grupo Bambuí constitui o substrato geológico por onde corre o Rio das Velhas, das proximidades de Lagoa Santa até sua foz. As formações basais do Grupo Bambuí representam uma associação pelitocarbonática agrupadas no Subgrupo Paraopeba. A sedimentação dessa unidade iniciou-se por volta de 0,75 Ga, em um mar epicontinental de águas rasas, permitindo o desenvolvimento de extensas plataformas carbonáticas. Registros fósseis da vida marinha neoproterozóica, como os estromatólitos, são comuns nos calcários. As formações que constituem o Subgrupo Paraopeba, da base para o topo, são: - Formação Sete Lagoas: predominam calcários puros, calcários argilosos e dolomitos, com camadas pelíticas na base ou intercaladas no pacote; - Formação Serra de Santa Helena: folhelhos e siltitos (“ardósias”), margas e lentes esparsas de calcário; - Formação Lagoa do Jacaré: representa um pacote de intercalações cíclicas de siltitos, margas e calcários, estes últimos incluindo calcários pretos, oolíticos e pisolíticos. Rocha metavulcânica básica do Grupo Nova Lima, Supergrupos Rio das Velhas, com estrutura em almofada (“pillow lava”).

Uma quarta unidade, a Formação Serra da Saudade, predominantemente pelítica, não ocorre na área da bacia. Recobrindo em parte o Subgrupo Paraopeba ocorre a Formação Três Marias, composta por arcósios, arenitos arcosianos, siltitos e intercalações

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conglomeráticas. Representa sedimentação siliciclástica em ambiente de bacias de antepaís. Nas rochas calcárias desenvolve-se um relevo cárstico caracterizado por grutas e dolinas. As dolinas representam áreas de lixiviação do calcário e conseqüente colapso, preenchidas parcialmente por lagoas.

2.3. A Serra do Espinhaço Meridional e a Serra do Cabral Embora a maior parte da serra tenha sido erigida sobre o Supergrupo Espinhaço, na área englobada na bacia do Rio das Velhas encontram-se ainda duas outras unidades ou domínios geológicos distintos: o Grupo Macaúbas, que ocorre ao longo da escarpa ocidental da serra; e os terrenos granito-gnássicos expostos na região de Gouveia.

Itabirito (formação ferrífera bandada) da Formação Cauê, Supergrupo Minas.

O Supergrupo Espinhaço foi depositado em uma bacia intracontinental do tipo rifte, cuja abertura inicia-se por volta de 1,75 Ga. Esse tipo de bacia desenvolve-se em extensas zonas, mais ou menos lineares, de quebramento e afundamento da crosta continental. A subdivisão estratigráfica do Supergrupo Espinhaço inclui oito formações (da base para o topo): São João da Chapada, SopaBrumadinho, Galho do Miguel, Santa Rita, Córrego dos Borges, Córrego Bandeira, Córrego Pereira e Rio Pardo Grande. As três primeiras foram depositadas em ambientes continentais, de fluvial a marinho-costeiro, enquanto as demais têm sido relacionadas a ambientes marinhos plataformais. A Formação São João da Chapada é constituída por quartzitos, com intercalações de metaconglomerados e filitos, cuja espessura varia de 100 a 200 m. A Formação Sopa-Brumadinho inclui metaconglomerados, quartzitos e filitos, com espessura de 50 a 250 m. Esses corpos de metaconglomerado são a fonte principal dos diamantes da Serra do Espinhaço. Rochas vulcânicas sin-sedimentares, de composição ácida a básica, ocorrem intercaladas nessas formações inferiores. A Formação Galho do Miguel recobre as unidades anteriores e é constituída de quartzitos finos de alta maturidade, e pode atingir espessuras de mais de 1000 m. As unidades superiores consistem de uma alternância de quartzitos, metassiltitos e filitos, com lentes de metadolomito no topo, alcançando no seu conjunto espessura de 900 m.

Calcário do Grupo Bambuí, Subgrupo Paraopeba, mostrando estratificação subhorizontal.

A Serra do Cabral representa uma grande dobra braquianticlinal, em forma de domo alongado, no núcleo da qual aflora a Formação Galho do Miguel, bordejada pelas formações Santa Rita e Córrego dos Borges. O Grupo Macaúbas ocorre bordejando o flanco ocidental da Serra do Espinhaço, em uma faixa estreita tectonicamente intercalada

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entre o Supergrupo Espinhaço e o Grupo Bambuí. Trata-se de uma unidade neoproterozóica que se destaca por conter registros geológicos de um episódio de glaciação. A porção basal dessa faixa do Grupo Macaúbas é constituída por quartzitos imaturos, granulometria média a grossa, mal selecionados, ferruginosos e ⁄ ou feldspáticos. Metadiamictitos ocorrem na forma de lentes de espessura métrica a decamétrica, intercaladas nos quartzitos, ou constituem pacotes mais espessos recobrindo os quartzitos basais. Possuem matriz areno-siltosa, freqüentemente feldspática. A grande maioria dos clastos exibem diâmetros de 1 a 50 cm, com diâmetro médio em torno de 2 a 3 cm, e são compostos de quartzito, rocha granitóide, filito, quartzo, carbonato e rocha básica. O pacote de quartzitos impuros e metadiamictitos grada, para o topo, para quartzitos finos e de aspecto laminado, micáceos, com intercalações de metassiltitos e filitos.

Quartzito da Formação Galho do Miguel, Supergrupo Espinhaço, exibindo estratificação cruzada de grande porte (dunas eólicas).

O metadiamictito é uma rocha conglomerática, com predomínio da matriz sobre os clastos maiores, que são constituídos por grânulos, seixos e matacões, de forma e composição as mais variadas. As ocorrências dessa rocha no Grupo Macaúbas representam, ao menos em parte, antigos depósitos de geleiras conhecidos como morenas. Essa faixa do Grupo Macaúbas, bordejando a Serra do Espinhaço, apresenta características faciológicas que sugerem uma deposição em um ambiente glacial transicional, de continental a marinho costeiro. Uma estreita faixa do Grupo Macaúbas bordeja a Serra do Cabral e também a Serra da Água Fria, um apêndice da primeira situado a norte, fora da área da bacia do Rio das Velhas. Tais depósitos repousam em contato erosivo sobre as formações do Supergrupo Espinhaço. Essa ocorrência do Grupo Macaúbas notabiliza-se por encerrar os registros mais espetaculares da glaciação neoproterozóica, como os depósitos glácio-lacustres (varvitos) da borda da Serra do Cabral em Joaquim Felício e os pavimentos estriados da Serra da Água Fria. A região de Gouveia encontra-se no núcleo de extensa estrutura anticlinal que deforma o Supergrupo Espinhaço. Nesse núcleo da dobra estão expostos terrenos granito-gnáissicos e faixas de rochas metavulcano-sedimentares, que se formaram entre 3,0 e 2,8 Ga. Esse conjunto litológico, portanto, é semelhante àquele encontrado no domínio do Quadrilátero Ferrífero, representado pelos complexos granito-gnáissicos e o Supergrupo Rio das Velhas, e possui idades contemporâneas.

3. Evolução Geológica Metadiamictito do Grupo Macaúbas; os clastos maiores são de gnaisse e calcário bege.

A camada mais externa da Terra, a litosfera, divide-se em diversas placas que se movimentam umas em relação às outras. Por esta

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razão, a face do planeta muda constantemente ao longo da história geológica. Os continentes aglutinam-se e separam-se, e aqueles que conhecemos hoje são, por sua vez, uma colagem de fragmentos de antigos continentes. No final do período Jurássico e início do Cretáceo, há cerca de 120 Ma (milhões de anos), existia ainda uma enorme massa continental chamada Gondwana, que reunia todos os continentes do hemisfério sul e a Índia. Os atuais oceanos Atlântico Sul e Índico surgiram do quebramento desse continente e dispersão de suas partes. Esse mesmo Gondwana, chamado supercontinente, formou-se como resultado de um longo processo de aglutinação de continentes menores e fragmentos. Esse processo de aglutinação de continentes implica na colisão de placas litosféricas e conseqüente elevação de grandes cadeias de montanhas, a exemplo do que hoje acontece na cadeia alpina. Esse é o quadro que encontraríamos em Minas Gerais no final do Neoproterozóico, por volta de 600 Ma, onde uma cadeia montanhosa começa a erguer-se a leste. Está em curso um grande evento que chamamos Orogênese Brasiliana. Mas, recuando ainda mais no tempo, como seria essa região antes da colisão? Dos primeiros tempos da história da Terra, até o final do Arqueano, ocorreu um contínuo processo de crescimento dos continentes. Os primeiros núcleos continentais, provavelmente de pequenas dimensões e gerados em um complexo processo de diferenciação a partir do manto terrestre, foram se aglutinando em massas progressivamente maiores, finalmente atingindo dimensões comparáveis aos continentes atuais durante o Paleoproterozóico. Na região do Quadrilátero Ferrífero temos o registro desta história: a arquitetura de complexos gnáissicos e faixas de rochas vulcano-sedimentares resulta da colagem de pequenos blocos continentais e bacias de sedimentação, em parte considerável preenchidas por rochas vulcânicas, desenvolvidas nas margens destes blocos ou em ambiente intra-oceânico. O bloco continental desenvolvido no Arqueano já era bastante grande e estável para permitir o desenvolvimento de bacias de sedimentação semelhantes àquelas que hoje se encontram na plataforma continental brasileira. Ocorreu, então, a sedimentação do Supergrupo Minas. Entretanto, havia diferenças importantes; a atmosfera terrestre era então anóxica, sem oxigênio livre, o que permitiu que os mares contivessem concentrações altas do íon ferroso que veio a precipitar-se nas imensas formações ferríferas tão características do Paleoproterozóico. Entre 2,2 e 2,0 Ga ocorreu um processo em tudo semelhante àquele da aglutinação de Gondwana, formando-se grande massa continental. Uma primeira tentativa de quebramento dessa massa, por

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volta de 1,75 Ga, gerou a bacia de sedimentação onde se depositou o Supergrupo Espinhaço. O quebramento efetivo, com espalhamento dos blocos continentais e geração de bacias oceânicas, vai ocorrer apenas no Neoproterozóico. É o processo que vai individualizar aquele bloco continental onde se depositaram os grupos Macaúbas e Bambuí e que, por volta de 0,60 Ga, estará novamente em colisão. Podemos agora descrever a região de Minas Gerais no período que antecede a Orogênese Brasiliana. Era coberta primeiro por grandes geleiras. Esse episódio de glaciação continental, cujo registro é encontrado nas rochas do Grupo Macaúbas, afetou extensas partes do Centro-Norte de Minas Gerais (ocorrências semelhantes são também descritas em Goiás e na Bahia, atestando a dimensão da área coberta por geleiras). A era glacial provavelmente ocorreu por volta de 0,80 Ga, finda a qual ocorre a invasão por um mar raso onde se depositam os sedimentos pelito-carbonáticos do Grupo Bambuí, Subgrupo Paraopeba. Inicia-se, então, a Orogênese Brasiliana. Um processo de colisão litosférica gera uma zona de intensa deformação das rochas, onde se dá o soerguimento de uma cadeia de montanhas. À medida que se afasta dessa zona, a deformação atenua-se progressivamente, marcando a passagem da zona ou faixa orogênica para a zona estável ou cratônica. No caso da faixa orogênica que se desenvolveu no Leste de Minas Gerais, essa transição está aproximadamente balizada pelo flanco oeste da Serra do Espinhaço. Desta forma, o Grupo Bambuí encontra-se pouco deformado e exibe camadas predominantemente horizontais, enquanto o Supergrupo Espinhaço na serra homônima forma um cinturão de dobramentos e falhas de empurrão. Tais falhas, nesse flanco oeste da serra, provocam uma inversão estratigráfica pela qual o Supergrupo Espinhaço encontra-se sobre o Grupo Macaúbas e este sobre o Grupo Bambuí. Ao final do Neoproterozóico, extensa cadeia montanhosa abarcava não só o Leste de Minas, mas toda a atual região costeira do Brasil entre o Sul da Bahia e o Rio Grande. Entretanto, as montanhas atuais são de época muito mais recente. Os mais altos relevos residuais da Serra do Espinhaço datam, provavelmente, do final do Cretáceo (ca. 65 Ma). Mas, foi a partir do final do Terciário (há 2 ou 3 Ma) que a serra começou a tomar sua forma atual, em função da atuação de agentes intempéricos e erosivos, controlados pela atividade neotectônica. Um evento deformacional intraplaca, dessa idade, parece ter reativado as principais superfícies de empurrão e descolamento do Pré-Cambriano, gerando as feições fisiográficas atuais da serra.

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Bibliografia

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Abstract

The geological history of the basin The base of geologic knowledge of the Velhas River basin dates back to the end of the 18th century when a survey on the mineral resources of the comarcas of Serro Frio and Sabará was commissioned to the Brazilian physician and naturalist José Vieira Couto. In the beginning of the 19th century, the German geologist and mineralogist Wilhelm Ludwig von Eschwege made systematic studies of the region and established the very first stratigraphic column of outcropping rocks of the basin. In spite of the numerous references on geology in description of travels to the highlands of Minas Gerais, especially to the famous gold mines and published during the 19th century by foreign travelers – most of them botanists or zoologist, such as Saint-Hilaire, Spix and Martius, Pohl, Langsdorff, Gardner, Burton and many others – there are very few new contributions to geology. An exception is made by the Danish scientist Peter Wilhelm Lund, who explored during the 1830/40’s the limestone caverns of the Velhas River basin. In the 1870’s the work of O. A. Derby and the foundation of the Escola de Minas in Ouro Preto, under the direction of the French chemist and mineralogist Henri Gorceix was fundamental for the knowledge of geology of the Velhas River basin. Important contributions to geology and mineral resources are due to L.J. de Morais (1920/30) and to the joint mapping program of the DNPM-US Geological Survey under the direction of John van Dorr (1946/62). The geologic basement of the Velhas River basin is of Precambrian age and comprises three different domains: the Quadrilátero Ferrífero, the Bambuí basin and the Espinhaço range. The Quadrilátero Ferrífero is underlain by an association of Archean granite gneiss terrains and a volcano-sedimentary sequence. The latter makes up the Velhas River Supergroup which hosts several gold deposits. The Paleoproterozoic Minas Supergroup tectonically overlies the Archean units and is composed of clastic and chemical metasediments. This unit includes thick banded iron formations (itabirites). The Bambuí Group of Neoproterozoic age represents a large sedimentary basin filled up mainly by carbonatic and pellitic sediments. It is partially underlain by the Macaúbas Group containing glacial sediments. The Espinhaço range is formed by clastic metas ediments of the Espinhaço Supergroup of Paleo- to Mesoproterozoic age.


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Lavagem de minério aurífero em Minas Gerais. Desenho de Johann Moritz Rugendas, circa 1835.

Professor do Departamento de Geologia e do Centro de Pesquisa Professor Manoel Teixeira da Costa, Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais

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10 Recursos minerais, mineração e siderurgia Friedrich Ewald Renger 1


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Introdução

A bacia do Rio das Velhas oferece grande variedade de bens minerais entre metálicos e não-metálicos, com maior diversificação e concentração dessas riquezas na parte superior da bacia, entre São Bartolomeu e Sete Lagoas. O ouro foi o primeiro a ser explorado a partir do final do século XVII. Nos anos setecentos foram descobertos os diamantes do Serro Frio, entre outros, nos rios Pardo e Paraúna, tributários da margem direita do Rio das Velhas. Passados mais de cem anos desde o início do povoamento do vale do Rio das Velhas durante o ciclo do ouro, começou o ciclo do ferro que aproveitou as ricas jazidas do Quadrilátero Ferrífero e deixou na região importantes marcas da sua história. Entre os recursos minerais não-metálicos merece destaque o calcário, abundante em toda a bacia, como matéria-prima para a indústria de cimento. O tripé entre recursos minerais, mineração e indústria de transformação formou as bases do povoamento e seu desenvolvimento socioeconômico, criando riquezas e progresso.

I – Ouro

O descobrimento de ouro no vale do Rio das Velhas

“Modo como se extrai o ouro no Rio das Velhas e nas mais partes que há rios.” Desenho anônimo, circa 1780. Coleção J.F. Almeida Prado, IEB ⁄ USP.

Uma grande roda d‘água movimenta um “rosário” para rebaixamento do nível d’água dentro do leito do rio. Os escravos, em fila indiana, vigiados por um feitor, retiram o cascalho aurífero com gamelas, amontoando-o em área mais elevada para ser posteriormente lavado nas canoas (atrás da roda d’água).

Com a descoberta do ouro de lavagem no Rio das Velhas e seus afluentes, no final do século XVII, pelos remanescentes da bandeira de Fernão Dias Paes Leme, a velha lenda indígena do Sabarabuçu, ou “serra resplandecente”, tornou-se realidade. Só que, em vez de prata e esmeraldas acharam ouro e, mais tarde, diamantes. Descobriram um “coração de ouro em um peito de ferro” no dizer de Henri Gorceix, fundador da Escola de Minas de Ouro Preto. Manoel Borba Gato, genro de Fernão Dias, pode ser considerado o primeiro minerador e povoador do Rio das Velhas nos arredores da atual cidade de Sabará, onde se tornou guarda-mor e mais tarde superintendente das minas do Rio das Velhas e provedor dos quintos reais. O próprio Borba Gato conseguiu juntar a enorme quantidade de 50 arrobas (cerca de 735 kg) de ouro. Em seguida, todo o curso superior do rio e seus afluentes, entre as cabeceiras na região de Cachoeira do Campo e Lagoa Santa, foi revirado em busca do ouro, dando assim início ao povoamento de um extenso trecho do Rio das Velhas com cerca de 100 km. Com isso, surgiram os primeiros arraiais: de São Bartolomeu, Itabira do Campo (Itabirito), Rio Acima, Raposos, Congonhas (hoje Nova Lima), Sabará, Santa Luzia e muitos outros, além de alguns ainda mais afastados do curso do rio, tais como Caeté, Morro Vermelho, Taquaraçu etc. Assim, a mineração tornou-se a primeira atividade econômica na bacia do Rio das Velhas, aliás em toda Minas Gerais, e ainda hoje representa uma de suas principais bases produtivas.

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As técnicas de mineração de ouro no século XVIII As técnicas e processos de mineração eram bastante primitivos, e as ferramentas as mais rudimentares, das quais as principais eram o almocafre, um tipo de enxada de lâmina curva e pontuda, a alavanca, a cavadeira, o carumbé e a bateia. A mão-de-obra era quase exclusivamente de escravos, que inicialmente vieram transferidos da Bahia e de Pernambuco, muitas vezes com seus donos.

A água na mineração. Desenhos de Eschwege em Pluto Brasiliensis, 1833. Acervo Casa de Borba Gato ⁄ Museu do Ouro. Sabará.

a) Máquina de moagem de minério aurífero. O minério triturado é colocado com pouca água entre as duas placas de pedra, sendo que a superior é movida por uma manivela acoplada a uma pequena roda d’água; a lama é coletada num tambor para depois ser apurada na bateia. Esta máquina foi inventada em 1812, por João Batista Ferreira de Souza Coutinho, futuro Barão de Catas Altas, dono da mina do Gongo Soco.

b) Mondéos. Por um canal pouco inclinado é levado o minério aurífero para estes grandes tanques onde o ouro decanta junto com outros minerais pesados. A fenda vertical da frente é fechada por pequenas tábuas que são retiradas quando o mondéo está cheio. A lama aurífera passa então pelas canoas por um processo de pré-concentração. A apuração final é feita na bateia.

c) Ferramentas de mineração. Em cima, da esquerda para a direita: um negro com a bateia; marreta para triturar o minério; a bateia e o almocafre. No meio: escravos na lavagem de ouro nas bicas, fiscalizados pelo seu dono. Embaixo: canoas de concentração dos minerais pesados.

Devido à grande facilidade, o cascalho aurífero dos rios foi o primeiro a ser explorado. No início, os mineradores tiravam o cascalho em pratos ou gamelas e separavam os granetes de ouro com os dedos. As gamelas foram substituídas por bateias, uma bacia cônica afunilada, provavelmente trazida pelos negros da África. Com a movimentação circular, acompanhada de sacudidas periódicas, processa-se uma concentração dos minerais pesados no fundo da bateia onde se junta também o ouro devido à sua elevada densidade. Nos rios de maior correnteza construía-se, durante a época da seca, pequenos diques para desviar a água e isolar certos trechos, as chamadas catas, de onde era extraído o cascalho com o uso do carumbé, um rude caixote de tábuas que servia para o transporte do cascalho. O cascalho era empilhado em áreas mais elevadas, aguardando-se a época das chuvas para ser lavado na bateia, em tanques ou na beira do rio. A água, que infiltrava nas catas, era retirada no início manualmente; mais tarde, foi usada a nora, também chamada rosário pelos mineiros, o único equipamento mecânico usado nos serviços de rio, constituído por uma corrente com pequena caçamba, movida por meio de uma manivela a força braçal ou uma roda d’água, para assim possibilitar acesso mais fácil ao cascalho. Muitas vezes, as margens planas ou pouco inclinadas dos rios não são outra coisa do que antigos depósitos de cascalho e areia do próprio rio, fato que não demorou a ser descoberto pelos mineradores. Primeiro faziam-se pequenos poços para testar se o cascalho era de “boa pinta”. Uma vez constatados teores promissores de ouro, os tabuleiros eram trabalhados por meio de “canais”, com cerca de 1,70 m de largura e 20 cm de profundidade, nos quais se fazia correr a água para lavar a areia e os seixos, que eram constantemente revolvidos com almocafres pelos escravos. A água levava as partículas mais leves e o ouro era depositado junto às areias pesadas que eram removidas de tempos em tempos para a apuração final na bateia. A operação era repetida muitas vezes até se atingir uma profundidade que impede a ação da correnteza da água. Terminado um canal abria-se outro ao lado, até cobrir todo o tabuleiro de canais. Um viajante europeu observou, no início do século XIX, um tabuleiro trabalhado na vizinhança de Mariana e comparou-o a uma roça profundamente arada. É evidente que esse tipo de desmonte hidráulico carrega uma enorme quantidade de lama e

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areia que posteriormente assoreiam os rios. Provavelmente, alguns dos muitos “rios vermelhos” em Minas Gerais devem seu nome a este tipo de lavra.

Casa de apuração de ouro. Desenho de Eschwege em Pluto Brasiliensis, 1833. Acervo Casa de Borba Gato ⁄ Museu do Ouro. Sabará.

No centro, um tanque com cerca de 1 m de profundidade, onde um escravo fica até os joelhos na água para apurar o ouro na bateia, assistido pelo seu dono que executa as últimas operações, como a amalgamação num prato de cobre ou a secagem numa tigela. Quando o ouro era muito fino, costumava-se colocar o sumo da folha de certas plantas, como por exemplo, do matapasto, da erva-de-santana ou do samababaiaçu para tirar a tensão de superfície d’água e forçar a decantação do ouro.

Quando a encosta do vale do rio tinha um declive maior, usava-se o chamado talho aberto, um método copiado das minas do Potosi, na atual Bolívia, e usado pela primeira vez por Pascoal da Silva Guimarães na Serra de Ouro Preto, que tinha ocupado em 1704, depois que os paulistas haviam abandonado o local porque esgotaram o ouro de lavagem do ribeirão. O método consiste na construção de um rego, às vezes de muitos quilômetros de extensão; suas águas são dirigidas para a encosta, também chamada de grupiara, e com o auxílio da alavanca ou do almocafre, a terra fofa é desmontada. A lama e areia são coletadas em reservatórios, chamados mundéus, onde o ouro é acumulado no fundo, junto à areia. Depois, essa lama é passada às canoas, canaletas largas e pouco profundas, feitas geralmente de tábuas com pequena inclinação, forradas com couros de boi com os pêlos contra a correnteza. Os pêlos retêm a areia pesada junto com o ouro que é apurado depois na bateia. A amalgamação com mercúrio era pouco comum, sendo muito usados extratos de plantas, como por exemplo o aloés, para evitar a flutuação do ouro na superfície da água. Este método de desmonte hidráulico no talho aberto deixou profundas cicatrizes na paisagem de Minas, como por exemplo na região do Morro de São Vicente, na margem direita do Rio das Velhas, na região de Capanema, no sopé da Serra do Caraça ou nas vizinhanças de Ouro Preto e Congonhas, que, mesmo depois de quase 300 anos, ainda não se fecharam. Este tipo de lavra ficou até gravado no nome de certos lugares, como é o caso de Catas Altas.

Lavra subterrânea Já na primeira metade do século XVIII, depois que as partes mais ricas dos aluviões tinham sido lavrados, os mineradores procuraram nas encostas pelo ouro primário dos veeiros. Inúmeras galerias, os chamados socavões, foram cavadas entre Mariana e Ouro Preto. Neste último lugar há também registro de poços verticais, as “minas de sarilho”, que atingiam profundidades de até cerca de 50 m. Muitas das minas da região de Caeté datam provavelmente também dessa época. A falta de técnica apropriada causou constantes desabamentos que custaram a vida de muitos escravos. A segunda metade dos anos setecentos é marcada pela exaustão de grande parte das jazidas, associada à falta de pesquisa e tecnologia de lavra subterrânea e também à falta de capital para novos empreendimentos, levando assim grande parte dos povoados da região das minas à decadência. Em 1811, o geólogo e metalurgista

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alemão Barão de Eschwege foi enviado em missão oficial como inspetor das minas de ouro e “encarregado das indagações montanísticas na Capitania de Minas Gerais”. Um dos seus principais objetivos era a reanimação da mineração de ouro, tentando, para isso, convencer os mineiros a usar equipamentos mais modernos. Para a trituração do minério de formação introduziu os pilões movidos por roda d’água. Esses pilões foram usados até os anos de 1940 nas minas de ouro. Um desses engenhos ainda está em exposição no Museu do Ouro, de Sabará. Em 1814, Eschwege fez um censo das lavras de ouro da Capitania de Minas Gerais contando 555 serviços, entre aluvião e formação. Destes, 130, quase um quarto, localizavam-se na bacia do Rio das Velhas, entre os termos (municípios) de Sabará e Caeté. Eschwege também defendia uma reforma da legislação mineral e, entre outros, propôs a criação de cooperativas mineiras para aumentar a área dos direitos minerais e tornar a atividade mais produtiva e rentável. Ele mesmo fundou, em 1819, a Sociedade Mineralógica na Mina de Passagem, propriedade que adquiriu em hasta pública; aumentou-a com a incorporação de glebas minerais vizinhas e iniciou trabalhos subterrâneos, segundo a técnica alemã, para reabilitar a mina. A sociedade durou pouco tempo após o retorno de Eschwege para Portugal, em julho de 1821, mas o rendimento da mina pagou o seu investimento. Mesmo assim, é exemplar para a indústria em Minas Gerais, por ter sido a primeira iniciativa como empresa de mineração, visto que até aquela data prevalecia o sistema de concessões de lavra outorgadas a indivíduos.

As companhias de mineração de ouro de capital inglês

Engenho de pilões de 18 mãos da mina do Morro Velho. Desenho publicado em The Illustrated London News, de 20 de janeiro de 1849.

A principal força motriz nas minas de ouro era a água, que fora canalizada sobre grandes distâncias em regos e bicames e finalmente dirigida para as rodas hidráulicas. O diâmetro desta roda é de aproximadamente 12 m.

Com a transformação do Brasil em império e a promulgação do decreto de 16 de setembro de 1824, a mineração do ouro no centro de Minas Gerais também tomou novos rumos, admitindo capital estrangeiro em empreendimentos mineiros para promover este ramo de indústria nacional. Nos anos 1820 ⁄ 30, cerca de meia dúzia de companhias de ações foram fundadas em Londres. A primeira era a Imperial Brazilian Mining Association, fundada em 1824, que iniciou seus trabalhos em 1826, na Mina do Gongo Soco, situada na serra do mesmo nome, divisor de águas entre as bacias do Rio das Velhas e do Rio Doce. A segunda era a National Brazilian Mining Association, também chamada Companhia de Macaúbas e Cocais, incorporada em 1828, em Londres, para trabalhar minas de ouro da região de Cocais, Caeté e Sabará. Para o fornecimento de alimentos à sua força de trabalho escravo, foi comprada, em 1829, uma grande propriedade rural, a Fazenda Rótulo, nas cabeceiras do Rio Cipó, afluente do Rio das Velhas. A companhia produziu, até 1912, a insignificante quantidade

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de 208 kg de ouro e nunca distribuiu dividendos aos seus acionistas. Uma subsidiária, a Rótulo Company, explorou a Mina de Descoberto, em Caeté. Seguiu-se a fundação da Brazilian Company, em 1829, que trabalhou a Mina de Cata Branca no flanco norte do Pico de Itabirito, até meados de 1844, quando encerrou suas atividades devido ao desmoronamento da mina que matou muitos mineiros. A mina chegou a uma profundidade vertical de cerca de 200 m e produziu 1.181 kg de ouro no período de 1840 ⁄ 44. Escravos e equipamentos foram depois vendidos à St. John d’El Rey Mining Company.

A Mina do Morro Velho A trajetória dessa mina quase tricentenária reflete bem a história da mineração de ouro no centro de Minas Gerais; é um dos poucos casos bem sucedidos de companhias inglesas. Bandeirantes liderados por Domingos Rodrigues da Fonseca Leme, sobrinho de Fernão Dias e cunhado de Garcia Rodrigues, acharam ouro no cascalho aurífero dos ribeirões do Cardoso e dos Cristais, no final do século XVII. O lugar tomou o nome de Campos de Congonhas e, por volta de 1720, deu origem ao arraial de Congonhas de Sabará, hoje conhecido como Nova Lima. Um veio de quartzo com pirita e arsenopirita auríferas no Morro Velho, situado a oeste do arraial, foi trabalhado desde 1725, a céu aberto na parte perto da superfície, onde houve enriquecimento de ouro pelos processos do intemperismo tropical. Em 1814, pertencia à família de Ana Corrêa da Silva, cujo marido a adquiriu por 150.000 cruzados. A mina foi tocada pelo filho, Padre Antônio Freitas, e tinha na época 24 trabalhadores livres e 122 escravos e 7 pequenos pilões manuais para trituração de minério, que era extraído com pequenas detonações. A produção daquele ano foi de apenas cerca de 16,25 kg.

Serviço de topografia na mina do Morro Velho, em meados do século XIX. Autor desconhecido.

A roda d’água aciona o sistema de extração de minério em plano inclinado, mais tarde substituída por poços verticais.

Em 1830, foi criada em Londres mais uma companhia, com capital inicial de 165.000 libras esterlinas, para explorar jazidas de ouro na região de São João del Rei, por isso chamada de St. John d’El Rey Mining Company, Limited. Por lá acumulou, até 1834, prejuízos de 26.287 libras, fato que levou à sua transferência para Congonhas de Sabará, onde comprou a Mina do Morro Velho. A companhia inglesa trouxe mineiros experimentados das minas de estanho na Cornuália, na Inglaterra, e iniciou, logo em 1834, os trabalhos de lavra subterrânea, começando a produção de ouro em 1837, com 150 kg. Durante o século XIX, a maioria da força de trabalho era de escravos, apesar da determinação do governo britânico de que nenhum de seus súditos deveria ter escravos. Então, os escravos eram alugados! Sob a direção do engenheiro George Chalmers (1884–1924), a mina teve grande desenvolvimento tecnológico. A companhia

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investiu maciçamente na compra de terras, tanto no município de Nova Lima como também em áreas mais distantes — entre outras na compra da Fazenda Jaguara, em 1884 — para o abastecimento de madeira, necessária para o escoramento da mina, e a posse de recursos hídricos. A Fazenda Jaguara, situada na margem esquerda do Rio das Velhas era, durante o século XVIII, uma próspera propriedade rural com “terras minerais”; ainda em 1814, produziu 3.135 oitavas (cerca de 11 kg) de ouro de aluvião, empregando 40 escravos nessa atividade. Uma vez instaladas as companhias inglesas em Minas Gerais, as suas minas de ouro tornaram-se atração especial para muitos viajantes estrangeiros, muitos deles relatando não só as suas impressões das minas, como também descrevendo, muitas vezes vivamente, usos e costumes locais e condições de vida.

A mineração de ouro no século XX A companhia do Morro Velho construiu usinas elétricas à base de força hidráulica para geração de energia própria. Para facilitar o transporte de material construiu um ramal de estrada de ferro ligando a mina à estação Raposos da Central do Brasil. Por volta de 1920, a mina atingiu uma profundidade de 2.000 m, onde a temperatura da rocha chega a 500 C, forçando a instalação de um sistema de refrigeração.

Armação dos poços A e B da mina de Morro Velho. Cópia de pintura de G. Grimm, 1955.

Abertos em 1885, por George Chalmers, para substituir o antigo sistema de extração de minério. No fundo, a carpintaria da mina. Nota-se a grande quantidade de madeira usada nas obras da mina.

A companhia sobrevive até os nossos dias. Porém, em 1958, a companhia norte-americana Hannah Mining Company assumiu o controle acionário, pondo fim, depois de 124 anos, à presença inglesa em Nova Lima. O alvo da Hannah eram as ricas jazidas de minério de ferro nos terrenos da St. John d’El Rey, mas não tinha interesse na mineração de ouro, na época com preço baixo no mercado mundial. Assim, nasceram nos anos 1960 duas novas empresas: a Mineração Morro Velho com os direitos minerários do ouro e as Minerações Brasileiras Reunidas (MBR) para o minério de ferro. A St. John d’El Rey foi certamente a mais bem sucedida de todas as empresas de capital inglês. No decorrer do tempo, ela comprou as minas de quase todas as outras companhias inglesas que foram à falência por motivos diversos. A sua sucessora ainda está em atividade sob o nome de Anglo-Gold, uma companhia de capital sulafricano. A Mina do Morro Velho foi desativada em 2003, depois de quase 170 anos de lavra subterrânea. Atingiu uma profundidade em torno 2.500 m e, mesmo existindo ainda reservas, a sua extração não é mais rentável. Pode ser considerada a mais produtiva jazida de ouro da região. A produção de ouro dessa e de outras minas menores incorporadas pela companhia chegou a cerca de 500 toneladas.

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Apesar do seu isolamento, a presença dos ingleses deixou marcas profundas não só na economia de Nova Lima, como também na paisagem urbana, na cultura e na sociedade, ultrapassando os limites do estreito vale do Córrego do Cardoso. O “bicame”, um aqueduto que levava água para as grandes rodas hidráulicas dos pilões, foi recentemente declarado símbolo da cidade. O altar-mor da matriz de Nova Lima, obra de Alejadinho, e tombado pelo Iphan em 1950, foi doado à comunidade em 1910 pelo então superintendente do Morro Velho, George Chalmers. A principal mina da companhia em atividade na região do Rio das Velhas é a de Cuiabá, localizada entre Sabará e Caeté, na encosta sul da Serra da Piedade. Essa mina foi comprada, em 1877, da Companhia de Cocais (National Brazilian Company) e operou intermitentemente até 1930. Novas pesquisas na década de 1970 permitiram a sua reabertura a partir de 1986. Para o tratamento do minério, foi construída a nova planta de beneficiamento de Queiroz, perto de Raposos, onde também o enxofre do minério é aproveitado para produção de ácido sulfúrico, importante matéria-prima para a indústria química. Além disso, evita maiores danos ao meio ambiente, pois a pirita e outros sulfetos dos rejeitos se decompõem sob condições atmosféricas normais, formando ácido sulfúrico por via natural. A mina produziu cerca de 5.000 kg de ouro em 2002. Outra mina ativa, de menor porte, é a do Engenho d’Água, município de Rio Acima. No Lamego, localizada a meio caminho entre Sabará e Morro Vermelho, está sendo desenvolvida uma nova mina, a ser aberta em 2004, inicialmente a céu aberto.

II. Ferro Indústria siderúrgica Apesar das enormes reservas de minério de ferro de excelente qualidade no chamado Quadrilátero Ferrífero, um sistema de serras que envolve as cabeceiras do Rio das Velhas entre Ouro Preto e Sabará, e da necessidade do ferro para os apetrechos usados na mineração, esse recurso mineral ficou mais de 100 anos ofuscado pelo ouro. O padre jesuíta André João Antonil escreve já em 1711: Foi sempre fama constante que no Brasil havia minas de ferro, ouro e prata. Mas também houve sempre bastante descuido de os descobrir e de aproveitar-se delas. Uma vez descobertas, as minas de ouro foram imediatamente aproveitadas, porém as de ferro, que ocorrem juntas, ficaram realmente intocadas durante todo o século XVIII. Em 1780, o governador D. Rodrigo José de Menezes alertou as autoridades de Lisboa na sua “Exposição sobre o estado de decadência da capitania de Minas Gerais”, escrita em agosto de 1780, seis meses depois de assumir o governo de Minas:

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. . . Sou obrigado a propor um novo estabelecimento, que. . . é o estabelecimento de uma fábrica de ferro. Se em toda parte do mundo é este metal necessário, em nenhuma o é mais que nestas Minas; qualquer falta que dele se experimente cessa toda a qualidade de trabalho, seguem-se prejuízos irreparáveis, e é uma perdição total. Fabricando-se aqui, pode custar um preço mais módico, não obstante os direitos que se lhe devem impor;. . . facilita-se deste modo a compra dele, concorre este artigo para que faça mais conta ao mineiro extrair o ouro, tendo barato o ferro. . .

As primeiras fábricas de ferro Fora algumas pequenas forjas rústicas para produção de utensílios de ferro em escala artesanal, o grosso do ferro era importado da Europa, pagando ainda pesados impostos quando chegava às Minas. Em 1795, D. João admitiu expressamente “que em todo continente do Brasil se possam abrir minas de ferro e se possam manufaturar todos e quaisquer instrumentos deste gênero.” Mas somente com sua chegada ao Brasil, em 1808, este quadro foi modificado. Seu ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, mais tarde Conde de Linhares, tinha recrutado, em 1803, técnicos alemães para retomar as atividades da fábrica de ferro de Foz d’Alge, em Portugal; em 1810, chamou-os para virem ao Brasil. Um deles era o Barão de Eschwege, que chegou em agosto de 1811 em Vila Rica e foi logo autorizado por carta régia a levantar uma fábrica de ferro, perto de Congonhas, na margem do Ribeirão da Prata, uma das cabeceiras do Rio das Velhas. A localização era privilegiada, pois tinha abundância de minério de boa qualidade, de madeira para o carvão vegetal e de água para movimentar as máquinas (trompas e martelo). O empreendimento foi financiado por emissão de ações compradas por particulares, entre eles o próprio Eschwege e o Conde da Palma, então governador da capitania. A fábrica tinha cinco fornos suecos, dos quais quatro de fundição e um de refino para fabricação de aço. A primeira fundição de ferro ocorreu em 12 de dezembro de 1812, data que marca o início da industrialização e do aproveitamento das ricas jazidas de ferro em Minas Gerais. A grande inovação técnica foi a introdução das trompas d’água para garantir uma insuflação do ar constante e contínua no forno em vez dos foles que trabalhavam ritmicamente. Eschwege escreveu em 1813: As imensas riquezas que esta capitania oferece em mineral de ferro espantam o conhecedor, não havendo parte nenhuma do mundo até agora examinada pelos mineralogistas que apresente maior abundância dele. Montes e serranias inteiras estão cobertas de ferro micáceo, magnético, especular e vermelho. Parece, segundo notícias que pude alcançar, que os escravos negros da Costa da Mina deram as primeiras luzes aos mineiros do conhecimento deste mineral e da extração do ferro.

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Foi ele também que deu, em 1822, a primeira descrição geológica do itabirito: ... forma picos e serras altos e grotescos, ladeados por muitos blocos rolados. Destacam-se particularmente o Pico de Itabirito e a Serra da Piedade, perto de Sabará. Nesta última, [o itabirito] tem mais de 1000 pés de espessura. Pode-se dizer com certeza que estas enormes ocorrências podem fornecer [minério de] ferro para o mundo, enquanto ele existe. Eschwege construiu ainda uma outra fábrica em Timbopeba, perto de Ouro Preto, e deu ajuda técnica em muitas outras fábricas locais. Ele optou por estabelecimentos de pequeno porte, pois o peso do ferro e as condições das estradas não permitiam transporte a longas distâncias. Na mesma época, o Intendente dos Diamantes, Manoel Ferreira da Câmara, foi autorizado, já em 1808, por carta régia, a usar recursos financeiros da Administração Diamantina para erigir uma fábrica de ferro em Morro do Pilar, que deveria produzir em escala grande para abastecer as lavras de diamantes no Tejuco (Diamantina) e até exportar para a Europa. Câmara decidiu construir um altoforno, o primeiro na América do Sul. Essa tecnologia permite uma economia de 1 ⁄ 3 do combustível. Devido aos muitos problemas de ordem técnica e de mão-de-obra, essa fábrica fundiu o seu primeiro ferro só em 1813 e nunca conseguiu regularidade na produção. Um dos maiores problemas enfrentados por Câmara era com as pedras refratárias para o revestimento interno do alto-forno. O material local não agüentava as altas temperaturas e a importação da Inglaterra era demorada demais. A fábrica foi fechada melancolicamente em 1830 com grande prejuízo para o erário.

Montanhas auríferas em Cata Branca na província de Minas Gerais, em 1840. Situada 3 km a nordeste do Pico de Itabirito (ao fundo) era uma das mais bem equipadas minas inglesas da época. Aberta em 1832, pela Brazilian Company Ltd., em 1844, chegou a uma profundidade de 200 m. Nesse ano, encerrou suas atividades devido a um grande desmoronamento no interior da mina que custou a vida de muitos mineiros. Até aquele ano, sua produção somou 1.181,3 kg de ouro. O esboço original de Stephan foi gravado por A. Brandmeyer e publicada por Carl P.F. von Martius na sua famosa Flora Brasiliensis. Ao lado do Pico do Itabirito, tombado pelo Iphan, em 1962, como monumento paisagístico, encontra-se hoje uma das grandes minas de minério de ferro de alto teor. Assim, esta gravura representa a dualidade de ferro e ouro no Quadrilátero Ferrífero, o que Henri Gorceix chamou de “coração de ouro num peito de ferro”.

Em 1817, chegou a Minas Gerais o engenheiro francês João de Monlevade que se fixou inicialmente na região de Caeté, onde construiu uma forja italiana para produção de ferro e aço, em sociedade com Luís Soares de Gouvêa, fabricando bigornas, eixos de moendas, almofarizes e outros utensílios de ferro. Essa fábrica teve pouca duração e já em 1825, Monlevade transferiu-se para São Miguel de Piracicaba (hoje Rio Piracicaba), onde construiu uma outra forja italiana, embrião da atual usina da Belgo-Mineira de João Monlevade.

A siderurgia moderna: a fase das usinas Em 1888, o engenheiro suíço Alberto Gerspacher, junto com seus sócios brasileiros Amaro da Silveira, Carlos da Costa Wigg e Henrique Hargreaves resolveram construir um outro alto-forno com nove metros de altura (o segundo em Minas Gerais) a 5 km de

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Itabira do Campo (hoje Itabirito), onde a Estrada de Ferro Central do Brasil tinha chegado no ano anterior. O lugar da futura usina oferecia condições ideais para o suprimento dos insumos básicos: minério da melhor qualidade de duas jazidas, de Cata Branca e do Pico de Itabirito, que fazia parte da propriedade e do qual era produzido ferro-gusa. Também havia madeira para o carvão vegetal e água em abundância. Gerspacher solucionou o problema dos tijolos refratários com argila de Caeté. As obras do alto-forno começaram em novembro de 1888 e em 1º de outubro faleceu Alberto Gerspacher, com 51 anos. Seu filho continuou a obra, inaugurada em 21 de julho de 1891. Já em 1892, o empreendimento, batizado por seu fundador Usina Esperança, mudou de dono devido a dificuldades financeiras e, em 1899, foi adquirido pela firma Leandro & Queiroz Júnior. A usina continua até hoje em atividade sob nova administração. O filho de Alberto, José Gerspacher, em sociedade com Carlos da Costa Wigg construiu uma outra usina em São Julião (hoje Miguel Burnier), na extremidade sul da bacia do Rio das Velhas, onde existe importante entroncamento ferroviário entre a linha tronco da Central do Brasil e o ramal de Ouro Preto. A chamada Usina Wigg foi inaugurada em outubro de 1893. No início do século XX, as usinas Esperança e Wigg eram as únicas com alto-fornos em funcionamento no Brasil. Diversas empresas foram fundadas durante o século XX, muitas delas com participação ativa de José Gerspacher. Em 1918, foi fundada em Sabará a Companhia Siderúrgica Mineira por Cristiano Teixeira Guimarães, Gil Guatemosim e Amaro Lanari, a partir da qual surgiu, em 1921, a Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira, hoje com moderna usina em Monlevade e trefilaria em Contagem para fabricação de arames e cabos de aço. Trabalhou também José Gerspacher na Cia. Mineira de Siderurgia, em 1920. Um ano mais tarde encontramo-lo em outro empreendimento em Rio Acima, onde foi construída uma usina siderúrgica pela firma Gerspacher & Giannetti, posta em funcionamento em abril de 1922, para produzir peças de ferro fundido. Hoje encontra-se em estado de total abandono. O minério proveniente da Serra de Gandarela era transportado em lombo de burro. Também com a participação de José Gerspacher foi posto em funcionamento, em 1924, outro alto-forno em Caeté, pela firma Purri & Cia., empreendimento continuado pelas Cia. Ferro Brasileiro e Siderurgia Barbará, fabricando peças de ferro fundido, especialmente tubos para adutoras de água. Hoje esse artigo foi substituído em grande parte por tubos de PVC. A relação ora apresentada não tem pretensão de ser completa, apenas quer resgatar a memória de alguns vultos da história da siderurgia no vale do Rio das Velhas. A multiplicação de usinas de

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Faiscadores de ouro. Fotografia: Raymundo Alves Pinto.


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pequeno e médio porte veio a confirmar a previsão de Eschwege quando afirmava: “Só pequenas fábricas, espalhadas por todas as províncias, com produção máxima de 2.000 arrobas (cerca de 30 t) anuais, trarão melhores resultados, não só para os vendedores, como para os compradores.” Isto foi escrito em 1833. Mais recentemente, a partir dos anos 1970, foram construídos diversos fornos para a fabricação de ferro-gusa em Matozinhos, Paraopeba e na região de Sete Lagoas até Curvelo, em grande parte ainda produtivos. O produto é destinado ao mercado interno e para exportação. Todos eles, em torno de quatro dezenas, trabalham com minério de ferro do Quadrilátero e carvão vegetal, hoje na maioria dos casos trazido do Norte de Minas Gerais. Um projeto de tecnologia avançada foi implantado a partir de 1953 pela siderúrgica alemã Mannesmann, no bairro Barreiro de Belo Horizonte. A sua principal linha de produção são os tubos sem costura, usados em grande escala nas perfurações, sendo a Petrobrás um dos principais clientes. A usina usou inicialmente o minério da Mina da Mutuca, divisa entre os municípios de Belo Horizonte e Nova Lima, e hoje é abastecida com minério da Mina Pau Branco na Serra da Moeda.

Planta da Fortaleza de São José, no sítio da Jaguara, 1730. Desenho aquarelado anônimo. Coleção da Mapoteca do Itamarati, Rio de Janeiro.

O governador da Capitania de Minas Gerais mandou construir esta fortaleza para vigiar o caminho das minas de ouro à Bahia, que passava junto ao Rio das Velhas. Na atual Fazenda da Jaguara, uma das inúmeras curvas do rio é chamada até hoje de “Curva do Canhão”. Do lado da fortaleza passava o caminho da Bahia, “Estrada Real do Sumidouro” (letra M). Provavelmente, a primeira referência documental às estradas reais, que eram a principal ligação das minas com as fazendas de gado do vale do Rio São Francisco, responsáveis pelo abastecimento de gêneros alimentícios de todo tipo nas minas, principalmente gado para abate.

Embora essas usinas sejam hoje superadas pelos gigantes da siderurgia nacional, como a Usiminas em Ipatinga, a Açominas em Ouro Branco, a Acesita em Timóteo, no vale do Rio Doce, as usinas da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda, a primeira entre as grandes usinas brasileiras, inaugurada em 1946, Tubarão no Espírito Santo e a Cosipa em Cubatão, São Paulo, a bacia do Rio das Velhas foi o berço da indústria do ferro no Brasil, irradiando tecnologia para todo o país. Em reconhecimento a este fato, o Iphan inscreveu as ruínas da Fábrica Patriótica do Barão de Eschwege, já em 1938, no seu livro de tombo. As ruínas, dentro da área industrial da Mina da Fábrica da Ferteco, ficam escondidas e fora do alcance da visitação pública mais ampla. A ruína do altoforno da Usina Esperança, de Alberto Gerspacher, em frente ao portal das atuais instalações, não mereceu igual tratamento. Vale lembrar que o Pico de Itabirito foi tombado pelo Iphan em 1962.

A mineração de ferro Apesar do grande número de usinas construídas desde o final do século XIX até os anos 1930, nenhuma mina de ferro de grande porte foi aberta na região. As jazidas mal foram arranhadas superficialmente, ficando ainda quase intocadas até meados do século XX. O geólogo norte-americano radicado no Brasil Orville Derby fez, em 1910, uma comunicação no Congresso Internacional de

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Geologia, realizado em Estocolmo na Suécia, que chamou a atenção da comunidade internacional para as enormes reservas de minério de ferro no centro de Minas Gerais. É a partir dessa data que empresas estrangeiras, em especial norte-americanas e inglesas, mandaram técnicos ao Brasil para estudar essas jazidas. Diversas firmas de capital estrangeiro foram criadas e adquiriram direitos minerários, como por exemplo a americana Itabira Iron Ore Company e o British Hematite Syndicate Ltd. Somente com a criação da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), em 1942, a maioria das jazidas passou ao domínio do governo brasileiro. Dois anos antes foi concluída a Estrada de Ferro Vitória e Minas, possibilitando assim a exportação do minério pelo porto de Vitória. Grande parte das jazidas da bacia do Rio das Velhas pertencem às Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), em parte já exauridas, como as de Águas Claras e da Mutuca, na Serra do Curral, entre Belo Horizonte e Nova Lima, ou em operação como as do Pico de Itabirito, Tamanduá, Capitão do Mato e Andaime, todas estas na Serra de Itabirito, ou ainda em fase de implantação, como é o caso da mina do Capão Xavier, município de Nova Lima. Também em atividade está a mina de Fábrica da Ferteco, localizada no extremo sul da bacia do Rio das Velhas entre os municípios de Itabirito, Ouro Preto, Congonhas e Belo Vale. Após sua recente privatização, a CVRD encampou grande parte das empresas de mineração de ferro, tais como a Samitri e Samarco do grupo Belgo-Mineira, a Ferteco e a MBR, formando agora a maior empresa de mineração de ferro do mundo.

III. Outros recursos minerais

Calcário e indústria cimenteira Calcários de alta pureza do Grupo Bambuí, que formam espessas camadas sobre um largo trecho, como por exemplo entre Lagoa Santa e Sete Lagoas, fornecem a matéria-prima para o pólo cimenteiro, um dos mais importantes do país, instalado na região a partir dos anos 1940. As principais jazidas e fábricas de cimento estão localizadas na região de Vespasiano, Pedro Leopoldo e Lagoa Santa. A ocorrência de grutas e sítios arqueológicos e ⁄ ou paleontológicos causa por vezes conflitos de interesse entre a mineração e a conservação paisagística e do meio ambiente.

Outros materiais para a construção civil Areia e cascalho são explorados em larga escala na região metropolitana, muitas vezes no próprio Rio das Velhas. Brita para concreto é produzida em pedreiras nos gnaisses do embasamento e no cal-

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cário Bambuí. Barro vermelho ocorre como cobertura de diversas formações geológicas e é amplamente utilizado para fabricação de tijolos, telhas e outros artefatos cerâmicos em quase toda a extensão do vale do Rio das Velhas. Argilas brancas têm ocorrência mais restrita, sendo aproveitadas para fabricação de azulejos, como por exemplo na região de Santa Luzia. Ardósias são exploradas na região de Lagoa Santa até Sete Lagoas e mais para norte, produzindo material de revestimento de baixo custo, e outros artefatos tais como bancadas, pias e até mesas de sinuca.

Quartzo e a indústria de ligas metálicas Nas últimas décadas, instalou-se na região de Várzea da Palma e Pirapora importante pólo de fabricação de ligas metálicas, com destaque para ferro-silício e silício metálico, sendo os primeiros indispensáveis na produção do aço. O silício metálico é usado na fabricação de componentes eletrônicos. O silício é produzido a partir de lascas de quartzo, que tem ocorrência muito difundida com grandes jazidas na Serra do Espinhaço, na Serra do Cabral como também de veios de quartzo leitoso em falhas geológicas nas rochas do Grupo Bambuí. Há também produção de liga ferro-manganês, sendo o minério de ferro proveniente do Quadrilátero Ferrífero e o de manganês da Serra do Espinhaço e de Conselheiro Lafaiete. Durante muitos anos, a bacia era produtora de minério de manganês com pequenas jazidas de enriquecimento superficial no Quadrilátero Ferrífero (Formação Gandarela) e ao longo da encosta ocidental da Serra do Espinhaço (em rochas do Grupo Macaúbas), hoje exauridas. O cristal de rocha já era importante fonte de renda de parte da população local, especialmente durante os anos de 1940, com o centro de comercialização em Corinto, sendo usado para a indústria de aparelhos eletro-eletrônicos, hoje substituído por cristais sintéticos.

Diamantes Nos rios Paraúna e Pardo são achados diamantes desde o século XVIII. Lugares como Datas e São João da Chapada, nas cabeceiras destes rios, devem sua origem aos diamantes. As pedras, apesar de normalmente não muito grandes, são de excelente qualidade. A jazida do Barro, em São João da Chapada, descoberta em 1824, localiza-se exatamente no divisor das águas entre as bacias do Rio das Velhas e do Jequitinhonha. Essa lavra atraiu muitos viajantes estrangeiros durante o século XIX, entre eles Richard Burton, que passou por lá em agosto de 1867. Há ainda registros esparsos de achados isolados de diamantes no Rio Cipó e até no próprio Rio das Velhas. Apesar da atual decadência da lavra de diamantes na região, ainda aparecem pedras de algumas dezenas de quilates, na

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maioria dos casos comercializadas pelos garimpeiros em Diamantina. Outra gema de ocorrência ainda mais restrita é o topázio imperial, que ocorre nas serras entre Congonhas e Ouro Preto, no extremo sul da bacia.

IV. Mineração e meio ambiente O impacto da mineração no meio ambiente é, sem dúvida, muito grande, especialmente tratando-se de minas a céu aberto. Ao contrário de outras indústrias, a mineração não é livre na escolha do lugar, mas este é condicionado pela localização da jazida. No caso específico do vale do Rio das Velhas, deve-se lembrar ainda que o povoamento do seu curso superior deu-se como conseqüência direta da mineração do ouro. A conscientização crescente tanto da sociedade, seja através dos seu poderes legislativo ou executivo, seja por iniciativas espontâneas por parte de organizações não governamentais, como das próprias empresas de mineração, exige hoje o cumprimento de uma série de medidas que visam à diminuição do impacto ambiental da mineração e que se estendem além da vida útil da mina com a recuperação das áreas degradadas. Muitas das empresas de mineração tornaram-se proprietárias de grandes áreas, parcialmente induzidas à compra dos terrenos pela legislação da Velha República que reservava ao proprietário da superfície o direito dos recursos minerais do subsolo. Outro motivo era a aquisição de áreas de matas para o abastecimento das minas com madeira para escoramento e construção de engenhos, como foi o caso da St. John d’El Rey Mining Company, que se tornou dona da maior parte das terras do atual município de Nova Lima. Assim, foram conservadas áreas da Mata Atlântica que, com outros donos, provavelmente teriam sido transformadas em área de pastagem. Cita-se, como exemplo, a mata do Jambreiro, o pulmão verde da capital mineira, que foi transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) ou a Fazenda Gandarela, na vizinhança dos municípios de Itabirito, Rio Acima e Caeté. Novas tecnologias também diminuem o impacto ambiental da mineração, às vezes até com resultados financeiros positivos, como por exemplo a pelotização dos finos do minério de ferro, transformando material antes estocado em produto vendável. Outras medidas visam a controlar os níveis da poluição atmosférica (poeira), de ruídos de detonações e equipamentos e das águas efluentes das operações de lavra e beneficiamento. Cuidados especiais estão sendo tomados hoje em dia por ocasião do fechamento de uma mina, como é o caso da desativação da Mina

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de Águas Claras onde se pretende criar um empreendimento imobiliário, transformando a cava da mina em lagoa artificial. Outro exemplo é a Mina do Morro Velho, que foi desativada em 2003, pois a extração de ouro tornou-se onerosa. Estudos de estabilidade das rochas e de circulação de águas subterrâneas estão sendo realizadas para evitar futuros problemas para a sociedade e o meio ambiente, visando também à inserção urbanística das áreas de superfície. É evidente que esses processos demandam altos investimentos e um bom tempo para serem concluídos. Os maiores danos ao meio ambiente, na sua grande maioria, são causados por empresas de mineração de menor porte, muitas vezes ainda irregulares para com a legislação ambiental e mineral, e isso vai continuar enquanto a fiscalização dos órgãos encarregados for insuficiente.

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Iconografia

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Abstract

Mineral resources, mining, and iron and steel industry Mineral resources, mining, and transforming industries are among the cornerstones of occupation and economic development of the Velhas River basin. The most important metallic mineral resources within the basin are gold and iron, concentrated in its southern most part. Gold was first discovered at the end of the 17th century by diggers and is still being exploited, currently in modern mines. A example of the development of local mining is the Morro Velho gold mine in Nova Lima, which mirrors the history of gold mining in central Minas Gerais. The deposit consists of several gold/sulfide bearing quartz lodes hosted in the Velhas River Supergroup. In the beginning, the part near the surface, enriched by deep tropical weathering, was mined by Portuguese settlers with primitive methods. A British company bought the mine in 1834 and proceeded with systematic underground operations. During the 1920s it became the deepest mine of the world reaching about 2000 m below surface. Now owned by the South-African company Anglo-Gold, it was closed down in 2003. During nearly 170 years, the company produced about 500 metric tons of gold from Morro Velho and other mines, which were incorporated over the years. The same company still operates the biggest gold mine within the basin at Cuiabá, and is developing another one at Lamego, both near Sabará. The development of local iron and steel industry since the beginning of the 19th century took advantage of the huge resources of high grade iron hosted in banded iron formations (BIF) of the Minas Supergroup. The mountain ridges of BIF give shape to the so called Iron Quadrangle between Ouro Preto and Belo Horizonte. Steel-works and foundries of pig iron supplied artifacts for local demand, contributing to the industrialization in Minas Gerais during its initial phase. Iron ore is mined for domestic use and exported to Europe and Asia. Among the industrial minerals the most important is limestone from the Bambui Group. A pool of cement factories was established since the 1940s in Pedro Leopoldo, Vespasiano, and Lagoa Santa, north of Belo Horizonte. Red clays are widely used in small to medium size manufactories of roof tiles and brick stones, especially in the vicinities of Belo Horizonte and other major towns within the basin. Milky quartz from the Serra do Espinhaço and from veins within the Bambui Group is used for alloys and metallic silicon with smelters in the region of Várzea da Palma. In the headwaters of the Paraúna and Pardo Rivers, diamonds have been washed since the 18th through the 20th century. Today diamond washing is more and more difficult but stones of up to 40 carats have been found during the last few years.


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Professor do Departamento de Geologia do Instituto de GeociĂŞncias da Universidade Federal de Minas Gerais


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11 A plataforma geológica e o desenvolvimento sustentável Edézio Teixeira de Carvalho 1


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Seção

Planta


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1 – Marcos conceituais

Uma comparação Convido o leitor a fazer comparação entre o Rio das Velhas e o Amazonas. No Brasil, o Amazonas é rio de planície, correndo no eixo de bacia sedimentar continental que segue os paralelos. Se observarmos essa bacia por mapa geológico de escala adequada, veremos a simetria formada pela disposição dos terrenos de mesma classificação geológica (mesma cor ou padrão no mapa) a norte e a sul do rio. Assim, se cortarmos a bacia por um plano vertical, podemos ver nesse plano como a simetria se explica em profundidade. Basta no desenho ao lado dobrar a folha do livro segundo a linha vertical. A diferença fundamental entre o Velhas e o Amazonas é que, se tentarmos fazer um corte semelhante na altura de Corinto, em direção leste-oeste, veremos uma clara assimetria, quero dizer que não há repetição simétrica como se vê no Amazonas. No Velhas o limite ocidental da bacia tem sedimentos horizontais mesozóicos a que corresponde a fisiografia de formas tabulares, enquanto o limite oriental é marcado por forte elevação correspondente à Serra do Espinhaço, formada por terrenos proterozóicos, com topografia rugosa de vales escavados entre cristas de rochas quartzíticas e outras. Pela razão acima, as propriedades dos terrenos amazônicos repetem-se de forma simétrica a norte e a sul do rio, enquanto no Velhas a disparidade dessas propriedades é flagrante entre as bordas oeste e leste.

Conceito novo para uma palavra velha Aproveito a oportunidade da comparação anterior para introduzir um conceito da palavra plataforma, ela que tem outros usos em Geologia: o de plataforma continental, com sentido fisiográfico significando extensão submarina de continente e outro, com sentido geotectônico. O sentido que acrescento é o de um domínio geológico geograficamente limitado com o conjunto de seus valores naturais sobre o qual se instala o assentamento humano. Esse território é base de operações que provê ao assentamento suporte físico e diversas categorias de suprimentos minerais, vegetais e animais. Um certo suprimento mineral está bem representado na bacia do Velhas e é superabundante. Então, essa base territorial pode ceder parte dela a outros territórios, em troca de outros suprimentos. Na sociedade moderna inexiste território auto-suficiente porque o intercâmbio comercial determina opções a cada região de produzir o que faz mais bem feito, usando o excedente desse produto para adquirir o que não produz. Tudo que a sociedade produz, inclusive vias e edificações, depende de características da base territorial a que está vin-

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culada. Chamar essa base territorial de plataforma geológica é o que proponho porque dar conotação geológica às possibilidades inerentes é enraizar cientificamente o conceito vago chamado de sustentabilidade.

A sistematização da sustentabilidade A plataforma geológica é o continente da sustentabilidade porque reúne, contém, armazena, encerra, elabora, cede coisas que integram o patrimônio da sustentabilidade. Os arranjos que a plataforma geológica tem para proporcionar o listado e outras coisas mais são os fatores geológicos da sustentabilidade, que podem ser agrupados como no quadro anexo.

Agrupamento dos fatores da sustentabilidade fundamental, ou geológica FATOR

VALORES ASSOCIADOS

Geodinâmica interna

É o mais importante de todos porque, juntamente com os organismos vivos e a luz solar, criou os demais e repõe seu estoque. Pode ser explorado nas fontes geotérmicas explícitas e em maciços rochosos jovens (uma das modalidades de energia do futuro).

Composição atmosférica

Contribui com o CO2 para as plantas, o oxigênio e as águas pluviais. É ameaçada de três maneiras: efeito estufa (global); redução da camada de ozônio (regional); poluição do ar (local).

Recursos minerais Solo; minerais e rochas industriais; materiais de construção.

O primeiro, suporte de flora e fauna, não é passível de transferência física, mas através das commodities agrícolas; é vulnerável à dissipação conseqüente ao mau uso; sua vinculação com o substrato faz dele o objeto geológico mais amplamente distribuído. Os segundos são objeto tradicional da geologia aplicada. Podem ser transferidos. Onde se realiza sua transformação, geram desenvolvimento permanente e soberano. Os terceiros, pela diversidade de características compatíveis com as aplicações, não são objeto de uso regular do conhecimento geológico. Constituem importante objeto da gestão. Para compreender esta declaração, basta notar que São Paulo (Estado), um nanico mineral, produziu 97 milhões de metros cúbicos só de brita em 2001.

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FATOR

VALORES ASSOCIADOS

Recursos hídricos (estruturas portantes da água)

Dimensões de gestão: suprimento, agente de processos geodinâmicos e geotécnicos, veículo de poluentes e contaminantes. Fontes de suprimento: mananciais superficiais; subterrâneos; águas pluviais. Sem autonomia geoambiental, em tudo a água depende do sistema geológico para sua conservação e bom aproveitamento. Derivações fluviais (transferência física), constituem uma das maiores ameaças à paz; são crescentemente transferidos por via das commodities agrícolas, e nos processos industriais diretos (metalurgia de exportação) e indiretos (energia para alumínio).

Suporte físico dos assentamentos humanos

Situações de risco pessoal e econômico associadas a eventos naturais e processos geológicos ativados pelo homem; interação com as obras de engenharia; intransferíveis.

Absorção de impactos ambientais

Cemitérios, fossas e valas de infiltração; absorção de águas pluviais (o mais volumoso e destrutivo efluente da civilização atual); intransferível, esta qualidade do sistema geológico tem sido cedida mediante venda, pelos pobres aos ricos, de áreas de disposição de efluentes industriais perigosos, ou tem sido usada de forma clandestina pelos ricos nos países pobres.

Suporte de paisagens excepcionais

Lazer e turismo. É fator da sustentabilidade intransferível; nele poderia basear-se parte da soberania econômica do país, mas isto depende de bom planejamento, estabilidade de políticas adequadas e também mais zelo com as estradas, ruas, a arquitetura de pousadas. Este fator da sustentabilidade pode ser aproveitado concomitantemente com a mineração, por exemplo, a hidrelétrica, a agricultura.

Páginas seguintes: “paisagem” típica da bacia do Rio das Velhas vista do microscópio petrográfico, luz polarizada. Metagabro, rocha intrusiva nos gnaisses do Complexo Belo Horizonte (Silva et Al., 1995). Aumento 2,5 X.

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Chamo atenção para algumas questões importantes. Diferentemente do que muitos pensam, recurso hídrico não é a água em si, mas o conjunto dos fatores geológicos que permitem captar as águas pluviais, armazená-las, purificá-las e restituí-las. Com efeito, recurso, através do inglês resource, vem do latim resurgere, ressurgir ou em nosso sentido renovar (encontrei também recursus, direto do latim). Logo, recurso hídrico é o reservatório geológico (poros e fissuras dos solos e rochas), a morfologia do terreno, a cobertura vegetal e outros aspectos da natureza geológica que contribuem para a eficiente captação das águas pluviais e sua introdução no sistema geológico. Um dos mais importantes recursos hídricos é a rugosidade da superfície da terra, compreendendo desde as macro-rugosidades representadas pela conformação do relevo, as formações vegetais, as cavidades e trilhas dos animais. A rugosidade dá tempo à água para infiltrar-se. Vem sendo destruída pela civilização, colocando superfícies antrópicas menos rugosas e molháveis no lugar dos equivalentes naturais, formando o antropostroma ou tapete antrópico, membrana menos permeável que seus equivalentes naturais. Outra questão é que a principal fonte de água pura é a água salgada do mar, descontaminada e purificada pela energia solar — fator da sustentabilidade não pertencente à plataforma geológica. O segundo processo em capacidade de geração de água pura é o de filtração da água ao percolar o interior do sistema geológico, uma das mais importantes funções da plataforma geológica. Finalmente, cito dois exemplos do fator da sustentabilidade geodinâmica interna na bacia do Rio das Velhas: o primeiro é representado pelas rochas intrusivas ocorrentes em extensas faixas de direção norte-sul na Serra do Espinhaço, das quais são formados solos agrícolas férteis e nossos antepassados da idade da pedra faziam armas e ferramentas (rochas conhecidas por pedra ferro, cabo verde, etc.). O segundo consiste na ocorrência de águas termais na bacia.

A equação da interação na manipulação da sustentabilidade O êxito de qualquer sociedade humana em desenvolvimento técnico, econômico e social erigiu-se sobre o conhecimento dos fatores da sustentabilidade disponíveis e da aplicação desse conhecimento inspirada na configuração desses fatores, vale dizer na exploração da realidade contextual. A concentração do conhecimento básico e das tecnologias que ele proporciona tornou essas tecnologias mais importantes que os objetos a que se aplicam e a manipulação delas garante poder. Nunca, portanto, mais oportuno que agora a difusão do conhecimento das plataformas geológicas locais porque é esse conhecimento que gera possibilidades diferentes das dos outros e a famosa competitividade.

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Examinemos a equação 2x + 31 = 43. Nela, qualquer um sabe achar o valor de x, no caso 6. Não importa que a Terra seja destruída e que não haja mais no universo quem possa achar o valor de x, porque ele é, como diria, “eterno”, independentemente de ser encontrado. É talvez por isto que Einstein teria dito que “uma equação é para toda a eternidade”. Examinemos a equação abaixo sem nos peocuparmos com o fato de que as entidades presentes possam ou não receber valores como o 6 encontrado para o x citado anteriormente.

Ambiente geológico + nenhuma intervenção antrópica = ambiente geológico (1) Esta é a equação constitutiva do ambiente geológico (ou natural), que chamaremos interação natural. O valor do ambiente geológico resultante pode evoluir ao sabor do processo natural, não explicitado na equação. Se externalizarmos o Homem do ambiente geológico para colocá-lo manipulando-o, teremos a equação da interação antrópica abaixo:

Ambiente geológico + intervenção antrópica = ambiente tecnogênico (2) Esta é a equação constitutiva do ambiente resultante da manipulação humana. Agora, vamos fazer um exercício simples, mas de profundas implicações para a Gestão:

Ambiente tecnogênico + nenhuma intervenção antrópica = ambiente geológico (3) Assim, temos mais de uma via para construir o ambiente geológico: se extrairmos o homem tecnológico desse sistema, teremos de aceitar que sua mão constrói ambiente tecnogênico enquanto a da natureza, com ou sem a do homem natural, constrói ambiente geológico. Os espanhóis encontraram no Yucatán, praticamente renaturalizado, o ambiente tecnogênico abandonado pela extinta civilização maia e em Tenoctitlán o ambiente tecnogênico da próspera civilização asteca. Quando os vestígios da civilização são apagados pelo processo geológico, teremos como resultado o ambiente geológico. A natureza, contudo, é lenta e levará muito tempo para restaurar sozinha os solos perdidos por erosão antrópica. A equação da interação antrópica tem utilidades práticas das quais a humanidade tirará proveito quando voltar para a terra olhar mais perscrutante (objetivando conhecer bem o planeta que habita para beneficiar-se disto). Para exemplificar, podemos aplicá-la ao

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urbanismo, objetivando o desenvolvimento de cidades que, ao invés de sofrerem com os impactos de sua aversão à água, beneficiam-se de convívio amigável com ela. Para isto, coloquemos a expressão da equação da interação para a cidade convencional

Ambiente tecnogênico 1 + construção da cidade convencional = cidade + descontrole das águas pluviais (4) É possível construir a cidade não convencional, aqui chamada geossuportada, que não apresente o descontrole das águas, responsável por erosão, assoreamento, inundações. Basta tirar de circulação a água excedente no ambiente urbano durante as chuvas por diversos meios simples e complementares. Alguns deles, cuja descrição básica pode ser encontrada em mais de uma referência citada deste autor, são: coleta e armazenamento de águas pluviais; infiltração forçada; assoreamento induzido; aterros de resíduos de construção civil.

2 – Distribuição geográfica

Apreciemos a bacia do Velhas, compreendendo os aspectos que exibe de plataforma para o desenvolvimento e as possibilidades relacionadas aos fatores da sustentabilidade aí presentes e disponíveis, sendo que serão incluídos apenas os de ocorrência mais notável. As fontes, além de outras, encontram-se na Bibliografia.

Cabeceiras (da nascente a São Bartolomeu) Correspondem à área ocupada pela estrutura geológica conhecida como anticlinal de Mariana, fisiograficamente delimitada por escarpas das formações Moeda (quartzito) e Cauê (itabirito), cujos traços em planta convergem para a cidade de Mariana. Vai da nascente a São Bartolomeu. Chama-se a atenção para o fato fisiográfico marcante vinculado com a captura de parte da bacia do Velhas nessa região pelo tributário local do Rio do Carmo, bacia do Rio Doce. Nessa captura foi rompida a continuidade da crista de quartzito e itabirito, de modo que parte da área geográfica do anticlinal fica na bacia do Rio Doce. Após passar pela Cachoeira das Andorinhas (quartzito), o rio segue em curso mais suave, sulcado em xisto, até São Bartolomeu. São fatores da sustentabilidade presentes:

Recursos minerais: Solo de propriedades agronômicas sofríveis, proporcionando, dentre outras, cultura de subsistência e lenha para a fabricação de

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doces. Quartzito físsil utilizado para a execução de placas de revestimento rústico, muros de arrimo e calçamento.

Recursos hídricos: Como se trata de estrutura em anticlinal em que o grosso da parte de quartzitos e itabiritos, aqüíferos regionais, situa-se na borda da área e mergulhando para fora dela, esses recursos ficam limitados ao escasso solo superficial dos xistos, contando com o auxílio da vegetação para a infiltração e o sombreamento que mitiga a evaporação.

Suporte físico: Em condições de declividade não muito acentuada, o xisto pode prover satisfatório suporte físico à urbanização. A localidade de São Bartolomeu é pouco dinâmica quanto a este aspecto, mas o transbordamento da sede do município de Ouro Preto pode cobrar esse suporte mais a montante, nas imediações da Cachoeira das Andorinhas.

Absorção de impactos ambientais: O terreno xistoso é impermeável, de modo que o risco de contaminação de aqüíferos seria baixo, mesmo que houvesse ações impactantes expressivas, o que não é o caso. Suporte de paisagens excepcionais: Todo o contorno das escarpas citadas oferece paisagens excepcionais, como acontece com a Cachoeira das Andorinhas.

De São Bartolomeu à Serra do Curral

Nesse segmento, diversificam-se muito os aspectos de sustentabilidade proporcionados pela plataforma geológica, embora o leito permaneça em quase toda a extensão nos xistos do Grupo Nova Lima. O rio recebe seus primeiros afluentes de expressão — o Maracujá e o Itabira, ambos pela margem esquerda. No extremo norte recebe o quase-limpo Sabará pela direita. A área encontra-se sob os impactos físicos da mineração e sob o impacto dos transbordamentos para o sul da Serra do Curral dos excessos populacionais de Belo Horizonte.

Recursos minerais: Solos de propriedades agronômicas sofríveis a razoáveis associamse aos terrenos granito-gnáissicos do Complexo de Bação em

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Cachoeira do Campo, Santo Antônio do Leite, Amarantina, Glaura, Itabirito. Nos domínios dos metassedimentos, os solos eluviais são em geral muito pobres. Aluviões de certa expressão ocorrem no Rio Maracujá, muito contaminados pelo assoreamento. O minério de ferro está presente em várias posições (Serra da Moeda, Capanema, Pico de Itabirito, Morro do Chapéu, Serra do Curral), sempre vinculado à formação ferrífera por excelência, a Formação Cauê do Supergrupo Minas. Ouro no distrito mineiro de Nova Lima e Raposos e materiais de construção de diferentes naturezas estão presentes. Uma modalidade de recurso mineral a ser desenvolvida corresponde aos cascalhos que assoreiam o leito de cuja lavra para aplicação em pavimentos constitui via ambientalmente interessante de recuperação, pelo menos entre Itabirito e Sabará.

Recursos hídricos: No Complexo de Bação, os recursos hídricos são representados pelo aqüífero superficial granular do solo residual das rochas granitognáissicas e pelo aqüífero fissural profundo dessas mesmas rochas. Chega a ter expressão local o aqüífero associado aos sedimentos aluviais acrescidos dos materiais de assoreamento. O aqüífero superficial do solo residual está danificado pelo devastador processo erosivo laminar e linear (voçorocas) que atingiu a região desde o Ciclo do Ouro. As localidades mais atingidas são Cachoeira do Campo e São Gonçalo do Bação. Para que se tenha idéia dessa devastação, basta lembrar que, do solo removido por erosão, cerca de 25% representam espaço poroso que seria reservatório de água. Ainda nesse compartimento, os recursos hídricos naturais são representados pelos aqüíferos do Supergrupo Minas (itabirito e quartzitos principalmente), aos quais se somam as estruturas tecnogênicas representadas pelas pilhas de estéril, barragens de rejeitos e respectivos reservatórios e as cavas das minas que começam a ser fechadas. A água proporcionada por esses recursos hídricos tem usos seqüenciais que podem começar na mineração, acionar turbinas de hidrelétricas e em seguida entrar na matriz de abastecimento de Belo Horizonte. Em trabalho recente, foi feita avaliação da capacidade hidrogeológica dos aqüíferos principais na região, tendo sido encontrada reserva renovável da ordem de 10 bilhões de metros cúbicos. Para concluir o ponto, vale a pena assinalar a importância como recurso hídrico da mata ciliar preservada nos terrenos xistosos ao Sul de Belo Horizonte.

Suporte físico: As condições de suporte físico são variadas, estendendo-se desde as escarpas e as extensas faixas de vertentes inclinadas comuns nos xistos do Grupo Nova Lima e do Complexo de Bação até alguns retalhos de

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superfícies de erosão preservadas no miolo do Quadrilátero Ferrífero ao Sul de Belo Horizonte, e terrenos ondulados coincidentes com estruturas em sinclinal aproveitados para urbanização. Em Itabirito, vêm surgindo ocupações temerárias em encostas de terrenos gnáissicos e o mesmo acontece nos xistos que presenciam ocupações de risco em Raposos, Nova Lima e Sabará. Presencia-se uma onda de ocupações de terras altas nos municípios ao Sul de Belo Horizonte. As condições de suporte físico nas áreas de topo de declividade moderada são satisfatórias, devendo contudo ser dada a maior atenção ao controle da água. Esse controle, baseado em recursos técnicos simples, seguindo o princípio dos assentamentos geossuportados, deve ser rigorosamente implantado em cada projeto de urbanização.

Absorção de impactos ambientais: O terreno xistoso constitui barreira de permeabilidade. Este fato, ruim para armazenamento de água, é auspicioso para o controle da contaminação associada a depósitos de resíduos sólidos dos tipos lixo doméstico e industrial. A adequada contextualização geológica dos locais de disposição proporciona economias extraordinárias nesse processo. A disposição que segue normas indiferentes ao contexto geológico consome, sem benefício algum, o dinheiro que seria do educandário, do metrô, do centro médico. Terrenos mais permeáveis ou impactos muito intensos requerem sempre especiais cuidados locais.

Suporte de paisagens excepcionais: Estão presentes na área algumas das principais cristas montanhosas do Quadrilátero Ferrífero, como as serras do Curral e Moeda, e o Pico de Itabirito. Ora é o itabirito com sua couraça cor de ferrugem, que forma essas cristas e picos, ora é o quartzito com seus penhascos. Esse conjunto de paisagens deve ter seu valor concretamente apreciado para servir de plataforma a uma atividade turística que tenha por alvo as populações cada vez mais ávidas de contatos com o meio natural. Minas em atividade poderiam ser envolvidas como áreas receptoras.

Depressão de Belo Horizonte

Nesse trecho, o Velhas recebe pela esquerda o Arrudas, o desditoso, o Onça e o Ribeirão da Mata mais a norte, todos muito poluídos. Vamos considerar essa fachada indo da crista da Serra do Curral até a posição a Norte de Santa Luzia, na foz do Rio Taquaraçu, já no domínio dos metapelitos e calcários do Grupo Bambuí. Dominam o trecho as rochas metassedimentares da Serra do Curral e os gnaisses do Complexo Belo Horizonte.

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Recursos minerais: Os solos litólicos associados aos metassedimentos do Supergrupo Minas são medíocres, salvando-se algumas rampas de colúvio dos filitos e metagrauvacas do Grupo Sabará e um pouco de solo residual da Formação Gandarela. Solos sofríveis a razoáveis associam-se aos terrenos granito-gnáissicos do Complexo Belo Horizonte. O recurso é obviamente comprometido em termos de aproveitamento econômico pela densa taxa de urbanização. Pode, contudo, ser referida sua boa contribuição para os parques e jardins. Os recursos minerais de base ficaram essencialmente a sul da serra do Curral. Todavia, os materiais de construção, como gnaisse para brita e areia são abundantes (o território de Belo Horizonte tem dezenas de pedreiras de gnaisse desativadas). Os portos de areia exauriram a reserva aluvial do Ribeirão da Mata, mas a intensa erosão com seu processo complementar, o assoreamento, tem reposto a reserva. Mais uma vez é caso a pensar no incentivo a uma mineração voltada a contribuir para a reabilitação ambiental de certos leitos de rios assoreados, como o próprio baixo Arrudas (cascalho), o Ribeirão das Neves e outros cujo nível de assoreamento tem potencializado inundações graves.

Recursos hídricos: São comparativamente menos expressivos neste compartimento que no anterior. Com efeito, a estrutura geológica da Serra do Curral coloca o principal aqüífero regional, itabirito da Formação Cauê, conduzindo-se em profundidade para o sul. Das formações aqüíferas sobram a Formação Cercadinho (quartzitos) e Gandarela (dolomito), que ocupam faixas estreitas de terreno. Fica, portanto, com os gnaisses do Complexo Belo Horizonte o principal desses recursos e é oportuno considerar o seguinte: o melhor aqüífero é o que tem muita água em área pequena ou o que tem menos água em área extensa? Este é o caso do Complexo Belo Horizonte, que, sem ser pródigo, sempre tem alguma água. E a Gestão o que deve fazer? Pensar que o recurso distribuído difusamente é feito sob medida para o consumo difusamente distribuído. A ciência da Gestão às vezes pode ter formulações de grande simplicidade, mas ela exige de seus praticantes duas coisas: curiosidade sobre a anatomia e fisiologia da terra e insubmissão aos paradigmas inimigos do contextual. Para concluir o ponto, o que teria mais de recursos hídricos a área? Muitas áreas erodidas, do tipo voçorocas, cabeceiras secas e muita demanda de resíduos de construção civil para serem adequadamente dispostos. Então, a disposição de resíduos da construção civil (principalmente entulho de caçamba), essencialmente inerte, pode ser tecnicamente feita nessas depressões, e constituir impor-

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tantes reservatórios de água. Experiências foram feitas em Contagem com resultados extraordinários.

Suporte físico: As condições de suporte físico são variadas. Foram objeto de caracterização sistemática no Município de Belo Horizonte. Tanto em Belo Horizonte quanto em Sabará, Contagem, Santa Luzia, Vespasiano, Ribeirão das Neves, as condições de suporte são precárias nas áreas de elevada declividade, nos morros e fundos de vales encaixados. Essas condições devem ser evitadas para a urbanização e as áreas temerariamente ocupadas devem ser desocupadas e destinadas a usos compatíveis. Não obstante a realidade aparentemente irreversível, parte expressiva das áreas de risco pode ter as ameaças atenuadas mediante a introdução de intervenções corretivas bem concebidas e executadas. Particularmente, deve ser estudada a disposição de resíduos inertes em áreas instáveis de fundos de vales, cabeceiras secas e de voçorocas. Projetos piloto executados em algumas dessas situações já provaram cabalmente as possibilidades.

Absorção de impactos ambientais: Existem formações impermeáveis como os filitos do Grupo Sabará, Fecho do Funil e outras. Comportam-se como barreiras de permeabilidade, impedindo a difusão das plumas de contaminação associadas a depósitos de resíduos sólidos como lixo doméstico e industrial e sistemas de fossas sépticas ou cemitérios colocados em terrenos permeáveis contíguos.

Suporte de paisagens excepcionais: As paisagens naturais mais extraordinárias estão vinculadas diretamente à Serra do Curral, suportada, como bem sabe o leitor, pelo Itabirito da Formação Cauê. Seu valor é inestimável.

O baixo curso do Rio das Velhas

Após deixar o Complexo Belo Horizonte, o Rio das Velhas entra na sua plataforma mais extensa, formada pelos terrenos do Grupo Bambuí. A principal característica dessa plataforma é a presença de calcários das formações Lagoa do Jacaré e Sete Lagoas, a que está vinculada a importante paisagem cárstica ao Norte de Belo Horizonte. É também nesse trecho que a bacia hidrográfica assume a nítida assimetria

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morfológico-constitutiva com a Serra do Espinhaço e Serra do Cabral, de quartzitos, filitos e metaconglomerados proterozóicos à direita (incluída uma janela arqueana representada por rochas granito-gnáissicas do Complexo Gouveia no campo do Espinhaço proterozóico) e chapadas de arenitos mesozóicos à esquerda. Nesse trecho, o rio pode receber água por via subterrânea, do sistema cárstico, pode localmente abastecer esse sistema e é nele que recebe seus maiores afluentes: na margem direita, o Rio Cipó, com sua rede própria e o Curimataí; na margem esquerda, os rios Jequitibá e Bicudo. A plataforma assimétrica oferece fatores da sustentabilidade fundamental com configurações muito distintas, considerando as faixas oriental e ocidental da bacia.

Recursos minerais: A bacia não é muito bem dotada de solos agrícolas, especialmente no Espinhaço, domínio de grande extensão de quartzitos, que fornece solos eluviais litólicos e alúvio-coluviais arenosos e muito ácidos. Estreitas manchas de solos de cor vermelho-escura gerados das intrusivas básicas constituem exceção. Nos metapelitos aflorantes da Formação Serra de Santa Helena o solo é litólico, micromicáceo e pobre em propriedades de interesse agronômico, principalmente nas porções onde a erosão laminar atuou intensamente. Na borda ocidental da bacia, divisor com o São Francisco, ocorrem solos areno-siltosos e argilosos associados aos arenitos Urucuia e Areado e aos argilitos, arcósios e metassiltitos da Formação Três Marias. Em termos de extensão geográfica e importância agronômica, os solos mais importantes desse trecho da bacia encontram-se na faixa central tanto a oeste quanto a leste do leito e são constituídos por coberturas predominantemente argilosas de espessura variável. Os recursos minerais industriais mais importantes da região são as ocorrências de calcário lavrado para cimento, brita e corretivo agrícola. O geógrafo Getúlio Vargas Barbosa afirmava que o calcário, juntamente com o minério de ferro, foi responsável pela consolidação de Belo Horizonte como capital do estado, que chegara a ser posta em dúvida no início do século passado. Há outros recursos minerais de importância. Sua omissão é pura carência de espaço.

Recursos hídricos: “Paisagem” típica da bacia do Rio das Velhas vista do microscópio petrográfico, mostrando plagiogácio, listrado, à esquerda; quartzo, em forma de grânulos; anfibólio, amarelo, ao centro. Rocha gnáissica. Objetiva com aumento 5 X. (Silva et. Al. 1995).

É complexa a questão dos recursos hídricos nessa parte da bacia. No divisor ocidental com o São Francisco, importante recurso hídrico é representado pelas chapadas dos arenitos mesozóicos, planas e permeáveis, com taxas de infiltração próximas de 100%, exceto onde a atividade antrópica promoveu desmatamento e concentração de drenagem. Essas formações captam as águas pluviais com eficiência e descarregam-nas pelos poucos cursos locais ou em profundidade alimentando aqüíferos profundos. Deve ser objeto da Gestão a caracterização pre-

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cisa desse recurso porque a descarga visível não parece corresponder à eficiente recarga (Onde chove normalmente, a recarga eficiente é denunciada pela ausência de drenagem superficial — vales com seus talvegues). Na porção mais central da bacia, o sistema cárstico contém reservas de água nos calcários (embora não seja boa para consumo humano por sua dureza, essa água é importante para outros usos, como irrigação). Os metapelitos são pobres pela baixa permeabilidade, podendo conter localmente recursos superficiais associados aos veios de quartzo e às coberturas detríticas cenozóicas. As matas ciliares dos vales encaixados são importantes na catalisação da infiltração e pelo sombreamento, que mitiga a evaporação. A configuração espacial da distribução dos recursos hídricos é mais complexa do que se pode imaginar. Na porção oriental, correspondente à Serra do Espinhaço, essa configuração é muito interessante e encerra complexidade considerável. Contudo, não há razão para tentar desvendar essa complexidade de uma vez. Se o leitor estiver disposto a fazer uma viagem virtual, podemos ir desvendando-a pouco a pouco. Inicialmente, tome o mapa geológico e observe as faixas paralelas dispostas na direção dos meridianos. Partindo da hipótese, verdadeira, de que essas faixas são de quartzitos (permeáveis), ou de xistos, filitos, etc., pouco permeáveis, vemos que as águas pluviais podem entrar pelas rochas permeáveis e circular por elas, mas não podem ficar passando de umas a outras. Logo, há condições de circulação na direção dos meridianos e não na dos paralelos. Como a essas faixas estão associados aspectos tectônicos importantes (falhas de empurrão, repetição de camadas, dobras e clivagens associadas) e possivelmente um descolamento tectônico entre as rochas do Supergrupo Espinhaço e o Embasamento regional, com fricção e ruptura frágil, sem recristalização, não é impossível que esse arraste tectônico tenha criado zonas permeáveis como que forrando o leito por onde se deu o arraste com uma moinha de rocha. Isso complicaria sobremaneira a configuração do sistema hidrogeológico local para alegria dos grandes hidrogeólogos. Os alvos de pesquisa hidrogeológica locais seriam, então, além dos quartzitos, essas zonas rúpteis de origem geotectônica . Para completar o ponto, é importante assinalar que a presença de nascentes em áreas altas no Espinhaço é conseqüência dessa configuração — filitos impermeáveis sotopostos a quartzitos permeáveis, contrariamente ao que ocorre com os arenitos a oeste, impedem a descida da água para profundidades maiores e estabelece nascentes altas, que são áreas de descarga dos diversos aqüíferos ocorrentes nessas rochas empilhadas tectonicamente.

Suporte físico: As condições são muito variáveis. O topo e o sopé das escarpas e penedias dos afloramentos da área, principalmente de quartzitos, metaconglomerados e calcários, são áreas sem condições de suporte minimamente seguras. As condições de suporte não são também seguras nas

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áreas de sub-afloramentos de calcários como em Vespasiano, Sete Lagoas, Curvelo. Nas áreas de ocorrência da Formação Serra de Santa Helena, desde que bastante espessa para eliminar a influência de calcários subjacentes (como no Aeroporto de Confins), e onde o relevo seja moderadamente ondulado, essas condições de suporte em geral são satisfatórias. Em regiões suavemente onduladas dos topos da Serra do Espinhaço, as condições de suporte podem ser muito favoráveis constituindo essas paragens áreas perfeitamente favoráveis à urbanização de acolhimento a turistas. Do ponto de vista do suporte físico e outros, as rochas do Complexo Gouveia muito se assemelham às dos Complexos de Bação e Belo Horizonte, já comentadas.

Absorção de impactos ambientais: O leitor já se acostumou: há rochas impermeáveis, como os metapelitos da Formação Serra de Santa Helena, filitos, xistos, calcários não carstificados, que não transmitem poluentes e contaminantes por não terem permeabilidade suficiente. Outras rochas há que não proporcionam proteção suficiente, dependendo da intensidade dos impactos relacionados ao lançamento de poluentes. Cada caso deve ser estudado com cuidado, porque é tão indesejável gastar quando uma forma de proteção for dispensável, quanto economizar sem certeza de que o terreno é invulnerável. Os cuidados devem ser redobrados quando houver calcário sub-aflorante porque o sistema cárstico é vulnerável pela insuficiência, nas suas cavidades, de materiais capazes de impedir a propagação das plumas de contaminação.

Suporte de paisagens excepcionais: A bacia contém, nesse segmento, dois agrupamentos de paisagens excepcionais — o das paisagens cársticas, que se pode ver descendo de avião por Confins; as grutas Lapinha, Maquiné, Rei do Mato; a Lagoa Santa. Outros pontos como janelões, penhascos, sumidouros fazem do carste uma dádiva da natureza geológica à bacia do Rio das Velhas. O segundo agrupamento é o do portentoso sistema orográfico do Espinhaço com seus pontos de interesse local, rios limpos que descem da serra, cascatas, verdadeiros mostruários de temas geológicos interessantes para o aprendizado básico.

3 – Conclusão

Apresentou-se um sumário muito conciso da sustentabilidade na bacia, precedido da fundamentação mínima que objetivou dar a perceber conexões fundamentais entre os fatores da sustentabilidade e como a iluminação do campo permite a manipulação proveitosa deles. Sistematizou-se o conceito de interação entre as ações do Homem e a

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Terra e como essa interação pode ser conduzida para implantar o empreendimento que tenha a maioria dos impactos positivos. A exploração de sinergias deve ser buscada entre ações que se completam para movimentar a economia e ao mesmo tempo reabilitar o território, como na extinção de voçorocas, usando entulho inerte (resíduos de construção civil), criando áreas planas e controlando o escoamento pluvial. Resíduos são excrementos da civilização e aspectos de metabolismo que urge mitigar. A civilização empanturra-se de suprimentos desnecessários e enfrenta a conseqüente indigestão. Todo consumo supérfluo de materiais é dissipação de sustentabilidade pelo desperdício de materiais geológicos cujo descarte requer mais lavras para os repor. A consideração global da sustentabilidade permite reduzir desperdícios colossais, mas, enquanto isto não chega, permite dispor da melhor forma tais resíduos. O conceito de assentamento geossuportado permite estabelecer a cooperação na mesma área entre atividades aparentemente antagônicas (umas controlam as outras). A humanidade optou pelo conflito, ainda que decidido a votos, quando deveria optar pela cooperação. Na cooperação possível seria pelo menos duplicada a capacidade de suporte da terra. De tudo deve ainda ficar estabelecido que é impossível ser criativo sem conhecer o objeto sobre o qual precisa urgentemente ser exercida qualquer forma de criatividade. Esta visão foi herdada de Getúlio Vargas Barbosa: O desconhecimento das condições naturais que serão pouco a pouco incorporadas à área de expansão urbana ou de influência direta, leva à improvisação e ao desperdício de recursos quando a incorporação se consumar.

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Glossário de termos geológicos usados no capítulo Mesozóicos: De idade mesozóica, situada entre 225 e 65 milhões de anos. Proterozóicos: De idade proterozóica, situada entre cerca de 2.600 e 570 milhões de anos. Intrusivas: Diz-se das rochas formadas por cristalização de materiais magmáticos no interior da crosta terrestre. Magmáticos: materiais em estado de fusão no interior de câmaras situadas na crosta (são semelhantes em composição e estado físico às lavas vulcânicas) Anticlinal: Estrutura geológica conformada a uma dobra em forma de calha com a convexidade voltada para cima. Captura: O fenômeno pelo qual um rio, ao escavar no sentido de montante, promove o desvio para sua bacia de um segmento de um rio adjacente, tomandolhe parte da bacia. Xisto: Rocha metamórfica de origem sedimentar caracterizada pela estrutura dita xistosa, formada pela cristalização de palhetas de minerais lamelares, como as micas. Aqüíferos: Rochas ígneas, sedimentares ou metamórficas, capazes de armazenar água em seus poros ou fissuras, e de permitirem a circulação dessa água. Gnaisses: Rochas metamórficas formadas por fusão parcial e recristalização mineral, caracteristicamente dotadas de estrutura bandada. Granito-gnáissicas: Diz-se das rochas gnáissicas de composição e origem granítica. Metassedimentos: Designação geral de conjuntos de rochas metamórficas de origem sedimentar. Eluviais: Diz-se dos solos resultantes do intemperismo das rochas a eles subjacentes (também residuais). Aluviões: Corpos sedimentares inconsolidados formados por sedimentação marginal aos cursos d’água. Fissural: Diz-se do aqüífero cuja porosidade é essencialmente formada por juntas, fissuras e outras descontinuidades planares dos maciços rochosos. Voçorocas: Formas de erosão linear que têm a particularidade de se desenvolverem a partir da erosão provocada pelo escoamento superficial e subterrâneo. Sinclinal: Estrutura geológica conformada a uma dobra em forma de calha com a convexidade voltada para baixo. Metapelitos: Rochas metamórficas originadas da transformação de sedimentos terrígenos de textura fina. Litólicos: Solos originados por intemperismo parcial, no qual estão ainda preservados minerais e aspectos texturais e estruturais das rochas-matrizes. Colúvio: Tipo de formação superficial constituída por solo transportado encosta abaixo por via essencialmente gravitacional. Metagrauvaca: Rocha de origem sedimentar do amplo grupo dos arenitos com a presença de quartzo e feldspato em matriz argilosa. Dolomito: Rocha sedimentar constituída essencialmente por dolomita, carbonato duplo de cálcio e magnésio. Filito: Rocha metamórfica de origem sedimentar constituída originalmente de sedimentos argilosos, com recristalização incipiente de minerais lamelares. Pluma: Conformação geométrica em forma de pluma da zona de terreno situada abaixo de um foco de poluição, atingida pela invasão de poluentes ou contaminantes.

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Cárstica: Diz-se da paisagem resultante dos processos de dissolução de rochas solúveis como calcário, constituída de dolinas, sumidouros, grutas e janelões em penhascos. Metaconglomerados: Rochas metamórficas resultantes da transformação de rochas sedimentares constituídas predominantemente por seixos rolados. Janela arqueana: Diz-se da exposição em superfície de rochas de idade arqueana (maior que cerca de 2.600 milhões de anos), circundadas por rochas de idade menor. Arenitos: Rochas sedimentares formadas essencialmente por grãos de areia, sendo que o principal constituinte desses grãos é o quartzo. Micromicáceo: Caráter de rocha ou sedimento com a presença de palhetas de mica muito pequenas. Erosão laminar: Modalidade de processo erosivo caracterizado pela remoção de materiais terrosos em superfícies extensas, sem a formação de sulcos localizados. Areno-siltosos e argilosos: Diz-se de sedimentos de composição heterogênea em textura, com predomínio da fração areia. Argilitos: Rochas sedimentares constituídas essencialmente por fração argila. Arcósios: Arenitos dotados de uma significativa proporção de grãos de feldspato. Metassiltitos: Rochas metamórficas originadas da transformação de siltitos, por sua vez rochas sedimentares de textura intermediária entre argila e areia. Detríticas: Diz-se de todas as rochas sedimentares formadas pela deposição de materiais terrosos granulares. Cenozóicas: De idade cenozóica, de até 65 milhões de anos. Tectônicos: Designação geral do processo geológico de deformação das rochas. Rúpteis: Diz-se das deformações das rochas de caráter frágil, como as falhas e fraturas.

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ROHDE, Geraldo Mário. Epistemologia ambiental: uma abordagem filosófico-científica sobre a efetuação humana alopoiética. ed. rev. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. 234p. SILVA, A. B.; CARVALHO, E. T.; FANTINEL, L. M.; ROMANO, A. W.; VIANA, C. S. 1.994. Projeto estudos técnicos para levantamento da carta geológica do município de Belo Horizonte: relatório da primeira etapa. 3. ed. Belo Horizonte: Convênio PBH/FUNDEP (IGC), 1994. 1 v. SILVA, A. B.; SOBREIRO NETO, A. F.; BERTACHINI, A. C. Potencial das águas subterrâneas do Quadrilátero Ferrífero. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ÁGUAS SUBTERRNEAS, 8., 1994, Recife. Anais... Recife: ABAS, 1994, p. 264-273.

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Abstract

Geological factors and sustainability This chapter deals with the Velhas River basin from the point of view of the geological factors of sustainability. Owing to the geological diversity, those factors are present in a complex frame all over the basin. Text does not limit to their monotonous description. First of all, conceptual considerations about geological grouping of sustainability are made in a way that thematic and geographical limits of the groups of factors are understood by common readers. In order to give didactic consistency to the exposition, natural connections are shown, like as those amongst mineral potential and water resources with physiography associated to some geological formations. It’s shown that manipulation of sustainability factors shall involve simultaneously the greatest possible number of factors present. It’s also shown that manipulation may be put under the control of a simple equation, of which the configuration must reflect the local context. This recommended methodology promises the best benefits and the minor negative environmental impacts of the management decisions. Naturally the exercise presented is simple, but it highlights a good way for a management action with important goals in economic, environmental and social fields.


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1 Professor do Departamento de Cartografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE 2 Professora do Departamento de Cartografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais 3 Consultor em Geoprocessamento do Instituto Mineiro de Gestão das Águas - IGAM


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12 Sensoriamento remoto: imagens e aplicações Luciano Vieira Dutra 1 Maria Márcia Magela Machado 2 Christian Rezende Freitas 3


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O termo Sensoriamento Remoto resume as técnicas de obtenção de informações da terra à distância. A captação dos dados é feita, basicamente, em três níveis de altura em relação à superfície: os sensores podem estar instalados em equipamentos de trabalho de campo, portanto atuando bem perto do alvo, a bordo de aeronaves ou ainda em satélites artificiais orbitando entre aproximadamente 700 e 1.000 km de altitude. Uma especificidade dos sensores remotos orbitais é a captura de informações de maneira repetitiva. O satélite mantém uma órbita permanente ao redor do planeta, isto faz com que ele cruze os pontos sempre no mesmo horário, mantendo assim constantes as condições de iluminação solar para todas as imagens. O CBERS (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres) descreve, aproximadamente, 14 revoluções por dia, o que o leva a repetir o mesmo traçado a cada 26 dias. O primeiro satélite a carregar um sensor remoto com o objetivo específico de obtenção de dados foi lançado em julho de 1973 pelos Estados Unidos. Os resultados obtidos demonstraram a viabilidade da idéia e, em menos de dois anos, foi lançado um segundo satélite, já visando, efetivamente, à aquisição de dados de maneira global e repetitiva. Desde então, o avanço no sentido de apurar o nível de detalhamento dos dados captados na superfície da terra tem sido significativo. Até fins da década de 1990, os satélites dispunham de sensores com resolução espacial entre 30 e 2,5 m, valores estes que representam as menores distâncias que os sensores têm capacidade de distinguir na superfície. Essas imagens, advindas principalmente dos satélites Landsat (norte-americano) e SPOT (francês) já possibilitavam a obtenção de informações para estudos ambientais, geológicos, agrícolas, de ocupação do solo, monitoramentos diversos, como de desmatamento e queimada, entre outros. Contudo, nos últimos 4 anos, houve um novo salto em termos de resolução e, conseqüentemente, de aplicação. Foram disponibilizadas imagens com resoluções até então só disponíveis para uso militar das grandes potências mundiais. Os satélites comerciais Ikonos e QuickBird oferecem resolução espacial da ordem de 1 m e 60 cm, respectivamente. Essas imagens, chamadas de alta resolução, permitem a identificação de objetos como ruas e edificações, viabilizando assim a aplicação do sensoriamento remoto em estudos urbanos. A base dessa tecnologia é a radiação eletromagnética cuja principal fonte natural é o sol. Os diferentes elementos presentes na superfície terrestre, em função da sua composição, absorvem, transmitem, ou refletem porcentagens diferentes da radiação que recebem. Esse comportamento diferenciado é registrado pelos sensores remotos orbitais e possibilita a posterior caracterização ou determinação da natureza desses elementos imageados. Os sinais captados são transmitidos para estações de recepção na Terra onde são transformados em dados, imagens, tabelas ou gráficos.

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A imagem de Sensoriamento Remoto é composta por um conjunto de pequenos quadrados iguais, denominados “pixels”, cujo lado é a menor distância que o sensor que a produziu consegue distinguir na superfície terrestre. Ou seja, o tamanho do pixel é a resolução espacial. A dimensão da imagem é dada então pelo número do total de pixels na horizontal (linha) e na vertical (coluna). É muito semelhante à tecnologia das atuais máquinas fotográficas digitais, que também transformam a cena fotografada em uma imagem composta por uma matriz de pontos coloridos, também chamados de pixels. Cada pixel tem um atributo numérico que representa a sua cor. É possível combinar imagens de diferentes resoluções, inclusive fundir imagens em tons de cinza (pancromáticas) com imagens coloridas (multiespectrais) para aprimorar o processo de separação dos diferentes objetos da superfície terrestre presentes na imagem. A interpretação pode ser feita por inspeção visual, a partir da análise de textura, cor e contexto, ou através de softwares, cada vez mais eficientes, disponibilizados no mercado. As imagens de satélites são grandes aliadas dos estudos ambientais. Diversos tipos de degradação ambiental podem ser visualizados e monitorados. É possível mapear alterações no uso do solo, desmatamentos, queimadas, construções irregulares, áreas inundadas, assoreamentos e deslizamentos, por exemplo.

A bacia do Rio das Velhas vista por diversos satélites

A composição das cores nas imagens de satélites pode ser manipulada de forma a realçar as informações de interesse. Quando as cores na imagem não correspondem às cores verdadeiras percebidas pelo sistema visual humano, diz-se que a imagem apresenta uma composição “falsa-cor”. Geralmente, as imagens de satélite são adquiridas com um contraste na distribuição de cores relativamente baixo, o que pode dificultar a interpretação. Para solucionar este problema existem técnicas de realce como, por exemplo, o aumento de contraste. Figura 1

Mosaico do território brasileiro formado por imagens Landsat, onde se vê superposta a divisão dos estados da Federação.

Todas as imagens aqui apresentadas foram trabalhadas em softwares, de forma a apresentar o colorido mais natural possível. A imagem do Brasil apresentada na figura 1 é um mosaico, ou seja, um conjunto integrado de imagens dos satélites Landsat 5 e 7 (Intersat, 2002), onde foi superposta a divisão dos estados. Este mosaico é formado por aproximadamente 400 cenas, em sua maioria capturadas em 20011.

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A projeção desta imagem é Lambert, datum SAD 69.

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A figura 2, focalizando o Estado de Minas Gerais, é parte do mosaico da figura 1, e apresenta a localização da bacia do Rio das Velhas. Dependendo das dimensões da área a ser trabalhada, o mosaico pode ser composto por grande número de imagens, o que demanda um trabalho extenso para a sua construção. Uma alternativa recente para estudos em escala regional ou estadual é o uso das imagens do Instrumento MODIS (http ⁄ ⁄ modis.gsfc.nasa.gov), que possui vários sensores com resolução variando de 250 a 1000 m.

Figura 2

Mosaico de imagens Landsat, do ano de 2001, para o estado de Minas Gerais, mostrando o posicionamento da bacia do Rio das Velhas.

As Imagens do instrumento MODIS são obtidas em cenas de tamanho 1200 x 1200 km. A figura 3 apresenta uma área que inclui a bacia do Rio das Velhas. O tamanho do pixel é 250 m e foi obtida a partir de uma média das aquisições durante 16 dias de julho de 2003. Como no caso do MODIS a aquisição é diária, é grande a probabilidade de realização de uma cobertura sem nuvens escolhendo-se os pontos em um intervalo de 16 dias. O mesmo não ocorre com o Landsat porque, sendo o período de imageamento bem maior, é comum a presença de nuvens e a ocorrência de desníveis de brilho entre órbitas adjacentes, que deve ser compensado via tratamento digital. Em contrapartida, conta-se obviamente com maior resolução espacial no caso do Landsat. Sempre é possível, no entanto, preencher os espaços tomados por nuvens, nas imagens Landsat, por canais semelhantes do MODIS, ao custo da menor resolução espacial. A figura 4a apresenta um mosaico Landsat construído em resolução integral de 30m, com imagens obtidas em 1994 e 1995. A área delimitada pelo quadrado vermelho nesta figura é mostrada ampliada na figura 4b e apresenta o encontro dos rios Paraúnas e Cipó, afluentes do Rio das Velhas. Em 11 de fevereiro de 2000, a missão Shuttle Radar Topography Mission (SRTM) 2, adquiriu informações suficientes para obter um banco de dados de relevo da Terra por uma técnica conhecida como Interferometria Radar. A partir de julho de 2003, a NASA liberou esta informação para o público em geral, com dados de altimetria espaçados de 90 m entre si. A NASA possui esta informação, para uso interno, em resolução de 30 m. A figura 4c apresenta a representação pictórica do Modelo Digital de Superfície (MDS), elaborado por essa missão, para a região da bacia do Rio das Velhas.

Figura 3

Cena MODIS, produto MOD13, obtida em julho de 2003. Bacia do Rio das Velhas delimitada em amarelo.

Quando conjugamos a informação de altimetria fornecida por este modelo com a composição colorida, podemos visualizar a porção média do vale do Rio das Velhas em projeção tri-dimensional (figura 5). Estas imagens de satélites de sensoriamento remoto apresentadas até aqui têm resolução espacial padrão ou média, que compreendem pixels entre 30 e 5 m, aproximadamente. O satélite sino-brasileiro

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http://www.jpl.nasa.gov/srtm/mission.htm

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Figura 4

(a) Mosaico Landsat com imagens de 1994 e 1995 em resolução de 30m. (b) Imagem em resolução nominal de 30, para região assinalada em (a). (c) Modelo de elevação para esta região obtida da missão SRTM de junho de 2000. (a)

(b)

(c)

Rio das Velhas

Figura 5

Vista tridimensional da porção média do vale do Rio das Velhas.

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CBERS adquire imagens nesta faixa de resolução. A figura 6 apresenta uma imagem do CBERS, com 20 m de resolução, onde, ao lado do curso do Rio das Velhas, pode ser facilmente observada a presença de um sistema de irrigação por pivot central.

Figura 6

Irrigação por pivot central (assinalada), na bacia do Rio das Velhas, em cena obtida pelo satélite sino-brasileiro CBERS, órbita ⁄ ponto 152 ⁄ 122, adquirida em 2 ⁄ 5 ⁄ 2001.

Para resoluções maiores que 2,5 m (possibilidade de visualização de detalhes menores que 2,5 m) começa a ser possível a realização de estudos e diagnósticos mais refinados dentro do espaço intra-urbano, sendo conhecidas essas imagens como de alta resolução. Entretanto, a denominação das imagens, em função da resolução, torna sua classificação mutável. Até pouco tempo considerava-se de alta resolução as imagens com pixel de 5 a 2,5 m de dimensão. O lançamento desses novos satélites com sensores capazes de imagear com resolução espacial da ordem de 1m, tornaram as imagens produzidas por eles o novo padrão em termos de alta resolução. A série de satélites franceses SPOT, agora em sua quinta versão, dispõem de um sensor (HRG) capaz de imagear o terreno com cenas com tamanho padrão de 60 x 60 km. A figura 7 apresenta uma imagem em tons de cinza (pancromática) da região da Pampulha, do SPOT 5, com a resolução espacial máxima disponibilizada por esse sensor, 2,5 m.

Lagoa da Pampulha

Da nova geração de satélites de alta resolução, o IKONOS, da Space Imaging, fornece imagens no modo pancromático com resolução de 1m e no modo colorido com resolução de 4 m. Por meio de técnicas de processamento de imagens por computador é possível compor uma imagem, a partir da fusão de outras, colorida e com resolução espacial da ordem de 1 m.

Figura 7

Imagem da região da Pampulha, modo pancromático com 2,5 m de resolução.

A figura 8 apresenta um trecho de imagem fusionada, com 1m de resolução, onde aparece o Córrego Samambaia, indicado por uma seta para melhor visualização. Este córrego passa por trás de diversas indústrias na Região Metropolitana de Belo Horizonte, tornando-se, assim, alvo potencial de recepção de dejetos industriais.

Exemplo de aplicação: mapeamento de alterações na cobertura do solo

Figura 8

A partir de trechos de duas imagens Landsat TM adquiridas em 9 de novembro de 1994 e 6 de outubro de 2002, perto do município de Santana do Pirapama, dentro da bacia do Rio das Velhas, foi possível identificar a mudança que houve nesse ambiente e quantificar, aproximadamente, a degradação ocorrida no período. As imagens correspondem a uma área de 216,4 km2.

O córrego Samambaia em cena obtida pelo satélite IKONOS (Fonte: IGAM - Instituto Mineiro de Gestão das Águas).

A figura 9a apresenta uma composição colorida padrão (canais 5, 4 e 3) do TM para a data de 1994. A figura 9b apresenta uma composição colorida, no mesmo padrão, para a data de 2002. Por meio de um pro-

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Cรณ rre go Sam am ba ia

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cedimento de identificação computacional de cobertura da Terra, denominado classificação de padrões, método de máxima verossimilhança (Mather, 1999), foi possível mapear para o ano de 1994 a ocorrência de água, vegetação e solo exposto. A mesma análise foi feita para o ano de 2002. Ao se comparar esses dois mapas de classes, um terceiro mapa foi produzido para identificar as áreas onde a vegetação foi cortada (degradação) e onde o solo exposto desapareceu, caracterizando a recuperação da vegetação (regeneração). A figura 9c apresenta em vermelho, sobreposta à imagem, as regiões desmatadas. Em cor ciano, observam-se as regiões onde houve regeneração da vegetação. Apurou-se um deficit líquido de 10,4 km2 de desmatamento na região, o que representa 4,8% do total de 216,4 km2. Vale lembrar que, em geral, a nova cobertura vegetal possui muito menos biomassa que a vegetação que foi cortada. O total desmatado, não se levando em consideração o total recuperado, atinge o valor de 37,8 km2, ou seja, 32,4% da área anteriormente recoberta por vegetação.

Comentários e Conclusões.

O Sensoriamento Remoto é uma arma poderosa para o monitoramento ambiental; novos satélites, possuindo sensores mais sensíveis e precisos, aumentam a utilidade das imagens, tornando-as ferramentas indispensáveis, juntamente com a tecnologia de geoprocessamento, para subsidiar o processo de decisão e administração eficiente do meio ambiente e seus recursos. De forma concomitante, os softwares devem ser atualizados para a análise de novos cenários, bem mais complexos, possibilitando resposta mais completa aos desafios impostos pela crescente degradação ambiental. Destaca-se ainda a importância das imagens de sensoriamento remoto nos estudos de monitoramento desenvolvidos em Sistema de Informação Geográfica (SIG), onde a freqüência de obtenção da informação é fator primordial.

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Figura 9

Análise de mudança da cobertura do solo entre 1994 e 2002, pela comparação da classificação de imagens. Em vermelho, áreas desmatadas e, em ciano, áreas onde ocorreu recuperação de vegetação.

Agradecimentos e créditos: Os autores agradecem ao INPE pela cessão de um grande número de imagens do Landsat TM e CBERS; à firma Intersat (www.intersat.com.br) pela cessão do uso dos mosaicos e de amostras de imagens do SPOT 5. Agradecemos também à secretaria do Meio Ambiente do município de Ibirité pelo uso de parcela da Imagem do IKONOS e ao IGAM pelo uso da malha vetorial dos rios e limites das bacias. LVD reconhece o suporte do CNPq. (processo 301400/91-1 PV). O modelo de elevação da região foi obtido do sítio do serviço geológico dos Estados Unidos da América. (USGS – www.usgs.gov ) e a imagem MODIS do sítio http://modis.gsfc.nasa.gov, também pertencente ao governo dos EUA.

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Abstract

Remote sensing: images and applications. Remote Sensing (RS) is known as a set of techniques for gathering information from Earth by using imagery collected by satellites and airplanes. In this article is presented a collection of RS images as different satellites ‘sees’ the Velhas River basin, including a Digital Elevation Model, a map of the Earth Surface altitude, produced by the Shuttle Radar Terrain Mission in February 2000. Also, an application example on measuring the deforestation near the Santana do Pirapama town is presented. The use of artificial satellites began on early seventies. The first results demonstrated the project viability and with the launch of American satellites Landsat 4 and Landsat 5, the program reaches a maturity. At the same time the methodology of extracting information from remote sensing digital imagery, and its application to the several disciplines, has improved significantly. Other countries have launched their missions and the RS technology has evolved steadily in several directions: spatial resolution, the ability of perceiving details on the surface, has improved down to 2.5 m for the state owned satellites; monitoring ability increased to daily coverage at cost of a smaller spatial resolution (MODIS instrument), not to mention the weather forecast satellites. Brazil has launched the so called CBERS (Chinese-Brazilian Earth Resources satellites), with the CCD instrument that offers 20m resolution. In the last 3 years, private owned companies has launched the IKONOS satellite with 1m resolution and the QuickBird with 70cm resolution, which made possible the use of RS imagery for urban studies and planning.


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1 Professora do Departamento de Geologia do Instituto de GeociĂŞncias da Universidade Federal de Minas Gerais 2 Professor do Departamento de Geologia da Universidade Federal de Ouro Preto 3 Professora do Departamento de Geotecnia e Transportes da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais


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13 O uso e a ocupação do solo, erosão e assoreamento Maria Giovana Parizzi 1 Frederico Garcia Sobreira 2 Terezinha Cássia de Brito Galvão 3


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Os processos da natureza e o homem

Toda a natureza está submetida a processos. O termo processo, de acordo com o Instituto de Pesquisa e Tecnologia, procura traduzir a idéia de um dinamismo decorrente de ações e fenômenos envolvendo mudanças. No estudo dos processos da dinâmica superficial da crosta terrestre, uma das primeiras questões que se apresentam é: que tipo de equilíbrio ou desequilíbrio prevalece quando modificações do meio físico são impostas em uma certa área? Com a intensificação das atividades humanas, muitos processos geológicos passaram a ocorrer com mais freqüência, uma vez que podem ser induzidos, acelerados e potencializados pelas alterações decorrentes do uso e da ocupação do solo. Como exemplos, o homem contribui para modificar o regime de escoamento, infiltração e evapotranspiração da água das chuvas, provocando a aceleração dos processos erosivos dos solos, a diminuição da infiltração d’água na recarga dos aqüíferos, o desmatamento, o uso indiscriminado de insumos agrícolas, agrotóxicos e fertilizantes que são carreados pela água, contaminando os sedimentos, dentre outros impactos negativos. Por outro lado, o homem pode recuperar áreas degradadas ou ocupá-las de forma adequada. Para isso, é preciso conhecer as causas e a gênese desses processos como um caminho para evitá-los ou para conviver com eles em harmonia ou, até mesmo, se beneficiar deles. Obviamente, cada região, com suas peculiaridades específicas, será mais susceptível ao desenvolvimento de um ou outro conjunto de processos do meio físico. Assim, diferentes processos podem ser reconhecidos, dependendo das características das áreas e em situações diferentes, inclusive com denominações distintas.

Figura 1

Resultado de erosão laminar: solo sem vegetação e sem horizontes superiores.

Na bacia do Rio das Velhas a erosão, o assoreamento e as inundações são processos do meio físico comuns. Esses processos interferem na qualidade de vida da população e, por isso, suas definições, causas e conseqüências serão relacionadas.

Erosão pluvial (ou hídrica)

Foto de Lagoa Santa, MG.

Páginas seguintes: Figura 2

Voçoroca desenvolvida em terrenos do complexo Gouveia. Gouveia, MG.

Define-se por erosão o processo de desagregação e remoção das partículas do solo ou de fragmentos e partículas de rochas, pela ação combinada da gravidade com a água, o vento, o gelo e os organismos (plantas e animais). Em regiões tropicais ou subtropicais úmidas, a erosão mais pronunciada se dá pela ação das chuvas ou erosão pluvial (ou hídrica). Dependendo da forma como se processa o escoamento superficial ao longo de uma encosta, pode-se desenvolver dois tipos de erosão pluvial:

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Erosão laminar: causada pelo escoamento difuso das águas das chuvas, resultando na remoção progressiva e uniforme dos horizontes superficiais do solo (Figura 1). Erosão concentrada ou linear: causada pela concentração das linhas de fluxo das águas de escoamento superficial, resultando em pequenas incisões na superfície do terreno, em forma de sulcos, que podem evoluir, por aprofundamento, para ravinas. Caso a erosão se desenvolva por influência não somente das águas superficiais, mas também dos fluxos d’água subsuperficiais, em que se inclui o lençol freático, configura-se feição mais conhecida por voçoroca (Figura 2). A voçoroca é palco de diversos fenômenos: erosão superficial, erosão interna, solapamentos, desabamentos e escorregamentos, que se conjugam e conferem, a esse tipo de feição, rápida evolução e elevado poder destrutivo. O escoamento subsuperficial pode provocar um tipo de erosão conhecido como Entubamento (Piping): O fenômeno de piping provoca a remoção das partículas do interior do solo, formando canais que evoluem em sentido contrário ao fluxo de água, podendo dar origem a colapsos do terreno, com desmoronamentos que desencadeiam voçorocas ou ravinas.

Fatores condicionantes da erosão pluvial (ou hídrica)

Chuva A água de chuva provoca erosão pelo impacto das gotas de água sobre a superfície do solo, caindo com velocidade e energia variáveis, e através do fluxo concentrado das águas de escoamento superficial. Sua ação erosiva depende da distribuição pluviométrica do evento chuvoso (chuva acumulada e intensidade da chuva). Erosividade é o nome dado ao índice que mede a capacidade da chuva em causar erosão.

Propriedades dos solos

As propriedades do solo têm grande importância nos estudos de erosão, porque, juntamente com outros fatores, determinam a maior ou menor susceptibilidade à erosão. Erodibilidade é a resistência do solo em ser removido e transportado. Solos arenosos e siltosos apresentam os maiores índices de erodibilidade. Solos argilosos, por um lado podem dificultar a infiltração das águas, por outro são mais difíceis de serem removidos, especialmente quando se apresentam em agregados. Guerra aponta que o decréscimo de matéria orgânica dos solos, principalmente devido à agricultura, tem sido relacionado à

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diminuição da capacidade de agregação do solo, tornando-o mais frágil à erosão. A maior ou menor compactação do solo também é outro fator a ser levado em consideração. Solos muito compactados sofrem redução da sua capacidade de infiltração e estimulam o escoamento superficial. A agricultura parece ser a atividade que mais afeta esta propriedade do solo, tanto devido à redução de matéria orgânica, como pelo uso de máquinas agrícolas. Quanto às rochas, as características litológicas do substrato rochoso, associadas à intensidade do seu estado de alteração e grau de fraturamento, condicionam a susceptibilidade do material à erosão.

Tabela 1: Conseqüências gerais da erosão ÁREAS RURAIS

ÁREAS URBANAS

- Perda do solo agricultável principalmente pela erosão laminar e diminuição do potencial produtivo das terras. - As voçorocas e ravinas tornam-se verdadeiras armadilhas para a queda de animais. - Destruição de estradas, caminhos - Assoreamento de rios e outros mananciais e reservatórios de água.

- Aumento do risco de acidentes em moradias próximas às margens das voçorocas. - Destruição de ruas e equipamentos públicos como tubulações e redes de drenagem. - As ravinas e voçorocas tornam-se áreas de despejo de lixo, às vezes até como tentativa desastrosa de contenção. - O lixo e os lançamentos de esgotos transformam as erosões em focos de proliferação de vetores. - Assoreamento dos cursos d’água e reservatórios, dentro da área urbana ou nas suas periferias, e a destruição ou entupimento da rede de galerias, agravam ainda mais os problemas causados pela erosão, pela promoção de enchentes, concentração de poluentes e perda de capacidade de armazenamento d’água dos reservatórios de abastecimento público.

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Cobertura vegetal

A cobertura vegetal é um dos fatores mais importantes de defesa natural do solo contra a erosão. A cobertura vegetal, natural ou determinada pelo tipo de cultura agrícola, propicia certa proteção aos terrenos. Essa proteção se dá pela redução do impacto direto das gotas de chuva no solo, interceptadas pela folhagem e pela redução do escoamento superficial, diminuindo a capacidade das águas em remover e transportar partículas do solo.

Topografia

A topografia também é um fator natural que determina a velocidade dos processos erosivos. Maiores velocidades de erosão podem ser mais esperadas em relevos acidentados, como morros, do que em relevos suaves, como colinas amplas, pois declividades mais acentuadas favorecem a concentração e maiores velocidades de escoamento das águas, aumentando sua capacidade erosiva. A declividade tem tanto maior importância quanto maior for o trecho percorrido pela água que escoa, ou seja, quanto maior for a amplitude da encosta.

Causas e conseqüências da erosão

A ocupação humana, iniciada pelo desmatamento e seguida pelo cultivo da terra, construção de estradas, criação e expansão das vilas e cidades, sobretudo quando efetuada de modo inadequado, constitui o fator decisivo da origem e aceleração dos processos erosivos. As conseqüências da erosão são muitas e foram sistematizadas na Tabela 1. Maior destaque será dado ao assoreamento por ser conseqüência muito expressiva da erosão ao longo de bacias hidrográficas.

Assoreamento

Figura 3

Banco de areia já coberto por vegetação, resultado do assoreamento da Lagoa da Pampulha. Belo Horizonte, MG.

Erosão, transporte e deposição de sedimentos são processos interdependentes, que se alternam com o tempo, de acordo com a velocidade do fluxo da água e da carga existente. O processo de assoreamento consiste na acumulação de partículas sólidas (sedimentos) em meio aquoso ou aéreo, ocorrendo quando a força do agente transportador natural (curso d’água, vento) é vencida pela força da gravidade ou quando a supersaturação das águas ou ar permite a deposição de partículas sólidas. Se a energia do fluxo for menor do que aquela capaz de transportar toda a carga, parte será depositada diminuindo o total da carga.

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O assoreamento provoca diversos problemas: perda do volume de água em reservatórios, redução da profundidade dos canais (Figura 3), produção de cheias e inundações mais freqüentes e intensas, retenção de poluentes nos depósitos e alterações na vida aquática.

A erosão na bacia do Rio das Velhas

A bacia do Rio das Velhas abrange uma área caracterizada por diversos tipos de solos e rochas, topografias, vegetação e diferentes formas de uso e ocupação do espaço, com áreas rurais e urbanas. Essa variedade de características torna o entendimento das causas dos processos erosivos um desafio. Vários estudos apontam que, ao longo da bacia do Rio das Velhas, os solos derivados da decomposição de granitos, gnaisses e migmatitos são os mais suscetíveis, principalmente, à erosão linear. Essas rochas ocorrem sobretudo nos compartimentos geológicos conhecidos como: Complexo Bação e Complexo Belo Horizonte, localizados no alto Rio das Velhas, e Complexo Gouveia localizado no médio Rio das Velhas. Estudos desenvolvidos em diferentes locais da bacia exemplificam situações em que a ocorrência de processos de erosão e assoreamento podem trazer graves conseqüências ao ambiente, tornando-se motivo de preocupação das populações e autoridades locais.

Município de Ouro Preto

Em Ouro Preto, onde nasce o Rio das Velhas, foram cadastradas por Sobreira & Bacellar 109 formas erosivas nos distritos de Cachoeira do Campo e Santo Antônio do Leite. A geologia da região é caracterizada por solos derivados de rochas como gnaisses, granitos e migmatitos do Complexo Bação. Um grande número de erosões é claramente condicionado por ações antrópicas, como antigos divisores de propriedades, geralmente valas escavadas no terreno ou árvores plantadas em linha, que concentram inadequadamente as águas de escoamento superficial. Algumas formas evoluíram a partir dessas feições para erosões mais complexas, mas nota-se claramente sua origem. Mais recentemente, desvios de águas de estradas e implantação inadequada de vias têm causado formas semelhantes. Pode-se dizer que as erosões de Cachoeira do Campo e Santo Antônio do Leite, na sua grande maioria, encontram-se em franco processo de estabilização natural, tendo-se mantido estáveis ou com pouca alteração, apesar do aspecto assustador das profundas valas existentes. Entretanto, embora haja poucos pontos com processos atuantes, os pontos de atividade são suficientes para produzir bastante material para provocar grandes estragos nos canais de drenagem. Esse material vai assorear locais imediatamente próximos à forma erosiva ou será levado pelos tributários dos córregos Maracujá e Holanda, para ser depositado mais a jusante no Rio das Velhas.

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Município de Belo Horizonte

A problemática da erosão em Belo Horizonte também decorre da inter-relação de fatores naturais e antrópicos, observando-se forte condicionamento do meio físico, mas tendo na intervenção humana o fator indispensável à deflagração dos processos erosivos. Observase que as intervenções antrópicas degradadoras agem indistintamente sobre qualquer terreno. Entretanto, as feições erosivas desenvolvem-se de forma mais acelerada e intensa onde a conjugação das características físicas do terreno o tornam mais vulnerável à erosão. No trabalho de Viana, foram cadastradas mais de 1.809 focos de erosão ocorrentes no município. Dessas feições cadastradas, 45 corresponderam a voçorocas que, juntas, somam aproximadamente 102.100 m2 de área degradada, tendo gerado um volume de cerca de 1.007.700m3 de sedimentos; as áreas ocupadas por terrenos de solos residuais do Complexo Belo Horizonte abrangem 74% dos pontos de erosão. A análise do histórico da urbanização e dos atuais padrões de ocupação do município permitiram concluir que as áreas com maiores restrições topográficas e geológicas correspondem às áreas com maiores carências de infra-estrutura e menor rigor na fiscalização constituindo, portanto, as áreas de maior vulnerabilidade à erosão.

A Lagoa Santa

A bacia da Lagoa Santa é rodeada por 12 voçorocas e várias ravinas. Todas as voçorocas evoluem no sentido do escoamento das águas superficiais que chegam até a lagoa e foram por muitos anos responsáveis pelo lançamento de grande quantidade de material na Lagoa Santa e nos córregos de sua bacia, provocando assoreamento acelerado de sua calha. A morfologia dos terrenos, a erosividade das águas pluviais e o avançado grau de alteração das rochas (metapelitos da Formação Serra de Santa Helena) da região, são causas naturais do desencadeamento do processo. Entretanto, a ação antrópica foi o fator decisivo da aceleração dos processos erosivos na bacia da Lagoa Santa. Sabe-se que, a partir da década de 1970, o acelerado processo de urbanização, sem planejamento prévio, facilitou a abertura de vários loteamentos e estradas provocando vasto desmatamento da cobertura vegetal natural. As ruas sem pavimentação, construídas, em sua maioria, perpendiculares às curvas de nível e com altas declividades, praticamente não apresentam canais laterais para o escoamento d’água. Muitas voçorocas são marginais às ruas, iniciando-se justamente

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onde o escoamento superficial acelerado escavou os canais de drenagem. Além dos danos naturais causados pelas voçorocas, algumas vezes elas são utilizadas como depósito de lixo. Atualmente, após várias tentativas de recuperação da lagoa, o assoreamento tem sido mais controlado, com a construção de diques contentores de sedimentos e desvio do esgoto urbano. Porém muito ainda há de ser feito para a despoluição da lagoa que um dia foi chamada de Santa.

Município de Gouveia

Em Gouveia, a erosão concentrada, geradora de voçorocas de grandes dimensões, que lembram verdadeiros cânions, é um processo muito ativo e tem comprometido seriamente a utilização dos terrenos para produção agropecuária, principal atividade econômica da região, além de destruir estradas, provocar assoreamento dos cursos d’água (observam-se muitos indicativos de assoreamento ao longo do Ribeirão Chiqueiro, afluente do Rio Paraúna) e comprometer a dinâmica das águas superficiais e subterrâneas. Por estas razões, a área vem sendo amplamente estudada, no intuito de compreender a fenomenologia do processo erosivo e desenvolver formas eficazes para seu combate. De acordo com Augustin diversos fatores respondem pela detonação e avanço do processo erosivo na região de Gouveia, entre os quais a ação antrópica. A retirada da cobertura vegetal, realizada de modo intenso e indiscriminado desde a época da colonização portuguesa, parece ter afetado toda a dinâmica hidrológica da área, incluindo os mecanismos da própria erosão dispersa. Normalmente, as voçorocas iniciam-se a partir de cercas, valas e cortes de estrada. Tornou-se evidente que o conhecimento, embora hoje bastante refinado desse tipo de feição erosiva, não é suficiente para explicar todos os seus elementos condicionantes. Alguns aspectos da erosão, em especial as concentradas, são obscuros no que concerne aos fatores condicionantes da erosividade dos solos. Durante suas pesquisas na região de Gouveia, Augustin encontrou indicativos de que algumas voçorocas teriam se iniciado a partir de processos de entubamento (piping). O diagnóstico de causaefeito realizado para a área de Gouveia, aponta para a necessidade de se conhecer melhor os processos e a dinâmica do meio úmido, com duas estações bem definidas.

Figura 4

Aplicação de técnicas de Bioengenharia (produtos em rolo para controle de erosão) em talude de corte rodoviário em Ribeirão das Neves (Coelho & Galvão, 2001).

Alguns aspectos de controle de erosão

O controle de erosão deve ser feito através do estabelecimento de medidas preventivas e ⁄ ou corretivas. Tendo em vista o alto custo financeiro, as perdas econômico-sociais e ambientais envolvidas na problemática da erosão, é importante destacar o caráter de conscien-

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tização e medidas de implantação de técnicas de controle da erosão, baseadas em: a) redução do impacto direto das gotas de chuva sobre a superfície do solo; b) diminuição da desagregação das partículas do solo; c) aumento da infiltração de água no solo; d) redução da velocidade de escorrimento das águas excedentes. A implantação destas técnicas anteriormente listadas podem ser conseguidas através das medidas de prevenção, abaixo discriminadas: • Evitar a remoção da vegetação nativa, sempre que possível; • Evitar revolvimento extensivo do solo; • Instalar sistema de drenagem para evitar aumento do escoamento superficial; • Manter as velocidades de fluxo de água baixas; • Proteger as áreas destituídas de vegetação com folhas secas ou outra cobertura vegetal de crescimento rápido; • Construir sistema de drenagem e bermas para interceptar águas de taludes íngremes e das áreas destituídas de vegetação; • Construir bacias de sedimentação para prevenir que o solo desagregado se movimente para fora da área. Muito conhecida e tradicionalmente aplicada como revestimento superficial, a revegetação é o método mais simples e econômico que se conhece para o controle da erosão. Assim, no mercado brasileiro encontram-se vários produtos em rolo, que recebem o nome de PRCE’s — Produtos em Rolo para Controle de Erosão. Contudo, cuidados devem ser tomados na seleção da vegetação a ser empregada, dando-se preferência às gramíneas e herbáceas. A exigência essencial para garantir a estabilização da voçoroca é impedir a remoção do solo mobilizado por erosão para fora da feição. Impedida essa remoção, o gradiente hidráulico associado ao fluxo subterrâneo não se desenvolve ou é atenuado. Isto determina a extinção do processo de erosão superficial e subsuperficial (piping). A retenção dos finos carreados pelas águas superficiais no interior das voçorocas é uma medida necessária para apressar seu processo de estabilização. Bigarella & Mazachowski indicam barragens de retenção como forma de estabilização do talvegue das voçorocas. Essas barragens podem ser temporárias (de ramaria, gabião ou pedra seca) ou permanentes (com sacos plásticos preenchidos de areais, concreto ou solo-cimento e de terra). Carvalho aponta a execução de diques retentores como fundamentais no processo de reabilitação dessas voçorocas, uma vez que promovem o enchimento da feição erosiva ao impedir que materiais naturais erodidos ou despejados no local sejam levados pelas enxurradas. Essas estruturas devem ser construídas de montante para jusante, ao longo dos

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vales, observando espaçamento adequado ao volume dos materiais a serem retidos ou podem ser construídos junto à saída das voçorocas ou em pontos de estrangulamento, para conter o material de enchimento destinado à reabilitação da área e o material erodido a montante. Em áreas urbanas, como o município de Belo Horizonte, o controle da erosão nos locais mais críticos pode ser realizado preventivamente, através da instalação de infra-estrutura, visando à consolidação de assentamentos urbanos que foram instalados em desconformidade com a legislação. No caso de formas erosivas já existentes, sua reabilitação pode ser realizada com a construção de diques retentores frontais e o enchimento da feição com material terroso e entulho inerte, sem compactação, conforme explica Carvalho. Dessa forma, podem ser resolvidos dois problemas: reabilitação de áreas degradadas e destinação final para entulhos e resíduos inertes, eliminando assim vários impactos ambientais típicos de grandes centros urbanos, tais como a disposição inadequada de resíduos sólidos inertes, a redução das áreas permeáveis e a deficiência de áreas verdes. Para áreas rurais, Mittelstaedt e colaboradores relatando a experiência da Suceam, órgão do Estado do Paraná responsável pelo combate às erosões, apontam a implantação de barragens de terra (com vertedores tipo cachimbo ou em superfície livre) e de gabião como fundamentais para a segurança do canal e demais obras a montante, sendo solução eficaz, considerando a constante falta de recursos disponíveis para implantação global de sistemas de estabilização das voçorocas. Sobreira & Bacellar reafirmam que formas erosivas onde os processos de erosão interna, como piping, possuem grande importância na evolução das voçorocas e necessitam de mais tratamentos no interior que no exterior da feição, sendo que diques retentores são fundamentais no processo de reabilitação dessas áreas. Neste sentido, para o caso de Cachoeira do Campo, a implementação de barramentos ou diques de retenção no interior das erosões desponta como a alternativa mais viável. Esses diques podem ser de diversos tipos: pedra seca, gabião, pedra argamassada ou terra. Evidentemente, ações complementares e auxiliares como direcionamento de águas superficiais, proveniente de montante de erosões, retaludamentos eventuais e revegetação são imprescindíveis para que a solução proposta tenha sucesso. Com relação às obras viárias e taludes são estimadas perdas de solo por erosão em torno de 54 t ⁄ ha durante a fase de implantação de obras viárias, devido à execução de cortes e aterros, bloqueio do sistema de drenagem natural pela implantação da plataforma e desvio do fluxo de água em direção aos bueiros, desmatamento da faixa viária e áreas de empréstimo, etc. Contudo, medidas de prevenção à erosão têm sido sistematicamente desconsideradas, seja na fase construtiva ou durante a operação da obra viária, aumentando os problemas ambientais. Em

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obras viárias, tem-se erosão: na plataforma, nos taludes dos aterros, nos taludes dos cortes, nas áreas adjacentes ao corpo da estrada. Assim, a prevenção contra a erosão viária consta fundamentalmente do seguinte: colocação de sarjetas (preferencialmente revestidas de grama); colocação de dissipadores de energia nas plataformas e aterros; canais tipo rápido ou em escala, onde for ultrapassada a capacidade da sarjeta; dissipadores de energia junto às bocas de jusante dos bueiros; proteção vegetal dos taludes de cortes e aterros; eliminação completa da prática da capinagem dos taludes, etc. Nas estradas rurais não pavimentadas, outras providências são previstas, como a regularização com compactação de sulcos e ravinas, abaulamento da plataforma para ambos os lados, proteção das valetas laterais com pedras ou estacas de madeira tratada, bueiros, e plantação de touceiras de bambu, grama e capim para proteger os pontos vulneráveis, tais como saídas de água, valetas longitudinais e erosões já existentes. A bioengenharia de solos é outra técnica eficaz no combate à erosão. Consiste no uso de elementos biologicamente ativos em obras de estabilização do solo e sedimentos. Esses elementos podem ser vegetação, conjugados a elementos inertes (representados por rochas, concreto, madeira, ligas metálicas, polímeros naturais e sintéticos, e geotêxteis dentre outros). A utilização dessas técnicas, que são conhecidas pela maioria dos planejadores, mesmo que em alguns casos seja apenas conhecimento empírico, apresenta as vantagens listadas adiante: • Requer-se mais mão-de-obra, de menor qualificação técnica, e menos maquinário. O custo final de implantação pode ser menor. Assim, pode-se ter maior relação entre custo e beneficio. • São utilizados, na maioria das vezes, materiais naturais e locais, como madeira, pedras, composto orgânico, dentre outros, que reduzem os custos de transporte, além de gerarem benefícios locais. • De modo geral, há redução em erodibilidade de solos e em escorregamentos, devido à interceptação do impacto das gotas de chuva. • O aumento da área verde reduz o impacto visual. • Há aumento da infiltração, com conseqüente diminuição da área impermeabilizada, não sobrecarregando o sistema de drenagem. • Diminuição da umidade e das poro-pressões, com subseqüente aumento da estabilidade. • Há aumento da coesão aparente, devido à presença de raízes. • Pode ser executada em locais de difícil acesso.

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Abstract

Soil land use, erosion and enbankment This chapter deals with the causes, consequences and control of pluvial erosion along Velhas River basin. The main types of erosion that happen in this site are sheet erosion and concentrated erosion. The conditional factors are the erosivity of the rain, erodibility of soil, vegetal cover, morphological features and man activities. Many studies describes that the residual soils of granites, gneiss and migmatites are the most susceptible to erosion along the area. Bação Complex, Belo Horizonte Complex and Gouveia Complex are the most representative units of these rocks and are located, respectively, at the upper, middle and lower basin enclosing the counties of Ouro Preto, Belo Horizonte and Gouveia. In all this counties man activities have been stimulating the development of erosion despite the high susceptibility of soils. Many techniques are available to prevent and control erosion and the main types are discussed here.


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1 Sociólogo, Diretor Técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER-MG 2 Engenheiro Agrônomo, Coordenador Técnico de Bacias Hidrográficas da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER-MG 3 Estagiária de Geografia da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER-MG


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14 A ocupação rural pela agricultura Argileu Martins da Silva 1 Maurício Roberto Fernandes 2 Flávia Cristina Leão Soares 3

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Introdução

A ocupação do espaço rural é condicionada por diversos fatores combinados, principalmente as características do meio biofísico e o modelo de desenvolvimento estabelecido pela sociedade. Procuraremos, de forma sucinta e em aspecto de abordagem, analisar descritivamente a ocupação da bacia do Rio das Velhas pela agricultura, integrando-se os aspectos históricos, físicos, econômicos e sociais. “A agricultura, como qualquer intervenção humana no ambiente, acarreta desequilíbrio e transformações no meio natural; por vezes, esses desequilíbrios tornam-se irreversíveis, especialmente no que tange ao tipo e grau de artificialização que vai-se impondo sobre a base natural dada pela inserção de espécies de plantas e animais introduzidas e aclimatadas, que ditam uma nova dinâmica aos ecossistemas locais e depende, para sua perpetuação, de um contínuo e perspicaz controle humano” . A ocupação do planeta iniciou-se voltada para a simples sobrevivência (alimentação e abrigo), utilizando-se dos recursos naturais disponíveis (extrativismo). Apesar de as comunidades primitivas possuírem as terras em comum e o produto do trabalho ser distribuído em partes iguais, o desenvolvimento das forças produtivas, que acelerou a sedentarização daquelas comunidades, buscou propiciar maior e melhor produção. O domínio da natureza através da agricultura iniciou-se com o homem neolítico há cerca de 10.000 anos. Utilizando-se de novos instrumentos e técnicas, embora rudimentares, a produção agrícola aumentou, gerando excedentes, que ampliaram o comércio e a posse da terra, inserindo nas comunidades a divisão do trabalho e, conseqüentemente, as relações de poder existentes. Seguindo o modelo de produção asiático, a América pré-colombiana possuía uma sociedade onde já existia a exploração do homem pelo homem, porém sem a existência da propriedade privada da terra, que passa a ser introduzida com a chegada dos europeus na época dos descobrimentos. Procurando expandir seus domínios e suas economias, os colonizadores passam a adotar estratégias de ocupação e saques, principalmente dos recursos naturais, o que veio influenciar toda a ocupação inicial do espaço rural brasileiro. Na agricultura, inicialmente não houve nenhuma preocupação com sistemas de produção sustentáveis e sequer com o sistema de “pousio”, desenvolvido no feudalismo pelos servos, no cultivo em rotação de culturas, o que permitiu expressivo aumento da produtividade na época.

Fazenda São Sebastião, de Antônio Gonçalves Mascarenhas. Taboleiro Grande, em 1886. Desenho de James W. Wells.

O território do Estado de Minas Gerais foi explorado por colonizadores (Bandeirantes) que desenvolviam uma atividade degradante: o garimpo. A busca pelo ouro e pedras preciosas ignorava a vida existente nas Gerais. A agricultura, até então desenvolvida por índios, buscava apenas o provisionamento para subsistência das

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famílias, utilizando a natureza como fonte permanente de sobrevivência. À medida que os pequenos aglomerados urbanos se formavam, a agricultura de subsistência se instalava como suporte para as atividades antrópicas principais. A atividade agrícola, no início da nossa História, estava diretamente relacionada à presença do homem; o que não é mais uma condição nos dias atuais pois, com a introdução da mecanização no campo, a participação da mão-de-obra vem diminuindo em decorrência da tecnologia. As formações dos aglomerados urbanos deram-se, principalmente, às margens dos riachos, ribeirões e rios, onde sempre se iniciava a atividade agrícola, condicionada pelas potencialidades do meio físico, utilizando o sistema de agricultura itinerante, que consistia no desmatamento e queima da área e utilização até a exaustão do solo, que era abandonado para se reiniciar o processo em outras áreas.

Principais agroecossistemas da bacia

A ocupação da bacia do Rio das Velhas iniciou-se com a busca de metais e pedras preciosas, obedecendo à mesma lógica de ocupação do país, pautada no imediatismo e inobservância dos preceitos da sustentabilidade. Como em todo ecossistema, o meio físico condiciona o uso e a ocupação das terras: o clima, o arcabouço geológico, o relevo e os solos, integrados em unidades de paisagem, apresentam potencialidades e limitações às diversas opções para ocupação e desenvolvimento de atividades econômicas especialmente no espaço rural. Destaca-se, portanto, que a ecodiversidade de unidades políticas (estados e municípios) ou físicas (bacias hidrográficas) determinam a gama de opções para atividades econômicas diversificadas. A bacia hidrográfica do Rio das Velhas, com distribuição geográfica prolongando-se no sentido Centro-Noroeste do Estado de Minas Gerais, resulta em notável heterogeneidade do meio biofísico, que leva à diversidade de modalidades de seu uso e ocupação. As correlações dos meios biofísico e socioeconômico ocorridas no espaço rural são nítidas, incluindo-se as modalidades de atividades agropecuárias e distribuições fundiárias. Neste aspecto, as integrações desses meios podem ser denominadas com propriedade de Unidades Sociofisiográficas. As relações do homem rural com o ambiente natural e seus efeitos transcendem ao espaço rural, influindo significativamente

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.


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no meio urbano, sobretudo no que se refere à disponibilização de água em quantidade e qualidade. No caso específico da bacia do Rio das Velhas, podem ser destacadas cinco grandes Unidades Ambientais, que apresentam características e ocupações rurais distintas.

Quadrilátero Ferrífero Ocupa a região do alto segmento (cabeceiras) da bacia hidrográfica. O relevo é fortemente acidentado (serras) com ocorrência de afloramentos rochosos (quartzitos, itabiritos e filitos) associados a solos pouco desenvolvidos (solos rasos) e de baixa fertilidade natural. A vegetação nativa resume-se em campos de altitudes (campos rupestres) e campos sujos. Essas características apresentam fortes restrições para atividades agropecuárias. Entretanto, podem e são desenvolvidas produções de hortaliças e frutas potencializadas pelos microclimas favoráveis a essas atividades e pelo mercado consumidor da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pelas mesmas razões e acompanhando a expansão urbana da capital, é notória a ocupação dessa região por chácaras e sítios de lazer tornando-se assim fase inicial para o desenvolvimento do turismo rural e do ecoturismo. Nessas propriedades são desenvolvidas atividades agrícolas e mesmo que na maioria das vezes não tenham objetivo econômico em escala causam impactos no espaço rural.

Cárstico Correspondem às áreas de formações calcárias cujas peculiaridades influem na utilização agrícola. Nessas áreas, solos de média a alta fertilidade coexistem com solos ácidos e de baixa fertilidade natural sob vegetação de cerrados. Enquanto os solos de média a alta fertilidade ocorrem em relevo acidentado, muitas vezes associados com afloramentos calcários, os solos de baixa fertilidade ocorrem em relevo suavemente ondulados, apresentando profundidade efetiva, não raramente superiores a 5 metros. Historicamente, o uso agropecuário dessas áreas, especialmente das superfícies onduladas, é, predominantemente, para a pecuária extensiva, enquanto os solos rasos de origem calcária são utilizados para produção familiar de alimentos básicos (principalmente cereais). Pontualmente, em especial no município de Lagoa Santa, desenvolve-se também a fruticultura tropical (abacaxi e citrus).

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Planícies de inundação e terraços fluviais As planícies de inundação são constituídas por solos aluviais formados nos ciclos de inundações e deposição de sedimentos. São áreas planas, vulgarmente denominadas de várzeas, cuja principal limitação para ocupação agropecuária é o risco de periódicas e imprevisíveis inundações. Na década de 1970, essas planícies eram utilizadas para plantio de arroz em tabuleiros inundados. Para tanto, essas áreas eram sistematizadas e drenadas com financiamento e assistência técnicooperacional do Provárzeas — Programa de Aproveitamento de Várzeas. Com a extinção deste Programa, em 1986, a maior parte dessas várzeas sistematizadas passou a ser ocupada por pastagens. A expansão agrícola nessas áreas levou a considerável destruição e degradação da vegetação ciliar. Os terraços fluviais, situados em níveis superiores às planícies fluviais, são testemunhas de antigas planícies de inundações do Rio das Velhas e seus principais afluentes. Demonstram menores riscos de inundações que as planícies fluviais apresentando, portanto, notória aptidão agrícola. Sua ocupação atual dá-se com pastagens cultivadas, cana-de-açúcar e, pontualmente, fruticultura tropical. As planícies, associadas aos terraços fluviais, distribuem-se ao longo do Rio das Velhas em seus médio ⁄ alto trechos e nos baixos trechos de seus principais afluentes. Os solos dessas unidades, sobretudo em suas características granulométricas e químicas, refletem a geologia das respectivas bacias de contribuição.

Espinhaço Distribui-se no sentido sul-norte, no limite leste da bacia do Rio das Velhas, com predominância de afloramentos rochosos (quartzitos, filitos e metaconglomerados) associados com solos muito rasos (Neossolos litólicos). O relevo acidentado, ocorrência de solos rasos e afloramentos rochosos, torna essa unidade insignificante quanto à sua aptidão agrícola a não ser em inclusões de solos de origem metavulcânica, onde se desenvolve pequena agricultura de natureza familiar (milho, feijão, mandioca e cana-de-açúcar). Atualmente, incipiente turismo rural, associado ao ecoturismo, tem sido iniciado nessa região. Páginas seguintes: Fazenda de cultura do Dr. Carvalho de Brito, no Rio das Velhas. Sabará, circa 1910. Fotografia: Raymundo Alves Pinto.

Cerrados e campos cerrados A ocupação humana nas áreas originalmente sob vegetação de cerrado e campo cerrado foi e ainda continua, predominantemente,

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por pastagens nativas e cultivadas, onde se desenvolve uma pecuária extensiva. As pastagens implantadas em áreas originalmente sob campo cerrado apresentam, em geral, altos níveis de degradação da própria pastagem e dos solos instáveis (Cambissolos), acelerando os processos de erosão laminar e ravinamento acelerado (voçorocas). As pastagens em melhores condições encontram-se nas áreas originalmente sob vegetação de cerrados strictu sensu (cerrado típico), com ocorrência de solos profundos e permeáveis (Latossolos). As áreas de agricultura de sequeiro e irrigada são relativamente pontuais, destacando-se principalmente as com culturas de cereais (milho e feijão),cana-de-açúcar, mandioca e fruticultura tropical. A silvicultura, comum e erroneamente denominada de reflorestamento, é uma das atividades agrosilvipastoris relevantes nas áreas de cerrado ⁄campo cerrado, sobretudo na média bacia do Rio das Velhas. Essa atividade é desenvolvida por grandes empresas florestais e siderúrgicas, com predominância de cultivo do eucalipto. A produção florestal destina-se ao atendimento das indústrias siderúrgicas. Inseridas no bioma cerrados ⁄campos cerrados distribuem-se as veredas com ocorrência de solos hidromórficos (Gleissolos). Esses ecossistemas são áreas de preservação permanente, apresentando como característica visual marcante a ocorrência de buritis (Mauritia flexuosa). Correspondem à rede de drenagem das superfícies aplainadas e constituem os principais mananciais hídricos dessas superfícies. A construção de pequenas barragens nesses ecossistemas e a inobservância de limites para uso agropecuário têm sido as principais causas de degradação e alterações das veredas, refletindo na redução do potencial hídrico.

Uso e ocupação Inicialmente, com a produção de alimentos para subsistência dos pequenos aglomerados urbanos, as atividades agrícolas foram crescendo em importância, à medida que as minas de ouro e pedras preciosas eram descobertas e exploradas. Os bandeirantes desciam o Rio das Velhas e novos aglomerados eram constituídos. Nessa fase, a agricultura praticada era a agricultura itinerante, que foi produzindo, com o passar dos anos, efeitos algumas vezes negativos aos ecossistemas, sobretudo na descaracterização da paisagem e no desequilíbrio do ciclo hidrológico.

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Com as características sócio-fisiográficas da bacia do Rio das Velhas associadas às condições históricas da ocupação da região, a agricultura foi tomando “forma”. As riquezas naturais, constituídas por metais de interesse econômico, rios piscosos, água abundante e solos com aptidão agropecuária, iniciaram o processo de degradação dessa bacia, pois, à medida que foram sendo identificados e explorados, houve um acúmulo e ampliação da população nesses locais, demandando-se cada vez mais a expansão das áreas agrícolas. Somou-se a este contexto a escolha da bacia do Rio das Velhas para a implantação do centro do poder mineiro; que se consolidou com a implantação da capital do Estado: Belo Horizonte, que, atualmente, constitui o mais estratégico espaço geográfico mineiro, do ponto de vista econômico, respondendo por 42% do Produto Interno Bruto de Minas Gerais. Logo, o crescimento da população e da área urbana demandou um aumento da exploração de recursos minerais, matérias-primas e energia, além da ampliação da produção de alimentos. Essa ampliação ocorreu de forma degradadora, muitas vezes utilizando sistemas de produção inapropriados para a sustentabilidade dos ecossistemas. Na segunda metade do século passado, principalmente nas décadas de 70 e 80, o advento da revolução verde acelerou os efeitos degradantes da agricultura na bacia hidrográfica, pois o aumento da produtividade e produção a qualquer custo intensificou a mecanização de áreas muitas vezes inapropriadas. A utilização inadequada de agroquímicos requeridas pelos sistemas de produção apresentados pela pesquisa e difundidos por técnicos não considerava a vocação natural dos espaços. Além disso, os financiamentos abundantes e subsidiados provocaram a expansão das áreas plantadas com culturas e pastagens. Era o modelo de desenvolvimento dominante que não possuía nenhuma referência de sustentabilidade ambiental. Os impactos ambientais provocados pela agricultura, quando desenvolvida sem a perspectiva da sustentabilidade, são sempre desastrosos. Todavia, não se trata da principal atividade da bacia do Rio das Velhas, ocupando menos de 1% da área total, com destaque para a cultura do milho que passa dos 110 mil hectares e do feijão que chega a aproximadamente sete mil hectares. A produção de grãos não é expressiva em relação ao tamanho da área da bacia. O maior problema concentra-se em duas atividades: a silvicultura, com a monocultura do eucalipto e a olericultura no segmento superior da bacia, ocupando aproximadamente dois mil hectares. A silvicultura, apesar de boa parte ter substituído pastagens degradadas, influenciou o ecossistema na região central por ter sido implantada como monocultura, em grandes extensões de áreas.

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A olericultura (plantio de hortaliças e legumes), estabelecida próxima ao grande mercado consumidor, utiliza freqüente e intensivamente agroquímicos que, além de provocar desequilíbrio drástico dos ecossistemas, pode estar contaminando mananciais demandados para fins múltiplos (abastecimento público, energia, irrigação e lazer).

Considerações finais

– A ocupação agrícola na bacia do Rio das Velhas não observou, historicamente, os padrões convencionais de expansão da fronteira agrícola como ocorreu nas bacias dos rios Grande e Paranaíba e, mais recentemente, no Noroeste do Estado; – Por outro lado, as áreas sob pastagens ocupam aproximadamente a metade da área da bacia (45,6%), evidenciando métodos extensivos de criação bovina; – Com exceção das pastagens implantadas em terraços e planícies fluviais, a maioria dessas áreas encontra-se degradada em decorrência da falta de recuperação periódica, superpastoreio e superpisoteio. A compactação superficial e sub-superficial dos solos leva à deficiência de oxigenação e inibição da percolação das águas pluviais; – A silvicultura ocupa cerca de 4% da área da bacia tendo o eucalipto como espécie mais expressiva. Portanto, a área com silvicultura é muito superior àquela sob agricultura na bacia do Rio das Velhas. – Os ecossistemas naturais primitivos foram, em primeira instância, modificados veementemente pela expansão das áreas de pastagens. As áreas sob agricultura, considerando o universo desta bacia, são pontuais, correspondendo, conforme mencionado, a menos de 1% da área total da bacia do Rio das Velhas e 0,35% ocupados com áreas irrigadas. Assim, os problemas ambientais dessa atividade são concentrados, em especial com a horticultura, no segmento correspondente à Região Metropolitana de Belo Horizonte e seu entorno (cinturão verde). Os sistemas de produção convencionais da horticultura, principalmente na olericultura, incluem recomendações significativas de agroquímicos que, sem dúvida, podem afetar direta ou indiretamente a população, seja pelo consumo dos produtos, seja pela utilização de águas contaminadas por resíduos tóxicos. - A agricultura, apesar de ser referência de degradação ambiental, representa nessa bacia baixos impactos ambientais negativos, considerando o alto índice de degradação por outras atividades antrópicas, tais como mineração, ocupação urbana e pastagens.

Fazenda Jequitibá, às margens do Rio das Velhas, 1940. Sem autoria, 1940. Coleção Família Mascarenhas.

- Os modelos de desenvolvimento agrícola têm sido repensados por instituições de pesquisa, extensão rural e organismos não governamentais, objetivando a sustentabilidade da atividade agropecuária. A ciência e a tecnologia já geraram conhecimentos suficientes para a prática da agricultura sustentável. Sistemas de plantio direto, cul-

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Uso e Ocupação Agropecuária – 2003

Uso e Ocupação Agropecuária na Bacia – 2003

FEIJÃO

OLERICULTURA

MILHO

FIBRAS

FRUTICULTURA

PASTAGENS

GRÃOS

ÁREA TOTAL DA BACIA

Fonte: Dados EMATER-MG 2003.

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tivos mínimos, manejo integrado de pragas e doenças já são realidades na agricultura. - Mais recentemente, surgiram sistemas de produção que utilizam os princípios da agroecologia, permitindo a prática da horticultura sustentável. Essa mudança de paradigma tende a crescer face às exigências e conscientização do consumidor. Segundo Miguel A. Altieri (Universidade da Califórnia, Campus de Berkeley, EUA), agroecologia é a ciência ou a disciplina científica que apresenta uma série de princípios, conceitos e metodologias para estudar, analisar, dirigir, planejar e avaliar agroecossistemas, com o propósito de permitir a implantação e o desenvolvimento de estilos de agricultura com maiores níveis de sustentabilidade. A agroecologia proporciona então as bases científicas para apoiar o processo de transição para uma agricultura “sustentável” nas suas diversas manifestações e ⁄ ou denominações. O uso agropecuário da terra, dentro dos preceitos da sustentabilidade, deve observar o equilíbrio da trilogia PRODUÇÃO-PRESERVAÇÃO-RECUPERAÇÃO, tendo como base a capacidade de suporte dos ecossistemas inseridos na bacia hidrográfica e suas respectivas aptidões. É possível haver uma convivência harmoniosa entre “homem e natureza” na bacia do Rio das Velhas, todavia é preciso que a sociedade se posicione quanto à escolha do modelo de desenvolvimento a ser adotado; se continuarmos tendo uma visão imediatista em relação aos recursos naturais, o poder público, que é constituído por todos, não terá respostas para preservá-los e recuperá-los. A ciência já produziu conhecimento suficiente para que o espaço da bacia volte a ter vida abundante, mesmo com a prática da agricultura. Nada disso ocorrerá sem educação e autoconscientização.

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Iconografia

Bibliografia

JACOB, Rodolpho. Minas Gerais no XXº século. Rio de Janeiro: Gomes, Irmão, 1911.

COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DAS VELHAS. Atlas da Bacia

WELLS, J. W. Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil, do Rio de Janeiro ao Maranhão. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995.

do Rio das Velhas, 2003. EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DE MINAS GERAIS - EMATER-MG. Relatório de acompanhamento de safras. Belo Horizonte, 1998. ______. Relatório de acompanhamento de safras. Belo Horizonte, 2002. ______. Relatório de acompanhamento de safras. Belo Horizonte, 2003. MARQUES, Adhemar Martins; BERUTTI, Flávio Costa; FARIA, Ricardo de Moura. História: os caminhos do homem. Belo Horizonte: Lê, 1993. 134 p. NORGAARD, R. B. A base epistemológica da Agroecologia. In: ALTIERI, M. A. (Ed.). Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA - FASE, 1989. p. 42-48. SCHIMDT, Mário Furley. Nova história crítica. São Paulo: Nova Geração, 1999.

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Abstract

Rural occupation through agriculture Occupation of geographic space is conditioned by many combined factors, especially characteristics involving physical environment and human life span and development installed in the region. In this passage, the occupation of the Velhas River basin will be analyzed through a combination of physical, economic and social aspects. Agriculture, like any other human intervention over the environment, provokes disequilibrium and transforms its natural surroundings; at times, this disequilibrium can make irreversible damage, especially regarding the type and degree of artificiality imposed on the natural grounds. The territory occupied by the State of Minas Gerais was exploited by colonists (bandeirantes) who developed a rather degrading activity: mining. Up until then, agriculture had only been practiced by indians using the crop rotation technique to permit soil recuperation. With the formation of small urban agglomerations, the practice of agriculture as a form of subsistence started as a form of complementing other activities. The formation of urban agglomerations took place mostly along the riverbanks, where agricultural activity was usually started using the roça system – deforestation and burning of the area and use of the land to exhaustion, at which point the area is abandoned to restart the process somewhere else. The occupation of The Velhas River basin followed the same logic, in other words, it didn’t take sustainability into consideration. As it happens in every ecosystem, physical environment conditions the usage and occupation of the territory. Climate, geologic characteristics, land and soil formation, they all present potentialities and limitations. Therefore, factors like the ecological diversity of political units (states, boroughs) or physical units (river basins) determine alternatives for economic activities. In the case of the Velhas River basin, its geographic distribution, going in the central-northwest direction of Minas Gerais, results in notable heterogeneity of the physical environment which in its turn brings on a wide diversity of ways in which this river basin is used and occupied.


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Professor de Epidemiologia da Escola de Veterinรกria da Universidade Federal de Minas Gerais


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15 A pecuária bovina Élvio Carlos Moreira 1

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Origem da pecuária no Brasil

Pero Vaz de Caminha, na tarde do dia 25 de abril de 1500, registrou com precisão todos os fatos ocorridos durante o primeiro encontro de portugueses e brasileiros. No convés da nau capitânia São Gabriel, Pedro Álvares Cabral, comandante-em-chefe da esquadra que ancorou no dia 22 de abril, em frente ao Monte Pascoal. Três dias após, por medida de segurança, mudou de local e ficou parada próxima à barra do Rio Caí, considerado pelos navegantes como Porto Seguro. Nesse local, cumprindo ordens do comandante Pedro, o experiente piloto Afonso Lopes capturou dois tupiniquins e os levou a bordo para um encontro que se tornou histórico. O escriba anota na Carta de Achamento do Brasil: “Mostrarãlhes huu papagayo pardo que aquy ocapitan traz, tomaraño logo na mão e acenaran peraa terra como que os avia hy. Mostraranlhes huu carneiro no fezeran dele mençam, mostranlhes huña galinha casy aviam medo dela e nõ lhe queriam poer a maão edepois atomaram coma espantados”. Ficou claro: na terra descoberta não existiam esses animais. Os brasileiros não conheciam os animais domésticos de exploração econômica dos europeus. Bovinos, suínos, caprinos, ovinos, eqüídeos eram totalmente estranhos para aquele povo. A nova terra era rica em mamíferos silvestres, aves de todos os tamanhos e cores, ictiofauna abundante na orla marítima e nos rios. Durante séculos, pacas, tatus, cotias, capivaras, antas, veados, coelhos, jacus, papagaios, araras, macacos, robalos, badejos e outros animais saciaram a fome dos conquistadores.

Fazenda do Rio São João, Caeté, circa 1900, s.a. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Páginas seguintes: Cena de boiada no “grande sertão” de Cordisburgo. Fotografia: Maureen Bisilliat. Acervo Museu Casa Guimarães Rosa, Cordisburgo.

De 1500 a 1531, Portugal, frustrado por não encontrar ouro e outras pedras preciosas, limita-se a exportar o pau-brasil, árvore abundante na Mata Atlântica, disseminada na orla marítima do sul ao nordeste brasileiro. A fundação da Vila de São Vicente, em 1532, marca o início do ciclo das Capitanias Hereditárias, tentativa frustrada de ocupar e desenvolver a Colônia com recursos da iniciativa privada. Nessa vila, a formosa Ana Pimentel, nobre espanhola, esposa e procuradora do seu marido Martin Afonso de Souza, dá início à pecuária brasileira. Por sua determinação, pois era a governadora, em 1534, são importados oito vacas e dois reprodutores, com aptidão para produção de leite e carne. Essas reses foram criadas na Fazenda Madre de Deus, e, em poucos anos povoaram, os campos de Piratininga. As monções e as bandeiras, com suas penetrações pelo interior do Brasil, encarregaram-se de disseminar os bovinos para o oeste, o sul e principalmente o nordeste. Os bandeirantes que se dirigiram para as pradarias localizadas nas margens do Rio das Velhas, nos séculos XVII e XVIII, trouxeram os descendentes desses bovinos, transformando-se na elite dos fazendeiros da bacia do Rio das Velhas.

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A pecuária na bacia do Rio das Velhas no período colonial

Rapidamente, a carne e o leite passam a ter papel relevante e insubstituível na alimentação dos brasileiros. Os estados nordestinos, principalmente Ceará e Piauí, dominam a produção de bovinos até o final do século XVIII. De 1791 a 1793, ocorreu a mais terrível seca, ficou na História como a Seca Grande, milhares de pessoas morreram e estima-se aproximadamente a morte de um milhão e duzentos mil bovinos. Pá de cal na bovinocultura nordestina. Condições extremamente adversas do semi-árido e o crescimento da pecuária no pampa gaúcho e em Minas Gerais foram os fatores que eliminaram qualquer possibilidade de retorno da exploração de bovinos naquela região. O ciclo do ouro em Minas Gerais, iniciado no final do século XVII, estimulou a proliferação de fazendas de gado no sertão mineiro. O Rio São Francisco, com suas águas perenes, facilitava a interiorização e o seu principal tributário, o Rio das Velhas, permitia navegação até Sabará, local estratégico para abastecimento das vilas onde estavam concentrados os garimpos. A província de Minas Gerais havia passado por momento de séria crise de falta de alimentos no início do século XVII. Ocorreu um povoamento muito rápido, alguns historiadores estimam-no em aproximadamente 150.000 pessoas vivendo nas Vilas de Ouro Preto, Mariana, Vila do Príncipe (atual cidade do Serro) e Diamantina, principais centros de exploração do ouro e diamantes. Essa explosão demográfica não foi acompanhada pelo aumento na produção de grãos e produtos de origem animal. A esperança de ficar rico o mais rapidamente possível concentrava todo o trabalho dos aventureiros. Todos querendo transformar em realidade, o conselho do Bispo de Leiria: “Vá, degredado, para o Brasil, donde voltarás rico e honrado”. A Guerra dos Emboabas, ocorrida nessa época, foi o confronto armado entre os paulistas descobridores das minas e os forasteiros aventureiros, conhecidos como emboabas, que chegaram depois querendo ficar com as minas e seus produtos. Esse conflito terminou com a derrota dos paulistas e a batalha final se deu no atual município de Caeté. Expressiva parcela de paulistas, para não retornarem como derrotados, permaneceram ao longo das margens do Rio das Velhas, onde implantaram fazendas de gado, cultivos de feijão, milho, algodão e cana para produzir açúcar mascavo e cachaça.

Fazenda da Picada, perto da antiga Vila de Taboleiro Grande, em 1886. Desenho de J.W. Wells.

Na fase colonial, Minas Gerais estava dividida em grandes comarcas. As comarcas de Vila Rica, do Serro Frio e de Sabará incluíam os atuais municípios do alto e médio Rio das Velhas. As fazendas localizadas nessas áreas tinham um desenvolvimento qualitativo bem diferente daquelas situadas na comarca de Paracatu e nordeste

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brasileiro. A pecuária da maioria das fazendas da bacia do Rio das Velhas adotava as técnicas mais apuradas para a época. O sistema de produção era totalmente distinto também nos seus aspectos sociais e culturais. Aqui, os pastos eram bem divididos, delimitados por cercas de pau-a-pique, muros de pedra ou valos. A Mata Atlântica e o cerrado forneciam todo tipo de madeira, tanto para a construção das moradias dos proprietários e empregados como para os animais domésticos. O curral era feito no capricho. As réguas eram serradas, os esteios de aroeira, candeia e braúna lavradas a machado. Outras madeiras de lei eram facilmente extraídas, jatobás e ipês estão espalhados em abundância pelos campos e serras até o município de Curvelo. O mercado das vilas que exploravam ouro e diamante era consumidor de todo o leite e seus derivados. A fabricação de queijos, requeijão e manteiga necessitavam de labuta diária e manejo cuidadoso das vacas em lactação. Essa atividade refletia na mansidão dos bovinos e a tecnologia de divisão de pastagens para cada categoria etária: pasto de vacas em produção, de touros, bezerros e pastos maternidade próximos da sede eram medidas que economizavam mão-de-obra. Essa disponibilidade de tempo favorecia a formação de excelentes artesãos. Os marceneiros, carpinteiros e seleiros dessa região em pouco tempo eram reconhecidos na colônia como verdadeiros artistas no trato com a madeira e o couro. As edificações indispensáveis na produção animal eram sólidas, confortáveis e eficientes. O moinho d’água e o paiol eram equipamentos que ajudavam no fornecimento anual e na suplementação com farelo de milho, principalmente das vacas em lactação, dos eqüídeos, suínos e aves. O galinheiro, a horta e o pomar também faziam parte da estrutura de produção de alimentos para que a fazenda fosse autosuficiente e produzisse excedentes exportáveis. O olho do dono engorda o boi. Ditado popular, seguido à risca pelos fazendeiros da bacia do Rio das Velhas. O proprietário morava na fazenda com os escravos, agregados e outros trabalhadores livres. Algumas fazendas tinham senzala em seus porões. A maioria construía casas de empregados isoladas do recinto da sede, distribuídas em cada setor de produção da fazenda. Isso facilitava o trabalho e servia de proteção contra ladrões e onças, abundantes na região.

Carro de boi. Pintura a óleo de Nazareno Altavilla, circa 1970. Acervo Museu Casa Guimarães Rosa, Cordisburgo.

No médio e baixo Rio das Velhas existiam pradarias cobertas de gramíneas e leguminosas nativas apropriadas à criação de bovinos. No alto Rio das Velhas era preciso derrubar a mata, semear ou deixar surgir forragens nativas. As espécies mais aptas predominavam de acordo com o clima e o solo. A baixa densidade bovina, existente em 1817, de 600 a 700 bovinos numa área de doze quilômetros quadrados, favorecia sobra de grande massa de forragens, constituída de gramíneas endurecidas e imprestáveis à nutrição dos bovinos. O

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manejo era feito com queimadas. Essa prática era comum e a cada três meses, procedia-se à queimada dos pastos. Os benefícios, de curto prazo, eram o controle de carrapatos, bernes e verminoses e o fornecimento de forragem tenra e nutritiva. Com o tempo, os fazendeiros aprimoraram a prática da queimada. Escolhiam as épocas mais adequadas: eram feitas após algumas chuvas e a entrada da primavera. Esse conhecimento empírico permitia o controle de ecto e endoparasitas e comida para o gado durante todo o ano. No final do século XIX, difundem-se na bacia do Rio das Velhas os capins gordura, angola e jaraguá, este último originário do Sul de Goiás e Mato Grosso. O capim-gordura, catingueiro ⁄ meloso, espécie Mellinis minutiflora, possui três variedades: o branco, o roxo franqueiro e o roxo miúdo que é o mais comum. São capins apreciados pelos bovinos e eqüídeos, pois são de alta palatabilidade e em solos ricos e profundos cobrem totalmente a terra, fornecendo forragem tenra e nutritiva. O capim jaraguá, espécie Hyparrenia rufus, rapidamente se espalhou e foi predominante até o início da década de 1980. Era um capim robusto, de crescimento rápido, boa capacidade de lotação, suportava de duas a três cabeças por hectare, pois, caso contrário, transformava-se em touceiras rejeitadas pelos animais. O jaraguá e o gordura formavam gramados que protegiam o solo da erosão.

Raças de bovinos

As primeiras importações de bovinos realizadas por Ana Pimentel, em 1534, foram as sementes para formação das chamadas “raças brasileiras”. No período colonial, predominavam raças bovinas oriundas de Portugal e Espanha. Os portos da costa do Atlântico foram as portas de entrada de reses de Portugal. O gado espanhol chegou pelos portos do Rio da Prata e espalhou-se pelo Sul do Continente. Posteriormente, foram penetrando pelo interior do Brasil, graças à extensa fronteira terrestre e os rios facilmente navegáveis. O tradicional carro-de-bois. Fotografia: Josaphat Penna. Coleção Jeanne Milde. Acervo Museu Mineiro.

Páginas seguintes: Fotografia: Cuia Guimarães.

Os portugueses, desde o século XVI, tinham intensificado a importação de bovinos com aptidão leiteira, provavelmente vacas de origem holandesa, conhecidas em Portugal como sendo da raça turina. Nos séculos XVIII e XIX, passaram a importar gado do Egito e da Costa Nordeste da África, onde predominavam raças européias Bos taurus. Os zebus, Bos indicus, somente no final do XIX, começaram a chegar, em lotes expressivos, importações que vão durar até 1930. A primeira importação de zebus registrada como significativa foi feita por D. Pedro I, de bovinos criados na região do Nilo, na África. Esses

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animais foram enviados para a fazenda do Palácio Real de Santa Cruz, que estava situada próxima da cidade do Rio de Janeiro. A peste bovina surgiu em 1922, no Estado de São Paulo, doença exótica para o Brasil, e foi prontamente erradicada com medidas rígidas de combate, incluindo o sacrifício de todos os animais no foco. A origem dessa epidemia foi a entrada de bovinos da Índia sem o devido controle sanitário. Depois desse episódio, houve pressão para cancelar a compra de bovinos na Índia. O decreto de proibição é de 1936, medida legal que vigora até hoje. Os fazendeiros brasileiros foram inteligentes em aprimorar as raças indianas, mantendo linhagens puras e fazendo cruzamento entre raças indianas e européias na seleção de bovinos para produção de carne ou leite, adaptados às condições climáticas e de cada ambiente de criação no vasto território brasileiro. Em cada fase de nosso desenvolvimento pecuário, algumas raças ou cruzamentos mereceram a preferência dos fazendeiros da bacia do Rio das Velhas. A raça Caracu, constituída de animais corpulentos, era preferida para conduzir os “carros de boi”. São bovinos de grande vigor, resistentes e mansos. A dupla aptidão para carne e leite, tornou-se insatisfatória quando comparada com outras raças ou linhagens selecionadas para corte ou leite. Os novos meios de transporte das mercadorias do agronegócio foram também fatores para redução dos plantéis de Caracu no Brasil. Raça Crioula: formada com o cruzamento das raças existentes no Brasil, entre elas o Caracu. Nessa época eram criados nas fazendas da bacia do Rio das Velhas animais de diferentes origens. Existiam bovinos que vieram do nordeste brasileiro, pelo Rio São Francisco, tendo facilitada a sua chegada pelo Rio das Velhas, nas propriedades do centro, vale do Rio Doce e Sul de Minas. Na formação dessa raça participaram os bovinos introduzidos pelos bandeirantes. Parece muito provável que tinham genes daqueles bovinos da Fazenda Madre de Deus, construída em 1534, por Ana Pimentel. Eram bovinos bem adaptados em pastagens de planície e serranas dos municípios mineiros. Hoje, considerada raça em extinção.

Fazendeiro e vaqueiros de Corinto, década de 1970. Fotografia: Paulo Leite Soares.

Raça Junqueira: bovinos bem adaptados e de produção satisfatória para a época. Eram animais de engorda lenta, baixo rendimento de carcaça, em torno somente de 40% do peso vivo. Este fato estava associado ao valor estético dos chifres para os criadores desta raça. No processo de seleção acabaram conseguindo animais de chifres longos, curvos e pesados que chegavam a inclinar a cabeça de seus detentores. Esta característica não tinha qualquer valor para a indústria da carne. Pelo contrário, já valorizavam os machos mais jovens e de preferência descornados. A sua substituição para raças

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mais produtivas foi muito rápida, entrando em extinção. A Graciosa de Graciosa, localizada, em setembro de 2000, numa propriedade do município mineiro de Leandro Ferreira é um raro exemplar sobrevivente dessa raça. Por muito tempo, a pecuária na bacia do Rio das Velhas foi praticamente extrativista e viável somente com raças rústicas, capazes de viverem e reproduzirem-se em pastagens nativas de qualidade inferior. Os bovinos precisavam fazer longas caminhadas na busca de forragens, gramíneas e leguminosas, para compor uma dieta de manutenção e produção. As gramíneas na bacia das Velhas apresentam crescimento muito rápido na primavera e verão, ficam de um verde exuberante, mas são aquosas nesse período. No final do outono e inverno ficam imprestáveis. São duras, fibrosas, rejeitadas pelo gado. Em ambos os períodos, elas são pobres em proteínas, macro e micro minerais essenciais na nutrição de ruminantes selecionados para alta produção de carne ou leite. As veredas verdejantes do altiplano da Serra do Cabral, ao lado direito do Rio das Velhas, encantaram um rico empresário uruguaio, em 1917. Antonio Maldini, em sociedade com outros parentes, adquiriu uma área imensa nesse local, com muitos quilômetros de extensão, para produzir bovinos finos. Importou do Uruguai 900 touros Hereford na esperança de conseguir mestiçar o rebanho nativo para produzir animais de carne tenra e saborosa. Com esse objetivo, comprou milhares de vacas em toda a bacia e dizia: “Con los toros de clase tudo se arreglaria. . . ”. Em dois anos não sobrou um reprodutor. Não resistiram ao ataque dos carrapatos, bernes e morcegos. Doenças como babesiose e anaplasmose, endêmicas na região, associadas às deficiências nutricionais foram responsáveis pelo insucesso do empreendimento. Seus descendentes são fazendeiros bem sucedidos no município de Curvelo, graças ao zebu e em especial à raça Guzerá. A urbanização acelerada ocorrida na década de 1970, crescimento demográfico e a rápida valorização das terras na Região Metropolitana de Belo Horizonte, associada à subdivisão das propriedades rurais e valorização da mão-de-obra foram fatores decisivos para mudança do perfil da pecuária na bacia do Rio das Velhas. Agora é necessário aumentar a produção e a produtividade para atender às novas demandas de um contexto socioeconômico mais complexo e diversificado. A introdução de melhorias no manejo, nutrição, na sanidade e seleção genética tem como metas explorar bovinos cada vez mais eficazes na produção de carne ou leite. A exigência de níveis mais elevados de produção determina rapidamente a mudança do perfil das raças e das forragens nativas ou cultivadas na bacia.

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Os capins tradicionais, como o gordura, jaraguá e colonião serão substituídos por espécies mais resistentes e produtivas. As gramíneas do gênero Brachiaria, por serem de boa resistência à seca, de alta produtividade e excelentes na cobertura do solo e boas como suporte do pisoteio de gado, ganham a preferência dos fazendeiros. Na década de 1960 ocorre a substituição das raças “nativas” por bovinos de origem indiana para carne e leite e holandesa, jersey, guernsey para leite. O nelore, guzerá e gir predominam entre os zebus. A raça holandesa e seus cruzamentos, em especial com zebus, dão origem aos mestiços conhecidos como girolanda e vacas F1 com guzerá ou nelore, para produzir leite. Até essa data, os indicadores de produção e produtividade pecuária na bacia do Rio das Velhas eram muito modestos. Nos bovinos de corte o desfrute era de 12%, a produção de carne por hectare ⁄ ano era de 50 kg, a taxa de natalidade flutuava entre 50 e 60%, a taxa de mortalidade bruta de 15% e a idade de abate de 4 a 5 anos. Na bovinocultura leiteira, observava-se a produção de 500 litros ⁄ vaca ⁄ hectare ⁄ ano. A produção de leite ⁄ vaca ⁄ ano era de 800 kg. O intervalo entre partos de 18 a 20 meses. Os problemas sanitários daquela época causavam perdas econômicas significativas. Ainda se usava óleo queimado com fumo torrado para combater bernes e bicheiras, queima de pastagens para controlar carrapatos e endoparasitoses. A febre aftosa era endêmica, bem como a brucelose, tuberculose e cisticercose. O controle das deficiências minerais restringia-se à colocação de sal comum nos cochos e poucos eram os proprietários que ofereciam esse mineral durante todo o ano.

A pecuária atual

Minas Gerais é ainda o estado que mais produz leite no Brasil. Em Belo Horizonte está localizada a sede da Cooperativa Central dos Produtores Rurais — CCPR ⁄ ITAMBÉ. Ela foi fundada em 1948 e, atualmente, na Usina de Belo Horizonte, são processados 5.500.000 litros de leite pasteurizado e 1.000.000 litros de leite longa vida, 300 toneladas de manteiga, 1,2 toneladas de iogurte e 15 toneladas de creme de leite pasteurizado por mês. A fábrica, localizada em Sete Lagoas, iniciou suas atividades em 1957, onde produz leite em pó, queijos, manteiga e doce de leite. Atualmente, a Cooperativa possui fábricas em Minas Gerais, Distrito Federal e Goiás, com 3.723 empregados. Estima-se em quatro milhões e 500 mil vacas em todo o estado produzindo em torno de 6 milhões de litros de leite por ano. Nos 51 municípios da bacia do Rio das Velhas, segundo o Censo Agropecuário de 1996, residem 829.965 bovinos. Destes, 169.312 são vacas em lactação que produzem 225.749.000 ⁄ litros de leite por ano (Tabela 1).

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“Gado Mineiro. Tipo comum”. Fotografia: Raymundo Alves Pinto.


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População de bovinos e eqüídeos na bacia do Rio das Velhas em 1995/96 e 2000, Minas Gerais. REGIÕES/MUNICÍPIOS

TOTAL DE 1996 BOVINOS EQÜÍDEOS

TOTAL DE 2000 BOVINOS EQÜÍDEOS

Alto Rio das Velhas Belo Horizonte Caeté Contagem Itabirito Nova Lima Ouro Preto Raposos Rio Acima Sabará Subtotal

123 7 935 1 806 3 476 622 8 461

10 936 122 720 7 774

644 1 693 24 760

151 100 2 820

8 795 18 584 6 130 28 348

644 1 132 460 3 085

6 106 34 472 88 089 47 912 9 348 12 728 12 123 18 510 6 641 13 093 17 390 4 308 27 813 11 893 20 978 8 760 1 584 3 729 25 862 6 181 1 472 25 455 8 735 1 103 476 142

679 2 374 4 616 3 377 557 745 1 038 1 327 197 921 1 024 452 1 753 892 1 643 491 197 315 2 290 728 116 1 356 543 32 32 984

0 7 586 0 3 800 2 000 8 400 207 847 3 665 26 505

0 965 0 790 830 815 0 180 0 3 580

9 640 19 400 7 592 29 020 2 000 6 220 34 720 89 320 49 640 10 900 13 683 16 195 19 100 7 412 14 998 16 468 4 583 26 080 14 494 19 356 11 690 983 8 047 29 140 6 090 2 825 29 800 10 096 1 351 510 843

642 1 177 222 3 460 250 785 2 672 4 545 3 135 612 655 1 034 1 430 283 833 924 442 1 683 607 1 402 603 146 232 2 757 770 14 1 610 573 18 33 516

Médio Rio das Velhas Araçaí Baldim Capim Branco Conceição do Mato D. Confins Congonhas do Norte Cordisburgo Curvelo Esmeraldas Funilândia Inimutaba Jaboticatubas Jequitibá Lagoa Santa Matozinhos Morro do Garça Nova União Paraopeba Pedro Leopoldo Presidente Juscelino Prudente de Morais Ribeirão das Neves Santa Luzia Santana do Pirapama Santana do Riacho São José da Lapa Sete Lagoas Taquaraçu de Minas Vespasiano Subtotal

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TOTAL DE 1996 BOVINOS EQÜÍDEOS

TOTAL DE 2000 BOVINOS EQÜÍDEOS

Augusto de Lima Buenópolis Corinto Datas Diamantina Gouveia Joaquim Felício Lassance Monjolos Pirapora Presidente Kubitschek Santo Hipólito Várzea da Palma Subtotal

27 993 34 662 55 277 1 508 11 040 9 621 19 252 25 517 12 835 12 811 1 851 22 453 54 726 289 546

1 464 2 620 3 115 87 1 174 1 004 1 001 1 888 1 019 657 175 1 412 2 939 18 555

24 249 24 524 61 191 3 550 17 000 10 000 12 130 28 934 13 114 11 773 2 290 21 807 62 055 292 617

1 340 2 332 2 845 89 1 215 1 004 870 1 660 915 672 242 1 250 2 935 17 369

Total

790 448

54 359

829 965

54 465

REGIÕES/MUNICÍPIOS Baixo Rio das Velhas

Fonte: IBGE - Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA) / Censo Agropecuário de 1996

Páginas seguintes: Vaqueiros da Barra do Guaicuí, década de 1970. Fotografia: Bráulio Carsalade Villela.

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A pecuária brasileira enfrenta o desafio de atingir indicadores para que a atividade seja sustentável. A metas são: produzir de 6.000 a 8.000/kg/leite/hectare/ano. De 5.000 a 7.000 litros de leite por vaca ordenhada. O intervalo entre os partos reduzido para 11 a 12 meses. A taxa de natalidade de 92 a 97% e a idade à primeira cobertura para 14 a 20 meses.

Perspectivas

Dobrar a produção de carne e leite deveria ser uma meta de todos os atores que participam dessa importante atividade para o desenvolvimento social e econômico dos municípios da bacia do Rio das Velhas. O êxito na manutenção e expansão da produção de leite e carne nas propriedades da bacia do Rio das Velhas requer ação conjunta do estado e da iniciativa privada. O controle e erradicação das doenças de impacto econômico e zoonoses, a formação de linhagens altamente especializadas em leite e carne, o melhoramento genético de gramíneas e leguminosas adaptadas à região, o aumento de investimentos na aquisição de matrizes e reprodutores testados, a expansão e o aprimoramento das indústrias de transformação de leite e carne e de seus derivados para oferecer alimentos preparados ou semipreparados para uma população que exige qualidade e preço são ítens prioritários da pecuária brasileira. Na maioria dos municípios da bacia do Rio das Velhas existem ainda zoonoses, doenças dos animais transmissíveis ao homem, como a brucelose, tuberculose e cisticercose. As doenças como helmintoses, anaplasmose, babesiose e o ecto e endoparasitas são onipresentes na bacia. Felizmente, a Febre Aftosa, doença vesicular grave pelo seu impacto no comércio interno e internacional, está totalmente erradicada na bacia do Rio das Velhas e em Minas Gerais. A atuação do Instituto Mineiro de Agropecuária (Ima) é essencial para exercer o controle efetivo das principais endemias e atender às exigências dos países importadores com a certificação da qualidade sanitária dos produtos de origem animal. Os países ricos, que são importadores de produtos de origem animal, conseguiram erradicar ou estão em fase final de erradicação das principais doenças de importância econômica ou zoonoses. Assim, esses países são extremamente exigentes ao selecionar seus fornecedores, pendendo sempre a preferência para aqueles países que já estão livres de doenças.

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.


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Iconografia

Bibliografia

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Abstract

Cattle raising This chapter contains a brief history of cattle raising introduction and development on the Velhas River basin. Cattle raising in Brazil started in 1534 when Ana Pimentel, the first woman governor, imported eight heifers and two bulls from Portugal. These animals were raised on 'Madre de Deus' farm, and in due time had spread their descendents all over Pirapetinga's fields, São Paulo. State and private inland migrations looking after natural resources, mainly gold and precious stones, led to a continuous cattle dissemination towards west, south and mainly northeast. Among the private groups, known as bandeirantes, those which settled on the banks of Velhas River turned out to be the farmer's elite during 17 and 18th centuries, always keeping the original cattle descendents on the basin. Northeast states, specially Ceará and Piauí, had the biggest herds ion Brazil until late 18th century. From 1791 ro 1793, the Great Draught was reasponsible for the death of thousands of people and nearly 1.2 million animals. With the gold cycle during the early 19th century, the number of cattle farms in Minas Gerais state substantially increased. The broad São Francisco river allowed fast expansion towards inland and at that time, Velhas River was navigable up to Sabará, a vital commercial center which supplied all mining counties around it. The whole Velhas basin was covered with native legumes and grasses, all suitable to cattle. Its early springs on their turn presented massive vegetation and the forests were cut down to allow native pastures to grow. Cattle density in 1817 was only 600 to 700 animals per 12 km2 ( 6 to 7 animals per 31.1 acres). During this colonial period the most common breeds were those brought from Portugal and Spain. The choice of breed depended much on the farmer's preference based on economical or political trends. The massive and strong caracu breed was used as animal traction and for meat production. Crioula breed was formed through uncontrolled crossbreeding of existing cattle in Brazil, including caracu. For a long time cattle industry on the Velhas basin was possible only with these rustic breeds, capable to survive on native pastures and to reproduce in the wild. From 1960 on, the former native breeds were gradually giving place to zebu breeds brought from India and some European ones (mainly friesian, jersey, guernsey, to increase milk production). Presently, nelore, guzerá and gir are the most popular among the zebu breeds. Friesian breed and its crosses with zebu (specially gir) originated the girolanda, used for milk production. In 2000, considering the 51 counties on Velhas basin, there were 829,965 animals. Nowadays, when density reaches 32 animals per 31.1 acres, restricted by legal environment protection acts, the development of cattle industry on the same area will be possible only with combined efforts of both state and private enterprises.


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Professor do Curso de Geografia e Meio Ambiente do Centro Universitรกrio Newton Paiva


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16 O êxodo rural e a ocupação urbana e industrial Marcelino Santos Morais 1

Fotografia: Cuia Guimarães.

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A adoção de uma bacia hidrográfica como unidade territorial surge como uma das opções para o planejamento e gerenciamento ambiental regional, podendo-se destacar algumas vantagens e desvantagens desta escolha. Dentre as vantagens, a rede de drenagem de uma bacia pode ser capaz de indicar relações de causaefeito, particularmente aquelas que envolvem o meio hídrico. Dentre as desvantagens, nem sempre há a conciliação regional entre os atores envolvidos, pois os limites municipais e estaduais não seguem os limites da bacia hidrográfica. Para entendermos os processos advindos da urbanização na bacia do Rio das Velhas, devemos inicialmente buscar subsídios no processo de ocupação do espaço brasileiro que, no final do século XVIII, com a descoberta do ouro no interior oeste da província do Rio de Janeiro, levou à avaliação do potencial da colônia por parte de Portugal. Tal avaliação mostrou claramente que o governo precisava agir com presteza para garantir o controle imediato do território interiorano. As terras do sertão não podiam mais ficar sem supervisão e os administradores, cientes disso, logo estabeleceram as primeiras medidas de um programa legislativo para redefinir os direitos sobre a terra e, ao mesmo tempo, estender a autoridade real. Na formulação desse programa, foram levadas em consideração quatro questões básicas: 1. Regulamentação das áreas auríferas, visando a uma normatização de impostos; 2. Estabelecimento de jurisdição sobre os interessados em desbravar as terras inóspitas; 3. Contenção da influência dos primeiros “latifundiários”; 4. Ampliação dos domínios territoriais. Portanto, esses quatro parâmetros condicionaram a política de ocupação portuguesa para as regiões interioranas do Brasil durante a maior parte do século XVIII, implantando assim um sistema de cidades, vilas e povoações organizadas. Desse modo, em 1714, foram divididas as três primeiras comarcas das Minas — Vila Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes. As terras do então Curral del Rei passaram a pertencer à comarca do Rio das Velhas, cuja sede era Sabará — dando origem a um arraial de próspero desenvolvimento em população, agricultura, pecuária e comércio. Apesar de não ser região aurífera por excelência, suas atividades abasteciam os centros populosos e ricos das grandes minerações no Rio das Velhas. Mapa da Comarca de Sabará, 1778. Autoria de José Joaquim da Rocha. Arquivo Público Mineiro.

Por ter sido uma das principais portas de entrada para o atual Estado de Minas Gerais, toda a bacia do Rio das Velhas apresenta características que afirmam sua importância como eixo de ocupação

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territorial e desenvolvimento urbano. Essa realidade confirma-se ao constatarmos que a região mais industrializada e densamente povoada de Minas Gerais pertence à bacia do Rio das Velhas. Apesar de sua importância, surge uma realidade dicotômica em que se percebe uma especificidade natural que poderia sustentar de forma equilibrada a ocupação que essa bacia vem sofrendo, em decorrência de ocupação não pensada, de acelerado processo de degradação. O tema específico deste capítulo centra-se na ocupação urbana em toda a bacia do Rio das Velhas, onde o processo de urbanização deflagrou uma série de impactos ambientais, tais como: • atividades mineradoras que promovem o assoreamento e elevação de sólidos em suspensão; • emissão de esgotos doméstico e industrial não tratados de grande parte da Região Metropolitana de Belo Horizonte; • supressão da vegetação ciliar. O grau de ocupação de uma região tem como um de seus condicionadores sua vocação econômica. Esta vocação fica à mercê de políticas monetárias que norteiam temporalmente o grau de influência dos diversos setores da economia que, por sua vez, condicionam a mobilidade social. Os pilares econômicos da bacia do Rio das Velhas, tanto na história de sua evolução urbana, como até os dias atuais são a mineração, a agropecuária e a indústria. Estas três atividades deveriam ter sido norteadas por uma política que contemplasse não somente a economia, mas também os recursos naturais (solo, relevo, atmosfera, substrato rochoso, flora e fauna) e os componentes socioeconômicos, considerando sua inserção regional e sua articulação com os problemas nacionais. As mudanças ambientais decorrentes dos processos de urbanização na bacia do Rio das Velhas devem ser encarados sob os dois focos possíveis: o impacto positivo, ou benéfico, que resultou na melhoria da qualidade da característica ambiental e o impacto negativo, ou adverso, que resultou no dano à qualidade de uma variável ambiental. Buscando uma análise da cadeia de alterações geradas em decorrência da urbanização e dos setores econômicos presentes na bacia do Rio das Velhas, pode-se, segundo Pires & Santos, apresentar o seguinte organograma:

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Agricultura – Urbanização – Mineração – Indústria

Retirada da

Impermeabilização

Captação de

Cobertura

e/ou compactação

água para

Vegetal

dos solos

abastecimento

resíduo

no sistema por

escoamento

precipitação local

água para escoamento de

Diminuição da água

Aumento do

Diminuição da

Utilização da

evaporação e

superficial

Aumento de substâncias orgânicas e/ou tóxicas

derivação

Diminuição da

Aumento da

Diminuição da

Prejuízo à biota

infiltração

erosão dos solos

evapo-transpiração

aquática

Alteração da função

Diminuição do

Aumento do

estoque de água

assoreamento de

subterrânea

córregos e rios

Alteração nos padrões de vazão dos córregos e rios

Cheias e secas pronunciadas

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ambiental de ciclagem dos materiais e despoluição

Alteração da qualidade da água

Problemas de qualidade da água para abastecimento


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O crescimento acelerado das cidades em decorrência dos processos migratórios campo-cidade e cidade-cidade tem provocado, ao longo dos últimos quarenta anos, uma situação de insalubridade nas áreas marginais, quanto ao saneamento, água tratada, coleta de lixo, dentre outros fatores essenciais às condições de vida aceitável e também alto índice de vulnerabilidade dos terrenos frente às erosões, assoreamentos e acidentes naturais, entre eles escorregamentos. Essa situação pode ser retratada na bacia do Rio das Velhas primeiramente sob a óptica de sua totalidade populacional. Numa análise simplificada dos dados disponibilizados pelo IBGE para todos os municípios da bacia do Rio das Velhas podemos visualizar o crescente aumento da população urbana.

Tabela 1- Crescimento populacional dos municípios da bacia do Rio das Velhas (Fonte: IBGE) POPULAÇÃO

POPULAÇÃO

POPULAÇÃO

URBANA

RURAL

TOTAL

1970

1.753.420

261.577

2.014.997

1980

2.727.914

228.794

2.956.708

1991

3.456.666

287.898

3.744.564

2000

4.226.246

163.151

4.389.397

ANOS

De forma pontual, essa realidade tem seu maior exemplo no município de Ribeirão das Neves que apresentou, sem nenhuma dúvida, o maior crescimento urbano de toda a bacia, como sintetizado na tabela abaixo:

Tabela 2 - Crescimento populacional do município de Ribeirão das Neves (Fonte: IBGE) POPULAÇÃO

POPULAÇÃO

POPULAÇÃO

URBANA

RURAL

TOTAL

1970

5.547

4.160

9.707

1980

61.670

5.587

67.257

1991

119.925

23.928

143.853

2000

245.143

1.446

246.589

ANOS

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Pensando-se nos processos de alteração ambiental na bacia do Rio das Velhas decorrentes das intervenções antrópicas no meio físico e de suas conseqüências, pode-se sintetizar estas informações da seguinte maneira:

Tabela 3: Alterações ambientais decorrentes de intervenções antrópicas sobre o meio físico (modificado de FAO, 1995). ATIVIDADE

ALTERAÇÕES FÍSICAS

ALTERAÇÕES QUÍMICAS

RELEVO

COBERTURA VEGETAL

SOLO

DENSIDADE DE DRENAGEM

Urbanização

Indústria

Agricultura

• •

Manejo de Floresta Turismo

AR

• •

SOLO

ÁGUA

• •

Nota-se que, juntamente com a agricultura, o crescimento urbano é o fator mais eficaz nos processos de alterações ambientais. Este inicia-se com o desmatamento, seguindo-se o cultivo da terra, a construção de estradas, a criação e expansão das vilas e cidades que, sobretudo quando efetuada de modo inadequado, constitui-se, conforme Salomão & Iwasa, no fator decisivo da origem e aceleração dos processos erosivos. Uma vez ativada, a erosão passa a ser comandada por fatores naturais, tais como chuva, relevo, solo e cobertura vegetal. Essa realidade pode ser observada nas regiões mais ocupadas da bacia do Rio das Velhas, ou seja, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, que apresenta graves problemas de assoreamento de drenagens provenientes da má utilização do solo urbano. Como exemplo desse impacto podemos citar a bacia do Cercadinho, sopé da Serra do Curral, onde, nas cabeceiras do Córrego Ponte Queimada, foi construído um grande condomínio que deflagrou intensos processos erosivos que acarretaram no assoreamento de nascentes e do leito do córrego. Ao se analisar o processo de ocupação na região de Sabará, podem-se identificar graves problemas de carreamento de sedimento para a calha do Rio das Velhas em decorrência dos desmatamentos generalizados e das atuações antrópicas no sentido de concen-

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trar o fluxo da água, tais como obras de drenagem, arruamentos e construção de cercas que atuam diretamente na proliferação de ravinas. Um dos problemas mais sérios na deflagração de processos erosivos é a expansão de loteamentos em áreas impróprias ao uso do solo. Esses processos erosivos, ao longo de grande parte da bacia do Rio das Velhas, vêm, por muito tempo, promovendo o assoreamento dos cursos d’água e reservatórios, que por sua vez provocam o desequilíbrio das condições hidráulicas, contribuindo assim com as enchentes, perdas da capacidade de armazenamento d’água, incremento de poluentes e prejuízos para o abastecimento e produção de energia. Não podemos ainda esquecer que a ocupação do espaço urbano, quando acontece de forma inadequada, pode gerar processos de movimentação de massa responsáveis por perdas de vidas e prejuízos econômicos. A urbanização na bacia do Rio das Velhas gera outro grande problema ambiental observado por toda a bacia: a destinação de resíduos. A grande maioria dos municípios da bacia dispõe inadequadamente seus resíduos. Tal situação pode ser entendida pela falta de conhecimento regional das características do meio físico e do meio ambiente como um todo, da não caracterização e separação dos tipos de resíduos, da falta de parâmetro realístico das normas existentes no Brasil para a escolha dos locais, do baixo índice de estudos em aterros existentes ou experimentais e, por fim, da falta de fiscalização pelos órgãos públicos com a conseqüente punição dos responsáveis pela disposição inadequada dos resíduos. Embora o risco de contaminação seja o principal problema na disposição de resíduos, existem outros fatores que também contribuem para a degradação ambiental. Dentre eles se incluem o impacto visual e estético, danos à fauna e à flora, doenças em animais e população carente, acúmulo de produtos não biodegradáveis no ambiente e geração de mau cheiro. Algumas áreas urbanas da bacia do Rio das Velhas padecem ainda de problemas provenientes das ações minerárias. A lavra a céu aberto é o tipo de processo minerário que gera maior impacto por produzir grande quantidade de estéril, além de poeira, ruído, vibrações e poluição das águas. Devido às características geológicas, alguns municípios da bacia sofrem com os rejeitos liberados pelas mineradoras. Por fim, as indústrias urbanas presentes na bacia do Rio das Velhas apresentam-se como atividades produtoras e de transformação, tendo a capacidade de lançar na água poluentes que podem ser nocivos à saúde humana ou à sobrevivência de outros seres vivos.

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São lançados desde poluentes orgânicos, como derivados de petróleo, fenóis e detergentes, derivados de fertilizantes e agrotóxicos e até metais pesados. Estes últimos constituem-se numa classe de destaque dentre os poluentes, tanto pelo grau de periculosidade de alguns dos seus elementos, como é o caso do chumbo, do cromo, do cádmio e do mercúrio, quanto pela sua mobilidade. Após esta breve exposição sobre os processos inerentes à urbanização e à contextualização destes à bacia do Rio das Velhas, fica explícita a necessidade da realização de atividades de avaliação ambiental tendo como intuito quantificar o grau de degradação que existe em determinada área, devido às atividades nela existentes e ainda avaliar as suas limitações ambientais no sentido de acomodar novas atividades.

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Arquivo Projeto Manuelzão.

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Iconografia

Bibliografia

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CHRISTOFOLETTI, A. A Análise da densidade de drenagem e suas implicações geomorfológicas. Geografia, v. 4, n. 8, p.23-42, 1979. ______. Proposta de gestão para desenvolvimento sustentável em microbacias hidrográficas. In: WORSHOP DO PROJETO PIRACEMA, 2., Nazaré Paulista – SP, 1996. Anais... Piracicaba: CENA, 1996. p. 41-44. COLLARES, E. G. Avaliação de alterações em redes de drenagem de microbacias como subsídio ao zoneamento geoambiental de bacias hidrográficas: aplicação na bacia hidrográfica do Rio Capivari – SP. São Carlos, 2000. 2v. Tese (Doutorado) – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. DRUMMOND, J. A. Porque estudar a história ambiental do Brasil? Varia História, Belo Horizonte, n. 26, p. 13-33, 2001. FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. Land and water integration and river basin management. Rome, 1995. 81 p. (FAO Land and Water Bulletins, n. 1). LACERDA, A. F. et al. Diagnóstico ambiental da bacia dos córregos Cacique e Café: município de Ribeirão das Neves – MG. Belo Horizonte, 2004. 1 v. Monografia (Graduação) – Geografia e Meio Ambiente, Centro Universitário Newton Paiva, 2004. PIRES, J. S. R.; SANTOS, J. E. dos. Bacias hidrográficas: interação entre meio ambiente e desenvolvimento. Ciência Hoje, São Paulo, v.19, n. 110, p. 40-45, 1995. SALOMÃO, F. X. T.; IWASA, O. Y. Erosão e a ocupação rural e urbana. In: BITAR, O. Y. (Coord.). Curso de Geologia aplicada ao meio Ambiente. São Paulo: ABGE - IPT. 1995. p. 31-57. SETTI, Arnaldo Augusto. A necessidade do uso sustentável dos recursos hídricos. 2.ed. Brasília: IBAMA, 1996. 344 p.

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Abstract

Rural exodus and the urban and industrial occupation The adoption of a river basin as a territorial unit arose as one of the alternatives to regional environmental management, having its advantages and disadvantages. Amongst the advantages, a river basin’s drainage network can be capable of indicating relations of cause and effect, particularly those which involve a water filled environment. Amongst the disadvantages, there’s the problem with conciliating the interests of people from different regions, because municipal and state boundaries don’t share the river basin’s limits. For us to gain understanding of the processes resulted from urbanization in The Velhas River basin, we should look for clues in the occupation process of the Brazilian territory. As it was once one of the main entrances to what is today the state of Minas Gerais, The Velhas River basin as a whole presents characteristics that confirm its importance as the axis of territorial occupation and urban development. This is even clearer when it is observed that the most populated and industrialized region of Minas Gerais is in The Velhas River basin. In spite of this important factor, there is a dichotomist reality where all the natural variety of species that could sustain the occupation of this river basin in a balanced way is suffering an accelerated degradation process due to unplanned occupation. The theme that is specifically addressed here revolves around urban occupation throughout The Velhas River basin, conditioned mainly because of the area’s economic potential, process which inflicted environmental changes that are now severe problems. Standing out in the history of urban evolution on The Velhas River basin and still remaining as the region’s economic pillars are mining, agriculture and farming and industrial activities, which should have been developed under the guidance of policies that not only contemplated the economy, but also other natural resources.


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