Navegando Rio das Velhas das Minas aos Gerais_VOLUME 2_Estudos Sobre a Bacia_Capítulos 17 ao 32

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VOLUME 2: E STUDOS SOBRE A BACIA HIDROGRÁFICA DO

Belo Horizonte 2005

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Resíduos Apolo Heringer Lisboa

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O esgotamento sanitário: a saúde humana e a qualidade ambiental Léo Heller José Cláudio Junqueira Ribeiro

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Poluição das águas com metais tóxicos: impacto ambiental Maria Adelaide Rabelo Vasconcelos Veado

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Saúde humana e ambiente Antônio Thomaz Gonzaga da Matta Machado


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Produção-consumo e ambiente: uma visão da saúde do trabalhador Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

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A qualidade da água ao longo do rio Zenilde das Graças Guimarães Viola

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Inverterbrados aquáticos como bioindicadores Marcos Callisto José Francisco Gonçalves Jr Pablo Moreno

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Os peixes sob a ótica dos viajantes do passado e do conhecimento atual Carlos Bernardo Mascarenhas Alves Paulo dos Santos Pompeu


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Aves regionais: de Burton aos dias de hoje Marcos Rodrigues Fernando Figueiredo Goulart

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Mamíferos diversidade e representatividade André Hirsch Bárbara Maria de Andrade Costa

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A diversidade da vegetação Maria Rita Scotti Muzzi João Renato Stehmann

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Plantas medicinais regionais Maria das Graças Lins Brandão João Renato Stehmann


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A bacia hidrográfica e a construção de uma nova cidadania Letícia Fernandes M. Diniz Luciano José Alvarenga Luciano Luz Badini Martins

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Os desafios do patrimônio cultural Américo Antunes

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Novos caminhos para o turismo Bernardo Machado Gontijo

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O Velhas e o Velho Chico: irmãos para sempre unidos Marco Antônio Tavares Coelho


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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador Geral do Projeto ManuelzĂŁo


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Introdução

Na criação do Projeto Manuelzão nós declaramos que saúde não é uma questão basicamente médica, mas de qualidade de vida, meio ambiente e de mentalidade cultural e que nas condições históricas do Rio das Velhas os peixes, simbolizando sua biota, poderiam ser considerados importantes indicadores de saúde coletiva nessa bacia hidrográfica. Desta forma introduzíamos um amplo debate sobre saúde, em novos marcos conceituais. Em nossa crítica ao Sistema Único de Saúde — SUS — apontamos que seu limite prático coincide com as limitações conceituais e políticas da Saúde Pública brasileira, que estão bem aquém do texto da Constituição Federal de 1988, conforme se lê no Título VIII, Da Ordem Social, sobretudo nos artigos 196 e 200. A Lei federal 8080 de 19 ⁄ 09 ⁄ 90, em seu artigo 3, diz: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país”. No ensino médico a água é abordada ora como substância química, ora como produto distribuído por empresas de saneamento, ora como diluente dos sais que compõem o meio interno dos seres vivos. Escapando do aprisionamento imposto pelo pensamento disciplinar ou setorial, fizemos a descoberta de outras dimensões que a água poderia assumir, a partir de suas características naturais. Isto foi fundamental para equacionarmos a nossa problemática conceitual visando a um projeto de transformação social. A água assumiu papel de referencial metodológico e eixo de mobilização e de monitoramento. A água, em nossa leitura, passou também a refletir a nossa mentalidade cultural. Elemento sensível, ela está assumindo papel transcendental na superação da crise ambiental e na transformação cultural ensejada por este processo. Em nossa cultura a água dos rios foi convertida em lixeira e esgoto, ironicamente colocada como solução “sanitária”, refletindo o desajuste de nossa cultura e das relações sociais que construímos.

Córrego Santa Terezinha, Alto Vera Cruz, Belo Horizonte. Fotografia: Foca Lisboa.

Páginas seguintes: Fotografia: Cuia Guimarães.

Esgoto e lixo não fazem parte do cardápio do ensino médico no Brasil, mesmo em disciplinas tão afins como bioquímica, parasitologia, saúde coletiva, medicina preventiva, clínica geral de adultos e de crianças. Estranho, mas compreensível. O fundamento das universidades está ainda nas disciplinas, nos departamentos, no ensino compartimentado. Certas conexões importantes ficam esquecidas, ou sem efeito prático, diante da ausência de enunciados conceituais claros do objeto e do objetivo da formação médica, ou das limitações destes enunciados. Nós estamos procurando preencher esta lacuna.

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Saneamento é visto como coisa de engenheiro, embora estes não se considerem trabalhadores da saúde. Já os médicos são considerados profissionais da saúde, atuam no âmbito do ministério da Saúde basicamente com doenças, como setor assistencial. Tal quadro é a explicitação institucional de nossa mentalidade fragmentada. Saúde tem caráter sistêmico, seria função de um Governo da Saúde, de seu planejamento econômico, ouvindo a sociedade. Não se enquadra num setor, seja ministerial, empresarial, técnico, comerciais ou de serviços. Neste sentido a oferta de saúde pelos seguros de assistência médica para venderem seus planos é propaganda enganosa, e é passível de processo judicial.

Comentários interessantes de caráter geral

A gestão dos resíduos sólidos é das abordagens mais complexas que a experiência do Projeto Manuelzão tem encontrado na gestão ambiental. Ela envolve mobilização social, mudança de hábitos pessoais, sociais e de empresas, a gestão integrada, o planejamento governamental, o desenvolvimento tecnológico, e muito mais. Nos sete anos de nossa existência temos estudado as formas de realizar uma eficiente gestão dos resíduos sólidos nos adensamentos urbanos e rurais. Isto traria evidente reflexo na qualidade de nossas águas, vistas, por nós, como indicadoras de qualidade ambiental e seria fator significativo na promoção da saúde. E chegamos a algumas conclusões básicas, que hoje norteiam nossas propostas. Esperamos estar contribuindo para esclarecer este tema de grande relevância social. O lixo permite-nos abordar aspectos culturais comportamentais. Para uns, o caixote velho no quintal não é lixo. Guardam-no como reserva para um uso qualquer e até para venda. Um carro velho, sem motor e rodas, estacionado à porta do casebre, pode passar mensagem positiva aos vizinhos, a esperança mantida da ascensão social: poderá um dia consertar o carro ou vendê-lo ao ferro velho. O mesmo acontece com papéis, garrafas, tijolos. Essa acumulação de usados, em quintais e cômodos de residências, às vezes até por demência, pode também estar associada à idéia de valorização cultural da reciclagem. Quem passou necessidades na vida não se sente bem com o desperdício até de pequenas coisas. O fato da má disposição desses acúmulos criarem habitats e propiciarem a proliferação de vetores de doenças, quando não há cuidados, não é evidente para todos. Nem o que pode ser considerado lixo é unanimidade. Tudo isto precisa ser discutido com a população, envolvendo associações comunitárias ou comissões de quarteirão. A recente campanha de entrega de armas, compradas pelo governo para diminuir o estoque que está fora do controle oficial, mostra que se a sociedade optar pela paz e solidariedade, e um dia chegarmos à dissolução dos

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exércitos, as armas serão lixo ou peças de museus, bem como as fábricas de armas. Quando equipamentos e tecnologias se tornam obsoletos eles viram lixo. Há uma história do lixo. É um erro pensar que reciclagem é coisa nova. Desde as primeiras décadas da história de Belo Horizonte, quando a cidade dispunha de considerável frota de carroças, úteis para quase todo tipo de transporte, o esterco encontrado com abundância nas ruas adubava as hortas e pomares caseiros. Era uma riqueza disputada pelos moleques e revendido de casa em casa para uso na produção de hortaliças. As carroças maiores, puxadas por eqüinos e muares, e as menores, por humanos procuravam de casa em casa jornais velhos, garrafas, vidros, ferros, latas e móveis usados para comprar e revender. Os jornais serviam para embrulhar mercadorias nas feiras e quitandas ou para fabricar outros papéis; garrafas eram reintroduzidas no mercado, através da troca pelo novo produto; vidros e ferros voltavam às respectivas fábricas de transformação; as latas eram muito cobiçadas por funileiros que as transformavam em bules, canecos e funis; móveis eram refeitos e revendidos; os imprestáveis e os infestados por insetos serviam de combustível nas cozinhas. Foram as inovações da indústria e do comércio que romperam com estes traços de tradição cultural de sustentabilidade ambiental. Os promotores desse tipo de progresso não assumiram a responsabilidade pela poluição que geraram, e que oneram os cofres públicos na seqüência. E os governantes não perceberam, a tempo, o que estava acontecendo. São raros os governantes que conseguem resolver ou equacionar os problemas imediatos da população, em detrimento dos seus próprios interesses, e mais ainda, sem perder de vista os interesses futuros da população, mesmo que em detrimento dos seus. Ainda hoje há diversas empresas de coleta para reciclagem em Belo Horizonte, que estão no mercado desde o início do século XX. Elas compram material dos catadores, embora estes não tenham nenhuma regulamentação profissional. Essa coleta representa um grande volume do lixo coletado em Belo Horizonte. Chega a aproximadamente mil toneladas dia. Só mais recentemente, com estímulos à promoção da cidadania desses trabalhadores, surgiram cooperativas, recebendo apoio de ONGs e de órgãos públicos, como mais um componente desta equação socioambiental. Mas, mesmo na época aqui descrita, nem tudo era belo neste horizonte. Relatos históricos dão conta de que na maioria das prefeituras municipais da bacia se atirava deliberadamente o lixo dentro dos rios ou, na ausência de coleta pública, consentiam que a população o fizesse ou o queimasse. Acredita-se, de forma equivocada, que na queima desaparece o plástico, o papel, o couro, a tinta, contrariamente ao que pensava o cidadão Lavoisier, autor de “na

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natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Este homem morreu na guilhotina numa das intrigas políticas que foram comuns na Revolução Francesa de 1789. Estamos respirando uma péssima qualidade de ar, por causas dessas queimas generalizadas de lixo de diversas composições químicas, e pelos gases emitidos pela queima de combustíveis fósseis utilizados pelos veículos, pelas chaminés das fábricas, pela aspersão de agrotóxicos nas plantações ou nas cidades, como no pretenso combate à dengue. As posturas aqui citadas ainda se repetem hoje em praticamente todos os municípios brasileiros. Presenciamos, corriqueiramente, casos de lançamento nos rios de entulho da construção civil, embalagens de toda origem, como de agrotóxicos, de vasilhames plásticos de polietilenos chamados pets, rejeitos de matadouros, pocilgas e granjas, móveis usados e animais mortos. Na Pré-História a humanidade se via freqüentemente diante de suas fezes, cascas de alimentos, ossos e peles de animais e até de cadáveres humanos, como seus primeiros resíduos. O que fazer com eles? Podemos imaginar os incômodos proporcionados por estes materiais com o mau cheiro e vermes pululando por toda parte, os insetos, baratas e ratos atraídos a estas áreas de convívio sob as árvores, pedras e nas cavernas. Claro que um dia os descendentes destes primeiros seres humanos iriam tentar resolver estes problemas, embora estas soluções ainda não atingiram a todos até os dias atuais. Aqui mesmo na bacia do Arrudas, ao final da Avenida dos Andradas, há pessoas vivendo de forma parecida com o descrito acima, entre a estrada de Sabará e o rio lá em baixo. As fezes são um tipo de resíduo sólido. Depois das fossas simples, vieram as fossas mais sofisticadas com separação de sólidos e líquidos, suspiros etc. Boas soluções. Melhor que coletar e lançar esgotos nos rios sem prévio tratamento. As descargas dos vasos sanitários tornam as fezes efluentes líquidos aumentando desnecessariamente a dimensão da poluição das águas, face ao volume exagerado de água utilizado nas mesmas. Os cadáveres humanos são resíduos sólidos orgânicos e os enterros uma ótima solução sanitária encontrada nas mais diversas culturas desde tempos imemoriais. É um procedimento de grande importância antropológica, um ritual diferencial dos humanos em relação aos demais animais. Mais tarde, depositar ricos e pobres num mesmo lugar e em condições semelhantes foi uma evolução numa sociedade com diferenças sociais. Porém em muitas regiões os túmulos se tornaram monumentos e as diferenças de categorias sociais permaneceram visíveis. A producão das múmias estabeleceu novo ritual e enriquece hoje o acervo dos museus. Elas permitiram o diagnóstico da esquistossomose nos antigos egípcios, pois foram encontrados ovos do Schistosoma incrustados nas suas paredes intestinais anais. A maior vítima deste procedimento nos tempos modernos foi um comunista, que não merecia este destino:

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Vladmir Lênin, líder da Revolução Bolchevique. Seus inimigos no partido comunista, liderados por Stálin, querendo usar seu prestígio no processo de mistificação do povo o transformaram numa múmia, exposta a visitação pública e turística, para troça da burguesia e dos socialistas independentes de todo o mundo. Coube ao decadente Yeltsin o papel de retirá-lo do sarcófago e enterrá-lo, restabelecendo em condições humilhantes para os comunistas a dignidade do seu líder. Diversas doenças parasitárias e infecto-contagiosas estão associadas aos resíduos orgânicos mal dispostos e aos acúmulos de água impróprios, gerando condições favoráveis à disseminação de doenças. Interessante que a ausência ou presença de certas condições sanitárias nas primeiras comunidades, as inevitáveis comparações entre estas condições e epidemias surgidas numa ou noutra comunidade, devem ter provocado interpretações médicas e sanitárias sobre o sistema de causalidade da saúde e das doenças. Hipócrates tendia a associar diversas doenças ao meio ambiente. No seu tratado Dos Ares, Das Águas, e Dos Lugares, e noutro separado Dos Ventos, ele levanta as suas hipóteses. Independentemente de terem se confirmado ou não algumas delas, o importante é que sua inteligência fazia associação entre meteorologia, clima e geografia, preocupando-se com ventos, climas, estações, águas e ares. O lançamento dos restos dos banquetes ancestrais nos rios pode ter se tornado um hábito sanitário eficaz num certo estágio do desenvolvimento humano e reconhecido como tal pela comunidade. As modernas empresas de saneamento não inventaram nada de novo ao fazerem seus lançamentos não tratados nos cursos d’água.

A situação na bacia do Rio das Velhas e as propostas do Projeto Manuelzão

Os lixões ainda existentes nas sedes dos municípios da bacia do Rio das Velhas representaram um avanço cultural sobre a prática anterior de lançamento direto nos cursos d’água. No entanto, permaneceram às margens de córregos e rios, de forma ameaçadora. Basta uma enchentezinha ou um empurrãozinho com pá mecânica o lixo segue rio abaixo como antigamente, para os municípios a jusante ao lado dos esgotos domésticos, industriais, hospitalares, entulhos da construção. Nos pequenos aglomerados humanos a composição do lixo sendo basicamente de orgânicos, os rios maiores conseguem diluir e depurar o que neles é lançado, através das bactérias e da oxigenação. Mas o aumento da população e a concentração demográfica acelerada

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que aconteceu no último século, e a produção industrial que lhe deu a grande dimensão, alteraram a composição e volume do lixo e superaram em muito a capacidade de autodepuração das águas e do solo. Paralelamente crescia o volume dos esgotos sanitários com o desenvolvimento da moderna rede de abastecimento de água e a prática do lançamento de esgotos diretamente nos cursos d’água. Assim foram produzidos os nossos atuais rios, que não permitem mais os usos tradicionais. Ao lado do crescimento e adensamento populacional, da miséria social e dos lixões, famílias inteiras apareceram catando lixo, expondo-se ao risco de adoecer e mostrando um quadro vergonhoso para todos nós. Organizações civis e de governo aproximaram-se de parte desses catadores e tiveram sucesso em apoiá-los e incentivá-los na organização de cooperativas para a coleta seletiva, retirando-os dos lixões. Ruim o lixão, pior para eles é sair do lixão sem alternativa de ganhar o pão. Esta realidade apontou para a vinculação da gestão dos resíduos sólidos com a geração de emprego e renda, num arcabouço mais amplo de resgate dessas famílias e indivíduos da exclusão social. Estas iniciativas estão no sentido contrário ao da concessão de serviços a grandes empresas de coleta e enterro de lixo, que em diversos países tem gerado disputas violentas entre grupos, corrupção política e resistência a uma gestão de resíduos sólidos que seja ambientalmente aceitável e integrada. Por exemplo, estabelecendo uma política que diminua o volume de resíduos, que modifique os hábitos de consumo, que amplie a compostagem e a reciclagem gerando emprego, renda e reaproveitamento de energia e matériaprima. A não ser que essas empresas resolvam investir de outra forma, capacitando-se para exercer um novo papel numa nova sociedade. É o que propõe o Projeto Manuelzão. Mas não basta preocupar-se com a cidadania dos catadores e das cooperativas, é preciso resolver na boa forma a questão do destino final dos resíduos sólidos. E isto está associado às formas de coleta do lixo. Hoje, em Belo Horizonte, apesar dos progressos evidentes, a coleta seletiva tem sido sobretudo educativa e um acúmulo de experiências. Não atinge volume significativo do lixo total coletado. Após o auge dos lixões e o conseqüente desenvolvimento de intensa crítica desta solução precária, surgiram propostas diversas, como as usinas para a reciclagem e compostagem; os aterros controlado e sanitário; a biorremediação. Os órgãos ambientais do governo passaram a aprazar o fim dos lixões, obrigando as prefeituras a buscar consultores, projetos e recursos para conseguir obter o licenciamento para a construção de opções. A escolha da tecnologia depende de fatores diversos, não é receita única. Os aterros controlado e sanitário representam uma evolução sobre o lixão, com cuidados geológicos básicos na escolha do local e na definição das condições, controle do chorume, possível confecção de valas, cobertura do lixo com terra,

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controlando a multiplicação de vetores animais de doenças, cerca no local para evitar afluxo de pessoas e outros animais. Isto possibilita uma melhoria das condições sanitárias, com maior controle sobre o impacto ambiental negativo. Mas as pessoas que viviam catando lixo e vendendo-o, se sentem ameaçadas em sua sobrevivência e resistem a deixar seu trabalho, a não ser que lhes sejam apresentadas opções, como as cooperativas de catadores, emprego em empresas de coleta, e outras soluções. O aterro sanitário é projetado em bases técnicas que superam o aterro controlado, seguindo parâmetros geológicos e de engenharia civil e sanitária mais complexos, bem como exigências maiores da legislação ambiental. Ligado à temática da Saúde Coletiva o Projeto Manuelzão estava empenhado na definição do seu marco teórico e de uma proposta prática para esta disciplina na faculdade de Medicina da UFMG. Procuramos, inicialmente, aprender dos gestores dos órgãos governamentais e dos ambientalistas mais experientes para pouco a pouco darmos nossa contribuição com identidade própria. Apesar da boa apresentação dos aterros sanitários por parte de muitos técnicos e consultores, desconfiamos desde o início da sua suposta excelência, haja vista que propõe um enterro de primeira classe de matériaprima e energia. Casualmente, conhecemos nesta época um engenheiro civil sanitarista diplomado na UFMG, que trabalhou durante anos no nordeste e na Amazônia, com a Fundação SESP, mas acabou fixandose em São Paulo. Neste contexto manteve contato estreito com a escola sanitária norte-americana. Refiro-me ao engenheiro Carlos Rebelo, que perto dos oitenta anos, simpatizando com nossas propostas, deixou São Paulo e veio trabalhar com o Projeto Manuelzão, com vencimentos modestos que complementavam sua aposentadoria. Firme em suas convicções, com excelente formação intelectual, dominando a teoria de biodigestores, de estações de tratamento de água e esgotos, este sanitarista propunha a construção de estações de tratamento de esgotos simplificadas, fazendo projetos para o atendimento de demandas de povoados e sedes de pequenos municípios, através do Grupo Técnico do Projeto Manuelzão. Propunha também o tratamento do lixo das grandes cidades priorizando a compostagem e a reciclagem, fazendo crítica contundente aos enterramentos indiscriminados de lixo, sobretudo do aterro sanitário. Seus artigos e palestras, com ponderações que em sua maior parte nos pareciam bem aceitáveis, colocaram-nos diante de um dilema: como nos posicionarmos em relação às normas governamentais de licenciamento e de gestão dos resíduos sólidos, que distinguiam a política dos aterros, ao lado de renomados consultores? Já havíamos enfrentado situação semelhante quando nos posicionamos contrários à política de canalização de córregos em Belo

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Horizonte no primeiro trimestre de 1998, defendendo córregos e rios em leitos naturais nas áreas urbanas, com as margens conservadas na condição de parques recebendo intervenções de paisagismo e engenharia ambiental. O Projeto Manuelzão propôs virar esta página publicando artigos na imprensa, promovendo debates, procurando conversar com o prefeito Célio de Castro. Aí surgiu o Drenurbs, pois a prefeitura de Belo Horizonte já vinha discutindo opções para as canalizações graças à sensibilidade do prefeito Célio de Castro. Este resultado estimulou o Projeto Manuelzão a promover uma discussão aprofundada da questão da gestão do lixo, a partir de 1999. Inicialmente expondo nossas próprias dúvidas e tímidas sugestões, colocando no papel as primeiras idéias, promovendo debates. Mais tarde, trouxemos a Belo Horizonte estudiosos deste tema como Washington Novais e Cícero Bley. Aprofundamos nossos contatos com técnicos da atual secretaria Municipal de Limpeza Urbana (SMLU) da Prefeitura de Belo Horizonte e da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), ligada à secretaria de Estado do Meio Ambiente, buscando compreender a questão com mais profundidade, aprender com sua história e então, definir uma posição para orientar a mobilização social e os comitês de bacia dos afluentes e sub-afluentes do Velhas, organizados pelo Projeto Manuelzão. Com o esforço de alguns anos chegamos a algumas conclusões suficientemente claras, dentro da lógica que a seguir será explicitada. Realmente, é um contra-senso ambiental enterrar energia e matéria-prima em aterros sanitários. Os aterros sanitários são muito caros tanto na aquisição do terreno, em áreas cada vez mais difíceis de serem encontradas nos grandes centros, e cada vez mais distantes, o que encarece o custo do transporte e cria problemas de tráfego. São também caros na construção, na manutenção e na operação. E ainda mais caros, do ponto de vista da sustentabilidade ambiental. Aterros muito grandes e centralizados geram diversos problemas, mas é o modelo em voga. As parcerias com o setor privado tendem a colocar a gestão na mão de grandes empresas interessadas na coleta da maior tonelagem possível de lixo. A tendência ambientalmente aceita hoje é priorizar, na gestão dos resíduos sólidos, a diminuição do volume e peso do lixo produzido pela sociedade, indo assim na contra-mão do interesse atual dessas empresas. Busca-se também a interação maior com projetos sociais de geração de renda e empregos, fortalecimento de cooperativas de catadores, desenvolvimento de tecnologias de compostagem e reciclagem, abertura de espaço para diversas empresas locais de menor porte. Além do custo muito elevado a população rejeita a idéia de ter um aterro sanitário moderno no seu bairro, tanto como paisagem de suas janelas quanto pelo afluxo, em suas portas, de veículos de grande porte, trafegando noite e dia. Os aterros produzem grandes

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volumes de gases e de chorume (líquido de cor escura), resultantes da fermentação da matéria orgânica, sobretudo dos restos de alimentos. Os gases poluem os ares, mesmo quando queimados, e o chorume é umas duzentas vezes mais poluente que o esgoto doméstico, pela demanda bioquímica de oxigênio (DBO) ser muito superior. O chorume é uma ameaça concreta às águas de lagoas, rios e reservas subterrâneas, e não tem sido fácil tratá-lo. É hoje um grande problema em Belo Horizonte que possui um aterro em fim de existência. Com todo este quadro de inconvenientes ambientais, envolvendo questões políticas, sociais e econômicas, já seria hora de buscarmos alternativa melhor. Propomos que no lugar do clássico aterro sanitário máximo, onde se lança e enterra um volume absurdamente grande e crescente de todo tipo de lixo, se adote a concepção do aterro sanitário residual mínimo com a meta de compostagem e de reciclagem máximas num cronograma bem definido de implantação que precisa ser compreendido, aprovado e fiscalizado pela sociedade. A compostagem bem promovida diminui significativamente a produção de chorume e permite transformar lixo orgânico em nutrientes de solo para a jardinagem e agricultura. A humificação pode ser por aerobiose, através de bactérias que decompõem a matéria orgânica, e que são capazes de maior desempenho conforme uma maior abundância de ar à sua disposição, não produzindo mau cheiro. O mau cheiro vem de processos anaeróbios, quando a bactéria anaeróbia retira o oxigênio da matéria orgânica que decompõe e libera gases nesta decomposição. O processo anaeróbio pode ser utilizado, mas sob controle maior. O humo ou húmus tem cor escura e o processo é tão completo que não permite identificar a origem das substâncias utilizadas. Ele tem composição coloidal sendo por isto da maior importância para o solo, visto conservar bastante água e ser excelente nutriente para os vegetais. Ou seja, a compostagem, além de evitar a produção de grandes volumes de chorume, vai beneficiar grandemente o solo e gerar empregos e renda. Nos povoados, distritos e pequenas cidades a matéria orgânica doméstica ainda não deteriorada tem sido aproveitada na alimentação de animais domésticos, sobretudo porcos e galinhas, que os transformam em carne e ovos gerando e distribuindo renda. É uma reciclagem espetacular, de alta tecnologia natural, embora, por razões sanitárias, haja veterinários contrários a essa solução, priorizando a compostagem para enriquecimento do solo. Os cuidados sanitários exigidos nestas atividades e já incorporados à nossa cultura são possíveis de serem atendidos através da orientação técnica de órgãos de extensão. O poder público tem a obrigação de difundir e apoiar estas iniciativas simples e de grande relevância social. Num povoado, distrito ou pequeno município uma coleta local porta a porta, com separação binária (secos e molhados) ou ternária (separando os rejeitos), com

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triagem para reciclagem e compostagem na própria região, evitaria a ida do caminhão duas vezes por semana, podendo ir uma vez por mês. Um carroceiro treinado poderia fazer isto sozinho, ou com um ajudante, desde que com a colaboração e compreensão da população e um local para realizar seu trabalho. As campanhas da coleta seletiva criaram a consciência da importância da reciclagem. Porém foram pouco operacionais em termos do volume coletado e de sua adoção pela sociedade. Muito do que foi selecionado nas residências, escolas e empresas vai parar no aterro. Esta observação nos impulsionou a formular uma proposta que consideramos fundamental na implementação de uma eficiente gestão urbana dos resíduos sólidos: a necessidade da coleta binária ou ternária, porta a porta. Isso simplifica e possibilita a cooperação dos moradores com o processo que torna viável a compostagem e a reciclagem. A coleta ternária significa solicitar a separação domiciliar em apenas três blocos: secos, molhados e rejeitos. Secos são latas, plásticos, papéis, papelões, polietilenos (PETS), vidros, ferros. Molhados são restos de comida e vegetais, que são matérias orgânicas que fermentam, produzindo líquidos poluentes e gases cujo cheiro incomodam. Quando misturados aos outros componentes do lixo, a fermentação e o chorume transmitem-lhes mau cheiro e os

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molham, prejudicando a manipulação, o armazenamento e a comercialização do conjunto. O terceiro tipo, os rejeitos, de difícil reciclagem ou inviáveis no momento. São exemplos as fraldas descartáveis, medicamentos, curativos, pilhas e baterias, papel higiênico, isopor molhado com produtos alimentícios e outros ítens a serem analisados. As pilhas, baterias, lâmpadas e outros ítens do gênero já estão sendo reciclados, mas como possuem líquidos ácidos e metais pesados devem merecer uma definição prática particular, e abertura para outras mudanças. A coleta ternária é de fácil assimilação pela população, simplifica a participação da sociedade e tem importância na comercialização e na coleta porta a porta. A triagem completa é feita após a coleta porta a porta, em locais adequados. Os resíduos molhados devem ser recolhidos de preferência diariamente, ou dia sim dia não, antes que a matéria orgânica se deteriore, enquanto os resíduos secos podem esperar mais dias, apenas incomodando pelo volume, mas sem mau cheiro e sem líquidos produzidos pela fermentação. O rejeito, que se constitui na terceira opção, deve ser recolhido e separado nos mesmos dias que o tipo molhado, para serem enterrados ou terem algum nível de triagem. Isso abre a possibilidade de uma racionalização na coleta, com diminuição dos custos. Uma vez coletados na porta pelos catadores cooperados, por empresas ou pela prefeitura, em vasilhames, sacos plásticos ou containers com alguma marcação seja de cor ou ícones, que os identifiquem se secos, molhados ou rejeitos, esses conteúdos serão direcionados a locais distintos para triagem e tratamento. O molhados precisam ser rapidamente levados para os centros de compostagem, em locais, condições e sob tecnologias aprovadas por órgãos técnicos das prefeituras, enquanto que os secos podem passar por triagem em qualquer bairro da cidade sendo classificados e armazenados para atingir o peso ou volume que torne sua comercialização exeqüível. Os rejeitos são em menor volume e sua coleta pode ir direto para os aterros, desde que aí se realize uma pequena triagem para separar pilhas, baterias, lâmpadas e eventualmente outros, que poderão ser reciclados. Os pequenos problemas serão resolvidos no processo. A reciclagem deve merecer atenção especial do governo e dos empresários, pois vai gerar desenvolvimento tecnológico, reaproveitamento de matéria–prima, economia de energia, além de empregos e renda. Vai diminuir a pressão sobre os recursos naturais, poupando o meio ambiente. O argumento de que coletando tudo junto e enterrando fica mais barato é um argumento simplificador e falso que não elabora a questão dos custos ambientais presentes e futuros, a rejeição social aos aterros, nem a geração de empregos e renda. Além dos resíduos domésticos e de serviços de “saúde” (assistenciais), há o entulho da construção civil, outros tipos de resíduos industriais e uma série de ítens especiais como pneus, carcaças da indústria de veículos, computadores, eletrodomésticos, que merecem

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Arquivo Projeto Manuelzão.

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tratamento especial não sendo objeto específico deste capítulo. De forma genérica, subsidiando uma futura proposta política, julgamos que essas indústrias são co-responsáveis pelo destino da parafernália que geraram. Procedimentos diferenciados são definidos segundo a natureza dos resíduos. Temos os resíduos domésticos e industriais, da produção agrícola e animal, o lixo militar e dos postos de abastecimento de combustíveis e de lubrificação, o entulho da construção civil, o lixo espacial, as múltiplas atividades laboratoriais, os diversos níveis de assistência aos enfermos, todos os descartes especiais químicos, físicos e biológicos, enfim, resíduos e rejeitos de todas as atividades possíveis de imaginar. Eles podem ser ou não reciclados conforme as possibilidades tecnológicas, interesse e consciência da sociedade, custos. Não podemos neste espaço analisar os diversos aspectos de cada setor aqui citado. Mas cada um merece um tratamento específico, embora haja aspectos gerais da gestão e gerenciamento dos resíduos sólidos que são comuns ao conjunto da questão. Um exemplo de complexidade é o chamado popularmente de lixo hospitalar. Os resíduos de serviço de saúde — RSS constituem-se de equipamentos descartáveis utilizados em procedimentos cirúrgicos, partos, procedimentos propedêuticos invasivos ou não, tecidos retirados de pacientes, sangue, coleções purulentas, insumos como sangue e derivados, medicamentos vencidos, material usado em curativos, seringas, material perfuro-cortante, bisturis, fios, agulhas, filmes de raios X, peças de equipamentos. Entre esses equipamentos temos até material nuclear, que foi encontrado numa oficina de ferro velho e ensejou grave acidente em Goiânia há alguns anos, com repercussão internacional. Mas nos hospitais, postos e consultórios há resíduos domésticos, como restos de alimentos, descartes de calçados, roupas, papéis, vidros, plásticos, objetos metálicos, objetos e equipamentos pessoais, móveis, pneus, pilhas, baterias, componentes das instalações do imóvel. É como o lixo de nossas residências. Aliás, em nossas residências, há cada vez mais “resíduo hospitalar”, como curativos com restos de tecidos, medicamentos vencidos, bolsas coletoras usadas no pós-cirúrgico, soro e equipamentos de perfusão intravenosa, instrumentos perfuro-cortantes, seringas, luvas, material de prótese e órtese, e outras possibilidades. Assim, há um resíduo hospitalar no resíduo doméstico e um componente doméstico nos hospitais e outras unidades assistenciais. O que não se recomenda é misturar o material hospitalar utilizado em procedimentos médicos, em contato com tecidos e secreções, já mencionados, com os resíduos comuns encontrados nas residências, escritórios, comércio e outros locais. Cuidado análogo deve haver

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nas residências, locais de comércio, restaurantes, e outros. Afirmamos isto, não por temermos a presença de lixo hospitalar nos aterros controlados ou sanitários. A terra come até gente ruim. Não vemos problemas incontornáveis, desde que haja normas e outros pequenos cuidados no gerenciamento. Mesmo porque não tem sentido misturar todos os tipos de lixo, numa coleta unificada grosseira, e enterrar tudo num aterro ou num lixão. Até mesmo para evitar acidentes na coleta, transporte e manipulações no processo, visto ser nosso objetivo ampliar e intensificar o processo de compostagem e reciclagem. Vidro quebrado no lixo doméstico tem causado acidentes freqüentes e de certa gravidade. Estamos aqui trabalhando conceitos, não discutindo legislação. Caso haja incompatibilidades iremos postular mudanças nas leis. Freqüentemente, elas têm mais a ver com interesses e lobbies que com a ciência e o raciocínio ambiental. Os resíduos industrial e da produção agrícola e animal, a exemplo dos hospitalares e domésticos, precisam respeitar normas específicas, segregando materiais e insumos segundo sua composição química, potencial poluidor e riscos de acidentes. Mas o princípio é sempre o mesmo: reduzir o volume da produção do lixo; aumentar o processo da compostagem e reciclagem; reduzir o volume a ser enterrado; controlar com rigor a comercialização de produtos perigosos à saúde; preparar as pessoas que lidam com o gerenciamento desses resíduos. Caso os proprietários e os gerentes entendessem com mais profundidade os conceitos da gestão dos resíduos, através de cursos, vídeos e leituras, os desatinos seriam bem menores, mesmo sem nenhuma fiscalização e leis. A burocracia é um problema não a solução.

Projeto saneamento e cidadania na bacia do Rio das Velhas— parceria entre Projeto Manuelzão e Feam

Os dados sobre o saneamento ambiental da região demonstram que nos últimos 30 anos ocorreram modificações importantes nos índices relativos ao abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, o que se refletiu na melhoria dos indicadores tradicionais de saúde da população. Em parceria com a Feam, o Projeto Manuelzão vem, há dois anos, integrando o Projeto Lixo & Cidadania na Bacia do Rio das Velhas. Em consonância com o Programa Nacional Lixo e Cidadania, gerado a partir de parceria com a Unicef na campanha “Criança no lixo nunca mais”, nosso trabalho procurou prestar assessoria técnica para adequação da disposição final em 46 municípios da bacia do Rio das Velhas, no sentido da erradicação dos lixões e de minimizar os impactos ambientais no curto prazo. Nosso trabalho de diagnóstico de todos os lixões gerou dados importantes que aqui publicamos. Dos cinco municípios inicialmente excluídos da bacia, três mantêm os lixões fora do território da bacia, e dois dispõem de

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aterro sanitário. Atualmente trabalhamos a proposta Saneamento e Cidadania nos 51 municípios da bacia do Rio das Velhas. A Deliberação Normativa 52, de dezembro de 2001 foi relevante na implantação da parceria Feam e Projeto Manuelzão. Ela convocou todos os municípios mineiros para fazerem os licenciamentos de seus sistemas de disposição final do lixo, sendo que para os municípios com menos de 50 mil habitantes foi determinado que minimizassem os impactos ambientais no curto prazo. Os resultados do trabalho conjunto, envolvendo o Projeto Manuelzão, os comitês Manuelzão de toda a bacia e sobretudo a competente equipe técnica da Feam (a quem atribuímos uma grande parcela do mérito alcançado nos resultados do trabalho) pôde ser expresso em planilhas. A atual diretora de Infra–Estrutura e Monitoramento Alice Beatriz Pereira Soares, além de dar continuidade ao trabalho, definiu com o secretário de Estado José Carlos Carvalho novas diretrizes para esta diretoria, dando novo impulso ao trabalho em parceria com o Projeto Manuelzão. A equipe da Feam foi composta por: Ludmila Alves Rodrigues — Engenheira sanitarista — Feam ⁄ Gerente da Disan (até 07 ⁄ 2003); Denise Marília Bruschi — Engenheira sanitarista — Feam ⁄ Gerente da Disan (a partir de 08 ⁄ 2003); Darling Demillus Silva — Engenheira sanitarista; Jane Aparecida de Paula Pimenta — Bióloga; Gilvan Brunetti Aguiar — Geólogo; Cristiano Francisco de Oliveira — Engenheiro sanitarista (até 11 ⁄ 2002); Breno Machado Gomes de Oliveira — Estagiário. Assim, as planilhas a seguir fornecem um panorama completo dos resultados deste trabalho que durou dois anos.

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PROJETO LIXO & CIDADANIA NA BACIA DO RIO DAS VELHAS Informações dos serviços de limpeza urbana dos municípios envolvidos no projeto INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

SUB-BACIA

POP. URBANA

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE RESÍDUOS/DIA URBANA (ESTIMADA) ATENDIDA

ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA MÃO-DE-OBRA

- FREQÜÊNCIA / FORMA

EQUIPAMENTOS CONVENCIONAL

RSS

1

Araçaí

Médio

1760

100%

1 ton

Setor de Transporte

2 encarregados 6 coletores 2 motoristas

1 caminhão basculante 1 trator c/ carretinha

2 por semana

conjunta

2

Augusto de Lima

Baixo

2458

80%

1 ton

Secretaria de Obras

3 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante 1 trator c/ carretinha

3 por semana

Não são coletados

3

Baldim

Médio

4810

80%

2 ton

Secretaria de Obras

8 coletores 2 motoristas

2 tratores com carretinha

diária

Não são coletados

4

Buenópolis

Baixo

7414

100%

3 ton

Depto de Obras e Limpeza Pública

2 por semana

diferenciada

2 caminhões 1 encarregado compactadores 6 coletores 1 caminhão 3 por semana 2 motoristas carroceria 1 caminhonete

diferenciada

2 encarregados 1 caminhão 6 coletores basculante 2 motoristas 1 trator com 1 tratorista carretinha

5

Caeté

Médio

31651

90%

21,6 ton

Secretaria de Obras e Serviços Públicos

6

Capim Branco

Médio

7128

95%

3 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 6 coletores 2 motoristas

1 caminhão basculante

2 por semana

diferenciada

7

Conceição do Mato Dentro

Médio

10590

100%

5 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 3 coletores 1 motorista

1 caminhão carroceria

diária região central alternada bairros

conjunta

8

Confins

Médio

3076

100%

1,5 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 2 coletores 1 motorista

1 caminhão compactador

diária

diferenciada

9

Congonhas do Norte

Médio

2230

90%

1 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 5 coletores 1 motoristas

1 caminhão compactador

2 por semana

diferenciada

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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO DEPÓSITO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO FÍSICOS

FINAL EM PROCESSO

OPERACIONAIS

DE LICENCIAMENTO

Operação controlada

Gupo Bambuí. Latossolo de cor avermelhado, ( Unidade de Cobertura ) capeando rochas tipo metassiltito. Local plano próximo à voçoroca. Recomendável outra área.

Área cercada, resíduos em vala, recobrimento sistemático, resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala.

-

Operação controlada

Grupo Bambuí. Unidade de cobertura com solo argilo- arenoso marrom avermelhado sobreposto a rochas tipo metapelitos. Morfologia ondulada. Alto de encosta suave em área de domínio da estrada vicinal. Recomendável outra área.

Lixo disposto em vala e recoberto cerca de 3 vezes por semana. Resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala no Posto de Saúde.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. Morfologia ondulada Predomina a unidade de metassiltito, com solo fino argiloso de cor amarelo claro. Depósito de lixo no topo da encosta em local divisor de águas e na faixa de domínio da estrada vicinal. Necessidade de outra área.

Área sem controle na entrada, vala operando inadequadamente, presença de catadores. Resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala no Centro de Saúde.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí - Ocorrem rochas tipo metassiltitos e argilitos. Local do Depósito situado em encosta suave com baixa declividade que converge para o Córrego das Pedras a 500 metros de distância.

Resíduos em vala com recobrimento a cada 4 dias, abertura de vala para os RSS, aquisição de EPIs.

-

Sem melhorias

Grupo Nova Lima. Ocorrem rochas xistosas Valas abertas no depósito com lixo, restos de alteradas, argilosas, tipo clorita xisto de cor abatedouro, RSS expostos e co-dispostos com lixo arroxeada, com solo pouco desenvolvido. Encosta doméstico. Presença de tratores e 2 catadores. de média declividade, e depósito próximo a cabeceiras de drenagens. Necessidade de outra área.

Utiliza o depósito de Matozinhos

Problemas na operação

Complexo Gouveia - Embasamento Granito Gnáissico. Rocha totalmente alterada com solo silto-arenoso de cor rosa com mais de 10 metros de espessura. Depósito de lixo em área de voçoroca, próxima ao córrego. Necessidade de outra área.

Lixo exposto com sinais de queima. Presença de 1 retroescavadeira, vala para entulho. Trator de esteira que opera no local com problemas mecânicos. Disposição conjunta de resíduos dos serviços de saúde no depósito de lixo.

Utiliza o depósito de Vespasiano

Problemas na operação

Complexo Gouveia - Embasamento Granito Gnáissico. Morfologia ondulada. Local no topo de encosta com baixa declividade . Latossolo de cor marrom e /ou avermelhado, com perfil de solo bem desenvolvido. Depósito em área de domínio da estrada. Necessidade de outra área.

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Área cercada, lixo em vala sem recobrimento e queimado. Presença de fossa com lixo misturado e exposto. Início da recuperação da antiga área. Disposição em vala na específica no depósito.

-

Licença de Prévia concedida para Aterro Sanitário e Usina de Triagem e Compostagem

-

-

-


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

10

11

12

Cordisburgo

Corinto

Curvelo

SUB-BACIA

POP. URBANA

Médio

5687

Baixo

Médio

21422

58697

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE URBANA RESÍDUOS/DIA (ESTIMADA) ATENDIDA

80%

80%

90%

ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA - FREQÜÊNCIA / FORMA MÃO-DE-OBRA

EQUIPAMENTOS CONVENCIONAL

RSS

3 por semana

Não são coletados

diária área central alternada bairros

diferenciada

3 ton

Secretaria 1 encarregado de 3 coletores Administração 1 motorista

10 ton

Secretaria 1 encarregado 1 compactador de 13 coletores 3 tratores com Administração 4 motoristas carretinha

42 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 16 coletores e 4 motoristas

3 compactadores 2 carroceria 1 caminhontete

diária área central alternada bairros

diferenciada

1 encarregado 3 coletores 1 motorista

1 basculante 1 trator com carretinha

diária área central alternada bairros

diferenciada

1 trator com carretinha

13

Datas

Médio

2619

100%

1,5 ton

Secretaria de Obras

14

Funilândia

Médio

1592

100%

1 ton

Depto de Obras e Transporte

1 encarregado 3 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante

2 por semana

diferenciada

1 encarregado 3 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante

diária área central alternada bairros

coleta conjunta

4 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante

2 por semana

Não são coletados

diária área central alternada bairros

diferenciada

15

Gouveia

Baixo

7731

100%

5 ton

Secretaria de Obras

16

Inimutaba

Médio

4082

100%

2 ton

Departamento de Obras

21 ton

Secretaria de Meio Ambiente

17

Itabirito

Alto

35022

100%

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4 compacta1 encarregado, dores 12 coletores 1 carroceria 6 motoristas 4 basculantes 1 caminhonete


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO DEPÓSITO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO FÍSICOS

FINAL EM PROCESSO

OPERACIONAIS

DE LICENCIAMENTO

Operação controlada

Grupo Bambuí. Local em topo de encosta. Rocha tipo metapelito alterado de cor amarelo claro, de grã fina. Solo pouco desenvolvido silto-argiloso. Área possui condições favoráveis.

Lixo em vala, recoberto semanalmente. Lixo acumulado próximo à vala. Outra vala existente deverá ser aprofundada. Resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala no Posto de Saúde.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. Morfologia ondulada, com encostas suaves. Terreno plano, sub-horizontal e solo argilo-arenoso de cor avermelhada. Substrato de metapelito. Área possui condições favoráveis.

Lixo disposto em vala com recobrimento sistemático. Área limpa e recuperada. Área aberta, indícios de catação no local. Presença de vala para os resíduos dos serviços de saúde.

-

Operação controlada

Grupo Bambuí. Relevo ondulado com encostas longas e retilíneas de baixa declividade. Local Praticamente todo o lixo foi aterrado em em topo de encosta, e solo residual de cor bege, plataforma e recoberto. Recobrimento muito fino, sobreposto pela unidade de cobertura sistemático. Presença de trator de esteiras. mais arenosa em substrato de metapelito. Área possui condições favoráveis.

Problemas na operação

Supergrupo Espinhaço. Local em alto de encosta suave em terreno com baixa declividade. Faixa de micaxisto esverdeado e solo esbranquiçado siltoso. Área possui condições favoráveis.

A antiga área foi desativada. Na nova área há controle na entrada, o lixo está sendo disposto em vala sem recobrimento sistemático. Está em execução a vala para a disposição dos resíduos dos serviços de saúde.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. Morfologia ondulada e área em meia encosta com declividade média. Substrato de metapelito sobreposto a rochas calcárias, com solo silto-argiloso de cor amarelada. Recomendase o monitoramento das águas subterrâneas.

Área cercada, porém sem controle na entrada, vala com lixo espalhado e queimado, entulho e capina. Recicláveis selecionados indicando catação no local. Antiga área desativada e recuperada. Os resíduos dos serviços de saúde são dispostos no Aterro em Sete Lagoas.

-

Sem melhorias

Embasamento Granítico / Supergrupo Espinhaço. Área no topo de morro, no divisor de águas próxima a uma cabeceira de drenagem com fluxo da água em direção à cidade. Rocha xistosa fina e solo argilo-siltoso de cor marrom. Processos de migração de resíduos encosta abaixo na direção da drenagem. Recomendável a mudança do local de disposição.

Lixo continua espalhado e exposto. A vala que havia sido aberta não foi utilizada.A área não foi cercada. Presença de catadores.

-

Grupo Bambuí. Morfologia ondulada e área em meia encosta com gradiente uniforme e baixa declividade. Solo pouco desenvolvido, siltoso e substrato de metapelito alterado. A área possui condições favoráveis.

Área cercada, porém sem controle na entrada. Resíduos dispostos inadequadamente na vala com sinais de queima. Não há recobrimento há cerca de 40 dias. A drenagem pluvial na área é deficiente.

-

Grupo Nova Lima. A área situa-se na cumeada de um morro, local de divisor de águas. Ocupa o topo e o flanco norte da vertente, com declividade média a alta, próxima à drenagem. Ocorre filito arroxeado muito alterado com mergulho subvertical. Deve-se fazer monitoramento geotécnico e das águas superficiais e subterrâneas do depósito.

Foram reiniciadas as obras do aterro, como: instalação da balança, drenagem pluvial nas vias de acesso, manta e canaletas em uma das lagoas. Presença de 1 trator de esteiras e 12 catadores no local.

Problemas na operação

Aterro Sanitário em Obras

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Licença Prévia para Aterro Sanitário em análise

Licença de Instalação concedida para Aterro Sanitário e Usina de Compostagem e Triagem de Lixo


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

SUB-BACIA

POP. URBANA

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE URBANA RESÍDUOS/DIA (ESTIMADA) ATENDIDA

ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA - FREQÜÊNCIA / FORMA MÃO-DE-OBRA

EQUIPAMENTOS CONVENCIONAL

RSS

4 coletores 2 motoristas

2 caminhões carrocerias

diária área central alternada bairros

coleta conjunta

18

Jaboticatubas

Médio

7166

100%

4 ton

Secretaria de Obras

19

Jequitibá

Médio

1634

100%

0,8 ton

Gabinete do Prefeito

2 coletores 1 motorista

1 trator com carretinha

diária área central alternada bairros

diferenciada

20

Joaquim Felício

Baixo

2316

100%

1 ton

Depto de Obras e Serviços Públicos

4 coletores 1 motorista

1 trator agrícola 3 carroças

3 por semana

diferenciada

21

Lagoa Santa

Médio

35281

100%

18 ton

Depto de Obras e Serviços Urbanos

diária área central alternada bairros

diferenciada

22

Lassance

Baixo

3261

100%

1,3 ton

Diretoria de Obras

2 coletores 1 motorista

1 caminhão carroceria

2ª a sáb área central 2ª a 6ª bairros

Não são coletados

18 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 12 coletores 4 motoristas

2 compactadores 1 basculante

diária área central alternada bairros

diferenciada

23

Matozinhos

Médio

27630

100%

432

5 compacta1 encarregado dores 19 coletores 1 basculante 6 motoristas 1 caminhonete


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO DEPÓSITO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO

FINAL EM PROCESSO

FÍSICOS

OPERACIONAIS

Depósito do "Alto da Paciência" . Grupo Bambuí, Sub-grupo Paraopeba. Alto de encosta, na borda da vertente Solo amarelo claro siltoso e substrato de meta-pelito. Local com espaço reduzido em fase de exaustão. Necessidade de outra área.

Lixo espalhado a céu aberto dentro e fora das valas nos dois depósitos e catador executando triagem no depósito de São José de Almeida. Presença de líquido proveniente de limpeza de fossa em uma das valas no depósito de São José de Almeida.

DE LICENCIAMENTO

-

Sem melhorias Grupo Bambuí, Sub-grupo Paraopeba. Morfologia ondulada. Solo pouco desenvolvido de cor amarela em substrato de metapelito. Área em encosta com caimento suave e baixa declividade. A área possui condições favoráveis.

-

Grupo Bambuí, Sub-grupo Paraopeba. Terreno constituído por metassiltito muito alterado de cor amarela coberto por litossolo siltoso e cascalho de quartzo. Depósito em cabeceira de drenagem. Necessidade de mudança de área.

Disposição de resíduos em local e condições inadequados, com lixo disposto a céu aberto. Recurso garantido para implantação de um aterro sanitário (não será licenciado no momento). Os resíduos dos serviços de saúde são dispostos em fossa na área do depósito.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí - Encosta suave de baixa declividade, convergindo para o córrego Embaiassaia a mais de 1km de distância. Terreno constituído de Siltito alterado e solo raso silto-arenoso. A área possui condições favoráveis.

Lixo disposto em vala, recobrimento semanal utilizando uma retroescavadeira. Os resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala específica.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. Parte inferior da encosta próxima à várzea do Rio das Velhas. Solo constituído por material de cobertura silto-arenosa com contribuição de material mais grosseiro do terraço aluvionar. Recomenda-se a recuperação do depósito e mudança de área.

O lixo encontra-se exposto e grande parte queimado. Foi verificada presença de catadores no local. Na vala para destinação de resíduos dos serviços de saúde havia lixo exposto com sinais de queima. O trator de esteiras que opera no local encontrava-se com problemas mecânicos e não opera há 1 semana.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. Encosta com declividade baixa na vertente leste da Serra São Gonçalo. Latossolo areno-argiloso de cor avermelhado, em substrato constituído por ardósia, meta-argilito e metassiltito. A área possui condições favoráveis para a implantação da Usina de Triagem.

Área cercada, lixo dentro e fora da vala, exposto e com sinais de queima. Os resíduos dos serviços de saúde são dispostos em vala, sem recobrimento, está prevista execução de fossa para a disposição desses resíduos no depósito. Está em obras a Usina de Triagem e Compostagem de Lixo.

-

Sem melhorias

Grupo Bambuí, Em Sete Lagoas, Membro Lagoa Santa. Área na encosta de uma colina, com presença de rocha calcária. Local totalmente inadequado com vulnerabilidade alta em relação às águas superficiais e subterrâneas. Fechamento imediato do depósito e recuperação da área.

Depósito em condições inadequadas de operação. Vala para os resíduos dos serviços de saúde com sinais de queima e recicláveis. Presença de catadores no depósito. Elaborado projeto de recuperação do local.

Licença Prévia concedida para Aterro Sanitário

Sem melhorias

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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

24

Monjolos

25

Morro da Garça

26

27

28

29

30

Nova Lima

Nova União

Ouro Preto

Pedro Leopoldo

Pirapora

SUB-BACIA

POP. URBANA

Baixo

1413

Médio

Alto

Médio

Alto

Médio

Baixo

1624

62951

1429

55823

43379

49348

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE URBANA RESÍDUOS/DIA (ESTIMADA) ATENDIDA

100%

100%

100%

100%

95%

100%

90%

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ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA - FREQÜÊNCIA / FORMA MÃO-DE-OBRA

EQUIPAMENTOS CONVENCIONAL

RSS

0,6 ton

Secretaria de Obras

1 encarregado 5 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante

Semanal

coleta conjunta

0,8 ton

Setor de Obras e Serviços

1 encarregado 3 coletores 1 motorista 1 tratorista 3 carroceiros

1 caminhão basculante 3 carroças

dias alternados

diferenciada

45 ton

Secretaria de Obras

2 encarregados, 22 coletores 11 motoristas

5 compactadores 1 caminhão baú

diária área central alternada bairros

diferenciada

0,7 ton

Secretaria de Obras

3 coletores 1 motorista

1 basculante 1 trator agrícola

diária área central alternada bairros

diferenciada

25 ton

Agropecuária e Meio Ambiente

1 encarregado 6 compacta2 auxiliares dores 44 coletores 2 cami8 motoristas nhonetes 1 tratorista 3 basculantes

diáriaárea central alternada distritos

diferenciada

Diferenciada

Diurna e noturna, diária área central e alternada bairros

Diferenciada

33 ton

Secretaria de Obras

Diária 2 caminhões área central, 1 encarregado compactadores inclusive 18 coletores 3 caminhões domingos e 6 motoristas basculantes alternada 1 Fiorino bairros

27 t

Secretaria de Serviços Urbanos e Meio Ambiente

4 caminhões 1 encarregado compactadores 41 coletores 1 basculante 6 motoristas brook


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO DEPÓSITO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO FÍSICOS

FINAL EM PROCESSO

OPERACIONAIS

DE LICENCIAMENTO

Problemas na operação

Grupo Bambuí, Formação Paraopeba. Depósito de lixo no alto de encosta com declividade baixa. Substrato de metassiltito decomposto recoberto por litossolo siltoso. A área apresenta condições favoráveis.

Lixo disposto em vala, que devido às chuvas vem sendo operada de forma inadequada. Área comprada pela Prefeitura.

-

Operação controlada

Grupo Bambuí. Depósito de lixo na meia encosta, com vertente retilínea e gradiente uniforme, convergindo para o córrego na área urbana. Cobertura de solo argiloso-arenoso recobrindo rocha de granulação fina. A área não é ideal, mas pode ser utilizada devido ao pequeno volume de lixo.

Área no centro da cidade com recicláveis armazenados para venda. No depósito, a área está cercada, com guarita. Foi feita a recuperação. Resíduos recobertos 2 vezes por semana. Resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala específica.

-

Aterro Sanitário em Obras

Grupo Nova Lima. Área inserida em um vale, com encostas íngremes, e substrato de xisto argiloso alterado. Devido às condições geotécnicas do terreno, há propensão de ocorrer movimentação de massas rochosas. Recomenda-se o monitoramento contínuo do maciço de lixo e das águas superficiais e subterrâneas.

Estão sendo feitas canaletas de drenagem e mantas para lagoas foram adquiridas. No aterro de entulho será feita drenagem e recomposição vegetal, área cercada.

Licença de Instalação concedida para Aterro Sanitário

Sem melhorias

Grupo Nova Lima Indiviso. Rochas xistosas com intercalações de quartzito. Encosta suave com baixa declividade e solo argilo-arenoso que converge para o Ribeirão Vermelho a 1km de distância. A área apresenta condições favoráveis para implantação da Usina de Triagem e compostagem de lixo.

Disposição de resíduos em condições precárias, lixo exposto apresentando sinais de queima. Obras da Usina ainda não foram iniciadas, a previsão é para setembro de 2003.

Licença de Instalação concedida para Usina de Triagem e Compostagem

Problemas na operação

Grupo Piracicaba (S.G. Minas). Substrato de filito recoberto por formação superficial coluvial (argila laterítica vermelha). Terreno com baixa permeabilidade dificultando a infiltração de contaminantes. Recomenda-se o monitoramento das águas superficiais e subterrâneas.

Trator de esteiras e 1 retroescavadeira em operação, há recobrimento e compactação diária dos resíduos. Presença de cerca de 15 catadores no local.

Licença Prévia concedida para Aterro Sanitário.

Problemas na operação

Depósito de lixo instalado na várzea do Ribeirão das Neves. Os resíduos são dispostos em camadas formando uma plataforma que avança para dentro da planície aluvionar, causando um processo contínuo de contaminação do ribeirão. O depósito deve ser encerrado com a devida recuperação da área.

Área parcialmente cercada, recobrimento e compactação do lixo feito por uma pá-carregadeira sistematicamente. Cerca de 10 catadores no local. Depósito com algumas pendências.

Operação controlada

Grupo Bambuí - Formação Três Marias. Área plana com declividade baixa junto à planície aluvionar do Rio São Francisco. Solo areno-argiloso de cor avermelhada. Deve-se adotar medidas preventivas quanto a possíveis eventos de inundação e monitoramento para controle da qualidade das águas subterrâneas.

Os resíduos dispostos em vala, compactados e recobertos diariamente. Na operação é utilizado um trator de esteiras. Os resíduos dos serviços de sáude são dispostos em vala sem recobrimento e com sinais de queima.

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-

Licença Prévia concedida para Aterro Sanitário


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

SUB-BACIA

POP. URBANA

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE URBANA RESÍDUOS/DIA (ESTIMADA) ATENDIDA

31

Presidente Juscelino

Médio

1724

100%

32

Presidente Kubitscheck

Baixo

1737

97%

33

34

35

36

Prudente de Morais

Raposos

Ribeirão das Neves

Rio Acima

Médio

Alto

Médio

Alto

7819

13434

245143

6567

100%

100%

60%

100%

436

ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA - FREQÜÊNCIA / FORMA MÃO-DE-OBRA

EQUIPAMENTOS CONVENCIONAL

RSS

1t

Secretaria Municipal de Obras

2 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante 1 trator com carretinha

Diária área central e alternada bairros

Diferenciada

0,9 ton

Secretaria Municipal de Saúde

1 encarregado 3 coletores 1 motorista

1 caminhão basculante 1 carroça

Alternada em toda a cidade

Diferenciada

3 ton

Secretaria de InfraEstrutura e Coordenadoria de Meio Ambiente

3 coletores 1 motorista

1 caminhão carroceria 1 caminhão basculante

Diária área central e alternada bairros

Coleta diferenciada

8 ton

140 ton

5t

Secretaria de Meio Ambiente

Diária, 1 caminhão inclusive aos 1 encarregado, compactador domingos, 3 coletores 1 caminhonete área central 1 motorista Toyota e alternada bairros

Conjunta

2 caminhões Secretaria de compactadores 4 encarregados Desenvolvi8 carrocerias 116 coletores mento 8 basculantes, 21 motoristas Urbano 1 kombi 2 jericos

Diária área central e alternada bairros

Conjunta

1 encarregado 3 coletores 1 motorista

Diária na área central, inclusive aos domingos, alternada bairros

Conjunta

Departamento de Obras

1 caminhão compactador


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO DEPÓSITO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO FÍSICOS

FINAL EM PROCESSO

OPERACIONAIS

DE LICENCIAMENTO

Grupo Bambuí. Morfologia ondulada. Depósito de lixo no topo de morro em local plano, junto à estrada de terra vicinal. Substrato de matapelito capeado por solo fino siltoso. A área possui geologia adequada, mas é desfavorável quanto ao tamanho e do ponto de vista locacional.

Resíduos dispostos em vala e recobertos semanalmente. Resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala específica.

Usina de triagem e compostagem licenciada

Supergrupo Espinhaço. A Usina de Triagem está situada em terreno constituído por micaxisto, numa região de encosta suave. A área possui geologia adequada em função do porte do empreendimento.

Foi verificado se foram atendidas todas as condicionantes para a operação da Usina, assim ainda não havia sido construído o sumidouro para o recebimento do percolado do pátio de compostagem. Foi executado o projeto de revegetação da maior da área descoberta da unidade. Foi designado um responsável pela segurança do trabalhador na área e está sendo elaborada a planta com a localização das valas de rejeito.

Licença de Operação concedida para Usina de Triagem e Compostagem

Operação controlada

Grupo Bambuí. Encosta com caimento suave e solo argilo-arenoso de cor marrom avermelhada em substrato de metapelito. A área apresenta condições favoráveis para implantação da Usina de triagem e compostagem de lixo.

Área parcialmente cercada, resíduos recebem compactação e recobrimento cerca de 2 vezes por semana. Executada melhoria no sistema de drenagem pluvial do maciço. Encontra-se em andamento a obra da Usina . Resíduos dos serviços de saúde dispostos em vala específica na área do depósito.

Licença de Instalação concedida para Usina de Triagem e Compostagem

Operação controlada

Utiliza o Aterro Sanitário em obras de Nova Lima.

Problemas na operação

Complexo Belo Horizonte Embasamento GranitoGnáissico. Depósito de lixo em uma cava aberta em antiga páleo ravina, confinada lateralmente pelas encostas naturais do terreno. Solo siltoarenoso e faixas de rocha alterada. Recomenda-se o monitoramento geotécnico dos maciços de lixo e do sistema de drenagem. Área com pouco tempo de vida útil.

Utiliza o Aterro Sanitário em Obras de Nova Lima.

437

Desde 16/01/2002 a disposição final dos resíduos vem sendo feita na área do Aterro Sanitário Norte de Nova Lima que opera em condições controladas.

Abertura de novo acesso à área na parte superior do maciço, parte do talude aos fundos da área foi revegetado. Processo erosivo na encosta está assoreando as canaletas de drenagem. Presença de vários catadores. Foi verificada área para o aterro (contígua ao depósito). Resíduos dos serviços de saúde dispostos conjuntamente com os resíduos comerciais/domiciliares.

Desde 16/01/2002 a disposição final dos resíduos vem sendo feita na área do Aterro Sanitário Norte de Nova Lima que opera em condições controladas.

-

Consóricio Intermunicipal (Nova Lima)

Licença Prévia para Aterro Sanitário em análise

Consóricio Intermunicipal (Nova Lima)


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

SUB-BACIA

POP. URBANA

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE URBANA RESÍDUOS/DIA (ESTIMADA) ATENDIDA

ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA - FREQÜÊNCIA / FORMA MÃO-DE-OBRA

EQUIPAMENTOS CONVENCIONAL

RSS

37

Sabará

Alto

111897

93%

45 t

Secretaria de Meio Ambiente

6 caminhões Diária - área Conjunta. Na compactadores central, Santa Casa de 1 encarregado, 1 basculante inclusive Misericórdia 20 coletores 1 caminhonete aos domingos, é realizada 5 motoristas 5 carroças alternada queima dos locais de nos bairros resíduos. difícil acesso

38

Santa Luzia

Médio

184026

90%

140 ton

Diretoria da Coleta de Lixo

2 encarregados 18 caminhões 86 coletores carrocerias 18 motoristas

39

Santana do Pirapama

1,5 t

Gabinete do prefeito

1 encarregado 8 coletores 3 motoristas

40

Santana do Riacho

1 ton

Secretaria de Obras

41

Santo Hipólito

42

São José da Lapa

Médio

Médio

Baixo

Médio

2874

1719

2114

8894

100%

100%

100%

95%

438

Diária na área central e alternada nos bairros.

Diferenciada

2 caminhões basculantes 1 trator com carretinha

2 por semana

Conjunta

6 coletores 2 motoristas

1 caminhão basculante 1 trator com carretinha

1 por semana

Não são coletados

0,5 ton

Gabinete do prefeito

1 encarregado, 2 a 3 coletores, 1 motorista e 1 tratorista

1 caminhão basculante 5 m3

Diária área central e bairros

Diferenciada

5 ton

Secretaria de Obras

3 coletores 1 motorista

1 caminhão compactador e 1 caminhonte

Alternada na área central e bairros

Coleta diferenciada


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO

FINAL EM PROCESSO DE LICENCIAMENTO

FÍSICOS

OPERACIONAIS

Aterro Controlado

Grupo Nova Lima - Depósito de lixo na zona de cumeada do morro com flancos íngremes. O substrato é constituído de filito alterado e decomposto. Depósito de lixo em fase de exaustão. Necessidade de outra área para disposição dos resíduos.

Lixo aterrado em rampa com recobrimento e compactação sistemáticos. Está sendo executada canaleta de drenagem junto a uma das laterais do maciço. Operação controlada. Resíduos dos serviços de saúde dispostos conjuntamente com os resíduos comerciais/domiciliares.

Aterro Controlado

Grupo Bambuí ( Em Paraopeba). A área caracteriza-se por uma vertente irregular, apresentando partes íngremes até escarpadas e partes mais suaves e no sopé o terraço aluvionar do Rio das Velhas. A mesma dista cerca de 200 metros do rio. Recomenda-se a instalação de poços para investigação e avaliação dos processos de contaminação do aqüífero subterrâneo.

Resíduos dispostos em Aterro que é operado em condições controladas, com compactação e recobrimento sistemáticos.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. Depósito situado em alto de encosta, flanqueada por duas cabeceiras de drenagem natural ativas no período chuvoso. Rocha tipo metapelito alterado coberto por litossolo siltoso. Necessidade de algumas medidas para minimizar os efeitos de contaminação das águas superficiais.

Área cercada, operação precária. Presença de resíduos de natureza hospitalar (produtos veterinários) espalhados na área. Quanto aos resíduos dos serviços de sáude, parte é queimada e outra parte, agulhas, seringas encaminhados a uma fossa, na unidade mista de saúde.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí. O depósito situa-se na zona de sopé coluvial, em uma vertente de baixa declividade. A área apresenta solo formado de colúvio areno-argiloso de cor avemelhada, em substrato de meta-pelito. Recomenda-se a compactação do solo nas valas de disposição de lixo para minimizar a infiltração dos percolados no subsolo.

O lixo acumulado anteriormente foi aterrado na vala. Deve ser melhorado o sistema de drenagem pluvial. Entrada da área sem controle. Resíduos dos serviços de saúde são queimados e enterrados na própria unidade de saúde.

-

Operação controlada

Grupo Bambuí. Morfologia plana . Área situada a 3 km do Rio das Velhas. Solo avermelhado argilo-arenoso bem desenvolvido. O substrato correspondende a rochas meta-sedimentares tipo siltitos e/ou argilitos. A área apresenta condições favoráveis em função da pequena quantidade de lixo do município.

Área cercada, resíduos em vala com recobrimento sistemático, vala para os resíduos dos serviços de saúde recoberta e isolada. Placa impedindo entrada de estranhos, grande quantidade de entulho.

-

DEPÓSITO

Utiliza o depósito de Vespasiano

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Licença Prévia para Aterro Sanitário em análise

-


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002

DADOS DOS MUNICÍPIOS CIDADE

43

Sete Lagoas

44

Taquaraçu de Minas

45

Várzea da Palma

46

Vespasiano

SUB-BACIA

Médio

Médio

Baixo

Médio

POP. URBANA

180211

1379

27624

75182

POPULAÇÃO QUANTIDADE DE URBANA RESÍDUOS/DIA (ESTIMADA) ATENDIDA

100%

50%

100%

100%

440

100 t

0,7 ton

20 ton

37 ton

ÓRGÃO RESPONSÁVEL

COLETA - FREQÜÊNCIA / FORMA MÃO-DE-OBRA

EQUIPAMENTOS

5 caminhões SAAE – Serviço 2 encarregados compactadores Autônomo de 31 coletores 2 caminhões Água e Esgoto 6 motoristas brook 1 caminhonte

Secretaria de Obras

2 coletores 1 motorista

1 caminhão carroceria

CONVENCIONAL

RSS

Diária área central e alternada bairros

Diferenciada

Alternada

Parte coleta conjunta e restante queimados nos postos

Secretaria de Diária- na 2 encarregados, 6 caminhões Infra-Estrutura área central 18 coletores basculantes e Serviços e alternada 6 motoristas 1 caminhonete Públicos bairros.

Parte coleta diferenciada e restante queimados no hospital

Diária na área central e alternada nos bairros.

Diferenciada

Secretaria de Obras e Meio Ambiente

1 encarregado, 4 caminhões 16 coletores compactadores 4 motoristas 1 caminhonete


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INFORMAÇÕES DO RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE LIMPEZA URBANA - JANEIRO A ABRIL/2002 GERAL DO DEPÓSITO

SISTEMA DE DISPOSIÇÃO

ASPECTOS

SITUAÇÃO FÍSICOS

FINAL EM PROCESSO

OPERACIONAIS

DE LICENCIAMENTO

Aterro Sanitário em Obras

Grupo Bambuí. Em Serra de Santa Helena. A área do depósito ocupa a parte baixa da vertente com inclinação moderada em terreno de metapelito, próxima ao córrego Esmera. Com a implantação do aterro sanitário em fase de licenciamento ambiental, recomenda-se o monitoramento das águas superficiais e subterrâneas na sua área de influência.

Está sendo remediado o lixão e o aterro sanitário está sendo implantado (Presença de catadores)

Licença de Instalação concedida para Aterro Sanitário

Sem melhorias

Embasamento Granito-Gnáissico. Área em meia encosta de média declividade com solo residual amarelo areno-argiloso, a 150 metros de distância do Rio Taquaraçu, junto à estrada de terra vicinal. Condições fisiográficas e locacionais da área inadequadas. Necessidade de aquisição de área própria da Prefeitura para disposição do lixo.

Disposição do lixo em condições inadequadas. Foi recomendado que a atual área deve ser utilizada provisoriamente. Está sendo procurada uma nova área.

-

Problemas na operação

Grupo Bambuí, Em Três Marias. Área situada na base da vertente da Serra do Compartimento, com baixa declividade. Solo avermelhado argilo-arenoso com boa espessura em substrato formado de argilito e siltitos calcíferos. Recomenda-se a impermeabilização da base com o próprio solo do local. A área apresenta condições favoráveis.

Área cercada. Lixo em vala com operação controlada. Depósito de Barra de Guaicuí com lixo espalhado e queimado, em precárias condições.

-

Aterro Controlado

Grupo Bambuí. Área situada em um vale que corresponde a uma paleo-ravina, próxima ao Ribeirão da Mata.O terreno é constituído de argila arenosa marrom, argila siltosa de coloração Compactação diária do lixo. Implantado amarela e cobertura de argila laterítica vermelha, drenos de gás no Aterro controlado. Melhoria cujo substrato mais provável é metapelito. nas condições gerais do Depósito. Recomenda-se o controle geotécnico dos taludes e do maciço de lixo, e a instalação de piezômetros para o monitoramento da qualidade das águas subterrâneas.

-

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Ademais, segundo o secretário Municipal de Limpeza Urbana de Belo Horizonte Luiz Gustavo Fortini Martins Teixeira o aterro sanitário da capital está produzindo diariamente 4,5 litros de chorume por segundo. Deste volume, 70% está sendo conduzido em caminhões para um interceptor do Arrudas que o conduz até a ETE situada pouco além da divisa entre Belo Horizonte e Sabará. Multiplicando pelos 86. 400 segundos de 1 dia são 388. 800 litros diários, ou seja, quase 400 caixas de 1000 litros. Finalmente, alguns dados interessantes sobre a gestão do lixo em Belo Horizonte podem ser visualizados na Tabela — Boletim Estatístico — Abrangência dos Serviços de Limpeza Urbana, referente ao acumulado de um ano.

Fotografia: Foca Lisboa.

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Boletim Estatístico - Abrangência dos serviços de limpeza urbana em Belo Horizonte (unidade = tonelada) PROCEDÊNCIA DOS RESÍDUOS

2º SEMESTRE 2003

1º SEMESTRE 2004

ACUMULADO 12 MESES

Resíduos da Coleta com Caminhão Compactador Direta Indireta

234.802 82.145,93 152.656,06

197.444 61.596 135.849

432.246,24 143.741,67 288.504,57

Resíduos da Coleta com Caminhão Carroceria Aberta

18.029,73

15.085

33.114,75

Resíduos da Coleta por Caçambas Direta Indireta

51.026 3.244,27 47.782,19

38.576 2.901 35.675

89.602,91 6.145,65 83.457,26

Resíduos da Coleta Diversificada

17.784,88

14.617

32.402,19

Resíduos da Coleta em Unidades de Serviços de Saúde

6.463,09

5.260

11.723,56

Resíduos de Particulares

25.686,64

20.323

46.009,74

Resíduos da Construção Civil (_)

161.340,02

188.037

349.376,82

Resíduos Públicos

78.070,13

58.033

136.103,03

Subtotal

593.203

537.376

1.130.579,24

Coleta de Resíduos Orgânicos em Feiras e Sacolões

677,44

675

1.352,82

ENTULHO DA CONSTRUÇÃO CIVIL Estoril Pampulha

62.718,40 28.086,00 34.632,40

41.728 19.753 21.976

104.446,60 47.838,60 56.608,00

Coleta Seletiva de Materiais Recicláveis Papel, Metal, Plástico e Vidro

3.938 3.938,25

2.708 2.708

6.646,25 6.646,25

Subtotal

67.334

45.112

112.445,67

Total Geral

660.537

582.488

1.243.024,91

Fonte: SMLU, Relatório Anual de Atividades, 2003.


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Page 444

Bibliografia

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 776 p. ______. Congresso Nacional. Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990. Cap. 3. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. HIPPOCRATE. De L’art medical. Paris: Librairie Générale Française, 1994.

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Page 445

Abstract

Residue The management of solid residue in the Rio das Velhas basin, especially in its metropolitan area, is a relevant subject taken into consideration when planning actions for city halls, state government, companies and society as a whole. Differentiated proceedings are defined according to the origin and nature of the residue. An integrated and intelligent management system plays an important part in the conservation of regional ecosystems and river basins, the promotion of human health, the sustainability of economic development, the reuse of raw material and energy and the generation of jobs, income and new technologies. Humanity has always coexisted with waste in different ways, according to its stage of development, cultural mentality and demographic density. It is essential to elevate the percentage of all forms of recycling to the maximum, within the environmental, social and technologic possibilities, including the transformation of raw material into humus, biogas, food for domestic animals, when in good sanitary conditions; and the reduction of sanitary dumps to a minimum level of residue. This transition can only be made possible with the establishment of goals (established objectives and deadlines). Beyond the problems concerning space for sanitary dumps, we also can’t cultivate the waste of raw material and energy, or put the dumps in faraway locations or, least of all, at other people’s doors. The integrated management of solid residue is complex, from a social-environmental and technological point of view, but it is executable; and its equation, grounded on valid environmental and economical concepts, is necessary and cannot be postponed.


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1 Professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais 2 Doutorando em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos na Universidade Federal de Minas Gerais, Pesquisador da Fundação Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais - Feam


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18 O esgotamento sanitário: a saúde humana e a qualidade ambiental Léo Heller 1 José Cláudio Junqueira Ribeiro 2

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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Introdução

A disposição dos resíduos líquidos ou sólidos gerados pelas populações humanas acompanhou o início das civilizações, ao longo da história, sem provocar importantes impactos à saúde ou à qualidade do ambiente, constituindo-se prática naturalmente integrada ao cotidiano da vida em comunidade. Pode-se considerar que o mesmo aconteceria em ocupações de baixas densidades demográficas e pouco exigentes padrões de consumo. Além disto, por intuição ou por decorrência natural da relação das comunidades com os resíduos, a sua disposição nessas situações caracteriza uma verdadeira prática ecológica, pois tais resíduos são reintroduzidos no ciclo natural de decomposição da matéria orgânica no solo e nas águas, sem comprometer o meio ambiente. Evidentemente, tal possibilidade resulta da composição dos resíduos, basicamente matéria orgânica, já que embalagens e produtos industriais pouco o integram, e pela capacidade de depuração do ambiente. Na Idade Média, o adensamento de populações nos burgos originou elevadas concentrações desses resíduos em áreas limitadas, gerando, à época, as conhecidas epidemias de doenças infecciosas na Europa. A constituição da sociedade moderna, caracterizada pela industrialização e urbanização, elevou o problema a uma magnitude preocupante em todo o mundo. Os países industrializados, no entanto, implantaram sistemas de saneamento nas suas cidades, ao longo do século XIX e início do século XX, fazendo reconhecidamente melhorar as condições de saúde das populações — foi a chamada Revolução Sanitária. A partir da década de 1970, a preocupação com a poluição dos rios conduziu esses países a realizarem grandes investimentos para a recuperação da qualidade das águas, buscando até torná-los piscosos. A recuperação dos rios Tâmisa em Londres e Sena em Paris é o símbolo mais célebre desse processo.

Páginas seguintes: Estação de tratamento de efluentes industriais, em Augusto de Lima. Arquivo Projeto Manuelzão.

Nos países em desenvolvimento, contudo, a situação superada por aqueles países ainda persiste, trazendo as mesmas e outras conseqüências associadas, sobretudo devido às condições de consumo da vida contemporânea. Logo, em termos globais, pode-se afirmar que, sobretudo nas bacias mais urbanizadas, a disposição dos esgotos sanitários em um país como o Brasil representa o maior problema ambiental que atinge os cursos de água. Essa disposição vem acarretando sérias conseqüências sobre o ambiente aquático, sua fauna e flora, e sobre a saúde humana, tornando-se veículo de enfermidade e morte por doenças infecciosas e parasitárias ou por intoxicações, principalmente para as populações mais pobres. Tal é o caso da bacia do Rio das Velhas.

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As soluções para o esgotamento sanitário

Os esgotos sanitários podem ser dispostos adequadamente através de sistema estático ou dinâmico. O sistema estático é constituído por fossas domiciliares, ou seja, a disposição realiza-se próxima da geração, sem sistema de rede coletora. A fossa pode ser seca, sem nenhuma descarga de água, comumente chamada de “casinha”, que, uma vez dotada de tubo de ventilação, elimina maus odores e moscas. Outro tipo de fossa, com descarga de água, é a fossa séptica, onde a parte sólida dos esgotos é digerida e se transforma no lodo, que deve ser removido periodicamente. O efluente líquido da fossa séptica pode ser infiltrado no subsolo por meio de sumidouros. O sistema estático é mais recomendado para regiões com baixa densidade, como áreas rurais ou mesmo cidades de pequeno porte com modelos de assentamento que disponham de áreas livres nos lotes urbanos. Observando-se a distância, em profundidade, de dois metros acima do lençol freático e, horizontalmente, de 15 metros de um poço, o sistema oferece a segurança necessária. Por isso, o uso de fossas não é recomendado para regiões onde o lençol freático é muito superficial, sendo chamadas de fossas negras aquelas que atingem o lençol. Por sua vez, o sistema dinâmico pressupõe o transporte, pela água, dos esgotos gerados. Neste sistema, o esgoto é coletado — pela rede coletora —, seu lançamento nos cursos de água urbanos é interceptado por canalizações nas margens desses cursos — os interceptores — e é tratado em estações de tratamento, antes do lançamento nos cursos de água. Ainda que a solução seja um modelo de conhecimento geral, a sua implementação integral vem sendo postergada, pela omissão dos diversos níveis de governo, que muitas vezes se restringem em implantar a rede coletora, ampliando a poluição hídrica. Hoje, no Estado de Minas Gerais, a exigência legal para o tratamento dos esgotos é de remoção de apenas 60% da carga orgânica, expressa em DBO — Demanda Bioquímica de Oxigênio, respeitadas as características do corpo receptor conforme seu enquadramento, o que poderia tornar os custos viáveis para a nossa realidade socio-econômica. Por outro lado, a implantação de interceptores revela-se como fundamental para a preservação dos cursos de água localizados nas malhas urbanas, para tanto sendo vital uma concepção integrada com o tratamento dos fundos de vale e o sistema viário, para se atingir uma adequada concepção, sob os pontos de vista técnico, sanitário, ambiental e paisagístico.

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Fotografia: Cuia Guimarães.

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A importância para a saúde pública e para o meio ambiente Os esgotos sanitários são compostos aproximadamente por 99,9% de água e 0,1% de sólidos. Essa parcela sólida, porém, contém substâncias orgânicas e inorgânicas, além de microrganismos patogênicos provenientes da flora intestinal humana, sendo capaz de provocar elevados impactos sanitários e ambientais quando lançados no meio físico. Especificamente nas águas superficiais, quanto maior a proporção de esgotos em relação à vazão da água, maior o impacto esperado. É importante assinalar que os esgotos originados das cidades podem conter, além dos resíduos líquidos gerados nas moradias, pequena parcela de esgotos industriais, cuja composição pode ser especificamente nociva. Assim, na avaliação dos efeitos do lançamento dos esgotos nos corpos de água é imprescindível que se analisem duas importantes dimensões, relativamente independentes: o ambiente aquático e a saúde humana.

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Tabela 1. Principais constituintes das águas superficiais oriundos dos esgotos sanitários CONSTITUINTES

PRINCIPAIS PARÂMETROS REPRESENTATIVOS

POSSÍVEIS EFEITOS DO POLUENTE

Sólidos em suspensão

Sólidos em suspensão totais

- Problemas estéticos - Depósitos de lodo - Adsorção de poluentes - Abrigo de patogênicos

Matéria orgânica

Demanda Bioquímica de Oxigênio

- Consumo de oxigênio - Morte de peixes - Condições sépticas

Nutrientes

Nitrogênio Fósforo

- Excessivo crescimento de algas e conseqüências relacionadas - Toxicidade para peixes (amônia) - Enfermidade de recém-nascidos (nitrato) - Poluição das águas subterrâneas (nitrato)

Microrganismos patogênicos

Coliformes

- Doenças relacionadas com a água

Matéria orgânica não-biodegradável

Pesticidas Alguns detergentes Fármacos Outros

- Toxicidade (vários) - Espuma (detergentes) - Redução da transferência de oxigênio (detergentes) - Redução ou eliminação da biodegradabilidade - Maus odores (ex.: fenóis)

Metais pesados

Elementos específicos (As, Cd, Cr, Cu, Hg, Ni, Pb, Zn etc)

- Toxicidade - Inibição do tratamento biológico dos esgotos - Problemas com o uso do lodo na agricultura - Contaminação das águas subterrâneas

Substâncias inorgânicas, sólidos dissolvidos

Sólidos dissolvidos totais Condutividade

- Salinidade excessiva – nocivo para a agricultura (irrigação) - Toxicidade para as plantas (alguns íons) - Problemas com a permeabilidade do solo (sódio)

Fonte: VON SPERLING et. al. (2003)


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Em relação à primeira análise, a Tabela 1 exibe os constituintes tipicamente presentes nos esgotos e seus potenciais efeitos sobre o curso de água quando esgotos não tratados são nele lançados. Conforme consta da tabela, em relação ao ambiente aquático, podem-se destacar algumas preocupações: • O efeito dos sólidos, que elevam a turbidez da água e aumentam os sedimentos no fundo dos córregos, rios e lagos; • A presença de nutrientes, que em geral implicam maiores problemas em ambientes aquáticos represados (lênticos) como lagos e represas, ao conduzirem à excessiva proliferação de algas e à eutrofização; • A presença de detergentes, produzindo espuma e substâncias orgânicas e inorgânicas tóxicas para a vida aquática e prejudiciais para a agricultura. De grande relevância para a vida aquática, porém, é a concentração de matéria orgânica nos esgotos, sendo a Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO) o parâmetro mais utilizado para expressar esse tipo de poluição. A matéria orgânica, quando lançada no curso de água, é decomposta por microrganismos aeróbios, que a metabolizam, utilizando-se do oxigênio dissolvido (OD) na água, portanto consumindo-o. Assim, quando o ambiente aquático está poluído por efluentes orgânicos, ocorre a redução da concentração do oxigênio dissolvido, que pode atingir níveis insuficientes para a manutenção da vida aquática. Este é o efeito poluidor mais direto causado pelo lançamento de esgotos in natura, ou seja, sem tratamento, na água, além do comprometimento estético e a ocorrência de maus odores, de percepção imediata. É importante destacar que a redução da matéria orgânica dos esgotos tem sido a preocupação predominante na concepção das instalações de tratamento, o que é culturalmente arraigado na área de Engenharia Sanitária, sendo também a lógica dominante na legislação sobre a qualidade das águas superficiais. Porém, nem sempre há a consciência de que a remoção da matéria orgânica e a conseqüente recuperação dos níveis de oxigênio dissolvido nos corpos receptores, embora indispensável para a preservação da vida aquática aeróbia, não é suficiente para a proteção da saúde humana, garantida a partir da eliminação de organismos patogênicos das águas. Especificamente quanto aos riscos à saúde humana, os esgotos sanitários, por conterem fezes, veiculam grande número de agentes patogênicos e estes, nos países em desenvolvimento, encontram-se em grande concentração nos esgotos, o que eleva a probabilidade de que algum tipo de contato das pessoas com águas poluídas por esgotos levem à doença. A Tabela 2 ilustra a presença de alguns organismos nos esgotos, conforme referido pela literatura.

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Tabela 2. Microrganismos presentes em esgotos urbanos não tratados CONCENTRAÇÃO (ORGANISMO/100 ml)

GRUPO

ORGANISMO

Bactéria

Coliformes totais

106 – 1010

Coliformes fecais (termotolerantes)

106 – 109

Escherichia coli

106 – 109

Clostridium perfringens

103 – 105

Enterococos

104 – 105

Estreptococos fecais

104 – 107

Pseudomonas aeruginosa

103 – 106

Shigella

100 – 103

Salmonelas

102 – 104

Protozoário Oocistos de Cryptosporidium parvum

Helminto

Vírus

101 – 103

Cistos de Entamoeba histolytica

10-1 – 101

Cistos de Giardia lamblia

102 – 104

Ovos de helmintos

100 – 103

Ascaris lumbricoides

10-2 – 103

Vírus entéricos

102 – 104

Colifagos

103 – 104

Fonte: VON SPERLING et al. (2003)


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Um parâmetro ao qual deve-se dedicar especial atenção é aquele constituído pelo índice denominado coliformes fecais, que indica o potencial de existência de patogênicos, representando portanto significativo impacto potencial à saúde da população. Essa contaminação coloca em risco não apenas a população não abastecida de água, pois dentre os usos das águas a agricultura e o lazer também apresentam riscos consideráveis de contaminação. O parâmetro coliformes fecais contempla um grupo de bactérias que inicialmente se acreditava ser exclusivamente fecal. Hoje se sabe que a única bactéria exclusivamente fecal é a Escherichia coli. É por isso que a nomenclatura atual já vem utilizando o termo coliformes termotolerantes, no lugar de fecais, como ainda largamente referenciado na legislação. Entretanto, pode-se observar que a legislação mais recente — Resolução CONAMA nº 274 ⁄ 2000 que dispõe sobre a balneabilidade dos corpos de água e a Portaria do Ministério da Saúde nº 1469 ⁄ 2000 sobre potabilidade — já adotam a atualização mencionada. Outra importante discussão refere-se à capacidade dos processos de tratamento usualmente empregados em remover esses agentes patogênicos. Os seguintes comentários a este respeito procedem: - A eficiência de remoção requerida para usos de recreação de contato primário e irrigação é, normalmente, da ordem de 99,9%. - Sistemas convencionais de tratamento biológico, como lodos ativados, biofiltros e reatores anaeróbios, freqüentemente adotados, não apresentam boa eficiência na remoção de patogênicos. - Sistemas de lagoas de estabilização seguidas de lagoas de maturação apresentam boa eficiência na remoção das quatro classes de patogênicos, mas requerem grandes áreas para sua implantação. - Protozoários e helmintos são efetivamente removidos em sistemas convencionais de lagoas (lagoa anaeróbia + lagoa facultativa), mas altas eficiências na remoção de bactérias e vírus somente são alcançadas em sistemas de lagoas que incorporam a lagoa de maturação, o que demanda disponibilidade de grandes áreas. - Filtração terciária (filtração após tratamento secundário) é efetiva na remoção de cistos de protozoários e ovos de helmintos, porém eleva o custo do tratamento e torna mais complexa sua operação. - Cloração é, em geral, muito eficiente na remoção de bactérias, um pouco menos para vírus e menos ainda para protozoários e helmintos, mas pode trazer diversos inconvenientes para o corpo receptor. Logo, conclui-se que conceber o tratamento de esgotos para a remoção de patogênicos e, conseqüentemente, para a proteção da saúde humana, demanda cuidados específicos, distintos daqueles observados quando se pretende apenas a redução da carga orgânica.

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A problemática dos esgotos sanitários na bacia do Rio das Velhas

A bacia do Rio das Velhas, abrigando uma população de aproximadamente quatro milhões de habitantes, possui um potencial poluidor de cerca de 800 milhões de litros de esgotos domésticos por dia ou 216 toneladas de DBO ⁄ dia. Na bacia do Rio das Velhas, segundo o Censo 2000, a maioria dos esgotos domésticos é coletada por redes de esgoto, totalizando cerca de 70% da população, embora em 31 dos 51 municípios (61%) a coleta atendesse a menos de 50% dos domicílios. Até recentemente, quase a totalidade dos esgotos coletados era lançada nos corpos receptores sem qualquer tipo de tratamento. Uma população aproximada de 300 mil habitantes (7%) adota o sistema estático, dispondo os esgotos em fossas, restando cerca de 23% da população cujos esgotos são lançados indiscriminadamente. A partir da implantação, nos municípios de Belo Horizonte e Contagem, de redes coletoras e interceptores complementares nas sub-bacias dos ribeirões Arrudas e Pampulha-Onça, principais contribuintes de esgotos sanitários para o Rio das Velhas, e da construção da estação de tratamento de esgotos — ETE Arrudas, em nível primário, com remoção de 40% de DBO e 60% de sólidos (2001), deuse início ao processo de contenção de lançamento de esgotos sanitários in natura na bacia. Hoje, a implantação do nível secundário na ETE Arrudas e a construção da ETE Onça apresentam-se como novos passos importantes para a redução dos impactos produzidos pelo esgotamento sanitário das maiores aglomerações urbanas da bacia: Belo Horizonte e Contagem.

Disposição inadequada dos esgotos sanitários. Arquivo Projeto Manuelzão.

Ao se analisarem os dados da qualidade das águas do Rio das Velhas, no ano de 2002 (Figuras 1 e 2), pode-se observar que, em termos do impacto produzido pela carga orgânica - parâmetros DBO e OD -, o trecho do rio fora dos padrões situa-se entre a foz do Rio Sabará (BV 067) e a cidade de Santana do Pirapama (BV 141). Já em relação ao parâmetro coliformes fecais (termotolerantes), o trecho em que o padrão descumprido é mais amplo situa-se entre a foz do Rio Itabirito (BV 037) e a foz do Rio Pardo Grande (BV 152), o que evidencia maior risco à saúde humana com a utilização de suas águas. Tais dados permitem observar que o lançamento de esgotos domésticos da cidade de Itabirito, veiculados pelo Rio Itabirito, ocasiona concentrações excessivas de coliformes no rio, embora não seja suficiente para comprometêlo em termos de matéria orgânica. A jusante, por outro lado, os demais lançamentos, sobretudo de Belo Horizonte e Contagem, associados à capacidade natural de depuração do próprio Rio das Velhas, conduzem à sua recuperação em termos de oxigênio dissolvido e redução de DBO cerca de 100 km antes de atingir padrões aceitáveis de coliformes.

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PONTOS DE AMOSTRAGEM NO RIO DAS VELHAS

BV 013 BV 037 BV 139 BV 063 BV 067 BV 083 BV 105 BV 153 BV 137 BV 156 BV 141 BV 142 BV 152 BV 146 BV 148 BV 149

Montante do Rio Itabirito Foz do Rio Itabirito Montante da ETA Bela Fama Jusante do Ribeirão Água Suja Foz do Rio Sabará Jusante do Ribeirão Arrudas Jusante do Ribeirão do Onça Jusante do Ribeirão da Mata Ponte Raul Soares Jusante do Rio Jaboticatubas Santana do Pirapama Montante do Rio Paraúna Entre os rios Paraúna e Pardo Jusante do Rio Pardo Cidade de Várzea da Palma Montante da foz do Rio São Francisco

Estudos de caso

1. O caso de Belo Horizonte e Contagem: grandes concentrações urbanas e o impacto de seus efluentes no Rio das Velhas Belo Horizonte, com cerca de 2,2 milhões de habitantes, é dotada de sistema dinâmico de coleta de esgotos sanitários desde sua criação, no final do século XIX, implantado por Aarão Reis. Atualmente, esse serviço atende a 93% da população, restando portanto ainda 170 mil pessoas, aproximadamente, sem rede coletora de esgotos.

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Figura 1 Concentrações de Oxigênio Dissolvido (OD) e Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO) no Rio das Velhas. Valores médios de 2002.

CONCENTRAÇÃO (mg/l)

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20

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10

5

0 BV013 BV037 BV139 BV063 BV067 BV083 BV105 BV153 BV137 BV156 BV141 BV142 BV152 BV146 BV148 BV149

OD

Fonte: FEAM / IGAM (2002)

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DBO

PONTOS DE COLETA


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1800 00

CONCENTRAÇÃO (NMP/100ml)

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1600 00 1400 00 1200 00 1000 00 800 00 600 00 400 00 200 00 0 BV013 BV037 BV139 BV063 BV067 BV083 BV105 BV153 BV137 BV156 BV141 BV142 BV152 BV146 BV148 BV149

PONTOS DE COLETA

Figura 2 Concentrações de coliformes fecais (termotolerantes) no Rio das Velhas. Valores médios de 2002. Fonte: FEAM / IGAM (2002)

O sistema de esgotamento sanitário da capital mineira foi se expandindo ao longo dos últimos cem anos, tendo obtido grande impulso recentemente com o programa Prosam, que financiou a implantação de redes e interceptores complementares. A coleta e o lançamento do esgoto bruto de Belo Horizonte constituem-se na principal fonte potencial de poluição de origem orgânica e de contaminação das águas na bacia do Rio das Velhas. O Projeto de Controle da Poluição Industrial, parte integrante do Prosam, desenvolvido pela Fundação Estadual do Meio Ambiente — Feam, mostrou que a carga orgânica de origem industrial nas subbacias do Arrudas e do Pampulha ⁄ Onça, abrangendo todo o município de Belo Horizonte e parte de Contagem, é de apenas 7% do total, ou seja, 93% dos esgotos sanitários são provenientes dos esgotos domésticos coletados. Deve-se observar que esse quadro ocorre na região que abriga o parque industrial mais expressivo do estado. Estudos sobre a qualidade das águas do Rio das Velhas evidenciaram a necessidade de priorizar a implantação de sistemas de tratamento de esgotos naquelas duas sub-bacias, com vistas à recuperação da qualidade das águas, notadamente no trecho do Rio das Velhas entre Belo Horizonte e Santana do Pirapama. A partir desse trecho, a recuperação natural do rio já mostrava seu poder de autodepuração, resultando em níveis de DBO e de oxigênio dissolvido compatíveis com as necessidades da ictiofauna. No final da década de 1990, foi discutido projeto de lei na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, que tornava obrigatória a instalação de “caixa de contenção de sólidos” em todos os domicílios de Belo Horizonte e Contagem, objetivando a redução da carga de

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poluição orgânica transportada pela rede coletora e lançada indiscriminadamente no Rio das Velhas. Entretanto, na discussão da proposta, ficou demonstrado que, no sistema dinâmico, a remoção de sólidos deve ser concentrada em estações de tratamento, facilitando sua remoção e sua disposição, e que “caixas de contenção” domiciliares poderiam acarretar maiores problemas ambientais, considerando a necessidade de limpeza, transporte e disposição final, extremamente complexos dada a elevada densidade demográfica dessas cidades. Em vista do conhecimento acumulado com as avaliações ambientais nas duas sub-bacias e no Rio das Velhas, e considerando a origem e a evolução do sistema dinâmico de esgotos de Belo Horizonte e Contagem, foi absoluto consenso a necessidade de implantação das estações de tratamento nas referidas sub-bacias, reduzindo a carga poluidora dos efluentes a serem lançados e, em conseqüência, contribuindo para a recuperação ambiental do Rio das Velhas. Hoje, com o nível secundário de tratamento já em funcionamento, a ETE Arrudas, segundo relatórios de auto-monitoramento, vem apresentando eficiência da ordem de 90% na remoção de DBO e sólidos em suspensão, lançando seus efluentes com teores bem inferiores àqueles previstos na legislação ambiental. Atualmente, estão sendo tratados 1,6 m3 ⁄ s de esgotos, estimados em cerca de 50% dos esgotos coletados na bacia do Arrudas. Ainda que a referida estação de tratamento tenha capacidade de tratar 4,5 m3 ⁄ s, o restante de esgotos coletados, para chegarem à estação, depende de obras de interligação de interceptores, que muitas vezes se condicionam a definições de tratamento de fundos de vale. O desenvolvimento de parte dessas obras, aliado à operação denominada “caça esgoto”, que identifica os lançamentos de esgotos coletados e lançados indevidamente na rede pluvial, permitirá, segundo previsão da Copasa, o tratamento de cerca de 70% dos esgotos coletados em 2004. Dessa forma, poderá haver melhoria contínua, em termos de DBO e OD, no Rio das Velhas. No que se refere aos patogênicos, sabe-se, conforme apresentado, que o tratamento implantado não tem habilidade para remover o potencial de contaminação existente.

Estação de Tratamento de Esgotos do Ribeirão Arrudas em Belo Horizonte. Arquivo Projeto Manuelzão.

O caso de Belo Horizonte é, portanto, emblemático: trata-se de um sistema dinâmico, que evoluiu ao longo da história de crescimento da cidade; procura concentrar todos os seus efluentes domésticos em duas estações de tratamento; a urbanização desordenada e a forma como o sistema dinâmico foi implantado dificultam tal concentração de forma plena. Ademais, a tecnologia de tratamento empregada — compatível com o estado-da-arte mais atual das tecnologias de tratamento - privilegia a remoção de matéria orgânica, o que, se por um lado traz grandes contribuições para a qualidade ambiental do Rio das Velhas, por outro carrega um débito para com a proteção da saúde humana.

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2. Cardeal Mota: um enfoque de tecnologia apropriada Cardeal Mota, hoje denominado Serra do Cipó, é distrito do município de Santana do Riacho e possui população de aproximadamente 2.000 habitantes. Localiza-se na sub-bacia do Rio Cipó, enquadrado na classe 1, na bacia do Rio das Velhas. Atualmente, a disposição dos efluentes domésticos gerados verifica-se por meio de soluções estáticas, em geral adotadas espontaneamente pela população. Em algumas poucas situações, edificações, sobretudo pousadas, implantaram sistema de fossa séptica e sumidouro, obedecendo a projetos elaborados com base na Norma Brasileira (NBR-7229 ⁄ 1982). Segundo o Censo de 2000, 99,7% dos domicílios não dispõem de rede coletora de esgotos, sendo que a maioria (84%) faz uso de fossas rudimentares e 15% de fossas sépticas. A situação ambiental do município foi objeto de análise pelo Programa de Internato Curricular do curso de Engenharia Civil da UFMG, programa cumprido por alunos de graduação que a ele se candidatam e no qual, com orientação de um professor do curso, são estudados problemas reais de engenharia civil e para os quais são propostas soluções. Tradicionalmente, o enfoque tecnológico concebido para localidades que se encontram em situações semelhantes à de Cardeal Mota é o de se projetar sistema dinâmico para coleta, afastamento e disposição dos efluentes. Parte-se da premissa de que se trata de “localidade não atendida” por sistema de esgotos e propõe-se a supramencionada solução. A engenharia exercida em seu sentido verdadeiro, porém, pressupõe superar a adoção de soluções tecnológicas padronizadas e dogmáticas e avaliar de forma abrangente e holística o problema. Logo, consistentemente com o arcabouço teórico disponível para a concepção da disposição dos esgotos sanitários, é indispensável avaliar as possibilidades de aprimoramento do esgotamento sanitário de Cardeal Mota. A primeira análise necessária consistiria na avaliação da situação atual do esgotamento sanitário no distrito e suas conseqüências sanitárias e ambientais. Nesse ponto, a rigor não se identificam aparentes problemas para a saúde e o ambiente, pelas seguintes razões: • Não há vestígio de efluente escoando pelo leito das vias públicas ou pelas sarjetas; • Não é provável que haja contaminação do lençol freático e, mesmo que isto suceda em alguns pontos, tal fato não deve provocar comprometimento da saúde humana, considerando que o abastecimento de água é realizado por sistema coletivo;

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• A menos de algumas poucas moradias localizadas à margem do Córrego Soberbo, afluente do Rio Cipó, não ocorrem lançamentos em cursos de água superficiais. Com base nessa realidade, caberia decidir pela intervenção a ser proposta. E, nesse caso, a decisão inicial seria entre a solução dinâmica e a solução estática. A primeira, correspondendo ao abandono das soluções existentes e à implantação de um sistema dinâmico, incluindo a adequada disposição final; a segunda podendo constituir no aproveitamento parcial da solução existente. Pareceu à equipe técnica responsável pelo trabalho que a segunda opção apresentaria claras vantagens em relação à solução dinâmica, pelas seguintes razões: • Comparada com o sistema dinâmico, a implantação da solução de aprimoramento das fossas existentes poderia se apresentar economicamente muito vantajosa, sobretudo pelo fato de que se encontra parcialmente implantada e pela densidade demográfica relativamente baixa da localidade; • Possivelmente, a operação e manutenção do sistema também ficariam mais econômicas para essa opção, desonerando o comprometimento financeiro da população com o pagamento de taxas e/ou tarifas; • A solução dinâmica poderia ter sucesso duvidoso, como tem sido freqüentemente observado em situações similares, pois, ao contrariar a tradição cultural local de disposição dos efluentes, poderia resultar em baixa adesão da comunidade, quanto à adaptação física de suas instalações prediais e interligação com o sistema público; • Em termos da proteção à saúde humana e ao ambiente, uma adequada solução estática implicaria lançamento nulo de efluentes nos cursos de água superficiais, ao contrário da solução dinâmica, cuja instalação de tratamento geraria efluentes a serem lançados no Rio Cipó, extensivamente usado para recreação de contato primário, efluentes estes, por mais eficiente que pudesse ser o processo de tratamento, sujeitos a apresentarem concentrações elevadas de patogênicos, até mesmo devido a eventuais imperfeições operacionais. Em vista da constatação da superioridade da solução estática, foi desenvolvido planejamento preliminar para a implantação do sistema, acompanhado das seguintes atividades: • Realização de ensaios de infiltração em setores típicos do distrito, visando a obter coeficientes para dimensionamento da unidade de infiltração no subsolo;

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• Dimensionamento e confecção de projetos padrão de conjuntos fossa séptica-sumidouros, para as diversas taxas de infiltração encontradas e para uma ou duas residências; • Cadastramento das soluções atuais, em uma amostra de moradias em três regiões típicas do distrito; • Verificação das necessidades de aprimoramento para as situações típicas encontradas; • Pré-dimensionamento de dispositivo para recebimento do lodo a ser retirado das fossas sépticas, com o estudo das opções de leitos de secagem e de lagoas de lodo; • Pesquisa de áreas para a disposição do lodo a ser retirado das fossas sépticas, propondo-se três opções. Portanto, a concepção final proposta para o esgotamento sanitário de Cardeal Mota consistiu no aprimoramento das soluções estáticas existentes, aparelhamento da Prefeitura para o recolhimento periódico do lodo das fossas sépticas e disposição sanitária e ambientalmente adequada do lodo. Entende-se que a solução proposta garantirá à população conforto equivalente ao das soluções tradicionais, resultando em superior qualidade ambiental e sanitária para o sistema. Defende-se ainda que, mesmo em localidades não situadas na bacia de cursos de água com intenso contato primário, mas que apresentem pequeno porte e baixa densidade demográfica, soluções como a proposta sejam seriamente consideradas.

Considerações finais

Como se expôs, a problemática do esgotamento sanitário, se não é a maior, é uma das maiores pressões ambientais sobre os cursos de água cujas bacias drenam concentrações urbanas. Tal é o caso da bacia do Rio das Velhas. O lançamento de esgotos sem tratamento nos cursos de água pode provocar um ambiente desfavorável à vida aquática, inclusive mortandade de peixes; comprometer a aparência estética das águas, sobretudo, pode ser veículo de inúmeras doenças para a população que mantém alguma relação com as águas.

Esgotos despejados diretamente no leito do rio. Fotografia: Foca Lisboa.

A solução para o problema envolve determinação dos governos, mobilização da sociedade e adequada concepção de engenharia. Nesse último caso, a tecnologia mais apropriada para cada contexto seria adotada, uma vez que para cada problema ambiental existem diferentes soluções, cada qual com suas condicionantes e seus resultados.

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Abstract

The wastewater disposal: human health and environmental impacts During the past, when there were not high concentration of people, wastewater disposal have been a natural practice, without important health or environmental impacts. In the Middle Age, population density generates high concentrations of wastes in limited areas, giving rise to infectious diseases in Europe by this time. This problem has been coming very serious in the whole world due to the increasing urbanization. The developed countries built their sanitation structures, but the same did not happened in developing countries, with significant health and environmental negative effects. The municipal sewage in developing countries as Brazil means one of the greatest environmental problems, which cause water pollution and health consequences, mainly in the poorest population; this is the case of Velhas River basin. The municipal sewage can be disposed correctly by static or dynamic system. The static one is constituted by on-site disposal; the dynamic one run away wastewater, sending sewage into the river. This system is the most adequate for areas with high density, but it is also the main source of organic water pollution in developing countries, because generally there are no treatment plants and no sanitation public policy priority. The BOD removal has been the main goal in treatment plants and government regulations, with low priority on eliminating pathogens, which are strongly present in sewage, with heavy effects on health. The 93% of Belo Horizonte population is served by sewerage, but municipal sewage is almost the greatest organic source of water pollution on the Velhas River, where the organic industrial source means only 7%, in spite of this region hold the most important industrial area in Minas Gerais state. If dynamic system is the most adequate to high density areas, treatment plants included, therefore to small communities, with low densities, the static solution could be more adequate. Cardeal Mota, presently Serra do Cipรณ, is a small village with two thousands inhabitants, in Velhas River basin, served by a static system, where 99,7% have got septic tank or soakway. Traditionally engineering plans seeks dynamic system projects to cases studies like this one, assuming they have no system. But the real engineering presumes to consider besides technology, all environmental variables, social and economics included. The static system assures correct wastewater disposal in Cardeal Mota village so the engineering help needed is improving this system.


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Professora do Departamento de Engenharia Nuclear da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais


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19 Poluição das águas com metais tóxicos: impacto ambiental Maria Adelaide Rabelo Vasconcelos Veado 1

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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Descrição da região e histórico da exploração natural no Brasil

A descoberta do Brasil ocorreu no ano de 1500 por Portugal. As primeiras expedições portuguesas buscavam o pau-brasil (vegetal do qual se extrai um corante vermelho) e essa exploração durou 50 anos. No século XVI começou o ciclo da cana-de-açúcar nos estados de São Paulo, Bahia e Pernambuco. No final do século XVII, as jazidas de ouro do Rio das Velhas e as jazidas de diamante foram descobertas no Estado de Minas Gerais, começando assim o período conhecido como o ciclo do ouro (extração do diamante e do ouro). A extração destes minerais durou até o começo do século XIX e era a única atividade econômica do Brasil nessa época. Porém, o lucro dessa atividade foi inteiramente recolhido à coroa portuguesa. No Estado de Minas Gerais, estima-se a retirada de aproximadamente 400 toneladas de ouro e 615 quilogramas de diamantes durante os 20 primeiros anos do século XIX. Nesse período, descobriram-se ainda outros metais nobres e seminobres no estado, tendo assim começado sua exploração e industrialização. A mineração é um fator de desenvolvimento para o Estado de Minas Gerais desde o tempo em que o Brasil era colônia de Portugal. Diversas cidades, pólos da exploração mineral, surgiram e desenvolveram-se, como por exemplo: Ouro Preto, Sabará, Mariana, Diamantina, Paracatu, Nova Lima, Araxá e Teófilo Otoni. Estudos recentes estimam que nas minas de ferro do Estado de Minas Gerais há uma reserva de elementos “terras raras” de 300 mil toneladas, especialmente em Poços de Caldas, que constitui uma nova fonte desses elementos, assim como de urânio e de tório. As intensas atividades mineradoras de Minas Gerais geram toneladas de rejeitos a céu aberto que acumulam consideráveis concentrações de metais pesados e elementos tóxicos provocando modificações na qualidade do meio. Hoje em dia, o governo brasileiro está bastante interessado na preservação do ambiente. Após a Eco-92, conferência mundial sobre o ambiente, que ocorreu na cidade do Rio do Janeiro, em 1992, diversos projetos foram desenvolvidos objetivando a conservação da natureza.

Importância econômica da bacia do Rio das Velhas.

O Rio das Velhas percorre uma região rica em ferro, alumínio, e manganês; atravessa todo o estado e deságua no Rio São Francisco, que é conhecido como o “rio da integração nacional” por atravessar cinco estados da Federação. As águas contaminadas de 24 grandes indústrias e de outras pequenas e clandestinas são despejadas no Rio das Velhas.

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Rio São Francisco

7

6

4 8 3

1

Rio das Velhas

5

2

Estado de Minas Gerais

Belo Horizonte

Fig. 1. Distribuição das reservas minerais do Estado de Minas Gerais e indicação do curso do Rio das Velhas e do Rio São Francisco. Legenda: 1. Quadrilátero Ferrífero – ferro, manganês, ouro, cobre, antimônio, alumínio e urânio; 2. Sul de Minas (Poços de Caldas) – alumínio, águas vulcânicas e radioativas; 3. Itapecerica – granitos; 4. Região Metalúrgica – calcares e cimento; 5. Zona da Mata – bauxita, kaolin, mica, feldspato; 6. Nordeste – pegmatia, gemas, kaolin, feldspato; 7. Noroeste – ouro e zinco; 8. Triângulo Mineiro – fosfato.

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Na região central do estado está situado o Quadrilátero Ferrífero, região muito importante economicamente para Minas e para o País, por possuir importantes reservas minerais de ferro (segundo maior produtor de minério de ferro no mundo), manganês, cobre, antimônio, arsênio, ouro, alumínio e urânio. O quadrilátero, que fica situado em uma superfície de aproximadamente 700 km2 entre a capital Belo Horizonte e as cidades de Santa Bárbara, Ouro Preto e Congonhas, é distinto dos outros pólos da mineração por seus aspectos econômicos, geológicos, geográficos, sociais e ambientais, além de conter 23 bilhões de toneladas de minério de ferro. A área do Quadrilátero Ferrífero é cortada pelas bacias do Rio das Velhas e do Rio Paraopeba, geologicamente ricas em ouro, minério de ferro, dolomita, manganês e gemas. A exploração dessas áreas não visa à preservação ambiental e, sendo assim, as regiões de cultura agrícola e de grande produção agropecuária, situadas em regiões mais distantes, no médio e baixo curso da bacia do Rio das Velhas, sofrem inundações freqüentes das águas contaminadas provenientes das regiões mineradoras (ver mapa demonstrativo da região).

Poluição do Rio das Velhas: causas e conseqüências

Muitos metais contaminam o ambiente oriundos de dejetos de minas, de materiais agrícolas como presentes em fertilizantes (cádmio, zinco e vanádio), pesticidas (arsênio, chumbo e zinco), preservativos de madeira (arsênio), corrosão de metais (zinco e cádmio), indústrias metalúrgicas (níquel, silício, manganês, prata, arsênio, antimônio, etc.) e de outras fontes tais como pigmentos e tintas, aditivos, lubrificantes e medicamentos. Rejeitos industriais originários de mineradoras, indústrias químicas e de processamento de metais são as maiores fontes de poluição do solo, incluindo grande variedade de metais pesados. Grande avanço nas pesquisas relacionadas ao estudo dos problemas de poluição ambiental ocorreu principalmente diante da necessidade de se obter respostas para diversos fenômenos observados em águas naturais, no meio que as cercam e nos seres vivos que delas dependem. A cada ano, milhões de toneladas de metais diversos são extraídos do solo e em seguida dispersados em parte na biosfera terrestre. A circulação crescente de metais tóxicos através do solo, água, atmosfera, e sua passagem inevitável pela cadeia alimentar humana e animal, constituem risco para a saúde de gerações futuras.

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Água e sedimento na região de mineradoras do Quadrilátero Ferrífero

Estudos já mostraram presença de teores elevados de metais no alto curso da bacia do Rio das Velhas em amostras de água e sedimento (figuras 3 a 6), onde foram detectados pontos críticos com presença de concentrações elevadas em arsênio, ferro, cromo, cobalto, ouro, dentre outros. As águas do alto curso desse rio fluem na região do Quadrilátero Ferrífero e, por conseqüência, são abundantes em ferro, alumínio e manganês. Esses metais, em épocas de enchentes e inundações, são transportados para o médio e baixo curso do rio, podendo interferir na ictiofauna e qualidade da vida humana e animal das regiões ribeirinhas. A alta concentração de arsênio em amostras de água e sedimento é causada por um antigo depósito deste elemento, chamado Morro do Galo. As concentrações anormais de ouro encontradas em amostras de água e sedimento foram provocadas pela intensa exploração deste mineral por parte da Companhia Morro Velho. Sua mina foi explorada nos últimos 160 anos, e é a maior fonte de poluição com metais tóxicos da água e solo na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Nova Lima e Itabirito. O governo de Minas Gerais mostrou interesse especial no caso da poluição do Rio das Velhas, pois trata-se de vasta área e é a principal fonte de água da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A partir de análises feitas, a grande quantidade de ferro encontrada confirma uma área de indústria mineradora perto da cidade de Itabirito como a maior fonte de poluição. Além do ferro, foi observado aumento de cromo e cobalto nas águas do Rio das Velhas provando o grande número de minas de minério de ferro da região. Ainda a respeito da contaminação, a presença de cromo no sedimento do rio é provavelmente causada pelo tratamento clandestino de couro que ocorre nas proximidades do local. A poluição de diversos rios significativos da área é devida às indústrias de mineração que continuam a derramar as descargas da mineração na água natural da área. As fontes principais de contaminação da água natural da área estão na ordem: ferro e indústria de aço, a indústria de purificação dos minérios e os garimpeiros.

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5900.00

6000 5000 concentração (ppm)

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4000 3000 2000 1000 300.00

0 Au

Fe Elementos

70

63

60 concentração (ppm)

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50 40 30 20

15

10

0.05

0 Au

Co

Cr

Elementos

Fig. 3 e 4 - concentração dos metais na amostra de água

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34200

35000 30000 concentrações (ppm)

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25000

16000

20000 15000 6000

10000

3600

330

1460

5000 0 Al

Cr

Fe

K

Mn

Na

0.4

0.4 0.35 concentração (ppm)

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0.3 0.25 0.2 0.15

0.15 0.1

0.06

0.05 0 Au

Cd

Cs

Fig. 5 e 6 - concentração dos metais na amostra de sedimentos

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Contaminação de forrageiras na região agropecuária ribeirinha do Rio das Velhas

Os resultados obtidos com as amostras de forrageiras (folha e caule) são muito mais elevados que aqueles indicados como valores normais. Estes resultados mostram que as águas e sedimentos contaminados por metais pesados e tóxicos provenientes do alto curso da bacia do Rio das Velhas, região de mineradoras, carregam contaminação para a região agropecuária, até uma distância aproximada de 400 km do Quadrilátero Ferrífero. A quantidade de ferro nas plantas é reflexo da espécie e do tipo de solo no qual ela cresceu. O alto teor de ferro encontrado nas forrageiras indica que ocorreu grande absorção deste elemento. Verifica-se também que a quantidade de ferro nas forrageiras atende às necessidades mínimas para a dieta dos bovinos, não havendo, portanto, necessidade da suplementação de ferro na dieta animal. Mas, por outro lado, o valor ultrapassa a concentração máxima tolerável. Os resultados obtidos no estudo mostram uma concentração de arsênico cerca de vinte vezes maior do que o valor tolerável. Como o arsênio fixa-se nas raízes, não havendo o transporte para as partes aéreas das plantas, a sua presença talvez seja proveniente do uso de agrotóxicos na região ou da irrigação com as águas do rio. Nas forragens, o teor de potássio pode variar devido à maturidade da planta; dependendo da espécie, da fertilização e das condições ambientais a que ela é submetida. O estágio de maturidade é provavelmente o maior fator de influência na forragem, pois quanto mais madura for a forragem, principalmente em países tropicais, menor é seu teor em potássio. Como este elemento é muito solúvel, seu teor na forragem pode variar conforme a estação, seja ela de seca ou de chuva. No estudo realizado no Rio das Velhas, a quantidade de potássio encontrado nas forragens Brachiaria sp. da região ribeirinha está acima dos valores de referência. A concentração encontrada dos elementos ouro, arsênio, cobalto, cromo, césio, ferro, potássio e manganês e nas plantas está acima dos valores considerados normais. Estes valores sugerem que a contaminação advém do uso de agrotóxicos nas atividades agrícolas da região, das enchentes do Rio das Velhas na época de chuva, do carregamento pela irrigação com a água do rio, pelo transporte soloplanta de alguns elementos, entre outras fontes de contaminação.

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4.4

4.5 4 3.5 concentração (ppm)

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3.2

3 2.5 2 1.5

1 0.8

1

0.05

0.5

0.01

0.002

0.02

0.02

0 normal

encontrado Au

As

Co

Cs

Sc

28000

30000

25800

25000 concentração (ppm)

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20000 15000 10000 5800

5000

153

27

0.2

700

0 normal

encontrado Cr

Fe

Fig. 7 e 8 - valores para forrageira

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K

Mn

630

0.01


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Contaminação do leite e da urina de vacas

A literatura não faz citações sobre os valores esperados de concentrações dos vários elementos em amostras de urina, exceto o arsênio e o cromo. Nas amostras, a concentração encontrada de arsênio na urina (figura 9) foi 40 vezes mais alta do que o teor citado para referência. O cromo foi determinado com teor cerca de 60 vezes mais elevado que o citado na literatura. As concentrações elevadas encontradas para esses elementos sugerem influência da ingestão da forragem contaminada. Para as amostras de leite (figura 10), as concentrações determinadas de bromo, cloro, cromo, potássio, sódio, e zinco nas amostras estão na faixa esperada de valores em leite de animais sadios. Considerando os elevados teores dos elementos nas amostras de forragem, não se constatou o transporte forragem-leite.

0.5

0.5 0.45

0.4

0.4 concentração (ppm)

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0.35 0.3 0.25 0.2 0.15 0.1 0.01

0.05

0.006

0 As

Cr Elementos Encontrados

Normais

Fig. 9 - concentração dos metais na urina de vacas

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1469

1600 1400 concentração (ppm)

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1200

1130

998 900

1000 800 600

450

400 200 0 K

Cl

Na

Elemento Encontrados

Normais

12 10 concentração (ppm)

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8 6 4 2 0 Br

Zn Elementos Encontrados

Normais

Fig. 10 e 11 - concentração dos metais no leite bovino

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Contaminação dos peixes do Rio das Velhas

Os peixes da bacia do Rio das Velhas são diretamente afetados pelos níveis anormais de metais pesados. Como fazem parte da alimentação da região, o estudo da poluição em tais organismos tornase obrigatório. Análises foram realizadas utilizando dois tipos de peixes da bacia do Rio das Velhas: nas amostras dos peixes mortos, níveis de concentração mais elevados de alumínio, cobre, zinco, arsênio e cobalto foram observados quando comparados com as amostras dos peixes vivos. Os efeitos dos metais pesados no comportamento dos peixes foram discutidos em uma recente revisão detalhada. Foram observados: locomoção, respiração, aprendizagem, reprodução, alimentação e vacância predatória. Estudos sobre os efeitos da toxicidade do cobre no metabolismo dos peixes (famintos e bem alimentados) mostraram que, após exposição de sete dias desses dois grupos ao cobre, o metal havia se acumulado nas brânquias. Mas somente os peixes famintos acumularam o metal no fígado. Se os peixes forem realimentados após sete dias de jejum e contaminação, haverá uma diminuição na concentração de cobre no fígado, mas se o jejum continuar, o cobre permanecerá retido no organismo do peixe.

450

419

412

400 350 concentração (ppm)

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300 250 200 150

131

141

137

137

65

100

65

50 0 Vivo

Morto Na

Mg

Cl

K

Fig. 12 - concentração dos metais em peixes mortos e vivos

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0.3

0.28

0.25 0.22 concentração (ppm)

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0.2 0.15 0.1 0.06

0.04

0.05

0.05 0 Morto

Vivo As

Co

Hg

11.9

12

10.9

10 concentração (ppm)

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9.3

8

7.3

7

6 4

2.8

2 0 Morto

Vivo Al

Cu

Zn

Fig. 13 e 14 - concentração dos metais em peixes mortos e vivos

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Os metais, especialmente o alumínio, são suspeitos por poluir o ecossistema e por inibir o metabolismo de seres vivos como peixes. A partir daí, podemos dizer que também brânquias, intestino e músculos são afetados pelas elevadas concentrações desses metais nos peixes. São muitos os elementos contaminantes que se incorporam ao ambiente aquático, podendo trazer efeitos dramáticos na biovaliabilidade e na toxicidade do processo biológico.

Efeito nos animais ribeirinhos

Várias são as possibilidades de contaminação dos animais. Materiais industriais, rejeito de fundições, forragens, águas e solos contaminados estão entre os fatores que podem estar relacionados aos fenômenos de mortes sem diagnóstico confirmado em animais criados em áreas banhadas pelo Rio das Velhas. É relevante ressaltar que essas mortes ocorreram em regiões alagáveis que recebem diversos elementos metálicos em épocas de enchentes e inundações. Após o período de enchentes e inundações na região, médicos veterinários já notificaram a ocorrência de morte de animais apresentando sintomas variados sugestivos de intoxicação. Os sinais clínicos que acompanham os quadros de intoxicação por metais são manifestações de ordem geral, representados na maioria das vezes, por vômito, diarréia, inquietude, aumento das freqüências cardíaca e respiratória, incoordenação, seguidos de depressão e morte. Assim, a determinação de elementos inorgânicos na forragem, urina e leite bovino, do médio e baixo curso da bacia do Rio das Velhas podem ser as fontes de intoxicação desses animais.

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Conclusão

A poluição dos rios no Quadrilátero Ferrífero foi estudada nos últimos anos. Esses rios têm recebido, há mais de um século, os rejeitos das indústrias e companhias de mineração. Amostras de água, sedimento, peixes, forrageira, leite e urina de vacas foram analisadas com o intuito de avaliar o nível de metais pesados presentes na bacia hidrográfica do Rio das Velhas. A associação dos métodos de análise multielementares, ICP-MS (espectrometria de massa associada a uma fonte de plasma de argônio) e INAA (Análise por ativação neutrônica instrumental) permitiram uma investigação precisa das concentrações dos elementos e evidenciaram a presença de poluentes industriais e de rejeitos de mineradoras. Mostram ainda que as águas e sedimentos contaminados em metais pesados e tóxicos, provenientes do alto curso da bacia do Rio das Velhas, região de mineradoras, carregam contaminação para a região agropecuária, a uma distância aproximada de 400 km. Portanto, é relevante ressaltar que não somente a água, mas toda a região ribeirinha é afetada pela poluição causada pelos metais e, por essa razão, a preservação da bacia do Rio das Velhas é uma questão não só de conservação, mas de sobrevivência humana através do desenvolvimento sustentável.

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Fotografia: Foca Lisboa.

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Abstract

Pollution of waters with toxic metals: environmental impact The discovery of Brazil occurred in the year of 1500 by Portugal. Since the first expeditions, the Portuguese were only interested by the exploration of the natural resources of Brazilian lands, initially searching pau brasil and than culminating in the discovery of Velhas River gold deposits and the discovery of the diamond deposits in century XVII, thus starting the period known as the cycle of the gold, that lasted until the beginning of century XIX. The Velhas River crosses the state and empties in the São Francisco River, which is known as the river of the national integration. Besides this, Velhas River cuts a region known as Iron Quadrangle, a very important economical region for Minas Gerais and Brazil, because it posses important mineral reserves of iron (second great producer of iron ore in the world), manganese, copper, antimony, gold, aluminum and uranium. This river has received, for more than a century, contaminated waters and dust from industries and mining company. Studies already had shown high metal text presence in the high course of the basin of Velhas River in samples of water and the sediment. As these waters flow in the Iron Quadrangle region, they are, for consequence, abundant in iron, aluminum and manganese. These and other metals, at floods seasons, are carried to the medium and low river course having been able to intervene in the human being and marginal regions animal life quality. The exploration of these areas, does not aim the environmental preservation and, being thus, agricultural cultures and great farming production regions situated in the Velhas River medium and low course suffer frequent floodings of contaminated waters proceeding from the mining regions. The mining is a factor of development for the state of Minas Gerais since the time where Brazil was a colony of Portugal. The intense mining activities of Minas Gerais produces tons of dust at open sky that accumulate considerable metal heavy and toxic elements concentrations provoking modifications in the environment quality . Each year, millions of tons of diverse metals are extracted from the ground and after that, are spread in the terrestrial biosphere. The toxic metals increasing circulation through the ground, water, atmosphere, and its inevitable passage through human being and animal alimentary chain, constitutes a risk to future generation’s health. The government of Minas Gerais showed a special interest in the case of Velhas River pollution; therefore it deals with a vast area that is the Belo Horizonte metropolitan region main water source. Therefore, it is important to stand out that the preservation of Velhas River basin is a question not only of conservation, but of human being survival through a sustainable development.


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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador do Projeto ManuelzĂŁo


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20 Saúde humana e ambiente Antônio Thomaz Gonzaga da Matta Machado 1

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Introdução

A palavra saúde tem sido utilizada pela Medicina e pelas pessoas em geral para designar o seu contrário, isto é, a doença. Na Medicina, tanto na clínica quanto na saúde pública os chamados indicadores de saúde são indicadores de doença e morte. Assim, falase muito em taxas de mortalidade infantil, prevalência e incidência da dengue, da hipertensão arterial, etc. O chamado Posto de Saúde que hoje existe em qualquer cidade do Brasil, na maioria das vezes é um Posto de Doença porque os profissionais que ali trabalham lidam muito mais com doenças do que com saúde. A Pediatria é a única especialidade médica que conseguiu abordar a saúde de forma positiva porque trabalha intensamente com o conceito de cuidado. Desse modo, a criança desde que nasce precisa de cuidados para que não adoeça e morra. A vacinação de todas as crianças possibilitou queda significativa da mortalidade infantil no Brasil. Em um período relativamente curto, uma geração, ela caiu de 100 ⁄ 1000 para 29 ⁄ 1000. A puericultura acompanha o crescimento e desenvolvimento da criança, pesando, medindo, aconselhando as mães a ferverem ou filtrarem a água, a praticarem o aleitamento materno, orientando quanto à introdução de alimentos próprios para cada idade. A Pediatria deixou de ser prática só dos médicos e incorporou suas tecnologias na prática das enfermeiras, desde a auxiliar até a enfermeira de nível superior. Assim, todos vacinam, pesam, medem , visitam os domicílios, etc. Podemos afirmar que o Posto de Saúde promove a saúde das crianças. Ao contrário, a clínica de adultos, excetuando a ginecologia e a obstetrícia, lida apenas com a doença.

Curso d’água com as margens degradadas e lixo. Arquivo Projeto Manuelzão.

O ambiente também é visto pela Medicina e pela saúde pública como algo negativo, externo. Quando nos referimos ao ambiente pensamos algo de fora de nós mesmos e do local onde estamos. No ambiente estão os germes, bactérias e vírus causadores das doenças. Mesmo com o advento das doenças modernas, tais como doenças cardiovasculares, cânceres, acidentes que não são causados necessariamente por um microorganismo, o ambiente continua a ser visto como algo externo e que não pode ser controlado. Nele estão fatores de risco determinantes de doenças. Estes podem ser físicos, químicos, biológicos, nutricionais, econômicos, culturais, psicossociais e ecológicos. O interesse da Medicina se volta principalmente para o chamado meio interno, ou seja, o organismo humano com sua química, suas células e sistemas. Mesmo a saúde pública, através da contribuição da Engenharia e da Arquitetura, vê o ambiente de forma restrita. A preocupação é com o microambiente onde os humanos habitam, a casa, o apartamento, sua ventilação, calor, iluminação e presença de instalações sanitárias. O destino dos dejetos e restos humanos como o lixo tem de

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ser longe das moradias e estas têm que evitar o contato das pessoas com o ambiente, também visto como externo e de difícil controle, potencialmente causador de doenças. O desafio atual está em mudar o olhar e mesmo o corpo de conhecimento das diversas disciplinas e profissões que lidam com saúde e ambiente. Isto significa mudar o modelo explicativo da determinação do processo saúde ⁄ doença. Logo, a referência ao ambiente tem que denotar que nós somos e estamos nele. O modelo sistêmico permite abordagem mais abrangente do processo saúde ⁄ doença. Sistema é definido como “um conjunto de elementos de tal forma relacionados que uma mudança no estado de qualquer elemento provoca mudança no dos demais elementos”. Um bom exemplo de sistema é o sistema solar. A evolução do Universo fez com que o Sol e os planetas Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão funcionem como um relógio, sempre juntos. Cada planeta com seus satélites funcionam também como sistema dentro do grande sistema solar. A distância da Terra ao Sol definiu a temperatura do nosso planeta. Alguns planetas são gelados, outros ferventes. A Terra é o único planeta que possui água em forma líquida. Água em estado gasoso existe em outros planetas, assim como os cometas em geral contêm gelo. Na água líquida, fruto do acaso e da necessidade, apareceu a vida, os seres biológicos. O modelo sistêmico permite romper a dicotomia entre meio interno e meio externo. O ecossistema, que envolve os seres humanos, inclui as relações dos homens entre si e com a diversidade biológica presente no planeta, com o substrato inanimado, presente no ambiente e de todos entre si. O meio ambiente contém o espaço físico, os seres biológicos e o espaço social. Ambiente pode ser definido como “o espaço onde se desenvolvem as populações humanas” ou, numa visão mais ampliada, como o espaço onde se desenvolvem os seres vivos. O caráter social da presença humana é um dos elementos constitutivos deste grande ecossistema — o planeta Terra. Assim, o ambiente deixa de ser o “meio externo” e passa para o interior do sistema, é internalizado, com o substrato inanimado, ou seja, tudo aquilo que existe e não se reproduz. A alteração da órbita de um satélite de Saturno pode provocar modificações profundas em todo o sistema solar. Todo sistema tende ao equilíbrio, que gera um sistema renovado com características diferentes das anteriores, porém contendo elementos da situação anterior. A queda de um grande meteoro no Golfo do México provocou transformações que mudaram completamente o planeta Terra. Nesse período, os dinossauros desapareceram e outros seres foram, através das eras, ocupando o seu espaço. Podemos dizer que a queda daquele meteoro provocou um processo e um novo equilíbrio que resultou no surgimento dos seres humanos como espécie dominante da Terra.

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Os humanos idealizaram um ecossistema teórico no qual eles estão no centro. Para o desenvolvimento, higidez e ampliação do tempo de vida dos indivíduos de sua espécie, sua ética autoriza provocar desequilíbrios no ecossistema real. Não resta a menor dúvida a respeito dos grandes avanços produzidos no século XX, quando a expectativa de vida dobrou em países desenvolvidos e quase dobrou em países como o Brasil. Por outro lado, as ações humanas sobre o planeta têm provocado importantes desequilíbrios que podem ameaçar a própria espécie humana.

Os problemas ambientais globais

A espécie humana, em sua evolução estabeleceu diferentes relações com o ambiente. Enquanto nômades, percorriam territórios em busca de frutos e caças, sendo também caçados pelos seus predadores. Participavam do ciclo incessante de nascimento, vida, morte, renascimento ⁄ regeneração praticamente como qualquer mamífero. Segundo Morin, “tudo aquilo que é existência, ser, organização, ordem viva é, incessantemente não só gerado, mas também regenerado, como dizem as mitologias antigas, neste ponto muito mais profundas do que muitas abstrações contemporâneas.” Posteriormente, como sedentários, aprenderam a agricultura e a pecuária ampliando sua população e provocando maiores desequilíbrios no ecossistema, inclusive com a introdução de novas espécies vegetais e animais e sempre novo equilíbrio. Durante séculos, a energia utilizada dependia basicamente da força humana e da força animal. Nesse período, as alterações provocadas pelos humanos eram circunscritas a territórios relativamente pequenos e mesmo com o surgimento de aldeias e depois cidades, a ação humana não afetava o conjunto do planeta. Novos equilíbrios recriavam ecossistemas sem grandes ameaças ao planeta. O surgimento da energia a vapor seguida da energia baseada na combustão do carvão e do petróleo, passando pela energia elétrica e eletrônica, fez com que a nossa ação no planeta afetasse todo o grande ecossistema Terra. Assim, a fumaça do ônibus que transita em uma pequena cidade contribui para o efeito estufa, um dos principais problemas ambientais. O efeito estufa acontece quando deixamos um carro parado no sol. A luz penetra trazendo calor que não tem como sair porque as janelas estão fechadas. A emissão permanente de dióxido de carbono através da utilização de motores a combustão (o ônibus), das queimadas de extensas áreas de florestas, além de outras causas provoca o efeito estufa no conjunto do planeta, a luz do sol que aqui penetra traz o calor que alimenta a vida. Quando parte dele por nossa ação não consegue sair, atinge as calotas polares, provocando a elevação do nível dos oceanos, o que vem causando inundações e catástrofes em todo o planeta.

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Hoje falamos em crise energética porque a principal fonte de energia, o petróleo, é causadora do efeito estufa. As cidades transformaram-se no principal habitat dos seres humanos. Esses ambientes artificiais, com alta concentração demográfica, exigem, em suas indústrias e nas vias de transporte, a queima de combustíveis que são lançados na atmosfera. Embalagens e restos alimentares são produzidos em grande escala e lançados no solo e nos rios. O lixo talvez seja o principal problema ambiental global. Não apenas nos chamados países em desenvolvimento, mas também nos desenvolvidos a questão do lixo está mal resolvida. Nova York, a principal cidade do país mais desenvolvido do planeta, transporta seu lixo diariamente para setecentos quilômetros da cidade! Outro desequilíbrio global importante é a perda da biodiversidade. 11 % das aves já desapareceram, assim como 25 % dos mamíferos e 34 % dos peixes. A água “doce”, até recentemente vista como recurso inesgotável, começa a se tornar escassa em vários pontos do planeta, não só pelo crescimento das populações em regiões historicamente desprovidas de recursos hídricos, mas também pela sistemática poluição dos rios com esgotos humanos, efluentes industriais e todo tipo de resíduos sólidos, pelo desmatamento generalizado e outras intervenções que impermeabilizam o solo. As chuvas trazem a água para o solo, onde ela penetra, infiltra, alimentando os lençóis subterrâneos e as nascentes dos córregos, rios e lagos. A partir daí, a água corre para o mar ou fica retida para garantir as reservas dos mananciais. Posteriormente, através da evaporação, atinge o estado gasoso deixando o sal nos oceanos, sendo transportada pelas nuvens que sofrem a ação de correntes de ar, para que a água atinja novamente o estado líquido e reinicie com as chuvas o ciclo hidrológico.

Estragos provocados pela cheia do Rio das Velhas. Fotografia: Foca Lisboa.

As matas de topo e ciliares foram destruídas para dar lugar a áreas para a agricultura e pastagens. Os aqüíferos e rios estão secando, assoreando e perdendo sua biota, devido à impertinência dessas intervenções, ditas sem sustentabilidade. A construção das cidades impermeabilizou os solos através de calçadas, vias asfaltadas e quintais cimentados. Além disso, utilizou-se o leito dos rios e córregos na construção de ruas e avenidas, através de canalizações que os retificam, provocando enchentes a jusante (abaixo), matando os peixes, as algas, os insetos e outros seres do ecossistema aquático, transformando-os em verdadeiros esgotos. Esse tipo de ação humana interfere no ciclo hidrológico, causando escassez de água porque além de romper a possibilidade de sua percolação no solo, secando os lençóis subterrâneos, aumenta a velocidade das águas, diminuindo sensivelmente o tempo de sua chegada aos mares.

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A crise ambiental

O início dos anos 70 do século passado foi marcado pela emergência da questão ambiental. A Conferência de Estocolmo, organizada em 1972 pelas Nações Unidas, elaborou diagnóstico que, paulatinamente, foi-se incorporando às agendas de governos, universidades, centros de pesquisa e dos chamados movimentos ambientalistas. Duas décadas se passaram até a realização da Conferência Mundial do Meio-Ambiente, no Rio de Janeiro, a ECO92, convocada pela Organização das Nações Unidas — ONU, na qual não só os estados membros participaram, mas também movimentos sociais, organizações não governamentais dedicadas à causa ambiental. Cidadãos e cidadãs de todo o mundo acompanharam os debates, principalmente pela televisão. Assim, a crise ambiental, incluindo diagnósticos e proposições para sua solução, transformou-se em preocupação planetária. A questão ambiental incorporou-se ao “sentimento do mundo”. A questão colocada não é que a espécie humana está destruindo o planeta. A Terra é viva e assim como passou por várias idades e eras continuará seu desenvolvimento, e seus ciclos de nascimento, vida, morte, renascimento ⁄ regeneração. A crise ambiental coloca-nos diante da capacidade dos humanos permanecerem como espécie dominante integrada ao ecossistema. Dependendo de nossa ação outras espécies podem aparecer e dominar, assim como os dinossauros e os grandes mamíferos já foram dominantes. A própria consciência da crise ambiental é fruto da necessidade da busca de um novo equilíbrio do qual seremos parte. A crise ambiental anuncia a crise da civilização atual. A inteligência e o conhecimento de homens e mulheres, enfim o principal diferencial da nossa espécie precisa se voltar para a sua resolução. Quatro importantes conceitos devem ser incorporados ao nosso conhecimento e à nossa ação: sustentabilidade, diversidade, democracia e cuidado. O conceito de sustentabilidade introduz a idéia de que nossa ação no planeta, em qualquer área, tem que levar em conta a qualidade de vida das gerações futuras. Assim como as professoras cuidam, educam e formam a futura geração, o Planejamento Urbano, a Economia, o Direito, a Engenharia, a Saúde Pública precisam incorporar esta preocupação. Diversidade é o reconhecimento e o respeito à diferença do outro. Diversidade de gênero, de opção sexual, raça, condição social, cor, etnia, etc. são reconhecidos por códigos legais em grande parte do planeta. Entretanto, não é suficiente reconhecer a diferença do outro de nossa espécie, mas de todas as espécies do ecossistema. A

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expressão “Todos os seres têm direito à vida” sintetiza a chamada biodiversidade. A democracia viabiliza ações práticas em direção à resolução dos problemas causados pela crise ambiental. A mudança do nosso olhar sobre o planeta exige a participação e o encontro de todos os cidadãos e cidadãs de forma igualitária. Não basta um sentimento favorável à preservação e à recuperação do meio ambiente, é preciso também agir, mudar hábitos, atitudes, se educar e educar o outro, participar de decisões políticas, etc. A crise ambiental convida-nos à construção da democracia participativa. Eleger representantes periodicamente e responder questionários de pesquisa é terreno da democracia representativa, que mesmo mantida tem que ceder espaço à participação com direito decisório de todos. A ação tem que ser em nível local, perto de onde moramos e vivemos. Pensando a crise planetária, se cada ser humano da Terra participar em nível local, estará contribuindo para a solução global. A manutenção da nossa espécie no planeta dependerá da nossa capacidade de cuidar dele.Tudo que existe e vive precisa ser cuidado para que continue vivendo e existindo. O cuidado nos remete ao afeto. Não existe possibilidade de retorno do ambiente que existia antes da revolução industrial. O novo equilíbrio fará renascer outro ambiente, inclusive nas grandes cidades. Por isto, é necessária ação consciente e inteligente no cuidado ao ecossistema. Da mesma forma que cuidamos das crianças, dos idosos e dos doentes, precisamos cuidar do nosso entorno. Em geral, cuidamos também da nossa casa, respeitando o espaço onde partilhamos a vida com nossos filhos. O planeta tem que ser visto como nossa casa , esta é a mudança ética fundamental da nossa época. A ação prática pode ser resumida em vigiar e cuidar. O cuidado é inerente à condição feminina nos mamíferos, por isto a ação das mulheres tende a se ampliar e ganhar importância até para os homens incorporarem em sua vida o conceito do cuidado, o que vem acontecendo em escala planetária pelo menos em relação aos filhos.

Promoção da Saúde

A Promoção da Saúde como movimento internacional é um esforço em direção à construção de propostas de ação para a cidadania e também para o setor público que resultem em melhoria da qualidade de vida em um ambiente favorável à saúde. Os chamados cuidados primários de saúde comportam quatro tipos de atividades, cada uma com tecnologia e complexidades próprias. A atividade curativa é o atendimento clínico tradicional dentro do consultório. A atividade preventiva pode ser individual ou coletiva. Como o nome indica, ela visa a prevenir doenças ou agravos. A vaci-

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nação é a atividade preventiva mais difundida. O pré-natal, os grupos operativos (hipertensão e diabetes) e a puericultura são atividades preventivas. O planejamento e gerenciamento do cuidado primário exigem tecnologias complexas como o planejamento estratégico, administração adequada dos remédios e outros insumos, desde sua compra, armazenamento, conservação, administração de pessoal, apoio às atividades principais, etc. Finalmente, atividades de Promoção da Saúde são aquelas voltadas para o ambiente. Atualmente, a atividade curativa é dominante no SUS e no setor privado de atenção médica e a Promoção da Saúde é marginal no SUS e ausente no setor privado. A Organização Mundial da Saúde, na década de 90 do século passado, realizou várias conferências internacionais com o objetivo de definir e incentivar experiências de Promoção da Saúde em todo o mundo. Todo consenso internacional é por natureza genérico, à medida que tem que contemplar interesses muito diversos. A generalidade perde em conteúdo, mas permite contemplar experiências diversas e assim aperfeiçoar conceitos e definições. Para a OMS, a Promoção da Saúde deve contemplar cinco eixos: definição e criação de políticas públicas saudáveis, criação de ambientes favoráveis à saúde, mudança de hábitos e atitudes das pessoas, promoção da ação comunitária solidária e reorientação dos serviços de atenção médica, incorporando o ambiente como meta e espaço a ser cuidado. As experiências mais conhecidas giram em torno da escola, do local de trabalho e das cidades. Quando a Promoção da Saúde elege a escola e o local de trabalho como espaços de atuação, ela perde a dimensão do ambiente, dado que os ambientes-alvo passam a ser apenas o espaço da escola ou da fábrica. As ações atingem em parte o ambiente fora da escola ou da fábrica, como por exemplo, as crianças se educam para a limpeza urbana, ou as intervenções dentro de uma fábrica resultam em diminuição da emissão de poluentes. Entretanto, o ambiente continua sendo visto e sentido como algo externo à escola ou local de trabalho. Esta abordagem não incorpora a dimensão ecossistêmica.

Captação de água de montanha para uma pequena comunidade rural Fotografia: Foca Lisboa.

A cidade como espaço de Promoção da Saúde permite abordagem mais ampla. A cidade contém o ambiente e como território da Promoção da Saúde exerce forte pressão sobre os serviços de atenção médica que são obrigados a romper com o caráter de atenção exclusiva à doença.As ações precisam ser transetoriais e transdisciplinares e possibilitadoras da interlocução entre as áreas de saúde, educação, limpeza urbana, fiscalização ambiental, regulação urbana, abastecimento, lazer. A criação de ambientes favoráveis à saúde, no território da cidade do século XXI, requer complexa integração entre cidadãos, poder público, organizações não-governamentais e entidades privadas. Essa integração exige a mudança da racionalidade

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que orienta a concepção hegemônica nos governos das cidades do planeta. Saúde não pode ser de responsabilidade de uma secretaria, mas precisa estar presente na preocupação do conjunto do governo da cidade. Por outro lado, a cidade, apesar de conter a totalidade do ambiente local, é um território organizado e construído de uma forma desintegradora do ambiente natural, e governado, mesmo quando descentralizado em subterritórios, de uma forma parcializada e setorizada. A organização e o governo das cidades dificultam as ações de Promoção da Saúde e também, como conseqüência, a internalização da crise ambiental pela saúde coletiva. O território ideal para a Promoção da Saúde teria que expor de forma incisiva o ambiente, integrando ser humano e natureza, diversidade social e biológica no espaço preferencial e dominante do convívio humano na atualidade — as cidades.

Água e bacia hidrográfica: uma proposta de Promoção da Saúde

Depósito de lixo à beira d’água. Fotografia: Foca Lisboa.

O Projeto Manuelzão é uma proposta de Promoção da Saúde, que tem como pressuposto da sua metodologia a água e a bacia hidrográfica. A qualidade da água indica a qualidade do ambiente. Através do exame da água é possível detectar os problemas ambientais em uma cidade: a presença de esgoto, lixo, efluentes industriais, assoreamento (areia, minério, terra proveniente de loteamentos). Atualmente, a água é vista principalmente como recurso hídrico, prevalecendo uma racionalidade econômica. Assim, a legislação brasileira, que regula a gestão das águas, prioriza o abastecimento humano, produção de energia, irrigação, turismo, navegação, etc. Muito recentemente, no âmbito das políticas de gestão das águas, apareceu a preocupação com a revitalização ou preservação dos rios, córregos e mananciais. A água precisa ser vista em uma dimensão ecológica, já que, dentro dos corpos d’água, habita uma rica fauna, o ecossistema aquático, que contém as algas animais e vegetais, os chamados macroinvertebrados bentônicos e os peixes. Benton, em grego significa fundo, portanto bentônicos são os seres que habitam o fundo dos rios e córregos, podendo ser insetos, moluscos e outros tipos. A águas sempre correm em bacias hidrográficas. Uma pequena nascente forma um filete, que se encontra com outros que formam um córrego, que se encontra com outro e forma um ribeirão, que se encontra com outros para formar um rio, que se encontra com outros e geram um grande rio que chega ao mar. Bacia hidrográfica não é o leito dos rios e córregos como muitos pensam. A bacia contém também território e o chamado divisor de águas. Assim, uma pequena elevação é um divisor de água de dois córregos, uma grande serra é em geral divisor de águas de grandes rios. A Serra do Espinhaço em Minas Gerais é o

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divisor de águas da bacia do São Francisco e Jequitinhonha. A bacia contém o leito de córregos e rios, ecossistema aquático, fauna animal e vegetal e seres humanos. Um córrego está em uma microbacia, que está em uma sub-bacia de um Ribeirão, que está em uma bacia de um rio. Bacia hidrográfica é um sistema natural integrado e aberto. A bacia hidrográfica emerge como território de escolha para a promoção da saúde. Todos os seres humanos são habitantes de bacias hidrográficas desde quando de nômades passaram a ser animais sedentários. Os brasileiros habitam a bacia atlântica, microbacias, sub-bacias, bacias de grandes rios que findam no Oceano Atlântico. Ao lado da mobilização social, a água perfila como eixo estratégico da promoção da saúde. A qualidade da água indica a qualidade do meio ambiente do território demarcado pela bacia. A mobilização social requer a construção de um imaginário, de um objetivo comum que consiga sintetizar interesses diversos. A adesão de cidadãos e cidadãs à mobilização decorre de interesses muitas vezes individuais. O objetivo comum tem que ser ao mesmo tempo simples, compreensível e sintetizar toda a complexidade da temática suscitada por Saúde e Meio Ambiente para atingir o imaginário dos diversos atores sociais. A “volta do peixe aos rios” como objetivo “pontual operacional comum” tem este poder de síntese. A comunidade da bacia do Córrego Santa Terezinha, em Belo Horizonte, é pioneira na aplicação da metodologia descrita acima. A bacia do Córrego Santa Terezinha contém o bairro Vera Cruz e parte do Taquaril. Possui uma população de cerca de 20.000 habitantes. O córrego é bastante poluído. A partir do aparecimento no Posto de Saúde local de duas crianças mordidas por ratos, a comunidade mobilizou-se e formou um Comitê Manuelzão. Participam do comitê a comunidade, diversos órgãos da Prefeitura, tais como limpeza urbana, obra, educação, saúde, fiscalização ambiental, a Copasa e a UFMG. O comitê, em um primeiro momento, procurou responder às razões do desaparecimento do peixe no Córrego Santa Terezinha. Muitas pessoas lembraram com saudade e afeto o córrego limpo, os peixinhos, a cachoeira, o murmúrio das águas. A conclusão, depois de debates, foi pela necessidade imediata de retirar o lixo do córrego. Então, as escolas mobilizaram-se, o serviço de obras da Prefeitura abriu um acesso melhor para o caminhão de lixo, os moradores da beira do córrego formaram condomínios para evitar a chegada do lixo ao seu leito, um grande mutirão retirou toneladas de lixo de dentro do Santa Terezinha. As discussões do comitê chegaram à conclusão de que era necessário revitalizar o Santa Terezinha. Assim, após manifestações públicas, idas à Câmara Municipal, aos órgãos do executivo, foi elaborado um projeto de

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.


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recuperação do córrego, que será executado com recurso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social — BNDES. O ecossistema aquático já está sendo monitorado. Foram feitas duas coletas de algas e bentos antes do inicio da obra de recuperação do Santa Terezinha. O comitê funciona com reuniões mensais para vigiar e cuidar da bacia do Santa Terezinha. Funilândia é uma pequena cidade da bacia do Rio das Velhas. Lá funciona o Comitê Peixe Vivo Manuelzão. Participam do comitê a pastoral católica, os secretários de Saúde, Obras e Administração da Prefeitura, o grupo de idosos do Programa de Saúde da Família, vereadores, Copasa, estagiários de Faculdade de Medicina da UFMG e o Projeto Manuelzão. O Comitê Peixe Vivo cuida do Córrego Pau-deCheiro, pequeno afluente do Rio das Velhas. A discussão sobre as causas do desaparecimento do peixe no Pau-de-Cheiro resultaram em três prioridades: educação ambiental nas escolas, reforma da Estação de Tratamento de Esgoto e limpeza urbana. As escolas mobilizaram-se, fizeram festas, teatros, passeios na pequena bacia, semana do lixo, semana da água. A secretaria de Obras e a Copasa viabilizaram a reforma da ETE atualmente em operação. Toda a coleta de lixo foi reformulada e foi feita uma solicitação da Prefeitura ao orçamento de 2004 da União de recursos para a construção de uma estação de tratamento do lixo. A bacia hidrográfica tem seus limites traçados no ambiente natural e constitui-se como território antes da formação das cidades, cujos territórios têm a racionalidade das capitanias e sesmarias e não levam em conta a lógica ambiental. Toda cidade pertence a uma bacia hidrográfica, que por sua vez contém sub-bacias, bacias elementares e micro-bacias. A preservação e a recuperação das bacias hidrográficas convidam a comunidade e os órgãos governativos a planejarem juntos a promoção da saúde. É um território de fácil percepção para as comunidades rurais ou de pequenas e médias cidades. Nos grandes centros urbanos ela facilita a delimitação de um espaço real e não abstrato para o planejamento urbano. A descentralização das cidades aponta para a melhoria da qualidade de vida. As ações realizadas em nível local são mais eficazes. Trabalhar, estudar, divertir, comprar, vender, distribuir direitos, recuperar córregos poluídos, cuidar das crianças, cuidar da hipertensão arterial, combater a poluição sonora, garantir a coleta seletiva dos resíduos sólidos são atos que, quando realizados mais próximos ao local de moradia dos consumidores e cidadãos, alcançam resultados mais satisfatórios. Bacia hidrográfica é um território que favorece a ação local nos grandes centros urbanos. Integra diferentes setores, produz ação comunitária, descortina a necessidade de realização de políticas públicas saudáveis que recuperem as nascentes, retirem os esgotos domésti-

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cos e industriais dos rios, córregos e lagos, favorece a volta da biota. A criação e a manutenção de ambientes favoráveis à saúde depende dos resultados destas políticas e do manejo integrado das bacias. Os indicadores biológicos da qualidade ambiental são úteis na avaliação da qualidade de vida humana. A volta dos peixes exige mudanças de hábitos, atitudes, estilos de vida e mentalidade. Grande parte da humanidade realizou, no século XXI, mudança de hábitos e atitudes na sua relação com os próprios dejetos. A trajetória da urbanização fez com que fossem criados espaços que dos quintais passaram para dentro das residências, de onde urina e fezes, através de mecanismos hidráulicos, são levados para o mais distante possível dos domicílios. Essa mudança no micro ambiente doméstico foi, e ainda é, em muitos lugares, essencial para o combate à mortalidade infantil. A crise ambiental exige mudanças de hábitos, atitudes, estilo de vida da mesma natureza . A metodologia do Projeto Manuelzão permite uma abordagem integrada de três grandes problemas ambientais globais: a crise da água, o lixo e a perda da biodiversidade. A volta do peixe e do ecossistema aquático tem uma dimensão de afeto. A poluição dos rios e córregos afasta-nos deles, passamos a rejeitá-los. Todos nós temos afeto pelos rios e córregos limpos, e quando poluímos os das nossas cidades partimos para encontrá-los em locais próximos ainda não degradados. Por isto, a volta do ecossistema aquático significa também o retorno do afeto aos rios. A Expedição do Manuelzão conseguiu fazer com que os habitantes da bacia do Rio das Velhas se voltassem para o rio para olhá-lo de frente e com afeto. Mostrou que para recuperar a bacia precisamos de determinação, solidadariedade e muito trabalho. O Projeto Manuelzão aplica os quatro grandes princípios necessários ao enfrentamento da crise ambiental. Sustentabilidade e diversidade, quando advoga rios limpos para as novas gerações; democracia participativa e cuidado, quando funda os comitês com o objetivo de planejar o cuidado às bacias e promover a educação ambiental.

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Abstract

Human health and environment This chapter presents a critical vision of the government’s traditional approach to health and environment. Prioritizing the treatment of disease and considering the environment as an external factor, a degradation ethic is indirectly admitted in function of the promotion of human health. Getting over this approach requires a systemic view, incorporating human beings inside the ecosystem, breaking the anthropocentric paradigm. The ecosystem, which involves human beings, includes relations between humans and humans with the biologic diversity found on the planet, the inanimate substrate present in the environment and of all of them amongst themselves. Human history and technological advances have provoked global environmental problems and the start of the environmental crisis. The environmental crisis is a prelude to the present civilization crisis. Human intelligence and knowledge, the factors that differentiate our species, need to be directed to the solution of these problems. The main global environmental problems are also analyzed here, like the greenhouse effect, the energy crisis, garbage and solid waste, loss of biodiversity and the water crisis. The Manuelzão Project is presented as holder of an innovating methodology of health promotion. Having chosen the water and river basin as its axis and incorporating concepts of sustainability, diversity, participative democracy and care, the Project makes it possible to directly face three of the great global environmental problems: the water crisis, garbage and solid waste and the loss of biodiversity.


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Negros na lavagem de diamantes em Minas Gerais. John Mawe (esboço), Webster e Woolnoth.

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Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador do Projeto ManuelzĂŁo


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21 Produção-consumo e ambiente: uma visão da saúde do trabalhador Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro 1


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Introdução

A relação entre saúde e ambiente sempre ocupou espaço na agenda da saúde coletiva do país, ainda que diversas concepções de ambiente tenham sido utilizadas, em sintonia com a evolução do conhecimento técnico disponível sobre o tema e a reboque das demandas colocadas pela sociedade. Na atualidade, cresce em importância o entendimento de ambiente como o espaço socialmente construído, no qual os recursos naturais sofrem ação do homem, através do trabalho. Tal conceito permite a apreensão da globalidade deste ambiente, envolvendo os processos sociais, econômicos e políticos que o conformam. Este é o ponto de partida, que norteia a proposta de entender a importância do Rio das Velhas como elemento essencial da natureza que permitiu a gerações sucessivas de homens e mulheres construírem um ambiente específico, por meio do trabalho. Trabalho que gera cultura própria, produtos e resíduos, modifica e transforma profundamente a natureza original, comprometendo a viabilidade do próprio rio e a qualidade de vida das pessoas que vivem no seu entorno. Assim, pode-se dizer que o processo de ocupação, transformação do espaço natural e degradação ambiental do território da bacia do Rio da Velhas, locus de estudo de intervenção do Projeto Manuelzão, que vem ocorrendo desde o século XVII, está indelevelmente marcado pelo trabalho humano. A epopéia dos povos indígenas, dos portugueses e bandeirantes paulistas, emboabas, escravos africanos, brasileiros cafuzos e mamelucos confunde-se no tempo, mas têm um denominador comum no trabalho realizado para garantir a sobrevivência ou a conquista dos sonhos de poder e riqueza. A mineração, o extrativismo vegetal, o cultivo do milho e da mandioca, a criação de gado foram e continuam sendo atividades econômicas importantes nesse território. A elas se superpõe uma intensa atividade artística e cultural, cujo legado permanece, ainda que parcialmente, até os nossos dias. Mudaram os processos, as tecnologias, as condições de vida e de trabalho, de saúde e de adoecimento, os processos políticos e sociais, mas persistem algumas características. Após tantos anos de intensa atividade econômica, ao observarmos com cuidado a situação da população que habita o território, algumas perguntas se impõem: — Onde foi parar tanta riqueza? Onde estão os frutos de tanto trabalho? Como esse trabalho foi transformado e transformou as pessoas e o ambiente ao longo do tempo? Lavadeiras no Rio das Velhas, Raposos, 1939. Autor desconhecido. Coleção Luís Augusto de Lima.

Mas não é a história econômica desse rico território o objeto deste texto. Ele pretende trazer para a discussão uma reflexão sobre

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as relações entre os processos de produção e consumo, que são mediados direta e indiretamente pelo trabalho humano, as condições de saúde da população e dos trabalhadores de modo particular e o ambiente natural e social. É um propósito, sem dúvida, pretensioso. Porém, talvez por herança de nossos antepassados, mineiros audaciosos e sonhadores, o autor assume o risco de tentar fazê-lo, com o objetivo de ampliar as discussões e intervenções capitaneadas pelo Projeto Manuelzão, que buscam a mudança e a melhoria da qualidade de vida para mais de quatro milhões de pessoas que habitam o território, simbolizada na volta do peixe às águas da bacia.

As relações produção-consumo, ambiente e saúde no olhar da saúde pública

A crescente degradação ambiental observada em escala planetária, as previsões de escassez de recursos naturais básicos para a produção e o consumo nas sociedades industriais e a crescente pressão de movimentos sociais organizados para mudar esta situação têm resultado na ampliação das discussões em torno da temática ambiental a partir dos anos 70, do século XX. A sensibilização e o impacto que os grandes desastres ambientais provocam nas pessoas ensejam discussões técnicas e políticas sobre seus determinantes e as possibilidades de mudança, em fóruns nacionais e internacionais. O aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais observadas entre os países e entre regiões e grupos populacionais, de um mesmo país, retroalimentam o debate favorecendo a articulação dos aspectos socioeconômicos, ambientais e de saúde. Considerando que a exclusão social é inerente ao atual sistema econômico, hegemônico em escala mundial, a degradação ambiental e as iniqüidades observadas no quadro de saúde-doença passam a ser compreendidas como parte da mesma dinâmica, definindo um modelo insustentável de desenvolvimento. É neste cenário que surge a proposta de um desenvolvimento humano sustentável, que busca integrar as questões ambientais ao desenvolvimento e à qualidade de vida das populações. Esta discussão envolve o repensar dos fundamentos filosóficos, éticos, culturais, científicos, econômicos, e tecnológicos do modelo civilizatório, na atualidade. Isso vem ocupando as agendas governamentais e acadêmicas e de movimentos sociais, na busca da construção de novos paradigmas conceituais, políticos e institucionais e de metodologias que permitam lidar com essas questões complexas, em uma perspectiva sistêmica.

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.


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As contribuições de Sachs e de Sunkel, pioneiras no contexto latino-americano, colocam em evidência que os problemas ambientais são, geralmente, resultantes de processos sociais e econômicos complexos e têm uma correspondência nas formas pelas quais uma dada sociedade produz e controla os riscos decorrentes para a saúde e o ambiente. Na atualidade, inúmeros estudos têm aprofundado este modo de ver a questão, em decorrência do agravamento dos problemas nos processos de reestruturação produtiva e globalização dos mercados. É crescente o envolvimento de grupos de pesquisa nas universidades, em instituições públicas e privadas em torno do tema, sustentados pela mobilização social. Paradoxalmente, no setor Saúde e no âmbito da Saúde Pública esta discussão tem evoluído de modo mais lento. Firpo explica esta dificuldade com base em um fato inquestionável: — a saúde realiza-se, fundamentalmente, fora do setor saúde. Assim, apesar de pagar a conta, arcar direta e indiretamente com os ônus decorrentes do adoecimento da população, causados ou agravados pelo modelo de desenvolvimento e pela degradação ambiental, observa-se um envolvimento ainda marginal nestas discussões. Um exemplo disto pode ser aferido na discreta participação da área de Saúde Coletiva, através de suas organizações, na realização da Conferência do Rio de Janeiro em 1992. Mesmo em setores que, no âmbito da Saúde, tradicionalmente lidam com as questões ambientais, como o Saneamento, a Vigilância, o controle de vetores, entre outros, as abordagens são geralmente restritas a aspectos específicos e metodológicos, desconsiderando as questões políticas e sociais envolvidas. Entretanto, nos anos 1990 essa situação começa a mudar. Ainda que de forma fragmentada e esparsa, começam a surgir propostas inovadoras no âmbito da Saúde Coletiva, de desenvolvimento de projetos de investigação e intervenção sobre realidades específicas de problemas de saúde-doença relacionados ao ambiente, de cunho interdisciplinar e intersetorial. De modo especial deve ser destacada a contribuição do geógrafo Milton Santos, e da Geografia Política para a compreensão dos processos econômicos, sociais e espaciais na produção das doenças infectocontagiosas. No plano institucional, a elaboração do documento brasileiro apresentado à Conferência Pan-Americana de Saúde e Ambiente no Contexto do Desenvolvimento Sustentável (Copasad), realizada em Washington, em 1995, representa um reposicionamento do ministério da Saúde frente à questão. Também é importante registrar a contribuição decisiva para as discussões das inter-relações entre o trabalho, o ambiente e a saúde no âmbito do setor saúde que vem sendo aportada pelo movimento da Saúde do Trabalhador.

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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Arquivo Projeto Manuelzão.

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Surgido no início dos anos 1980, no bojo do processo de redemocratização do país, ele é fruto de uma articulação entre setores do movimento sindical, técnicos da rede de serviços de saúde e da academia, com o propósito de contribuir para a melhoria das condições de vida e mudança do perfil de adoecimento e de morte dos trabalhadores, por meio de transformações dos processos de trabalho, com a participação efetiva destes. Entre os avanços conseguidos, podem ser apontadas as mudanças no aparelho jurídico-institucional, particularmente com a atribuição da atenção à saúde dos trabalhadores ao Sistema Único de Saúde. Apesar das dificuldades para a implementação de fato dessas conquistas, um saldo positivo do movimento foi o de trazer, para dentro do sistema de saúde, a discussão sobre a contribuição dos processos produtivos para a geração do adoecimento e morte dos trabalhadores e por contigüidade à população do entorno das unidades produtivas. Rompe-se dessa forma o muro da fábrica, cada vez mais simbólico nos atuais processos produtivos de bens imateriais. Apesar dessa discussão comportar diferentes enfoques e envolver conflitos de interesses, por vezes inconciliáveis, como, por exemplo, a conduta diante de processos de trabalho poluidores e causadores de degradação ambiental onde estaria indicado o fechamento da unidade de produção, com conseqüente eliminação de postos de trabalho, representa um avanço na direção da busca de soluções. Nos últimos anos do século XX, ganharam visibilidade no plano internacional e internamente no Brasil, inúmeras denúncias de danos ambientais, exposição e adoecimento de trabalhadores e moradores no entorno de fábricas desativadas ou em funcionamento. Como exemplos brasileiros, podem ser lembrados: a exposição ao Césio em Goiânia; o “caso Cubatão”, em São Paulo; a exposição ao chumbo em Santo Amaro da Purificação, na Bahia e em Bauru, em São Paulo, ao mercúrio, na região Amazônica; a clorados na Cidade dos Meninos no Rio de Janeiro, entre inúmeras outras. A Cetesb estima que somente no Estado de São Paulo, existam, na atualidade, cerca de 1.000 sítios contaminados, com ameaça à saúde de moradores e trabalhadores. Em Minas Gerais, entre outros grandes desastres ou quase desastres, dois episódios recentes foram bem divulgados pela mídia: o desastre ecológico provocado pela Mineração Rio Verde, no qual morreram cinco trabalhadores e degradou o Ribeirão Macacos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte e outro evolvendo uma fábrica de papel em Cataguazes, cujas conseqüências destruidoras foram observadas em longa extensão da bacia do Rio Paraibuna, até sua foz no Atlântico, no município de Campos, no Rio de Janeiro. Outras ocor-

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rências menos divulgadas podem ser recuperadas cotidianamente na mídia: um caminhão que derrama produtos químicos tóxicos na estrada atingindo mananciais em Uberaba; fábricas de fogos de artifício que explodem em Santo Antonio do Monte; uso indiscriminado de mercúrio nos garimpos de ouro em Mariana; pedreiras situadas próximas a zonas residenciais que abalam as casas e emocionalmente as pessoas, além de espalhar poeira de sílica no ar, na Vila do Acaba Mundo, em Belo Horizonte, ... a lista não tem fim. Para não falar de situações crônicas e por vezes institucionalizadas, como o emprego abusivo e indiscriminado de agrotóxicos na agricultura e pecuária, expondo trabalhadores, moradores e consumidores aos seus efeitos deletérios sobre a saúde, além da destruição da fauna e de outras formas de vida. Ou a deposição de resíduos industriais e domésticos diretamente nos rios e na vizinhança de áreas urbanizadas, provocando além do impacto visual e emocional sensação de nojo, medo e menos valia. A ação do Ministério Público, em muitos desses casos, tem sido decisiva para interromper os processos de degradação e a exposição aos fatores de risco de trabalhadores e da população em geral, fazendo crescer a consciência de que mudanças podem e devem ser implementadas. Mas é longo e difícil o caminho a ser percorrido para mudar este quadro, tendo em vista os fortes interesses econômicos em jogo e a desigualdade de forças entre os atores sociais. Neste contexto, um elemento básico é representado pela informação. É a partir do conhecimento do que se passa na realidade, no seu quintal, na sua rua, no bairro, na cidade, dos efeitos deletérios sobre a saúde e as condições de vida é que as pessoas têm condições de avaliar o benefício e os riscos que as atividades econômicas e determinados processos produtivos trazem para a sociedade. Coletivamente, podem avaliar a aceitabilidade ou não desses riscos e se organizarem para reivindicar e construir as mudanças. Apesar de historicamente os trabalhadores mais organizados e mais bem informados cumprirem este papel, na atualidade, a luta pela sobrevivência e pela manutenção dos postos de trabalho tem dificultado ou mesmo impedido que sejam protagonistas dessa luta. Por outro lado, a crescente mobilização social em torno das questões ambientais tem permitido a construção de alianças e atuações que resultam em modificações das situações de trabalho responsáveis pelos danos ao meio ambiente e à saúde de trabalhadores e moradores. Meninas carregando água do Rio das Velhas, Barra do Guaicuí, década de 1970. Fotografia: Bráulio Carsalade Villela. Coleção Luís Augusto de Lima.

Já foi apresentado em capítulos deste livro, uma visão geral do território da bacia do Rio das Velhas e suas principais características geográficas, demográficas, ecológicas e sociais. Ela ocupa uma área

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de 29.173 km2 , com 51 municípios e uma população estimada em 4.406.190 pessoas. A bacia tem sido dividida em: alto, médio e baixo, de acordo com o curso do Rio das Velhas. No que se refere especificamente às atividades econômicas, a Região Metropolitana de Belo Horizonte, pelas suas características, deve ser considerada em separado, como uma unidade à parte. Não é possível falar das relações Produção-Consumo-Ambiente e Saúde sem considerar os aspectos históricos e a evolução dos processos produtivos em um dado território. Assim, serão mencionados, a seguir, alguns aspectos julgados relevantes ocorridos na região da bacia do Rio das Velhas. No alto Velhas, a riqueza geológica: o ouro, minério de ferro, bauxita, pedras preciosas e semi-preciosas tem sido responsável pelas formas de apropriação do espaço, o modelo de desenvolvimento implantado e portanto, pelo processo de degradação que se instalou na região desde o período colonial. O ciclo da mineração do ouro começou na última década do século XVII, atingindo seu apogeu por volta de 1760, na região do alto e médio Rio das Velhas. Como conseqüência desenvolveram-se as cidades de Ouro Preto, Caeté, Sabará, Raposos, Santa Luzia e Nova Lima. A industrialização do minério de ferro é mais recente. A Usina Esperança foi construída em Itabirito, em 1888. Em 1920, outras siderúrgicas foram instaladas em Rio Acima, Caeté (José Brandão) e posteriormente em Sabará (Companhia Belgo Mineira) utilizando intensivamente o carvão vegetal obtido a partir dos recursos florestais nativos. Os passivos ambientais podem ser observados no ecossistema da bacia, como resultado da exploração mineral predatória de modo similar ao acontecido com a força de trabalho. Em fins do século XIX, a indústria têxtil, símbolo da revolução industrial mundial, também marcou presença no cenário econômico cultural, social e ambiental do alto e médio Velhas.

Enfermaria feminina do hospital da St.John D’El Rey Mining Company. Morro Velho, década de 1910.

A transferência da capital do estado para Belo Horizonte, em 1897, abriu um novo ciclo econômico na região. Apesar das condições geográficas terem sido consideradas na localização e planejamento da nova capital essas questões foram colocadas em segundo plano, como parte do cenário. Aos poucos, a cidade se tornou uma massa desordenada de concreto e asfalto, com os córregos canalizados, o esgoto lançado in natura nos cursos d’água e loteamentos clandestinos. A implantação das indústrias também não respeitou o meio ambiente. A providência mais expressiva foi confiná-las no Distrito Industrial do Barreiro. Na atualidade, a Região Metropolitana de Belo Horizonte é o pólo econômico mais importante do Estado. Apesar de ocupar apenas 10% da área territorial da bacia hidrográfica concentra a metade da população de habitantes e é a principal responsável pela sua degradação.

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Gradativamente, o processo de ocupação se estendeu ao médio e alto Velhas. As atividades de extração e processamento mineral continuaram a ser implementadas, com a ampliação das cadeias produtivas, particularmente pela siderurgia e metalurgia. Foram implementados outros processos industriais, como a tecelagem e processamento de alimentos, e cresceu muito o setor de serviços. Acompanhando o fenômeno que se observa no restante do país, a Região Metropolitana de Belo Horizonte tem, na atualidade, a maioria de sua força de trabalho inserida no setor terciário. É interessante lembrar que esse movimento de expansão da produção foi acompanhado, ainda que de modo desigual na correlação de forças e fragmentado, no conjunto do território, pelo processo de organização dos trabalhadores buscando melhores condições de vida e trabalho. Ainda que desconhecido na sua totalidade, inúmeros estudos descrevem e analisam esse processo, como, por exemplo, os movimentos operários ocorridos no início do século XX, em Belo Horizonte, ainda na construção da nova capital. Na mineração, são clássicos os estudos sobre os trabalhadores na extração do ouro em Nova Lima, como os de Grossi e de Fóscolo, e do ferro, de Minayo. A implantação da indústria têxtil em Minas Gerais, na segunda metade do século XIX, ocorreu, também, no território da bacia do Rio das Velhas. O processo de formação deste operariado, de modo diferenciado de outras regiões do estado, não recebeu a contribuição expressiva de imigrantes. Ela se deu a partir do adestramento do trabalhador autóctone, transformado em um agente dócil, disciplinado e produtivo. Outro exemplo de envolvimento dos trabalhadores em lutas por melhores condições de vida e trabalho ocorreu em Belo HorizonteContagem, durante a ditadura militar. Este processo de organização social e enfrentamento político amplia-se, na atualidade, envolvendo as questões ambientais. Outra contribuição importante que o movimento da Saúde do Trabalhador traz para a reflexão-ação sobre as relações ProduçãoConsumo-Ambiente & Saúde resulta da experiência acumulada de prestação de uma atenção diferenciada prestada aos trabalhadores, tendo em conta sua inserção nos processos produtivos, no âmbito do SUS. É ao Sistema de Saúde que as pessoas recorrem quando adoecem ou sofrem danos à sua saúde em decorrência de fatores agressivos ou dos riscos presentes no ambiente, gerados nos processos de trabalho e na exploração predatória dos recursos naturais. Assim, não estamos falando de algo que pode vir a acontecer, mas

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Fotografia: Cuia Guimarães.

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de algo que acontece no cotidiano dos serviços de saúde, que lamentavelmente não estão preparados nem equipados para lidar com essas questões. As atribuições do SUS quanto à saúde dos trabalhadores, a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho, são claras e estão detalhadas nos artigos 5º e 6º da Lei Orgânica da Saúde. De acordo com as informações disponíveis, na população brasileira estimada em 174 milhões de pessoas, apenas 39 milhões estão cobertos por Planos de Saúde, sendo 29 milhões no setor privado e 10 milhões no público. Os demais 135 milhões de brasileiros contam apenas com os recursos do SUS. Este SUS que, enfrentando toda a sorte de dificuldades para se manter fiel aos princípios que nortearam sua criação e estão inscritos na Constituição Federal, de cobertura universal, integralidade das ações, eqüidade, e controle social representa um patrimônio social que não pode ser perdido. Assim, além de ser o único recurso de saúde disponível para cerca de 2 ⁄ 3 da população brasileira, o SUS é o único provedor de

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ações de saúde para os trabalhadores do crescente setor informal de trabalho. Não se trata de algo novo para o SUS. O desafio é agregar qualidade às ações, reconhecer as relações produção, ambiente, saúde, doença e danos ambientais para agir sobre os determinantes, ou seja, os processos de trabalho geradores de doença e ⁄ ou dano ambiental e prover uma assistência integral à população geral e aos trabalhadores. Entre as facilidades existentes, indiscutivelmente, o maior patrimônio é representado pela capacidade instalada e a capilaridade da rede de serviços de saúde. O SUS é um espaço público de ação, de acolhida da dor e sofrimento, de atenção à doença e de promoção e proteção da saúde. O processo irreversível da municipalização e as práticas de controle social são garantias da viabilidade do pensar global e agir localmente. É com este olhar sobre a situação, que estamos propondo somar esforços com a equipe técnica e o movimento social que integram o Projeto Manuelzão, para buscar a transformação da realidade, na direção de mais saúde e qualidade de vida para todos.

As condições de saúde dos trabalhadores no território da bacia do Rio das Velhas

Será apresentado, a seguir, um quadro resumido das condições de trabalho e saúde dos trabalhadores no território da bacia do Rio das Velhas. É interessante destacar a escassez e a pouca confiabilidade das informações existentes. Mas pouca é sempre melhor que nenhuma, assim, tentaremos responder às seguintes perguntas, consideradas chaves para caracterizar as condições de saúde dos trabalhadores no território e orientar as ações de saúde: Fotografia: Cuia Guimarães.

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• Qual o perfil produtivo? • Quem são os trabalhadores? • De que adoecem e morrem? Hoje a bacia do Velhas abriga de modo assimétrico e desigual todos os setores da economia e suas diversas atividades econômicas, observando-se no entanto maior concentração de indústrias, minerações e serviços no Alto Velhas, principalmente na Grande Belo Horizonte, e da agropecuária no médio e baixo Velhas. Nas últimas décadas, assistiu-se a um grande incremento do setor de serviços, notadamente em Belo Horizonte. De acordo com o censo de 2000 do IBGE, Minas Gerais tinha então 17.891.494 habitantes, dos quais 4.406.190 (aproximadamente 25% dos mineiros) se concentravam na bacia do Rio das Velhas. Deste universo, a População Economicamente Ativa (PEA) era constituída de 3.633.794 pessoas, o que representava 82,5% do total (tabela 1).

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Tabela 1 – Distribuição da População Economicamente Ativa (PEA), por região da bacia do Rio das Velhas, em 2000. PEA NÃO

REGIÃO

PEA OCUPADA

Alto

1.301.564

1.274.085

2.575.649

Médio

425.162

471.833

896.995

Baixo

161.150

90.817

161.150

Total

1.797.059

1.836.735

3.633.794

OCUPADA

PEA TOTAL

Fonte: Censo IBGE 2000.

Percebe-se uma distribuição desigual dos trabalhadores e da produção econômica ao longo da bacia, com grande concentração no alto Velhas. A tabela 2 mostra as relações de trabalho da população econômicamente ativa com o processo produtivo.

Tabela 2 – Distribuição da População Economicamente Ativa Ocupada (PEA), por vínculo ocupacional, por região da bacia, em 2000.

COM CARTEIRA

SEM CARTEIRA

MILITARES

DE TRABALHO

DE TRABALHO

E FUNCIO-NÁRIOS

ASSINADA

ASSINADA

PÚBLICOS

Alto

644.746

236.869

Médio

194.163

Baixo Total

REGIÃO

AUTÔNOMOS

EMPREGADORES

TOTAL

84.695

269.370

53.678

1.301.564

103.367

28.261

81.059

9.524

425.162

22.540

19.910

7.199

15.135

1.697

70.333

861.449

360.146

120.155

365.564

64.899

1.797.059

Fonte: Censo 2000 IBGE

A desigualdade social nas relações de trabalho também é observada ao longo da bacia. Se observarmos as colunas referentes aos trabalhadores empregados, os sem carteira de trabalho assinada per-

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fazem 46,9% no baixo, 34,7% no médio e 36,7% no alto Velhas. Estes dados são extremamente preocupantes, uma vez que trabalhadores sem carteira de trabalho assinada são cidadãos em trabalhos precários e sem cobertura previdenciária. Com relação aos agravos à saúde do trabalhador no país, as informações são fragmentadas e parciais, existindo uma sub-notificação importante. Isto impossibilita que tenhamos o conhecimento da real magnitude do quadro de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. Os trabalhadores estão freqüentemente submetidos a diversos e múltiplos fatores de risco ocupacionais gerando uma gama considerável de doenças e acidentes. Na agropecuária, por exemplo, destacam-se: agentes químicos (agrotóxicos), agentes físicos (radiação solar, calor, frio, chuva), agentes mecânicos (ferramentas e máquinas agrícolas, quedas, picadas de aracnídeos e ofídios), agentes ergonômicos (carregamento de pesos, posturas inadequadas, movimentos repetitivos, longas jornadas de trabalho) e agentes biológicos (parasitas, fungos, vírus, bactérias). Na mineração pode-se mencionar os agentes químicos (explosivos, poeiras de minerais), os agentes físicos (ruído), os agentes mecânicos (acidentes por desmoronamentos e explosões). Os exemplos seriam muitos e variáveis de acordo com os ramos de atividades e os processos de produção e de trabalho adotados. Devemos ter sempre em mente que a preocupação maior da saúde do trabalhador é com os aspectos da prevenção de agravos, com a promoção da saúde e com a coletividade. Muitos agravos ocupacionais não têm nem tratamento nem reversão.

Construindo uma agenda para a mudança

Muitos são os problemas advindos das relações sociedade-trabalho-natureza agravados, na atualidade, pela reestruturação produtiva e suas conseqüências, entre elas, o desemprego estrutural e a precarização das relações e condições de trabalho; o uso intensivo de recursos naturais; o crescimento explosivo das concentrações urbanas, com seus problemas de saneamento, lixo, transporte, poluição, violência, com profundos impactos sobre a qualidade de vida dos indivíduos e das comunidades.

Páginas anteriores: Médicos do Posto de Profilaxia de Pirapora, 1922. Arquivo Público Mineiro.

A transformação deste quadro, na perspectiva da construção de sociedades sustentáveis, apresenta inúmeros desafios, a serem compartilhados pela sociedade como um todo. Entre os pressupostos para o estudo e as ações neste campo podem ser apontados os seguintes:

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• A produção de bens e serviços deve estar voltada para o atendimento das necessidades humanas e sociais, considerando os limites impostos pela homeostase do ambiente, a diversidade étnica e cultural e o imperativo da eliminação das desigualdades e da garantia da eqüidade no exercício dos direitos de cidadania da geração atual e das futuras gerações. • Responsabilidade compartilhada – como está em jogo “nosso destino comum”, na expressão do Relatório Brundtland, é necessário construir uma nova agenda social, onde todos os atores sociais: trabalhadores e empregadores, estado e organizações sociais são coresponsáveis pela proposição, definição, implementação, acompanhamento e avaliação das ações de mudança. Entretanto, este compartilhamento não reduz ou elimina a diferenciação dos compromissos de cada um desses atores dentro dos princípios democráticos. • Enfoque interdisciplinar – a complexidade dos problemas define a necessidade da construção de abordagens multi e interdisciplinares e implica em uma profunda transformação nas atividades de pesquisa, de formação de recursos humanos e na construção das práticas profissionais. • Atuação intersetorial – uma decorrência do exercício da responsabilidade compartilhada é a atuação intersetorial. Superando as amarras que decorrem das prerrogativas únicas e da concentração de determinadas ações ou atribuições a nichos ou setores do aparelho do estado ou do setor privado a atuação intersetorial pressupõe o concerto da atuação entre os atores sociais envolvidos, em uma perspectiva horizontalizada, sem subordinação hierárquica, baseada na essência, na competência para desempenhar bem o que está sendo demandado, na responsabilidade de cada um dos envolvidos e no exercício da cooperação e não de competição, entre as instâncias e organizações. • Recuperação e valorização do saber da população para a identificação, análise e solução dos problemas — é necessário recuperar e valorizar o saber da população, particularmente das populações tradicionais que não perderam seus vínculos com a natureza e o ambiente mais geral, de modo a permitir que seus conhecimentos e técnicas venham a alimentar os processos de investigação científica, a atividade acadêmica, o ensino e a divulgação ampliada e os processos de decisão e implementação de políticas que visem à solução e à prevenção dos problemas ambientais relacionados com a saúde e a qualidade de vida. A partir destes pressupostos, podem ser identificados alguns pontos para uma agenda de trabalho:

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• Um ponto estratégico da agenda de trabalho é a construção de um sistema de vigilância integrado ocupacional-ambiental que leve em consideração os contextos socioambientais e que se fundamente tanto nos métodos quantitativos de monitoramento quanto nos métodos e instrumentos de investigação qualitativa absorvendo novas abordagens na investigação em saúde de bases populacionais, antecipando a ocorrência de desastres e acidentes pelo reconhecimento dos contextos e fatores de risco potencialmente nocivos à saúde e retratando o aspecto coletivo das populações. • Outro ponto importante refere-se à necessidade de se privilegiar intervenções e pesquisas que utilizem estratégias participativas (incluindo famílias, ONGs, sindicatos, empresas, instituições públicas e privadas, associações de moradores etc.), e que focalizem não apenas os aspectos naturais mas os socioculturais da relação ambiente-saúde e trabalho. • A capacitação para a identificação e o manejo das questões envolvidas nas relações Produção-Consumo, Ambiente e Saúde deve abranger técnicos, trabalhadores, empresários e o conjunto da população. Os trabalhadores e a população em geral muitas vezes não dispõem das informações e recursos necessários para interferir nos processos produtivos no sentido de compatibilizálos com a preservação de sua vida e da saúde. Os programas de formação, qualificação e requalificação profissional, oferecidos hoje no Brasil, freqüentemente ignoram dimensões fundamentais da formação do trabalhador para o trabalho, a despeito das recomendações internacionais e da legislação brasileira a este respeito. • Atenção especial deve ser dada à preparação dos profissionais graduados pelas universidades brasileiras nas diferentes áreas do conhecimento, na temática das relações Produção-Consumo, Ambiente e Saúde, uma vez que, no exercício profissional, terão sob sua responsabilidade a tomada de decisões que poderá afetar a saúde dos demais trabalhadores, o ambiente e a qualidade de vida. Apesar de esforços e de experiências isoladas de indivíduos e grupos e da legislação existente sobre educação ambiental, este tema não é tratado de modo sistemático e adequado nos currículos em nenhum dos níveis de ensino.

Página ao lado: Uma enfermaria do Hospital de Profilaxia e Saneamento Rural de Pirapora, 1922. Arquivo Público Mineiro.

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Abstract

Production-consumption and environment: a view of the worker’s health This chapter starts with a brief presentation of the theoretic reference that orients the field of interrelations between processes of Production and Consumption, Environment and Health, all through the views of Collective Health and Worker’s Health. The productive profile and the present health conditions of laborers throughout The Velhas River basin are historically described through social-demographic indicators. A great heterogeneity and asymmetry in the spatial distribution of production processes is observed, in the way workers are hired and through occupational risks generated and their possible consequences to health and the environment. Guided by the theoretic reference adopted and the reality of how much attention is actually paid to worker’s health and the environment, a work agenda is proposed, oriented towards the construction of public policies and a new development model for the region, ecologically correct and socially fair.


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Coordenadora do Projeto Águas de Minas do Instituto de Gestão de Águas de Minas Gerais - Igam


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22 A qualidade da água ao longo do rio Zenilde das Graças Guimarães Viola 1

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Fotografia: Alfeu Trancoso.

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A caracterização da qualidade das águas superficiais do Rio das Velhas contempla a situação prevalecente nas diversas estações de amostragem monitoradas através do Projeto Águas de Minas e do Programa Nacional do Meio Ambiente II — PNMAII. A execução do Projeto Águas de Minas se iniciou em 1997 pela Fundação Estadual do Meio Ambiente — Feam e, desde o final de 2001, vem sendo realizada pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas — Igam. Este trabalho vem permitindo a identificação das tendências da situação de qualidade das águas do Estado de Minas Gerais. Na bacia do Rio das Velhas são operadas 29 estações de amostragem no âmbito da macrorrede de monitoramento. Dessas estações, 16 situam-se ao longo do Rio das Velhas. A Tabela 1 apresenta a descrição das estações de amostragem da bacia do Rio das Velhas monitoradas no âmbito do Projeto Águas de Minas. Para a discussão sobre a qualidade das águas da bacia do Rio das Velhas adotou-se a divisão de alto, médio e baixo curso do rio. Para a efetivação de um processo amplo de monitoramento, a partir do conhecimento regional proporcionado pelo Projeto Águas de Minas, estabeleceu-se uma rede dirigida no alto curso do Rio das Velhas no âmbito do PNMAII. O PNMAII tem como um de seus objetivos principais a melhoria da qualidade de vida por meio do fortalecimento da Gestão Ambiental, consolidando e promovendo políticas de proteção do Meio Ambiente e o desenvolvimento socioeconômico sustentável, em que a natureza e a sociedade convivam em harmonia e equilíbrio. A rede de monitoramento do PNMAII vem sendo operada desde novembro de 2002 contemplando 42 estações de monitoramento, sendo 36 estações de qualidade e seis estações fluviométricas. Das estações de qualidade, sete são coincidentes com aquelas operadas pelo Projeto Águas de Minas e um total de nove estações estão localizadas ao longo do Rio das Velhas. Por se tratar de uma rede de monitoramento recente, os resultados preliminares serão abordados apenas qualitativamente. Entretanto, os resultados do Projeto Águas de Minas, que contempla uma série histórica, desde o ano de 1997, serão abordados com dados quantitativos. Os serviços de coleta e análise de amostras de água, tanto da rede de monitoramento do Projeto Águas de Minas quanto do PNMAII, são contratados à Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais — Cetec, parceria efetivada desde o início dos trabalhos.

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Tabela 1: Descrição das estações de amostragem da bacia do Rio das Velhas REGIÃO

DESCRIÇÃO

LATITUDE

LONGITUDE

ALTITUDE (M)

Alto Curso do Rio das Velhas BV013

Rio das VELHAS logo a montante da foz do Rio Itabirito

20

10

43

47

780

BV035

Rio ITABIRITO a jusante do Córrego Cata Branca

20

14

43

48

840

BV037

Rio das VELHAS logo a jusante da foz do Rio Itabirito

20

08

43

48

760

BV139

Rio das VELHAS a montante da ETA/COPASA, em Bela Fama

20

04

43

49

740

BV062

Ribeirão ÁGUA SUJA próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

59

43

50

740

BV063

Rio das VELHAS logo a jusante do Ribeirão Água Suja

19

58

43

49

740

BV067

Rio das VELHAS logo a montante da foz do Ribeirão Sabará

19

55

43

50

700

BV076

Ribeirão SABARÁ próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

53

43

49

700

BV155

Ribeirão ARRUDAS próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

54

43

51

700

BV083

Rio das VELHAS logo a jusante do Ribeirão Arrudas

19

51

43

52

700

BV154

Ribeirão do ONÇA próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

50

43

51

680

BV105

Rio das VELHAS logo a jusante do Ribeirão do Onça

19

49

43

53

680

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REGIÃO

DESCRIÇÃO

LATITUDE

LONGITUDE

ALTITUDE (M)

Médio Curso do Rio das Velhas BV160

Ribeirão das NEVES próximo de sua foz no Ribeirão da Mata

19

37 47

44

02 09

564

BV130

Ribeirão da MATA próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

42

43

53

680

BV153

Rio das VELHAS a jusante do Ribeirão da Mata

19

42

43

49

670

BV135

Rio TAQUARAÇU próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

37

43

48

660

BV137

Rio das VELHAS na Ponte Raul Soares

19

33

43

55

640

BV156

Rio das VELHAS logo a jusante do Rio Jabuticatubas

19

21

44

00

640

BV140

Ribeirão JEQUITIBÁ próximo de sua foz no Rio das Velhas

19

14

44

01

685

BV141

Rio das VELHAS na cidade de Santana do Pirapama

19

01

44

02

640

BV161

Ribeirão SANTO ANTÔNIO próximo de sua foz no Rio das Velhas

18

42 57

44

13

BV142

Rio das VELHAS a montante da foz do Rio Paraúna

18

40

44

12

BV162

Rio CIPÓ a montante da foz do Rio Paraúna

18

41

43

59

BV143

Rio PARAÚNA próximo de sua foz no Rio das Velhas

18

38

44

03

560

08

16

564 560

41

565

Baixo Curso do Rio das Velhas BV152

Rio das VELHAS entre os Rios Paraúna e Pardo Grande

18

18

44

14

520

BV146

Rio das VELHAS a jusante do Rio Pardo Grande

18

13

44

21

520

BV147

Rio BICUDO próximo de sua foz no Rio das Velhas

18

08

44

32

520

BV148

Rio das VELHAS na cidade de Várzea da Palma

17

36

44

43

495

BV149

Rio das VELHAS, em Guaicuí

17

12

44

49

480

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Os resultados da qualidade das águas estão baseados, sobretudo, em dois indicadores, o IQA — índice de qualidade de água e a CT — contaminação por tóxicos. O IQA foi desenvolvido pela National Sanitation Foundation, dos Estados Unidos, através de pesquisa de opinião junto a vários especialistas da área ambiental, quando cada técnico selecionou, a seu critério, os parâmetros relevantes para avaliar a qualidade das águas e estipulou, para cada um deles, um peso relativo na série de parâmetros especificados. O tratamento dos dados da mencionada pesquisa definiu um conjunto de nove parâmetros considerados mais representativos para a caracterização da qualidade das águas: oxigênio dissolvido, coliformes fecais, pH, demanda bioquímica de oxigênio, nitrato, fosfato total, temperatura da água, turbidez e sólidos totais. A cada parâmetro foi atribuído um peso, de acordo com a sua importância relativa no cálculo do IQA, e traçadas curvas médias de variação da qualidade das águas em função da concentração do mesmo. Para o cálculo do IQA é utilizado um software desenvolvido pelo Cetec. Os valores do índice variam entre 0 e 100. Assim definido, o IQA reflete as interferências por esgotos sanitários e outros materiais orgânicos, nutrientes e sólidos. Em função das concentrações observadas dos parâmetros tóxicos, amônia, arsênio, bário, cádmio, chumbo, cianetos, cobre, cromo hexavalente, índice de fenóis, mercúrio, nitritos, nitratos e zinco, a contaminação por tóxicos é caracterizada como Baixa, Média ou Alta. Comparam-se os valores analisados com os limites definidos nas classes de enquadramento dos cursos d’água pelo Conselho Estadual de Política Ambiental — Copam na Deliberação Normativa Nº 10 ⁄ 86. A denominação Baixa refere-se à ocorrência de concentrações iguais ou inferiores a 20% dos limites de classe de enquadramento do trecho do curso d’água onde se localiza a estação de amostragem. A contaminação Média refere-se à faixa de concentração entre 20% e 100% dos limites mencionados, enquanto que a contaminação Alta refere-se às concentrações superiores a 100% dos limites. A pior situação identificada no conjunto total de resultados das campanhas de amostragem, para qualquer parâmetro tóxico, define a faixa de contaminação do período em consideração. A Figura 1 apresenta a freqüência de ocorrência da Contaminação por Tóxicos Baixa, Média e Alta de 1997 a 2002, nos períodos chuvoso e seco, ao longo das 16 estações de amostragem do Rio das Velhas. Os resultados do IQA foram avalia-

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Ocorrêcia da contaminação por Tóxicos – CT Rio das Velhas – Período chuvoso

100% 80% 60% 40% 20% 0% Baixa

Média

Alta

CT 1997

1998

1999

2000

2001

2002

Ocorrêcia da contaminação por Tóxicos – CT Rio das Velhas – Período seco

100% 80% 60% 40% 20% 0% Baixa

Média

Alta

CT 1997

1998

1999

2000

2001

2002

Figura 1 – Freqüência de ocorrência da Contaminação por Tóxicos baixa, média e alta no Rio das Velhas no período de 1997 a 2002 – períodos chuvoso e seco

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dos conforme a sua evolução temporal, de 1997 a 2002. A evolução espacial foi analisada ao longo do Rio das Velhas e dos seus tributários das margens esquerda e direita. As Figuras 2 e 3 apresentam respectivamente, a média do IQA de 1997 a 2002, para os períodos chuvoso e seco. Os Mapas de qualidade das águas superficiais em 2002 estão apresentados por trecho da bacia do Rio das Velhas nas Figuras 4, 5 e 6.

A qualidade do alto curso do Rio das Velhas

Utiliza-se como marco de referência para o limite norte da bacia do alto Rio das Velhas, a Serra da Piedade que se liga ao sistema orográfico da parte sul da bacia, irradiando a linha demarcatória para oeste e procurando manter um certo equilíbrio quanto à latitude, seguindo os limites norte dos municípios de Sabará, Belo Horizonte e Contagem. Para leste, atravessa o município de Caeté, segundo o divisor de águas mais próximo da latitude mencionada. A bacia do alto curso do Rio das Velhas proporciona, através das captações dos Sistemas Rio das Velhas e Morro Redondo, com respectivas vazões de 5,200 m3 ⁄ s e 0,600 m3 ⁄ s, o abastecimento de quase 50% da Região Metropolitana de Belo Horizonte e parte de seu parque industrial. Conforme demonstrado nas Figuras 2 e 3, o trecho do Rio das Velhas, que vem se apresentando em melhores condições de qualidade de água ao longo dos anos, principalmente no período de estiagem no seu alto curso, está localizado a montante da confluência com o Rio Itabirito. No período chuvoso, verifica-se que há um aumento das concentrações de sólidos e, conseqüentemente, as águas tornam-se turvas. No período seco, a água mantém-se translúcida nesse trecho e a sua qualidade está relacionada às quantidades elevadas de coliformes fecais e nutrientes provenientes do esgoto doméstico. Assim que o Rio das Velhas recebe o Rio Itabirito o índice de qualidade de suas águas piora em decorrência do aumento de coliformes fecais, materiais em suspensão e fosfato. Os materiais em suspensão possivelmente estão relacionados com passivos de assoreamento da mineração de ferro. O alto curso do Rio das Velhas está inserido na região do Quadrilátero Ferrífero no Estado de Minas Gerais. A mineração de ferro, seguida pelas de ouro e gemas é, sem dúvida, a atividade minerária mais importante da região, quer pela sua expressão econômica e infra-estrutura associadas, quer pela magnitude da geração de cavas e de depósitos de estéril e rejeitos.

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100 Alto curso

Médio curso

Baixo curso

80 60 40 20 0

BV013 BV035 BV037 BV139 BV062 BV063 BV067 BV076 BV155 BV083 BV154 BV105 BV160 BV130 BV153 BV135 BV137 BV156 BV140 BV141 BV161 BV142 BV162 BV143 BV152 BV146 BV147 BV148 BV149

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Médio

Ruim

Muito Ruim

Figura 2 – Média do Índice de Qualidade de Água (IQA) na bacia do Rio das Velhas entre 1997 e 2002 – Período Chuvoso

100 Alto curso

Médio curso

Baixo curso

80 60 40 20 0

BV013 BV035 BV037 BV139 BV062 BV063 BV067 BV076 BV155 BV083 BV154 BV105 BV160 BV130 BV153 BV135 BV137 BV156 BV140 BV141 BV161 BV142 BV162 BV143 BV152 BV146 BV147 BV148 BV149

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Bom

Médio

Ruim

Muito Ruim

Figura 3 – Média do Índice de Qualidade de Água (IQA) na bacia do Rio das Velhas entre 1997 e 2002 – Período Seco

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Figura 4 – Mapa de qualidade das águas superficiais do alto curso do Rio das Velhas em 2002 – períodos chuvoso e seco.


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A consolidada vocação minerária da região, posicionada em zona de cabeceiras do Rio das Velhas, passou a demandar maiores investigações sobre o grau de comprometimento do recurso hídrico pelas formas de uso do solo e da bacia e, em particular, pela mineração, frente aos possíveis cenários de desenvolvimento desse setor econômico, grande contribuinte da poluição difusa recebida no Rio das Velhas no seu alto curso. No período chuvoso há uma piora da qualidade das águas do Rio das Velhas a jusante da confluência com o Ribeirão Água Suja, relacionada ao aumento de ferro, fenóis, óleos e graxas, bem como coliformes fecais e materiais suspensos nessa época. O trecho em pior condição de qualidade no alto curso do Rio das Velhas é aquele que recebe as águas dos ribeirões Arrudas, Sabará e Onça. São verificadas elevadas concentrações de substâncias tóxicas como amônia e fenóis. Além disso, a contagem de coliformes fecais e a concentração de fosfato são elevadas o ano todo. Os detergentes também ocorrem com freqüência nesse trecho. As cargas de poluição pontual são evidenciadas no período chuvoso quando as águas estão em melhores condições devido ao aumento da vazão do rio. A ocorrência de ferro total é elevada em todos os trechos do alto curso do Rio das Velhas. Porém, o ferro solúvel, que é aquele disponível aos organismos, ocorre freqüentemente em concentrações abaixo daquela estabelecida pela legislação. O manganês, que está associado ao minério de ferro, ocorre em concentrações elevadas principalmente no período chuvoso.

A qualidade do médio curso do Rio das Velhas

Ao norte do médio curso do Rio das Velhas, traça-se a linha de limites desse trecho da bacia coincidindo com o Rio Paraúna, o principal afluente do Rio das Velhas e, a partir de sua barra, segue-se para oeste, na mesma latitude do divisor de águas ao norte do córrego Salobinho, continuando pela linha divisória dos municípios de Curvelo e Corinto. A atividade agropecuária, bastante expressiva no médio curso do Rio das Velhas, é responsável pelos processos de erosão da região, pois há um grande percentual de área mecanizada e utilização de insumos agrícolas, tais como fertilizantes e pesticidas. A atividade industrial encontra-se principalmente concentrada na Região Metropolitana de Belo Horizonte, contribuindo para a degradação do Rio das Velhas, uma vez que a maioria das indústrias

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não tem tratamento de efluentes e resíduos gerados. A Figura 5 apresenta a qualidade do médio curso do Rio das Velhas, em 2002. O médio curso do Rio das Velhas começa recebendo as águas do Ribeirão da Mata, que passa dentro de Pedro Leopoldo e Vespasiano, e que é o responsável pelo índice de qualidade muito ruim no trecho do Rio das Velhas, localizado a jusante de sua confluência. Os materiais suspensos, os coliformes fecais e a baixa concentração de oxigênio dissolvido caracterizam essa qualidade, tanto no período seco quanto no período chuvoso. As ocorrências de amônia e fenóis em elevadas concentrações são responsáveis pela alta contaminação por tóxicos nesse trecho. Ferro e manganês também ocorrem nas águas do Rio das Velhas, a jusante do Ribeirão da Mata. A condição do Rio das Velhas nesse trecho está associada sobretudo ao despejo de esgoto doméstico recebido pelo Ribeirão da Mata, além de efluentes das indústrias têxteis, siderurgia e mineração, principalmente de Pedro Leopoldo, Matozinhos, Lagoa Santa e Capim Branco. Da ponte Raul Soares até o município de Santana do Pirapama a qualidade das águas do Rio das Velhas mantém-se ruim mesmo com o recebimento de afluentes com melhor qualidade, tais como o Rio Taquaraçu e o Ribeirão Jequitibá. Até este momento, o Rio das Velhas não teve condição de autodepurar as suas águas. No período seco (Figura 3) é possível observar uma melhora gradativa ao longo do rio em termos de qualidade de água, pois verifica-se uma maior depuração da matéria orgânica e aumento da concentração de oxigênio dissolvido nesse período. A contagem de coliformes fecais também é reduzida gradativamente. Nesse trecho, a contaminação por tóxicos vem-se apresentando alta, sobretudo devido aos fenóis e à amônia, que são provenientes principalmente de esgotos domésticos. A região do município de Sete Lagoas, que concentra o maior número de siderúrgicas da bacia, é responsável pelo lançamento de resíduos, que percolam as camadas dos solos, alcançando o lençol freático, que alimenta as nascentes dos diversos cursos d’água da região. As atividades minerárias em Taquaraçu de Minas, em Prudente de Morais e Sete Lagoas contribuem para a ocorrência de materiais suspensos no Ribeirão Jequitibá e Rio Taquaraçu, respectivamente. As concentrações de manganês ainda são elevadas nesse trecho. No Rio das Velhas a montante da foz do Rio Paraúna a qualidade das águas começa a melhorar. Já se percebe a redução de amônia, fenóis, coliformes fecais e materiais suspensos. O oxigênio dissolvido, apesar de ocorrer ainda em baixas concentrações, apresenta uma melhora no período chuvoso. Nesse trecho, o Rio das Velhas já recebeu o Ribeirão Santo Antônio que, mesmo recebendo efluentes de indústrias,

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Figura 5 – Mapa de qualidade das águas superficiais do médio curso do Rio das Velhas, em 2002 – períodos chuvoso e seco.


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bem como o esgoto doméstico do município de Curvelo, possui normalmente águas de melhor qualidade que o Rio das Velhas. O médio curso do Rio das Velhas recebe as águas do Rio Cipó, afluente do Rio Paraúna, ricas em oxigênio dissolvido e baixos teores de sólidos, coliformes fecais e nutrientes, além da contaminação por tóxicos baixa. As melhores condições são verificadas sobretudo no período seco. Isso contribui para a qualidade da água do Rio das Velhas a partir da confluência com o Rio Paraúna, seu principal contribuinte. As atividades minerárias desenvolvidas na região interferem pouco na qualidade das águas e os despejos domésticos não são muito significativos.

A qualidade do baixo curso do Rio das Velhas

O baixo curso do Rio das Velhas compreende, ao sul, a linha divisória entre os municípios de Curvelo (apenas o distrito Tomaz Gonzaga), Corinto, Monjolos, Gouveia e Presidente Kubitschek e, ao norte, os municípios de Buenópolis, Joaquim Felício, Várzea da Palma e Pirapora. Nessa região a pecuária é extremamente importante. A criação de eqüinos ocupa a primeira posição no contexto estadual. A suinocultura é a menos representativa em termos regionais. O baixo curso apresenta as melhores condições de qualidade do Rio das Velhas conforme pode ser observado na Figura 6. O índice de qualidade médio, observado na Figura 2, é predominante no período chuvoso no baixo curso do Rio das Velhas devido às elevadas ocorrências de coliformes fecais e fosfato total identificadas em suas águas. A contaminação por tóxicos alta em alguns trechos, principalmente no período chuvoso, ocorre devido às altas concentrações de fenóis. Essas ocorrências são características de regiões onde há desenvolvimento agropecuário. As concentrações de manganês nas águas do baixo curso são inferiores às observadas dos demais trechos. No período seco, a condição de qualidade das águas do Rio das Velhas é melhor em praticamente todos os trechos, conforme indicado pelo IQA bom observado na Figura 3. As águas são saturadas de oxigênio dissolvido e a quantidade de matéria orgânica é baixa, demonstrando a capacidade de autodepuração do Rio das Velhas à medida que vai se aproximando de sua foz no Rio São Francisco.

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Figura 6 – Mapa de qualidade das águas superficiais do baixo curso do Rio das Velhas, em 2002 – períodos chuvoso e seco.


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Abstract

Water quality along the river An evaluation on the quality of water in Velhas River shows the situation at several sampling stations operated through "Águas de Minas" Project of the IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) and Environment National Program II – PNMAII. In "Projeto Águas de Minas" there are 29 stations defined to characterize the evolution and tendencies on the behaviour of the watercourses during the sampling period. The 36 PNMAII's stations were established to effective an extensive research through a regional knowledge in the upper reaches of the Velhas River. Water sampling and analyses are performed by CETEC (Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais). Water quality results are based on indicators: the Water Quality Index of the National Sanitation Foundation – USA, and Toxic Contamination of the FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente). In general, results indicate that the most critical situation in the Velhas River occurs in its upper and middle reaches. The upper reaches are placed in the geological context of one of Brazil's major mining provinces, known and recognized wordwide as the Iron Quadrilateral in the State of Minas Gerais, where a great variety of minerals are exploited, with special reference to iron ore, gold and gems. The raining season aggravate the bad water quality mainly because of the higher inputs of dissolved iron, phenols, greases and oils, fecal coliforms and suspended solids. Cattle breeding and agriculture are highly expressive in the middle reaches of the Velhas River. They are responsible for erosion processes because of the mechanical procedures in agricultural activities. Industrial activities contribute to the degradation of the Velhas River because there are no wastewater or residue treatments. Lower reaches of the Velhas River present the best water quality conditions. In this region the cattle breeding is extremely important. The water quality is very good in the dry season because it is saturated with dissolved oxygen and organic matter is reduced. This demonstrates that Velhas River amplifies its depuration capacity when as its mouth gets closer to São Francisco River.


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1 Professor de Ecologia do Departamento de Biologia Geral e Coordenador do Laboratório de Ecologia de Bentos do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais 3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais


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23 Invertebrados aquáticos como bioindicadores Marcos Callisto 1 José Francisco Gonçalves Jr 2 Pablo Moreno 3


Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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Introdução

Os ecossistemas aquáticos têm sido alterados de maneira significativa devido a múltiplos impactos ambientais resultantes de atividades mineradoras, construção de barragens e represas, retificação e desvio do curso natural de rios, lançamento de efluentes domésticos e industriais não tratados, desmatamento e uso inadequado do solo em regiões ripárias e planícies de inundação, exploração de recursos pesqueiros e introdução de espécies exóticas. O resultado dessas alterações representa uma queda acentuada da biodiversidade aquática, em função da desestruturação do ambiente físico, químico e alterações na dinâmica e estrutura das comunidades biológicas. Os rios recebem materiais, sedimentos e poluentes de toda sua bacia de drenagem, refletindo os usos e ocupação do solo nas áreas vizinhas. Os principais processos degradadores, resultantes das atividades humanas nas bacias de drenagem, causam o assoreamento e a homogeneização do leito de rios e córregos, diminuição da diversidade de habitat e micro-habitat e eutrofização artificial (enriquecimento por aumento nas concentrações de fósforo e nitrogênio e conseqüente perda da qualidade ambiental). A bacia do Rio das Velhas abrange 760 km de extensão da cidade de Ouro Preto a Barra do Guaicuí, constituindo a maior sub-bacia do rio São Francisco. Cerca de 4,5 milhões de habitantes, em mais de 50 municípios, dependem de suas águas em uma área de quase 30 mil km2. Essas águas, além de serem habitat natural para a vida silvestre, abastecem residências e indústrias, são utilizadas em atividades de saneamento (diluição de esgotos), extração mineral, hotelaria, dessedentação de animais, pesca, piscicultura, agricultura, geração de energia elétrica, navegação, recreação de contato primário. Entretanto, o desenvolvimento econômico e social dos municípios e o crescimento acelerado das populações de entorno têm aumentado, de maneira quase exponencial, a emissão de efluentes não tratados de esgotos domésticos e industriais, superando a capacidade de tamponamento em grande parte da bacia, reduzindo a qualidade das águas. Os impactos ambientais nos ecossistemas aquáticos têm diferentes origens e formas. Muitas vezes, o lançamento de compostos químicos nas águas resulta em concentrações muito superiores àquelas encontradas naturalmente, resultando em teores mais elevados que os permitidos na legislação ambiental brasileira (Tabela 1). Como conseqüência, observam-se modificações no curso e composição físico-química natural dos rios, na cobertura vegetal, nas margens, na cor da água e nos organismos que ali vivem. A proteção dos mananciais de recursos hídricos deve ter alta prioridade na sociedade moderna. Esses mananciais localizam-se em

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Tabela 1: Principais tipos de impactos ambientais em ecossistemas aquáticos brasileiros. TIPOS DE IMPACTOS AMBIENTAIS

DESCRIÇÃO

Hidrológicos

Mudanças no nível da água, assoreamento do curso natural dos rios e volume de aqüíferos (drenagem, diminuição do lençol freático, mudanças globais do clima).

Condições de Cobertura Vegetal

Mudanças na cobertura e densidade de plantas, tanto natural quanto causada por fatores antrópicos (queimadas, pastoreio, aplicações de herbicidas).

Salinidade

Mudanças nos teores de sólidos totais dissolvidos na coluna d’água, solos, sedimentos, de origem natural ou antrópica.

Sedimentação e Turbidez

Mudanças físicas no substrato de fundo e ⁄ ou mudanças na transparência da água e penetração de luz causada pelo carreamento ou ressuspensão de matéria orgânica ou (especialmente) inorgânica, adicionada de fontes naturais ou fatores antrópicos (p.ex. erosão das margens).

Aumento da Carga de Nutrientes e Deficit de Oxigênio (Anoxia)

Aumento da disponibilidade de fósforo e nitrogênio em concentrações maiores do que as naturais, normalmente devido à introdução de esgotos domésticos sem tratamento, aplicação de fertilizantes, resultando no processo de eutrofização artificial e subsequentes condições de anoxia na coluna d’água e sedimentos.

Contaminação por Pesticidas e Metais Pesados

Ocorrência de inseticidas, herbicidas, fungicidas, metais pesados (p.ex. mercúrio) em níveis superiores aos naturais, normalmente devido à lixiviação de áreas drenadas, irrigadas ou solos.

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córregos, rios, lagos, lagunas e aqüíferos subterrâneos e são utilizados para suprir as atividades das populações humanas (domésticas, agrícolas e industriais). Impedir a contaminação de fontes de água potável é importante para uma boa saúde pública, pois diminui os gastos com o tratamento de doenças de veiculação hídrica, e também garante a integridade e manutenção da vida silvestre. O tratamento de 1m3 de água de boa qualidade custa quatro vezes menos do que é gasto com o tratamento da mesma quantidade de água de um rio poluído. Além disso, cada real aplicado em água e esgoto poupa R$ 4,30 em saúde, o que certamente ajudaria a diminuir a média de 238 óbitos ⁄ dia causados por doenças provocadas pela água contaminada e dois terços das internações hospitalares no SUS, incluídos os adultos (informações do Dr. Marcelo Chiaperini, médico sanitarista, publicadas no jornal O Tempo, Belo Horizonte, em 24 ⁄ 08 ⁄ 2003). Infelizmente, tem-se observado o crescimento de fontes poluidoras, em especial o lançamento de esgotos e efluentes industriais nos leitos dos nossos rios. Com isso, a sociedade brasileira vê-se obrigada, cada vez mais, a investir mais recursos no tratamento da água. Outro grave problema ambiental também observado ao longo dos córregos e rios, sobretudo nos que se localizam em planícies de inundação, é a retirada das matas ciliares. A retirada da vegetação marginal na margem dos rios elimina as barreiras naturais que impedem o carreamento de fertilizantes e herbicidas, expõe as margens à erosão, facilita o transporte de sedimentos e o assoreamento do leito dos rios. Além disso, aumenta o fluxo da correnteza, reduz a capacidade de retenção e infiltração de água no solo e aumenta os efeitos das enchentes e inundações.

Bioindicadores de qualidade de água

Bioindicadores são espécies, grupos de espécies ou comunidades biológicas cuja presença, quantidade e distribuição indicam a magnitude de impactos ambientais em um ecossistema aquático e sua bacia de drenagem. Sua utilização permite a avaliação integrada dos efeitos ecológicos causados por múltiplas fontes de poluição. Além disso, o uso dos bioindicadores é mais eficiente do que as medidas instantâneas de parâmetros físicos e químicos (por exemplo, temperatura, pH, oxigênio dissolvido, teores totais e dissolvidos de nutrientes, etc.) que são normalmente medidos no campo e utilizados para avaliar a qualidade das águas. A Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (U.S. Environmental Protection Agency — Usepa) e a Diretriz da União Européia (94C 222 ⁄ 06, 10 de agosto de 1994) recomendam a utilização de bioindicadores como complemento às informações sobre a qualidade das águas.

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Dentre os bioindicadores, há grupos de espécies diretamente relacionados a um determinado agente poluidor ou a um fator natural potencialmente poluente (por exemplo, altas densidades Oligochaeta – “minhocas d’água” – e de larvas vermelhas de Chironomus, Diptera, em rios com elevados teores de matéria orgânica). Além disso, são importantes ferramentas para a avaliação da integridade ecológica (condição de “saúde” de um rio, avaliada através da comparação da qualidade da água e diversidade de organismos entre áreas impactadas e áreas de referência, ainda naturais e a montante). Os bioindicadores mais utilizados são aqueles capazes de diferenciar entre fenômenos naturais (por exemplo, mudanças de estação e ciclos de chuva-seca) e estresses de origem antrópica, relacionados a fontes de poluição pontuais ou difusas.

A abordagem “Bioindicadores” no Programa de Biomonitoramento Ambiental na bacia do Rio das Velhas

Para utilizar bioindicadores de qualidade de água é necessária a obtenção de informações científicas. Especificamente, é necessário saber quais são as comunidades biológicas que devem ser monitoradas em um ecossistema aquático, como monitorá-las, analisar estatisticamente e interpretar os dados, e também qual será o custo do monitoramento (financeiro, recursos técnicos, infra-estrutura). O desenvolvimento de um Programa de Biomonitoramento adequado depende de critérios, padrões e avaliação dos riscos de ocorrência de impactos ambientais. As informações científicas obtidas devem ser prontamente disponibilizadas para as agências governamentais de controle ambiental (p.ex. Feam, Ibama e secretarias de Meio Ambiente), por intermédio de relatórios sintéticos, objetivos e de fácil compreensão, elaborados por especialistas com comprovada experiência, que relatem os resultados das pesquisas científicas e de como estes devem ser utilizados para as soluções de problemas ambientais (Figura 1). As informações poderão ajudar as agências governamentais de controle ambiental (por exemplo, Feam, comitês de bacia) na classificação da qualidade das águas e a orientar os diferentes segmentos da sociedade sobre seu uso adequado (Quadro 1). Atualmente, o enquadramento dos nossos rios em classes de águas é realizado segundo padrões físico-químicos, em função da toxicidade relativa ao consumo humano, sem levar em consideração informações sobre organismos bioindicadores de qualidade de água. A utilização dos bioindicadores é extremamente útil, especialmente para a avaliação de impactos ambientais decorrentes de descargas pontuais de esgotos domésticos e efluentes industriais. Monitorando-se estações de amostragem a montante, no local de lançamento e a jusante da fonte poluidora, pode-se identificar as conseqüências ambientais para a qualidade da água e saúde do ecossistema aquático.

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BIOINDICADORES EM PROGRAMAS DE BIOMONITORAMENTO AMBIENTAL

Etapa 1: Levantamento de dados Avaliação redimensionamento

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Etapa 2: Identificação de parâmetros físicos e químicos e de organismos bioindicadores

Etapa 3: Avaliação da situação atual e proposição de medidas de controle ambiental, manejo de recursos naturais, recuperação de áreas degradadas

Etapa 4: Repasse de informações para o público em geral (associações de moradores, escolas, ONGs), Comitês Manuelzão, órgãos de controle ambiental, empresas e tomadores de decisão.

Figura 1: Etapas de um programa de biomonitoramento ambiental, utilizando os bioindicadores de qualidade de água.

Quadro 1: Vantagens da adoção de um Programa de Biomonitoramento Ambiental (US-EPA, 2003): - As comunidades biológicas refletem a integridade ecológica (p.ex. condições físicas, químicas e biológicas). - As comunidades biológicas refletem os efeitos de diferentes fatores ambientais estressantes, oferecendo portanto uma medida integradora dos impactos ambientais decorrentes de lançamentos de esgotos domésticos, efluentes industriais e agro-pastoris. - Um programa de monitoramento de comunidades biológicas pode ser relativamente de baixo custo, quando comparado aos custos da avaliação de poluentes tóxicos. - O estado das comunidades biológicas é de interesse direto dos cidadãos e representa uma medida eficiente da saúde de ecossistemas aquáticos. - Em monitoramentos de longo prazo, mudanças na qualidade da água são facilmente diagnosticáveis, utilizando macroinvertebrados bentônicos (insetos aquáticos, moluscos, anelídeos), fitoplâncton, zooplâncton e peixes.

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A composição em espécies e a distribuição espaço-temporal dos organismos aquáticos alteram-se pela ação dos impactos. Quanto mais intensos forem, mais pronunciadas serão as respostas ecológicas dos organismos aquáticos bioindicadores de qualidade de água, podendo haver também a exclusão de organismos sensíveis à poluição (como as formas imaturas de muitas espécies de Ephemeroptera, Plecoptera e Trichoptera). A aplicação de Programas de Biomonitoramento por meio de bioindicadores de qualidade de água ocorre em etapas (Quadro 2). Como resultado desses programas, pode-se avaliar a eficiência de estações de tratamento de esgotos (ETEs) e subseqüentes lançamentos em corpos d’água, assoreamentos em rios, efeito de chuva ácida e de práticas agrícolas, remoção da vegetação ripária e efeitos da introdução de espécies exóticas sobre as espécies existentes no local.

Quadro 2: Etapas de desenvolvimento de um Programa de Biomonitoramento Ambiental. 1 - Definição e calibração de indicadores biológicos nos vários tipos de ecossistemas; 2 - Planejamento e execução de amostragens de indicadores biológicos (p.ex. para estabelecer e caracterizar locais de coleta e condições naturais de referência); 3 - Desenvolvimento e calibração de parâmetros de medição; 4 - Montagem e avaliação de banco de dados com informações históricas de parâmetros ambientais, para inferir sobre efeitos de agentes impactantes em diferentes ecossistemas; 5 - Análise e interpretação de dados coletados para subsidiar as ações de conservação e manejo a serem implementadas pelas agências de controle ambiental e pelos tomadores de decisão. 6 - Reavaliação dos resultados e planejamento de novas etapas, com vistas ao monitoramento de longo prazo ou a investigações específicas de problemas pontuais e locais.

O conjunto de organismos chamados “macroinvertebrados bentônicos” vive no fundo de corpos d’água continentais (rios e lagos). Dentre eles predominam as larvas de insetos aquáticos, minhocas d’água, caramujos, vermes e crustáceos, com tamanhos de corpo maiores que 0,2–0,5 mm. Os macroinvertebrados bentônicos são eficientes para a avaliação e monitoramento de impactos de atividades antrópicas em ecossistemas aquáticos continentais. Muitos organismos bentônicos (benthos, do grego, fundo) alimentam-se de matéria orgânica produzida na coluna d’água ou daquela proveniente da ve-

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getação marginal que cai no leito dos rios. São importantes componentes da dieta de peixes, anfíbios e aves aquáticas e por isso transferem a energia obtida da matéria orgânica morta retida no sedimento para os animais que deles se alimentam. Os macroinvertebrados bentônicos são bons bioindicadores da qualidade da água porque são geralmente mais permanentes no ambiente, pois vivem de semanas a alguns meses no sedimento. Por este motivo, o seu monitoramento torna-se mais eficiente que o monitoramento baseado apenas na mensuração de parâmetros físicos e químicos. O Programa de Biomonitoramento Ambiental ideal é o que integra medições físicas, químicas e biológicas, permitindo a caracterização físico-química dos ecossistemas aquáticos de uma bacia hidrográfica e o estudo da ecologia dos organismos bioindicadores de qualidade da água. O uso desses organismos como bioindicadores é baseado em um princípio simples: submetidos a condições adversas, os organismos se adaptam ou morrem. Portanto, os organismos que vivem em um dado ecossistema estão adaptados às suas condições ambientais e, por isso, devem refletir o nível de preservação das condições naturais ou as alterações provocadas pela emissão de poluentes ambientais (Figura 2).

Bioindicadores de águas de boa qualidade

Bioindicadores de águas de má qualidade

Figura 2: Exemplos de macroinvertebrados bentônicos bioindicadores de qualidade de água em um ecossistema natural (córrego Congonhas, Parque Nacional da Serra do Cipó, MG) e em um ecossistema impactado (córrego do Cardoso, região metropolitana de Belo Horizonte, MG). (Fotos do acervo do Laboratório de Ecologia de Bentos do ICB/UFMG).

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No Projeto Manuelzão, no âmbito do subprojeto SOS Rio das Velhas, temos a integração de pesquisadores do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e do Laboratório Metropolitano da Copasa, para o desenvolvimento do Programa de Biomonitoramento da bacia do Rio das Velhas. Além de parâmetros físico-químicos (por exemplo, temperatura, oxigênio dissolvido, condutividade elétrica, P-total, N-total, N-NH4+, TDS, turbidez), têm sido realizadas coletas de parâmetros microbiológicos de qualidade da água (por exemplo, coliformes totais, coliformes termotolerantes, Escherichia coli, Estreptococos fecais) e amostragens qualitativas e quantitativas de fitoplâncton e zooplâncton, além de peixes e macroinvertebrados bentônicos.

Perspectivas futuras

A utilização dos bioindicadores de qualidade da água no Programa de Biomonitoramento Ambiental da bacia do Rio das

DEGRADAÇÃO AMBIENTAL ECOSSISTEMAS NATURAIS

ECOSSISTEMAS IMPACTADOS

CARACTERÍSTICAS

CARACTERÍSTICAS

• Alta diversidade de espécies • Alta resiliência • Alta resistência

• Redução da diversidade de espécies • Eutrofização artificial • Contaminação ou poluição bacteriana • Poluição química das águas • Corrosão de canalizações • Cor, sabor e odor desagradáveis • Formação de espumas • Elevação do custo de tratamento

SERVIÇOS

• Abastecimento doméstico e industrial • Irrigação • Dessedentação de animais • Preservação da fauna e flora • Recreação e lazer • Geração de energia elétrica • Recursos pesqueiros • Transporte e navegação

DESSERVIÇOS

• Doenças • Diluição de despejos • Mortandades de peixes • Redução do valor econômico • Destruição de plantações

Figura 3: Quadro esquemático das conseqüências da degradação ambiental a partir das características e serviços de ecossistemas naturais e impactados.

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Velhas, contribuirá para o diagnóstico das condições ambientais e disponibilizará informações científicas que subsidiem os tomadores de decisão (Figura 3). Esta abordagem é baseada na busca do conhecimento da estrutura e funcionamento das comunidades de macroinvertebrados bentônicos bioindicadores de qualidade da água; do entendimento da dinâmica dos recursos hídricos na bacia do Rio das Velhas; da formulação de modelos ecológicos e do desenvolvimento e aplicação de índices bióticos calibrados para a realidade climática brasileira. Acreditamos que essas ferramentas ecológicas possam ser utilizadas na avaliação da saúde, qualidade e preservação dos ecossistemas aquáticos. O projeto Manuelzão poderá então contribuir para a formulação de um modelo de gestão dos recursos hídricos no Estado de Minas Gerais. A partir de então, este modelo poderá servir de exemplo para a formulação de projetos ambientais do mesmo porte em outras regiões do nosso país. Paralelamente, está sendo firmado um Acordo de Cooperação Científica entre a UFMG e a US-Environmental Protection Agency (EUA), que permitirá o intercâmbio de pesquisadores, pós-graduandos e graduandos para treinamento em Programas de Monitoramento Ambiental nos Estados Unidos. Esta parceria com o US-EPA nos ajudará a desenvolver este Programa de Biomonitoramento Ambiental na bacia do Rio das Velhas utilizando metodologias e técnicas atuais e padronizadas internacionalmente, adaptando-as às condições tropicais. Os resultados obtidos servirão para apontar áreas prioritárias para a preservação da vida silvestre e para decidir quais as medidas corretas para efetuar o manejo sustentado para a exploração racional pela sociedade, incluindo a pesca e o abastecimento doméstico e industrial. Esse programa servirá de marco comparativo para acompanhamento da desejável melhora das condições ambientais da bacia do Rio das Velhas, seja pela instalação das estações de tratamento de esgotos, seja pela própria atuação do Projeto Manuelzão. Esse tipo de manejo sustentado prevê a diminuição dos riscos à saúde das populações que vivem ou dependem dos recursos hídricos da bacia do Rio das Velhas. Somos especialmente gratos aos colegas do Laboratório de Ecologia de Bentos do ICB ⁄ UFMG (biólogos Juliana França, Wander Ribeiro e Karina Moreyra) pelo auxílio nas coletas de campo e processamento do material em laboratório; às sugestões à versão preliminar deste texto pelo Prof. Rogério Parentoni Martins (UFMG), Prof. Leonardo Maltchik (Unisinos, RS), Prof. Alex Enrich-Prast (UFRJ) e Prof. Michael Goulart (Feam e Fapam, MG); ao apoio financeiro, logístico e de infra-estrutura concedidos pelo CNPq, Fapemig, Capes, US Fish & Wildlife Service, Pad Foundation, Pad Aware Foundation, Cemig, Copasa e Petrobrás.

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Abstract

Aquatic invertebrates as bioindicators Some aquatic invertebrates can indicate the quality of freshwater ecosystem habitats. Their presence or absence can be interpreted as signals of changes in the environment, or help to diagnose the causes of an environmental problem. Anthropogenic impacts are reducing water quality and freshwater biodiversity. Here, we discuss the value of benthic macroinvertebrates as example of potential ecological indicators in the Environmental Biomonitoring Program developed in the Velhas River watershed, Minas Gerais State, Brazil. Changes in characteristics and ecosystem services are discussed by comparing human impacted and natural freshwater ecosystems.


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Cará Geophagus brasiliensis. Fotografia: Paulo dos Santos Pompeu.

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Biólogo do Projeto Manuelzão, Coordenador do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas

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Biólogo do Projeto Manuelzão


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24 Os peixes sob a รณtica dos viajantes do passado e do conhecimento atual Carlos Bernardo Mascarenhas Alves 1 Paulo dos Santos Pompeu 2


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Introdução

O Rio das Velhas é um dos únicos rios do Brasil a ter sua ictiofauna intensivamente estudada no século XIX. Entre os anos de 1847 e 1856, o zoólogo dinamarquês Johannes Theodor Reinhardt realizou pesquisas sobre os vertebrados da região do entorno de Lagoa Santa, a convite do colega Peter Wilhelm Lund. A coleção reunida àquela época foi enviada para a Dinamarca, onde se matém preservada no Museu de Zoologia de Copenhague, dando origem à monografia Velhas — Flodens Fiske — Et Bidrag til Brasiliens Ichthyologi (Peixes do Rio das Velhas — Uma Contribuição para a Ictiologia do Brasil), publicada por Chistian Frederik Lütken, em 1875. Este trabalho foi recentemente traduzido para o português, em esforço empreendido pelo Projeto Manuelzão, através do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas. A importância da obra para a época é enfatizada por Britski, contudo reconhece-se sua importância ainda hoje. Até aquele momento, eram conhecidas cerca de 40 espécies para toda a bacia do Rio São Francisco, sistema do qual o Rio das Velhas é um dos principais afluentes. Apenas no Rio das Velhas, foram registradas por Reinhardt 55 espécies, 20 delas descritas pela primeira vez na obra de Lütken. Os relatos da obra de Lütken, muitos deles baseados nas anotações do professor Reinhardt, juntamente com a narrativa de outros naturalistas que percorreram a bacia do Rio das Velhas no século XIX, são permeados de informações sobre o rio, a ecologia dos peixes e a pesca, além de lendas e contos dos pescadores da região. Nesse contexto, também se destaca o trabalho de Sir Richard Francis Burton, que empreendeu a Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico, também traduzido em 1977. Algumas dessas informações são discutidas aqui à luz do conhecimento atual, mais de 150 anos após as empreitadas daqueles aventureiros. O atual estado de degradação do Rio das Velhas, sua conseqüência sobre a fauna de peixes e as perspectivas para sua recuperação também são abordados. O privilégio de podermos consultar dados históricos confiáveis permite as comparações e interpretações, fato raro para a grande maioria das bacias hidrográficas brasileiras.

A pesca na bacia do Rio das Velhas Surubins pescados no Rio São Francisco para o presidente Mello Vianna, 1925. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Nos relatos dos naturalistas que percorreram a bacia do Rio das Velhas, chama a atenção o destaque dado à atividade pesqueira, testemunho da riqueza e abundância originais da fauna de peixes. Referindo-se à região de Santa Luzia, que provia de peixes a Mina de Morro Velho, Burton salientou:

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Figura 1 – Bacia do Rio das Velhas. Em destaque a provável área de estudos de Reinhardt no século XIX. 1= Locais de coleta: RV-01 √ São Bartolomeu; RV-02 √ Sabará; RV-03 √ Lagoa Santa; RV-04 √ Curvelo; RV-05 √ Corinto; RV-06 √ Lassance; ON-01 √ Rio da Onça; CP-01 e CP-02 √ Rio Cipó, PG-01 √ Rio Pardo Grande; CU-01 √ Rio Curimataí e BI-01 √ Rio Bicudo.


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Esta parte do rio apresenta perspectivas para uma indústria muito mais valiosa nos grandes cardumes de peixe que percorrem as águas. . . Quem visitar estes rios, deve vir munido de caniço com os maiores anzóis de água doce e com sistema de enrolamento mais resistente; do contrário, os peixes que pesam mais de 50 kg o surpreenderão. . . Além dos relatos sobre a situação e perspectivas da pesca na bacia, não são raras as narrativas sobre algumas das pescarias vivenciadas pelos estudiosos que por aqui estiveram: O céu tropical, a densa floresta, quase impenetrável, as muitas pessoas nuas pretas ou morenas que ora estavam se movimentando pelo rio, ora corriam pelas margens aos gritos e gargalhadas, enquanto outros preparavam comida junto a uma fogueira com parte do resultado da pesca, compunham em toda a sua simplicidade uma cena pictórica e selvagem; precisava-se muito pouca imaginação para confundir as pessoas de diferentes cores com os índios selvagens e se ver no meio de verdadeiras crianças da selva tropical. . .(Lütken) Naquela noite (13 de setembro de 1867), a temperatura mostrou-se deliciosa, fresca mas agradável. Os homens pescaram com sucesso; os peixes morderam vorazmente as iscas. Cinco douradinhos (considerado como espécie menor de dourado) e oito mandins logo se viram atirados no chão, e quando a linha, quase da espessura de um dedo, foi deixada dentro d’água, não tardou a ser cortada, segundo o piloto, por uma piranha. . . (Burton) A espécie mencionada acima como douradinho trata-se possivelmente da tabarana ou dourado branco (Salminus hilarii), espécie piscívora de médio porte, que hoje ainda é encontrada com freqüência nos afluentes com maior grau de conservação. No mesmo relato, chama a atenção a fama da piranha (Pygocentrus piraya). Recentemente, essa espécie foi registrada na calha do Rio das Velhas durante um episódio de mortandade no seu curso médio, mas não tem sido capturada durante os estudos regulares na bacia, denotando sua baixa prevalência. Outros peixes foram objeto de descrição a partir das técnicas específicas de pesca para a sua captura. Wells descreve a pesca do surubim em outro importante afluente do Rio São Francisco: o Rio Paraopeba. O rio era cheio de peixes que se pode pescar com linha e anzol. O modus operandi de se pescar o surubim, peixe grande, pintado e sem escamas, é um processo progressivo. Primeiro se usa uma vareta leve, uma jarda ou duas de fio de algodão, um alfinete curvo e uma minhoca, exatamente como os garotos londrinos usam nos lagos suburbanos para pegar esgana-gatas. Uns piaus pequenos, de duas ou três polegadas de comprimento, eram logo pescados, em seguida dispensava-se o equipamento e transfer-

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íamo-nos para outra parte da ribeira; um bambu longo e flexível era usado agora como vara de pescar, com uma linha fina e forte de crina trançada, presa a ele e um anzol de fabricação caseira na ponta; um dos piaus servia de isca. Uns poucos peixes de tamanhos variados de diferentes espécies eram pegos; dourados, uma espécie de salmão dourado; matrinxão, uma espécie de pardelha; e o resmunguento mandim que, em forma e cor, lembra uma savelha, mas a cabeça é toda envolvida em uma substância que parece uma concha. Um dos matrinxões, de cerca de meia libra de peso, era selecionado para próxima isca. Mudava-se então para a beira de um poço muito fundo, em uma curva do rio onde havia um redemoinho. Um forte cabo de crina misturada com fibras internas da parasita ‘barba-de-velho’, era desenrolado; um anzol grande, capaz de segurar um tubarão, era preso em uma extremidade e enfiado no rabo do infeliz matrinxão; uma pedra grande era amarrada ao cabo a uma distância de aproximadamente quatro pés do anzol e a linha, assim preparada, era jogada no poço, a extremidade do cabo enrolado no tronco de uma árvore pequena, e aí pode-se ir embora para voltar só na manhã seguinte e encontrar, duas vezes em três, um surubim na extremidade do cabo, com isca e anzol no estômago. Sobre as observações de Reinhardt sobre a curimatá-pioa (Prochilodus costatus), Lütken escreveu: . . . é muito comum no Rio das Velhas e seus afluentes e ocorre também na Lagoa Santa; . . . Não morde anzol, . . . mas é capturado com rede ou com um instrumento de pesca conhecido como pari: em lugares onde o rio tem uma pequena queda, faz-se uma represa de gravetos e galhos, na qual se deixa somente uma abertura de 3–4 pés (0,95m a 1,25m); abaixo desta prende-se uma grande caixa com o fundo de treliça, na qual os peixes que nadam contra o fluxo do rio pela abertura ficam presos e são capturados, já que não conseguem voltar subindo a corrente de água em queda que derrama na caixa. . . As curimatás, ainda bastante abundantes na bacia do Rio das Velhas, possuem hábito alimentar iliófago (comem lodo), o que dificulta a sua captura com anzóis. Devido a essa característica, outros tipos de pesca são utilizados para a sua captura. Entre as técnicas de pesca descritas pelos naturalistas ainda podem ser citadas a gamboa ou curral, o jequi ou jiqui, a grozeira, chiqueiro, linha douradeira, jirau, entre outras. Destas, apenas o jequi, a linha douradeira, que é um bambu com linha e anzol, e a grozeira (um tipo de espinhel) tiveram o seu uso registrado em estudos recentes. Quanto ao jequi, cabe um interessante relato de como algumas das formas de captura descritas no século XIX se mantiveram em prática, passados quase dois séculos: Reinhardt esclarece que “a razão pela qual a barriga nos ‘mandis’ capturados freqüentemente estivesse cheia de uma espécie de Polistes (gênero de vespas) é que são freqüentemente pescados em armadilhas, nas quais se

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coloca como isca um ninho de vespas. Apesar do fato de este ficar na água, as pupas completam o seu desenvolvimento nas celas fechadas e amadurecem com o tempo; tão logo os ‘mandis’ as percebem, entram nas armadilhas e as comem, à medida que estas vão saindo”. (Lütken) No trabalho desenvolvido na calha do Rio das Velhas, encontramos em Nossa Senhora do Glória, no lugarejo denominado Caquende, um pescador que ainda se utilizava da mesma técnica para capturar seus peixes. Ninhos de vespa, marimbondo ou mesmo abelhas são colocados dentro do covo ou jequi. Naquela oportunidade, em 1999, a armadilha continha três bagres-sapo (Pseudopimelodus fowleri).

A região de Lagoa Santa

A partir do estabelecimento do pesquisador dinamarquês em Lagoa Santa, a região passou a ser regularmente visitada por diversos naturalistas. Por esta razão, a maioria das narrativas sobre a fauna da bacia diz respeito aos seus arredores. Esses relatos são particularmente importantes, já que a cidade faz parte, hoje, da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com elevado grau de urbanização e turismo intenso. Nas últimas semanas de minha estada em Lagoa Santa, perto do início da estação das chuvas, em meados de outubro, tanto os moradores da cidade como os fazendeiros locais começaram a praticar com empenho pesca com redes no Rio das Velhas e seus afluentes menores. . . Os frutos da pesca eram mandi, mandiaçu, mandi-bagre, surubim, crumatã, dourado, matrinchã e corvina. . . . Algumas vezes participei da pescaria a pouco mais de uma légua de Lagoa Santa, no ribeirão do Mato, que passa dentro de uma floresta bastante fechada. . . (Lütken) As espécies mencionadas acima são as mais importantes na pesca comercial da bacia do São Francisco. O curso d’água mencionado, hoje conhecido como Ribeirão da Mata, passa por vários municípios da RMBH e encontra-se em acentuado estado de degradação. É difícil imaginar a floresta e a fauna descritas na região, onde hoje encontramos um ambiente totalmente descaracterizado e poluído. Pouco tempo depois, entre 1865 e 1866, integrantes da Expedição Thayer (Orestes Saint-John, George Sceva, Thomas Ward e Joel Allen) foram até a região de Lagoa Santa. Freitas, em pesquisa realizada com base no material literário da época, revela que . . . na mesma região (Lagoa Santa), que era conhecida como uma estação de caça abundante, especialmente num lugarejo chamado Ribeirão da Mata, o taxidermista George Sceva permaneceu por vários meses e fez uma imensa

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e valiosa coleção de animais, entre mamíferos, aves e peixes, que pode ainda ser vista como parte integrante do acervo do Museu de Zoologia Comparada, em Cambridge. Dentre os relatos históricos sobre os peixes da Lagoa Santa, o que trata da pesca do mandi é, talvez, o de maior importância histórica, já que contrasta, fortemente, com a dinâmica atual da ictiofauna. O mandi-amarelo é encontrado não só no Rio das Velhas, mas também no lago (Lagoa Santa). No outono, o peixe deixa o lago em densos cardumes, através de riacho que serve de escoadouro para este; se o peixe retorna em outra estação do ano, não se sabe, mas é avidamente pescado em sua viagem, quando desce o pequeno riacho. No dia 10 de fevereiro de 1855, os mandis estavam saindo do lago, que ficou muito cheio após uma chuva incomumente forte; foram caçados com rede, anzol, cestos e até mesmo com varas, enquanto eles estavam retidos na parte cheia do junco do lago, onde situava sua saída. Vários foram capturados, embora não fossem muitos em relação à grande quantidade de peixes que se movimentavam juntos para sair do lago, talvez para depositar suas ovas nas águas correntes do rio. . . o pequeno Tetragonopterus , que os brasileiros chamam de “piaba-do-córrego”, foi por ele freqüentemente obtido em um pequeno riacho por onde a Lagoa Santa derrama sua água excedente, e que nem mesmo no tempo da seca fica sem água. Ao contrário, ele nunca viu ser capturado na própria lagoa e, apesar de ele ter observado muitas centenas de meninos realizando a pesca de “piaba-do-lago”, nunca havia ali uma única “piaba-do-córrego”, e, vice-eversa, ele nunca viu a “piaba-do-lago” ser pescada no riacho. . . (Lütken)

Tabarana Salminus hilarii. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

Curimatá-pioa Prochilodus costatus. Fotografia: Paulo dos Santos Pompeu.

Matrinchã Brycon orthotaenia. Fotografia: Paulo dos Santos Pompeu.

Piranha Pygocentrus piraya. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves

Piau-rola Leporellus vittatus. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

Hoje, o mandi-amarelo, a curimatá-pioa e várias outras espécies não ocorrem mais na Lagoa Santa e, na maior parte do ano, nenhum peixe pode ser encontrado no Córrego Bebedouro, que liga a lagoa ao rio. Assim, essa narrativa serve para salientar algumas das razões que fizeram diminuir a riqueza, diversidade e abundância de peixes. A ligação existente entre a lagoa e o rio hoje não passa de um córrego canalizado, poluído por esgotos e que serve como depósito de lixo. A saída da lagoa encontra-se obstruída por uma grade e os juncos que a circundavam não existem mais, devido à alteração no nível da água da lagoa. Sobre essa vegetação, Burton relata que nas margens da Lagoa Santa “cresce um fino junco, do qual se fazem colchões.” A conexão original entre a Lagoa Santa e o Rio das Velhas foi interrompida pela ação do homem (canalização), impedindo que a maioria das espécies nativas da lagoa completem o seu ciclo de vida. Atualmente, o pescado da lagoa é constituído apenas por tilápias e tucunarés, espécies exóticas, trazidas da África e da bacia amazônica, respectivamente. Anteriormente, segundo aquele viajante inglês, “. . . os pobres quase vivem só de traíra, curimatão e da perigosa piranha” (provavelmente a pirambeba, Serrasalmus brandtii)”.

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Surubim, o maior peixe do Rio das Velhas

O surubim (Pseudoplatystoma coruscans) é o maior peixe da bacia do Rio São Francisco e, no século XIX, era encontrado em abundância ao longo do Rio das Velhas. Seu tamanho expressivo, quando comparado com as espécies de água doce do velho mundo, inspirou diversos relatos: . . . Alcança 8–10 pés de tamanho, mas exemplares tão grandes só se encontram no São Francisco, não no seu afluente Rio das Velhas. . . . Um dos pescadores de cujos serviços Reinhardt se utilizou distinguia dois tipos de ‘sorubins’ . . . um com manchas menores e mais densas(segundo ele a fêmea) e um com manchas grandes e espalhadas (macho?). Em razão disso, Reinhardt examinou uma grande série de exemplares com manchas menores, mas constatou que, ao contrário, todos eram machos; mais tarde, ele examinou também uma fêmea muito grande, pesando 18 libras, com cabeça incomumente grande, mas não notou qualquer diferença no tamanho das manchas ou em sua posição com relação aos machos anteriormente examinados. De acordo com o que foi dito a Reinhardt, os indivíduos grandes que, como mencionado anteriormente, recebem o nome de ‘loango’ sempre são fêmeas. . . (Lütken) . . . Afirma-se que o surubim chega a atingir um comprimento de 8 pés. Eu mesmo vi um magnífico espécime, de 6 pés e 2 polegadas de comprimento, que foi trazido um dia à Fazenda da Picada. Sua bocarra pode facilmente abarcar em seu interior a cabeça de um homem. . . (Wells) . . . segundo o vulgo, loango é o surubim macho; outros dizem que o moleque é que é o macho do loango. . . . os habitantes da região hão de aprender a salgá-lo e exportá-lo. É uma espécie de esturjão, sem escamas, com manchas e jaspeado, de focinho chato e com ‘bigodes’, . . . e feio como a jamanta. Freqüentemente alcança um metro e meio de comprimento e o peso de 64 quilos, produzindo duas latas de óleo. . . . Afirma-se que é canibal, como o lúcio. É pescado com rede e, pelos selvagens, com setas. A carne é secada ao sol e vendida no sertão. A carne é excelente, branca, firme e gorda. Nunca provei um peixe de água doce mais gostoso; goza, contudo, de má fama de causar moléstias da pele. . . (Burton)

Leporinus marcgravii. Leporinus reinhardti. Leporinus taeniatus. Franciscodoras marmoratus. Litografias do livro Velhas–Flodens Fiske, do zoólogo dinamarquês Christian Frederik Lütken (1827–1901), Copenhague, 1875.

Hoje, sabe-se que, entre os indivíduos maiores da espécie, raramente encontra-se um macho. Pescadores mais antigos ainda chamam de loangos os exemplares maiores e moleques os menores. Convertendo as medidas da época, os maiores exemplares mencionados poderiam medir entre dois e três metros. Peixes com essas dimensões não são mais pescados no Rio São Francisco, onde a captura de um surubim com mais de 80 quilos gera notícia que corre rapidamente entre os pescadores. O maior peso mencionado por Lütken é de 144 quilos. É comum a analogia feita por naturalistas com os peixes que conhecem em seus países. Porém, o surubim nada

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tem a ver com o esturjão. Pelas características de sua carne e porte é a principal espécie comercial da bacia do São Francisco. Os naturalistas que por aqui passaram no passado também registraram algumas lendas sobre o surubim. A mais curiosa delas diz respeito ao suposto hábito da espécie de cuidar de seus filhotes: . . . uma das estórias de todos os pescadores mineiros, segundo a qual o surubim guarda seus filhotes sob o opérculo, até que eles alcancem um certo tamanho. Este esconderijo permite que os filhotes nadem em volta da mãe, mas, tão logo algum perigo se aproxime, a mãe abre tanto seu opérculo quanto a sua boca e os jovens se escondem lá dentro” . . . Reinhardt conversou com um pescador que havia puxado um casonete (outro antigo nome popular para exemplares mais velhos) para dentro da canoa e viu os jovens saírem do esconderijo. . . os supostos filhotes de ‘sorubim’ seriam bagres parasitas (Stegophilus insidiosus). (Lütken) Até hoje, encontramos pescadores da bacia do Rio São Francisco que acreditam que os pequenos bagres que são observados após a captura de um surubim seriam seus filhotes. Alguns vão além e chegam a afirmar que em cada mancha do peixe se instalaria um filhote que ali ficaria para “mamar”. O surubim, por ser uma espécie de desova total, libera milhões de óvulos na água corrente do rio, não possuindo qualquer tipo de cuidado parental. Esses ovos, após serem fertilizados pelo esperma do macho, descem rio abaixo, desenvolvendo-se nas lagoas marginais formadas pela inundação do rio.

Situação atual da ictiofauna da bacia do Rio das Velhas

Dourado Salminus brasiliensis. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

Surubim Pseudoplatystoma coruscans. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

As descrições dos naturalistas que passaram pela região do Rio das Velhas em séculos passados constituem importante testemunho da abundância e diversidade originais da fauna de peixes da bacia. Atualmente, a ictiofauna do Rio das Velhas reflete diretamente os efeitos do avanço da ocupação humana, especialmente da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Através dos ribeirões Arrudas e do Onça, a RMBH despeja diariamente no Rio das Velhas os esgotos doméstico e industrial produzidos por cerca de três milhões de pessoas. Inúmeros são os efeitos desse importante impacto sobre a fauna de peixes. Notadamente, deve ser destacada a mudança na distribuição das espécies ao longo do rio e a ocorrência periódica de episódios de mortandades de peixes. Em rios não impactados, é observado o aumento gradual do número de espécies de peixes das cabeceiras em direção à foz. Isso ocorre porque quanto maior o curso d’água, maior o número e a variedade de ambientes disponíveis. Por outro lado, a distribuição

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das espécies de peixes também está diretamente relacionada com as mudanças no grau de conservação do rio, ao longo do seu curso. Estudo realizado através do Projeto Manuelzão evidenciou acentuada diminuição das espécies de peixes imediatamente abaixo do ponto de despejo dos efluentes da RMBH. Nessa região do rio, observam-se as piores condições ambientais da bacia, com níveis de oxigênio dissolvido próximos a zero durante a maior parte do ano. Por outro lado, afluentes de menor porte, como os rios Cipó, Curimataí, Bicudo e Pardo Grande, que teoricamente apresentariam menor número de espécies, possuem hoje fauna de peixes com riqueza comparável à da calha principal. Cabe salientar que, atualmente, 37 espécies (34 % da fauna da bacia) só são encontradas nesses ambientes, que ainda conservam boa parte de suas características originais. Destacam-se entre estas algumas raras ou ameaçadas de extinção, como as piabas (Characidium lagosantense e Hysteronotus megalostomus) e o timboré (Leporinus marcgravii).

Figura 2 Riqueza de espécies por local de amostragem. No lado esquerdo os pontos da calha do Rio das Velhas, com destaque para a menor riqueza em Lagoa Santa (*), a jusante de Belo Horizonte. No lado, os afluentes do Rio das Velhas. (veja a localização diretamente dos pontos no mapa da Figura 1)

As profundas alterações impostas pelo homem ao Rio das Velhas também se manifestam nos episódios de mortandades de peixes no médio curso do rio, geralmente associados ao início do período chuvoso. Em julho de 1999, foi iniciado através do Projeto Manuelzão

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Locais de coleta

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Rio Bicudo

Rio Curimataí

Rio Pardo G.

Rio Cipó

Rio do Onça

Lassance

Corinto

Curvelo

L. Santa*

0

Sabará

10

S. Bartolomeu

Número de espécies de peixes (n)

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em conjunto com o Instituto Estadual de Florestas (IEF), estudo específico com o objetivo de determinar as possíveis causas dessas mortandades. Questionários para avaliação visual da qualidade da água do rio e para preenchimento em caso de mortandade foram distribuídos para moradores ribeirinhos, ao longo do curso do rio, denominados ‘Amigos do Rio’. Esses moradores também foram encarregados de coletar amostras dos peixes mortos, que foram analisados no laboratório de ictiologia da UFMG. Em novembro de 1999, foi noticiada a ocorrência de uma mortandade no médio curso do Rio das Velhas, precedida por fortes chuvas na região da RMBH. A mortandade teve início a jusante dos pontos de descarga de esgotos da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e propagou-se rio abaixo até uma extensão de aproximadamente 150 km. Em visita a campo subseqüente ainda eram observados peixes mortos no leito do rio. Durante o episódio de mortandade, a água apresentava-se escura e com odor desagradável. Foram coletados indivíduos de 21 espécies de peixes. Em biópsia com análise macroscópica não foi detectada nenhuma alteração morfológica significativa nos indivíduos coletados. Espécies com reconhecida tolerância a hipóxia não foram registradas. A diminuição repentina dos níveis de oxigênio dissolvido foi apontada como causa mais provável dessa mortandade. Essa rápida deterioração da qualidade da água seria provocada pelo revolvimento dos sedimentos, ricos em matéria orgânica, depositados no leito e no fundo do rio. Esse revolvimento se daria por ocasião da ocorrência de fortes chuvas sobre as cabeceiras do Rio das Velhas e na própria RMBH. A elevação da temperatura associada ao grande volume de matéria orgânica disponível na coluna d’água faz aumentar o metabolismo de microrganismos presentes na água. Ao consumirem essa matéria orgânica proveniente de esgotos não tratados, esses seres retiram o oxigênio dissolvido na água, comprometendo a sobrevivência de muitas espécies de peixes.

Trairão Hoplias lacerdae.

Outro impacto de grandes proporções foi o verificado na Lagoa Central de Lagoa Santa. As alterações ambientais nos últimos 150 anos provocaram a extinção de aproximadamente 70% da fauna nativa original. Entre elas pode-se citar a alteração do nível da água da lagoa, eliminação da vegetação marginal (Cyperaceae) e submersa (Characeae), poluição por esgotos domésticos sem tratamento até o início da década de 1990 e, principalmente, a introdução de espécies exóticas (como tucunaré, trairão e tilápia) e interrupção da comunicação com o Rio das Velhas, através do córrego Bebedouro. Hoje o córrego está canalizado e poluído e na saída da lagoa foi construído um ladrão de cimento e grade, impossibilitando o fluxo descrito anteriormente.

Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

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Perspectivas de recuperação da fauna de peixes do Rio das Velhas

Apesar do avançado grau de degradação ambiental da bacia do Rio das Velhas, sua ictiofauna ainda guarda possibilidade concreta de recuperação. No trecho pesquisado pelo Projeto Manuelzão, existem dois cursos d’água enquadrados entre as áreas de “importância biológica extrema” do Estado de Minas Gerais: o próprio Rio das Velhas e o Rio Cipó. A inclusão foi motivada pela ocorrência de fenômeno biológico especial (piracema), alta riqueza de espécies de distribuição restrita e papel importante na manutenção da integridade da planície de inundação do São Francisco em Minas Gerais. Além deste fato, soma-se a ocorrência de uma espécie oficialmente ameaçada de extinção (Characidium lagosantense). Várias outras espécies raras e ⁄ ou ameaçadas da sub-bacia constam em listas disponíveis na literatura técnica.

1 2e3

Astyanax fasciatus. Astyanax scabripinnis rivularis.

4

Astyanax bimaculatus.

5

Hemigrammus gracilis.

6

Hasemania nana.

Abaixo: Pequira Bryconamericus stramineus. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves

Os recentes projetos de implantação de Estações de Tratamento de Esgotos (ETE) em Belo Horizonte e outros municípios da sub-bacia trazem novas perspectivas de melhoria da qualidade da água do Rio das Velhas. Com essa melhoria, a ictiofauna do Rio das Velhas terá plenas condições de recuperar-se, sem a necessidade de adoção de medidas de manejo específicas. A presença de 107 espécies de peixes e a manutenção de afluentes bem preservados, como o Rio Cipó, são condições suficientes para que espécies que tenham sido extintas em alguns trechos possam repovoá-los. Cinco dos principais afluentes estudados comportam 75% da fauna total registrada na sub-bacia do Rio das Velhas. Some-se a isso o fato de que no médio e baixo curso do Rio das Velhas e no Rio São Francisco, entre as represas de Três Marias e Sobradinho, não há obstáculos naturais (cachoeiras) ou artificiais (barragens) para o livre deslocamento dos peixes. Em pesquisa desenvolvida pelo professor Alexandre Godinho, surubins marcados com rádio-transmissores no Rio São Francisco e acompanhados pela técnica de rádio-telemetria, chegaram a subir cerca de 200 quilômetros no Rio das Velhas, comprovando a conexão entre o rio principal e seu afluente. Assim, a conectividade do sistema, tanto com o canal principal quanto com seus afluentes poderá permitir a recolonização natural do Rio das Velhas, a partir dos estoques provenientes dessa imensa região da bacia do São Francisco e de seus tributários.

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Iconografia

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Abstract

Fishes seen by the past centuries naturalists and the present knowledge Velhas River is one the few Brazilian rivers that had been intensively studied since the 19th century, for many years with focus on a specific group of vertebrates: the fish. Some of the facts, stories, folklore and tales about the river, its fish and fisheries, available in such reports as the ones of Christian F. Lßtken, Richard F. Burton and other naturalists are presented and commented at the light of the present knowledge. The present situation of great environmental degradation and their consequences on the fishes are also exposed as well as the prospects of recovery of Velhas River’s ichthyofauna.


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Professor do Departamento de Zoologia e Coordenador do Laboratório de Ornitologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais 2 Biólogo, Pesquisador do Laboratório de Ornitologia do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. 1


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25 Aves regionais: de Burton aos dias de hoje Marcos Rodrigues 1 Fernando Figueiredo Goulart 2


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A neblina da madrugada fria fazia os ossos do Capitão Burton doer, a ponto de ele mesmo reclamar enquanto navegava pelo Rio das Velhas, em agosto de 1867. Certamente, a travessia do Rio das Velhas e do velho Chico não deveria apresentar dificuldade maior que a de suas explorações anteriores. E é exatamente isso que se lê em seu relato Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Burton relata uma viagem tranqüila, às vezes até bucólica, onde encontra fazendeiros pioneiros, caboclos em suas roças, e as curvas e os rápidos do rio. A maior frustração de Burton, ao longo da viagem, foi a de não ter encontrado o famoso cientista dinamarquês que vivia em Lagoa Santa: Peter Wilhelm Lund, talvez uma das figuras mais importantes para a Paleontologia, Zoologia e Botânica que o país já abrigou. A importância de Lund não reside apenas no fato de ele mesmo ter descoberto, coletado e analisado inúmeros fósseis de animais e de homens nas grutas de Lagoa Santa, e assim, ter estabelecido os fundamentos da Paleontologia brasileira. Lund é importante também porque convidou seus amigos botânicos, como Eugene Warming, e zoólogos, como Johannes Theodor Reinhardt a passar uns tempos na região, a fim de estudá-la. Reinhardt explorou a região de Lagoa Santa entre os anos de 1847 a 1855, onde coletou e descreveu 343 espécies de aves, material depositado no Museu de Zoologia de Copenhague. Essa lista de espécies, publicada em 1870, é uma valiosa base de dados que está sendo usada pelos biólogos hoje. A partir dessa lista é possível se prever quais espécies poderiam estar mais propensas à extinção, e quando e por que elas desapareceriam. Com base nesses resultados, pode-se propor ações para frear ou até mesmo, e por que não, cessar o processo de extinção de espécies. Este exercício foi feito, coincidentemente ou não, por duas pesquisadoras dinamarquesas, Mette Christiansen e Elin Pitter, que residiram em Lagoa Santa, em 1987. Elas elaboraram nova lista de espécies de aves, mas apenas daquelas que só ocorriam nos principais fragmentos de mata da região. Fragmentos esses que sobreviveram ao intenso desmatamento do último século. A nova lista, que constava de 107 espécies, foi então comparada com a velha lista de Reinhardt. Percebeu-se que 13 espécies simplesmente desapareceram, isto é, foram extintas da região. Outras 10 espécies tiveram suas populações reduzidas, enquanto cerca de sete “invadiram” a região.

Tucano de bico preto.

Entretanto, esses números são subestimativas, pois Christiansen e Pitter só analisaram espécies florestais. Uma nova lista de espécies,

Fotografia: Roberto Murta.

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mais completa, abrangendo todos os ecossistemas da região, como lagoas, matas e cerrado, foi feita por ocasião da implantação da Área de Proteção Ambiental do Carste de Lagoa Santa, em 1995. Desta lista, elaborada por Lívia Lins, Ricardo Bonfim Machado e Marcelo Ferreira de Vasconcelos, constam 216 espécies.

Macuco Tinamus solitarius. Fotografia: Roberto Murta.

A partir de rápida análise nas listas de espécies de Reinhardt, Christiansen e Pitter e Lins e colaboradores, pode-se deduzir que cerca de 60 espécies da lista original de Reinhardt estão ameaçadas de extinção em todo o Estado de Minas Gerais, estando algumas delas localmente extintas. A seguir, descrevemos algumas características de dez espécies bem representativas do tipo de ameaça que ainda assola a região.

Família Rheidae (Ema) Ema, Rhea americana, 170 cm, 35 kg. É a maior ave da América do Sul e também considerada uma das aves mais antigas do continente, sendo que seus fósseis podem datar de até 40 milhões de anos. Os primeiros registros dessa espécie para a região estão desenhados nas pinturas rupestres de Santana do Riacho. A ema era abundante nas regiões descampadas de todo o Brasil Central, tendo sido observada no Estado de Minas Gerais, na região do alto Rio das Velhas, nas cidades de Lagoa Santa, Santa Luzia e Curvelo, no século XIX, por Reinhardt. Hoje, ela é considerada extinta na região. A principal causa do desaparecimento dessa espécie foi a destruição de seu habitat pela ação dos carvoeiros e pelas monoculturas. Foram também muito caçadas devido ao valor de suas penas, que eram usadas em espanadores. O uso indiscriminado de agrotóxicos, as queimadas e a perseguição por cães domésticos também contribuíram para o declínio das populações.

Família Tinamidae (macucos, inhambus e codornas) Macuco, Tinamus solitarius, 52 cm, 1500 g.

Ema Rhea americana. Fotografia: Roberto Murta.

Ave endêmica da Mata Atlântica. Ocorre de Pernambuco ao Rio Grande do Sul, Leste do Paraguai e Nordeste da Argentina. A espécie está incluída na lista oficial de aves ameaçadas de extinção do Brasil. É também considerada “quase ameaçada” de extinção em nível global por Collar e outros. Além disso, por apresentar um certo grau de sensibilidade ambiental, é considerada por Stotz e outros como espécie bioindicadora de locais bem preservados. Sem dúvida, essa é uma espécie presumivelmente extinta ao longo de todo o vale formado pelo Rio das Velhas. O principal fator para o seu desaparecimento foi a destruição de seu habitat, pois é uma espécie exclusivamente florestal. Além disso, era uma das carnes mais cobiçadas na mesa brasileira do período colonial. A caça “esportiva” também contribuiu para seu desaparecimento.

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GaviĂŁo-real Harpia harpyja. Fotografia: Roberto Murta.


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Codorna-buraqueira Taoniscus nanus, 13 cm. Muito pouco se conhece sobre a codorna-buraqueira. Essa espécie habita os cerrados e campos do Brasil Central, ao Sul de Goiás, Triângulo Mineiro, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná. A espécie foi registrada por Reinhardt em Lagoa Santa, no século XIX, e hoje está presumivelmente extinta. O declínio dessa espécie se deve às queimadas indiscriminadas que substituem áreas de cerrado por pastagens.

Família Phasianidae (urus) Uru ou Capoeira, Odontophorus capoeira, 24 cm. Codorna buraqueira Taoniscus nanus. Fotografia: Roberto Murta.

É um pequeno faisão, da Ordem Galliformes. Originalmente, ocorria nas matas de todo o leste brasileiro. Foi registrada por Reinhardt em Lagoa Santa, mas hoje está extinta da região do Rio das Velhas. Existem poucas informações sobre as necessidades ecológicas do uru, porém sabe-se que esta espécie só habita matas com grau mínimo de perturbação humana sendo que o desmatamento aliado à caça predatória é sua maior ameaça.

Família Accipitridae (gaviões e águias) Gavião-real, Harpia harpyja, 105 cm, 4,8 kg (macho), 7,6 a 9 kg (fêmea).

Uru Odontophorus capoeira.

Ocorria nas regiões de floresta primária do Sul do México à Bolívia e Argentina e grande parte do Brasil. O gavião-real é a maior ave de rapina da América do Sul e atua como os grandes predadores de bichos-preguiça, macacos, mutuns e araras. O registro desta espécie por Reinhardt na região de Lagoa Santa e Sete Lagoas, no século XIX, nos dá uma pista do quanto de floresta existia ali. O gavião-real necessita de vastas áreas florestais, com grande abundância de presas. Essas florestas foram dizimadas ao longo de todo o Rio das Velhas. Em todo o sudeste e sul do país, pode-se dizer que tal espécie está ecologicamente extinta. Aparições de um ou outro indivíduo no Estado de Minas Gerais, ou qualquer outra região do Leste do Brasil são provavelmente de migrações ocasionais de indivíduos provenientes do Norte do país, ou até mesmo de indivíduos fugitivos de zoológicos ou coleções particulares (na maioria das vezes ilegais). A principal causa de sua extinção no Sudeste do Brasil foi a destruição do seu habitat e o desaparecimento de seu alimento. Outro aspecto importante foi a caça “esportiva” que perdura até os dias de hoje em relação a qualquer gavião.

Fotografia: Roberto Murta.

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Psittacidae (Araras, Maracanãs, Periquitos, Papagaios e afins) Arara-canindé, Ara ararauna, 80 cm.

Arara-canindé Ara ararauna. Fotografia: Roberto Murta.

Essas araras habitavam todo o Brasil, principalmente em áreas associadas às outrora extensas veredas do Brasil Central. Essa espécie pode se deslocar diariamente a longas distâncias para se alimentar, constroem seus ninhos apenas em cavidades de rochas ou troncos de árvores que estejam em grandes alturas. Alimenta-se de frutos como jatobá, manduvi, pequi, possuindo preferência por coquinhos de palmeiras, dentre eles o buriti, a macaúba e o bacuri. A arara-canindé não foi registrada por Reinhardt, bem como por Christiansen e Pitter e Lins e colaboradores. Entretanto, recentemente, essa arara vem sendo registrada por nós esporadicamente na região de Lagoa Santa e no entorno do Parque Nacional da Serra do Cipó. Trata-se de mistério ainda a ser investigado, pois os indivíduos observados não eram provenientes de cativeiro. Sabe-se que, em Minas Gerais, as maiores populações desta arara encontram-se nas porções noroeste do estado, região onde sobrevivem as últimas veredas formadas pelos buritizais. O sábio Guimarães Rosa constatou que o “buriti quer todo azul, e não aparta de sua água, carece de espelho”. A destruição das veredas, sua drenagem para a agricultura, acabam por matar o buriti, afogando-o na secura. A canindé perde assim seu alimento e sua morada. Além disso, a majestosa canindé é objeto de consumo dos seres humanos, que costumam colocá-las em minúsculas gaiolas para deleite pessoal. Para piorar a situação, a mineração de calcário destrói os paredões, essenciais para a construção dos seus ninhos.

Sabiá-cica, Triclaria malachitacea, 29 cm, 172 g.

Sabiá-cica Triclaria malachitacea. Fotografia: Roberto Murta.

Ocorre nas matas úmidas do Sul da Bahia e Minas Gerais até o Rio Grande do Sul. Alimenta-se de frutos silvestres e é, aparentemente, dependente da frutificação do palmito (Euterpe edulis). As populações dessa espécie têm desaparecido de toda sua área de distribuição original, o que lhe atribui status de ameaçada para o Brasil, e em perigo para o Estado de Minas Gerais. Incrivelmente, o único registro confiável desta espécie no Estado de Minas Gerais foi feito por Reinhardt, em Lagoa Santa, no século XIX. Pode-se supor a existência, à época do Dr. Lund, de extensas áreas de floresta úmida na região, com abundância de palmito. Tais florestas e palmitos hoje são coisa do passado, e se não fossem os trabalhos de Reinhardt, o registro do sabiá-cica na região teria sido descartado por qualquer biólogo da atualidade.

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Família Picidae (pica-paus) Pica-pau-de-cabeça-vermelha, Campephilus robustus, 36 cm, 200 g. “. . . quando passava o Pica-pau-de-cabeça-vermelha, em seu vôo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo, com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma sístole e uma diástole — um coração na mão —; já atravessou o mundo”. (Guimarães Rosa)

Essa espécie ocorre em ambientes de mata bem preservada, do Sul da Bahia, Leste de Goiás, Minas Gerais e Espírito Santo até Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai. É uma espécie cada vez mais rara em Minas Gerais. Na época do Dr. Lund, era relativamente comum na região de Lagoa Santa. A principal ameaça ao pica-pau-de-cabeça-vermelha é o desmatamento, uma vez que mostra grande dependência de ambientes florestais, pois constrói ninhos em grandes árvores mortas, presentes apenas em matas mais preservadas.

Família Cotingidae (arapongas e anambés) Araponga, Procnias nudicollis, 28 cm. A araponga é uma ave endêmica da Mata Atlântica, que ocorre entre os estados de Alagoas, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraguai e Argentina. É uma espécie que depende de florestas úmidas e bem conservadas. Foi registrada por Reinhardt em Lagoa Santa no século XIX, mas hoje ela é considerada extinta nessa região. Essa espécie é conhecida por seu canto, que soa como uma martelada em uma bigorna, característica pela qual recebeu o nome de ferreiro. Infelizmente, é possível que essa característica também tenha contribuído para sua extinção na região, já que é visada no comércio ilegal de aves por seu canto metálico, apreciado pelos avicultores, por incrível que pareça. O desmatamento também vem causando o declínio da população da araponga em todo o Brasil.

Família Emberezidae (canários, curiós, papa-capins) Curió, Oryzoborus angolensis, 13 cm.

Araponga Procnias nudicolis. Fotografia: Roberto Murta.

O curió ocorria em bordas de matas e regiões brejosas de toda a América do Sul. Em Minas Gerais esta espécie era comum, tendo sido observada em Lagoa Santa, no século XIX, por Reinhardt. Hoje, está localmente extinta, e corre o sério risco de extinção na natureza, em todo o Brasil. A principal ameaça vem dos avicultores e traficantes de animais silvestres, que ainda a caçam indiscriminadamente para abastecer o mercado clandestino de aves canoras.

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* * * O Rio das Velhas atravessa uma área de transição entre dois grandes biomas da América do Sul: a Mata Atlântica e o Cerrado. Por isso, a fauna e flora dessa região apresentam espécies endêmicas desses dois biomas. No caso da avifauna, como endemismos da Mata Atlântica, na época de Lund ocorriam o uru (Odontophorus capoeira), o araçari-debico-branco (Pteroglossus aracari), o tucano-de-bico-preto (Ramphastos dicolorus), o araçari-poca (Selenidera maculirostris), o sabiá-cica (Trichlaria malachitacea), a araponga (Procnias nudicolis), a tovaca (Chamaeza sp.), o tangará-dançarino (Chriroxiphia caudata), e o tangarazinho (Ilicura militaris). Todas estas espécies, dependentes de florestas bem preservadas, estão hoje localmente extintas, ou com populações tão reduzidas a ponto de os biólogos os chamarem de ecologicamente extintos, ou seja, uma população inviável a longo prazo. As aves endêmicas do Cerrado também não tiveram melhor sorte. Na região, eram comuns a ema (Rhea americana), o jaó-do-sul (Crypturelus noctivagus), a codorna-mineira (Nothura minor), o galito (Alectrurus tricolor), o andarilho (Geobates poecilopterus) e o mineirinho (Charitospiza eucosma). Todas elas, da mesma forma, localmente extintas. Além desses dois biomas, há a particularidade das aves aquáticas, que habitam e dependem das lagoas estacionais da região cárstica de Lagoa Santa. Em um recente levantamento feito pela bióloga Vânia Michelin, entre os anos de 1999 e 2002, pode-se observar 27 espécies de aves aquáticas, dentre as quais o maguari (Euxenura maguari), o cabeça-seca (Mycteria americana) e o colhereiro (Ajaia ajaia), espécies cujas populações vêm diminuindo em todo o Estado de Minas Gerais. Outras espécies de aves aquáticas, que ocorriam na época de Lund, como o jaburu (Jabiru mycteria), o trinta-réis-anão (Sterna superciliaris) e o batuituçu (Pluvialis dominica), já estão localmente extintas. Embora Richard Burton tivesse os olhos voltados para as curvas e rápidos, profundidade e geologia, altitude e direção do Rio das Velhas, há um sem número de observações naturalísticas que nos dão pistas de como era a paisagem de então ao longo do seu leito. Por exemplo, percebe-se que o leito do rio já estava em um avançado processo de transformação, não só pelo garimpo, como pelo desmatamento de sua mata ciliar. Essa mesma destruição de habitat, presenciada por Burton, tem aparecido insistentemente na literatura especializada como a grande vilã da causa da extinção de espécies. Burton relata uma série de mo-

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dificações ambientais ao longo do leito. A mata ciliar, que não só abrigava exuberante fauna e flora, mas preservava o leito do rio, protegendo-o contra o assoreamento, ia dando espaço às roças de cana-de-açúcar, aos pastos para criação de gado e ao nascimento das cidades. Esse processo perdurou até os dias de hoje, e a conseqüência disso é percebida atualmente com um atestado de quase óbito do Rio das Velhas: poluído, sem peixes, sem a mata protetora e quase sem água, portanto sem navegabilidade. As aves que habitavam e dependiam das matas ciliares e as aves endêmicas do Cerrado também desapareceram. Outro fator que contribui para o declínio das espécies é a caça e a captura ilegal. A caça de subsistência ainda ocorre em regiões pobres do Brasil, tratando-se de problema social. Entretanto, o tráfico de animais silvestres, destinado a um público de maior poder aquisitivo e cultural, é o que causa maior impacto ecológico. Essa atividade ilegal movimenta cerca de 10 bilhões de dólares ao ano, sendo o Brasil responsável por aproximadamente 10% desse mercado. Por exemplo, o melro (Gnorimopsar chopi) é encontrado nas feiras livres do Sul do Brasil por 80 reais e nos Estados Unidos por até três mil dólares. Estamos diante de um processo chamado pelos biólogos de “perda de espécies”, o que significa perda da biodiversidade. Trata-se de processo cujas chances de reversibilidade são mínimas. Teremos algum dia a mesma mata ciliar que acompanhava o rio e o cerrado será restaurado? A araponga voltará a emitir seu estridente canto durante a primavera num recanto qualquer do Rio das Velhas? Observaremos o vôo rasante e impiedoso de uma águia-real sobre o dossel das matas ciliares procurando por um bugio? Ouviremos o canto melancólico do macuco no final de uma tarde qualquer, num vale qualquer de Lagoa Santa? Algumas medidas emergenciais, como o reflorestamento das matas ciliares, a diminuição do uso de agrotóxicos, o tratamento de esgoto e a educação ambiental, seriam os primeiros passos para reverter o processo de extinção. O futuro de várias espécies de aves, sejam elas dependentes de ambientes florestais, sejam dependentes da vegetação de cerrado, está nas mãos do Homem, que pouco ou nada tem feito pela conservação dos ecossistemas dos quais também depende.

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Bibliografia

BERNARDES, Aline T.; MACHADO, Angelo B. M; RYLANDS, Anthony B. Fauna brasileira ameaçada de extinção. 2 ed. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 1990. 62p BURTON, Richard Francis. Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1977. 359p. CHRISTIANSEN, M.B.; PITTER, E. Species loss in a forest community near Lagoa Santa in southeastern Brazil. Biological Conservation, v. 80, n.1, p. 23-32, 1997. COLLAR, N.J.; CROSBY, M.J.; STATTERSFIELD, A.J. Birds to Watch 2: the world list of threatened Birds. ICBP: Cambridge, 1994. 407 p. FLORENCE, H. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1977. 311 p. GALETTI, M.; ALEIXO, A. Effects of palm heart harvesting on avian frugivores in an Atlantic rain forest of Brazil. Journal of Applied Ecology, v. 35, p. 286-293, 1998. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. APA Carste de Lagoa Santa: patrimônio espeleológico, histórico e cultural. Belo Horizonte: IBAMA/CPRM, 1998. 71 p. MACHADO, A.B.M. et al. Livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção da fauna de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 1998. 605 p. STOTZ, D.F et al. Neotropical birds: ecology and conservation. Chicago: University of Chicago, 1996. 413 p. WARMING, E. Lagoa Santa, contribuição para a geographia phytobiológica. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1908. 282, xx p.

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Abstract

Regional birds: from Burton to nowadays The Velhas River basin cross two of the main Brazilian biomes: the Atlantic evergreen forest and the seasonally dry Cerrado (a savannah-like vegetation). Therefore, bird species endemic to both ecosystems have been recorded for the region. Here we discuss the local extinction of a few selected species. We based our discussion on the historic data gathered by J.T. Reinhardt, who produced a list o 343 bird species in the XIX century (1870). Nowadays, more than 60 species collected by Reinhardt are threatened to extinction in the state of Minas Gerais, and more than a dozen are already vanished from Velhas River basin. The main cause for this species loss is attributed to deforestation and habitat loss. There are no more humid tall forests that once supported the solitary tinamou, the spot-winged wood-quail, the harpy eagle, the blue-bellied parrot and the bare-throated bellbird. Also, as the cerrado was converted into grazing land, there are no more space for the greater rhea, the dwarf tinamou, the blue-and-yellow macaw and the lesser seed-finch. The future for the remaining birds, those forest or cerrado dependent is uncertain because no conservation action has been carried out so far by local decision makers.


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1 Coordenador do Laboratório de Mastozoologia e Manejo de Fauna do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais 2 Pesquisadora do Laboratório de Mastozoologia e Manejo de Fauna do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais


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26 Mamíferos: diversidade e representatividade André Hirsch 1 Bárbara Maria de Andrade Costa 2


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Introdução

A bacia do Rio das Velhas ocupa uma área de 27.867,2 km2 e abrange 51 municípios, um dos quais sendo Belo Horizonte. A população total é de 4.389.211 habitantes, com uma densidade populacional média de 312,74 hab. ⁄ km2. Essa região encontra-se em uma situação crítica quanto à preservação da fauna e flora locais. Desde o início da colonização do Brasil, a maior parte dos ecossistemas naturais dessa região foi eliminada, como resultado de grandes impactos antrópicos provocados por vários ciclos de ocupação humana e de exploração econômica. Matas naturais foram convertidas em pequenos remanescentes de Mata Atlântica e Cerrado, acabando por destruir em diversos pontos habitat extremamente rico em termos ecológicos. Além disso, o processo de fragmentação do habitat remanescente provocou a perda de grande parte da biodiversidade original. Os dados atuais mostram que, em termos de uso do solo, 45,6% da área da bacia são ocupados por pasto, 4,4% por monocultura de eucalipto e 2,1% por áreas urbanas. Já em termos de cobertura vegetal, 5,6% da área da bacia são ocupados por mata, 5,1% por cerrado, 4,4% por campo cerrado, 10,5% por cerrado em regeneração, 1,1% por mata ciliar, 16,5% por campo rupestre e 3,2% por capoeira. Somando todas as classes de cobertura vegetal resulta um total de 46,4%, ou seja, menos da metade da área total da bacia. Entretanto, a bacia do Rio das Velhas ainda apresenta números significativos em termos de diversidade e endemismo de mamíferos, como mostram os dados obtidos no presente levantamento. Neste sentido, um dos estudos mais relevantes foi realizado em meados do século XIX por Peter Wilhelm Lund, durante os longos anos em que residiu na cidade de Lagoa Santa. Esse naturalista fez uma das abordagens mais completas sobre a história natural e a sistemática da mastofauna regional (ver Glossário), incluindo espécies fósseis de várias cavernas locais. Felizmente, essas descobertas ficaram registradas nas publicações das suas memórias. A sua obra inclui a descrição de 10 espécies novas de mamíferos para a região: Didelphis albiventris (gambá-de-orelha-branca), Marmosops incanus (cuíca), Pseudalopex vetulus (raposinha), Speothos venaticus (cachorro-do-matovinagre), Carterodon sulcidens (rato-do-mato), Phyllomys brasiliensis (rato-de-espinho), Thrichomys apereoides (punaré), Bolomys lasiurus (rato-do-mato), Oryzomys laticeps (rato-do-mato), Rhipidomys mastacalis (rato-da-árvore).

Sagüi-da-cara-branca Callithrix geoffroyi. Fotografia: Roberto Murta.

A meta principal aqui foi a elaboração da lista mais atual possível das espécies de mamíferos com ocorrência na bacia do Rio das Velhas, usando como fonte os estudos de Lund (1842), Paula Couto (1950), Leite & Costa (2002) e Câmara & Murta (2003). Para a obtenção de informações taxonômicas básicas foram consultados os trabalhos de

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Wilson & Reeder (1993) e Emmons & Feer (1997). Em seguida, foi feita uma avaliação da diversidade de espécies e da sua representatividade por bioma, por tipo de locomoção, por tipo de dieta e por categoria de ameaça, tomando como referência Fonseca e colaboradores (1996) e Machado e colaboradores (1998). Finalmente, foi feita uma análise através de um sistema de informações geográficas (SIG) para verificar a representatividade de espécies de mamíferos nos 51 municípios da bacia do Rio das Velhas. Para tal, foram tomados como referência os registros da Coleção Científica de Mamíferos do Departamento de Zoologia da UFMG e do BDGEOPRIM — Banco de Dados Georreferenciado das Localidades de Ocorrência de Primatas Neotropicais (Hirsch e colaboradores, 2002), além do levantamento realizado por Câmara & Murta (2003) na Serra do Cipó. Esta análise serviu, principalmente, para identificar as lacunas existentes em termos de coleta ou registro de espécies de mamíferos que ocorrem nessa região.

Raposinha Pseudalopex vetulus. Fotografia: Roberto Murta.

Curiosamente, nesse levantamento da mastofauna para a bacia do Rio das Velhas, foi constatada a presença de Mesophylla macconelli (Chiroptera), um mamífero endêmico do bioma da Floresta Amazônica. Além disso, nas listas usadas como fonte foi encontrada uma vasta sinonímia de gêneros e espécies que, se não analisada com atenção, pode gerar confusões ao nível taxonômico. Como exemplo, Emmons e colaboradores (2002) mostraram que durante os últimos 100 anos surgiram várias denominações ambíguas para as formas do gênero Phyllomys (ratos-de-espinho). Uma dessas formas, geralmente identificada junto com P. brasiliensis (descrita pelo próprio Lund em 1840), foi separada e descrita pelos primeiros autores como uma espécie nova, P. pattoni (rato-da-árvore-de-flancos-ferrugíneos), que não ocorre na bacia do Rio das Velhas. Aliás, o desconhecimento da distribuição geográfica de algumas espécies ao nível local é outro problema que pode dificultar a correta identificação dos táxons. Este é o caso de Micoureus paraguayanus e M. demerarae, duas espécies de cuícas que, muitas vezes, são confundidas devido à não observância do verdadeiro limite biogeográfico: o divisor de águas entre a bacia do Rio Doce e a bacia do Rio Jequitinhonha. Os casos mencionados acima refletem a existência de várias lacunas no conhecimento biogeográfico e taxonômico da mastofauna da bacia do Rio das Velhas. Por isso, a identificação de tais lacunas e a realização de estudos mais detalhados envolvendo revisões sistemáticas são de extrema importância.

Diversidade de espécies

De acordo com Fonseca e colaboradores, o Brasil possui 457 espécies de mamíferos, distribuídas em 11 ordens, 38 famílias e 180 gêneros.

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Aqui, para a bacia do Rio das Velhas, é apresentada uma lista de 151 espécies, distribuídas em nove ordens, 29 famílias e 105 gêneros. Isto corresponde a 36,0%, 81,8%, 76,3% e 58,3%, respectivamente, da mastofauna brasileira (ver Tabela 1). Em termos de fontes usadas para este levantamento, Lund lista 85 espécies de mamíferos, o que corresponde a 56,3% do total de 151 obtido aqui. Na lista de Paula Couto (1950) aparecem 101 espécies ou 66,9%. Leite & Costa (2002) listaram 111 espécies ou 73,5%. Na lista de Câmara & Murta (2003), restrita à Serra do Cipó, aparecem 48 espécies ou 31,8%. O número de espécies catalogadas na Coleção de Mamíferos da UFMG é de 66, o que corresponde a 43,7%. No banco de dados do BDGEOPRIM estão cadastradas as seis espécies (3,9%) de primatas que ocorrem na região, sendo dois registros de indivíduos híbridos. Callithrix geoffroyi (sagüi-da-cara-branca) ocorre apenas em uma pequena porção da bacia do Rio das Velhas, na região do topovertente leste da Serra do Cipó. As ordens de mamíferos de pequeno porte como Rodentia (roedores), Chiroptera (morcegos) e Didelphimorphia (marsupiais) são as mais bem representadas na bacia do Rio das Velhas, somando 49,44 e 17 espécies, respectivamente, o que corresponde a 32,5%, 29,1% e 11,3% da mastofauna da região em questão. Entre as ordens de mamíferos de médio e grande porte, Carnivora (carnívoros) forma o grupo de maior representatividade, detendo outras 18 espécies ou 11,9% dos mamíferos da bacia. Em termos de diversidade ao nível de família, as três que se destacam mais são a Família Muridae (ratosdo-mato) com 30 espécies (19,9%), a Família Phyllostomidae (morcegosde-nariz-folioso) com 26 espécies (17,2%) e a Família Didelphidae (gambás e cuícas) com 17 espécies (11,3%). Essas proporções de espécies de mamíferos não são exclusivas da bacia do Rio das Velhas. Um padrão semelhante é encontrado em toda a América do Sul.

Representatividade de espécies por bioma

Entre o total das 151 espécies de mamíferos listadas para a bacia do Rio das Velhas, 25 (16,6%) são de ampla distribuição, ocorrendo em todos os biomas reconhecidos por Fonseca e colaboradores (1996) para o Brasil, ou seja, Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Campos Sulinos. Outras 15 espécies (9,9%) ocorrem em todos os biomas supracitados, com exceção dos Campos Sulinos. No entanto, 16 espécies (10,6%) são endêmicas do bioma da Mata Atlântica e 15 (9,9%) endêmicas do Cerrado. Curiosamente, nessa

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região ocorre uma espécie considerada por Fonseca et al. (1996) como endêmica da Floresta Amazônica: Mesophylla macconelli (morcego). Por outro lado, ocorrem outras duas espécies que são exóticas e foram introduzidas no Brasil em séculos passados: Rattus rattus (rato-doméstico) e Mus musculus (camundongo). O restante das espécies ocorre em dois ou mais biomas. A grande diversidade de mamíferos observada aqui está correlacionada, provavelmente, com uma característica peculiar da bacia do Rio das Velhas: o encontro de dois grandes biomas, a Mata Atlântica pelo lado sudeste e o Cerrado pelo lado noroeste. Além disso, ocorre uma porção significativa de Campo Rupestre na Serra do Cipó. A existência dessa região de contato entre biomas permitiu a formação de uma gama de ambientes locais e, por conseguinte, a coexistência de espécies endêmicas de um ou de outro bioma, além das de distribuição ampla.

Representatividade de espécies por tipo de locomoção

Entre o total de mamíferos apresentados na lista elaborada aqui, 52 espécies (34,4%) são terrestres, 34 (22,5%) são voadoras, 20 (13,3%) são arborícolas e 16 (10,6%) são escansoriais. A grande diversidade da ordem Rodentia (roedores) é responsável pela maior representatividade da mastofauna terrestre. A este grupo de locomoção podem ser acrescidas as ordens Carnivora (carnívoros), Artiodactyla (veados, caititú e queixada), Xenarthra (tatus), Perissodactyla (anta) e Lagomorpha (tapeti). O grupo de mamíferos voadores é representado unicamente pela ordem Chiroptera (morcegos). No entanto, a grande diversidade de espécies desta ordem faz este grupo ser o segundo melhor representado na mastofauna regional. Os mamíferos arborícolas são representados por todas as espécies da ordem Primates (primatas), um número significativo de espécies da ordem Rodentia (ratos-de-árvore, esquilos e ouriços) e três espécies da ordem Didelphimorphia (Caluromys philander, Gracilinanus agilis e G. microtarsus).

Caititú Pecari tajacu. Irara Eira barbara. Fotografias: Roberto Murta.

Entre o grupo de mamíferos escansoriais, a maioria das espécies pertence à ordem Didelphimorphia (gambás e cuícas). As outras espécies pertencem à ordem Carnivora (gatos-do-mato, irara e quati) e a ordem Rodentia (ratos-do-mato). Além dos grupos de locomoção apresentados acima, ocorrem cinco espécies de mamíferos semi-fossoriais, representados aqui por

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três espécies de tatus (Xenarthra) e duas espécies de Rodentia (Blarinomys breviceps e Bibimys labiosus). O grupo de mamíferos semiaquáticos é composto por cinco espécies, sendo uma da ordem Didelphimorphia (Chironectes minimus), duas da ordem Carnívora (Lontra longicaudis e Pteronura brasiliensis) e duas da ordem Rodentia (Hydrochaeris hydrochaeris e Nectomys squamipes). Por último, os três mamíferos fossoriais pertencem todos à ordem Rodentia (Kunsia tomentosus, K. fronto e Clyomys laticeps).

Representatividade de espécies por tipo de dieta

Em termos de dieta, o grupo melhor representado é o dos mamíferos frugívoros ⁄ onívoros com 24 espécies (15,9%), as quais pertencem às ordens Chiroptera (morcegos), Rodentia (roedores), Didelphimorphia (gambás), Carnívora (quatis) e Primates (Cebus nigritus nigritus e Callicebus nigrifrons). O segundo grupo melhor representado é o dos mamíferos insetívoros ⁄ onívoros com 20 espécies (13,3%) pertencentes, principalmente, às ordens Didelphimorphia (cuícas), Rodentia (roedores) e Xenarthra (tatus). A ordem Chiroptera representa por si só o grupo de mamíferos insetívoros voadores, com 16 espécies ou 10,6%. A ordem Rodentia é a única representante do grupo de mamíferos frugívoros ⁄ granívoros, com 15 espécies ou 9,9%. O grupo dos mamíferos carnívoros é tipicamente representado pela ordem Carnivora e por uma espécie da ordem Chiroptera (Chrotopterus auritus), somando 11 espécies ou 7,3%. O outro grupo de mamíferos melhor representado é o dos frugívoros ⁄ herbívoros, com sete espécies pertencentes à ordem Rodentia (cutias, ouriços e ratos-d’água) e duas à ordem Artiodactyla (Tayassu pecari e Pecari tajacu), o que soma nove espécies ou 5,9%.

Ouriço-cacheiro Sphiggurus villosus. Lobo-guará Chrysocyon brachyurus. Páginas seguintes: Quati Nasua nasua.

Vale à pena ressaltar que apenas uma única espécie de Rodentia apresenta uma dieta do tipo herbívora ⁄ granívora, Galea spixii (preá). Também, um único mamífero da ordem Carnívora apresenta uma dieta do tipo frugívora ⁄ carnívora, Chrysocyon brachyurus (lobo-guará). Uma das espécies que apresenta dieta piscívora pertence à ordem Chiroptera, Noctilio leporinus (morcego-pescador), que se alimenta de peixes capturados em vôo rasante sobre a superfície da água. As outras três espécies com dieta piscívora são Pteronura brasiliensis e Lontra longicaudis (ordem Carnívora), além de Chironectes minimus (ordem Rodentia). Considerando que a bacia do Rio das Velhas se localiza em uma zona de contato entre Mata Atlântica, Cerrado e Campo Rupestre, os resultados apresentados acima correspondem às expectativas apresentadas por Fonseca et al. (1996).

Fotografias: Roberto Murta.

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Representatividade de espécies por categoria de ameaça

Do total de 151 espécies de mamíferos que compõem a lista elaborada para a bacia do Rio das Velhas, 47 (31,1%) sofrem algum tipo de ameaça, segundo o Livro Vermelho das Espécies Ameaçadas de Minas Gerais (ver Tabela 1). As categorias de ameaça definidas pela IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza) e reconhecidas oficialmente são: EX — Provavelmente Extinta; EW — Extinta na Natureza; CR — Criticamente em Perigo; EN — Em Perigo; VU — Vulnerável, além de LR — Baixo Risco e DD — Deficiência de Dados. Uma categoria criada especificamente para Minas Gerais é a de Presumivelmente Ameaçada (PA), também conhecida como a Lista 2. O que chama mais a atenção é que deste total, quatro espécies já foram enquadradas na categoria de Provavelmente Extintas (EX). Estas espécies são: Speothos venaticus (cachorro-do-mato-vinagre), Pteronura brasiliensis (ariranha), Carterodon sulcidens (rato-do-mato) e Kunsia fronto (rato-do-mato). Além disso, seis espécies são consideradas Criticamente em Perigo (CR), as quais são: Priodontes maximus (tatu-canastra), Leopardus pardalis (jaguatirica), Panthera onca (onça-pintada), Puma concolor (onça-parda), Tapirus terrestris (anta) e Blastocerus dichotomus (veado-galheiro). Por sua vez, as nove espécies de mamíferos enquadradas na categoria de Em Perigo (EN) são as seguintes: Chironectes minimus (cuícad’água), Myrmecophaga tridactyla (tamanduá-bandeira), Tamandua tetradactyla (tamanduá-mirim), Chiroderma doriae (morcego), Lonchophylla bokermanni (morcego), Leopardus tigrinus (gato-do-matopequeno), Leopardus wiedii (gato-maracajá), Pecari tajacu (caititu) e Tayassu pecari (queixada). Também, ocorrem sete espécies de mamíferos enquadrados na categoria de Vulneráveis (VU), as quais são: Cabassous unicinctus (tatu-de-rabo-mole), Alouatta guariba clamitans (buigo-vermelho), Callithrix geoffroyi (sagüi-da-cara-branca), Callicebus nigrifrons (sauá-deMinas-Gerais), Chrysocyon brachyurus (lobo-guará), Pseudalopex vetulus (raposinha) e Lontra longicaudis (lontra). Por outro lado, sete espécies de mamíferos da bacia do Rio das Velhas estão enquadradas na categoria de Baixo Risco (LR), das quais seis pertencem à ordem Didelphimorphia (cuícas e catitas) e uma à ordem Chiroptera (morcegos). Além disso, ocorrem duas espécies que apresentam Deficiência de Dados (DD), as quais são Mazama gouazoupira (veado-catingueiro) e M. americana (veado-mateiro). Sauá-de-Minas Gerais Callicebus nigrifrons. Fotografia: Roberto Murta.

Por último, na bacia do Rio das Velhas aparecem 12 espécies consideradas Presumivelmente Ameaçadas (PA). Destas, sete pertencem à

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ordem Rodentia, entre elas Agouti paca (paca), Kerodon rupestris (mocó), Thalpomys lasiotis (rato-do-chão) e Delomys dorsalis (rato-domato). Do restante das espécies, duas pertencem à ordem Chiroptera (morcegos), Pygoderma bilabiatum e Vampyressa pusilla; uma à ordem Xenarthra, Dasypus septemcinctus (tatuí); uma à ordem Primates, Alouatta caraya (bugio-preto), e uma à ordem Carnívora, Herpailurus yaguaroundi (gato-mourisco). É interessante observar que entre as espécies mais ameaçadas de extinção, cerca de 50% estão representadas nos grupos de mamíferos de médio e grande porte, os quais necessitam de uma área de vida relativamente grande. Essa alta porcentagem pode estar relacionada, principalmente, com a caça ilegal e o processo de fragmentação do habitat natural, ou seja, a formação de “ilhas” de habitat cada vez menores e mais isoladas entre si, o que acaba comprometendo o fluxo gênico entre os indivíduos e aumentando perigosamente a consangüinidade nos acasalamentos. A destruição do habitat natural dos mamíferos também traz conseqüências sérias em termos de dieta, já que passa a ocorrer uma escassez de recursos alimentares, o que pode resultar num desequilíbrio da cadeia alimentar. Um exemplo típico são as espécies piscívoras como Pteronura brasiliensis (ariranha) e Lontra longicaudis (lontra). A poluição de rios e lagoas decorrente de ações antrópicas como, por exemplo, a mineração, além de limitar a área de uso destas duas espécies, causa uma brusca diminuição na população de peixes, principal componente da sua dieta. Então, pode-se concluir que as principais causas que colocam em risco de extinção as espécies listadas para a bacia do Rio das Velhas são o intenso processo de desmatamento e fragmentação do habitat, a caça ilegal, a conversão de áreas naturais em áreas degradadas, a poluição dos corpos d’água e a explosão demográfica humana, como já foi verificado para a bacia do Rio Doce. Para reverter ou pelo menos estagnar o processo de extinção da mastofauna e de outros grupos da fauna, ou seja, “trazer os peixes de volta para o rio”, será necessária a colaboração de vários pesquisadores, órgãos governamentais, organizações não-governamentais e população local, mais ou menos dentro dos moldes do Projeto Manuelzão. As principais práticas conservacionistas que devem ser desenvolvidas são: a) coibir o desmatamento e a destruição do habitat natural, principalmente nas nascentes e ao longo dos cursos d’água; b) coibir o uso indiscriminado do fogo nas atividades agropecuárias; c) coibir quaisquer atividades poluidoras; d) fiscalização e proibição total da caça de espécies nativas; e) fiscalização efetiva das unidades de conservação; f) recuperação das matas ciliares ao longo dos cursos d’água; g) criação de “corredores de habitat” através da regeneração da mata original e do plantio de espécies vegetais nativas, e h) amplas e freqüentes campanhas de educação ambiental.

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Veado-catingueiro Mazama gouazoupira. Fotografia: Roberto Murta.


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Representatividade de espécies por município

Nesta análise foi verificado que dos 612 registros de espécies de mamíferos obtidos aqui, 161 (26,3%) estão concentrados no município de Belo Horizonte, representando 56 espécies ou 37,1% do total de 151. O segundo município com maior número de registros é Nova Lima, com 134 (21,9%), representando 51 espécies ou 33,8% do total. Lagoa Santa é o terceiro município em termos de número de registros, com 88 (14,4%), os quais representam apenas 12 espécies ou 7,9% do total. Em quarto lugar aparece o município de Jabuticatubas com 52 registros (8,5%) que representam 51 espécies ou 33,8% do total. O município de Santa Luzia aparece em quinto lugar com 50 registros (8,2%), mas que representam apenas quatro espécies ou 2,6% do total. Em sexto lugar aparece o município de Ouro Preto com 31 registros representando 11 espécies ou 7,3% do total. O município de Lassance aparece em sétimo lugar, com 12 registros (2,0%) que representam 10 espécies ou 6,6% do total. Em seqüência, aparecem 21 municípios que apresentam menos de 50 registros e ⁄ ou menos de 10 espécies de mamíferos (ver Figura 1). Por último, foram identificados 23 municípios para os quais não existe nenhuma coleta ou registro de qualquer espécie de mamífero. Isto mostra que, apesar do grande número de espécies apresentado na lista elaborada aqui, ainda existem lacunas importantes para serem preenchidas. Torna-se necessário ressaltar que o número de registros apresentado acima é subestimado, por incluir apenas a Coleção Científica de Mamíferos do Departamento de Zoologia da UFMG e o banco de dados do BDGEOPRIM. Também não quer dizer que a Região Metropolitana de Belo Horizonte, realmente, seja a mais rica em termos de diversidade de mamíferos, e sim que se trata da região melhor amostrada. Entre os municípios que não possuem nenhum registro podem ocorrer alguns onde o habitat natural ainda se encontra em bom estado de conservação e, por este motivo, podem e devem apresentar uma alta diversidade de espécies de mamíferos. Estudos futuros visando ao levantamento de espécies de mamíferos nas “áreas-lacuna” identificadas aqui são de extrema importância. Além disso, após o exame de outras coleções científicas como a do Museu de Zoologia da USP ⁄ SP e a do Museu Nacional ⁄ RJ, é provável que novas espécies possam ser acrescidas à lista já existente, o que irá enriquecer a representatividade da mastofauna da bacia do Rio das Velhas.

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Tabela 1: Lista das espécies de mamíferos da Bacia do Rio das Velhas. N

ORDEM FAMÍLIA - ESPÉCIE

AUTOR / ANO

NOME COMUM

FONTE

C.A

(Linnaeus/1758) (Zimmermann/1780) Lund/1840 Wied-Neuwied/1826

cuíca-lanosa cuíca-d´água gambá-de-orelha-branca gambá-de-orelha-preta

Burmeister/1854 Wagner/1842 (Linnaeus/1758) (Lund/1840) (Tate/1931) (Müller/1776) (Wagner/1842) (Olfers/1818) (Waterhouse/1839) (Olfers/1818) (Desmarest/1804) (Wagner/1842)

catita catita guaiquica cuíca cuíca cuíca-de-três-listras catita cuíca-de-quatro-olhos cuíca cuíca cuíca cuíca

2,3,6 LR 2,3 EN 1,2,3,5,6 1,2,3,6 1 1,3,5,6 LR 2,3,6 LR 6 1,3,5,6 LR 2,3,6 LR 1,2,3,6 LR 1,3,5,6 5,6 1 2,3 1 2,3

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Didelphimorphia Didelphidae Caluromys philander Chironectes minimus Didelphis albiventris Didelphis aurita Didelphis brachyura + Gracilinanus agilis Gracilinanus microtarsus Marmosa murina ? Marmosops incanus Micoureus paraguayanus Monodelphis americana Monodelphis domestica Philander frenata Thylamys elegans # Thylamys macrura Thylamys pusilla Thylamys velutinus

18 19 20 21 22

Xenarthra Dasypodidae Cabassous unicinctus Dasypus novemcinctus Dasypus septemcinctus Euphractus sexcinctus Priodontes maximus

(Linnaeus/1758) (Linnaeus/1758) (Linnaeus/1758) (Linnaeus/1758) (Kerr/1792)

tatu-de-rabo-mole tatu-galinha tatuí tatu-peludo tatu-canastra

1,2,3,5 VU 1,2,3,5,6 2,3,6 PA 1,2,3,5,6 1 CR

23 24

Myrmecophagidae Myrmecophaga tridactyla Tamandua tetradacty

(Linnaeus/1758) (Linnaeus/1758)

tamanduá-bandeira tamanduá-mirim

1,2,3 EN 1,2,3,5,6 EN

25

Chiroptera Emballonuridae Peropteryx macrotis

(Wagner/1843)

morcego

1,2,3

26 27 28 29 30 31

Molossidae Eumops bonariensis Eumops perotis Molossops abrasus Molossops temminckii Molossus molossus Tadarida brasiliensis

(Peters/1874) (Schinz/1821) (Temminck/1872) (Burmeister/1854) (Pallas/1766) (I. Geoffroy/1824)

morcego morcego morcego morcego morcego morcego-de-cauda-livre

2,3 2,3 2,3 1,2,3 3 6

621

LR


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N

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ORDEM FAMÍLIA - ESPÉCIE

AUTOR / ANO

NOME COMUM

FONTE

32

Natalidae Natalus stramineus

(Gray/1838)

morcego

2,3

33

Noctilionidae Noctilio leporinus

(Linnaeus/1758)

morcego

1

34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59

Phyllostomidae Anoura caudifer Artibeus jamaicensis Artibeus lituratus Artibeus perspicillatus + Carollia perspicillata Chiroderma doriae Chrotopterus auritus Desmodus rotundus Diphylla ecaudata ? Glossophaga brevicaudata + Glossophaga soricina Lonchophylla bokermanni Mesophylla macconelli Micronycteris megalotis Phyllostomus brevicaudum + Phyllostomus discolor Phyllostomus dorsale + Phyllostomus hastatus Phyllostomus leucostigma + Phyllostomus plecotus + Phyllostomus supercilliatum + Platyrrhinus lineatus Pygoderma bilabiatum Stenoderma humerale + Sturnira lilium Vampyressa pusilla

(É. Geoffroy/1818) (Leach/1821) (Olfers/1818)

morcego morcego morcego

(Linnaeus/1758) (Thomas/1891) (Peters/1856) (É. Geoffroy/1810) (Spix/1823)

morcego morcego morcego morcego-vampiro morcego

(Pallas/1766) (Sazima et al./1978) (Thomas/1901) (Gray/1842)

morcego-de-Pallas morcego morcego morcego

(Wagner/1843)

morcego

(Pallas/1767)

morcego

(É. Geoffroy/1810) (Wagner/1843)

morcego-de-Geoffroy morcego

(É. Geoffroy/1810) (Wagner/1843)

morcego morcego

2,3 3,6 3,6 2 2,3,6 2,3 2,3 1,2,3 1,2,3 1 1,2,3,6 3 3 2,3 1 6 1 1,2,3 1 1 1 1,2,3,6 2,3 1,2 1,2,3,6 3

60 61 62 63 64 65 66 67 68

Vespertilionidae Eptesicus brasiliensis Histiotus velatus Lasiurus borealis Lasiurus cinereus Lasiurus ega Myotis albescens Myotis nigricans Nycticeius sericeus + Vespertilio bursa +

(Desmarest/1819) (I. Geoffroy/1824) (Müller/1876) (Beauvois/1796) (Gervais/1856) (É. Geoffroy/1806) (Schinz/1821)

morcego morcego morcego morcego morcego morcego morcego

622

2,3,6 1,2,3,6 2,3 2,3 2,3 1 1,2,3 1 1

C.A

EN

EN

PA

PA


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N

ORDEM FAMÍLIA - ESPÉCIE

AUTOR / ANO

69 70

Primates Atelidae Alouatta caraya Alouatta guariba clamitans

(Humboldt/1812) (Cabrera/1940)

bugio-preto bugio-vermelho

É. Geoffroy in (Humboldt/1812)

sagüi-da-cara-branca

(É. Geoffroy/1812)

mico-estrela

71 72 73

Callitrichidae Callithrix geoffroyi Callithrix penicillata Callithrix penicillata x geoffroyi

NOME COMUM

FONTE

C.A

4,5 1,2,3,4

PA VU

4,5 VU 1,2,3,4,5,6 4

75

Cebidae Cebus nigritus libidinosus x robustus Cebus nigritus nigritus

(Goldfuss/1809)

macaco-prego

1,2,3,4,6

76

Pithecidae Callicebus nigrifrons

(Spix/1823)

sauá-de-Minas Gerais

1,2,3,4,6 VU

77 78 79 80

Carnivora Canidae Cerdocyon thous Chrysocyon brachyurus Pseudalopex vetulus Speothos venaticus

(Linnaeus/1766) (Illiger/1815) (Lund/1842) (Lund/1842)

cachorro-do-mato lobo-guará raposinha cachorro-domato-vinagre

1,2,3,5,6 1,2,3,5,6 VU 1,2,3,5,6 VU 1,2,3 EX

81 82 83 84 85 86

Felidae Herpailurus yaguaroundi Leopardus pardalis Leopardus tigrinus Leopardus wiedii Panthera onca Puma concolor

(Lacépède/1809) (Linnaeus/1758) (Schreber/1771) (Schinz/1821) (Linnaeus/1758) (Linnaeus/1771)

gato mourisco jaguatirica gato-do-mato-pequeno gato-maracajá onça-pintada sussuarana

1,2,3,5,6 1,2,3,5,6 2,3,5 1,2,3 1,2,3 1,2,3,5

87 88 89 90 91 92

Mustelidae Conepatus semistriatus Eira barbara Galictis cuja Galictis vittata Lontra longicaudis Pteronura brasiliensis

(Boddaert/1784) (Linnaeus/1758) (Molina/1782) (Schreber/1776) (Olfers/1818) (Gmelin/1788)

jaritataca irara furão furão lontra ariranha

1,2,3,5 1,2,3,5,6 5 1,2,3 1,3,5,6 VU 1,2,3 EX

93 94

Procyonidae Nasua nasua Procyon cancrivorus

(Linnaeus/1766) (G. Cuvier/1798)

quati mão-pelada

1,2,3,5,6 1,3,5,6

74

623

4

PA CR EN EN CR CR


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N

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ORDEM FAMÍLIA - ESPÉCIE

AUTOR / ANO

NOME COMUM

FONTE

C.A

1,2,3,6

CR

95

Perissodactyla Tapiridae Tapirus terrestris

(Linnaeus/1758)

anta

96 97 98 99

Artiodactyla Cervidae Blastocerus dichotomus Mazama americana Mazama gouazoupira Ozotoceros bezoarticus

(Illiger/1815) (Erxleben/1777) (G. Fischer/1814) (Linnaeus/1758)

veado-galheiro veado-mateiro veado-catingueiro veado-campeiro

CR 1,2,3 1,2,3,5 DD 1,2,3,5,6 DD 1,2,3

100 101

Tayassuidae Pecari tajacu Tayassu pecari

(Linnaeus/1758) (Link/1795)

caititu queixada

1,2,3,5,6 EN EN 1,2,3

102

Rodentia Agoutidae Agouti paca

(Linnaeus/1766)

paca

1,2,3,5,6

PA

103 104 105

Caviidae Cavia aperea Galea spixii Kerodon rupestris

(Erxleben/1777) (Wagler/1831) (Wied-Neuwied/1820)

preá preá mocó

1,2,3,5,6 1 6

PA

106

Dasyproctidae Dasyprocta azarae

(Lichtenstein/1823)

cutia

1,2,3

107 108 109 110 111 112 113 114

Echimyidae Aulacodus temminckii + Carterodon sulcidens Clyomys laticeps Phyllomys brasiliensis Phyllomys dasythrix Thrichomys apereoides Trinomys gratiosus Trinomys moojeni

115

1 EX 1,2,3 1,2,3 1,2,3 6 1,2,3,5,6 6 5

rato-do-mato rato-do-mato rato-de-espinho rato-da-árvore punaré rato-de-espinho rato-de-espinho

Trinomys setosus

(Lund/1841) (Thomas/1909) (Lund/1840) (Hensel/1872) (Lund/1839) (Moojen /1948) (Pessoa, Oliveira & Reis/1992) (Desmarest/1817)

rato-de-espinho

1,2,3

116 117 118

Erethizontidae Coendou prehensilis Sphiggurus insidiosus Sphiggurus villosus

(Linnaeus/1758) (Lichtenstein/1818) (F. Cuvier/1823)

ouriço ouriço-cacheiro ouriço-cacheiro

1,2,3,5,6 1,2,3 1,6

119

Hydrochaeridae Hydrochaeris hydrochaeris

(Linnaeus/1766)

capivara

1,2,3,5,6

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ORDEM FAMÍLIA - ESPÉCIE

120 121 122 123 124 125 126 127 128 129 130 131 132 133 134 135 136 137 138 139 140 141 142 143 144 145 146 147 148 149

Muridae Akodon cursor Bibimys labiosus Blarinomys breviceps Bolomys lasiurus Calomys callosus Calomys tener Delomys dorsalis Holochilus brasiliensis Holochilus sciureus Kunsia fronto Kunsia tomentosus Mus fossorius + Mus longicaudus + Mus musculus * Nectomys squamipes Oecomys gr. concolor Oligoryzomys eliurus Oryzomys angouya Oryzomys gr. subflavus Oryzomys intermedius Oryzomys laticeps Oryzomys russatus Oryzomys subflavus Oxymycterus roberti Psudoryzomys simplex Rattus rattus * Rhipidomys macrurus Rhipidomys mastacalis Thalpomys lasiotis Thaptomys nigrita

AUTOR / ANO

NOME COMUM

FONTE

C.A

(Winge/1887) (Wagner/1887) (Winge/1887) (Lund/1841) (Rengger/1830) (Winge/1887) (Hensel/1872) (Desmarest/1819) (Wagner/1842) (Winge/1887) (Lichtenstein/1830)

rato-do-chão rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-d’água rato-d’água rato-do-mato rato-do-mato

(Linnaeus/1766) (Brants/1827) (Wagner/1845) (Wagner/1845) (? / ?) (Wagner/1842) (Leche1886) (Lund/1841) (Wagner/1848) (Wagner/1842) (Thomas/1901) (Winge/1887) (Linnaeus/1758) (Gervais/1855) (Lund/1840) (Thomas/1916) (Lichtenstein/1818)

camundongo rato-d’água rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-do-mato rato-doméstico rato-da-árvore rato-da-árvore rato-do-chão rato-do-chão

1,3,5,6 2,3 PA 3 PA 1,2,3,5,6 1,2,3,6 1,3,5,6 3 PA 1,3 6 3 EX 1,2,3 1 1 2,3,6 1,2,3,5,6 5 1,3,5,6 3 5 5 1,2,3 6 1,3,5,6 1,3,5,6 2,3 PA 2,3,6 6 1,2,3,5,6 1,2,3,5 PA 2,3,6

150

Sciuridae Sciurus aestuans

(Linnaeus/1766)

caxinguelê

1,2,3,5,6

151

Lagomorpha Leporidae Sylvilagus brasiliensis

(Linnaeus/1758)

tapeti

1,2,3,5,6

Observações: + – Citada por Lund (1842) e ⁄ ou por Paula Couto (1950), mas sem referência atual. # – Citada por Lund (1842), mas não ocorre no Brasil apenas na região andina, entre o Peru e o Chile. * – Espécie exótica. Fonte: 1 – Lund (1842); 2 – Paula Couto (1950); 3 – Leite & Costa (2002); 4 – Hirsch et al. (2002); 5 – Câmara & Murta (2003), e 6 – Coleção Científica do Laboratório de Mastozoologia e Manejo de Fauna, Departamento de Zoologia ⁄ UFMG. Categoria de Ameaça (C.A): EX – Provavelmente Extinta; CR – Criticamente em Perigo; EN – Em Perigo; VU – Vulnerável; LR – Baixo Risco; DD – Deficiência de Dados, e PA – Presumivelmente Ameaçada.

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Agradecimentos: Os autores agradecem a Yuri L. R. Leite ⁄ UFMG pelas críticas e sugestões ao manuscrito; a Anthony B. Rylands ⁄ CABS-CI pela tradução do resumo; aos revisores anônimos pela leitura, críticas e sugestões; a Paulo dos S. Pompeu e a Carlos B. M. Alves pelo convite para contribuir com este livro.

Glossário:

Dieta carnívora – composta, basicamente, de proteína animal Dieta folívora – composta, basicamente, de folhas Dieta frugívora – composta, basicamente, de frutos Dieta granívora – composta, basicamente, de grãos e sementes Dieta herbívora – composta, basicamente, de ervas e pequenos arbustos Dieta insetívora – composta, basicamente, de insetos Dieta onívora – composta de diferentes ítens como frutos, folhas, flores, insetos e pequenos vertebrados Dieta piscívora – composta, basicamente, de peixes Mamíferos escansoriais – possuem o hábito de se locomover verticalmente no substrato utilizando, para tal, troncos de árvores e cipós Mamíferos fossoriais – possuem o hábito de cavar e viver em tocas Mastofauna – fauna de mamífero

Bibliografia

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Abstract

Mammals: diversity and representativity The basin of the Velhas River, Minas Gerais, covers an area of 27,867.2 km2 through 51 municipalities, with a population of 4,389,211 and an average density of 312.74 people/km2. Over the years, successive cycles of human occupation and economic exploitation of the natural resources have taken their toll on the flora and fauna of the region. In terms of diversity and endemism, the numbers of mammals still found in the basin, however, are significant: nine orders, 29 families, 105 genera and 151 species. This high diversity is related to a particular feature of the basin – the convergence of two major biomes: the Atlantic Forest to the southeast and the Cerrado to the northwest, besides a significant area of rocky moorland (campo rupestre) in the Serra do Cipo. As is typical for South America, the orders best represented are Rodentia (rodents), Chiroptera (bats), Didelphimorphia (marsupials) and Carnivora (canids and felids). Seventeen percent of the species have broad distributions, occurring in all of the six major biomes of Brazil. Sixteen of the species, however, are endemic to the Atlantic forest and a further 15 to the Cerrado. Of concern is that, of the total of 151 species of mammals listed here, 47 (31.1%) are threatened with extinction. Records of any mammal species were completely lacking for 23 of the municipalities and there are, as such, still important gaps in our understanding of the mammal species and their communities in the basin.


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Lobeira ou Fruta-de-lobo Solanum lycocarpum (Solanaceae). Fotografia: João Renato Stehmann.

1 Professora do Departamento de Botânica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais Botânica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais

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Professor do Departamento de


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27 A diversidade da vegetação Maria Rita Scotti Muzzi 1 João Renato Stehmann 2


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Em termos vegetacionais, a bacia do Rio das Velhas insere-se na região de contato entre os biomas Mata Atlântica e Cerrado. A Mata Atlântica cobria originalmente cerca de 12% do território brasileiro, ocupando a região costeira brasileira, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, e avançava para o interior em extensões variadas. Em Minas Gerais, ocupava originalmente quase metade do seu território, especialmente as regiões sul e leste, tendo como um de seus limites a vertente leste da Cadeia do Espinhaço. Hoje, essa formação está reduzida a pouco mais de 8% de sua área original no Brasil e cerca de 14% em Minas Gerais. É uma formação rica em endemismos, ou seja, espécies que ocorrem somente nessa área: de um total estimado de cerca de vinte mil espécies de plantas vasculares, aproximadamente oito mil são exclusivas de sua flora, e muitas delas encontram-se ameaçadas de extinção. O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, apenas superado pela Floresta Amazônica, ocupando cerca de 23% do território nacional, especialmente a região do Planalto Central. Em Minas Gerais, ocupava originalmente mais da metade de sua área, especialmente a região oeste da Cadeia do Espinhaço. Sua flora está estimada em mais de seis mil espécies de fanerógamas. Nessa região de contato também são encontradas formações campestres que crescem sobre afloramentos rochosos ou solos geralmente rasos originados da decomposição das rochas, denominadas Campos Rupestres. No Brasil, essa formação ocorre no Sul da Bahia, em Goiás e em Minas Gerais, nas serras em altitudes de 1.000 a 1.800 m; em Minas Gerais, é encontrada cobrindo boa parte das serras da Cadeia do Espinhaço. Estima-se uma riqueza de três a quatro mil espécies de plantas vasculares para os Campos Rupestres da Cadeia do Espinhaço, com um grande número de endemismos, bem como táxons disjuntos com a restinga, serras da região Central do Brasil (principalmente Goiás) e o Planalto das Guianas. O encontro dessas formações, aliado à diversidade do relevo, do clima e do solo no seu longo percurso, faz com que a flora da bacia do Rio das Velhas seja extremamente rica. Visando a caracterizar melhor a diversidade da vegetação, a seguir descrevemos as tipologias e algumas estratégias adaptativas encontradas nas suas diferentes regiões.

Vista de uma área de canga nodular na Serra da Calçada, Brumadinho, com Aspilia foliacea (Asteraceae) florescendo após o fogo. Fotografia: João Renato Stehmann.

Alto Rio das Velhas

Estende-se de Ouro Preto em direção ao norte, até os municípios de Contagem, Belo Horizonte, Sabará e Caeté, abrangendo o território de nove municípios. Sob o ponto de vista geomorfológico, a principal unidade é o Quadrilátero Ferrífero, concentrando os principais minerais metálicos, como o ferro e o ouro, e conseqüentemente

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a maior atividade minerária. Os solos dominantes são aqueles com o horizonte B incipiente (Cambissolos) ou afloramentos rochosos e a pobreza do solo afeta a vegetação e praticamente impossibilita a atividade agrícola. O relevo da região é montanhoso e fortemente dissecado, as altitudes variam de 900 a 1.500 m, e o clima típico dessa parte da Cadeia do Espinhaço é temperado chuvoso (subtropical de altitude).

Tipologias vegetacionais

As tipologias encontradas nessa região correspondem à Floresta Estacional Semidecidual, Cerrado e Campo. Em termos paisagísticos, o campo domina as regiões mais altas e o cerrado aparece em manchas (encraves), enquanto a floresta ocupa as áreas de drenagem das encostas e os vales mais úmidos. A Floresta Estacional Semidecidual cobria originalmente uma expressiva área do alto Rio das Velhas e foi quase inteiramente destruída no século passado. Hoje a cobertura florestal encontra-se em diferentes estágios de regeneração e está bastante fragmentada. A mata da Área de Proteção Especial de Fechos, pertencente à Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), é um exemplo desse processo. Ela foi inteiramente cortada há 50 anos e hoje encontra-se relativamente estruturada, apresentando um dossel de cerca de 18 m de altura. Estudos recentes comparando a similaridade florística entre as matas da Área de Proteção Ambiental ao Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte (APA Sul) têm mostrado que os remanescentes florestais dessa região são muito distintos entre si. Assim, numa amostragem de 120 árvores dessas matas, encontrou-se uma semelhança máxima de menos de 20% das espécies, o que indica a necessidade da conservação do maior número de fragmentos para se conservar a diversidade regional.

Vegetação sobre a canga couraçada, com detalhe de Lychnophora pinaster (arnica). Fotografia: João Renato Stehmann.

Dentre as espécies freqüentes nas áreas estão algumas de ampla ocorrência no domínio da Mata Atlântica, especialmente nas florestas semidecíduas da região sudeste, como Amaioua guianensis, Aspidosperma parvifolium (peroba), Copaifera langsdorffii (pau-d’óleo ou copaíba), Cabralea canjerana (canjerana), Casearia sylvestris (erva-de-bugre), Cariniana estrellensis (jequitibá), Croton floribundus (sangra-d’água), Cupania vernalis (camboatá), Nectandra oppositifolia (canela-amarela) e Piptadenia gonoacantha (pau-jacaré). Muitas espécies tiveram suas populações bastante reduzidas no passado e hoje estão representadas nas matas apenas por indivíduos jovens, como a peroba, o pau-d’óleo, a bicuíba (Virola bicuhyba), o jacarandá-da-bahia (Dalbergia nigra) e a braúna (Melanoxylum brauna).

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A maior parte dos Campos encontrados na região está situada sobre a canga, a qual é constituída por concreções ferruginosas (figura 1). Rizini, em 1979, reconheceu dois tipos de canga: a nodular e a couraçada. A couraçada ocorre entre 1200 m e 1500 m e a concreção ferruginosa forma uma couraça lacunosa por onde ocorre a percolação da água e a penetração das raízes de algumas espécies. As famílias mais bem representadas são Asteraceae, Orchidaceae, Poaceae, Velloziaceae, Myrtaceae, Cyperaceae, Euphorbiaceae e Convolvulaceae. Entre as espécies mais recorrentes podemos citar Trixis vauthieri e Lychnophora pinaster (arnica) (Asteraceae), Periandra mediterranea (Fabaceae), Sebastiania glandulosa (Euphorbiaceae), Stachytarpheta glabra (Verbenaceae), Pleurothallis teres e Hoffmannseggella caulescens (Orchidaceae) (figura 2). A canga nodular apresenta concreções fragmentadas em pedaços, geralmente mais duros, ocorrendo quase sempre em altitudes inferiores às da canga couraçada. No Quadrilátero Ferrífero, os solos são pobres em nutrientes, favorecendo uma vegetação herbácea graminosa adaptada a essas condições limitantes. Nessa formação destacam-se plantas das famílias Asteraceae e Poaceae (Gramineae). São freqüentes as gramíneas Trachypogon spicatus, Axonopus pressus, A. siccus, Andropogon ingratus e Eragrostis polytricha, bem como as leguminosas Galactia martii (Fabaceae) e diversas espécies de Chamaecrista.

Estratégias adaptativas

Uma espécie de leguminosa (Fabaceae) da canga, Periandra mediterranea. Fotografia: Maria Rita Scotti Muzzi.

As plantas da família das leguminosas (Fabaceae), por serem as primeiras colonizadoras (também conhecidas como pioneiras), apresentam algumas espécies importantes para essa vegetação, tais como Mimosa calodendron, Galactia martii, Periandra mediterranea, Centrosema coriaceum e Chamaecrista cathartica (figura 3). As leguminosas estabelecem uma simbiose com bactérias fixadoras de nitrogênio dos gêneros Rhizobium e Bradyrhizobium, que são encontradas no interior de nódulos nas raízes das plantas. Nesses locais, sob baixas tensões de oxigênio, as bactérias são capazes de fixar nitrogênio atmosférico, o qual é oxidado a amônia e incorporado às proteínas vegetais. Dessa forma, esses microorganismos favorecem o crescimento e o estabelecimento dessas plantas. As leguminosas encontradas nas áreas de campo rupestre do alto Rio das Velhas mostraram-se dependentes da fixação biológica de nitrogênio, sobretudo Centrosema coriaceum. Uma vez que as raízes das leguminosas nativas em campo rupestre geralmente são superficiais, os nódulos formados por essas plantas tornam-se suscetíveis à exposição ao oxigênio, o que inibiria a fixação de nitrogênio. Entretanto, isso não ocorre porque os seus nódulos apresentam camada(s) de células esclerenquimáticas, lignificadas, circunscrevendo a área de tecido infectado pela bactéria. Esta estratégia vem sendo atribuída a uma adaptação dessas espécies

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ao crescimento superficial das raízes e essas camadas de células lignificadas podem funcionar como barreira para o oxigênio. A vegetação que cresce sobre o minério de ferro é também conhecida como vegetação metalófila. Essa vegetação caracteriza-se pela presença de espécies vegetais que, muitas vezes, apresentam nanismo ou gigantismo e, ao mesmo tempo, altas concentrações de metais em seus tecidos. Por outro lado, verificam-se mecanismos de tolerância às condições extremas dos solos metalíferos — alta concentração de metais pesados e pobreza de nutrientes — através de alterações fisiológicas, especialmente metabólicas, e modificações da morfologia interna e externa das plantas, levando a uma seleção rigorosa de indivíduos nesses ambientes. Estudos florísticos sobre a vegetação de canga são escassos e em geral referem-se à região de Carajás, onde foram registradas a ocorrência de diversas espécies endêmicas. Para a região do Quadrilátero Ferrífero, encontramos apenas alguns trabalhos referindo-se a plantas metalófilas de diversas serras e à vegetação de uma cava abandonada de mineração. Duas espécies parecem ser endêmicas dessa área, Calibrachoa elegans (Solanaceae) e Arthrocereus glaziovii (Cactaceae) (figura 4). O certo é que pouco se conhece sobre a riqueza florística e sobre a ocorrência de espécies endêmicas ou ameaçadas de extinção sobre a canga do Quadrilátero Ferrífero. O conhecimento da flora que habita a canga é uma necessidade urgente, especialmente para se estabelecerem estratégias para a conservação da sua biodiversidade. Além disso, as espécies de sua flora são candidatas a serem utilizadas em projetos de recuperação de áreas degradadas pela mineração.

Médio e baixo Rio das Velhas

As regiões do médio e baixo Rio das Velhas envolvem 45 municípios, desde os limites da Região Metropolitana de Belo Horizonte até o encontro com o Rio São Francisco. Nessas regiões, o Rio das Velhas percorre na sua maior parte a Depressão Sanfranciscana, tendo à sua direita a Serra do Espinhaço. O Rio das Velhas desce de uma altitude de cerca de 800 m, em Belo Horizonte, até aproximadamente 500 m, na Barra do Guaicuí, mas seus afluentes da margem direita nascem em altitudes superiores a 1.300 m, na Cadeia do Espinhaço. Na Depressão Sanfranciscana, os solos dominantes são aqueles com horizonte B latossólico e os cambissolos, que possuem baixa fertilidade, ácidos (pH 4,0–5,0), baixa saturação de bases, alto teor de alumínio e baixa capacidade de armazenamento de água. Esse solo era originalmente ocupado na sua maior extensão pelo Cerrado, que em grande parte deu lugar a atividades agropastoris. Encraves de afloramentos calcáreos são encontrados com freqüência nessas regiões, especial-

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mente no médio Rio das Velhas, na região Cárstica de Lagoa Santa ⁄ Sete Lagoas. Na Serra do Espinhaço, os minerais predominantes são os não metálicos, como o quartzo e diamantes, e predominam os Litossolos. O clima predominante do médio e baixo Rio das Velhas é o tropical úmido de savana, com inverno seco e verão chuvoso.

Tipologias vegetacionais

A vegetação dominante na Depressão Sanfranciscana é o Cerrado, enquanto na Serra do Espinhaço predomina o Campo Rupestre. As florestas encontradas nessas duas áreas são bastante distintas e influenciadas pelo solo e clima locais. Na região do Cerrado, encontramos o Cerradão e as Florestas Estacionais, especialmente a semidecidual; na do Campo Rupestre, Florestas Ombrófilas Montanas, junto aos capões e beira de rios. O Cerrado é formado por diferentes fitofisionomias, variando desde campestres até florestais. As tipologias são caracterizadas pela densidade da cobertura arbórea e geralmente se distinguem o campo limpo, campo sujo, cerrado e o cerradão. Reconhecem-se quatro subtipos fisionômicos de Cerrado no sentido restrito (excluindo campos e florestas) e que podem ser distintos pela cobertura arbórea: o Cerrado Denso (50–70%), o Cerrado Típico (20–50%), o Cerrado Ralo e o Cerrado Rupestre (5–20%). Os dois últimos tipos ocorrem em solos diferentes, tendo o Cerrado Rupestre, além das espécies típicas, espécies rupícolas. O Cerradão, também conhecido como Floresta Esclerófila ou Xeromorfa, é uma formação florestal na qual geralmente são encontradas espécies típicas do cerrado. A primeira lista de espécies para o Cerrado foi apresentada por Warming, em 1892, que estudou aspectos ecológicos e florísticos da vegetação da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Ele relacionou um total de 719 espécies, chamadas de genuinamente campestres. Uma estimativa recente para a flora vascular do bioma Cerrado indica a ocorrência de 6.429 espécies, pertencentes a 1.144 gêneros e 170 famílias. Desse total, 2.055 são características das formações campestres, 2.880 das savânicas e 2.540 das florestais. O estrato herbáceo-arbustivo é consideravelmente mais rico que o estrato arbóreo. As famílias Fabaceae, Asteraceae, Orchidaceae e Poaceae são as mais ricas em número de espécies. Páginas seguintes: Arthrocereus glaziovii, espécie endêmica da canga. Fotografia: João Renato Stehmann.

Estudos comparando a semelhança das espécies arbóreas e arbustivas de maior porte encontradas em 98 áreas de Cerrado mostraram que o Cerrado é bastante heterogêneo. Nenhuma espécie foi registrada em todas as áreas, 5% estiveram presentes em mais da metade das áreas e cerca de 30% foram encontradas em apenas

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uma área. Isso significa que, para se preservar a diversidade florística do Cerrado, faz-se necessário o estabelecimento de numerosas áreas protegidas. Dentre algumas espécies lenhosas mais freqüentes no Cerrado, comumente encontradas nas regiões do médio e baixo Rio das Velhas, podemos citar Annona crassifolia (pinha), Brosimum gaudichaudii (mama-cadela), Bowdichia virgilioides (sucupira-preta), Byrsonima verbascifolia (murici), Caryocar brasiliense (pequi), Copaifera langsdorffii (pau-d’óleo ou copaíba) (figura 5), Curatella americana (lixeira), Dimorphandra mollis (faveiro), Erythroxylum suberosum, Hancornia speciosa (mangaba), Hymenaea stigonocarpa (jatobá), Kielmeyera coriacea (pau-santo), Palicourea rigida, Qualea grandiflora (pau-terra), Q. multiflora, Q. parviflora, Roupala montana (carne-devaca), Salvertia convallariodora, Stryphnodendron adstringens (barbatimão), Tabebuia aurea (ipê-amarelo), T. ochracea (ipê-amarelo), Tocoyena formosa e Vochysia rufa (pau-de-tucano). Junto a algumas áreas mais campestres ocorrem as Veredas, formação caracterizada pela presença de agrupamentos de uma palmeira, Mauritia flexuosa, conhecida popularmente por buriti. Os solos nessas áreas são hidromórficos e saturados a maior parte do ano. As veredas são ecologicamente importantes, pois constituemse em aqüíferos e servem de refúgio, abrigo, fonte de alimento e local para reprodução da fauna associada ao Cerrado. Na região do médio Rio das Velhas, encontramos encraves de afloramentos rochosos calcáreos. Nesses locais, ocorre a Floresta Estacional Decídua, também conhecida como Mata Seca. Essas florestas são caracterizadas pelo elevado grau de deciduidade foliar na estação seca e podem ser consideradas um tipo de caatinga arbórea. Na APA Carste de Lagoa Santa e na região do município de Betim, a Mata Seca é encontrada sobre afloramentos calcáreos, atingindo até 20 m de altura e formando uma cobertura descontínua. No estrato arbóreo ocorrem espécies decíduas, como Anadenathera colubrina (angico), Myracrodruon urundeuva (gonçaloalves), Pseudobombax longiflorus (imbiruçu) e Ceiba speciosa (paineira), entre outras. Nos estratos arbustivo e herbáceo, ocorrem diversas espécies espinhentas ou urticantes, como Cereus jamacaru (mandacaru), Jatropha urens (cansanção), Urera baccifera (urtiga) e Encholirium spectabile (gravatá). A Cadeia do Espinhaço é o divisor das águas de três grandes bacias, a do Rio São Francisco, à qual pertence o Rio das Velhas, a do Rio Doce e a do Jequitinhonha, mais ao norte. Na bacia do Rio das Velhas, duas serras da Cadeia do Espinhaço se destacam, a Serra do Cipó, junto ao médio Rio das Velhas, e a Serra do Cabral (figura 6), localizada mais ao norte, no baixo Rio das Velhas.

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Copaifera langsdorffii (pau-d’óleo ou copaíba). Fotografia: Maria Rita Scotti Muzzi.


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Vista do campo rupestre na Serra do Cabral, região do Baixo Rio das Velhas. Fotografia: Alexandre Salino

Nas serras da Cadeia do Espinhaço, o Campo Rupestre constitui a formação dominante. Ele é caracterizado como tendo um estrato herbáceo mais ou menos contínuo, entremeado por pequenos arbustos perenifólios e esclerófilos e subarbustos freqüentemente com folhas imbricadas e que mostram convergência morfológica em várias famílias. As famílias Velloziaceae, Eriocaulaceae, Xyridaceae, Asteraceae, Melastomataceae, Fabaceae, Poaceae, Orchidaceae, Lamiaceae, Cyperaceae, Malpighiaceae, Bromeliaceae e Euphorbiaceae estão presentes em todos os levantamentos florísticos realizados nessa formação. Há endemismos genéricos, como Pseudotrimezia (Iridaceae), Cipocereus (Cactaceae) e Burlemarxia (Velloziaceae), exclusivos dessa formação em Minas Gerais, bem como numerosos endemismos específicos. O mosaico de tipos vegetacionais encontrados nos Campos Rupestres é considerado como o resultado de variações na topografia, declividade e orientação, bem como da natureza do substrato e do microclima, este último afetado pelas variações diárias de temperatura, pela umidade, ventos e insolação.

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A flora da Serra do Cipó é uma das áreas de Campo Rupestre mais bem estudadas e para ela foram catalogadas 1.590 espécies. Embora os Campos Rupestres dominem a paisagem, especialmente em altitudes superiores a 1.000 m, são encontradas também outras fisionomias, como as florestas galerias, capões e cerrados. As famílias mais ricas em número de espécies são Asteraceae (169), Poaceae (130), Melastomataceae (90), Eriocaulaceae (84), Orchidaceae (80) e Velloziaceae (58). Há numerosas espécies endêmicas, especialmente nas famílias Velloziaceae (canelas-de-ema), Eriocaulaceae e Xyridaceae (sempre-vivas). Quase metade das espécies da família Velloziaceae não é encontrada em nenhuma outra serra da Cadeia do Espinhaço, ocorrendo exclusivamente na Serra do Cipó.

Estratégias adaptativas

O Cerrado é muito variável em sua fisionomia, podendo apresentarse como formação florestal (cerradão), savânica e campestre. As causas dessa variação são ainda controversas, podendo estar relacionadas com gradientes de fertilidade do solo ou com a incidência de fogo (Ratter et al., 1997). O Cerrado parece ser mais dependente dos fatores edáficos de ordem nutricional que dos fatores climáticos, pois sob as mesmas condições climáticas encontramos também formações florestais. Dois estratos são geralmente reconhecidos no Cerrado: um arbóreo e outro arbustivo-herbáceo. A vegetação arbórea do cerrado caracteriza-se pela presença de ramos tortuosos, súber espesso e esclerofilia. As longas raízes pivotantes permitem a essas plantas atingir 10 a 15 m de profundidade, assegurando o acesso aos lençóis freáticos na época da seca. Diferentemente do que ocorre numa floresta, que possui o estrato herbáceo-arbustivo sombreado, no Cerrado ele é heliófilo (exposto ao sol) — assim como o arbóreo — e ambos coexistem e competem entre si. O balanço resultante dessas forças pode ser o responsável pelo aparecimento das formas intermediárias, como campo sujo e campo cerrado (figura 7). A vegetação herbácea e (sub)arbustiva possui órgãos subterrâneos de resistência à seca e ao fogo, tais como bulbos e caules subterrâneos (xilopódios), pois suas raízes são superficiais. No inverno, esse estrato seca e a biomassa funciona como combustível para a propagação do fogo, que tem sido considerado importante fator da distribuição da vegetação e da diversidade das espécies do cerrado. Uma das consequências da queimada é a aceleração da mineralização da biomassa e a transferência dos nutrientes minerais para a superfície do solo na forma de cinzas. Porém, grande parte do nitrogênio (95%) presente na fitomassa será volatilizado e retornará à atmosfera. Parte dos nutrientes, como fósforo, potássio, cálcio, magnésio e enxofre

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ficam em suspensão no ar e retornarão ao solo por arraste com as chuvas. Com exceção do nitrogênio, os demais nutrientes podem ser disponibilizados para a vegetação que emite novos brotos logo após a queimada. A tortuosidade dos troncos está relacionada com a sucessiva morte e brotamento das gemas laterais. A casca espessada (súber) é um isolante térmico que impede o calor de atingir as partes vivas. O barbatimão, Stryphnodendron adstringens, é o exemplo dessa capacidade regenerativa. Em outras espécies, o fogo induz à floração, como acontece com o capim-flecha, Tristachya leiostachya. A deficiência de nitrogênio nos solos do Cerrado pode contribuir para o “escleromorfismo oligotrófico”. A abundância de leguminosas no cerrado reforça essa hipótese, sugerindo tratar-se de uma estratégia adaptativa bem-sucedida. Espécies dessa família, como Bowdichia virgilioides (sucupira-preta), Dalbergia miscolobium (caviúnado-cerrado), Machaerium opacum (jacarandá), Plathymenia reticulata (vinhático) e Stryphnodendron adstringens (barbatimão), são encontrados normalmente com nódulos nas raízes que fixam nitrogênio atmosférico, assegurando suprimento de nitrogênio adicional para essas plantas (figura 8).

A Conservação da Biodiversidade

A vegetação da bacia do Rio das Velhas é extremamente rica, especialmente porque está inserida em dois biomas, o Cerrado e a Floresta Atlântica, como já relatado. O divisor dessas formações é a Cadeia do Espinhaço, que possui uma vegetação e flora muito peculiares. Sabe-se hoje que tanto a Mata Atlântica como o Cerrado e os campos rupestres são extremamente heterogêneos em sua composição florística, possuindo uma alta beta diversidade. Como estratégia para a conservação da biodiversidade, deve-se adotar duas ações prioritárias: a implantação de Unidades de Conservação e a recuperação das áreas degradadas, utilizando espécies da flora regional.

Vista de um campo cerrado próximo à Lagoa Santa, esboçado por Eugenio Warming, em 1865. Reprodução da figura publicada em Warming (1973).

No alto Rio das Velhas, a bacia está inserida na APA Sul, área que foi incluída nas Prioridades para Conservação da Biodiversidade do Estado de Minas Gerais. A pressão de exploração nessa área é grande e está relacionada principalmente às atividades de mineração e ao crescimento urbano, representado pela expansão de condomínios e loteamentos. A APA Sul foi criada para resguardar a qualidade dos aqüíferos utilizados no abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, bem como regular as atividades que geram impacto e descaracterizam essa área de alta importância biológica. Contudo, o zoneamento e ações restritivas a determinados tipos de atividades e empreendimentos não

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têm sido efetivamente implementados, e a paisagem e o patrimônio natural continuam sendo paulatinamente degradados. Nessa região, a vegetação sobre a canga é pouco conhecida, florística e estruturalmente, e encontra-se ameaçada pela atividade minerária. É urgente a realização de estudos botânicos nessas áreas, antes que esse patrimônio natural seja perdido. As florestas encontradas nos vales, por sua vez, são corredores naturais nessa região montanhosa, tanto para a flora como para a fauna, e devem ser preservadas a qualquer custo. No médio e baixo Rio das Velhas, a vegetação original dominante era o Cerrado, mas ele foi substituído, em sua maior parte, por pastagens. O Cerrado foi considerado pelo Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira como um dos biomas de maior riqueza biológica, bem como um dos mais ameaçados. A restrição para o desmatamento na Floresta Amazônica e a excessiva exploração da Mata Atlântica redirecionou as atividades agro-silvopastoris para o Cerrado. Cerca de dois terços das áreas de Cerrado encontram-se muito antropizadas. A extensa modificação antrópica do Cerrado se agrava frente à limitação das áreas protegidas. Em Minas Gerais, as principais unidades de conservação do Cerrado são: o Parque Estadual do Biribiri, a Floresta Nacional de Ritápolis e a Floresta Nacional em Paraopeba e representam muito pouco da área ocupada originalmente por esta formação. Faz-se necessário o estabelecimento de um maior número de áreas protegidas, mesmo que de menor tamanho, e que esses fragmentos estejam conectados entre si. No domínio do Cerrado, a Floresta Estacional Semidecidual e a Decidual correspondem, respectivamente, a encraves (ou corredores) da Floresta Atlântica e da Caatinga. São áreas importantes do ponto de vista biogeográfico e para a conservação da diversidade regional, e juntamente com as Veredas, devem ser objeto de políticas específicas de conservação. Além dos cerrados, duas fisionomias foram apontadas como especiais pelo ministério do Meio Ambiente: as matas ciliares da Depressão Sanfranciscana e os campos rupestres do baixo e alto Rio das Velhas. Quanto à recuperação de áreas degradadas e especialmente das matas ciliares, pouco ou quase nada está sendo feito. É urgente a implantação de um programa integrado de recuperação das Matas Ciliares e de revitalização de toda a Bacia Sanfranciscana.

Dalbergia miscolobium (caviúna). Fotografia: Maria Rita Scotti Muzzi.

Agradecimentos: A Pedro Lage Viana, Rubens Custódio Mota e Regina de Castro Vincent pelas informações sobre espécies ocorrentes na região de Canga do Quadrilátero Ferrífero; a Marcos Sobral e Igor Baldo de Castro, pela leitura do manuscrito.

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Iconografia

Bibliografia

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Abstract

The diversity in vegetation The Velhas River’s vegetation is considered part of the Cerrado (dry scrublands) and Atlantic Forest biomes in Minas Gerais. At the high course of The Velhas River there are Seasonal Semi-deciduous Forests, the Cerrado and open country meadows. The flora in this region is rich in species that are regularly found, especially in the Country Meadows of the Espinhaço Mountain Range, grown on rock formations. Most part of these country meadows are situated on rock layers rich in iron, from the Cenozoic era (canga hematítica), in the Iron Quadrilateral (region in Minas Gerais known for the very large presence of iron in it soil), presenting very peculiar flora, adapted to the soil’s poor and toxic conditions. This region’s vegetation is threatened by mining, real estate expansion and the extraction of natural resources. At the middle and lower part of The Velhas River, the Cerrado is the predominant vegetation, but there can also be found some Seasonal Semi-deciduous Forests, Dry Forests on limestone formations, Rupestrian Meadows and Veredas. The Cerrado is a type of vegetation molded by the toxic levels of aluminum in the soil and fires and it is noted in the region through different physical aspects, both in thickets and open country. In this region, these formations have been degraded by the expansion of agricultural activities. The conservation of the diverse vegetation of The Velhas River basin depends on the preservation of as many different representatives of vegetation formations possible, the upkeep and implementation of connections between fragments and the establishment of management and sustainable use of the native vegetation policies.


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1 Professora do Departamento de Farmacognosia da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais Botânica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais

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Professor do Departamento de


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28 Plantas medicinais regionais Maria das Graças Lins Brandão 1 João Renato Stehmann 2

Fotografia: Cuia Guimarães.

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O que são plantas medicinais

Plantas medicinais são aquelas utilizadas na preparação de remédios. Dentro deste grupo de vegetais podem ser incluídos desde as “folhas de chá”, das quais se preparam os remédios caseiros, até outras plantas cultivadas por grandes empresas farmacêuticas, para preparação de medicamentos industrializados. O uso de plantas medicinais é muito incentivado hoje, até mesmo pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo ministério da Saúde, que acreditam que as plantas possam, de fato, substituir os medicamentos sintéticos, vendidos nas farmácias. No entanto, para se alcançar os efeitos benéficos, as plantas precisam ser corretamente identificadas e os medicamentos devidamente preparados. A aliança entre as plantas e a Medicina extrapola a História da humanidade. Desde os primórdios da civilização, os homens vêm coletando plantas silvestres cultivando-as próximas de suas moradias, para usar como medicamento. No início dos tempos, a escolha de uma planta para uso medicinal era feita por tentativa, até a descoberta daquela que apresentava melhor ação contra a doença. Posteriormente, desenvolveu-se a “teoria da assinatura dos corpos”, segundo a qual as plantas e os animais haviam recebido, ao serem criados, uma impressão divina que indicava as suas “virtudes curativas”. Segundo essa teoria, a seleção de uma planta para tratamento de uma doença deveria ser feita por meio da correlação entre seu aspecto (cor, formato, sabor, por exemplo) e as características apresentadas pelo doente. Plantas vermelhas, por exemplo, eram utilizadas para tratar doenças do coração. As amargas serviam para o tratamento de problemas do fígado. Atualmente, as plantas medicinais são escolhidas a partir da Medicina tradicional, ou seja, conhecimentos acumulados por gerações de pessoas, que já as utilizavam há muito tempo. A Medicina tradicional é muito utilizada em países como a Índia e a China, que a praticam há mais de cinco mil anos. Infelizmente, apesar da riqueza da flora brasileira e da nossa cultura, a medicina tradicional aqui é muito pouco valorizada.

Salsaparrilha, Herreria salsaparilha (Herreriaceae). Fotografia: Cuia Guimarães.

A ciência tem contribuído muito para o desenvolvimento de medicamentos a partir de plantas medicinais. Muitas plantas utilizadas na Medicina tradicional de vários países já foram submetidas a estudos de laboratório e sua ação confirmada. Já outras espécies, apesar de contarem com amplo emprego por determinadas populações, não tiveram seus efeitos confirmados e ainda se mostraram tóxicas. Estudos que buscam determinar a eficácia das plantas medicinais são chamados de estudos de validação. A partir desses estudos, é possível também identificar os princípios ativos, ou seja, as substâncias químicas responsáveis pela ação medicamentosa. Os princípios ativos são produzidos nas plantas e aparentemente não estão diretamente relacionados aos processos metabólicos normais

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da fotossíntese, respiração e crescimento, sendo que por isso são também denominados substâncias químicas secundárias. Para as plantas, essas substâncias constituem um arsenal químico utilizado na defesa contra injúrias de diversas naturezas; para o homem, uma ação medicamentosa ou tóxica. Elas podem ser encontradas em qualquer parte da planta, como nas folhas, flores, frutos, sementes, cascas ou raízes. Existem vários tipos de princípios ativos, entre eles os alcalóides, os flavonóides, os antracênicos, as saponinas, os óleos essenciais e os taninos. Sabe-se hoje que a forma de preparação dos medicamentos também vai depender do tipo de princípio ativo presente. As pesquisas que visam a confirmar a ação medicamentosa das plantas medicinais consistem nas seguintes etapas: 1ª) coleta da planta para estudo – É realizada com auxílio de pessoas que conhecem e utilizam aquela planta. Após a coleta, uma amostra é prensada e encaminhada para um especialista em Botânica, para que ele possa confirmar a identificação, dando o nome científico da espécie e sua família. O restante do material será utilizado para as análises químicas e biológicas e é secado à sombra, em temperatura ambiente. 2ª) preparação dos extratos para análises química e biológica – A planta seca é moída até ser transformada em pó, após o que é então colocada em recipientes por onde são passados, exaustivamente, líquidos para a extração dos princípios ativos. Esses líquidos são posteriormente evaporados, em baixa temperatura, até a obtenção de um extrato seco, ou seja, um resíduo rico em substâncias químicas da planta. 3ª) estudo químico da planta – O extrato seco obtido na etapa anterior é submetido a uma série de análises de laboratório para verificar qual o tipo de química presente (alcalóides, flavonóides, taninos, etc.). Após a determinação do tipo de química, passa-se aos ensaios biológicos para verificar a eficácia e toxicidade da planta. 4ª) avaliação da atividade biológica da planta – Os ensaios são realizados em três níveis de complexidade: Ensaios in vitro: nesses testes, o extrato da planta é colocado diretamente em contato com os agentes causadores das doenças (bactérias, fungos), ou mesmo com as enzimas envolvidas com as doenças. A ação da planta é verificada pela capacidade do extrato de inibir o crescimento dos microorganismos ou a atividade das enzimas. Ensaios in vivo: esses ensaios são realizados em animais de laboratório, especialmente camundongos, ratos e coelhos. É possível

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Arnica, Lychnophora sp (Asteraceae). Fotografia: Cuia Guimarães.


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induzir a doença nos animais e a ação da planta é verificada após a administração do extrato. Esse teste permite também verificar se a planta não é tóxica. Os ensaios em animais também são chamados de pré-clínicos. Testes clínicos: se o extrato mostrou-se eficaz e não tóxico nos animais, parte-se para a última etapa dos estudos, os ensaios clínicos. Nesses testes, a ação da planta é verificada em seres humanos. O desenvolvimento desses métodos de avaliar as plantas em laboratório foi importante e necessário a partir da década de 1970, quando começaram a surgir casos de pessoas que desenvolveram câncer no fígado, a partir do uso exagerado do confrei (Symphytum officinale). Sabe-se hoje que o confrei contém substâncias químicas muito tóxicas para o fígado, os alcalóides pirrolizidínicos. Devido à possibilidade do confrei induzir esse efeito colateral, o uso da planta atualmente é aconselhado somente como cicatrizante, para uso sobre a pele. Existem normas e portarias da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do ministério da Saúde que proibem a preparação de medicamentos para uso oral com essa planta. A realização de estudos de validação com as plantas medicinais são muito importantes. A partir dos mesmos, a planta medicinal passa a ser considerada um fitomedicamento, ou seja, um produto confirmado cientificamente. Infelizmente, apesar de toda a riqueza em plantas medicinais, grande parte dos estudos com as nossas plantas ocorrem no estrangeiro. As plantas são aqui coletadas, levadas para os outros países onde são submetidas aos estudos de validação. Posteriormente, os fitomedicamentos são vendidos em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil. Essa atividade é a que se chama de biopirataria, e que vem sendo muito divulgada e combatida hoje. São necessárias, portanto, medidas para que as plantas brasileiras sejam transformadas em medicamentos aqui mesmo no Brasil, valorizando assim a nossa flora e benefíciando o povo brasileiro.

As plantas medicinais brasileiras

O Brasil é um dos países mais ricos em plantas medicinais devido à sua vasta biodiversidade. O uso de plantas é ainda enriquecido aqui pela nossa cultura, proveniente da miscigenação dos índios, negros e europeus. Grande número de plantas medicinais são utilizadas no Brasil hoje, mas grande parte delas são plantas exóticas, ou seja, espécies provenientes de outros continentes. Essas plantas foram introduzidas aqui ao longo do processo de colonização do país. As hortelãs, a camomila e a melissa, por exemplo, são espécies originárias da Europa. O alumã foi trazido pelos escravos africanos. Já o boldo das nossas hortas, o capim-cidreira e a citronela são originárias da Ásia.

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Barbatimão, Stryphnodendron adstringens (Fabaceae). Fotografia: Cuia Guimarães.


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Plantas nativas são aquelas próprias do Brasil e muitas delas já eram usadas na medicina tradicional dos índios brasileiros antes da chegada dos portugueses, em 1500. As propriedades medicinais dessas plantas sempre despertaram o interesse estrangeiro. Relatos históricos demonstram o quanto os portugueses, desde aquela época, observavam o uso das plantas medicinais pelos índios. Gabriel Soares de Souza, por exemplo, é um dos autores antigos que descreveu o uso de plantas medicinais pelos tupis. Souza era um português que viveu na Bahia em 1570, onde se fez senhor de engenho e proprietário de roças e fazendas. Em seu Tratado Descritivo do Brasil, em 1587, Souza escreveu sobre as curiosidades dos costumes dos nativos, e também sobre a utilização das plantas medicinais: “Embaíba é uma árvore comprida e delgada, que faz uma copa em cima de pouca rama; a folha é como de figueira, mas tão áspera que os índios cepilham com ellas os seus arcos e hastes de dardos, com a qual se põe a madeira melhor que com pelle de lixa. . . Tem o olho d’esta árvore grandes virtudes para com ele curarem feridas, o qual depois de pisado se põe sobre feridas mortaes, e se curam com elle com muita brevidade, sem outros ungüentos; e o entrecasco d’este olho tem ainda mais virtude, com o que também se curam feridas e chagas velhas, e taes curas se fazem com o olho d’esta árvore, e com o óleo de copaíba, que se não ocupam na Bahia cirurgiões, porque cada um o é em sua casa.” “Jaborandi é uma herva, que faz árvore de altura de um homem, e lança umas varas em nós como cannas, por onde estalam muito como as apertam; . . . a água cozida com estas folhas é loura e muito cheirosa e boa para lavar o rosto, ao barbear; quem tem a boca damnada, ou chagas n’ella, mastigando as folhas d’esta herva, duas ou três vezes a cada dia, e trazendo-a na boca, a cura muito depressa; queimadas estas folhas, os pós d’ellas alimpam o cancere das feridas, sem dar nenhuma pena, e tem outras muitas virtudes. . .”

Cagaiteira, Eugenia dysenterica (Myrtaceae). Fotografia: Cuia Guimarães.

Muito provavelmente, embaíba, copaíba e jaborandi são espécies de Cecropia (Família Cecropiaceae), Copaifera (Fabaceae) e Piper (Piperaceae), respectivamente. Todas essas espécies são muito conhecidas e utilizadas ainda hoje na Medicina tradicional brasileira. A espécie Cecropia peltata, conhecida como embaúba, ocorre na região Norte do Brasil e seus brotos são usados na Medicina tradicional para o tratamento da hipertensão arterial. Estudos de laboratório confirmaram a ação diurética da planta que, indiretamente, auxilia na queda da pressão arterial. A copaíba (Copaifera sp.) produz uma oleoresina que tem potente ação anti-inflamatória, confirmada em estudos de laboratório. A bibliografia histórica descreve a utilização, pelos índios, do óleo de copaíba juntamente com o óleo de andiroba (Carapa guianensis) no tratamento de feridas, inclusive as ocasionadas por flechadas. Toneladas de óleo de copaíba e andiroba são exportadas anualmente do Brasil, especialmente da Amazônia, e são aproveitadas no estrangeiro. Jaborandi é o nome popular de espécies

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dos gêneros Piper e Ottonia (Piperaceae) e Pilocarpus (Rutaceae). Em Minas Gerais comercializa-se como jaborandi (ou joãoborandi) espécies dos gêneros Piper ou Ottonia. Partes aéreas dessas plantas, quando em contato com a mucosa bucal, produzem sensação analgésica e são empregadas popularmente no tratamento da dor de dente. Aparecem também em formulações de xampus e loções capilares. Já as folhas de diversas espécies de Pilocarpus produzem a pilocarpina, substância química utilizada em todo o mundo no tratamento de uma doença nos olhos, o glaucoma. A indústria estrangeira coletou tantas folhas dessa planta, durante tantos anos, para a preparação desse medicamento que a planta hoje é considerada em perigo de extinção pelo Ibama. Todos esses exemplos ilustram como as plantas medicinais brasileiras despertam o interesse estrangeiro e como elas são pouco aproveitadas pelos próprios brasileiros. Grande parte dos registros históricos que descrevem a utilização das plantas medicinais no Brasil são do século XIX. Nessa época, o país foi visitado por vários aventureiros e cientistas europeus, que buscavam conhecer e estudar as riquezas naturais do Brasil. O Estado de Minas Gerais foi muito visitado por esses viajantes, já que se tratava de uma província muito rica em recursos naturais. Naquela época, Minas Gerais passava pela transição da economia mineradora para a agrícola, havendo uma crescente expansão da atividade agropecuária, inclusive em regiões até então preservadas pela presença indígena. Os relatos desses viajantes descrevem a própria História de Minas Gerais, seu povoamento, a diversificação da economia ao longo do século, a expansão agropecuária e a substituição das florestas por pastagens e agricultura. Auguste de SaintHilaire, naturalista francês que percorreu Minas Gerais naquela época, não poupava críticas ao modo com que o mineiro destruía, muitas vezes inutilmente, as florestas nativas: “Desse modo, os agricultores terminam na Província de Minas o que começaram os homens que iam à cata do ouro, a funesta destruição das matas. A falta de lenha já se faz sentir em algumas vilas que foram provavelmente construídas no seio de florestas, e as minas de ferro, de riquíssimo teor em metal, não podem ser exploradas por falta de combustível. Diariamente árvores preciosas caem sem utilidade sob o machado do lavrador imprevidente. É possível que, no meio de tantos e repetidos incêndios, não tenha desaparecido uma série de espécies úteis às artes e à medicina e, dentro de alguns anos, a Flora que neste momento acabo de publicar, não será mais, para certas regiões, senão um monumento histórico.” A. Saint-Hilaire, 1816-1822 Macela, Achyrocline satureioides (Asteraceae). Fotografia: Cuia Guimarães.

Infelizmente, a vegetação nativa do Brasil, incluindo as plantas medicinais, vem passando, de fato, por um processo incessante de destruição desde a época do descobrimento. A Mata Atlântica, por exemplo, que já cobriu 12% do território nacional, está hoje reduzi-

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da a pequenas manchas, cada vez mais empobrecidas. O desmatamento da Mata Atlântica iniciou com a exploração do pau-brasil, para se extrair tinta e para ser utilizado na fabricação naval. Os ciclos da cana-de-açúcar, no nordeste, e do café, no sudeste iniciados no século XIX foram consolidados nos solos antes cobertos por florestas. A formação de pastagens, bem como as atividades industriais e agrícolas, também contribuíram para a degradação da floresta. No total, 93% da floresta já desapareceu. Esses mesmos processos de destruição ocorrem nos dias de hoje e encontram-se em plena expansão, avançando sobre o que resta do cerrado e áreas ainda preservadas da Floresta Amazônica. São necessárias, portanto, medidas para que a vegetação nativa do Brasil, inclusive as plantas medicinais, sejam preservadas.

Richard Burton e as plantas medicinais

Richard Burton foi um dos naturalistas que visitou Minas Gerais no século XIX. Esse naturalista inglês percorreu de barco todo o Rio das Velhas. Seu interesse era geral pelos recursos naturais do Brasil, mas o autor descreveu, em sua obra, diversas passagens sobre a saúde dos brasileiros na época, e a forma com que a população utilizava as plantas medicinais. Os relatos a seguir ilustram algumas passagens da obra de Richard Burton em que o enfoque principal é a utilização das plantas nativas da região do Rio das Velhas pela população local: “A vegetação era a dos campos de perto de Barbacena, sendo as árvores o muito retorcido barbatimão, o pataro, grão-de-galo, piqui, tinqui e sucupira. Além dessas, notei sambaíba (Curatella cambaiba), também escrita “sambaúba” de frutos desvaliosos, folhas duras, usadas para escovar panos e uma casca adstringente, boa para curtume e para tratamento de feridas; produz o efeito do iodo, curando inflamações crônicas. Outra árvore comum é a cagaitera (Eugenia dysenterica), um nome bem deselegante, mas uma bela planta, com flores alvas e folha que produz leite; o fruto, semelhante a um morango; a cagaita, é um purgativo muito forte.” “Nos lugares mais baixos, há uma espécie de salsaparrilha (salsa-docampo ou salsa-do-mato), que aparece nos formigueiros, embaixo das árvores. A raiz é grande e branca, sendo que a amarela é a preferida na Europa e nos Estados Unidos; segundo dizem, ela deve ser tomada com leite, para disfarçar a acidez e deve ser tomada bastante, mas com cuidado, evitando-se, por exemplo, tomá-la no meio do dia. A salsaparrilha plantada nos quintais é toda colhida nesta estação, e as casas comerciais daqui cobram 2$000 por libra para os galhos secos mandados para do Rio de Janeiro.” “Não pude deixar de observar a abundância dos elementos antifebris; o Formulário menciona quinze espécies, várias das quais semelhantes às do Peru. No mato mais fechado, havia a quina-do-mato (Chinchona remijiana) e,

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com ela, a quina-de-pobre, uma árvore de casca amarga e fruta doce, chamada por muitos nomes: pau-pereira (Geissospermum vellosii), ubá-açu, pauforquilha, pau-de-dente, camará-de-bibro (bilro), camará-do-mato, canudoamargoso ou pinguaciba. Há, também, em grande quantidade, o chá-depedestre ou chá-de-frade (Lantana pseudo-thea). Os gigantes da floresta são, especialmente, o jatobá, (cujas folhas são em pares), que, em agosto, produz um vinho que dizem ser muito bom para o peito.” Não me descuidei de visitar a Vila de Guaicuí, que tem, de igreja a igreja, cerca de três quartos de milha. O caminho acompanha a margem direita do Rio das Velhas, que é apenas parcialmente sujeita às inundações; seu limite é denotado pelo capim muito verde e pelas almecegueiras de folhagem espessa; a árvore mais bonita é o pau-d’arco de flor roxa. Essa Bignoniácea, que dá muitas flores cor de malva, é usada como anti-sifilítica, e o cerne da madeira é de molde a cumprir o dever do “lignum guaiacum”. Com o objetivo de também conhecer a utilização das plantas medicinais pela população da bacia do Rio das Velhas, foi realizada uma pesquisa junto do Projeto Manuelzão. Durante a pesquisa, foram entrevistados vários moradores das localidades de Saco Novo (distrito de Curvelo), Piedade (distrito de Lassance), Santana do Riacho e Corinto. Esses moradores foram selecionados para participar das entrevistas por serem considerados “informantes-chave”, ou seja, pessoas antigas da região, usuários das plantas, profundos conhecedores da flora local. A pesquisa revelou que as plantas medicinais são muito utilizadas pela população desses locais, e várias delas também haviam sido citadas por Richard Burton, no século XIX. É importante destacar que a maior parte das plantas usadas, especialmente pela população das áreas de cerrado, são nativas daquela região. Os moradores guardam profundo conhecimento sobre as suas propriedades Medicinais, ou seja, a Medicina tradicional nesses locais encontra-se praticamente intacta. O conhecimento tradicional não foi nem mesmo afetado pela invasão da indústria farmacêutica no Brasil, a partir dos anos 40 ⁄ 50 do século XX, e que em outras regiões mudou todo o cenário da Medicina tradicional brasileira.

Macela, Achyrocline satureioides (Asteraceae).

A Tabela 1 traz informações sobre algumas plantas medicinais utilizadas na região da bacia do Rio das Velhas, que também foram citadas na obra de Richard Burton. A tabela traz os nomes populares e científicos das plantas (incluindo as famílias botânicas), os usos medicinais citados por Richard Burton e informações atualizadas sobre cada uma delas. Vinte e seis espécies medicinais estão descritas na Tabela 1. Algumas espécies encontram-se hoje em “perigo de extinção”, conseqüência da coleta predatória ao longo dos anos, ou da extensiva destruição da vegetação nativa de Minas Gerais.

Fotografia: Cuia Guimarães.

A exemplo dos demais viajantes, Burton sugeria em diversas passagens da sua obra, melhores formas de aproveitamento dos recur-

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Cagaiteira, Eugenia dysenterica (Myrtaceae). Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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sos naturais brasileiros. Ao chegar nos Gerais, após percorrer toda a extensão do Rio das Velhas, escreveu: O Cânhamo e, até certo ponto, a vinha poderão ser cultivados. Entre os cereais, o milho e o arroz assegurarão uma riqueza, ao passo que a cevada, o centeio e, provavelmente, o trigo terão sucesso nos Gerais. Podem ser introduzidas quase todas as frutas e hortaliças pertencentes às regiões subtropicais e temperadas. Um canavial dura dez anos, embora a planta praticamente não receba o menor cuidado. O café dá admiravelmente; o chá, o mate e o guaraná (Paullinia sorbilis), apreciadíssimo no noroeste do Brasil, poderão ser cultivados, com êxito, nos terrenos baixos, quentes e úmidos. O tabaco é dos melhores do Império; a salsaparrilha e o cactos da cochinilha, a bagosa e a baunilha são silvestres. A exploração da madeira é suscetível de amplo desenvolvimento; a aroeira, a braúna, a candeia, a peroba, a canela e, de um modo geral, as ótimas madeiras de lei brasileiras, estão aguardando aproveitamento. São abundantes as plantas oleaginosas e fornecedoras de cascas usadas para curtir couros, palhas e fibras, medicamentos e gomas, como jataí-copal, bálsamo do peru, copaíba e assa fétida, e o mesmo pode-se dizer da cera de abelha e da cera de carnaúba, que é transformada em velas no Rio de Janeiro. As tinturas são muitas, do anil ao pau-amarelo, e das madeiras para marcenaria a lista seria grande, começando pelo jacarandá e pelo cedro-brasileiro. Em presença de tão vastas e inexploradas riquezas, aguardando as classes desfavorecidas da Europa, podemos exclamar, com Goethe: “Quem diz que não há coisa alguma para os pobres e os infames, a não ser a miséria e o crime?”. Richard Burton, Capítulo XV, O Rio São Francisco Este relato de Richard Burton revela o quanto esse naturalista era otimista e acreditava que o brasileiro deveria aproveitar melhor as riquezas da nossa flora. Precisamos, como ele, acreditar nesta possibilidade e trabalhar de forma concreta para que as plantas nativas da região do Rio das Velhas sejam mais bem aproveitadas, em benefício da população brasileira.

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Algumas plantas medicinais citadas por Richard Burton, seus nomes populares, prováveis nomes científicos, usos tradicionais (na época) e dados técnicos-científicos atuais NOME POPULAR

NOME CIENTÍFICO/FAMÍLIA

USO TRADICIONAL

(SEGUNDO BURTON)

DADOS TÉCNICOS-CIENTÍFICOS ATUAIS

Agoniada

Himatanthus obovatus ⁄ Apocynaceae

Picada de cobra

Almecegueira

Protium heptaphyllum ⁄ Burseraceae

Lesões

Angico

Parapiptadenia rigida ou Anadenanthera sp. ⁄ Fabaceae

Adstringente

Arnica ⁄ Ayapana

Eupatorium sp. ⁄ Asteraceae

Cicatrização

Arnica-da-Serra

Lychnophora pinaster ⁄ Asteraceae

Cicatrização

Planta comum nos campos rupestres mineiros. As folhas vêm sendo coletadas de forma predatória para uso como anti-inflamatória e cicatrizante. A planta é rica em óleos essenciais e flavonóides.

Barbatimão

Stryphnodendron adstringens ⁄ Fabaceae

Cicatrizante, cura de feridas

Planta nativa dos cerrados. As cascas encerram até 30% de taninos, o que faz com que sejam úteis como cicatrizante e no tratamento de feridas. As cascas vêm sendo coletadas de forma predatória, o que pode levar à extinção.

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A planta é usada ainda nos dias de hoje no tratamento de picadas de cobra. É também utilizada no tratamento da amenorréia e outros problemas associados à saúde da mulher, de onde vem o nome popular de agoniada. A planta é rica em alcalóides, substâncias com elevada toxicidade.

A planta é rica em tanino, sendo útil como cicatrizante. A planta contém também gomas.


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NOME POPULAR

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NOME CIENTÍFICO/FAMÍLIA

USO TRADICIONAL

(SEGUNDO BURTON)

DADOS TÉCNICOS-CIENTÍFICOS ATUAIS

Cagaiteira

Eugenia dysenterica ⁄ Myrtaceae

Purgativo

Chá-de-pedestre

Lippia pseudo-thea ⁄ Verbenaceae

Não indicado

Cipó-mil-homens ou Jarrinha

Aristolochia sp. ⁄ Aristolochiaceae

Febres malignas

Coqueiro

Cocos nucifera ⁄ Arecaceae

Óleo medicinal

Cravinho-do-campo

Não identificada ⁄ Myrtaceae

Purgante violento

Erva-cobreira

Aristolochia sp. ⁄ Aristolochiaceae

Picada de cobra

Ver cipó mil homens.

Erva-de-bicho

Polygonum sp. ⁄ Polygonaceae

Dores de cabeça

Planta usada na Medicina tradicional no tratamento de varizes e hemorróidas. A planta é rica em flavonóides, inclusive a rutina, que tem efeito vasoprotetor comprovado.

Fedegoso

Senna occidentalis ⁄ Fabaceae

Purgante

Espécie muito conhecida e utilizada nas Américas.

Figueira-branca

Ficus gomelleira ⁄ Moraceae

Antihelmintico

Gameleira

Ficus sp. ⁄ Moraceae

Hidropsia e moléstias cutâneas

Guaraná

Paullinia cupana ⁄ Sapindaceae

Reumatismo

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Planta utilizada na Medicina tradicional de vários países para o tratamento de febres, inclusive a malária. A planta é rica em alcalóides, e também contém o ácido aristolóquico, que é um potente agente nefrotóxico.

As sementes da planta são ricas em cafeína, substância química estimulante.


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NOME POPULAR

NOME CIENTÍFICO/FAMÍLIA

USO TRADICIONAL

(SEGUNDO BURTON)

DADOS TÉCNICOS-CIENTÍFICOS ATUAIS

Jatobá

Hymenaea sp. ⁄ Fabaceae

“Bom para o peito”

Macela-do-campo

Achyrocline satureioides ⁄ Asteraceae

Travesseiros

Planta nativa dos campos rupestres. É rica em flavonóides. As flores vêm sendo amplamente estudadas e seus efeitos antiinflamatórios foram confirmados.

Pau-d’arco-de-flor-roxa

Tabebuia impetiginosa ⁄ Bignoniaceae

Anti-sifilítica

Espécie considerada em “perigo de extinção” devido à coleta predatória das suas cascas. Contém lapachol, substância com amplo espectro de atividades biológicas.

Pau-d’óleo

Copaifera langsdorffii ⁄ Fabaceae

Antiinflamatória

Ação antiinflamatória confirmada.

Pau-pereira

Tabernaemontana laeta ⁄ Apocynaceae

Febres

Quina-do-mato

Remijia ferruginea ⁄ Rubiaceae

Febres

Salsaparrilha

Herreria salsaparilha ⁄ Herreriaceae

Antiácido

Sambaíba

Curatella americana ⁄ Dilleniaceae

Cicatrizante, cura de feridas

Tabaco

Nicotiana tabacum ⁄ Solanaceae

Inseticida

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Bibliografia

BRANDÃO, M. G. L., MOREIRA, R. A., ACÚRCIO, F. A. Nossos fitoterápicos de cada dia. Ciência Hoje, v. 30, n. 175, 2001. BURTON, Richard Francis. Viagem de canoa de Sabará ao oceano atlântico. 2 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977. 359 p. DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. FIGUEIREDO, B. G. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002. SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Univ. São Paulo, 1974. SOUZA, G. S. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Comp. Editora Nacional, 1938. 493 p.

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Abstract

Regional medical plants Due to its diversity, the Brazilian flora represents one of the richest sources of material with pharmacological activity. However, the native vegetation of Brazil, including the medicinal plants, has been under a continuous process of destruction, since the time of the discovery more than 500 ago. The Atlantic forest, for example, that once represented about 12% of the Brazilian territory, today is reduced to some small spots in different states. The destruction of the Atlantic forest started with the use of a wood (pau brazil) by the Portuguese to extract ink and to be used in the naval manufacture. The cycles of the sugarcane in the Northeast and the coffee in the Southeast, both initiated in the XIX century, were established in areas originally covered by tropical forests. The formation of pastures and the intense industrial development occurring in coastal areas of Brazil also contributed to the destruction of the forest, resulting in the residual 7% of the original area of the Atlantic forest. These same processes of destruction is still occurring and, unfortunately, is in expansion, advancing on others ecosystems still preserved as the cerrado and AmazĂ´nia. Historic investigations reveal the use of medicinal plants by the indigenous people since the XVI century. The colonists have observed and adapted the use of medicinal plants from the natives. The use of some species as copaĂ­ba, jaborandi and ipecacuanha, for example, were adapted from that made by the natives and has expanded to several parts of the world. The lack of adequate pharmacological and toxicological evaluations of most of the plants used traditionally is considered an obstacle for a wider and safe use of these species as official medicines. The intense miscigenation of the native culture with the Africans and European during the last centuries, however, has led to the use of several exotic and imported plants in the traditional medicine in Brazil. Moreover, the growth of the pharmaceutical industry in Brazil, starting in the second half of the last century, markedly changed the Brazilian traditional medicine. The use of medicinal plants in Brazil were also noted and studied by scientists which travelled around the country, specially in Minas Gerais, in the XIX century. Some of these scientists were the French A. Saint-Hillaire, the Germans Spix and Martius, the Russian Langsdorff and the English Richard Burton. In the present study, we carried out an investigation to evaluate the use of medicinal plants by the population of Rio das Velhas. We have observed that medicinal plants, including many of those mentioned by Burton, are widely used by the population of these areas. Most of the plants used are native. The traditional knowledge has been affected neither by the culture miscigenation nor by the growth of the pharmaceutical industry in Brazil. It is necessary to identify and promote better ways of using the native medicinal flora, in benefit of the Brazilian population.


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Assessora Jurídica do Projeto Manuelzão 2 Assessor do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Urbanismo e Habitação, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais 3 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e Coordenador-Geral das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente das Comarcas integrantes da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

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29 A bacia hidrográfica e a construção de uma nova cidadania Letícia Fernandes M. Diniz 1 Luciano José Alvarenga 2 Luciano Luz Badini Martins 3

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Introdução

Pensadores dedicados à problemática da destruição crescente dos fundamentos biofísicos e culturais de sobrevivência estão se conscientizando, pouco a pouco, de que essa destruição deriva, em razoável medida, da visão que a ciência moderna construiu do mundo e da vida. Essa visão fez com que as investigações ecológicas desenvolvidas nos últimos séculos se dedicassem precipuamente1 à compreensão analítica — fragmentada, via de regra — dos sistemas sociais e ecológicos. No pano de fundo desse processo sempre esteve, e talvez ainda estará por algum tempo, o sistema capitalista, a determinar a transfiguração de bens ambientais em recursos ambientais, meios para a manutenção do principal fator que movimenta o sistema: o lucro.

1 Não obstante o fato de as preocupações acerca da sustentabilidade da vida no planeta se mostrarem mais constantes e evidentes somente nas últimas décadas, cumpre destacar, com fundamento em José Augusto Pádua (1987) a existência, ainda que pontual, de questionamentos e reflexões já desenvolvidos no século XVII sobre a exploração predatória do meio natural. Do referido século restaram registradas impressões como as de Frei Vicente de Salvador e de Ambrósio Brandão, a denunciarem os interesses particulares dos europeus residentes no Brasil Colônia, assim como a ausência de zelo para com os elementos naturais aqui encontrados. Do século XIX, merecem referência as ponderações feitas por José Bonifácio de Andrada e Silva, a demonstrar preocupação quanto à má utilização dos recursos naturais e à necessidade de preservação das matas aqui existentes para a prosperidade da nação. 2 A utilização dos vocábulos efetividade e efetivação neste trabalho orientar-se-á pela tese de Sander (1982) para quem efetividade significa a “(. . .) capacidade de resposta ou de atendimento às exigências da comunidade externa expressas politicamente. Em outras palavras, a efetividade é o critério de desempenho que mede a capacidade de produzir a solução ou a resposta desejada pelos participantes da comunidade. . . . O conceito de efetividade supõe um compromisso real e verdadeiro com os objetivos sociais e as demandas políticas da comunidade”.

Apenas em tempos recentes, considerando-se a experiência histórica que sucede ao advento do capitalismo, os diferentes ramos do conhecimento têm demonstrado, com crescente ênfase, a importância da preservação, conservação e recuperação das bases de sustentação da vida, assim como das relações dessas bases com a digna existência física e ética do ser humano. A chamada crise ambiental, conjugada com outras crises que lhe são contemporâneas, especialmente a política (que compreende a crise das vias tradicionais de exercício da cidadania), tem propiciado o resgate de relações de solidariedade e cooperação, esquecidas por ação das vicissitudes históricas. Não são ainda tão significativos, mas evidentes, os sinais que apontam para uma nova consciência, que levará os seres humanos a transcenderem viciadas estruturas de relações interpessoais e com o meio ambiente, na busca da construção coletiva e cooperativa de um novo horizonte de paz e equilíbrio. Equilíbrio dos homens entre si e dos homens com o seu meio. Baseando-se nas recentes formulações teóricas de Boaventura de Sousa Santos, pensador que tem se dedicado à compreensão dos chamados novos movimentos sociais (NMS), este capítulo pretende demonstrar como o Projeto Manuelzão vem transpondo formas ortodoxas de organização e participação política, visando a essa nova consciência e à efetividade2 do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Dos princípios jurídicos

À luz da Filosofia, a palavra princípio exprime a idéia de ponto de partida ou causa de um processo qualquer. Segundo Abbagnano, foi Anaximandro quem a introduziu na linguagem filosófica. Platão também serviu-se dela, para expressar a causa de um movimento ou o fundamento de uma demonstração. Posteriormente, ainda de acor-

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do com Abbagnano, Aristóteles enumerou todos os significados que a expressão recebera da seguinte maneira: “1º) ponto de partida de um movimento, p. ex., de uma linha ou um caminho; 2º) o melhor ponto de partida, como p. ex. o que facilita aprender uma coisa; 3º) ponto de partida efetivo de uma produção, como p. ex. a quilha de um navio ou os alicerces de uma casa; 4º) causa externa de um processo ou de um movimento, como p. ex. um insulto que provoca uma briga; 5º) o que, com a sua decisão, determina movimentos ou mudanças, como p. ex. os governos ou as magistraturas de uma cidade; 6º) aquilo de que parte um processo de conhecimento, como p. ex. as premissas de uma demonstração. Aristóteles acrescenta a esta lista: “Causa” também tem os mesmos significados, pois todas as causas são princípios”. Dentre os significados enumerados pelo filósofo estagirita, o terceiro e o sexto importam, de modo especial, para a Ciência Jurídica. Com efeito, o conceito de princípios jurídicos é freqüentemente traduzido para a idéia de base ou alicerce de uma construção. Por outra parte, é associado ao conjunto de premissas que devem conferir sentido a determinado processo de interpretação. Isto pode ser facilmente vislumbrado no conceito formulado por Mello, para quem princípio é

3 Luís Roberto Barroso (2003), ao apresentar os “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro”, na perspectiva da pós-modernidade, da teoria crítica e do pós-positivimo, menciona vários estudiosos que vêm se dedicando a uma nova compreensão dos princípios. Entre eles Ronald Dworkin (Taking rights seriously, 1997), Robert Alexy (Teoria de los derechos fundamentales, 1997), J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional e teoria da constituição, 1998), Daniel Sarmento (A ponderação de interesses na Constituição Federal, 2000) e Peter Häberle (Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1ª edição do original Die offene Gesellshaft der Verfassunginterpreten. Ein Beitrag zur pluralistischen und “prozessualen” Verfassunginterpretation, 1975).

“. . . mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”. Como se vê, a noção de princípio traz consigo o significado de causa, começo ou alicerce do qual ou sobre o qual é desencadeado certo processo. Juridicamente, pode-se dizer que a essência dos princípios consiste em diretrizes filosóficas, culturais e políticas que, a um só tempo, determinam a criação do direito e conferem sentido aos comandos normativos. Neste curso de raciocínio, os princípios podem ser conceituados como normas primordiais, portadoras de comandos basilares que, por um lado, atuam na própria construção do ordenamento jurídico e, por outro, informam sua compreensão, trazendo harmonia à interpretação das diversas partes (normas jurídicas) que o integram. Visto desta perspectiva teórica, que assinala uma compreensão possível do tema3, o princípio da participação pública, no Direito

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brasileiro, nada mais é do que uma expressão da cidadania, levada pelo texto constitucional vigente à condição de fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º). A título ilustrativo, vale trazer a estas linhas algumas ponderações da moderna Ciência Jurídica a respeito do princípio da participação pública, especificamente no tocante às suas irradiações na proteção jurídica do ambiente.

Do princípio da participação pública José Afonso da Silva ensina que a fonte normativa do princípio da participação pública se encontra no Princípio n.º 10 da Declaração da Conferência do Rio de Janeiro de 1992, que assim enuncia: “A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.”

4 Outros autores compartilham com Mirra a compreensão de que a fonte normativa da participação de atores sociais na proteção jurídica do ambiente se encontra na norma contida no artigo 225, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil. Ver, por exemplo, SANTOS, Antônio Silveira Ribeiro dos. O Direito Ambiental e a Participação da Sociedade. Revista de Direito Ambiental. ano 1, n. 3, jul.–set. 1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, pp. 217–222.

Ao abordar o assunto, Mirra também faz referência ao Princípio n.º 10 da Declaração do Rio; todavia, adiciona que a construção coletiva de decisões relacionadas ao meio ambiente deriva de duas fontes normativas. A primeira — genérica — está, segundo o autor, no parágrafo único do artigo 1º da Constituição da República, que teria instituído um regime de democracia semidireta no Brasil, por preceituar que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A este fundamento de índole genérica, o autor acrescenta um segundo, especialmente relacionado à problemática ambiental. Trata-se do dispositivo contido no artigo 225, caput, do texto constitucional4, consoante o qual: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Interpretando essa norma, Mirra conclui que os cidadãos brasileiros não têm simplesmente a faculdade de atuar na defesa do meio ambiente, pois “. . . a nossa Carta Magna” — afirma — “impôs expressamente à sociedade o dever de atuar nesse sentido (art. 225, caput)”.

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Formas de participação pública previstas no ordenamento jurídico Embora as potencialidades de participação pública na defesa do meio ambiente não se limitem às previsões jurídicas, é certo que o Direito brasileiro propicia importantes possibilidades para tanto. Essas possibilidades se integram ao exercício das três funções políticas principais: legislativa, executiva e jurisdicional. Em primeiro lugar, o ordenamento jurídico brasileiro permite a participação do público na criação da norma destinada à proteção do meio ambiente. Iniciativa popular de leis (artigo 61, caput, e §2º, da Constituição da República Federativa do Brasil), realização de referendo sobre leis 5 (artigo 14, inciso II, da CRFB), atuação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados 6, dotados de poderes para a criação de normas: todas são expressões da participação pública no processo criativo da legislação ambiental.

5 Consoante Michel Prieur, citado por Paulo Affonso Leme Machado (2002), “as associações de defesa do meio ambiente sempre reclamaram a introdução do referendo de iniciativa popular em nível local com o fim de levar os poderes locais a instaurar um debate democrático sobre as opções de ordenamento do meio ambiente de um Município. Essa reivindicação choca-se com a posição dos eleitos locais, inquietos de serem despojados de seus poderes” (PRIEUR, Michel; HENRIOT, Guy-Claude. Droit de l’Environnement. 3.ed. Paris: Dalloz, 1996). 6 Segundo Meirelles (1999), órgãos colegiados são “. . . todos aqueles que atuam ou decidem pela manifestação conjunta ou majoritária da vontade de seus membros. Nos órgãos colegiados não prevalece a vontade individual de seu Chefe ou Presidente, nem a de seus integrantes isoladamente: o que se impõe e vale juridicamente é a decisão da maioria, expressa na forma legal, regimental ou estatutária.” 7 Ver Lei Federal n.º 7.347 ⁄ 1985, com redação determinada pelas Leis n.os 8.078 ⁄ 1990 (Código de Defesa do Consumidor) e 10.251 ⁄ 2000 (Estatuto da Cidade), e Lei Federal n.º 4.717 ⁄ 1965.

A segunda forma de participação pública relacionada à proteção do ambiente atualiza-se por intervenção do Poder Judiciário. Nessa forma de participação, um ator ou grupo de atores sociais solicita que a autoridade judicial, mediante o poder que lhe é investido (art. 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil), assegure o equilíbrio do meio ambiente numa situação de conflito de interesses quanto a seu uso. Dentre os instrumentos judiciais de defesa do meio ambiente merecem destaque a ação civil pública, procedimento especial destinado à responsabilização civil por danos causados a direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, e a ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão com vistas a anular “ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”.7 A terceira modalidade de participação do público na proteção jurídica do ambiente realiza-se pela colaboração das coletividades na construção, avaliação e efetivação de políticas destinadas a essa proteção. São exemplos disso a participação em órgãos colegiados atribuídos da formulação e implementação de diretrizes relacionadas à preservação e conservação do meio ambiente. No âmbito territorial da bacia hidrográfica, merecem destaque os Comitês de Bacia Hidrográfica, órgãos colegiados que têm como referência espacial de atuação aquela categoria geográfica. Consistem eles em verdadeiros fóruns de construção de decisões ligadas à bacia, construção essa de que são partícipes não apenas administradores dos bens públicos (prefeitos, servidores de autarquias gestoras de recursos hídricos etc.), mas, igualmente, os usuários das águas e representantes da comunidade habitante de tal unidade territorial.

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Da potência ao ato: as novas práticas de cidadania e os Novos Movimentos Sociais

8 O cultivo do imenso campo de cidadania a que alude Boaventura de Sousa Santos vem sendo propulsionado pelo progressivo estímulo à emancipação das comunidades. Um bom conceito de emancipação é apresentado pelo Plano Metodológico de Ação do Núcleo Jurídico-Social Regional da Coordenadoria de Direitos Humanos — CDHC, do Programa Pólos Reprodutores de Cidadania, conduzido pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Nos termos deste plano, a emancipação pode ser compreendida como “. . . a permanente reavaliação e ⁄ ou rompimento com as estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas opressoras, com o propósito de aprofundamento da organização e associativismo para a ampliação das lutas democráticas sem um único fim definido e assumindo caráter político negativo (sustar catástrofe ecológica; impedir a discriminação de gênero, de raça etc.; impossibilitar a distribuição discriminatória de bens sociais, tais como moradia, infra-estrutura social básica etc.).” 9 Com efeito, para Boaventura de Sousa Santos, se fosse correto falar em “patologias da modernidade”, consistiriam estas, até o atual momento histórico, em sínteses precárias entre subjetividade, cidadania e emancipação, sínteses estas que têm vindo a resultar em excessos de regulação, seja pela hipertrofia do princípio do mercado (Locke) face ao princípio do Estado (Hobbes), seja pela hipertrofia de ambos em detrimento do princípio da comunidade (Rousseau).

Em que pese a importância das formas jurídicas — preestabelecidas em norma — de participação política, não se pode negar a atual crise pela qual elas estão a passar. Cientistas políticos, acadêmicos, administradores públicos e atores sociais, todos estão se conscientizando, progressivamente, de que as vias ortodoxas para o exercício da cidadania, reduzidas à estrutura vertical da democracia representativa, não têm o condão de levar, de modo inevitável, ao atendimento das mais fundamentais necessidades humanas, como a relativa ao equilíbrio ambiental. Em razoável medida, pode-se dizer que a crise da cidadania deriva do fato de o reconhecimento político da cooperação e da solidariedade entre cidadãos ter sido progressivamente restringido a formas de cooperação e de solidariedade mediadas pelo Estado. Contudo, essa mesma crise, vista como uma oportunidade, tem propiciado a emergência de uma nova dinâmica política na sociedade, criadora e cultivadora de novas formas de participação política. Para Boaventura de Sousa Santos, as raízes dessa dinâmica remontam à década de 1960, período em que os chamados novos movimentos sociais (NMS) — de estudantes, em particular — despontaram no cenário mundial, protestando por interesses e direitos pertencentes à sociedade como um todo. Desde então, os novos movimentos sociais ganharam as mais variadas expressões. Uma nova compreensão da mulher na família e na sociedade, a paz mundial, a proteção de crianças e adolescentes, dos índios, a igualdade entre raças e povos, a preservação e conservação das bases biofísicas de sobrevivência: todos, entre muitos, foram tomados como lemas das bandeiras erguidas pelos novos movimentos sociais. Com diferentes níveis de êxito, os NMS, buscando a permanente reavaliação e superação das estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas opressoras, e dedicando-se à consecução das mais diversas necessidades e demandas coletivas, têm vindo a cultivar um inovador e amplo campo de cidadania.8 E, em última análise, devido à valorização do princípio da comunidade, têm vindo a superar, crescentemente, uma das mais sérias “patologias da modernidade”, qual seja, o excesso de regulação, determinado ora pela hipertrofia do princípio do mercado (Locke) em face do princípio do Estado (Hobbes), ora pela hipertrofia de ambos em detrimento do princípio da comunidade (Rousseau).9 Segundo Boaventura de Sousa Santos: “A ideia de obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a ideia da participação e solidariedade concretas na formulação da vontade geral são as únicas susceptíveis de fundar uma nova cultura política e, em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e colectiva assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa, no cooperativismo e na produção socialmente útil.”

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Por outro lado, os novos movimentos sociais, como representantes do chamado terceiro setor, vêm desempenhando papel importante na própria reforma do Estado, passando a assumir funções que, num passado não longínquo, eram exclusivas do ente estatal. Eles têm criado redes de colaboração com instituições públicas, em regra tendo em perspectiva a concretização de interesses e direitos pertencentes à coletividade como um todo. Essas redes de colaboração estão levando a uma transformação estrutural do Estado. Como ensina Boaventura de Sousa Santos: “. . . sob a mesma designação de Estado, está a emergir uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais, locais e globais. (. . .) Esta descentração do Estado significa menos o enfraquecimento do Estado do que a mudança da qualidade de sua força. Se é certo que o Estado perde o controle da regulação social, ganha o controle da meta-regulação, ou seja, da seleção, coordenação, hierarquização e regulação dos agentes estatais que, por subcontratação política, adquirem concessões de poder estatal.” O Brasil é um importante palco dos novos movimentos sociais. Entre tantos, podem ser mencionados as comunidades eclesiásticas de base, o Movimento dos Sem-Terra, dos Sem-Teto e, particularmente, o crescente número de organizações com objetivos relacionados às mais variadas formas de conservação e preservação do meio ambiente (natural, cultural e artificial). O Projeto Manuelzão, que focaliza a proteção da bacia hidrográfica do Rio das Velhas, tomando a água como indicador biológico e social, é uma das mais importantes representações dos chamados novos movimentos sociais.

O Projeto Manuelzão e a Concepção de uma Nova Cidadania

Embora concebido por professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do chamado primeiro setor (Estado), o Projeto Manuelzão não se afigura como típico representante de tal segmento. Por outro lado, obviamente, ele também não consiste numa instituição do segundo setor (mercado): seu objetivo não é o lucro. Trata-se, na verdade, de uma expressão conceptual e material do que se tem atualmente denominado terceiro setor, designação residual e vaga com que, nas palavras de Boaventura Santos, se pretende compreender “. . . um vastíssimo conjunto de organizações sociais que não são nem estatais nem mercantis, ou seja, organizações sociais que, por um lado, sendo privadas [isto é, possuindo personalidade jurídica de direito privado], não visam fins lucrativos, e, por outro lado, sendo animadas por objectivos sociais, públicos ou colectivos, não são estatais.”

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Desde os primórdios de sua existência, o Manuelzão procura incentivar as comunidades a pensar, repensar e, sobretudo, a transcender formas tradicionais, quase arraigadas mesmo, de relações interpessoais e com o meio ambiente. Igualmente, procura estimulálas a participarem da concepção, efetivação e permanente avaliação de políticas públicas e práticas sociais dedicadas à defesa das bases biofísicas e culturais, indispensáveis ao equilíbrio da vida no território escolhido como cenário geográfico: a bacia hidrográfica do rio das Velhas. A participação estimulada pelo projeto não se reduz às formas mediadas pelo Estado, mas compreende várias possibilidades de inclusão das coletividades na construção de decisões relacionadas ao meio ambiente. Da potência à ação. . . Pequenas mobilizações locais, caminhadas, artigos de jornal e até mesmo expedições são alguns dos instrumentos utilizados pelo projeto para levar atores sociais e institucionais à consciência e ação em defesa da bacia hidrográfica do rio das Velhas. Se as sementes do Projeto Manuelzão têm germinado? Há ainda muito solo fértil naquela bacia hidrográfica, mesmo com tantas agressões a que têm sido submetidos seus componentes sociais e ecológicos. Com efeito, a expansiva receptividade comunitária das sementes de cidadania lançadas pelo projeto tem propiciado a criação e o desenvolvimento de muitos grupos locais, nas várias parcelas territoriais e sub-bacias integrantes daquele espaço geográfico. Esses grupos locais, por sua vez, têm passado a refletir, em concepção e ação, os propósitos sociais e ecológicos que movem o projeto. Verifica-se o surgimento, então, de pequenas organizações sociais que expandem o espaço de atuação do projeto e agregam, a um só tempo, novos elementos à sua identidade. Inicialmente restrito à linha de extensão da Faculdade de Medicina da UFMG, o Manuelzão transfigurou-se num novo movimento social, nos moldes teóricos apresentados por Boaventura de Sousa Santos. Na busca pela revitalização da bacia hidrográfica do rio das Velhas, ele incentiva o resgate e a expansão de obrigações políticas na horizontalidade, isto é, entre os habitantes da bacia. Entre os cidadãos da bacia: por que não dizer? Por outra parte, as diversas representações espaciais do Projeto Manuelzão vêm estabelecendo, progressivamente, relações de cooperação com entidades do primeiro e do segundo setores, para a conjugação das forças destinadas à efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil). Um direito difuso, pertencente à coletividade como um todo — saliente-se. Fazendo isso, o Manuelzão, em razoável dimensão territorial, vem protagonizando um papel importante na busca do necessário equilíbrio entre os

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princípios do Estado, do mercado e da comunidade, na perspectiva da necessária superação do excesso de regulação tradicionalmente determinado pela hipertrofia dos dois primeiros. Um importante exemplo dessas relações de cooperação tem como partícipe a Promotoria de Justiça de Defesa do Rio São Francisco, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Este texto não é o mais apropriado para examinar minuciosamente a referida Promotoria. Essa tarefa exigiria uma abordagem baseada no marco teórico da reforma do Estado. Todavia, não se pode negar ao leitor algumas breves palavras a respeito da já conhecida Promotoria do Rio São Francisco. Certamente, seu aspecto mais marcante consiste na adoção de um marco territorial até então inédito na organização do Ministério Público mineiro e brasileiro: a bacia hidrográfica. Marco territorial esse a que os idealizadores do projeto chegaram a partir da seguinte evidência: a atuação em face da problemática ecológica reclama a adoção de uma referência ecológica de organização. Com efeito, a defesa da dimensão da cidadania reclamava uma estrutura até então não prevista no âmbito institucional. Desta percepção resultou a criação da já cognominada Promotoria do São Francisco, órgão público que, além de se destinar à defesa do meio ambiente na parcela da bacia do Rio São Francisco situada em Minas Gerais, atualiza diretrizes fixadas pelo próprio ordenamento jurídico brasileiro (ver artigos 1º, V, e 8º da Lei Federal n.º 9.433 ⁄ 1997). Todavia, as inovações da Promotoria do São Francisco não se limitam a isso. Como instituição pública, sujeita a regras de funcionamento muito próprias e mais rígidas, ela também demonstra como uma instituição tipicamente estatal, partindo do próprio ordenamento jurídico vigente, pode transcender formas tradicionais de organização e atuação, com vistas ao aprimoramento da defesa da cidadania. Em especial, à efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil). Por outro lado, ela também evidencia que uma instituição do primeiro setor pode estabelecer relações de cooperação com instituições dos demais, com vistas à concretização de interesses e direitos pertencentes ao corpo social como um todo. No caso da Promotoria de Justiça de Defesa do Rio São Francisco, essa cooperação tem ocorrido, principalmente, por intermédio da celebração de convênios com instituições do segundo e terceiro setores, objetivando o levantamento e a avaliação das degradações ambientais na bacia do rio São Francisco. A conjugação de esforços resultante da celebração dos convênios — compreende-se — apresentase como importante meio de efetivação da pretendida relação coop-

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.


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erativa entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade, na perspectiva teórica de Boaventura de Sousa Santos.

Conclusão

São evidentes os sinais da crise ambiental, uma crise marcada por desequilíbrios nas relações dos homens entre si e dos homens com as bases biofísicas e culturais da vida. Embora manifesta nesses desequilíbrios, a crise ambiental é, em última análise, expressão da crise da consciência humana. O cenário é crítico. Progressivamente crítico, aliás. Contudo, a crise traz consigo uma oportunidade. Oportunidade para se alcançar um novo estágio de consciência, capaz de resgatar a paz, a eqüidade e a mais plena justiça em todas as relações vitais. Como agente de uma nova consciência e de um novo movimento social, o Projeto Manuelzão vive essa oportunidade, aproveitando-a para resgatar e cultivar relações de solidariedade entre os habitantes, melhor dizendo, entre os cidadãos da bacia hidrográfica do Rio das Velhas. Do ponto de vista político, a expansão dessas relações de solidariedade, conjugada à cooperação com instituições do primeiro e segundo setores, tem permitido ao projeto protagonizar um papel significativo na busca do equilíbrio de forças entre os princípios do Estado (Hobbes), do mercado (Locke) e da comunidade (Rousseau). E, o mais importante, o Manuelzão, além de religar os cidadãos para a conquista de um ideal comum, vem contribuindo para a uma outra religação, a religação do homem com a natureza.

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Abstract

Citizenship and environment Based on recent theoretic formulations by Boaventura de Sousa Santos, philosopher who has dedicated himself to the comprehension of the so called new social movements, this chapter intends to demonstrate how The ManuelzĂŁo Project, cultivating solidarity amongst citizens of the Velhas River basin and broadening cooperative relations with the government and commercial market, has progressively been able to transpose orthodox forms of thought, organization and political participation, in search of the effectiveness of the right to an ecologically balanced environment.


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Jornalista, Coordenador da Campanha pela Elevação de Diamantina a Patrimônio Cultural da Humanidade


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Fotografia: Bráulio Carsalade Villela.

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O crescente interesse pelo patrimônio histórico e natural e pelos antigos caminhos e rotas coloniais que, entre os séculos XVI e XVIII, permitiram a ocupação territorial e a formação da identidade brasileira tem fundamentos contemporâneos, fruto de um mundo cada vez mais globalizado, em que o homem acabou sendo conduzido à triste condição de refém da massificação informativa e cultural. Pela televisão, aberta e a cabo, nas rádios, nos jornais e revistas ou pela Internet, ele tem acesso cotidiano e corriqueiro, em tempo real, aos fatos e aos grandes acontecimentos mundiais, mas está só e impotente, preso ao sentimento de que não pode transformar o mundo que assiste. O dilema, existencial, é essência de uma boa dose das aflições humanas da atualidade e não há receitas acabadas para solucioná-lo. Porém, as respostas a estas angústias passam pelo resgate da autoestima e pela reinvenção do sentido transformador da existência humana. Assim, a busca das origens e raízes históricas é componente essencial para uma nova inserção do homem em seu tempo, sendo a redescoberta desta identidade cultural, perdida, fermento para a auto-estima. Por outro lado, o orgulho reconquistado é alicerce para o sentido transformador das nossas ações, à medida que, a partir da identificação da trajetória singular de cada um e de cada comunidade, o conhecimento sobre o que fomos, de onde e como viemos, alimenta a convicção de que podemos mudar o mundo. Sob o lema “pensar global, agir local”, os movimentos ecológicos foram os primeiros, aliás, a propagar esta mensagem, a partir da primeira conferência internacional sobre meio ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972. Com uma resposta simples para um grande problema, tais movimentos, em pouco mais de 30 anos, transformaram-se em vigorosos fenômenos sociais de massa, obrigando a inclusão da temática ambiental na agenda não só dos governos e empresas, mas de outros movimentos sociais, populares e sindicais. Com contornos cada vez mais multidisciplinares, o lema do movimento ecológico acabaria, então, por inspirar uma nova postura diante da sociedade globalizada e da própria História.

O caso Diamantina

A seu modo e com suas particularidades, a campanha pela inscrição do centro histórico de Diamantina na Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — Unesco, na categoria de Patrimônio Cultural da Humanidade, é exemplo destas novas possibilidades. Imersa nas atividades garimpeiras há 300 anos, a cidade buscava novos horizontes de desenvolvimento econômico e social diante da escassez

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crescente de seus recursos minerais e das exigências ambientais cada vez mais rigorosas para a sua exploração. No rol das opções, o turismo cultural figurava como uma intuição, apenas. No passado, ou seja, nas singularidades do rico patrimônio histórico e arquitetônico da cidade, havia fortes razões para sonhar com o futuro, mas faltava o gancho, o elo entre a intuição e a ação. Se o legado histórico não era suficiente, por si só, para impulsionar todo o processo, era preciso definir uma idéia força, um “pensar global”, que unisse e mobilizasse a comunidade em torno do desafio comum. A campanha Diamantina Patrimônio Cultural da Humanidade nada mais foi, então, do que o elo; o guarda-chuva sob o qual puderam ser reunidas as ações de resgate histórico, arquitetônico, cultural e da auto-estima da cidade. E tudo isso com um foco histórico específico, para identificar manifestações únicas do barroco mineiro em suas edificações e monumentos e na formação cultural de seu povo, e responder os critérios de universalidade e singularidade exigidos pela Unesco para a inclusão de sítios no Patrimônio Mundial. Unindo o passado ao futuro, o diamante deu as pistas e revelou os traços particulares da formação do Arraial do Tijuco, comparativamente às vilas do ouro que surgiram no século XVIII. Contudo, o toque que faltava para o sucesso da campanha foi dado pelo marketing e pela comunicação. Desde o seu lançamento, em março de 1997, até a conquista do título, em dezembro de 1999, o foco estratégico dessas ações convergiu para o desafio de mobilizar a comunidade para o reencontro com a riqueza do seu patrimônio, transformando a luta pelo título em uma missão da cidade e de cada cidadão, em particular. Assim, cada redescoberta do trabalho técnico, de pesquisa e documentação exigido na elaboração do dossiê para a Unesco transformou-se em fato de comunicação. Na Arquitetura, o passadiço da Rua da Glória foi ícone dessa estratégia, da mesma forma que, na música, a Vesperata. No plano externo, as ações de comunicação buscaram garantir a mais ampla visibilidade aos movimentos que a cidade realizava para a conquista do título, tais como declarações de apoio de personalidades, de empresas e instituições; etapas cumpridas na elaboração do dossiê até a conclusão; as visitas de peritos internacionais; exigências do plano diretor, entre outros fatos. Por outro lado, através das ações de marketing garantiu-se o autofinanciamento da própria campanha. Quer dizer, os recursos que a viabilizaram, em seu conjunto, vieram de patrocínios e apoios, públicos e privados, cuja contra-partida foi dada através do plano de comunicação e divulgação. Um bom negócio, enfim, para a cidade, que não contava com recursos para investir, e para os patrocinadores, que associaram sua marca a um projeto vitorioso.

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Os caminhos coloniais

Como no caso do patrimônio histórico e arquitetônico, o interesse pelos caminhos e rotas coloniais restringia-se, até recentemente, aos organismos responsáveis pela sua preservação, aos meios acadêmicos e de historiadores, ou aos pesquisadores abnegados. Mas essa realidade começou também a mudar, sobretudo a partir dos anos 90 do século passado, trazendo à tona enormes diferenciais. Em primeiro lugar, porque os caminhos antigos potencializam processos regionais, em que o resgate de identidades culturais — o fermento do sentido transformador — entrelaça diversos núcleos urbanos a partir de uma visão global da ocupação do território. Por outro lado, eles trazem como diferencial as extraordinárias possibilidades de vinculação entre os elementos históricos e a natureza, os cursos d’água, as montanhas e florestas. Antes mesmo das primeiras entradas portuguesas, esses caminhos já eram usados pelos índios. Nômades, seguindo os cursos d’água nas atividades de pesca e caça, abrindo picadas entre as aldeias ou para migração, os habitantes originais estabeleceram as primeiras ligações entre a costa e o interior do vasto território. As trilhas entre Paraty e as vilas paulistas do Vale do Paraíba, transpondo a acidentada Serra do Mar, foram heranças dos Goianás, usadas depois pelos colonizadores, a partir do século XVII. Da mesma forma, as rotas de acesso aos sertões do São Francisco, tanto de baianos quanto pernambucanos, eram pré-colombianas, sendo apropriadas pelos novos senhores, que dizimaram os Cariris, para se apoderar do então desconhecido território, com suas criações de gado, e mão-de-obra escrava.

Ecce Horo Madeira entalhado e policromada, século XVIII. Acervo Museu do Ouro, Sabará. Fotografia: Cuia Guimarães.

Não seria diferente, pois, com as bandeiras paulistas. Afinal, forjados nas cruéis expedições de preação de índios, cuja escravização rendia bons negócios no comércio com os engenhos de cana-de-açúcar do nordeste, os bandeirantes, que dominavam a língua geral, usavam a sabedoria sobre o território dos próprios nativos para caçá-los. Com a retomada do tráfico negreiro e a substituição da mão-de-obra escrava nativa nos engenhos pelos africanos, a partir de meados do século XVII, as bandeiras e voltaram-se para a prospecção mineral, avançando ainda mais no conhecimento sobre o território. Pelo Rio Paraíba, transpondo a Serra da Mantiqueira, na garganta do Embaú, as bandeiras paulistas chegaram ainda naquele século ao Rio das Velhas, ao Rio São Francisco e ao Jequitinhonha. Pelo Rio Tietê, pelo Paraná, pelos rios Paraguai e Cuiabá, eles romperam até mesmo os limites, imaginários, do Tratado de Tordesilhas, chegando ao Peru, e, ao sul, até o Paraguai. Cortando os afluentes e o próprio Rio Grande, as bandeiras vararam ainda os sertões até os confins de Goiás, no Araguaia.

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Com a descoberta do cobiçado ouro e do diamante, essa extensa rede de trilhas e picadas indígenas, que combinavam as rotas fluviais às terrestres, foi, então, o leito sob o qual se consolidaram os principais caminhos coloniais do século XVIII, dando em parte lugar, no século seguinte, às ferrovias ou às rodovias atuais. Porém, não eram esses caminhos únicos, com um traçado exclusivo e definitivo entre uma vila e outra, entre o ponto de partida e o de chegada. Ao contrário, havia caminhos, variantes e, naturalmente, conhecidos descaminhos, regularmente usados para fugir da voracidade fiscal da Coroa Portuguesa em seus registros, em que tudo era tributado, do ouro às ferramentas de mineração e mercadorias, dos homens aos animais. Mapas antigos, como o de autoria de José João da Rocha, da Capitania de Minas Gerais, com as divisas de suas então quatro comarcas comprovam esta realidade. Além dos caminhos Velho e Novo da Estrada Real, o mapa de João da Rocha, de 1788, identifica outras rotas coloniais, como as estradas que ligavam São Romão, no Rio São Francisco, a Minas Novas e ao Arraial do Tijuco. Aliás, as Minas Novas de Araçuaí estavam ligadas por rotas terrestres e fluviais — os rios Araçuaí, Jequitinhonha e Pardo — a Salvador e à Vila do Príncipe, hoje cidade do Serro, e a Vila Rica, cidade de Ouro Preto. Já de São João del Rei, a Picada de Goiás levava a outras minas, legando importantes marcas históricas e culturais ao longo desse caminho, como em Pirenópolis, Goiás. João da Rocha registra, ainda, outras estradas regulares ligando Vila Rica a São Paulo, como a que passava pelas atuais cidades de Oliveira e Formiga. Portanto, são muitas as rotas coloniais que permitiram a ocupação do território e forjaram as bases da identidade cultural brasileira. Resgatá-las, por outro lado, não significa apenas um reencontro com o passado, mas, sobretudo, uma promessa de futuro, pois, a partir desses nexos históricos, é possível articular ações consistentes de mobilização das comunidades e estímulo de sua autoestima, em conexão com o desenvolvimento sustentável do turismo. Afinal, ao longo de todas essas rotas, bens arquitetônicos de rara beleza e sólidos traços de identidade cultural testemunham, ainda hoje, a importância do ciclo do ouro e do diamante. E a riqueza histórica destes caminhos não pode ser esquecida.

O Rio das Velhas

Imagem de Nossa Senhora da Conceição da Matriz de Sabará. Fotografia: Cuia Guimarães.

Antes da descoberta do ouro em seu leito e de afluentes no final do século XVII, o Rio das Velhas havia sido visitado pelas primeiras expedições portuguesas ao interior da colônia. Relatos antigos registram que, em março de 1553, Pero de Pinna, feitor e almoxarife da então Capitania de Porto Seguro, havia recebido ordens do gover-

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nador-geral Tomé de Souza para fornecer mercadorias ao castelhano Francisco Bruza de Espinhosa, para “ir pelo sertão” à procura de ouro e pedras preciosas. Acompanhado de 12 companheiros, Bruza de Espinhosa rumou, então, para o interior do continente a partir da foz do Rio Jequitinhonha, que está ao norte da antiga Vila de Porto Seguro, percorrendo cerca de 350 léguas em 13 meses de jornada. “Sempre por caminhos pouco descobertos, por serras mui fragosas que não têm conta e tantos rios que em partes, no espaço de quatro ou cinco léguas, passamos cinqüenta vezes contadas por água, e muitas vezes, se me não socorreram, me houvera afogado”, testemunhou o padre João de Aspilcueta Navarro, um dos integrantes da expedição de Bruza de Espinhosa. Em seu relato — uma carta de 1555, escrita na então Vila de Porto Seguro —, o padre Navarro conta, ainda, que a expedição, depois de margear o Jequitinhonha até suas cabeceiras, ultrapassou uma serra e encontrou um outro rio, o Pará, que os índios disseram ser o São Francisco; ou o Rio das Velhas, como sustenta Capistrano de Abreu. Bruza de Espinhosa e seus companheiros não encontraram nem o ouro nem as pedras preciosas, mas legaram para a História os registros dessa primeira incursão aos sertões. Ainda na segunda metade do século XVI, outras expedições em busca de ouro e pedras preciosas embrenharam-se pelo interior da colônia a partir da Bahia, como a de Martins Carvalho, relatada por Pero Magalhães de Gandavo, no Tratado da Terra do Brasil, e as de Sebastião Fernandes Tourinho, contadas por Gabriel Soares, no Tratado descritivo do Brasil, mas também não tiveram sucesso. Mais de cem anos depois dessas expedições, os bandeirantes paulistas finalmente encontrariam o cobiçado ouro nos afluentes do Rio das Velhas, incluindo a região então habitada pelos temidos Cataguás, no mapa da colônia. Coube ao velho bandeirante Fernão Dias o reconhecimento daqueles sertões, embora também não tenha encontrado o ouro e nem as esmeraldas da lendária Sabarabuçu, a serra das esmeraldas. Saindo da vila de São Paulo em 1674, sua bandeira cortou a região sul do que é hoje o Estado de Minas Gerais e chegou ao Rio das Velhas, rumando depois para a Serra do Espinhaço, onde encontrou as nascentes do Jequitinhonha, próximas ao Pico do Itambé. Pelo vale do rio, Fernão Dias seguiu para as regiões de Itamarandiba, em sua margem direita, e de Itacambira, à esquerda, de onde iniciou o retorno para o vale do Rio das Velhas. Na longa expedição, da qual não retornou, o velho bandeirante criou os primeiros núcleos urbanos das “minas gerais dos Cataguás”, desde as vilas paulistas do Vale do Paraíba até o arraial de Roça Grande, hoje Sabará, às margens do Rio das Velhas, onde seu genro, Manuel de Borba Gato, fixou-se e, mais tarde, descobriu o ouro.

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A Comarca do Rio das Velhas

Com a notícia da descoberta das minas em fins daquele século, esses núcleos urbanos logo atraíram multidões de aventureiros de toda a colônia e da metrópole, protagonizando as primeiras grandes disputas pela sua posse. E Roça Grande seria o palco de um primeiro conflito, em 1681, sendo o emissário do rei para o reconhecimento das minas Don Rodrigo de Castel Blanco, assassinado por Borba Gato. Em 1707, a rivalidade entre paulistas e emboabas — portugueses e naturais da colônia de outras capitanias, como a Bahia — levou ao incêndio do arraial. Reconstruído após a “guerra”, vencida pelos emboabas, Roça Grande foi erigida à categoria de Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, no dia 21 de julho de 1711, apenas duas semanas após a criação de Vila Rica e 18 dias após a de Ribeirão do Carmo, hoje cidade de Mariana, pelo governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho. Em 1714, o território das minas foi dividido em três comarcas; seis anos antes do desmembramento da Capitania de Minas Gerais da de São Paulo. E a Comarca do Rio das Velhas, com sede em Sabará, era a maior, englobando, inclusive, o território da futura Comarca do Serro Frio. Relata o cartógrafo José Joaquim da Rocha: “É esta comarca a maior de todas da Capitania das Minas Gerais e a segunda na ordem da sua criação. Confina ao norte com a Capitania de Pernambuco, em altura de 13 graus e sete minutos e ao meio-dia com as Comarcas de Vila Rica e Rio das Mortes; ao oriente com a do Serro Frio e ao poente se termina pelas serras dos Cristais e da Tabatinga, com a Capitania de Goiás”. Em outro relato antigo, de 1807, o Dr. Diogo Pereira de Vasconcelos assim descreveu a comarca: “A do Sabará compreende todo o terreno ao norte de Itabira, o do sobredito ribeirão até os rios Cipó e do Peixe e os sertões limítrofes das capitanias de Goiás e Pernambuco. Nos rios Cipó e do Peixe pega a comarca do Serro e vai terminar nos sertões da Bahia”.

Páginas seguintes: Raposos, Estação de General Carneiro. S/ autoria, s/ data. Coleção Luís Augusto de Lima.

Além de Sabará, a comarca contava com três outras importantes vilas: a Vila Nova da Rainha, hoje cidade de Caeté, criada em 1714, a Vila de Pitangui, de 1715, e a Vila do Paracatu do Príncipe, criada em 1799, embora o descobrimento de ouro na região remonte à década de 40 daquele século. Entre os arraiais do século XVIII destacavam-se os de São Romão, o de Papagaio, hoje Curvelo, e o de Barra do Rio das Velhas, hoje Barra do Guaicuí, distrito de Várzea da Palma. Como postos de fiscalização e cobrança de tributos, eram nove os registros: Sete Lagoas, Jequitibá, Zabelê, Ribeirão da Areia, Nazaré, Santa Isabel, Santo Antônio, São Luís e Olhos d’Água. Havia ainda os postos e patrulhas de guarda, com destacamentos militares: as guardas dos Macacos, da Barra do Pará e da Barra do Rio Marmelada; os destacamentos da Tapera do Saco, do Rio da Prata e do Porto do Bezerra; e a patrulha de Venda Nova. Em torno desses registros e postos da

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Comarca do Rio das Velhas surgiriam povoados e núcleos urbanos, futuras cidades, como Sete Lagoas e Jequitibá. As paróquias da comarca dão outras pistas sobre as origens de muitas cidades contemporâneas. Em 1778, os dispêndios eclesiásticos do Bispado de Mariana já identificavam núcleos populacionais em torno, por exemplo, das igrejas de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del Rei e de Nossa Senhora da Conceição de Raposos, as atuais Belo Horizonte e Raposos. Por outro lado, as vinculações de paróquias aos bispados de Pernambuco e da Bahia revelam as influências e a complexidade do processo de formação cultural da Comarca do Rio das Velhas. A Vila de Paracatu do Príncipe e o Arraial de São Romão eram freguesias de Santo Antônio do Manga, atual cidade de Manga, e estavam sujeitas ao Bispado de Pernambuco. O Arraial de Papagaio, por sua vez, tinha sua jurisdição eclesiástica vinculada ao Arcebispado da Bahia. Além de mais extensa, a Comarca do Rio das Velhas foi também a mais habitada no século do ouro. Em 1776, por exemplo, a Capitania de Minas Gerais contava 319.769 habitantes, enquanto esta comarca uma população de 99.576 habitantes, incluindo homens e mulheres, brancos, pardos e negros, como registrou José Joaquim da Rocha em sua Geografia Histórica. A Comarca do Rio das Mortes era a segunda mais populosa da Capitania (82.781 habitantes), seguida pela de Vila Rica, com 78.618, e pela Comarca do Serro Frio, a menor, com 58.794 habitantes.

Caminho do sertão

Ao encurtar o tempo de viagem entre o porto do Rio de Janeiro e Vila Rica, o Caminho Novo da Estrada Real, aberto por Garcia Rodrigues, foi a grande rota oficial de escoamento do ouro e dos diamantes no século XVIII. Contudo, à rota fluvial do Rio das Velhas e aos caminhos terrestres que, pelo seu vale, ligavam a região mineradora aos sertões do São Francisco caberia a função estratégica de alimentar os milhares de aventureiros que de todas partes acorreram às minas com a notícia da descoberta do ouro. Aliás, o médio São Francisco no que é hoje o Estado de Minas já era destino da colonização baiana na segunda metade do século XVII, com a expansão das suas criações de gado. Embora paulistas, os sertanistas Matias Cardoso e Antônio Gonçalves Figueira, por exemplo, penetraram naqueles sertões pelas trilhas indígenas da Bahia, fundando os primeiros núcleos urbanos, origem das atuais cidades de São Romão, Januária, Matias Cardoso e Manga, entre outras. Se na metrópole o descobrimento do ouro provocou a corrida para as minas, não seria diferente na Cidade da Bahia, hoje Salvador,

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então capital geral da colônia. Pelo Recôncavo, subindo o Rio Paraguaçu, logo um caminho iria ligar Salvador às minas, passando pelas atuais Maragogipe, Cachoeira, Muritiba e Rio de Contas, entre outras cidades, até Malhada, às margens do Rio São Francisco. Por via fluvial ou terrestre, de Malhada os baianos subiam o São Francisco até a foz do Rio das Velhas, já tendo como bases de apoio os núcleos paulistas criados no final do século XVII. E daí, pela atual Barra do Guaicuí, eles penetravam no território das minas. Em 1702, o intenso comércio entre a Bahia e as minas através desses caminhos já era motivo de preocupação da Coroa. “E porque muitas pessoas da Bahia ou daquele distrito trazem ou mandam gados para se venderem nas minas, de que pode seguir os descaminhos de meus quintos, porque o que se vende é a troca do ouro em pó, toda aquela quantia se há de descaminhar”, constatava o regimento para as minas de ouro, de Dom Álvares da Silveira de Albuquerque, governador da repartição sul da colônia. E completava: “Nenhuma pessoa do distrito da Bahia poderá levar das minas pelo caminho do sertão outras fazendas ou gêneros que não sejam gados”. Apesar das proibições, o “caminho do sertão” constituiu a principal rota de abastecimento da região mineira e não só de gado, como pretendia a Coroa. Ao longo de todo o século XVIII, o arraial de São Romão foi o mais importante entreposto mercantil dos sertões do São Francisco, onde se comercializava desde o sal, fabricado nas salinas do rio, nas Capitanias da Bahia e Pernambuco, o açúcar, as melancias e os peixes até as carnes secas e o gado, conduzido em boiadas de todo o nordeste para o povoado. Como revelam os mapas de José Joaquim da Rocha, de São Romão partiam diferentes rotas comerciais, diretamente para os centros mineradores, tanto na Capitania de Minas Gerais, quanto na de Goiás. Não foi por acaso, então, que São Romão — ao lado de Brejo do Salgado, hoje Januária, e Cariranhanha, na Bahia — seria palco, em 1736, dos motins que agitaram o Rio São Francisco, quando a Coroa tentou implantar o imposto de captação também para os fazendeiros. Na verdade, o “caminho do sertão” e suas variantes eram muito mais do que estradas para o abastecimento da região mineradora. Eram, também, rotas do descaminho do ouro e do diamante, pelos portos da Bahia, e para o tráfico da mão-de-obra escrava para as minas, pois, valendo-se da vastidão do território, matas e infinitos cursos d’água, tornavam sem efeito as sucessivas tentativas da metrópole em fiscalizar e limitar o seu uso, como no regimento de 1702.

Heranças coloniais

O tombamento de bens culturais, materiais e imateriais, por órgãos de proteção é critério universalmente aceito para a análise

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do grau de interesse e do envolvimento das cidades, estados e países na preservação da sua memória histórica. Muitas vezes, no entanto, o fato de um patrimônio estar tombado não significa que a sua preservação para as futuras gerações está garantida. Por outro lado, não são raros os casos de bens não tombados apresentarem condições de proteção melhores do que aqueles tombados. Ou seja, a preservação da memória histórica exige um conjunto de ações, em que a consciência cidadã e o sentimento de orgulho da comunidade quanto às riquezas de seu passado são componentes imprescindíveis. Visto desta forma, os patrimônios culturais tombados ao longo dos antigos caminhos do Rio das Velhas não refletem a sua importância histórica no período colonial — e isso mesmo quando considerados os bens tombados a partir das nascentes do rio, na Cachoeira das Andorinhas, incluindo, portanto, Ouro Preto, primeiro Patrimônio Cultural da Humanidade reconhecido pela Unesco no Brasil, em 1980. Afinal, nos 761 quilômetros da calha do rio, em apenas seis municípios ribeirinhos registram-se bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, como revela o quadro abaixo. Em outro parâmetro, ao abranger a antiga Comarca do Rio das Velhas, esta realidade se repete. Outros acervos históricos significativos são também tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico — Iepha ⁄ MG ao longo do Rio das Velhas, destacando-se, entre eles, o conjunto histórico constituído da Capela de Nossa Senhora do Rosário, casa e sítio da Quinta do Sumidouro, no distrito de Fidalgo, em Pedro Leopoldo, e as ruínas da Igreja de Bom Jesus do Matozinhos, no distrito de Barra do Guaicuí, em Várzea da Palma. Em Nova Lima, por sua vez, encontram-se na Matriz de Nossa Senhora do Pilar, tombados pelo IPHAN, também os retábulos e os púlpitos da capela da Fazenda da Jaguara, que também ficava às margens do rio. Contudo, mesmo incluindo esses acervos, tombados em nível estadual, o patrimônio cultural protegido está longe de representar a importância histórica do Rio das Velhas para a formação cultural de Minas Gerais e do Brasil. E reverter este quadro é um desafio inadiável para a construção do futuro.

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Bens tombados – Municípios na calha do Rio das Velhas MUNICÍPIO

EDIFICAÇÕES E MONUMENTOS ARQUITETÔNICOS

1. Sabará

• Capela

2. Santa Luzia

• Casa

3. Lagoa Santa

• Túmulo

4. Matozinhos

• Lapa

da Cerca Grande

5. Sete Lagoas

• Casa

da Fazenda Sete Lagoas

6. Lassance

• Antiga

Fonte: IPHAN

de Santo Antônio de Pompeu • Casa na Rua Borba Gato, nº 7 • Casa na Rua Dom Pedro II – Paço Municipal • Casa na Rua Dom Pedro II, nº 215 • Museu do Ouro – sede da Real Intendência do Ouro Igreja de Nossa Senhora do Carmo • Igreja de Nossa Senhora do Ó • Hospício da Terra Santa e Capela de N. S. do Pilar • Igreja de N. S. do Rosário • Igreja de Sant’Ana • Igreja de São Francisco de Assis • Igreja Matriz de N. S. da Conceição • Paço da Rua Sapucaí • Paço de Nossa Senhora do Carmo • Conjunto arquitetônico da Rua Dom Pedro II • Teatro Municipal • Chafarizes do Caquede e do Rosário na Praça da Matriz • Edifício sede do Recolhimento de Macaúbas de Peter Wilhelm Lund e seus colaboradores

Estação Ferroviária • Casa de Saúde Carlos Chagas • Laboratório de Carlos Chagas (Restaurado pelo BDMG Cultural)


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Fotografia: Rogério Sepúlveda.

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Bibliografia

ABREU, J. Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico e Geográfico de Minas Gerais. 2 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. 382 p. BARBOSA, Waldemar de Almeida. História de Minas. Belo Horizonte: Comunicação, 1979. CARVALHO, Daniel de. Estudos e depoimentos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1953. COELHO, Marco Antônio Tavares. Rio das Velhas: memória e desafios. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 186 p. CORREA, C. Cunha. Serra da Saudade. 2. ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. 296 p. COSTA, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais: com estudo histórico da divisão territorial e administrativa. 2. ed. Belo Horizonte: BDMG Cultural; 1997. 476 p. GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil: história da província Santa Cruz. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Univ. de São Paulo, 1980. 150 p. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colonia. 23. ed. São Paulo: Brasiliense. RELATÓRIO da Expedição Halfeld. Belo Horizonte: Federaminas, 2002. SANTOS, Márcio. Estradas reais. Belo Horizonte: Editora Estrada Real, 2001. VASCONCELOS, Diogo de. História média de Minas Gerais. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. 367 p. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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Abstract

Challenges of the cultural heritage The interest in historical and natural heritage and in the old paths that, between the sixteenth and eighteenth centuries, enabled the occupation and formation of the brazilian identity is grounded in present fundaments, fruit of a globalized world where man turned himself into a hostage of cultural massification. Through television, radios, newspapers, magazines and the internet, he has ordinary access to global facts and happenings, but is alone, stuck to the feeling that he can’t transform the world he watches. This dilemma is the essence of a good part of all human afflictions and there are no recipes for the solution. However, the answers to this angst can be related to the recovery of self-esteem and the reinvention of the transforming sense of existence. This way, the search for historic origins is an essential component to reinsert man in his own time, being the rediscovery of this cultural heritage a boost for self-esteem. It’s in this context that the study of colonial routes gained strength in the 90’s, making an important difference. First of all, the old paths brought potential to regional processes, where the redemption of cultural identities interweaves the urban nucleuses from a global view of territorial occupation. On the other hand, the historic routes also make it possible to tie historic elements to nature, water courses, mountains and forests. Among these routes, the Velhas River, connecting the mining center to the São Francisco River, is one of the most important. It was up to explorer Fernão Dias to scout the region, although he found neither gold nor the legendary hill of emeralds. Parting from the villa of São Paulo in 1674, his expedition reached the Velhas River and, during the long journey from which he never returned, he created the first urban nucleuses of the "Minas" (mines), starting at the Paraíba villas and going to Roça Grande, today known as Sabará. With the discovery of gold, the Velhas River would then become the natural path of commercial circulation between the mines and the country part of the colony.


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Professor do Departamento de Geografia do Instituto de GeociĂŞncias da Universidade Federal de Minas Gerais


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31 Novos caminhos para o turismo Bernardo Machado Gontijo 1


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Iniciamos este capítulo com o último parágrafo de uma crônica escrita, no final dos anos trinta do século passado, pelo sabarense Aníbal Machado, que, tal como seu João Ternura, nasceu às margens do Rio das Velhas: Rio das Velhas . . . seguiram-te os paulistas, os emboabas, os cléricos, os intendentes, os capitães-mor, os mestres-de-campo, os tenentes-generais, os ouvidores, os procuradores da fazenda real. Seguiram-te sempre os índios que foram os mais íntimos de tuas águas. Seguiram-te os juízes, os comerciantes e os salteadores. Seguiram depois o teu traçado milenário os maquinistas da Central que, às vezes, se atiram com passageiros e comboio nas tuas águas. Seguem-te agora os automóveis velozes. Vai ser muito triste quando os aviadores atirarem rosas sobre o teu leito ressequido, no dia em que comemorarem teu jubileu, velho Rio das Velhas . . . Ah, isso também não, isso seria demais! . . . (Publicado em O Jornal, RJ — Edição Especial sobre Minas Gerais — citado por Raúl Antelo) Felizmente, as rosas temidas por Machado não foram atiradas, e acreditamos que não o serão. A todos que seguiram pelo rio juntamse hoje os turistas, potencialmente grandes parceiros e aliados ao esforço empreendido pelo Projeto Manuelzão. A bacia tem muitos segredos a serem revelados e a contribuição de um contingente cada vez maior de turistas será muito benvinda se atrelada a bases sustentáveis de implementação e gestão do turismo. Manuelzão foi um grande turista que conheceu a fundo algumas das paisagens mais significativas do interior mineiro; Richard Burton foi outro, constituindo-se, com mais de um século de antecipação, num tipo de turista com o perfil internacional e globalizado, comum nos dias de hoje; o próprio Guimarães Rosa nunca deixou de ser turista nas suas incursões pelos sertões mineiros. Assim como esses três nomes, poderíamos somar uma série de outras pessoas, todos eles possuindo uma característica em comum — todos conheceram o Rio das Velhas e trechos de sua bacia pelo menos em algum momento de suas vidas. Todos fizeram turismo, ainda que em épocas e situações diferentes, em nossa bacia. Alguns conheceram o Velhas durante longos percursos, outros apenas o cruzaram, outros ainda atravessaram seus divisores, banharam-se nas cachoeiras de seus tributários, penetraram fundo nas matas, cerrados e campos que preenchem seus interflúvios. Todos vivenciando algo que os remetessem a novas possibilidades de conhecimento — de si próprio ou do outro, e das diversas nuanças de uma paisagem desconhecida que se revelasse a cada novo trecho percorrido, ou da velha paisagem, mas que se revelasse surpreendente a cada novo e diferente olhar. E a todas essas pessoas poderíamos juntar a nós mesmos, à medida que todos somos turistas (senão de fato, pelo menos em

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potencial) aptos a empreendermos descobertas surpreendentes no microcosmo dessa bacia. Aqui reside um dos fascínios do turismo, ou do que chamaríamos de “ação turística”. Todos nós somos, fomos ou seremos turistas, ou em outras palavras, turista é uma condição mais relacionada ao estar do que ao ser. E em meio à fascinação turística podemos ou poderemos dialogar com aqueles três personagens se empreendermos, junto com eles, as mesmas viagens que realizaram no passado. Enquanto parte da saga de Burton foi agora revivida pelos exploradores do Projeto Manuelzão, as sagas de Rosa e do próprio Manuelzão permitem-nos descobrir as diversas Minas escondidas no seio da bacia e por eles reveladas. É Rosa quem diz . . . sobre o que, em seu território, Minas ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas. Fotografia: Cuia Guimarães.

Velhas também está no plural, e sua bacia está para Minas o que Minas está para o Brasil. No coração mineiro, a bacia é a própria síntese do estado, traduzindo vários de seus significados, revelando várias de suas paisagens, guardando várias de suas histórias, ocultando várias de suas riquezas. Este é seu grande potencial turístico que está aí para ser compreendido e, então, apresentado aos que por ela venham a empreender viagens curtas ou longas, a trabalho ou a estudo, por lazer ou devoção, para conhecimento ou puro desfrute do ócio. Se considerarmos os circuitos turísticos concebidos pelo Governo do Estado, a bacia do Rio das Velhas estaria inserida em pelo menos três deles: “do Ouro”, “Serra do Cipó” e “das Grutas” e ainda com inserções nos circuitos “dos Diamantes” e “Serra do Cabral e Cachoeiras” . Mas o que entendemos aqui é a bacia como um circuito em si. Não um circuito no sentido turismológico do termo, mas um circuito num sentido amplo, que inclua a garimpagem das riquezas humanas, paisagísticas, culturais, históricas e econômicas da bacia. Tal perspectiva ampla de revelação dessa potencialidade turística não pode ser percebida e concebida de maneira linear, como se fôssemos seguir um roteiro predeterminado. Nosso roteiro, mais do que geográfico, passa por dimensões outras que vão muito além do espaço. Passa pela Pré-História, pela História, pelos ciclos econômicos e modelos de desenvolvimento, pelas manifestações culturais e até mesmo pela literatura. Demanda uma atitude interior, por parte do turista, que o coloque disposto a conhecer e fazer-se conhecer pelo outro. Uma

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atitude que chamamos de “pessoalizante”, a qual , segundo Gontijo e Rego, “implicaria a percepção da paisagem para além do olhar inicial, eminentemente horizontal e limitado ao isso, e onde a maior do turismo convencional se restringe. A partir deste primeiro olhar, inicia-se uma busca tanto interior, na direção do eu de cada um, tanto exterior, na direção do tu”. Essa atitude “pessoalizante” naturalmente se aproxima do que chamamos de ecologia profunda, à medida que acreditamos que só depois de nos descobrirmos e de nos conhecermos a fundo é que estaremos aptos a descobrir, conhecer e valorizar o outro. Sugerimos, então, alguns caminhos a serem percorridos ao longo da bacia do Rio das Velhas, caminhos estes que nos aproximem do eixo temático do Projeto Manuelzão, qual seja, saúde, ambiente e cidadania. Questões relacionadas às condições ambientais e de saúde poderão e deverão permear os caminhos propostos buscando-se chamar a atenção dos que forem vivenciá-los no sentido de que, mais do que parceiros, são cidadãos ativos no processo de resgate da qualidade ambiental da bacia. Buscou-se abranger toda a área da bacia do Velhas incluindo-se diferentes temas que perpassam suas subregiões de acordo com as características históricas, paisagísticas, culturais e econômicas. Neste sentido, são enfocados temas que vão desde a ocupação antiga de Minas Gerais até o modelo atual de ocupação, baseado na exploração predatória dos recursos naturais da região; são abordados também temas que focalizam as feições originais da paisagem bem como temas que focalizam a destruição dessa mesma paisagem. Trata-se, portanto, de se aproveitar, e mostrar, o rico mosaico paisagístico ⁄ humano ⁄ econômico ⁄ histórico ⁄ cultural ao qual corresponde a área abrangida pela bacia do Rio das Velhas, à medida que ela representa uma síntese do que aconteceu e do que está acontecendo no ambiente mineiro como fruto do nosso modelo de ocupação do espaço.

Empreendemos nossa viagem

1º Caminho – As nascentes do Velhas: Um modelo de ocupação definido pela busca das riquezas minerais, desde o ouro até o ferro O quadrilátero, hoje conhecido como ferrífero, foi muito mais aurífero no passado, e foi esse ouro que definiu seu modelo de ocupação original. O ouro trouxe a exuberância das expressões artísticas e arquitetônicas do barroco mineiro desde o século XVIII, mas o ferro modelou e definiu a ocupação mais recente, trazendo consigo outras formas de intervenção na paisagem. Se a cidade de Ouro Preto está na bacia do Rio Doce, alguns de seus distritos compõem

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Fotografia: Rogério Sepúlveda

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uma área de povoamento antigo e ditado pelas primeiras lavras do ouro — São Bartolomeu, palco de escavações arqueológicas; Cachoeira do Campo e seus antiquários; Amarantina, suas igrejas e o Museu das Reduções; Glaura e suas igrejas, todas lembrando as paisagens etéreas dos quadros de Guignard. Por outro lado, em cidades como Itabirito, Nova Lima, Raposos, Sabará e Caeté, a herança cultural e arquitetônica do ouro teve que se ajustar à necessidade econômica de exploração e transformação do minério de ferro. Nelas a herança barroca se (con)funde com as exigências da siderurgia e ⁄ ou mineração do ferro, o que impõe novos desafios em termos de se trabalhar a questão ambiental pari passu à questão da exploração de seu potencial turístico. Ao pioneirismo siderúrgico de Itabirito somase o pioneirismo inglês da legendária mina do Morro Velho, de Nova Lima; em ambas, o rolo compressor da mineração do ferro comprometendo os marcos históricos do Pico do Itabirito e da Serra do Curral, respectivamente. Por outro lado, sob a sombra da magnífica Serra da Piedade, ainda hoje alvo de mineradoras e de peregrinações religiosas e políticas, repousam as jóias arquitetônicas da bandeirante Sabará e da emboaba Caeté, berços da civilização mineira. Além das heranças culturais e minerais, também o turismo na natureza ainda pode ser vivenciado no alto Rio das Velhas, especialmente nas suas nascentes (Cachoeira das Andorinhas); nas proximidades de Rio Acima, primeira sede municipal que margeia o Velhas; na vertente oriental da Serra da Moeda; nos distritos de Bação e Acuruí, pertencentes a Itabirito; e em São Sebastião das Águas Claras (mais conhecida como Macacos), hoje procurada pelos restaurantes e oportunidades de moradia para os habitantes da capital mineira. O alto Rio das Velhas, região de povoamento antigo, foi também freqüentado por aqueles que transitaram por trechos do “Caminho Velho” da Estrada Real — de Ouro Preto partia uma derivação para Casa Branca (Glaura), Rio de Pedras (Acuruí), Rio Acima, Raposos, Sabará e Caeté. Já no trecho que seguiria para Diamantina, outra derivação da Estrada Real partia da altura de Barão de Cocais e ia em direção a Sabará, via Caeté, fechando o círculo em relação ao “Caminho Velho”. As cabeceiras do Velhas, portanto, também estão inseridas na grande rota turística da Estrada Real, projeto de grande alcance e relevância, e que vem sendo formatado e implantado com todo o cuidado que merece.

2º Caminho – A grande mancha urbana da capital mineira: tratando e destratando do rio A hoje maltratada Serra do Curral marca o degrau de onde se desce dos altos patamares do Quadrilátero Ferrífero para a grande depressão sanfranciscana. Da mesma serra que ainda carrega o nome original dessa paragem, descortina-se o belo horizonte que se abre para norte e para oeste, os mesmos vetores de crescimento da

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Igreja de Glaura. Fotografia: Rodolfo Koeppel.


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Fotografia: Cuia Guimarães.

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grande mancha urbana da capital. Trata-se de uma mancha que atinge vários municípios e que ultrapassa o divisor das bacias do Velhas e Paraopeba. Uma mancha que começou a se materializar a partir da constatação de que a velha Ouro Preto não mais suportaria os encargos políticos e econômicos inerentes à capital de um grande estado. A instalação da nova capital no antigo Curral d’el Rey mudou o eixo político e econômico do estado, arrancando-o das entranhas claustrofóbicas do quadrilátero e expondo-o ao grande e vasto horizonte do centro norte mineiro. A nova capital abria-se para o estado e o Rio das Velhas configurar-se-ia numa espécie de grande vetor de expansão da fronteira econômica do estado. Como herança quase esquecida do caminho aberto pelos antigos bandeirantes que por aí passaram, configurou-se uma nova rede viária que subverteu a antiga Estrada Real, primeiro pelas ferrovias da Central do Brasil e depois pelas rodovias que ainda hoje se multiplicam. A nova cidade rapidamente ultrapassou os limites de seu contorno original, preencheu a sub-bacia do Arrudas, atingiu a sub-bacia do Onça, maltratou suas áreas verdes, cortou as encostas íngremes da Serra do Curral, poluiu seu ar, impermeabilizou seus solos, verticalizou seu horizonte e parte do resultado desse drama ambiental acabou por escoar para o Velhas. O mesmo aglomerado urbano que demandou o tratamento de suas águas a montante, devolve-lhe águas carregadas pelo passivo ambiental decorrente de um modelo predatório de utilização dos recursos naturais. Apesar de tudo, Belo Horizonte é uma cidade boa para se viver, e com rico potencial turístico. Mas, para além de sua funcionalidade e de sua beleza eclética, turistas e belorizontinos devem conhecer as implicações ambientais decorrentes do crescimento desordenado de uma grande metrópole. Os municípios vizinhos que o digam, especialmente Ribeirão das Neves, Vespasiano, Santa Luzia e Sabará para nos ater apenas àqueles situados dentro da bacia do Rio das Velhas; cabendo a todos um esforço comum de minimização e superação desses impactos. Trata-se de um trabalho no qual uma atividade turística orientada para a interpretação e educação ambiental voltada para a própria população metropolitana tem muito a contribuir.

3º Caminho – Das marcas de ocupação antiga a um modelo de ocupação marcante Emparedada ao sul pela Serra do Curral, a mancha urbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte ganha os terrenos calcários da depressão sanfranciscana e todo um novo universo ambiental se abre. Trata-se de uma paisagem diferenciada, com as típicas feições do relevo cárstico e uma vegetação que transita desde as matas secas e de galeria até o cerrado propriamente dito. A atividade turística aí se apóia tanto no que a natureza tem a oferecer como nas marcas deixadas pela ocupação histórica e pré-histórica do homem. Lagoa

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Convento de Macaúbas. Fotografia: Rogério Sepúlveda.


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Fotografia: Miguel Aun.

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Santa e Confins constituem-se, naturalmente, no pivô histórico, geográfico e turístico desse alto ⁄ médio Rio das Velhas. Muitos por ali passaram e passam, antes e depois do Dr. Lund. Depois de Luzia e seus descendentes, passando pelos antigos indígenas que deixaram suas marcas nos paredões calcários, vieram os bandeirantes e os primeiros fazendeiros. Hoje, turistas podem seguir os passos de Fernão Dias, que morreu na Quinta do Sumidouro, a poucos quilômetros das margens do Velhas. Turistas também podem se hospedar nos diversos hotéis-fazenda e pousadas que proliferam na região, sendo que alguns desses hotéis tiram proveito da magnífica herança arquitetônica das antigas fazendas, ampliando-se o leque de opções para a satisfação das mais diversas possibilidades de ocupação. Cogita-se, mesmo, no resgate da navegação, para fins turísticos, de um pequeno, mas significativo trecho do Rio das Velhas, trecho a montante de onde partiu o pioneiro vapor “Saldanha Marinho”, em 1871: desde Santa Luzia, centro histórico da região, na altura do Hotel Floresta Mágica, ou quiçá de Sabará, porto de partida de Burton, até o complexo da Fazenda da Jaguara, passando-se pelo Convento de Macaúbas e a bela Fazenda das Minhocas. Trata-se de um trecho logo a jusante do impacto da capital, mas que guarda as marcas do pioneirismo da ocupação humana pretérita. Por outro lado, paredões e grutas como a do Mocambeiro, Lapinha, Rei do Mato, Baú, Lapa Vermelha, etc. escondem-se mais para o interior da margem esquerda do rio, e hoje sofrem o assédio das indústrias transformadoras do calcário. A paisagem do vale do Ribeirão da Mata traduz bem esse modelo de ocupação, onde torres de cimenteiras apontam para frentes de lavra de jazidas de calcário, frentes que contrastam com os paredões intocados. Trata-se da face visível de um conflito de possibilidades econômicas que o uso do potencial dos recursos naturais da região acarreta. Não que a demanda pela exploração sustentável do turismo exclua a possibilidade de exploração do calcário, ou vice-versa. Soluções de manejo como as previstas no âmbito da Área de Proteção Ambiental (APA) do Karste de Lagoa Santa são alternativas para que se minimizem os efeitos desse conflito. Municípios como Sete Lagoas, Prudente de Morais, Capim Branco, Funilândia, Matozinhos, Pedro Leopoldo, São José da Lapa e Vespasiano buscam conciliar a maximização de seus potenciais turísticos com a possibilidade de exploração econômica de outros recursos, estejam eles relacionados à siderurgia, pequena agricultura ou transformação do calcário.

4º Caminho – A bacia do Rio Cipó como destinação turística e repositório da biodiversidade da bacia do Velhas Para além de Lagoa Santa, desde Nova União e Taquaraçu de Minas na ponta sul até Datas e Gouveia na ponta norte, repousa a magnífica cadeia do Espinhaço, nesse trecho conhecida como Serra

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Fotografia: Miguel Aun.

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Fotografias: Alfeu Trancoso.

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do Cipó. Sem dúvida a grande meca do turismo na natureza no seio da bacia do Rio das Velhas, o complexo da Serra do Cipó abriga um mosaico de possibilidades de exploração turística, o que pode também ser deduzido a partir do grande número de unidades de conservação da região. O Parque Nacional (PARNA) da Serra do Cipó e a APA Morro da Pedreira garantem as nascentes e a qualidade da água dos cursos d’água que descem da porção sul do Espinhaço, indo alimentar várias cachoeiras nos municípios de Nova União, Taquaraçu de Minas, Jaboticatubas e Santana do Riacho. Os dois últimos abrigam grande parte do PARNA e da APA, deles partindo o Rio Cipó, a principal jóia da coroa ecoturística regional. Jóia cobiçada em nome de um ecoturismo apropriado inadvertidamente por praticantes e promotores da ação turística, o patrimônio ambiental da Serra do Cipó vem sendo sistematicamente assediado e ameaçado, o que suscita preocupação e a participação efetiva dos atores envolvidos e comprometidos com a preservação da qualidade ambiental da bacia do Cipó. É consenso entre as municipalidades locais, e aí se incluem Jaboticatubas, Santana do Riacho, Baldim, Santana do Pirapama e Presidente Juscelino, que o turismo pode ser um grande parceiro na promoção do desenvolvimento da região. Mas não basta levantar e realçar as belezas naturais da região, fato que independe de qualquer folheto ou material de divulgação. Ações concretas, que impliquem no envolvimento e participação das comunidades assediadas pela movimentação turística, assim como uma regulamentação adequada de parcelamento, uso e ocupação do solo e a efetiva implementação de uma infra-estrutura mínima de serviços, não só para turistas e novos moradores, como para a população local, são medidas que, na prática, minimizariam os impactos do turismo desordenado que se verifica na região. O Rio Cipó, que ainda possui alta qualidade ambiental, recolhe as águas da vertente ocidental da Serra do Cipó e irá desaguar no Paraúna, que por sua vez recolhe as águas da ponta norte da serra, abrangendo em sua bacia os municípios de Congonhas do Norte, Presidente Kubitschek, Datas e Gouveia, todos com grande potencial para o turismo na natureza e polarizados pelo magnetismo da histórica Diamantina.

5º Caminho – Na rota dos “Grandes Sertões” de Rosa e Manuelzão e por onde já passaram trens, gado e diamantes Se comparado com os anteriores, esse é um caminho que abrange espaços bem maiores. Estamos indo em direção ao centro norte mineiro, de menor densidade demográfica, passando pelo seu coração curvelano e seguindo o traçado das antigas ferrovias que hoje dão lugar a rodovias. A partir da região de Cordisburgo, Araçaí, Jequitibá e Santana do Pirapama começamos a percorrer espaços familiares, uma vez que todos foram exaustivamente esquadrinhados pelos personagens de Guimarães Rosa. A não ser pela condição

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Fotografias: Alfeu Trancoso.

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Fotografia: Cuia GuimarĂŁes.

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sui generis de Cordisburgo, berço de Rosa e de Maquiné, estamos diante de cidades, povoados e paisagens ainda pouco explorados em termos de um turismo convencional. O trade turístico não inclui o sertão mineiro, nem sua porta de entrada, como área propensa ao turismo receptivo. Se por um lado isso se deva à precária infra-estrutura de serviços da região, por outro isto permite que se planeje e se conceba um modelo de valorização turística diferenciado, que leve em conta a grande sustentabilidade cultural, histórica e sócio-econômica da região. Guimarães Rosa e Manuelzão são seus grandes guias, o Morro da Garça, parada obrigatória, a grande sentinela, e o Rio das Velhas o grande eixo de penetração nesse universo mágico onde se misturam literatura, velhos costumes, boa cachaça, lendas e histórias, serras e cerrados. Quem vai para Diamantina, depois de passar por Curvelo e Inimutaba, e de cruzar o Velhas e o Paraúna em Presidente Juscelino, irá perceber um magnífico mar montanhoso quando vence a última curva da subida do Espinhaço. Quem volta de Diamantina e resolve “cortar” por Conselheiro Mata, Rodeador, Monjolos e Santo Hipólito, irá descobrir vários trechos da antiga ferrovia que ligava Corinto ao Tejuco, belíssimas e pouco freqüentadas escarpas do Espinhaço, grutas, cachoeiras, o vale do Rio Pardo e mais uma vez o próprio Velhas, agora mais encorpado, sob a bela ponte de ferro de Santo Hipólito. Corinto continua como encruzilhada, só que hoje rodoviária, e é de lá que se parte para penetrar no vale do Curimataí, que reserva surpresas agradáveis em Augusto de Lima, Buenópolis e na pequena Curimataí, no sopé da Serra do Espinhaço, no limite nordeste da bacia do Rio das Velhas. De Corinto parte-se também em direção ao São Francisco, etapa final do nosso capítulo. Lassance e Várzea da Palma, últimas estações da ferrovia de Pirapora, testemunharam a descoberta da Doença de Chagas pelo grande pesquisador, isso no início do século XX. São também municípios que se abrigam à sombra da Serra do Cabral, último divortium aquarum da margem direita do Velhas. Trata-se de uma serra que ainda está para ser incluída em roteiros turísticos, dado seu potencial natural e arqueológico, mas que vem sofrendo pressões de desmatamento e utilização predatória de seus recursos naturais, o que pode vir a comprometer seu patrimônio natural. O Velhas segue em direção ao São Francisco onde não deságua, apenas toma a sua benção. A ele se junta para agora penetrarem ainda mais fundo no sertão brasileiro. Tal união não poderia se dar em lugar mais adequado do que sob a sombra da magnífica gameleira que repousa sobre as ruínas da igreja de Barra do Guaicuí. E aqui é Rosa quem nos empresta um epílogo: . . . A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga (. . .) — donde de tudo surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do mais longe, quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo nostalgir-se, a melancolia que coerce, que vem de níveis profundos.

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Algo a ser descoberto e revelado por e para nós, turistas, mineiros ou não, que somos. As perspectivas para o desenvolvimento de um turismo sustentável no futuro serão melhores se conhecermos um pouco mais o estado atual, e as razões de alteração e comprometimento ambiental da bacia do Rio das Velhas. O trade turístico deve estar atento a esse quadro e trabalhar no sentido de contribuir para a reversão da precariedade da infra-estrutura do turismo receptivo em toda a bacia. Em algumas regiões o receptivo está melhor estruturado, como no alto e médio Rio das Velhas, em outras muita coisa ainda está por ser feita. Contribuir para esse conhecimento, por qualquer que seja o veículo de educação e interpretação ambiental utilizado, é uma das razões para esta proposta de elaboração de caminhos temáticos. Existem, no âmbito da bacia do Velhas, exemplos práticos que indiquem para novas possibilidades de desenvolvimento do turismo no espaço rural que vão muito além do que convencionalmente denominou-se turismo rural e ecoturismo, ou turismo histórico e cultural. Mais do que tentar nomear segmentos de turismo, tenta-se colocar em prática projetos de turismo sustentável que levem em consideração, antes de mais nada, o ser humano e sua ecologia interior. Qualquer que seja a destinação, uma atitude turística sustentável, principalmente em termos de precaução e responsabilidade, deve permear a pessoa que vai empreender a viagem. Imaginemos turistas assim, “sustentáveis”, esquadrinhando a bacia do Rio das Velhas, e então teremos motivos para acreditar que novos esforços serão somados para a revitalização de seu combalido leito.

Fotografia: Cuia Guimarães.

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Fotografia: Rogério Sepúlveda.


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Abstract

New paths for tourism In this chapter, we perceive the Velhas River, synthesis of the state, as a circuit in itself. Not a circuit in the touristy sense, but in a more ample sense, which includes the utilization of its human, landscape, cultural, historic and economic richness. This perspective of tourist potential cannot be perceived and conceived in a linear fashion, as if we were to follow a predetermined outline. Our outline, more than geographic, goes beyond physical dimension because it also considers prehistory, history, economic cycles, development models and also cultural and literary manifestations. In this sense, some paths along The Velhas River Basin are suggested, paths that approach us to The Manuelzão Project’s thematic axis. Issues related to environmental and health conditions can and should permeate the proposed paths, seeking the attention of those who experience them in the sense that they are not only partners but also active citizens in the process of rescuing the river basin’s environmental quality. The idea was to try to cover the whole river basin area, including different themes connected to five of its sub regions according to historic, landscape, cultural and economic characteristics. Themes that stretch from the early occupation of Minas Gerais to the present model of occupation are approached. Other themes focus on the original landscape features and their destruction. Therefore, the rich landscape / human / economic / historic mosaic is taken advantage of and shown, as it represents a synthesis of everything that went on and still happens in the environment of Minas Gerais because of our space occupation model. The five suggested paths are: (1) The Velhas River’s springs: an occupation model defined by the search for mineral richness, from gold to iron; (2) The great urban stain of Minas Gerais’ capitol: Treating and mistreating the river; (3) From old occupations that left a mark to a marking occupation model; (4) The Cipó River Basin as a tourist destination and biodiversity repository; (5) Trailing Rosa’s and Manuelzão’s "Grandes Sertões" (great country dry lands) and where trains, cattle and diamonds used to pass.


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Vapor “Joazeiro”, da Empreza Viação do São Francisco, no porto de Januária, Estado de Minas Gerais. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

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Editor Executivo da Revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo


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32 O Velhas e o Velho Chico: irmĂŁos para sempre unidos Marco AntĂ´nio Tavares Coelho 1


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“... o que mais falta no semi-árido do Nordeste brasileiro não é água, mas determinado padrão cultural que agregue confiança e melhore a eficiência das organizações públicas e privadas envolvidas no negócio da água”. Aldo Rebouças

A luta pela recuperação do Rio das Velhas, impulsionada pelo Projeto Manuelzão, tornou-se referência nacional para todos que desejam que o relacionamento da sociedade brasileira com a natureza seja baseado em novos princípios. A repercussão desse Projeto provém do fato de ele refletir um sentimento arraigado na população mineira e também porque se fundamenta em teses corretas a respeito dos nossos rios. Como nos últimos meses dediquei-me ao trabalho de examinar estudos e documentos sobre o São Francisco, um dado evidenciou-se com nitidez — a existência de massa espantosa de informações, livros, pesquisas e propostas a respeito do Velho Chico. O que contrasta com a precariedade dos materiais sobre as outras bacias hidrográficas brasileiras, inclusive a do Amazonas. Algumas razões explicam esse enorme interesse pelo São Francisco e a prioridade que foi dada à análise da sua bacia. Além de cruzar o Centro do Brasil, passando por cinco unidades da Federação, ele foi um dos caminhos para a descoberta e a devassa do interior do país. Há mais de quatro séculos, ele é visto por milhões de pessoas como uma peça sempre presente no imaginário de cada um. Por isso, transformaram-no num ente querido — o Velho Chico, palco e herói que motiva poetas e cantores, romancistas e narradores de histórias. Em conseqüência, desde os primeiros tempos da colonização, começaram a surgir informações sobre o curso do São Francisco. Muitas delas eram suposições absurdas, que partiam de fragmentos de notícias colhidas entre os primitivos habitantes destas terras. Por isso, os primeiros mapas do país indicavam que o São Francisco nascia num imenso lago. Lenda resultante da idéia de que os rios que corriam para o norte e os que, ao contrário, corriam para o sul, certamente tinham uma única nascente.

Encontro dos rios São Francisco e Velhas. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

Aos poucos, com as entradas e bandeiras, empreendidas pelos colonizadores, dados mais consistentes foram delineando a geografia da colônia. No século XIX, a partir da Independência, as autoridades imperiais mobilizaram cientistas e técnicos para pesquisar a bacia do São Francisco, pois tinham interesse em usá-la como caminho para se chegar a diversas regiões do território. Por tal razão, os governantes patrocinaram várias iniciativas com o

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propósito de se conhecer melhor o vale do São Francisco. Exemplos: a expedição do engenheiro Henrique Guilherme Halfeld (1852/1858), o levantamento do engenheiro E. de la Martinière (1854/1855); as pesquisas do astrônomo e geólogo Emmanuel Liais (1864) e as do engenheiro Carlos Krauss (1868). A chave de ouro dessas atividades exploratórias foi a expedição chefiada pelo engenheiro William Milnor Roberts, (1879/1880), em que participaram o famoso geólogo Orville A. Derby e nosso Teodoro Sampaio, que relatou em seu belo livro, recém-reeditado, os trabalhos de pesquisa desse grupo de cientistas. Cabe assinalar que os estudos procedidos nessa fase foram voltados sobretudo para examinar a possibilidade de se utilizar o São Francisco como hidrovia. Isto porque, antes da introdução no Brasil das estradas-de-ferro, o transporte pelo rio era uma necessidade vital. Um balanço dos estudos sobre o São Francisco indica que boa parte desse material está parcialmente desatualizado, embora algumas das velhas teses continuem válidas, conforme assinalarei mais adiante. Isso porque, naturalmente, com o passar dos tempos, muita água correu debaixo das pontes. Ademais, essa massa de juízos não reflete as grandes transformações ocorridas na bacia e não incorpora o avanço do conhecimento científico sobre as questões relacionadas com a problemática das águas e dos rios. Então, no panorama de hoje, em que sentido deve haver uma atualização no debate sobre o São Francisco? Em primeiro lugar, parece evidente não ter mais sentido a prioridade absoluta que era dada ao problema da navegação fluvial, porque ela passou a ser uma atividade restrita, complementar, de inegável utilidade apenas em trechos do Velho Chico e de um ou outro de seus afluentes.

Navio Rio Branco ancorado no porto de Pirapora, 1923. Arquivo Público Mineiro.

Páginas seguintes: A junção do Rio das Velhas com o Rio São Francisco. Desenho de James Wells, circa 1886.

Essa mudança sucedeu de forma generalizada no mundo, pois a navegação fluvial manteve sua competitividade apenas quando lida com grandes volumes de mercadorias de um mesmo padrão e, normalmente, de pequeno valor agregado (exemplos – minérios e grãos) e, principalmente, quando são conjugados sistemas diferenciados de transportes – fluvial, rodoviário e ferroviário. O panorama na Amazônia é diverso, pois ali a navegação fluvial apresenta características singulares e especiais, decorrentes da boa navegabilidade de seus rios e das dificuldades de nessa vastíssima região ser construída e conservada extensa malha de rodovias.

Os planos na era Kubitschek

Na segunda metade do século XIX e até a década de 1950 do século XX, os estudos sobre o São Francisco tinham como meta primor-

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dial a regularização do regime e o controle de suas águas, nos termos do Decreto federal 26.476, de 1949. De forma prioritária, considerava-se que o grande problema eram as enchentes que anualmente provocavam catástrofes em inúmeras cidades, assim como nas várzeas em que eram realizadas atividades produtivas. Proclamava-se que se deveria encontrar uma solução para as inundações porque representavam perda absurda de águas, que, “domadas”, seriam de extrema utilidade para melhorar a navegação fluvial, para irrigar áreas para a agricultura, além de constituírem em valor precioso na produção de energia elétrica. Este dado é indicado expressamente na Lei n. 541 que criou a Companhia do Vale do São Francisco (CVSF), órgão estatal destinado a aplicar o artigo 29 do Ato das Disposições Transitórias, da Constituição Federal de 1946, que obrigou o governo da União, durante vinte anos, a investir quantia não inferior a 1% das rendas tributárias num plano de aproveitamento das possibilidades econômicas do São Francisco e seus afluentes. Assim, a devastação, causada pela enchentes na bacia do São Francisco, era apresentada como o grande desafio a ser enfrentado pela engenharia nacional. A documentação sobre esta questão pode ser conferida no livro “O Vale do São Francisco”, de autoria do engenheiro Lucas Lopes (antigo secretário de Obras do governo mineiro e ministro da Fazenda na administração de Juscelino Kubitschek na presidência da República). O livro é a apresentação do “Plano de Obras de Recuperação Econômica do São Francisco”, elaborado por uma equipe composta por vários técnicos que tiveram poderosa influência nos altos escalões da República, especialmente na área relacionada com o setor elétrico. Entre essas figuras participaram nesse trabalho John Cotrim, principal executivo na montagem da hidrelétrica de Furnas; Mauro Thibau, organizador da Cemig e ex-ministro das Minas e Energia; o geólogo Djalma Guimarães, etc. (Nos anos 40 e 50 do século XX, a elite técnica que formulava as decisões sobre rios era composta quase exclusivamente por engenheiros e uns poucos geólogos e geógrafos. Naquela época, ainda não dispúnhamos de especialistas em diversas áreas das ciências naturais dedicadas ao estudos dos rios, das lagoas, de águas subterrâneas, de sua fauna e flora, de seu relacionamento com o meio ambiente, do clima etc.).

Barca nos estaleiros do Rio São Francisco, circa 1911. Fotografia: Raymundo Alves Pinto.

No arrazoado em que fundamentou seu plano, afirmou o engenheiro Lucas Lopes: “Formando uma equipe valiosa de técnicos (...) havíamos adquirido uma série de convicções que nos conduziria a destacar no Plano do São Francisco o problema que o engenheiro John Cotrim denominou, com precisão, de planejamento no setor do domínio da água”.

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E esclareceu esse entendimento: “Somente depois de um “domínio da água” será possível estabilizar-se a ocupação econômica da calha fluvial e desenvolver-se a produção, o comércio e a vida social. A eliminação das grandes enchentes é essencial para o progresso da vida urbana ou rural, nas margens do rio. (...) O domínio das enchentes eliminará a feição repulsiva à atividade humana que o rio adquire de quando em vez.” Hoje, quando todos clamam contra a diminuição das águas no São Francisco, pode parecer até estapafúrdia a prioridade da adoção de medidas contra enchentes. Mas tudo isso indica sobretudo como se alterou razoavelmente a problemática desse rio, uma vez que cresceu sensivelmente a necessidade de suas águas atenderem a uma demanda cada dia maior. Ao fazermos esse reparo, todavia cabe reconhecer que ainda hoje, em determinados trechos do São Francisco e de seus afluentes, as enchentes provocam sérios transtornos. Basta citar o caso de Raposos, no Rio das Velhas. Contudo, a construção das grandes represas – principalmente Três Marias e Sobradinho – regulou consideravelmente a vazão das águas do Velho Chico. A prioridade das medidas contra as enchentes, na época do governo Dutra (1946-1951), levou os técnicos a rechaçarem uma proposta que, se tivesse sido aceita naquela oportunidade, teria beneficiado sensivelmente o São Francisco, e resolveria alguns de seus problemas atuais.

Januária, inundada pela enchente do Rio São Francisco, em janeiro de 1926.

Esse episódio merece ser relembrado. Quando estava sendo projetada a hidrelétrica de Furnas, de conformidade com a proposta apresentada naquela época, haveria um desvio de parte das águas do Rio Grande (bacia do Paraná e do Prata) para o São Francisco, na região de Pium-í. Lucas Lopes, nesse livro, escreveu que seria fácil estabelecer tal ligação, construindo uma barragem no Rio Grande de apenas 10 metros de altura. E que as demais obras não seriam difíceis, acrescentando que comportas de regularização permitiriam limitar o desvio de águas a somente 180 metros cúbicos por segundo. Contudo, a comissão por ele presidida decidiu não aprovar o estabelecimento da ligação do São Francisco com a bacia do Rio Grande. Isto porque, na opinião de Lucas Lopes, o objetivo do Plano era realizar “obras de regularização do regime do São Francisco”, visando à “retenção das grandes enchentes”. E concluiu de forma bem mineira: “Sendo uma obra de custo elevado, que não poderia ser conduzida ao mesmo tempo que as barragens de regularização no próprio São Francisco, julgou-se conveniente adiar a sua execução para época posterior”.

Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

Resta tão somente comentar que nunca mais se intentou fazer essa interligação entre as bacias do São Francisco e do Rio Grande.

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No entanto, numa apreciação crítica a respeito daquela decisão do grupo de técnicos, presidido por Lucas Lopes, deve-se considerar que os biólogos, especialistas em peixes, como Paulo dos Santos Pompeu, hoje elogiam a resolução adotada em 1948, porque defendem a tese de ser nociva para a fauna aquática a livre comunicação entre bacias hidrográficas. Isto porque quase sempre leva à extinção de muitas espécies de peixes. Comprova este dado o fato de que a interligação das bacias hidrográficas na Europa, além de outros fatores, muito contribuiu para a pobreza e a pequena diversidade das espécies de peixes nos rios do velho continente.

O desvio de águas nas bacias

Em agosto de 2003, participei de um seminário internacional em Brasília, dedicado ao estudo do gerenciamento integrado do São Francisco, promovido pela Agência Nacional de Águas, contando com o apoio da OEA e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Os debates ali ocorridos demonstraram que um número considerável de organizações governamentais e não-governamentais estão impulsionando com seriedade e competência as atividades para assegurar a revitalização do São Francisco. Mas, constatei que ainda não estão bem divulgadas as lições mais recentes que resultam desse trabalho incansável de pesquisa para mudar o panorama dessa imensa bacia hidrográfica. Para um observador, que não está imerso diretamente no cotidiano dessa batalha em torno do grande rio, as discussões nesse seminário foram de relevância sobretudo porque assinalaram os problemas fundamentais do São Francisco nos dias atuais. Pude depreender, então, que no presente momento as questões principais são as seguintes: 1 - as propostas de desvio de águas do São Francisco para abastecer regiões setentrionais do semi-árido, assim como as teses para trazer para o Velho Chico um reforço de águas do Tocantins; 2 - o papel e a missão do Velho Chico, daqui para a frente; 3 - o desenvolvimento da região do São Francisco, tendo como prioridade melhorar a qualidade de vida das populações ribeirinhas. Naturalmente, ao se analisar esses três problemas, penso que ficarão delineados os aspectos mais gerais de uma estratégia de ação face às questões que dizem respeito ao Rio das Velhas. Há mais de 150 anos, debate-se em nosso país a tese do desvio de parte das águas do Velho Chico a fim de serem irrigadas regiões setentrionais do nordeste. O mais antigo desses projetos foi o elaborado em 1856, pela comissão chefiada pelo barão de Capanema. A partir de 1982, tiveram início estudos para o que impropriamente foi denominado de

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“transposição de águas”, do São Francisco. Para tanto, estudos foram efetuados por órgãos do governo federal, e por escritórios privados de consultoria, regiamente pagos por verbas oficiais. Desde então, recrudesceu a campanha para socorrer algumas regiões do semi-árido com água do Velho Chico. Com pequenas alterações, vários planos com esse propósito foram divulgados, motivando amplas polêmicas. Uma das propostas foi a articulada pelo ex-ministro da Integração Nacional, Aluísio Alves, projeto que recebeu forte apoio político no governo de Fernando Henrique Cardoso e grande respaldo no Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Mais de 60 milhões de reais foram gastos por órgãos públicos na preparação desses projetos de engenharia e nas atividades de marketing desse lobby. Em contrapartida, o projeto foi seriamente contestado por inúmeros setores sociais, notadamente em Minas Gerais e na Bahia, bem como em Sergipe e nas Alagoas, deixando a impressão de que esse repúdio resultou basicamente do fato de algumas unidades da Federação não concordarem em perder uma parcela das águas do São Francisco, enquanto outros estados seriam beneficiados. Embora esse fato tenha tido alguma influência no comportamento de determinadas forças políticas, a rejeição desse plano decorreu basicamente de exame cauteloso de seus pressupostos e de suas conseqüências. Essa opinião negativa fundamenta-se no entendimento de que a inclemência do clima precisa ser enfrentada com um conjunto de medidas que exigem a participação de todos que vivem na bacia hidrográfica, mobilizando-os para adotar procedimentos de “convivência” com as secas, e aprendendo a usar racionalmente a água. Essa análise foi sintetizada com rigor pelo engenheiro sanitarista João Bosco Senra, ao dizer: “Movimentos sociais, ONGs, igrejas e inúmeros técnicos da área de recursos hídricos, em contraponto ao eterno discurso “de que é preciso acabar com a seca” e à defesa de grandes obras para as empreiteiras, como é o caso atual da transposição do São Francisco, têm discutido e implementado ‘alternativas para a convivência com a seca’, que vão desde projetos de armazenagem de águas das chuvas captadas pelas calhas dos telhados até a construção de cisternas, a reorientação de plantios com culturas mais apropriadas para a região seca, a criação de animais que consomem menos água, a construção de barraginhas e as práticas de conservação do solo”. Os argumentos contrários a esse desvio de águas do São Francisco tornaram-se ainda mais convincentes quando se delineou a crise que determinou o racionamento da energia elétrica no país, dois anos atrás, em decorrência do baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas no nordeste e no sudeste do Brasil.

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Apesar dessa crítica cerrada, de forma surpreendente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva veio a público para declarar seu desejo de efetivar o projeto. E o vice-presidente da República, José de Alencar, assumiu o papel de coordenador da articulação de forças para concretizar esse plano. Depreende-se, então, que há uma mobilização de setores empresariais e políticos no sentido de levar o governo atual a impulsionar um plano que foi engavetado no final do governo de Fernando Henrique Cardoso. Para tanto, a proposta foi reformulada e muito mais ampliada, apresentando como novidade desviar-se também águas do Tocantins para o São Francisco, como divulgou recentemente a “Folha de S. Paulo”. Para atingir esse objetivo, estão sendo debatidas duas opções. Na primeira, cogita-se desviar, do Tocantins, águas que sairiam pelo Rio do Sono, cujo curso seria invertido; a seguir, após atravessar a área de Jalapão, as águas iriam para o São Francisco, usando alguns afluentes deste: Sapão, Preto e Grande. Na outra opção, a retirada de águas seria em Carolina, que passariam pelo Rio Balsas e pelo reservatório de Boa Esperança (no Paranaíba). Visivelmente, essa ampliação do projeto inicial teve em vista dar uma resposta aos que, com plena razão, enfatizam o dado da pequena vazão do São Francisco, já excessivamente sobrecarregado com a prebenda de gerar energia elétrica nas turbinas de suas usinas, além de ter pela frente a missão de ampliar a irrigação de lavouras na bacia do Velho Chico. No entanto, essa tese de se recorrer a uma parte das águas do Tocantins elevaria o custo desse empreendi_mento a mais de seis bilhões e meio de dólares. Simultaneamente, foram lançados pelo vice-presidente da República outros planos de irrigação de áreas do semi-árido, como se o país pudesse, com um golpe de mágica, enfrentar de imediato desafios colossais. Ademais, ao se lançar na missão de obter apoio de forças políticas para a “transposição de águas”, o vice-presidente da República encontrou pela frente a exigência do governador Aécio Neves, de Minas Gerais, de que esse desvio de águas só deve ser feito se o governo federal também se empenhar nas obras de revitalização do São Francisco. Assim, o presidente da República incluiu no elenco dos trabalhos mais esta questão. Entretanto, analistas advertem que esse anúncio poderá ficar na retórica, servindo apenas para amortecer as críticas dos governantes mineiros, tal e qual a cereja que enfeita o bolo intragável. Que conclusão pode ser extraída desse festival de anúncios sobre as verbas astronômicas que serão destinadas ao São Francisco e a essa “transposição de águas”? As pessoas que acompanham a realidade brasileira ficam espantadas, pois, das duas, uma: tudo isso não passa de foguetório de lobbystas ou, então, o governo decidiu acabar de vez com a política de estabilização monetária.

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Um outro aspecto é curioso e merece ser examinado. As especulações recentes, a propósito desses planos mirabolantes, até agora não foram acompanhadas de informações minuciosas sobre os indispensáveis projetos de engenharia. Assim, ganhou curso a suposição de que esse esforço de divulgação limita-se a tão só gerar um clima de expectativa favorável às realizações do governo. Isto porque o país está paralisado e a opinião pública reclama o atendimento de promessas formuladas na campanha eleitoral. Enfim, a pressão secular para irrigar áreas setentrionais do Nordeste, naturalmente decorre do fato de ser indispensável melhorar as condições de vida daqueles brasileiros que vivem numa região que sofre com a falta de chuvas. Face a tal calamidade, no entanto, evidencia-se que a solução que se pretende dar a essa questão é muito discutível e não pode ser decidida de forma apressada, sem uma ampla discussão com os especialistas e, principalmente, com a população que será diretamente afetada por esse empreendimento. Por isso, é imprescindível suscitar esse tema no Congresso Nacional, mesmo porque qualquer decisão sobre o São Francisco demanda pesados investimentos da nação brasileira. Ademais, é essencial a abertura de amplo debate no Comitê da Bacia do São Francisco, pois a ele caberá dirimir a polêmica. Igualmente, corresponde ao Comitê da Bacia do Rio das Velhas um papel relevante nessa discussão, mesmo porque o Projeto Manuelzão mobiliza setores influentes em Minas Gerais, em razão de sua luta de vários anos em defesa do mais importante afluente do São Francisco. E parece claro que, se porventura for resolvida essa “transposição de águas”, haverá inevitáveis conseqüências para o Rio das Velhas. Por exemplo: de um lado, em Minas Gerais aumentarão as dificuldades para a irrigação de lavouras; simultaneamente, no mesmo estado se multiplicarão as pressões para a construção de novas barragens, a fim de ser ampliada a potência das hidrelétricas localizadas no Alto São Francisco.

A dupla missão do Velho Chico

Páginas seguintes: Pirapora, ponte da estrada de ferro sobre o Rio São Francisco. Arquivo Público Mineiro.

Na vida brasileira, o interesse e a preocupação com o Rio São Francisco sofrem altos e baixos. Desde a segunda metade do século dezesseis, os colonizadores estudaram o rio, pois ele abria as portas para a conquista do território. O mesmo aconteceu no século seguinte, quando a pecuária foi se estendendo pelo interior e o São Francisco virou o “rio dos currais”. No inicio do século XVIII, marcado por aquele esplendor da descoberta de ouro e diamantes, coube ao rio a missão básica de encaminhar alimentos indispensáveis para a labuta nas minas.

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Durante boa parte do século XIX, o São Francisco ficou meio esquecido, desprezado, até que no Segundo Império iniciativas foram tomadas para a navegação no rio dar novo alento à região. Na primeira metade do século vinte, viveu-se a belle époque das barcas e vapores no São Francisco, fazendo o percurso Pirapora a Juazeiro. Logo a seguir, começou a era do caminhão e das rodovias, indicando que o interesse pelo “rio da unidade nacional” iria desaparecer de forma total e irremediável. Mas um dado novo mudou o curso das coisas. Ao se chegar à década de cinqüenta do século passado, impulsionou-se no país o processo de eletrificação, iniciado anteriormente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em cinco décadas foram montadas 20 usinas no São Francisco, com a potência instalada de 10.500 MW. Portanto, deu-se ao rio a responsabilidade fundamental de acionar as turbinas dessas hidrelétricas. No entanto, nos últimos anos teve início uma nova etapa na agropecuária com a irrigação das lavouras. Dois exemplos demonstram o êxito obtido nessas atividades: a dinâmica produção de frutas em Juazeiro-Petrolina e a produção de grãos na região de Barreiras, no oeste da Bahia. “O Vale do São Francisco, entre Pirapora e Xingó, incorporou 260 mil hectares irrigados.” É avaliada em 200 metros cúbicos por segundo a demanda atual de água para consumo na irrigação e no abastecimento das cidades. No prazo máximo de dez anos esse consumo será de 280 metros cúbicos por segundo, dos quais 70% serão usados na irrigação. Essas transformações indicam que daqui para frente teremos um insolúvel conflito entre as duas funções atribuídas ao grande rio. Durante algum tempo soluções conciliatórias devem e podem ser tentadas, como as que estão colocadas no relatório preparado pela Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas - Fundespa, visando a amenizar esse confronto de interesses. De um lado, sugere-se a tomada de providências para economizar água no processo de irrigação. (Quanto a isso, convém salientar, a melhor solução é a cobrança pelo consumo de água.) Também deverão ser equacionadas várias mudanças nas práticas da agropecuária, como o uso de equipamentos e procedimentos que evitem o desperdício de água. Além disso, como vem insistindo o prof. Aldo Rebouças, no semi-árido o problema diz respeito também à escolha dos vegetais a serem cultivados, pois uns consomem mais água do que outros. Por isso, esse professor da USP comenta que no semi-árido “são um problema ambiental e uma burrice econômica” as culturas de cana-de-açúcar, arroz, algodão, milho e feijão. Em contrapartida, medidas também devem ser tomadas para ampliar a geração de energia elétrica usando a força dos ventos, ou termo-

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elétricas, na base da utilização de biomassa, diversificando assim nossa matriz energética. O que precisa ficar claro, então, é que nos altos escalões do governo federal não predominarão mais as soluções impostas pelo setor elétrico. Doravante, a opinião majoritária do país certamente apoiará os que pretendem incrementar a irrigação das lavouras, uma vez que nisso reside um dos fatores para o desenvolvimento sustentável da região sanfranciscana. Em resumo, a médio prazo se tornará evidente a impossibilidade do aumento da produção das hidrelétricas no São Francisco. Os dados são irrefutáveis. Lê-se no plano para a recuperação desse rio, elaborado pela Fundespa, que nas “condições atuais de operação do parque energético nacional, cada metro cúbico de água desviado para consumo deixará de produzir 2,7 MW médios de energia.”

Prioridade absoluta para a gente ribeirinha

A população total da bacia atualmente é estimada em cerca de 15 milhões de brasileiras e brasileiros. São pouco mais de 10 milhões se forem excluídos os que vivem na região metropolitana de Belo Horizonte. Na área marginal ao rio a população supera os seis milhões de habitantes, dos quais 20% vivem da agricultura. O semi-árido é uma região de graves distorções sociais e econômicas; um número considerável de famílias sobrevive com os benefícios do INSS e na base de uma precária e inadequada gricultura familiar. Assim, nas margens do São Francisco, a renda média anual não supera quinhentos dólares e milhões de pessoas não têm condições de atingir melhores níveis de sobrevivência. Por isso, a sociedade brasileira deve dar prioridade absoluta à melhoria radical da qualidade de vida da população ribeirinha. Pois, apesar de viver ao lado do grande rio, não dispõe de saneamento básico, sofre com as deficiências no abastecimento de água e com a precariedade do sistema educacional e de saúde. A maioria não sabe usar a água de modo racional e não observa os mínimos padrões de higiene. Em sendo assim, o projeto de revitalização do São Francisco, inclusive nas áreas mais pobres da bacia do Rio das Velhas, deve contemplar ações que direta ou indiretamente contribuam para enfrentar questões vitais para essa gente sofrida e abandonada. Por essa razão, no relatório do senador Waldeck Ornelas foi defendida a tese da “expansão da agricultura irrigada em toda a bacia, por sua elevada capacidade de gerar oportunidades de emprego para a mão-de-obra local.” Os órgãos governamentais, portanto, “devem incentivar o estabelecimento de projetos voltados para os pequenos produtores rurais, junto aos pólos da agricultura empresarial.”

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Então, qualquer projeto relacionado com a bacia hidrográfica do São Francisco não pode, de modo algum, limitar-se aos aspectos estritamente ambientais, pois devem contemplar ações que, direta ou indiretamente, contribuam para a superação desse panorama social. “Além disso, é consensual a noção de que a defesa do meio ambiente torna-se extremamente problemática quando a quase totalidade da população vive em condições de exclusão social”. Igualmente, a sociedade e o poder público devem dar atenção especial aos milhares de trabalhadores que sustentam suas famílias com a pesca, no São Francisco e em seus afluentes, nas represas e nas áreas próximas à foz no oceano. Ademais, é de fundamental importância um apoio efetivo aos trabalhadores e a suas entidades para que impulsionem os empreendimentos de aqüicultura ao longo do Velho Chico. Enfim, de uma forma concreta e inovadora, as ações voltadas para a recuperação do Rio das Velhas e do São Francisco agora se interpenetram e se irmanam no Programa Fome Zero.

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Pirapora, recepção ao Presidente Mello Vianna no porto fluvial do Rio São Francisco, 1925. Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

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Em 1852, Millard Fillmore, presidente dos Estados Unidos, enviou a Seattle, chefe das tribos Dwamish, uma proposta de compra das terras dos índios. Recebeu a seguinte resposta: “A água brilhante que se move nos rios e riachos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se lhe vendermos nossa terra, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias na vida de meu povo. O murmúrio da água é a voz do pai do meu pai. Os rios são nossos irmãos. Eles saciam a nossa sede, conduzem nossas canoas e alimentam os nossos filhos. Assim, é preciso dedicar aos rios a mesma bondade que se dedicaria a um irmão”.

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Bibliografia

COELHO, Marco Antônio Tavares. Rio das Velhas: memória e desafios. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 186 p. ESTUDOS Avançados, n. 29, São Paulo, 1997. FOLHA de S. Paulo, 4/8/2003. LOPES, Lucas. O Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras Públicas, 1948. PLANO Piloto de Revitalização do Rio São Francisco. Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas, 2002. RELATÓRIO Final da Comissão de Acompanhamento do Projeto de Revitalização do Rio São Francisco. Brasília: Senado Federal, 2002. SENRA, João Bosco. O desafio da sustentabilidade. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

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Abstract

The Velhas River and Old Chico River: brothers united forever The case of the Velhas River is closely related to the battle involving issues that affect the São Francisco River. Our analysis should be reexamined to verify if it is up-to-date. At the present moment, there are three fundamental problems. 1 – The controversial and poorly based proposal of “transposition of water” from the São Francisco, with the objective of supplying parts of the Brazilian northeast region and the possibility of involving the Tocantins River. 2 – The conflict over the great river’s water usage; up until now the generation of electric energy has been prioritized, but from now on it is also necessary to amplify crop irrigation. 3 – Any project with the goal of revitalizing the Velhas River and the São Francisco River basin group should have as a priority the radical modification of the riverside population’s life quality, assuring the self sustained development of the sanfranciscan region.


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O Projeto Manuelzão da Universidade Federal de Minas Gerais agradece o apoio político e o co-patrocínio da expedição e deste livro ao Governo do Estado de Minas Gerais, prefeituras da bacia do Rio das Velhas, escolas estaduais e municipais, comitês Manuelzão, empresas privadas, meios de comunicação e a todos os amigos do Projeto, que por diversas formas tornaram possível este momento da nossa história.

PATROCÍNIO

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