Revista Chico nº 08

Page 1

Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 08 | MAI 2016 ISSN 2316-7661


2

I MAG E M


Por do sol sobre o trecho do Velho Chico que banha a cidade baiana de Xique-Xique. O barquinho é símbolo do comércio fluvial que ainda sobrevive, num leva-e-traz de mercadorias e passageiros entre as cidades ribeirinhas da região. Foto: André Frutuoso


Revista Chico Publicação semestral do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Nº 08 | MAI 2016 ISSN 2316-7661

Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Presidente Anivaldo de Miranda Pinto Vice-Presidente Wagner Soares Costa Secretário José Maciel Nunes de Oliveira Coordenador da CCR do Alto Márcio Tadeu Pedrosa CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL BAIXO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL ALTO SÃO FRANCISCO

Coordenador da CCR do Médio Cláudio Pereira da Silva Coordenador da CCR do Submédio Manoel Uilton dos Santos (Tuxá) Coordenador da CCR do Baixo Melchior Carlos do Nascimento

Agencia de Bacia AGB PEIXE VIVO Diretora-geral Célia Maria Brandão Fróes Diretora de Integração Ana Cristina da Silveira Diretor Técnico Alberto Simon Schvartzman Diretora de Administração e Finanças Berenice Coutinho Malheiros dos Santos

Produzido pela Yayá Comunicação Integrada

Ilustração Rodolfo Carvalho Elena Landinez

Coordenação geral Malu Follador

Fotografia André Frutuoso João Zinclair Tiago Sampaio Regina Lima Diego Macena Ivan Cruz

Coordenação editorial e edição de texto José Antônio Moreno Reportagem André Santana Delane Barros Fred Burgos José Antônio Moreno Joyce de Sousa Ricardo Follador Wilton Mercês

Projeto gráfico, editoração e ilustração da capa Jorge Martins

Artigos George Olavo

Impressão Gráfica Santa Bárbara

Revisão Rita Canário

Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBHSF Contrato nº 07/2012 - Contrato de Gestão nº 014/ANA/2010 - Ato Convocatório nº 043/2011. Direitos reservados. Permitido o uso das informações, desde que citando a fonte.

CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL MÉDIO SÃO FRANCISCO

Carrancas protestam com arte CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO

A

s carrancas continuam indignadas com o que acontece com o rio São Francisco. Assim, elas voltam a ser o mote de mais uma campanha pelo Dia Nacional em Defesa do Velho Chico. Organizada pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, a campanha entra em sua terceira edição mobilizando os mais variados segmentos sociais para a importância do envolvimento de todos na recuperação do rio, seus afluentes e os variados recursos naturais que fazem a beleza da bacia. A revista explica como será a campanha deste ano, que mantém o slogan “Eu Viro Carranca para Defender o Velho Chico”, promovendo o diálogo da carranca com diversas linguagens artísticas. Outro tema igualmente importante diz respeito às barragens de rejeitos de mineração e resíduos industriais existentes na bacia do rio São Francisco. A preocupação se fez mais concreta desde que, no ano passado, a mineradora Samarco, em Minas Gerais, causou o mais grave acidente ambiental do País, gerando um cenário de destruição e mortes. Seria diferente se algo assim acontecesse no território do Velho Chico? Ainda como destaque, esta edição traz uma matéria sobre os bastidores do I Simpósio da Bacia do São Francisco, uma iniciativa do CBHSF e seus vários parceiros que procura revelar o que a Academia tem feito e/ou planeja fazer quanto ao estudo de questões relacionadas com o Velho Chico. Previsto para o mês de junho, o evento reunirá em Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) professores e pesquisadores de todas as universidades públicas e privadas do território são-franciscano. Outro assunto abordado pela Chico é a experiência bem-sucedida de trabalhadores rurais do Sertão pernambucano. Liderados por uma entidade ligada ao Assentamento Mandacaru, localizado próximo a Petrolina, eles desenvolveram um projeto de agroecologia que preza não só pela qualidade orgânica dos alimentos produzidos (entre frutas, verduras e hortaliças), mas também pela sustentabilidade dos moradores locais, preocupando-se com economia doméstica, trabalho, renda e, sobretudo, com a autoestima de toda a comunidade. Boa leitura!


06 11 15 ENTREVISTA: ANIVALDO MIRANDA

ENSAIO: DEVOÇÃO ÀS ALMAS ALMANAQUE: CANINDÉ DE SÃO FRANCISCO

Sumário RIO DA INTEGRAÇÃO ACADÊMICA

SINAL DE ALERTA: BARRAGENS

06

CONFLITOS: QUESTÃO DE BOM SENSO

17 19 15 24

26 29 33 35 3740 42 SANEAMENTO: DE COSTAS PARA O RIO

LAPÃO: CIDADE AMEAÇADA

A ARTE DE VIRAR CARRANCA

OLIMPÍADAS FRANCISCANAS

19

ECOLOGICAMENTE CORRETAS

NA ROTA

SERES DO SÃO FRANCISCO: PIRANHA

33 5


CONH E C IME N TO

FOTO: SHUTTERSTOCK.COM

Entre as instituições de ensino superior brasileiras, há trabalhos considerados muito ricos, tanto em universidades públicas quanto privadas, em praticamente todos os estados da bacia, além do Distrito Federal.

6


Rio da Integração acadêmica O RIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL AGORA TAMBÉM É O RIO DA INTEGRAÇÃO ACADÊMICA. AS PESQUISAS SOBRE O SÃO FRANCISCO VÃO ALÉM DA DIVISA DOS CINCO ESTADOS QUE ABRANGEM SUA BACIA HIDROGRÁFICA (MINAS GERAIS, BAHIA, PERNAMBUCO, ALAGOAS E SERGIPE) E ALCANÇAM A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DE OUTRAS REGIÕES E PAÍSES, AVANÇANDO FRONTEIRAS, AO DESPERTAR O INTERESSE DE INSTITUIÇÕES ESPANHOLAS E ALEMÃS, POR EXEMPLO. NOS DIVERSOS SOTAQUES DAS APRESENTAÇÕES, UM SÓ PROPÓSITO: A PRESERVAÇÃO DO VELHO CHICO. ASSIM, O APELIDO CARINHOSO DADO PELA POPULAÇÃO RIBEIRINHA, GRANDE PARTE SEM INSTRUÇÃO, PASSOU A SER TRATAMENTO CADA VEZ MAIS ADOTADO, COM TODA REVERÊNCIA, POR MESTRES E DOUTORES RENOMADOS DE IMPORTANTES UNIVERSIDADES. AGORA, POR MEIO DE UM FÓRUM DE PESQUISADORES, ELES BUSCAM DESCOBRIR E COMPARTILHAR VALIOSOS CONHECIMENTOS, UNIDOS PELA CAUSA EM FAVOR DO RIO. TEXTO: JOYCE DE SOUSA

N

ão há ainda, oficialmente, registros de qual teria sido a primeira pesquisa acadêmica feita por brasileiros sobre o São Francisco, desde a sua descoberta, em 1501, pelo desbravador genovês Américo Vespúcio. Sabe-se, entretanto, que dentre os primeiros estudos para seu aproveitamento destacam-se, pela abrangência e pelo rigor técnico, dois trabalhos elaborados durante o Império,em 1852 e 1855, respectivamente, pelos engenheiros Emmanuel Liais (francês) e Henrique Halfeld (alemão). Contratadas pelo Imperador Dom Pedro II e pelo Governo Imperial, ambas as pesquisas tinham como foco a navegação. Se, por um lado, não há informações precisas de quando os acadêmicos brasileiros passaram a se interessar pelo rio que une as regiões Sudeste e Nordeste, tampouco se sabe hoje, precisamente, quantas pesquisas estão sendo realizadas pelas diversas universidades do País. O que não se tem dúvidas, entretanto, é quanto ao significativo volume e, sobretudo, à importância do conjunto desses estudos para as decisões acerca do rio, abrangendo não somente questões relativas à gestão dos já escassos recursos hídricos da bacia, mas todos os aspectos socioculturais envolvidos. “Mapear esses trabalhos tão ricos para o conhecimento sobre a bacia hidrográfica do rio São Francisco tem sido um grande desafio, até pelas múltiplas vertentes possíveis para os estudos em diversos subtemas. Nosso objetivo agora é tentar envolver o máximo possível de pesquisadores nessa missão, valorizando todos os trabalhos em suas áreas”, diz a professora Yvonilde Medeiros, doutora do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Com o tema “Avaliação dos Impactos Hidrológicos da Implantação do Hidrograma Ambiental do Baixo Trecho do Rio São Francisco”, a mais recente pesquisa coordenada por ela conclui, por exemplo, que a prática da vazão mínima, adotada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), significa, de fato, a morte para o meio ambiente.

LABORATÓRIO NATURAL Os estudos coordenados pela professora da Ufba, em parceria com a pesquisadora Andrea Fontes, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), ainda revelaram, a partir de dados comprovados, que bastaria o manejo das águas liberadas pelos barramentos para garantir a reprodução das espécies e incrementar a diversidade do bioma local. As informações preciosas do trabalho das pesquisadoras, que há anos têm AQUÍFERO URUCUIA

no Velho Chico a fonte de seus estudos, hoje já não se limitam ao universo acadêmico. Ao contrário, as conclusões foram apresentadas oficialmente ao Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) e atualmente colaboram na fundamentação de importantes posicionamentos e decisões do colegiado, que tem por finalidade realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia, contribuindo para o seu desenvolvimento sustentável. Assim como as professoras Yvonilde e Andrea, milhares de pesquisadores têm encontrado no rio São Francisco um amplo laboratório para suas pesquisas. “Trata-se de um caso de estudo, cujas características naturais e problemas enfrentados em decorrência das mudanças climáticas e da ação do homem extrapolam as fronteiras da bacia”, frisa Andrea Fontes. A pesquisadora cita o exemplo do Projeto Innovate, que reuniu 19 doutorandos alemães e 20 brasileiros, fruto da parceria entre a Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) e o Ministério de Educação Superior e Pesquisa da Alemanha. O foco do estudo: A piscicultura e a recuperação de solos degradados na região do Submédio São Francisco. Do mesmo modo, pesquisadores espanhóis firmaram convênio com a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) para trabalhos referentes à aquicultura no Baixio do Salitre. Entre as instituições de ensino superior brasileiras, há trabalhos considerados muito ricos, tanto em universidades públicas quanto privadas, em praticamente todos os estados, além do Distrito Federal. Mesmo fora da área da bacia do rio, a Universidade de São Paulo (USP) se destacava até pouco tempo atrás como a instituição que mais reunia pesquisas sobre o São Francisco. “Um reflexo também da maior quantidade de recursos para a área, destinados a instituições do Sudeste; um cenário que vem mudando, graças à consolidação da qualidade dos trabalhos realizados por instituições de outras regiões, sobretudo as universidades dos estados que abrangem a bacia”, frisa a professora e também coordenadora técnico-científica do I Simpósio da Bacia Hidrográfica do São Francisco, evento que vai reunir, em junho, pesquisadores de todo o Brasil que desenvolvem trabalhos sobre o rio.

SEM “PREGAR NO DESERTO” “O que sabemos, de fato, é que há muitas pesquisas com informações valiosas para a tomada de decisões acerca da gestão do uso da água, por exemplo, que podem estar escondidas numa biblioteca de uma universidade, dentre tantas esFLUXO DE ÁGUA DO AQUÍFERO PARA O RIO

7


CONH E C IM E N TO

FOTOS: ASCOM/UNIVASF

Pesquisadores da Univasf: “A ciência existe para levantar conhecimento e, a partir dele, fazer a sociedade progredir rumo ao futuro”

palhadas pelo Brasil, daí a importância de tentarmos conhecer onde estão esses trabalhos, assim como quem está pesquisando e com que periodicidade”, completa o professor doutor Renato Garcia Rodrigues, do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). “É por isso que a ciência existe: para levantar conhecimento e, a partir dele, fazer a sociedade progredir rumo ao futuro, e não para ficar pregando no deserto”, diz o professor. A Univasf será a anfitriã do inédito simpósio, que tem o professor Garcia Rodrigues como coordenador geral. Para Rodrigues, a própria criação da Univasf, que iniciou as atividades acadêmicas em 2004, vem colaborando para a valorização da pesquisa nas instituições situadas na área abrangida pela bacia. O “Monitoramento dos efeitos da integração da bacia do rio São Francisco sobre a comunidade vegetal no semiárido brasileiro” e a “Utilização de espécies vegetais nativas da Caatinga na contenção de taludes e cobertura vegetal em áreas degradadas no semiárido” estão entre os importantes trabalhos assinados e/ou coordenados pelo professor na Univasf – o segundo deles, realizado em parceria com o pesquisador José Alves de Siqueira Filho, também professor doutor atuante na mesma universidade. Sob a coordenação de Siqueira Filho, por exemplo, a pesquisa sobre a flora existente na Caatinga da área de influência do Programa de Integração do São Francisco – realizada pelo Centro de Referências em Recuperação de Áreas Degradadas (Crad Caatinga) da Univasf, contando com a parceria de 99 pesquisadores de outras 39 instituições – acabou ganhandoo primeiro lugar na categoria Ciências Naturais da 55ª edição do Prêmio Jabuti (2013),considerado o mais importante na esfera editorial do País. Para o professor, o trabalho, fruto de quatro anos de estudos, é apenas uma amostra de que é possível integrar conhecimentos comuns de pesquisadores com

Uma possibilidade futura seria desenvolver um repositório de conhecimento sobre a bacia hidrográfica do rio São Francisco, em todas as áreas do saber.

ÁREAS DE ESTUDO ACADÊMICO As pesquisas sobre os aquíferos Bambuí e Urucuia – considerados essenciais para o escoamento de base do rio São Francisco, sobretudo no período de seca, entre junho e setembro – estão, atualmente, entre as principais áreas de interesse do CBHSF. Os dois aquíferos também têm papel fundamental para as vazões que chegam ao reservatório de Sobradinho. “São estudos de grande importância no momento, diante da expansão das fronteiras agrícolas, com exploração intensiva desordenada nessas áreas”, ressalta Anivaldo Miranda. Ele acredita que as pesquisas podem traçar um diagnóstico sobre comportamento e capacidade de suporte, além de implantar modelos para o uso sustentável dos aquíferos. Ainda segundo Miranda, o tema é tão preocupante que a própria ANA vem patrocinando estudos relacionados aos aquíferos, em parceria com centros de pesquisa. O presidente do Comitê ressalta que os problemas enfrentados pela bacia são hoje objeto de estudos até internacionais, inseridos nos levantamentos feitos mundialmente acerca dos impactos advindos do aquecimento global. É o caso do Projeto Innovate, desenvolvido por pesquisadores alemães. “No caso do São Francisco, os impactos diretos no reservatório de Itaparica foram o objeto do projeto, com análise das questões relativas às vazões, além de estudos socioambientais na área de entorno do lago, incluindo levantamento das condições da população frente às adversidades de uma época de extremos climáticos”, explica Miranda. Em relação à qualidade das águas do rio, o CBHSF ainda destaca o grande interesse nas pesquisas permanentes relacionadas ao direcionamento da vazão. Os levantamentos realizados até então mostram que, devido à redução do fluxo natural da quantidade da água para atender ao setor hidroelétrico, diminui-se a ca-

8

ações conjuntas ou mesmo feitas de modo independente, mas que podem ser compartilhadas, visando à aplicação prática de seus resultados.

FÓRUM DE PESQUISADORES A tese da importância da radiografia acadêmica do São Francisco é hoje, oficialmente, defendida pelos pesquisadores das oito universidades dos estados que abrangem a bacia do rio, além do Distrito Federal. São as universidades federais de Alagoas (Ufal), Brasília (UnB), Bahia (Ufba), Minas Gerais (UFMG), Pernambuco (Ufpe), Sergipe (UFS), além do Vale do São Francisco (Univasf) e do Recôncavo da Bahia (UFRB). Em cada uma delas, pelo menos um pesquisador integra o Fórum Permanente de Pesquisadores de Instituições de Ensino Superior da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Instituído há menos de dois anos, o fórum é aberto e mantém-se vigilante para integrar todo e qualquer pesquisador, de qualquer estado ou país, que tenha trabalhos sobre o rio. De acordo com o professor doutor Antenor Aguiar Netto, da Universidade

pacidade de diluição da carga de poluentes, o que amplia a presença de microrganismos indesejáveis. Foi o que aconteceu no caso da mancha de microalgas e bactérias que apareceu entre Alagoas e Sergipe, com cerca de 35 quilômetros de extensão, em maio do ano passado. “Faz-se necessário, portanto, aprofundar os estudos nessa direção, porque seguramente não será a última vez que teremos fenômenos dessa ordem”, afirma Miranda. A salinização das águas na região da foz do rio, também por conta da redução da vazão, é outro objeto de estudo de pesquisadores, cujo acompanhamento é de grande interesse do Comitê. Neste caso, além do levantamento dos impactos sobre os lençóis subterrâneos e na saúde pública – obrigada a ingerir água com elevada concentração de sal, submetendo-se aos riscos de problemas cardiovasculares –, o desenvolvimento de pesquisas tecnológicas que possam minorar o fenômeno estão entre as expectativas do órgão.

REFERENDO DA CIÊNCIA Miranda ainda lista outros temas gerais que sempre interessam ao Comitê: erosão das margens, assoreamento, degradação da vegetação, influência dos agrotóxicos na bacia, além dos estudos sobre os biomas do Cerrado e da Caatinga, assim como sobre mudanças da matriz energética e potenciais para fontes alternativas, entre outros. “Agora mesmo, estamos entrando no ciclo de debates sobre as novas regras de operação dos reservatórios, que envolvem discussões complexas e que, sem o apoio da ciência, fica difícil chegar a bom termo”, diz o presidente do CBHSF, referindo-se à ideia defendida pelo Comitê para que a geração de energia hidroelétrica deixe de ter papel predominante em relação aos outros múltiplos usos. “São questões que, de forma geral, só podem ser solucionadas com base em conhecimentos científicos consistentes”, conclui.


Em 2013, uma expedição científica realizada do Baixo São Francisco até Piranhas fez levantamentos que foram posteriormente apresentados ao Comitê, à Agência Nacional de Águas (ANA) e ao setor hidroelétrico. Federal de Sergipe (UFS), as universidades que integram o fórum já vêm fazendo o levantamento de pesquisas concluídas e em andamento. “Entendemos, entretanto, que se trata de uma pequena amostra e que uma possibilidade futura seria desenvolver um repositório de conhecimento sobre a bacia, em todas as áreas do saber, partindo do pressuposto de que as pesquisas sobre o rio ou seus afluentes, bem como sua população e principais problemas, devem ser abundantes, mas que, por outro lado, urge a adoção de um mecanismo para organizá-las e, sobretudo, incentivá-las”, afirma o professor, que é um dos coordenadores do fórum. “A própria necessidade de criação do Fórum Permanente de Pesquisadores foi apontada a partir de uma pesquisa”. É o que explica outro integrante do fórum, o professor Melchior Carlos do Nascimento, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Coordenador da Câmara Consultiva do Baixo São Francisco, instância do CBHSF, Melchior Carlos conta que o próprio comitê e pesquisadores despertaram para uma maior integração entres as instâncias em defesa do rio, a partir dos bons resultados alcançados pela “Campanha de Avaliação das Mudanças Socioambientais Decorrentes da Regularização das Vazões no BaixoRio São Francisco”, realizada em 2013.

EXPEDIÇÃO CIENTÍFICA O trabalho, em caráter expedicionário, teve a participação de acadêmicos de cinco instituições, que também, à época, participavam do Comitê: além dele, pela Ufal, e do professor Antenor Aguiar (UFS), Marcos Poliano (UFMG), Avani Torres (Federal Rural de Pernambuco – UFRPE), Cássia Juliana (Ufba) e Luiz Carlos Fontes (também da UFS) integravam o grupo, que contou ainda com a participação de colaboradores da ONG Canoa de Toda. “Foram cinco dias de expedição, do Baixo São Francisco até Piranhas, fazendo levantamentos que foram posteriormente apresentados ao próprio Comitê, além da Agência Nacional de Águas (ANA) e ao setor hidroelétrico, num trabalho que evidenciou o drama das populações do entorno do rio, que são dependentes do vigor de suas águas e do amor que nutrem pelo Velho Chico”, conta Melchior Nascimento. “É revoltante constatar, por exemplo, que pessoas que moram às margens do rio precisam caminhar quilômetros para encontrar água potável, por conta da política de redução da vazão que se reflete na alta concentração de sal nas águas”, lamenta. Os resultados obtidos em pouco tempo pelos pesquisadores surpreenderam o Comitê e as instituições ligadas ao ONS. No anexo do relatório da campanha já se apresentava, à época, uma proposta de criação de um

SIMPÓSIO PROMOVE EXTENSÃO PRÁTICA Iniciativa do Fórum Permanente de Pesquisadores da Bacia do São Francisco, o I Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco já nasce com uma proposta inovadora: em vez da temática centrada em áreas do conhecimento, o evento parte de um recorte espacial, regional. O que significa que interessam todas as produções relativas à região e não apenas as relacionadas aos recursos s hídricos ou ambientais. As de âmbito socioculturais, inclusive, são muito importantes também. Outra diferença assinalada por seus organizadores é o objetivo de promover uma extensão prática de resultados, para a articulação perene dos pesquisadores, no sentido de que os trabalhos científicos possam auxiliar a gestão do uso das águas do rio, considerando sua importância para usuários e dependentes, em todos os aspectos. O evento está agendado para 5 a 9 de junho, nos municípios de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), que ficam às margens do rio. A cidade baiana vai sediar a parte técnica e a pernambucana, os eventos culturais. “É um simpósio amplo e que, diante das dificuldades de um universo tão grande de pesquisas, vai nos permitir lançar um banco de dados sobre os estudos, numa primeira grande radiografia da produção científica sobre o rio, não se limitando a uma integração superficial, apenas de troca de cartão entre participantes, mas se inserindo efetivamente na proposta permanente do fórum”, explica o coordenador do evento, professor Renato Garcia Rodrigues, da Univasf. “Será o primeiro e importante passo para chegarmos ao estado da arte do conhecimento científico do rio, partindo do princípio de que temos vasto material, porém disperso e, muitas vezes, sem uso prático”, diz Garcia Rodrigues.

CADASTRO DE TESES Diante do desafio, o ponto de partida foi escolher, dentre os pesquisadores do fórum, coordenadores de grupos nas universidades e estados onde atuam, buscando identificar trabalhos científicos sobre o rio, realizados desde 1996 até as pesquisasem andamento. “Foi criado um esforço técnico, a partir das instituições localizadas nos estados banhados pela bacia, como forma de fortalecer o protagonismo dessas instituições para as pesquisas sobre o São Francisco, fomentando as novas universidades nos estados da bacia para que também assumam o papel de atuação, considerando que informações dão conta de que muitas universidades de São Paulo têm até mais produções sobre o rio que as instituições locais”, ressalta o professor. A coordenação do evento também lançou um site do simpósio, com um espaço reservado para que os pesquisadores, mesmo aqueles que eventualmente não tenham como participar presencialmente, possam informar os trabalhos desenvolvidos sobre o rio, de 1996 a 2016. “Valem pesquisas, dissertações, monografias, relatórios técnicos, resumo de congressos, enfim, todo o material que nos permita ter um registro em determinada época, até como forma de avaliar os avanços ou retrocessos em determinados temas”, explica Garcia Rodrigues.

PROGRAMAÇÃO Após o esforço técnico de identificação e convocação de pesquisadores em todo o Brasil, assim como de estudiosos internacionais, o evento seguirá com os primeiros resultados revelados, conforme divulgação dos organizadores, depois da recepção aos participantes, no dia 5. No dia seguinte (6), ocorrerá a chamada etapa de nivelamento do público, com dissertações gerais sobre os cinco temas, “para que todos tenham uma ideia do que está sendo produzido”, como ressalta o coordenador do evento. Na mesma data, também serão realizadas palestras específicas sobre os temas, fechando com duas conferências: uma sobre as possíveis alterações climáticas e o cenário de diminuição da oferta de água no rio São Francisco, e a outra, que já se dará como mesa-redonda, para debater o fomento da pesquisa científica na bacia. No terceiro dia, 8 de junho, está prevista a discussão final, com apresentação da primeira radiografia da produção científica. O quarto e último dia (9) está reservado para as visitas técnicas à represa do Sobradinho, com programação incluindo lazer e vivência acerca dos usos do rio.

Universidade Federal do Vale do São Francisco será anfitriã do I SImpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

9


CONH E C IM E N TO

grupo de pesquisadores para atuar no rio. “A ideia foi bem acolhida pelo CBHSF, que, por sua vez, propôs a realização de uma reunião com a participação de universidades e com convite dirigido, inclusive, aos pró-reitores de extensão e pesquisa”, lembra o professor. A reunião se deu durante a segunda edição do Congresso Acadêmico Integrado de Inovação e Tecnologia (Caiite), realizado na Ufal, quando foi formalizada a criação do Fórum Permanente de Pesquisadores. Numa segunda reunião, em Salvador, a primeira após a instituição do fórum, os representantes permanentes indicados para sua composição decidiram pela realização do I Simpósio da Bacia Hidrográfica do São Francisco, que almeja fazer o primeiro levantamento das pesquisas realizadas e em andamento no rio, nos últimos 20 anos.

BOM PROVEITO Tanto o fórum quanto o simpósio contam com o apoio oficial do CBHSF. “Sabemos que as universidades federais e instituições privadas já têm todo um acervo com produções excelentes, mas muitas vezes trabalhando de forma isolada com temas superpostos”, diz o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, lembrando ainda os estudos na área, já desenvolvidos por outras instituições, como a própria ANA e as empresas de Pesquisa Energética (EPE), Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), além da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), secretarias de Meio Ambiente e Recursos Hídricos dos estados, companhias hidroelétricas estaduais e o próprio Comitê – no caso, com a elaboração, por exemplo, do Plano Decenal de Recursos Hídricos. “Tudo isso, de fato, é conhecimento, mas o que se pretende agora é melhor substanciar as decisões e os posicionamentos, a partir de uma maior aproximação da produção das instituições de ensino superior”, frisa. “O desafio é juntar esses esforços para socializar mais as conquistas e os avanços obtidos, inclusive, fortalecendo o intercâmbio em prol do Velho Chico, a partir de trabalhos já realizados, e estimulando novos estudos dirigidos de forma bem mais objetiva”, acredita Miranda. Segundo o presidente do CBHSF, ao apoiar oficialmente as duas iniciativas, o Comitê espera estimular pesquisadores e instituições de pesquisa a se conhecerem melhor, promovendo uma maior interação, com o objetivo de sensibilizá-las a ajudar o Comitê a resolver dilemas relativos à Bacia do São Francisco. Ele frisa que as próprias dimensões da bacia, populações e ecossistemas que dependem dela justificam por si só a união dos pesquisadores: “A Bacia do São Francisco representa 8% do território brasileiro, abrange seis estados e o Distrito Federal, além de responder por 70% dos recursos hídricos da Região Nordeste, onde se concentra o Semiárido, cujas adversidades climáticas, mesmo diante dos grandes avanços tecnológicos alcançados pela humanidade, ainda continuam sendo um grande desafio para a ciência”, conclui.

10

O que se pretende com o Simpósio é melhor substanciar as decisões e os posicionamentos, a partir de uma maior aproximação com a produção das instituições de ensino superior sediadas na bacia. TRABALHOS RECENTEMENTE CONCLUÍDOS OU EM FASE DE CONCLUSÃO

PROJETOS DE PESQUISA DESENVOLVIDOS NA BSF (ALGUNS TRABALHOS INTEGRADOS)

AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS HIDROLÓGICOS DA IMPLANTAÇÃO DO HIDROGRAMA AMBIENTAL DO BAIXO TRECHO DO RIO SÃO FRANCISCO Pesquisadoras: Yvonilde Medeiros / Coordenação (Ufba) Andrea Fontes (UFRB).

1999-2003 Projeto de Gerenciamento Integrado das Atividades Desenvolvidas em Terra na Bacia do São Francisco. Subprojeto: Plano de Gerenciamento Integrado da Bacia do Rio Salitre (Plangis).

MONITORAMENTO DOS EFEITOS DA INTEGRAÇÃO DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO SOBRE A COMUNIDADE VEGETAL NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO. Pesquisador: Renato Garcia Rodrigues (Univasf). UTILIZAÇÃO DE ESPÉCIES VEGETAIS NATIVAS DA CAATINGA NA CONTENÇÃO DE TALUDES E COBERTURA VEGETAL EM ÁREAS DEGRADADAS NO SEMIÁRIDO. Pesquisadores: Renato Garcia Rodrigues e José Alves Siqueira Filho (Univasf) ORDENAMENTO TERRITORIAL E VULNERABILIDADE NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO. Pesquisadora: Cynthia Canedo da Silva (UFV -MG) BIOPROSPECÇÃO DE MICROBIOTA EM SOLO DE SÍTIO ARQUEOLÓGICO DA VILA DE SANTO ANTÔNIO E BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO. Pesquisador: Adriana Cristina da Silva Nunes (Unir - RO) CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE DA COBERTURA E USO DA TERRA E SUAS IMPLICAÇÕES NA VULNERABILIDADE DA PAISAGEM DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO Pesquisador: Dorisvalder Dias Nunes (Unir - RO) IMPACTO DA IMPLANTAÇÃO DE PERÍMETROS IRRIGADOS NA QUALIDADE DAS ÁGUAS SUPERFICIAIS DA PORÇÃO MINEIRA DO MÉDIO SÃO FRANCISCO. Pesquisadora/orientadora: Sílvia Maria Alves Correa Oliveira (UFMG) A PESCA NOS MANGUEZAIS NO ESTUÁRIO DO RIO SÃO FRANCISCO: UMA ABORDAGEM SOCIOECOLÓGICA COM ÊNFASE NO CARANGUEJO UCIDES CORDATUS. Pesquisadora: Mariza Bittencourt/Luciana Santos (USP)

2001-2004 Projeto de Gerenciamento dos Recursos Hídricos do Semiárido da Bahia. Subprojeto Enquadramento de Rio Intermitente Aplicado à Bacia do Rio Salitre (Proenqua). 2004-2005 Programa de Pesquisa Saúde & Ambiente – Projeto Qualidade da Água e Saúde: Avaliação e Impacto no Semiárido Baiano – Caso de Estudo Bacia do Rio Salitre. 2004-2006 Projeto Abordagem Multiobjetivo para a Decisão de Outorga (Amodoutor). Parceria Unb/Ufba. 2005-2007 Proposta Metodológica para Enquadramento dos Corpos d’Água em Bacias de Regiões Semiáridas – Caso de Estudo Bacia do Rio Salitre. 2007-2011 Tecnologia de Saneamento Ecológico para Regiões Semiáridas nas Bacias dos Rios Verde e Jacaré/ Estudo do Regime de Vazões Ecológicas para o Baixo Curso do Rio São Francisco: Uma Abordagem Multicriterial – ECOVAZÃO, envolvendo quatro universidades Ufba, UFMG, Ufla, UFS. 2007-2010 Redes Interinstitucionais para Conservação e Uso Eficiente da Água na Bacia do Rio São Francisco. 2004-2005 Viabilidade do Reuso Agrícola de Águas Residuárias nas Bacias dos Rios Verde e Jacaré. 2009-2013 Gestão Estratégica e Adaptativa da Qualidade de Água em Rios Intermitentes. Caso de Estudo Bacia do Rio Salitre. 2011 e 2015 Avaliação dos Impactos Hidrológicos da Implantação do Hidrograma Ambiental do Baixo Trecho do Rio São Francisco. Projeto AIHA - Rede de Pesquisa Hidroeco, envolvendo seis universidades: UFRJ, UFSM, Ufba, Ufal, EESC/USP, Unesp Ilha Solteira.


BARRAG E N S

Tragédia de Mariana gera apreensão pelas barragens na região do São Francisco

Sinal de Alerta O rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Minas Gerais, acendeu o alerta sobre o real perigo de que acidentes do gênero ocorram também em outras regiões do Brasil. Contribui para a apreensão geral o fato de o País não possuir um sistema de informações e fiscalização confiável que lhe permita o pleno conhecimento das suas barragens de rejeitos de mineração e de resíduos industriais. Na bacia hidrográfica do rio São Francisco há 498 barragens, das quais 191 são de contenção de rejeitos de mineração. Estariam elas em situação de risco? No entender do presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo Miranda, o CBHSF deverá se empenhar em prol de um amplo levantamento da situação das barragens na bacia, a fim de que sejam adotadas as medidas necessárias ao correto licenciamento e à fiscalização adequada, com o ajuste de eventuais desconformidades.

11

FOTO: SHUTTERSTOCK.COM

TEXTO: FRED BURGOS


BARR AG E N S

Rompimento da barragem de rejeitos na bacia do rio Doce acendeu um sinal de alerta para a possibilidade de tragédias do gênero na bacia do rio São Francisco

FOTO: ANTÔNIO CRUZ / AGÊNCIA BRASIL

“Isso certamente vai requer uma ação conjugada de todos os atores sociais envolvidos, particularmente do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério de Minas e Energia e dos estados, no sentido de se fazer um inventário ambiental e de segurança de todo esse sistema”, afirma.

FALHAS NOS PROTOCOLOS

N

o leito do rio, a correnteza move suavemente a areia e as pedras mais leves. A vida marinha, como há milhares de anos, tenta se manter alheia ao ritmo nem sempre sereno do mundo terrestre. Mas um descuido humano pode interromper definitivamente o fluxo de seu rico ecossistema, afetando substantivamente uma ampla cadeia de vida que ali reside ou se alimenta. Foi o que aconteceu no dia 5 de novembro de 2015, quando o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, provocou uma enxurrada de lama que devastou o distrito de Bento Rodrigues, no município mineiro de Mariana, deixando um rastro de destruição ao avançar pelo rio Doce, com mortos, desabrigados, perdas materiais e danos ambientais incalculáveis. A tragédia despertou a atenção nacional e internacional para uma realidade até então “invisível” e acendeu a luz de alerta nas bacias que possuem barragens de rejeitos de mineração – subprodutos do processamento do minério, sem aproveitamento econômico –, até porque o que

se descortinou não foi somente um desastre ambiental sem precedentes na história brasileira, mas, principalmente, que outros acidentes similares podem ocorrer, já que o País não possui um sistema de informações e fiscalização confiável que lhe permita o pleno conhecimento das suas barragens de rejeitos de mineração e de resíduos industriais. No entender do presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, é importante promover uma articulação interinstitucional, para que se faça um amplo levantamento da situação das barragens na bacia e sejam adotadas as medidas necessárias ao correto licenciamento e à fiscalização, corrigindo eventuais desconformidades.

A preocupação se impõe. Afinal, o rompimento de uma barragem menos de um ano após a auditoria que lhe garantiu uma classificação de baixo risco deixa claro haver falhas sérias nos protocolos de avaliação e colocam em xeque a forma como o processo vem sendo conduzido. De acordo com o levantamento da Agência Nacional de Águas (ANA), o Brasil conta com 663 barragens de rejeitos de mineração, que representam 5% das 14.966 represas existentes no País, registradas até setembro de 2014. A imensa maioria delas, 13.366 ou 89% do total, são barragens com usos múltiplos de água; 642 (4%) são barragens para geração de energia elétrica e outras 295 (2%), barragens de contenção de resíduos industriais. Segundo levantamento da ANA, as barragens de rejeitos da mineração somam 317 em Minas Gerais, ou seja, quase 50% das barragens desse tipo de rejeitos no País. A maior parte se encontra na bacia hidrográfica do São Francisco. Já pelo Inventário Estadual de Barragens do Estado de Minas Gerais/ 2014, publicado pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), são 450 barragens de rejeitos de minério no território mineiro. Essa divergência nas informações dá uma dimensão da complexidade do problema, mas não é tudo. Com relação ao inventário

No entender do CBHSF, é importante promover uma articulação para que se faça um amplo levantamento da situação das barragens na bacia e sejam adotadas as medidas necessárias ao correto licenciamento e à fiscalização, corrigindo eventuais desconformidades.

QUEM CLASSIFICA O RISCO E FISCALIZA As barragens são classificadas pelos agentes fiscalizadores, por categoria de risco, por dano potencial associado e pelo seu volume, com base em critérios gerais estabelecidos pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH). A Lei nº 12.334/2010, em seu art. 7º, atribui às entidades fiscalizadoras a responsabilidade de classificar as barragens sob sua jurisdição. No entanto, somente dois anos depois foi publicada a Resolução nº 143/2012 do CNRH, que definiu os critérios gerais de classificação. De acordo com a mesma resolução, cabe às entidades fiscalizadoras, no máximo, a cada cinco anos, reavaliar, se assim considerarem necessário, as classificações quanto à categoria de risco e ao dano potencial associado. Vejamos quais órgãos fiscalizadores atuam na Bacia do Rio São Francisco:

12

ANA - Órgão fiscalizador da segurança das barragens de acumulação de água por ela outorgadas, exceto daquelas cujo uso preponderante seja a geração de energia. ANEEL - Órgão fiscalizador da segurança das barragens cujo uso preponderante seja a geração de energia elétrica. DNPM - Órgão fiscalizador da segurança das barragens de rejeitos de mineração. IBAMA - Órgão fiscalizador da segurança das barragens de resíduos industriais licenciadas pelo Ibama. Órgãos estaduais de meio ambiente e recursos hídricos - Órgão fiscalizador da segurança das barragens de acumulação de água por ele outorgadas (exceto daquelas cujo uso preponderante seja a geração de energia hidrelétrica) e barragens de resíduo industrial por ele licenciadas.


da Feam, os auditores não tiveram acesso, no caso de 11 barragens, às informações necessárias para chegar a uma conclusão. Em outras 27, a avaliação foi de "Estabilidade não garantida", o que significa dizer que após estudos geotécnicos, hidrológicos e hidráulicos, os auditores da entidade não podem atestar, por falta de informações, que essas 11 estruturas estejam seguras. “Muitas dessas barragens pertencem a mineradoras importantes, como a Vale e a CSN. No meu entender, essas seriam as verdadeiras ‘tragédias anunciadas’”, avalia o professor do Departamento de Engenharia da Produção e Mecânica da Universidade Federal de Juiz de Fora, Bruno Milanez.

INFORMAÇÕES DIVERGENTES A Lei de Segurança de Barragens (Lei nº 12.334, de 20 de setembro de 2010), ao estabelecer a Política Nacional de Segurança de Barragens, prevê a criação de um Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB) e o Relatório Anual de Segurança de Barragens (RSB). A ANA é responsável por coordenar a elaboração do RSB, enquanto os órgãos fiscalizadores (federais ou estaduais) respondem pelas informações a serem enviadas. O objetivo do RSB é apresentar à sociedade um panorama da evolução da segurança das barragens brasileiras. Para a elaboração do relatório, os empreendedores, a partir de auditorias externas contratadas por eles próprios, encaminham até o dia 31 de outubro de cada ano as informações relativas à segurança de seus sistemas. “O próprio sistema de fiscalização é o que se pode chamar de quase uma autoavaliação”, sugere Milanez. Como é possível constatar, as informações existentes ainda não são confiáveis, podendo ocasionar falta de controle por parte do poder público e de um acompanhamento passo a passo, capaz de evitar a eventual negligência das empresas. A Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) responsabiliza as mineradoras (ou as proprietárias de barragens) pela manutenção e pelo monitoramento das estruturas, assim como por implantar um sistema de alerta com protocolo de fuga e proteção da população vizinha e do ambiente. Isto certamente não existia na mina da Samarco. Passados seis anos de publicação da Lei nº 12.334/2010, o grande desafio continua sendo sua regulação, com poucos estados tendo editado as portarias necessárias. Para o superintendente de Regulação da ANA, Rodrigo Flecha, o acidente de Mariana pode dar uma nova celeridade à regulação de todos os instrumentos da lei, que poderão identificar os barramentos e classificá-los a partir de parâmetros objetivos e conhecidos, além da defini-

De acordo com dados da ANA, existem ao longo da bacia do São Francisco 498 barragens, das quais 191 são de contenção de rejeitos de mineração, 37 de geração de energia e 270 de usos múltiplos das águas. ção de estruturas consistentes para o licenciamento e a fiscalização. Segundo Maria Quitéria Castro, da Coordenação de Segurança de Barragens do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), autarquia da Secretaria de Meio Ambiente do Estado da Bahia, esse quadro de informações inconsistentes existe pelo fato de o SNISB ainda não ter sido implementado, tornando-se o principal ponto crítico do sistema de monitoramento das barragens. “Registre-se que compete à ANA, como gestora do SNISB: desenvolver a plataforma informatizada; estabelecer mecanismos e coordenar a troca de informações com as demais entidades fiscalizadoras; definir as informações que deverão compor o SNISB, em articulação com os demais órgãos fiscalizadores; e disponibilizar para a sociedade o acesso a dados e informações, por meio da Rede Mundial de Computadores”, afirma Maria Quitéria. Ao longo da bacia hidrográfica do São Francisco existem 498 barragens, das quais 191 são de contenção de rejeitos de mineração, 37 de geração de energia e 270 de usos múltiplos das águas, de acordo com dados da ANA. Para a construção do Relatório de Segurança de Barragens 2015, não foram enviadas à Agência informações cadastrais sobre as barragens de contenção de resíduos industriais na bacia, entretanto, problemas trazidos pela indústria não estão longe da memória das populações que vivem à margem do rio. Em 1984, a Agrovale, produtora de açúcar e álcool no perímetro irrigado do Tourão, em Juazeiro (BA), foi responsável pelo despejo de vinhoto no rio, matando toneladas de peixes e

alterando o ecossistema rio abaixo. No caso das barragens de contenção de rejeitos minerais, a grande maioria (184 unidades) se encontra em Minas Gerais, seis estão no estado da Bahia e uma em Pernambuco, todas pertencentes à Mineração São Jorge S.A., segundo dados da ANA. Criada em 1969, a mineradora pernambucana tem suas jazidas localizadas nos municípios de Ouricuri, Ipubi e Trindade, região do Araripe (Sertão pernambucano), por onde passa o rio Brígida, afluente do Velho Chico. Trata-se de uma empresa de extração e beneficiamento de gipsita, um mineral não metálico utilizado como matéria-prima na produção de cimento, gesso para construção civil, gesso agrícola e gessos especiais, como dental, ortopédico e cerâmico. Já as 184 barragens mineiras existentes na bacia estão localizadas em municípios como Nova Lima (28 barragens), Itatiaiuçu (25), Brumadinho (23), Congonhas (18), Ouro Preto (16) e Itabirito (13), dentre outros. São barragens pertencentes a empresas como Vale do Rio Doce, CSN, Gerdau, Anglogold Ashanti, MMX Mineração e Minerações Brasileiras Reunidas, responsáveis, por exemplo, pela produção de ferro, ouro e calcário. Segundo dados da Fundação Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais, 42 estruturas das 450 existentes no estado não possuem garantia de estabilidade. Dessas, pelo menos 24 se encontram a uma distância média de dois quilômetros de zonas habitadas. Uma delas é a Barragem de Maravilhas 1, da Vale, que fica a apenas 500 metros das cercas dos condomínios Vila Alpina, Vale dos Pinhais e Estância Estoril, em Itabirito, município por onde passa o rio das Velhas, o

Empresas implicadas no maior crime ambiental da história do país ainda não pagaram as indenizações, que chegam a 20 bilhões de reais FOTO: FRED LOUREIRO / AGÊNCIA BRASIL

13


FOTO: JOÃO ZINCLAIR Barragem de rejeitos na bacia do rio São Francisco, em Três Marias (MG)

maior afluente em extensão da bacia do São Francisco. Dados do órgão ambiental mineiro apontam 11 empreendimentos sem aval de segurança reconhecido pelo estado: quatro em Brumadinho, pertencentes à MMX; três em Nova Lima, de propriedade da Vale, MBR e Mundo Mineração; três diques da Vale em Sabará; e um em Rio Acima, da Nacional Minérios, todos municípios com afluentes do São Francisco. De acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, a falta de garantias dos auditores significa que documentos e laudos não foram repassados pelas empresas. Ainda que sem essas garantias, as mineradoras podem funcionar com licenças de operação. Em Minas Gerais, o processo de licenciamento é realizado pelas Unidades Regionais Colegiadas (URC), conselhos compostos por representantes do governo, das empresas e da sociedade civil, teoricamente, paritárias: metade dos membros seria formada por representantes de órgãos do governo e a outra metade, pelos demais segmentos. Só que grupos da sociedade civil alegam uma tradição histórica no estado, de governos pró-mineradoras. “Essa equidade, na prática, não acontece, já que o sistema de licenciamento de Minas possui um forte viés para a autorização, marcado que é pela flexibilização e fragmentação. O caso do Fundão é emblemático. Ao fatiar o licenciamento, reduz-se o impacto de um grande projeto e evita-se a análise dos seus efeitos cumulativos”, observa o professor Bruno Milanez.

QUADRO NA BAHIA Das seis barragens em atividade na Bahia, na área de influência da bacia do São Francisco, uma está localizada em Guanambi, a da Monte Alto Mineração, que atua na extração de granito e beneficiamento associado, nas proximidades da bacia do rio Carnaíba de Dentro; uma em Irecê, sob a gestão da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), empresa vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado da Bahia (SDE); e uma no município de Jacobina, pertencente à Jacobina Mineração e Comércio Ltda., subsidiária da Yamana Gold, empresa canadense de produção de ouro. Outras três estão situadas no município de Jaguarari, região em que a Mineração Caraíba extrai cobre, nas proximidades da bacia do rio Itapicuru. Segundo o Relatório de Segurança de Barragens da ANA, quatro das 24 barragens de rejeitos de minérios existentes na Bahia possuem classificação idêntica à Barragem do Fundão, que rompeu em Mariana (MG). Todas possuem Categoria de Risco (CRI) baixa. Na avaliação do DNPM, se o CRI for baixo, mesmo com DPA (Dano Potencial Associado) alto, a barragem não é necessariamente perigosa. Duas delas ficam em Jacobina, no centro-norte do estado, e as outras duas em Santaluz, no nordeste baiano,

Segundo o Relatório de Segurança de Barragens da ANA, as 24 barragens de rejeitos de minérios existentes na Bahia possuem Categoria de Risco (CRI) baixa.

onde as barragens possuem dano potencial associado (DPA) considerado alto pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Apesar disso, elas não aparecem entre as 16 mais inseguras do País, segundo relatório divulgado em abril pelo próprio DNPM, e apenas uma está em plena atividade. As outras não têm sido utilizadas, mas armazenam material de rejeitos – a Barragem 01, em Jacobina, inclusive, preencheu toda a capacidade de armazenamento em 2008. Já as de Santaluz não estão ativas, segundo a Fazenda Brasileiro, subsidiária da Yamana, que administra as barragens. A semelhança entre os perfis ligou o sinal de alerta das populações que vivem próximo dessas estruturas. Isso porque no beneficiamento do ouro é comum se adotar o processo de lixiviação com cianeto e/ou arsênio, substâncias tóxicas que podem provocar sérios problemas à saúde e até levar à morte. Uma das preocupações diz respeito aos planos de evacuação em caso de acidente, apresentados pelas empresas para conseguir a licença de funcionamento. Sem alertas sonoros na região onde está instalada, que serviriam para avisar a população em caso de acidente, a Barragem 02, também administrada pela Yamana Gold, em Jacobina, é a que mais preocupa. Infelizmente, movimentos de preocupação, às vezes, acontecem em uma ordem inversa. Um exemplo disso é o que ocorreu em Santa Maria, Rio Grande do Sul, quando um incêndio na boate Kiss matou 242 jovens. “Ao passar a limpo a situação, os bombeiros identificaram que todos os aspectos que contribuíram para a dimensão da tragédia se mostraram absurdos. E a expectativa é de que tenham sido corrigidos. Para que possamos evoluir para uma possibilidade bastante remota de acidente na bacia, se não acidente zero, o Comitê vai colocar foco nesta questão, até porque na bacia do São Francisco existem muitas barragens de rejeitos, para que, assim, se passe a limpo a situação de todas as barragens nela localizadas”, afirma o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda.

CONSEQUÊNCIAS DO DESASTRE A primeira consequência da chegada da lama de rejeitos minerais ao rio é a elevação da turbidez da água. Isso diminui a penetração da luz, reduzindo a fotossíntese realizada pelas algas e, logo, a quantidade de oxigênio dissolvido. O resultado é a elevada mortandade de peixes. Mas os danos se estendem ainda à degradação da paisagem. Pobre em carbono orgânico e nutrientes, a lama de rejeito torna o processo de regeneração de matas e florestas lento ou mesmo inviável. Há o risco do barro que encobre as encostas endurecer. Mas mesmo se a lama ficar pastosa na calha do rio, já terá havido um assoreamento grave. “Se não for feita a dragagem do leito, possivelmente cidades e localidades

14

sofrerão com enchentes quando da chegada de chuvas fortes. Além disso, como a lama tem muito pouca carga orgânica, o impacto na recuperação das matas ciliares será grande”, afirma o professor Bruno Milanez. Para ele, a tendência é que o rio se recupere, já que as nascentes continuarão fluindo águas não contaminadas. O problema é que isso vai demandar um longo tempo. “O que tinha de peixe e vida orgânica morreu. Mas é possível que a vida volte a colonizar o rio. Só que os peixes, por exemplo, poderão conter durante muito tempo metais pesados. Ou seja, será um rio que não poderá garantir todas as atividades humanas do passado”, conclui Milanez.


TEXTO: DELANE BARROS

FOTOS: TIAGO SAMPAIO

ESTUDIOSOS AFIRMAM QUE HÁ NO MUNDO, PELO MENOS, 1,4 BILHÃO DE PESSOAS VIVENDO SEM ACESSO A ÁGUA POTÁVEL. O “PRECIOSO LÍQUIDO” TEM SIDO MOTIVO CONSTANTE DE CONFLITOS SOCIAIS, POIS SUAS RESERVAS VÊM DIMINUINDO DRASTICAMENTE, CHEGANDO A UM PATAMAR CRÍTICO. NÃO SERIA DIFERENTE EM RELAÇÃO À BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO, ONDE TENDEM A SE TORNAR COMUNS OS CONFLITOS ENVOLVENDO USOS COMO ABASTECIMENTO, IRRIGAÇÃO E GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. COMO EM QUALQUER CONFLITO, A SOLUÇÃO ESTÁ NA BUSCA DO DIÁLOGO.

O

aumento da demanda pelo uso da água, muitas vezes provocado pelo crescimento populacional, tem resultado em constantes conflitos pelo uso dos recursos hídricos. As motivações para esse tipo de ocorrência têm origem no desejo e na expectativa nutrida por cada usuário de ver suas demandas atendidas, sobretudo num cenário em que outros usuários também precisam do mesmo metro cúbico de água. Diante do impasse, e antes que a temperatura das disputas suba, é preciso que os usuários da água da mesma bacia hidrográfica procurem suas representações, a fim de que as contendas sejam dirimidas administrativamente, em primeira instância, pelo plenário do Comitê de Bacia ao qual estão vinculados. No caso de um conflito não resolvido, o resultado será o agravamento das relações entre os usuários que disputam a mesma água e o impacto, por sua vez, provocará a desconstrução da rede social de relações que os permite trabalhar juntos, em prol do mesmo objetivo: ver atendidas suas demandas e as dos seus vizinhos, de modo que se-

jam garantidas a sustentabilidade e a eficiência do uso da água na bacia.

MARCO REGULATÓRIO Apesar de o atual texto constitucional dispor sobre cooperação entre os entes federados na gerência dos serviços públicos e a Lei 9.433/97, também chamada Lei das Águas, determinar a articulação entre União e Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum, especialistas apontam a falta de um terceiro item no processo: a criação de um marco regulatório para utilização da água nas bacias hidrográficas, como forma de prevenção e mesmo solução de problemas, tensões e déficits hídricos. Como a bacia hidrográfica do rio São Francisco não está imune a problemas do gênero, devido à escassez hídrica, seja momentânea ou permanente, não é raro o surgimento de conflitos na região pelo uso da água bruta. O inciso IV do artigo 1º da Lei 9.433/97 estabelece como um dos fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos que “a gestão dos recursos hídri-

SOLUÇÃO PELO DIÁLOGO O caminho para evitar o conflito, segundo o professor Valmir Pedrosa, é o diálogo. Ele enumera quatro itens essenciais para chegar ao consenso e evitar o agravamento do conflito: “separar a pessoa do problema; entender a diferença entre

Encontro do São Francisco com o mar, em Piaçabuçu: alta concentração de salinidade começa a prejudicar a população.

15

CONF L ITOS

Questão de bom senso

cos deve proporcionar o uso múltiplo das águas”. O professor do Programa de Mestrado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental Valmir de Albuquerque Pedrosa explica que o conflito surge quando dois ou mais setores querem utilizar a mesma água e o produto fica escasso. “Os conflitos pelo uso da água podem envolver questões políticas de desenvolvimento regional, podem depender de intrincadas relações entre biologia, química, oceanografia, hidrologia e hidráulica. Comumente, há necessidade de integrar vários órgãos públicos e privados com competências e interesses pelo uso da água. Também é comum a necessária acomodação de interesses entre os Municípios, os Estados e a União”, considera. Especificamente sobre o rio São Francisco, Valmir Pedrosa pontua que são comuns os conflitos pela água nas áreas com presença de cidades e grandes áreas de irrigação, sendo esse o principal uso no consumo da bacia hidrográfica e respondendo atualmente por 79% das retiradas de água de toda a bacia. “A poluição também é outro fator que estabelece o conflito pelo uso da água. Algumas vezes, é possível encontrar o líquido, mas ele está indisponível para o consumo, em face de sua qualidade”, acrescenta. O especialista não se esquece de apontar também aquele que é o mais visível dos causadores do problema. “A geração de energia elétrica, embora não seja um uso consuntivo dos recursos hídricos – que significa a retirada da água de sua fonte natural, com diminuição das disponibilidades espacial e temporal –, tem determinado as regras de operação de defluências dos reservatórios da bacia do rio São Francisco. Portanto, o setor tem um importante papel na análise dos conflitos na bacia”, ressalta Valmir Pedrosa.


CONF L ITOS

Promotor Alberto Fonseca, do Ministério Público de Alagoas, foi um dos participantes do curso sobre conflitos de uso

posição e interesse; buscar alternativas; e, por fim, definir um critério de avaliação”. Devido à crise hídrica registrada nos últimos anos e à oferta cada vez menor de água para a população, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco vem sendo demandado a resolver conflitos de tal ordem. Um dos primeiros a solicitar a intervenção do colegiado foi o Comitê dos rios Paramirim e Santo Onofre (Paso), localizados no sudoeste baiano, afluentes do Velho Chico. Diante do projeto de ampliação da barragem do Zabumbão, em Paramirim (BA), a escassez de água para atender a população passou a ser uma preocupação do comitê que representa a localidade. O presidente do Comitê do Paso, Anselmo Barbosa Caires, explica que o nem o colegiado nem a sociedade foram consultados. “Foi um projeto lançado de cima para baixo, pelo Governo do Estado. Por isso, deu-se o conflito”, esclareceu Caires. O processo apresentado ao CBHSF foi acolhido e analisado pela Câmara Técnica Institucional e Legal (CTIL). O conflito ainda está em tramitação e aguarda pareceres da Agência Nacional de Águas (ANA) e do próprio Governo da Bahia. Anselmo Caires acrescenta que apresentou alguns pontos a serem resolvidos pelo governo estadual, antes da construção da barragem. “Sugerimos a realização de obras concretas e definitivas visando à segurança hídrica do Vale do Paramirim, a exemplo da construção das barragens dos rios da Caixa e dos Remédios; da modernização da irrigação da barragem do Zabumbão; da eletrificação das margens direita e esquerda do rio Paramirim; da construção do esgotamento sanitário da cidade de Érico Cardoso; da elaboração do Plano de Bacia do Paso; e da recuperação das nascentes do rio Paramirim”, argumenta. O processo, entretanto, não foi simples. Durante audiência do caso, o presidente do CBH Paso chegou a pedir a sua suspensão por não acreditar em uma solução. O motivo foi a posição do governo estadual, que anunciou não haver interesse em realizar obras antes de iniciar o trabalho na adutora. A alternativa foi recorrer à Agência Nacional de Águas (ANA) para que se posicionasse oficialmente sobre a disponibilidade hídrica do local. Em comunicação oficial, a ANA considerou o projeto do governo estadual inconsistente, nos moldes apresentados à comunidade, e orientou quanto à necessidade da formalização do requerimento de outorga de direito de uso para o projeto, além de outras ações. Com base no diálogo e na busca de alternativas para o caso, o CBHSF vai construindo o consenso e, assim, evita que o conflito se transforme em situação mais grave.

Ofício encaminhado pelo prefeito de Piaçabuçu, Dalmo Santana Júnior, dá conta de que a vazão reduzida do rio São Francisco na região do Baixo vem impactando diretamente a saúde da população e a economia local.

ALTA SALINIDADE No início de 2016, outra demanda foi apresentada ao CBHSF. A Prefeitura do Município de Piaçabuçu, localizado na foz do Velho Chico, em Alagoas, decidiu recorrer ao colegiado, após constatar o alto nível de salinidade do líquido que abastece a população. De acordo com ofício encaminhado pelo prefeito Dalmo Santana Júnior, a vazão reduzida do rio São Francisco na região do Baixo vem impactando diretamente a saúde da população e a economia local. “Por um lado, os pescadores já não conseguem manter suas famílias com a pesca. Os peixes da região estão acabando porque o nível muito baixo do rio permite a entrada da água salgada do mar em grande quantidade”, explica o chefe do Executivo municipal para justificar sua preocupação. O prefeito também relata o aumento expressivo dos casos de hipertensão nos moradores de Piaçabuçu. “Isso representa fragilidade para a saúde e aumento nos gastos do município para tratar essas pessoas”, acrescenta. Santana apresentou o conflito de uso junto ao CBHSF para resolver o caso. O processo, também encaminhado para análise da CTIL, está em fase de diligência, para recolhimento de documentos que indiquem os caminhos que serão seguidos. O coordenador da câmara técnica, Luiz Roberto Farias, explica que somente depois de reunir todos os documentos e as respostas oficiais o colegiado que integra a estrutura de funcionamento do CBHSF estará apto a discutir o processo, inclusive quanto à sua fundamentação ou não para instalação do conflito. Como os casos estão se tornando cada vez mais recorrentes, o CBHSF decidiu instruir os membros da CTIL. Para isso, realizou um curso de capacitação em conflito de uso para os membros da câmara técnica, além de convidados do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Durante dois dias, em Maceió (AL), integrantes da CTIL e de outras câmaras técnicas do CBHSF, membros do Ministério Público de Alagoas, coordenadores e secretários das quatro câmaras consultivas regionais (CCR), do Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco conheceram os aspectos históricos, a legislação, os efeitos do conflito de uso e ensaiaram a resolução de um caso fictício, no qual os participantes colocaram em prática o que aprenderam durante o curso. O coordenador da CTIL explica que decidiu promover o curso para oferecer aos envolvidos nos processos os subsídios necessários à condução dos processos que surgirem. “Como processos desse tipo estão se tornando recorrentes, é preciso termos conhecimento teórico e prático sobre os conflitos de uso dos recursos hídricos, que surgiram não apenas no âmbito da bacia do São Francisco”, explica Roberto Farias. No curso, houve estudo de casos, critérios advindos da Lei 9.433/97 e aqueles advindos de outras normas infralegais; histórico dos conflitos de uso no Brasil e em outros países, entre outras questões. O relator dos processos até então demandados ao Comitê, Luiz Alberto Rodrigues Dourado, avaliou a iniciativa e o curso como “muito positivos”. “Achei excelente e bastante necessário que tenhamos participado dessa capacitação”, considerou Dourado. O promotor Alberto Fonseca, da promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público de Alagoas, também teceu elogios à qualidade do curso. “Era uma iniciativa necessária. A apresentação da legislação atualizada e o conceito de construção do consenso mostram que os consultores estão antenados com a realidade”, resumiu.

O curso foi pensado para ampliar a busca de soluções consensuais para os conflitos que têm surgido na área da bacia do São Francisco

16


TEXTO: ANTONIO MORENO FOTO: ANDRÉ FRUTUOSO

“Água precisa virar prioridade em nosso país” O senhor estará à frente do CBHSF até agosto deste ano, quando ocorrerão novas eleições. Como avalia o seu período de gestão? Foi um período de grande crescimento e verdadeira consolidação do CBHSF, o que reflete o seu amadurecimento como instrumento efetivo da gestão hídrica democrática, compartilhada e participativa do rio São Francisco e de sua bacia hidrográfica. O Comitê do São Francisco já adquiriu o respeito político necessário no cenário nacional, para lutar com mais força pela bacia do São Francisco? O respeito foi conquistado a partir das ações concretas e da criatividade adotada para enfrentar os grandes desafios que rondam o São Francisco e seus afluentes. O CBHSF soube se impor na consecução de suas tarefas de articulador institucional, na revisão criteriosa do Plano de Gestão de Recursos Hídricos de sua bacia, na elaboração e aplicação de uma metodologia pioneira para tratar os conflitos pelo uso da água, na consecução do segundo Plano de Aplicação Financeira (PAP) dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água bruta, na articulação com os comitês dos rios afluentes, na execução de obras e ações de recuperação hidroambiental e em muitas outras frentes de trabalho que demonstram o vigor dessa forma de organização que constitui a base do Sistema Nacional de Recursos Hídricos. O que falta para consolidar a presença do CBHSF na tomada de decisões que impactam o futuro do rio São Francisco? Algumas coisas dependem do próprio Comitê, como o esforço para que todos os entes públicos ou privados compreendam, adotem e respeitem o Plano Diretor da Bacia e a elaboração de uma

nova, mais justa e adequada metodologia de cobrança pelo uso da água, com preços atualizados. Outras coisas dependem da luta do Comitê, mas também de um maior grau de cooperação do poder público (federal, estadual e municipal) e dos usuários da água, a fim de que possamos, por exemplo, tirar do papel o Programa da Revitalização, para construir o Pacto das Águas, com definição sustentável das vazões, sobretudo as de entrega dos principais afluentes e as dos reservatórios hidrelétricos, respeitando o princípio dos usos múltiplos da água. Há uma terceira ordem de tarefas que dependem principalmente dos governos estaduais, notadamente no que concerne à universalização dos instrumentos de gestão hídrica em toda a bacia do São Francisco. O modelo do Comitê de Bacia ainda pode ser considerado um bom referencial para a gestão das bacias hidrográficas de um país tão amplo como o Brasil? Pode, não: deve. Até porque ele ainda não foi aplicado com a devida seriedade e o necessário empenho em todo o País. Mesmo assim, e apesar da enorme resistência burocrática e corporativa, que não gosta de gestão democrática e participativa, os comitês que obtiveram o mínimo apoio em sua incubação já representam uma saudável e exitosa experiência enquanto verdadeiros parlamentos da água, únicos capazes de construir consensos sólidos para intermediar conflitos, tornar os investimentos mais racionais e unir diferentes forças na batalha comum pela quantidade e qualidade da água. O senhor considera que esse modelo tem de sofrer algumas alterações para caminhar melhor? Quais?

O problema não está no modelo, que é absolutamente inovador. O problema está na vontade política dos governos para, de fato, implementar esse modelo. Em vários aspectos, a gestão dos recursos hídricos no Brasil – estados e municípios – ainda não se encontra à altura dos desafios que temos pela frente. Água precisa virar prioridade em nosso país. Como o senhor avalia a situação atual do São Francisco? Alguma coisa mudou ou está mudando? Mudanças estruturais são difíceis de promover porque pressupõem também mudança de comportamento. A boa notícia é que, assustadas com os efeitos drásticos das estiagens e com a degradação dos nossos biomas, sobretudo dos rios, as populações estão mais atentas à questão ambiental e ao princípio dos usos múltiplos da água. Daí, por exemplo, a crescente receptividade que as ações do CBHSF encontram em toda a bacia. No entanto, há uma luta contra o tempo, já que o uso irracional da água, os desmatamentos, a exploração descontrolada dos aquíferos, a degradação dos solos e a poluição da água continuam em ritmo frenético. O Comitê foi bastante crítico ao projeto de Transposição, que está em vias de ser finalizado. Houve alguma alteração no posicionamento do colegiado em relação a essa obra monumental e controversa? A maioria do CBHSF sempre teve uma posição crítica quanto à concepção e falta de planejamento e racionalidade desse projeto, algo que o tempo lhe deu razão. Porém, agora que os canais da Transposição se encaminham para a finalização, o CBHSF aceitou fazer parte do Conselho Gestor da Integração do São Francisco (PISF), com

17

E NT RE VISTA

O ATUAL PRESIDENTE DO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO, ANIVALDO MIRANDA, FAZ UM BALANÇO DE SUA GESTÃO, QUE SE ENCERRA EM AGOSTO PRÓXIMO, ELENCANDO REALIZAÇÕES QUE SE FIZERAM FUNDAMENTAIS NA CONSOLIDAÇÃO DE UMA BOA IMAGEM DE COLEGIADO NO PAÍS. “O RESPEITO QUE OBTIVEMOS FOI CONQUISTADO A PARTIR DAS AÇÕES CONCRETAS E DA CRIATIVIDADE ADOTADA PARA ENFRENTAR OS GRANDES DESAFIOS QUE RONDAM O SÃO FRANCISCO E SEUS AFLUENTES”, DIZ O PRESIDENTE, QUE SONHA EM VER SAIR DO PAPEL O PROGRAMA DA REVITALIZAÇÃO DO SÃO FRANCISCO, NECESSÁRIO PARA QUE SE CONSTRUA O PACTO DAS ÁGUAS, COM DEFINIÇÃO SUSTENTÁVEL DAS VAZÕES, RESPEITANDO O PRINCÍPIO DOS USOS MÚLTIPLOS DA ÁGUA.


E NT R E VISTA

o propósito de garantir que os termos da outorga que lhe foi dada sejam rigorosamente respeitados, assegurando que o uso da água a ser transposta se faça de maneira racional e sustentável, e para conclamar as populações das bacias receptoras do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco a se engajarem na luta pela revitalização do São Francisco. O senhor tem dito em suas palestras pelo Brasil que é preciso pensar o impacto da transposição, pois há inúmeros projetos sendo elaborados nas bacias receptoras e que vão depender das águas do São Francisco, somados a projetos estruturais em andamento na bacia e à própria dinâmica existente de usos múltiplos. Haverá água para suprir toda essa demanda? Há crescentes demandas de água projetadas e de grande porte, inclusive, projetos de novas transposições em elaboração, bem como usinas nucleares, pequenas centrais hidrelétricas, novos barramentos, novos projetos de irrigação, novas fronteiras agrícolas e assim por diante. Isso exige a celebração, o quanto antes, do Pacto das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, sob o risco de enfrentarmos brevemente grandes cenários de conflito pelo direito de uso das águas são-franciscanas. A grande plataforma para a consecução desse Pacto das Águas, sem dúvida, é o Plano Diretor de Gestão de Recursos Hídricos que o CBHSF vai aprovar até agosto deste ano. No final do ano passado, em uma reunião no Ministério da Integração, o CBHSF ouviu a promessa de que o Programa da Revitalização da Bacia do São Francisco finalmente “sairia do papel”. Até agora, nada aconteceu. O senhor acredita que ainda possa ser iniciado no atual governo? É claro que as incertezas que rondam a composição do governo federal em face da crise político-institucional refletem negativamente sobre programas de longo curso, como é o caso do Programa da Revitalização, que, de fato, ainda não deslanchou, apesar de ter se passado mais de uma década do seu anúncio. Porém, haja o que houver, seja qual for o governo, a luta pela Revitalização do São Francisco continuará sendo uma reivindicação prioritária e diária do nosso comitê. O Comitê tem pautado suas ações muito em função da realização de obras hidroambientais nas áreas ribeirinhas e em projetos de saneamento básico nas cidades da bacia. Qual a sua avaliação sobre tais iniciativas? São experiências de pequeno porte, mas de grande alcance demonstrativo e prático também. Nossos projetos de recuperação hidroambiental já se estendem por toda a bacia, em vários estados, trabalhando com recarga de aquíferos, proteção de nas-

“SE OS ESTADOS DA BACIA NÃO SE COMPROMETAM A TIRAR A LEI DAS ÁGUAS DO PAPEL E UNIVERSALIZAR OS INSTRUMENTOS DA GESTÃO HÍDRICA, DIFICILMENTE SEREMOS CAPAZES DE HARMONIZAR OS INTERESSES CONFLITANTES DOS USUÁRIOS DAS ÁGUAS E PROMOVER UM CRESCIMENTO ECONÔMICO SUSTENTÁVEL” centes, recomposição de matas ciliares, combate à erosão, educação ambiental e mobilização comunitária a favor da água. Por outro lado, o CBHSF é hoje, com muito orgulho, o maior financiador de Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSBs) na Bacia do São Francisco. Por que é tão difícil uma ação articulada dos estados da bacia, na busca de soluções para os problemas vividos pelo São Francisco? A força de velhos costumes políticos, que privilegiam obras físicas em detrimento de gestão eficiente da coisa pública, inclusive da água, aliada a uma velha atitude de desconfiança do Poder Público para com a sociedade, além de uma visão que não prioriza a questão ambiental e o desenvolvimento sustentável, criam um ambiente refratário à solução democrática e compartilhada dos problemas. Nos dias de hoje, os governos precisam compreender que sozinhos não serão capazes de resolver quaisquer dos grandes desafios de nossa época. No que tange à questão hídrica, é imprescindível que nossos gestores entendam a importância de se aliarem à sociedade civil e aos usuários das águas, sejam eles grandes ou pequenos, se quiserem de fato se antecipar e resolver as grandes crises de escassez e qualidade da água que já estão delineadas no horizonte deste novo século. De que forma o senhor vê a tendência de aumento dos conflitos pelo uso das águas do São Francisco, tendo em vista interesses eventualmente díspares entre os usuários? Se não fizermos um Pacto da Legalidade, em que os estados da bacia de fato se comprometam a tirar a Lei das Águas do papel e universalizar os instrumentos da gestão hídrica (apoio aos comitês estaduais, cobrança pelo uso das águas, sistemas confiáveis de outorga, planos diretores de bacias, enquadramento dos rios), dificilmente seremos capazes de harmonizar os interesses conflitantes dos usuários das águas e promover um crescimento econômico que se possa minimamente chamar de sustentável. A criação do Dia Nacional em Defesa do Velho Chico teve boa repercussão junto à opinião pública, dando maior visibilidade ao Comitê. Fora isso, considera que esta ação poderá resultar também em medidas efetivas a favor da bacia? Estamos em plena era do conhecimento e da comunicação globalizada. Nesse contexto e numa bacia hidrográfica que ocupa cerca de 8 % do território brasileiro e

“O PLANO DE RECURSOS HÍDRICOS, QUE ESTÁ SENDO REVISADO E ENRIQUECIDO, ATUALIZA O DIAGNÓSTICOS, TRAÇA GRANDES CENÁRIOS E PROGNÓSTICOS E OFERECE UM COMPETENTE CARDÁPIO DE AÇÕES, MEDIDAS E INVESTIMENTOS NECESSÁRIOS PARA GARANTIR A SUSTENTABILIDADE ATUAL E FUTURA DA BACIA”.

18

abriga uma população de quase 18 milhões de pessoas, o CBHSF acertou em cheio quando criou essa campanha, inclusive dando visibilidade nacional às suas ações e aos problemas do São Francisco. Sem dúvida, isso produz frutos capazes de impulsionar ações práticas em favor da gestão sustentável das nossas águas e maior articulação dos entes institucionais que compõem esse cenário. O CBHSF realizará em junho o I Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, reunindo as universidades do território são-franciscano. Como a academia poderá colaborar na solução dos graves problemas ambientais da bacia? Um dos papéis do Comitê é propiciar uma melhor articulação dos diversos segmentos da sociedade em torno da questão da água. Por isso, promovemos regularmente encontros com os comitês de rios afluentes, com as comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas, encontros e parcerias com agentes do Ministério Público, com irrigantes e tantos outros. Agora, pela primeira vez, em articulação com as instituições de ensino superior da bacia, estamos propiciando um grande encontro de pesquisadores e estudiosos, para que conheçam os desafios do CBHSF, nos ajudem na resolução dos grandes gargalos da gestão hídrica e, ao mesmo tempo, troquem informações sobre o estado da arte da pesquisa científica em torno do rio São Francisco e seus afluentes. O Plano Decenal da Bacia está em vias de ser concluído. Qual a sua expectativa em relação ao que ele poderá proporcionar de avanço na adoção de medidas práticas para a sustentabilidade do São Francisco? O Plano, amplamente revisado e enriquecido, atualiza o diagnóstico da bacia, avalia diretamente a percepção das populações do território do São Francisco em torno dos problemas da água, traça grandes cenários e prognósticos sobre o desenvolvimento econômico e socioambiental desse universo, atualiza os balanços hídricos e oferece um competente cardápio de ações, medidas e investimentos necessários para garantir a sustentabilidade atual e futura do desenvolvimento dessa vasta região em relação às demandas racionais de quantidade e qualidade de água. Como será o futuro do São Francisco? No contexto da minha expectativa, e tomando de empréstimo uma ideia que já ouvi em algum canto, acho que futuramente teremos um Novo Chico, se conseguirmos mudar as matrizes agrícola e energética da bacia para uma direção sustentável e moderna; se conseguirmos universalizar a gestão hídrica de qualidade nos estados são-franciscanos; se conseguirmos paralisar a destruição acelerada dos biomas da Caatinga e do Cerrado e se fizermos o saneamento básico de todas as cidades da bacia.


E N SA IO

Devoção às almas É SEXTA-FEIRA SANTA, O RELÓGIO MARCA 21 HORAS QUANDO, NO FINAL DA RUA, SURGE UMA SENHORA CARREGANDO UMA CRUZ EM DIREÇÃO AO CEMITÉRIO DO SÃO FRANCISCO, NA CIDADE DE XIQUE-XIQUE, INTERIOR BAIANO. É MARIA SOLEDADE, 68 ANOS, MAIS CONHECIDA COMO DONA DADINHA, LÍDER DAS REZADEIRAS, QUE CHEGA PARA PARTICIPAR DO ÚLTIMO DIA DE ORAÇÕES EM DEVOÇÃO ÀS ALMAS. TEXTO E FOTOS: ANDRÉ FRUTUOSO

19


E N SA IO Segundo a tradição local, esse ritual de lamentação é feito por um grupo de pessoas, em sua maioria mulheres, que sai pelas ruas e becos da cidade realizando paradas estratégicas em igrejas, encruzilhadas e outros pontos para entoar preces em oferecimento às almas de pessoas que foram vítimas, sobretudo, de morte trágica. Essa tradição está presente em Xique-Xique e outras cidades ribeirinhas do São Francisco (Barra, Morro do Chapéu etc.) desde a década de 1940 e acontece tradicionalmente no período da Quaresma. Com a chegada de Dona Dadinha e outras rezadeiras, Seu Guilhermino dos Santos, 78 anos, soa a matraca de maneira intensa e aquele estalo seco toma conta da rua, avisando à vizinhança que a "lamentação" vai começar. A cruz, preta, como símbolo de luto, fica encostada no portão do cemitério; um pano branco sobre ela faz alusão ao lençol que cobriu o corpo de Jesus no sepulcro e, perto da parede, muitas velas são acesas antes de o grupo começar a cantar os “benditos de Misericórdia e o Pai Nosso”.

20


Acredita-se que as almas que estão no purgatório acompanham os fiéis penitentes durante a lamentação para se alimentar das orações e, assim, conseguir sair das vibrações negativas e dos sofrimentos. Por sua vez, os devotos são amparados pelas almas que já alcançaram caminhos elevados de paz e de luz.

“OFEREÇO A TODAS AS ALMAS QUE MORRERAM ENFORCADAS: IRMÃO DAS ALMAS... PEÇO A DEUS, NOSSO SENHOR, QUE DÊ A ELAS A SALVAÇÃO, Ó IRMÃO DAS ALMAS... REZA, REZA, IRMÃO MEU, REZA PELO AMOR DE DEUS, Ó IRMÃO DAS ALMAS...”, RECITA MARINALVA MARTINS, UMA DAS REZADEIRAS DE XIQUE-XIQUE.


E N SA IO

Se tornar rezadeira não é para qualquer um, mas uma tradição que vem de família, onde os cânticos sagrados são passados de geração a geração. “Desde a barriga da minha mãe que faço parte desta manifestação. Acredito e tenho muita fé nas almas, elas nunca me faltaram”, ressalta Dona Dadinha, contando que muitos apuros de sua vida foram amenizados ou vencidos por meio de orações às almas. Como duvidar?


Feito o registro das imagens, o fotógrafo vai se distanciando do cemitério e das rezadeiras em meio a uma reflexão sobre a fé e seu estranho poder. Uma canção de Gilberto Gil martela na cabeça: “Certo ou errado até, a fé vai aonde quer que eu vá, a pé ou de avião; mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar, pelo sim pelo não...”

23


ALMAN AQ U E

Texto: José Antônio Moreno Ilustração: elena landinez

Usina Hidrelétrica de Xingó

A bela cidade de Canindé do São Francisco é uma A Usina Hidrelétrica de Xingó é a quarta maior do País e também é responsável pelo das principais atrações do estado de Sergipe. Sua vocação abastecimento de 25% da energia consumida na Região Nordeste. No Centro de para o turismo ganhou impulso com a construção da Recepção ao Turista, o visitante recebe informações sobre todo o processo Hidrelétrica de Xingó, atraindo para o município legiões de construção da barragem – que une os estados de Sergipe e Alagoas –, de visitantes interessados em diversão e em uma natureza podendo observar uma maquete talhada em madeira e de taexuberante, que se apresenta sob a forma de cânions, grandes lagos manho 500 vezes menor que o da original. e outros cenários paradisíacos à beira do Velho Chico. A construção da represa do rio São Francisco criou uma paisagem impressionante, dominada por águas verdes e rochas. De tão bonita, parece algo natural: uma fenda azul recortada por rochas acinzentadas é a primeira imagem que surge para os visitantes do cânion do lago Xingó. Um pedaço de céu clarinho aparece entre as formações rochosas de arenito e granito. São pedras que parecem polidas à mão e, ao longo da margem, apresentam abóbadas naturais. O lago, que virou um dos pontos turísticos do menor estado brasileiro, é uma extensão do Velho Chico.

Cangaço

A associação entre Canindé de São Francisco e o cangaço é bastante forte. O município viveu momentos dramáticos durante ações de grupos de cangaceiros nos idos de 1930 e acabou sendo palco da emboscada que resultou na morte de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. A Semana do Cangaço, comemorada no mês de julho, é uma das tradições culturais da região e conta com apresentação de trabalhos acadêmicos, conferências e visitas a lugares históricos. De Canindé, seguindo pelo rio São Francisco, o turista pode percorrer a chamada Rota do Cangaço, chegando até a Grota de Angicos, local onde o rei do cangaço foi assassinado. No caminho, já na histórica cidade de Piranhas, é feita uma parada de visitação ao Museu do Cangaço, em cujo acervo se encontram objetos e fotografias dos cangaceiros.

Vegetação

A caatinga rasteira, com fauna repleta de répteis, aves e insetos, marca a vegetação, transformando o local numa das maiores riquezas ambientais do Brasil.

Museu de Arqueologia de Xingó

24

O acervo do moderno Museu de Arqueologia de Xingó é uma das atrações de Canindé de São Francisco. Mantido pela Universidade Federal de Sergipe, o museu reflete o projeto de salvamento arqueológico, realizado de 1991 a 1994, antes do enchimento da barragem. Foram escavados 28 sítios classificados como de acampamento, 11 de habitação e dois de habitação e enterramento (São José e Justino). Assim, foram recuperadas 7.802 peças líticas, 21.790 peças em cerâmica, mais de 20 mil restos de fauna e 191 esqueletos. Um acervo que remonta há cerca de nove mil anos.


Economia

Gastronomia

Além do turismo, a agricultura (milho, tomate, feijão e algodão), a pecuária (bovinos, caprinos e ovinos) e a avicultura (galináceos) são as principais atividades econômicas do município. A colheita do quiabo chega a 500 toneladas por semana, abastecendo os estados da Bahia, Alagoas e Pernambuco. Outros produtos cultivados na região são o feijão-de-corda, o milho, a acerola e a goiaba.

Entre os diversos pratos típicos do Sertão nordestino, destacam-se o bode guisado ou assado e a pituzada, receita preparada à base de pitu, uma espécie de camarão de água-doce, retirado do próprio rio São Francisco. Quando se trata de sobremesa, a goiabada local tem fama de ser uma das mais gostosas do Brasil, mas também há doces derivados de cacto, com destaque para o “doce de coroa-defrade”.

Turismo

Portão de entrada para quem deseja conhecer o Complexo Turístico de Xingó, que compreende os estados de Sergipe, Alagoas e Bahia, Canindé de São Francisco é o destino da maioria dos turistas que visita o território sergipano. O local atrai quem se interessa pela prática de turismo ecológico e esportes radicais, mas também é um convite aos que preferem navegar pelas águas calmas da região, em agradáveis passeios de catamarãs e lanchas, contemplando belíssimas paisagens. No percurso, diversas formações rochosas chamam a atenção pela beleza. Vale destacar a Pedra da Águia, cujo topo tem o formato da cabeça do animal, e o Morro do Macaco, assim denominado pela presença de grupos de macacos-prego antes do enchimento da barragem. Completam a paisagem a vegetação da Caatinga e as muitas espécies de animais que habitam a região, como calangos e corujas.

Gruta do Talhado

Uma das atrações naturais do município, a gruta tem esse nome porque os paredões de rocha que formam o cânion parecem talhados à mão.

Folclore

Há mais de 70 anos, a manifestação folclórica Cavalhada faz a festa na cidade. Como o próprio nome sugere, trata-se de um grupo de cavaleiros que sai pelas ruas centrais de Canindé distribuindo alegria, tradição e arte. Tem conexão com o catolicismo, pois representa a guerra dos mouros contra os cristãos. Por isso mesmo, os cavaleiros participantes simulam lanças e outras armas de guerra confeccionadas em papel crepom, nas cores verde, vermelho e branco. O grupo folclórico, que foi criado pelo vaqueiro José Ventura, hoje é um dos mais importantes em atuação no estado de Sergipe.

Cinema e Televisão

Os belos cenários de Canindé do São Francisco estão presentes em filmes e outros produtos da ficção. Na década de 1980, a paisagem agreste do município serviu de locação para o filme Sargento Getúlio, dirigido por Hermano Penna, a partir da obra de João Ubaldo Ribeiro. Mais recentemente, a região de cânions de Canindé sediou os primeiros capítulos da novela Cordel Encantado, enquanto o conhecido Vale dos Mestres ambientou as gravações da minissérie Amores Roubados, ambas da Rede Globo.

Cultura

Canindé de São Francisco é a cidade dos sanfoneiros. Essa tradição recebeu um grande impulso com a criação da Escolinha de Sanfoneiros, a primeira do Nordeste, que inicia garotos de 8 a 14 anos de idade nos trios “pé de serra” da região. Um dos mestres locais é José Alves Machado, o “Esquerda do Acordeão”, que intercala os shows com as aulas no projeto.

Fazenda Mundo Novo

Opção para o turismo ecológico e de aventura, a fazenda é um dos mais bonitos parques temáticos do município. Em visita ao lugar, o turista percorre trilhas de sete quilômetros de extensão, observando quatro sítios arqueológicos com pinturas rupestres, além de poder se banhar nas águas cristalinas do Velho Chico.

25


SANE A ME N TO ILISTRAÇÃO: SHUTTERSTOCK.COM

DE COSTAS NÃO FOI POR ACASO QUE MUITAS CIDADES DA BACIA DO SÃO FRANCISCO – COMO, DE RESTO, EM TODO O PAÍS - NASCERAM E SE ESTRUTURARAM DANDO AS COSTAS PARA O RIO. O FATO É QUE O RIO FUNCIONAVA PARA ESSAS CIDADES COMO O GRANDE DEPOSITÁRIO DOS DEJETOS SANITÁRIOS E DE TUDO AQUILO QUE PODERIA SER CHAMADO DE “LIXO”. ESSA CULTURA DE DESPREZO PELO MEIO AMBIENTE, QUE SE IMPÕE ATÉ OS DIAS ATUAIS, TORNOU-SE UM DOS MAIORES EMPECILHOS PARA A DISSEMINAÇÃO DE MEDIDAS PRÁTICAS DE SANEAMENTO BÁSICO, FUNDAMENTAIS À GARANTIA DE PADRÕES ACEITÁVEIS DE HIGIENE E SAÚDE PARA AS POPULAÇÕES. POR ESTA RAZÃO, O COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO (CBHSF) RESOLVEU FINANCIAR A ELABORAÇÃO DE PLANOS MUNICIPAIS DE SANEAMENTO BÁSICO PARA AS CIDADES DA BACIA. ATÉ AGORA, 26 PMSBs FORAM ELABORADOS NOS ESTADOS DE MINAS GERAIS, BAHIA, PERNAMBUCO, ALAGOAS E SERGIPE – UM INVESTIMENTO SUPERIOR A R$6 MILHÕES, ORIUNDOS DA COBRANÇA PELO USO DAS ÁGUAS DO RIO TEXTO: ANDRÉ SANTANA

26

A

epidemia atual de doenças como Dengue, Zika e Chikungunya, transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, poderia ser evitada se o Brasil contasse com um serviço de saneamento básico de qualidade. Esse é o alerta feito pela Organização das Nações Unidas em comunicado oficial publicado em março deste ano. A entidade afirma que 100 milhões de pessoas vivem atualmente sem acesso a sistemas adequados de saneamento na América Latina e 70 milhões não têm água encanada. O documento destaca que quando as pessoas não têm serviços de saneamento tendem a armazenar água de maneira insegura, o que favo-

rece a proliferação de mosquitos. “Enquanto o mundo procura soluções de alta tecnologia para combater o vírus Zika, não devemos esquecer o péssimo estado do acesso à água e ao esgotamento sanitário para as populações desfavorecidas”, disse o relator especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Água e ao Saneamento, Léo Heller. “Investimento em saneamento reduz em mais de 50% os gastos com a saúde pública. Sem cuidar da água e do saneamento, acabamos por nos tornar reféns de doenças dos séculos passados, nas quais o grande inimigo é um mosquito que tem encontrado ambiente propício para sua reprodução acima da nor-


PARA O RIO malidade”. A fala do presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo Miranda, casa com a do organismo internacional, demonstrando que a decisão do colegiado de investir em saneamento, além de cumprir a missão institucional de dar atenção às águas da bacia, protege a população que dela depende. Conforme a Lei Nacional de Saneamento Básico, nº 11.445/2007, o saneamento básico deve ser entendido como o conjunto de ações ou serviços públicos de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e manejo de águas pluviais, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. “Infelizmente, não existe um levantamento atual da cobertura dos serviços de saneamento

básico da bacia do rio São Francisco, pois os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), operado pela Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, ainda não dispõe de dados de abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos de todos os municípios brasileiros. Dessa forma, fica difícil estimar o déficit dos serviços”, explica o professor Doutor Luiz Roberto Santos Moraes, PhD em Saúde Ambiental pela University of London/ UK e professor titular em Saneamento da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Atualmente, em se tratando da luta pela minimização dos impactos ambientais decorrentes

PLANOS MUNICIPAIS DE SANEAMENTO BÁSICO Total: 26 Investimentos: Até 2016: cerca de R$6 milhões Até 2018: cerca R$8 milhões Planos finalizados ou em andamento: ALTO SF Bom Despacho (MG), Lagoa da Prata (MG), Moema (MG), Pompéu (MG), Abaeté (MG) e Papagaios (MG) MÉDIO SF Angical (BA), Catolândia (BA), São Desidério (BA), Barra (BA) e Cariranha (BA), Barra do Mendes (BA) SUBMÉDIO SF Pesqueira (PE), Flores (PE) e Afogados da Ingazeira (PE), Jacobina (BA), Miguel Calmon (BA) e Mirangaba (BA) BAIXO SF Belo Monte (AL), Igreja Nova (AL), Feira Grande (AL) e Traipu (AL); Ilha das Flores (SE), Propriá (SE) e Telha (SE) Distribuição por estado: BA: 9 MG: 6 AL: 4 PE: 3 SE: 3

27


FOTO: IVAN CRUZ Orla de Petrolina (PE), onde as baronesas proliferam: indício de alto grau de poluição por despejo de esgoto sem tratamento.

da deficiência de saneamento básico, o CBHSF é o maior financiador de Planos Municipais de Saneamento Básico da Bacia do São Francisco. Por meio de sua agência delegatária, a AGB Peixe Vivo, o Comitê já investiu cerca de R$6 milhões (oriundos da cobrança pelo uso das águas do rio) na elaboração de 26 Planos Municipais de Saneamento Básico nas diversas regiões, distribuídos pelos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Os técnicos envolvidos na concepção do plano definem projetos emergenciais em curto, médio e longo prazo nas áreas de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de águas pluviais e resíduos sólidos, além do desenvolvimento jurídico institucional. Uma vez elaborados e aprovados pelos poderes municipais, os Planos terão sua execução a cargo das prefeituras ou por concessões privadas ou públicas. Entre as localidades contempladas com Planos de Saneamento, encontram-se: Pesqueira, Flores e Afogados da Ingazeira, todas do Sertão do Pajeú, afluente pernambucano do Velho Chico; as cidades mineiras de Bom Despacho, Lagoa da Prata, Moema, Pompéu, Abaeté e Papagaios; os municípios alagoanos de Belo Monte, Igreja Nova, Feira Grande e Traipu; as sergipanas Ilha das Flores, Propriá e Telha; as baianas São Desidério, Barra e Cariranha. “A concepção dos membros do colegiado ao escolher a elaboração do plano como prioridade se baseia no entendimento de que sanear significa evitar vários problemas sociais, ambientais, hídricos e de saúde”, define Luiz Dourado, membro da Câmara Técnica Institucional e Legal. Dourado explica que a escolha das cidades para receber o Plano de Saneamento é feita a partir de critérios que têm como base o Índice de Desenvolvimento Humano do município (IDH) e a vulnerabilidade socioambiental.

Uma das principais prioridades estabelecidas pelo Comitê do São Francisco, a partir da cobrança pelo uso das águas do Velho Chico, foram os investimentos em saneamento básico. “Com um recurso pouco suficiente para atender ao grande déficit de saneamento nas cidades da bacia, o CBHSF buscou parceria e articulação com os órgãos públicos para efetivação de políticas públicas neste sentido”, explica Luiz Dourado, pontuando que a partir dessas articulações surgiram importantes iniciativas voltadas para o saneamento na bacia. “Exemplo disso foi o grande trabalho promovido na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por meio da Estação de Tratamento de Esgoto Onça [em funcionamento desde 2006], e as nove estações de tratamento nas cidades da bacia do rio Salitre, afluente do São Francisco na Bahia”. O PMSB é importante para um município por se tratar do instrumento de planejamento participativo do saneamento básico, sendo composto de diagnóstico técnico-participativo (dos quatro componentes do saneamento básico), prospectiva e planejamento estratégico (estabelecimento de cenários) e de programas, projetos e ações (inclusive de emergências e contingências) a serem implementados no período de 20 anos, visando à universalização dos serviços (atendimento de toda a população). De acordo com o especialista em recursos hídricos Luiz Moraes, para elaborar o PMSB, o município deve tomar uma decisão política e não apenas procurar atender ao estabelecido na Lei 11.445/2007. “Os municípios acusam dificuldades de existência de pessoal qualificado próprio e de recursos financeiros para elaborar o PMSB, porém, mesmo os que conseguem recursos do governo federal têm dificuldade de cumprir o cronograma de elaboração do Plano, fruto também da falta de cultura institucional no País, principalmente em relação à importância do planejamento”. Uma vez elaborado, para colocá-lo em prática tornam-se necessários recursos financeiros, estrutura institucional e equipe mínima. De acordo com o professor Luiz Moraes, falta também informação sobre a existência ou não de PMSB nas cidades da bacia. “Com as Caravanas de Saneamento estamos tendo a oportunidade de perguntar diretamente aos representantes dos municípios sobre a existência ou não do plano”, informa, referindo-se a uma iniciativa do Ministério Público da Bahia, estendida ao estado de Alagoas, que contou com o apoio do CBHSF para a visita a 14 cidades consideradas polos da região, a fim de oferecer oficinas sobre saneamento.

PARCERIAS COM ÓRGÃOS PÚBLICOS

TRANSTORNOS EM PETROLINA

“Tenham a certeza de que essa ação vai refletir diretamente na qualidade de vida dos moemenses e do rio. Garanto que o plano que recebemos é a maior obra que vou deixar para a minha cidade”, disse o prefeito da cidade de Moema (MG), Julvan Rezende Araújo Lacerda, ao ser contemplado pelo CBHSF com o Plano Municipal de Saneamento Básico. Já o prefeito de Barra (BA), no Médio São Francisco, Artur Silva Filho, elogiou o apoio recebido do Comitê para a construção do Plano Municipal de Saneamento Básico. “Neste momento, em que os municípios brasileiros sofrem com uma séria dificuldade financeira, a contribuição do Comitê é fundamental, já que dificilmente conseguiríamos fazer isso sozinhos. Com o Plano, poderemos captar recursos federais”. A partir da Lei Federal 11.445/2007, a existência do PMSB passou a significar para o município a possibilidade de garantir verbas do governo federal para aplicação em ações como tratamento de efluentes domésticos, de resíduos sólidos e oferta de água tratada.

“O diálogo de saberes é exercitado, muito conteúdo sobre o assunto é abordado e os participantes saem da semana de trabalho com a intenção de trabalhar para melhorar o saneamento básico em seus municípios e dar início à elaboração dos PMSB”. Moraes elogia a atuação do Ministério Público ao firmar os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) para que os municípios adotem as providências necessárias a dar maior atenção e melhorar os serviços públicos de saneamento básico. “Alguns municípios da bacia dispõem de serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário que atendem bem à sede municipal, alguns prestados por Serviços Autônomos de Água e Esgoto, outros por Companhias Estaduais na mesma área, porém com atendimento precário ou mesmo inexistente no meio rural. Muito ainda necessita ser feito para universalizar esses serviços”. A falta de saneamento básico e de esgotamento sanitário adequado causa transtornos em importantes cidades da bacia, como Petrolina, em Pernambuco, um dos principais polos de desenvolvimento do Vale do São Francisco, sem o devido sistema de tratamento de água e esgoto, de responsabilidade da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa). Em diversos bairros, é possível ver os dejetos correrem pelas valetas a céu aberto, somando-se ao lixo acumulado pela população. E tudo é jogado nas águas do Velho Chico. Na área mais próxima da orla da cidade, a água do rio é tomada por baronesas, plantas aquáticas que proliferam ao sinal de poluição proveniente do despejo de esgoto nos rios. As baronesas, também chamadas de aguapé, são espécies de filtros que se alimentam dos dejetos. É a natureza se defendendo do que não lhe pertence.

O Plano de Saneamento Básico é importante para o município por se tratar do instrumento de planejamento participativo do saneamento, sendo composto de diagnóstico técnicoparticipativo e de programas, projetos e ações a serem implementados.

28


IMPAC TO

Cidade ameaçada A ESCASSEZ DE ÁGUAS SUPERFICIAIS, PROVOCADA POR LONGOS PERÍODOS SEM CHUVA NO SEMIÁRIDO BAIANO, INTENSIFICOU A DEPENDÊNCIA DA POPULAÇÃO DO MUNICÍPIO DE LAPÃO EM RELAÇÃO ÀS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS ARMAZENADAS EM UM IMPORTANTE AQUÍFERO DA REGIÃO. CONTUDO, AS CARACTERÍSTICAS DA FORMAÇÃO ROCHOSA CALCÁRIA DO SUBSOLO DA CIDADE NÃO RESISTIRAM AO EXCESSO DE RETIRADAS DE ÁGUA, INCLUSIVE, PELA CRESCENTE PERFURAÇÃO DE POÇOS SEM OUTORGAS NA ÁREA. O RESULTADO DO IMPACTO FORAM ABALOS GEOLÓGICOS OCORRIDOS DESDE 2008, QUE CAUSARAM RACHADURAS EM IMÓVEIS, FENDAS NAS RUAS DA CIDADE E AUMENTO DA DIMENSÃO DA GRUTA DO LAPÃO. EM MEIO À APREENSÃO E AO MEDO, OS MORADORES SOFREM AS CONSEQUÊNCIAS, ENQUANTO AGUARDAM ESTUDOS MAIS OBJETIVOS SOBRE OS RISCOS DE NOVOS TREMORES. TEXTO: ANDRÉ SANTANA

FOTOS: ANDRÉ FRUTUOSO

29


U

m dito popular, transmitido há várias gerações na cidade de Lapão, no Semiárido da Bahia, alerta que um dia a cidade irá “afundar sete léguas em quadro”. Essa preocupação com o possível destino catastrófico da cidade integra uma série de fantasias que envolvem a Gruta do Lapão, originada por dissolução de rochas carbonáticas, em torno da qual cresceu a cidade, no início do século XX, inicialmente integrando o município de Irecê e, depois, autônoma, a partir de 1985. Pela cidade passa o rio Juá, que corre para abastecer os rios Verde e Jacaré, afluentes do São Francisco. Abalos geológicos recentes no município causaram danos aos imóveis na cidade, medo entre os moradores e impulsionaram diversos estudos de órgãos ambientais sobre a formação do solo local e os verdadeiros riscos para a população de cerca de 27.500 habitantes (Censo 2015/estimado). Além de rituais religiosos, como a “Alimentação das Almas”, que ocorre no cemitério da cidade durante a Semana Santa, há no imaginário coletivo lendas sobre a gruta, contadas pelos antigos moradores, como o desaparecimento de animais de grande porte e até de pessoas nas cavernas subterrâneas, sem que nunca mais se encontrassem suas ossadas. O clima de mistério na cidade ganhou ainda mais elementos fantásticos quando, em outubro de 2008, às vésperas das eleições municipais, um grande estrondo pôde ser ouvido por todo lado e pedras rolaram da gruta, aumentando a dimensão da sua abertura. Também foram perQuadra de esportes no Centro da Cidade, próxima à Gruta de Lapão, precisou ser demolida

30

cebidas rachaduras em diversas casas, gerando muita apreensão na cidade. “Os populares chegaram a acreditar que se tratava de um aviso divino, já que a eleição daquele ano era disputada entre um candidato reconhecidamente muito religioso e outro, não. Na época, o medo foi grande e muitos foram morar em cidades vizinhas ou até em outros estados”, conta o administrador Jardeu Oliveira, assessor técnico da Prefeitura Municipal de Lapão.

AQUÍFERO E ACIDENTES GEOLÓGICOS Os estudos de órgãos como o Instituto de Pesquisa Tecnológica do Estado de São Paulo (IPT) e da CPRM – Serviço Geológico do Brasil revelaram que a ocupação urbana de Lapão se deu sobre áreas de formação cárstica suscetíveis à ocorrência de acidentes geológicos. Por outro lado, esse tipo de formação também é propício ao

A Fonte de Lapão, que deu origem à cidade baiana, possui uma gruta cercada de lendas, abalos geológicos e desaparecimento de animais

acúmulo de água em fendas, criando um imenso reservatório subterrâneo. “O aquífero Cárstico é de extrema importância para a região, pois o uso das águas subterrâneas supre o déficit de águas superficiais. É fundamental para a sobrevivência no Semiárido”, explica Leonardo de Almeida, especialista em Recursos Hídricos da Agência Nacional das Águas (ANA) e responsável pelos Estudos Hidrogeológicos do Aquíferos Cársticos da Região Hidrográfica do São Francisco, que teve a cidade de Lapão como foco. “A pesquisa utilizou Lapão como piloto das observações por ser uma região bastante vulnerável, por conta das rochas carbonáticas, suscetíveis a soluções geológicas e que já apresentavam rebaixamento no nível


Área que era explorada pela Associação de Fruticultores da Adutora da Fonte teve produção interrompida com o fechamento do poço em virtude de abalos geológicos

dos reservatórios subterrâneos”. Os estudos da ANA ainda não estão finalizados, mas a exploração indiscriminada de água por meio de poços clandestinos é uma preocupação latente. Os especialistas acreditam que a forte seca que castigou a região de Irecê e Lapão com um longo período sem chuvas levou a uma busca ainda maior pelas águas subterrâneas, impactando na movimentação das rochas. “Além dos processos naturais relacionados à evolução cárstica, essas áreas, por sua natureza física específica, podem apresentar acidentes induzidos: pela ocupação urbana, por atividades agrícolas, pela captação de água subterrânea, por lançamento de esgotos e pela extração mineral em seu entorno. Quando essas atividades são desenvolvidas sem critérios técnicos adequados e sem planejamento, acabam deflagrando processos que induzem a acidentes geológicos, como subsidências e colapsos de solo e de rocha”, apontou na época o relatório do extinto Instituto de Gestão das Águas e Clima (Ingá), da Secretaria de Meio Ambiente do Governo da Bahia. Além das ruas e casas da região central da cidade, próximo à Gruta de Lapão, outros imóveis foram atingidos pelos abalos, como a comunidade Ida Cardoso, cujas casas apresentaram rachaduras de até um palmo e seis famílias de moradores, de uma mesma rua, tiveram que abandonar suas residências. Nada tão impactante como o buraco que surgiu nas terras da família de Audieres de Castro, na Fazenda Baixa Funda, povoado de Boa Sorte, área rural do município. O agricultor conta que seu pai estava tranquilamente tirando leite das vacas quando ouviu um estrondo. “Ele se virou e já estava o buraco profundo no meio do terreno”, conta. O poço, do qual retirava água para irrigar a pequena plantação de legumes, foi aterrado. Atualmente, as terras são ocupadas apenas pelas poucas cabeças de gado leiteiro. Outro poço foi perfurado em um terreno mais alto, para retirar a água utilizada no plantio do milho e da palma, que alimentam os animais. “O medo de que o buraco aumente

Além das ruas e casas da região central da cidade, outros imóveis foram atingidos pelos abalos. Na comunidade Ida Cardoso, as casas apresentaram rachaduras de até um palmo e seis famílias tiveram que abandonar suas residências. existe, mas o que vamos fazer se precisamos da terra para sobreviver?”, indaga o agricultor. O mesmo questionamento sobre como sobreviver em meio aos riscos do subsolo da cidade foi feito, em 2008, pelos 26 membros da Associação de Fruticultores da Adutora da Fonte. A associação, criada na década de 1990, ganhou esse nome por conta de um poço que abastecia a cidade antes da chegada da água da Adutora de Mororós. A família Dourado cedeu, em sistema de comodato, um terreno para ser explorado pelos agricultores. “Cada fruticultor ficava com um hectare e outros cinco hectares eram explorados de forma comum. Plantávamos frutas como limão, mamão e, especialmente, pinha, além de legumes e hortaliças”, explica Marcelo Abade dos Santos, presidente da Associação. A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) forneceu equipamentos para o sistema de irrigação, como bombas e filtros, e os produtores receberam capacitação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

(Embrapa). “Optamos por essas frutas, especialmente a pinha, pela menor necessidade de água, boa aceitação no mercado e pelo consumo na própria região”, explica o agricultor. A produção foi crescendo e os produtores conseguiam um desenvolvimento econômico satisfatório. “Chegamos a produzir uma média de 37 toneladas de cenoura por hectare, em uma única safra, e mais 15 toneladas de pinha, 40 toneladas de cebola, além de tomate e mamão. Com algumas dessas culturas era possível obter até três safras por ano”, calcula Marcelo dos Santos, mensurando o envolvimento de até 80 trabalhadores por lote nas etapas da produção, entre poda, polinização artificial e coleta. “Em 2008, Lapão começou a rachar e o nosso poço estava no epicentro do problema”. Houve uma determinação das autoridades competentes de suspender as atividades de cinco poços, e um deles irrigava as terras da Associação. Sem água, os trabalhos na terra foram interrompidos. “De uma hora para outra, nos vimos impedidos de continuar com nosso trabalho, de onde tirávamos o sustento das nossas famílias. O nosso é o único poço que continua lacrado, sem funcionamento. E até hoje não tivemos nenhum tipo de compensação”, reclama Ednaldo Campos, um dos integrantes da Associação. Ednaldo, que preside o Comitê da Bacia Hidrográfica dos rios Verde e Jacaré, também é membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. “Hoje, muitos produtores estão desempregados, vivem de bicos; outros tiveram que plantar em terrenos arrendados para pagar as dívidas”, lamenta. Um enorme buraco surgiu nas terras da família do agricultor Audieres de Castro. “O medo de que o buraco aumente existe, mas o que vamos fazer se precisamos da terra para sobreviver?”

31


IM PAC TO

Marcelo Abade dos Santos é presidente da Associação de Fruticultores da Adutora da Fonte. Produtores ainda amargam prejuízos pelo fechamento do poço.

GUERRA DE CARIMBOS A Prefeitura de Lapão reconhece que há um grande conflito de interesses no uso das águas subterrâneas da cidade. De um lado, o risco, ainda não totalmente conhecido, de extração da água por meio de poços; de outro, a necessidade dos produtores rurais de água para a irrigação de suas terras. “A suspensão dos poços não atingiu apenas Lapão, mas outras localidades, por não se poder mais retirar água do rio Juá. A prefeitura tenta sensibilizar os órgãos de fiscalização de que a agricultura praticada na cidade não é extrativista. É quase de subsistência”, explica Jardeu Oliveira, assessor técnico municipal. Ele também considera que deveria haver uma maior vigilância por parte dos órgãos competentes, impedindo as retiradas desordenadas. Atualmente, o número de poços na região é muito maior do que os outorgados. “Há uma falta de resposta dos órgãos competentes. Os produtores não querem viver na clandestinidade. Eles furam poços porque precisam da água para sobreviver”, defende Oliveira, acusando a desorganização entre os órgãos ambientais na tramitação dos processos. “Os órgãos não se comunicam. Há uma guerra de carimbos”. Outro que aguarda uma resposta mais concreta por parte dos órgãos públicos é o comerciante Roberto Mário Mangueira Carvalho, filho de produtores rurais de Lapão, que sempre sonhou investir em negócios na sua cidade natal. Em novembro de 1997, o desejo de Roberto Carvalho parecia que havia se concretizado com a inauguração do supermercado Mix

Mercado, o maior empreendimento comercial da cidade, com 1.300m de área construída. “O mercado alimentava fortemente a economia da cidade, pois pagávamos impostos aos órgãos públicos, empregávamos 14 famílias locais, além de termos mais de 130 empresas cadastradas. Desses, alguns eram pequenos agricultores e produtores rurais”, lembra Carvalho. Os negócios iam tão bem que o comerciante investiu recursos na ampliação do supermercado. Até que em 2012 uma nova série de abalos geológicos no subsolo de Lapão provou rachaduras na construção e em residências vizinhas. Uma sondagem da CPRM indicou os riscos que aque-

O comerciante Roberto Carvalho resolveu fechar definitivamente seu estabelecimento comercial, pois a renda obtida nesses anos foi suficiente apenas para pagar as rescisões dos seus funcionários e outras dívidas.

la região corria e uma determinação dos órgãos municipais suspendeu o funcionamento do estabelecimento comercial. “Em 31 de dezembro de 2014 fechamos o mercado, causando uma tristeza muito grande nos funcionários, fornecedores e nos moradores da cidade”, lembra Roberto Carvalho. Dia de muita tristeza para o padeiro José Roberto Oliveira, que trabalhava no local desde 2008. “A notícia foi muito impactante. Causou um rebuliço na cidade. Era tanta gente querendo ajudar, carregar as coisas. Só vendo que tristeza”, conta José Roberto. “Até hoje a cidade não tem nenhuma empresa como essa, desse tamanho, empregando tantas famílias”, lamenta. Roberto Carvalho ainda tentou alugar outro espaço e manter parte dos funcionários nos últimos três anos, mas o prejuízo foi demasiado. “Estou fechando definitivamente o mercado, pois a renda nesses anos foi suficiente apenas para pagar as rescisões de todos os funcionários e outras dívidas. Vou voltar para a roça”, diz o comerciante com muita emoção na fala, reclamando não ter recebido nenhum apoio da gestão municipal. Seja no caso do comerciante ou dos moradores que tiveram suas casas comprometidas, seja na situação da Associação de Fruticultores da Adutora da Fonte, a prefeitura alega que “o poder público cuida do interesse coletivo e não do privado”, afirma o assessor técnico Jardeu Oliveira Leão. “A administração pública não pode reparar de forma pecuniária; poderia oferecer outros terrenos do município, como foi sugerido, mas, para isso, é preciso que o local em questão passe para o domínio público, e isso muitos proprietários não aceitam”, explica.

Rachaduras colocaram em risco o comércio de Roberto Mário Mangueira Carvalho, comprometendo os investimentos na economia da cidade e na geração de empregos

32


C AMPA N H A

A arte de virar carranca PELO TERCEIRO ANO CONSECUTIVO, O COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO CONVOCARÁ TODA A SOCIEDADE PARA UMA INTENSA MOBILIZAÇÃO EM PROL DO RIO MAIS IMPORTANTE PARA A INTEGRAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO. É A CAMPANHA “EU VIRO CARRANCA PARA DEFENDER O VELHO CHICO”, DO DIA NACIONAL EM DEFESA DO RIO SÃO FRANCISCO, COMEMORADO EM 3 DE JUNHO. TENDO A CARRANCA COMO ÍCONE, A CAMPANHA PREVÊ BARQUEATA E EXPRESSIVA ATUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, TANTO EM MÍDIAS SOCIAIS DIGITAIS COMO NOS MEIOS TRADICIONAIS. UM DOS DIFERENCIAIS DA CAMPANHA ESTÁ NA INTERAÇÃO ENTRE A CARRANCA E INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS DE DIVERSAS NATUREZAS. DE SÍMBOLO TRADICIONAL DA REGIÃO SÃO-FRANCISCANA, A CARRANCA ASCENDE À CONDIÇÃO DE ÍCONE POP. TEXTO: ANDRÉ SANTANA

33


FOTO: JOÃO ZINCLAIR

C AM PA N H A Mais uma vez, o CBHSF investirá recursos oriundos da cobrança pelo uso das águas do rio em uma grande campanha de comunicação e mobilização social, chamando a atenção de todos – moradores, ativistas, gestores públicos, autoridades políticas, artistas e educadores – para os graves problemas pelos quais passa o rio e sua bacia e para a necessária e urgente revitalização, a fim de que o Velho Chico continue alimentando a vida e a esperança dos 15,5 milhões de brasileiros que dependem direta ou indiretamente de suas águas. O povo da bacia será convidado a manifestar, de forma espontânea, seu engajamento à campanha pelas redes sociais e nas cidades de Petrolina, em Pernambuco, e na vizinha Juazeiro, na Bahia. No trecho do rio que corta essas cidades haverá barqueata, com dez embarcações tradicionais alertando para a precariedade da atual navegabilidade de um sistema que já serviu de abastecimento e transporte para as cidades brasileiras. É esperada uma grande concentração de pessoas no dia 3 de junho, nesses centros urbanos, com a presença principalmente de estudantes.

PUBLICIDADE A campanha publicitária deste ano estará centrada no caráter inspirador do rio São Francisco para as linguagens artísticas. Serão produzidas e exibidas obras de músicos, videomakers, artistas plásticos, quadrinistas, artesãos, grafiteiros e tatuadores, todas inspiradas na força do Velho Chico. “A ideia é tornar a carranca, que já é um símbolo de resistência do povo ribeirinho, também um ícone pop, inspirador das artes tradicionais e contemporâneas”, explica Jorge Martins, diretor de arte da Yayá Comunicação Integrada, responsável pela criação da campanha Eu Viro Carranca para Defender o Velho Chico.

34

Para Malu Follador, coordenadora do Programa de Comunicação do CBHSF, a campanha será uma oportunidade de revelar como o rio impacta a vida das pessoas, mesmo a de quem está nas áreas mais urbanas do País. “Vamos promover uma interação entre artistas contemporâneos e os mestres e guardiões da cultura e da arte ribeirinha, além de ativistas que militam em defesa do São Francisco. Esperamos que isso se converta em produções artísticas de muita sensibilidade e forte carga de reinvindicação em prol do rio”, afirma. O resultado dos encontros poderá ser acompanhado em fotos, vídeos e cards publicados nos veículos digitais da campanha.

IMPRENSA Para que todas as ações ganhem visibilidade nos principais meios de comunicação de todo o Brasil, será realizada uma coletiva de imprensa com profissionais de veículos nacionais e também órgãos de imprensa das cidades da bacia. Nesse encontro, os jornalistas e blogueiros vão conhecer a programação da campanha e terão a oportunidade de dialogar com os membros da diretoria colegiada do CBHSF para obter mais conteúdos. Em anos anteriores, a coletiva produziu um grande resultado de divulgação da iniciativa: dezenas de matérias e artigos publicados, diariamente, nos jornais e blogs, além de entrevistas em programas de tevê e rádio sobre o rio São Francisco, com um crescimento registrado no período da campanha. Em 2016, as mídias sociais digitais terão um papel fundamental na veiculação da campanha Eu Viro Carranca para Defender o Velho Chico, pelo seu caráter democrático, aglutinador e de engajamento social e político. Ferramentas como Facebook, Instagram, , Youtube, além do portal, terão atualização dinâmica, com um rico material informativo

A campanha que marca o Dia Nacional em Defesa do Velho Chico, 03 de junho, concentrará as suas atividades nas cidades ribeirinhas de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE)

que possibilitará a aquisição de conhecimentos sobre a bacia do rio São Francisco e o envolvimento de todos na luta por sua defesa. Essas novas mídias sociais reforçarão o impacto que as mídias tradicionais já causam na sociedade. “Trabalhamos com o conceito de comunicação integrada, onde cada ferramenta tem sua funcionalidade explorada e complementa o esforço maior, que é se comunicar com os diversos públicos, tanto os que vivem às margens do rio, como aqueles que têm responsabilidade de trazer transformações para a situação ambiental da bacia, sem esquecer outros formadores de opinião estimulados ao engajamento por essa causa tão nobre”, ressalta Malu Follador. Para o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo Miranda, a campanha em defesa do Velho Chico é uma responsabilidade do colegiado, distribuída por toda a sociedade. “Além de, ao longo do ano, contribuir efetivamente para a revitalização do rio com as intervenções ambientais nas diversas cidades da bacia e de provocar discussões fundamentais nas diversas esferas de poder e decisão, o Comitê quer provocar toda a sociedade para a defesa desse bem comum. O resultado nos últimos dois anos tem sido muito positivo, com um engajamento acima das expectativas. Esperamos que este ano não seja diferente, pois ‘virar carranca’ para defender o rio toca na identidade do povo são-franciscano”, destaca Miranda. Acompanhe toda a campanha no site: virecarranca.com.br


E SPORT E

Olimpíadas franciscanas ÀS VÉSPERAS DOS JOGOS OLÍMPICOS/ RIO 2016, A PRÁTICA ESPORTIVA À BEIRA DO RIO SÃO FRANCISCO GANHA FORÇA NAS QUATRO REGIÕES DA BACIA (ALTO, MÉDIO, SUBMÉDIO E BAIXO SÃO FRANCISCO), REUNINDO AMANTES DOS ESPORTES EM UM CENÁRIO FASCINANTE. MODALIDADES COMO RAPELL, TREKKING, STAND UP PADLLE, JET SKI, SLACKLINE E ATÉ O BUNGEE JUMPING SÃO GARANTIA DE AVENTURAS AO AR LIVRE. DELANE BARROS E ANDRÉ SANTANA

ALTO SÃO FRANCISCO

CONVITE AO ECOTURISMO O Alto São Francisco é a região onde nasce o Velho Chico, a uma altitude de 1.280 metros. No alto das suas montanhas está a nascente histórica desse que é carinhosamente chamado de Rio da Integração Nacional, localizada no Parque Nacional da Serra da Canastra, na cidade de São Roque de Minas, em Minas Gerais. É lá que encontramos parques florestais e cachoeiras naturais capazes de tornar a região um dos caminhos mais atraentes para a prática do turismo de aventura, envolvendo atividades como trekking, caiaque, rapel, aeromodelismo e montanhismo. No centro-oeste do estado, cidades como Lagoa da Prata e Três Marias são um convite para os amantes do motocross e da vela, proporcionado competições já consagradas no cenário nacional, a exemplo do Moto Sunset, organizado pela Associação Rodas de Prata, do Campeonato Nacional de Vela e da Natação no Lago, que acontece no lago de Três Marias, local onde foi instalada a primeira usina hidrelétrica do rio São Francisco, em 1962. Já a emblemática cidade ribeirinha de Pirapora, no norte de Minas, inseriu em seu calendário esportivo os Jogos Escolares de Minas Gerais, a fim de estimular jovens atletas a praticarem atletismo, ciclismo e ginástica. Próximo a Belo Horizonte, o município de Itabirito, às margens do rio das Velhas, importante afluente do São Francisco, teve a ideia de, anualmente, organizar caminhadas ecológicas para alunos de escolas públicas. A iniciativa, intitulada “Caminhadas da Natureza”, é realizada sempre no mês de março.

SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO

POTENCIAL PARA A AVENTURA O Submédio São Francisco, região na qual o Velho Chico funciona como divisa natural entre o estado da Bahia e o de Pernambuco, tem presenciado a exploração das águas do rio não somente para atividades agrícolas e abastecimento humano, mas também para a prática de esportes náuticos. Em cidades da calha do rio, como na pernambucana Petrolina e nas baianas Paulo Afonso e Juazeiro, além do nado e da canoagem, vêm se consolidando modalidades esportivas mais contemporâneas, como o stand up paddle, jet ski, slackline e até o bungee jumping. Nessas cidades, diversos atletas se reúnem para competições como o Campeonato de Triathlon – ciclismo, natação e corrida – e o Open Lake Náutico de Jet Ski, ambos já com algumas edições realizadas na Orla de Juazeiro e Petrolina. É também no meio do Velho Chico, nas águas que dividem essas duas cidades, que se localiza a Ilha do Fogo, um patrimônio natural controlado pela Marinha do Brasil, mas utilizada por moradores e visitantes, sobretudo, nos fins de semana, para atividades de lazer e esportivas. Na Ilha, a população encontra um ambiente propício para a prática de natação, vôlei de praia, futebol de areia, peteca, rapel na ponte, canoagem, stand up paddle, slackline e também para treinamento funcional. Às margens do rio, além de diversos atletas, muitos premiados em competições regionais e nacionais, é possível encontrar iniciantes e amadores se aventurando nos exercícios esportivos. Para isso, podem ser alugados caiaques e pranchas, por exemplo, assim como ter aulas práticas de remo com instrutores capacitados. Os amantes de esportes radicais podem também desfrutar de cidades baianas do Submédio São Francisco com grande potencial no quesito aventura, já que a região é rica em cânions, vales e chapadas. Em Jacobina e Paulo Afonso, além de outros esportes, os aventureiros podem arriscar saltos de bungee jumping. Os mais corajosos buscam adrenalina ao pular de cachoeiras, quedas d´água e paredões naturais que se formam nas águas do rio São Francisco ou de um dos seus afluentes, como o rio Salitre, desafiando a vegetação de caatinga e o clima árido, características da região.

35

FOTO: IVAN CRUZ

TEXTOS: RICARDO FOLLADOR, WILTON MERCÊS,


FOTO: DIEGO MACENA

E S PORT E

FOTO: IVAN CRUZ

MÉDIO SÃO FRANCISCO

PAREDÃO DE ADRENALINA Voltada principalmente para o turismo de negócios, a região do Médio São Francisco – territorialmente, a maior das quatro divisões da bacia – aproxima cada vez mais os amantes dos esportes radicais ao oferecer atrativos que destacam belezas formadas por cânions, grutas, vales e corredeiras, ideais para a prática do ecoturismo. Estendendo-se desde a cidade de Pirapora, no centro-norte de Minas Gerais, a região abrange uma área de 267 quilômetros quadrados, atravessando todo o oeste baiano até o ponto onde se forma o lago represado de Sobradinho, no município de Remanso (BA). É justamente no território baiano que as atividades ganham destaque no cenário esportivo. A pequena São Desidério, que há quatro anos alcançou o posto de principal mercado na produção de grãos e frutas do País, encanta os praticantes de rapel e tirolesa ao oferecer como pano de fundo os recursos naturais da bacia do rio Grande, espécie de artéria fluvial da região. O ponto de partida é o cume do “Paredão Deus Me Livre”, situado no distrito próximo de Sítio Grande, a 15 quilômetros do centro do município. Cidades como Barreiras, que se orgulha de ser o principal centro urbano do oeste da Bahia, reservam ainda surpresas para quem quer encontrar paisagens inusitadas e experimentar novas aventuras. Nas redondezas há sítios arqueológicos, montanhas para trekking, cachoeiras e paredões de pedra para rapel, cavernas para os exploradores, bem como os rios Grande, de Ondas, de Janeiro e Branco, que são ótimos para canoagem, boia cross e rafting. Os pontos mais badalados são cachoeira do Redondo, serra do Mimo, serra da Bandeira e rio de Ondas. Descer de barco, canoa ou caiaque as águas do São Francisco até o rio Corrente também virou prática rotineira para quem visita a histórica cidade de Santa Maria da Vitória (BA), situada em meio a serras, cerrados e veredas. A aventura segue até a vizinha Correntina, onde estão localizadas as corredeiras do Jaborandi, cachoeiras do Saco Comprido e Formoso, além do arquipélago das Sete Ilhas.

36

FOTO: IVAN CRUZ

BAIXO SÃO FRANCISCO

ESTÍMULO DA FESTA SECULAR A região do Baixo São Francisco, em virtude das belezas naturais dos cânions, entre os estados de Alagoas e Sergipe, tem atraído cada vez mais a atenção dos praticantes de stand up paddle, caiaque, natação e corrida de canoa, reunindo turistas de todo o Brasil. O visual exuberante do rio São Francisco na localidade garante aos esportistas momentos de prazer, especialmente entre os trechos das cidades alagoanas de Delmiro Gouveia e Penedo, às margens do Velho Chico. Grupos de participantes se juntam às atividades náuticas, movimentando a população, o turismo e a economia desses municícios ribeirinhos. Os deslocamentos vão até a foz do São Francisco, no município de Piaçabuçu, distante de Penedo cerca de 15 quilômetros. Algo parecido ocorre no município de Pão de Açúcar, distante 239 quilômetros da capital, Maceió. Lá, o mais comum é encontrar pessoas praticando o que eles chamam de “corrida de canoa à vela”. A competição, que remonta às origens da colonização do Baixo São Francisco, exige dos competidores força, destreza e, principalmente, amor ao rio e a suas lendas. Os desafiantes normalmente se reúnem em duas ocasiões: janeiro, para comemorar a festa de Bom Jesus dos Navegantes; e março, para comemorar a Emancipação Política do Município. Um dos momentos de maior movimentação para a prática esportiva na região acontece durante a festa de Bom Jesus dos Navegantes, quando os nadadores mergulham no São Francisco e encaram o desafio de chegar até o encontro do rio com o mar, em um percurso de 42 quilômetros, entre as cidades de Brejo Grande (SE) e Piaçabuçu (AL). Já em terra firme, homens e mulheres partem numa corrida de 11,4 quilômetros. Os exercícios são parte da tradição secular da festa, iniciada em 1891.


MULHERES DA ZONA RURAL DE PETROLINA, NO SERTÃO PERNAMBUCANO, VIRAM REFERÊNCIA AO ADOTAREM A AGROECOLOGIA COMO BASE PARA A PRODUÇÃO DE FRUTAS, HORTALIÇAS E VERDURAS, NUMA ÁREA DE CINCO MIL METROS QUADRADOS, GARANTINDO O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NAS PROXIMIDADES DO RIO SÃO FRANCISCO. TEXTO: RICARDO FOLLADOR FOTOS: REGINA LIMA

C

onviver com pouca água é quase uma fatalidade na cultura do Semiárido nordestino, mas nada impede que esforços sejam feitos para superar essa limitação. A Associação dos Agricultores e Agricultoras Familiares do Assentamento Mandacaru, na zona rural de Petrolina, em Pernambuco, é uma prova disso. Com muita determinação e espírito de luta, a entidade vem garantindo o sustento de diversas famílias moradoras das entranhas do Sertão pernambucano, tendo como base o trabalho agrícola ecologicamente correto. A Associação, que é integrada basicamente por mulheres agricultoras (cerca de 80% do quadro de associados), tornou-se referência ao aplicar o conceito de agroecologia em uma das regiões mais secas do País, garantindo apoio financeiro e social a produtores rurais iniciantes no processo da produção de frutas, hortaliças e verduras sem utilização de agrotóxicos ou qualquer outro tipo de defensivo. O projeto nasceu do combate à prática da monocultura –exploração do solo com especialização em um só produto –, que vinha impactando diretamente a biodiversidade local. As mulheres participantes do projeto são ex-donas de casa ou lavradoras que trabalhavam por conta própria e agora miram objetivos comuns, dividindo funções numa área de cinco mil metros quadrados. Na convicção da maioria, não basta produzir para ganhar “um dinheiro” no final do mês. O que elas querem é poder interferir nos destinos da comunidade, que congrega cerca de 70 famílias, trabalhando por sua autoestima e por uma maior consciência ambiental. “Em geral, trabalhadores agrícolas se preocupam apenas com o resultado do plantio, deixando de lado os problemas gerados a partir de práticas erradas e da falta de conhecimento ambiental. Na Associação, passamos a estimular práticas socioeducativas por meio de cursos de capaci-

tação e palestras que valorizem a sustentabilidade. Não acreditamos na autossustentação pura e simplesmente. Queremos ser conscientes de nossa realidade, do meio ambiente que está a nossa volta. Isso é agroecologia”, explica Ozaneide Gomes dos Santos, presidente da Associação, que reúne cerca de 22 famílias diretamente engajadas na produção agrícola. Recentemente, Ozaneide viu o seu projeto regional ganhar os holofotes da mídia nacional. Ela foi uma das convidadas da produção de Velho Chico, novela da Rede Globo, para relatar sua experiência de sucesso no seminário “Vozes do Velho Chico”, realizado no Museu do Amanhã (RJ) em meio à festa de lançamento do folhetim. Com um jeito sincero e despachado, Ozaneide ganhou a simpatia da plateia logo nos primeiros momentos da apresentação e comoveu ao relatar os resultados conseguidos até agora em sua comunidade.

FUGINDO DO VENENO Em vias de se formar como gestora ambiental, Ozaneide Santos resolveu abandonar a prática da agricultura convencional ao aliar a necessidade de fugir dos males provocados pelo uso de “veneno” (agrotóxicos) à difusão de um trabalho continuado de educação ecológica na comunidade. “A grande diferença é que o nosso processo de produção, além de não utilizar adubos químicos, tem reconhecimento no coletivo,ou seja, todos participam – cada um no seu momento –, seja na colheita, seja na venda da feira semanal ou na compra dos insumos. E o que é mais importante: sempre com a preocupação do uso racional da água e de tudo mais que diga respeito ao meio ambiente do local”, complementa. Segundo ela, a diferença da agroecologia para as outras práticas está na ênfase dada à questão social: “A agricultura orgânica pensa apenas

37

AG R I C U LT U R A

Ecologicamente corretas


Verduras e legumes cultivados sem agrotóxicos: diferencial valorizado pelo mercado

em produzir alimentos livres da contaminação por agrotóxicos, ao passo que a agroecologia tem como foco o meio ambiente, a preservação da água, a valorização da cultura local. Em nosso projeto, pensamos muito sobre o fortalecimento da juventude rural, a participação da mulher no campo e o aumento da qualidade de vida. Tudo isso, é claro,sempre levando em conta a produção de alimentos saudáveis”. Para chegar ao resultado esperado, algumas etapas de preparo do solo precisaram ser consideradas pelos agricultores do Assentamento Mandacaru, como época do ano, declividade do terreno, textura e teor de umidade do solo, condições de drenagem e grau de compactação das terras, para garantir um bom índice de impermeabilidade. “Aqui, trabalhamos no sistema de revezamento. De quatro em quatro horas, as famílias se revezam no plantio, na rega e na colheita. Passamos todo o dia dedicados ao campo, somos bem rigorosos nisso. O resultado compensa: os nossos produtos estão livres de agrotóxicos e conservam muito mais suas propriedades nutricionais”, orgulha-se Maria Nilza da Silva, outra agricultora que participa do projeto, lembrando que, na região cultivada pelos membros da Associação, aproveita-se de tudo: “Raspa de pau, restos de comida, urina de vaca, esterco, folha. Tudo vira adubo”, comenta. Começa aí o caminho para a colheita de produtos saudáveis. O comprometimento da comunidade e o respeito às regras na produção garantiram à Associação o cadastro na Organização de Controle Social (OCS), espécie de certificação de qualidade. O grupo de agricultores integra o único assentamento, dos 37 situados no entorno de Petrolina, que trabalha com agricultura orgânica. “Sofremos muito no início. Chamavam a gente de sem-

-terra, ladrões... diziam que os assentamentos não tinham nada para oferecer. Hoje, escolas, universidades, turistas vêm à nossa sede para conhecer os nossos produtos. E nós também vamos a eles. Estamos colhendo o que viemos buscar há 17 anos: prosperidade”, defende Custódia Martins Pereira.

ÁGUA DE DIFÍCIL ACESSO Para consumar todo o trabalho foi preciso que os agricultores construíssem duas bombas para captar água do canal que abastece o principal perímetro irrigado da região, operado pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). “Nossa água é regrada, sendo oito horas destinadas ao consumo da comunidade. As demais horas são para irrigar a produção. Se não tivéssemos investido do próprio bolso nesse dispo-

A perspectiva dos agricultores do Assentamento Mandacaru é de crescimento do volume da produção. Também já é concreta a diversificação de produtos: a partir de setembro, eles terão a sua primeira colheita de uvas orgânicas.

38

sitivo, ficaríamos sem nada. Estamos dentro do território do perímetro, que é o maior do Vale do São Francisco, mas, simplesmente por eles não nos considerarem irrigantes, não tínhamos acesso à água”, diz Ozaneide dos Santos, que destaca: “Os nossos jovens precisam entender a importância de conservar a água, especialmente nessa região, com tanta escassez”. A ironia é que o assentamento Mandacaru está a apenas 20 quilômetros de distância do rio São Francisco. “Se nós, que estamos tão próximos, não usufruímos, imagine os que vão depender da transposição?”, questiona ela, que tem sérias críticas à maior obra de infraestrutura hídrica do governo federal, prevista para ser entregue no início de 2017. Tudo o que é produzido pelos membros da Associação tem destino certo: a feira orgânica do Vale do São Francisco, realizada aos domingos, no bairro de Areia Branca, em Petrolina. Outra parte da produção abastece alguns restaurantes populares e cozinhas comunitárias da região, por meio de iniciativas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). “Se a tivéssemos água para suprir o nosso território, sem dúvida, estaríamos vendendo para todo o Submédio São Francisco”, observa Nivalda Pereira de Araújo, que, hoje, garante ao menos um salário mínimo por mês com a venda dos produtos que produz para a Associação. Ozaneide dos Santos, presidente da Associação: “Agroecologia tem como foco o meio ambiente, a preservação da água e a valorização da cultura local”


UVAS A CAMINHO Frutas como banana, manga e mamão estão entre os produtos cultivados pelos agricultores do Assentamento Mandacaru. A perspectiva é de crescimento do volume dessa produção, que é de cerca de 500 quilos/mês, e de sua diversificação. A partir de setembro, o Assentamento terá sua primeira colheita de uvas orgânicas –espera-se uma produção de 20 mil toneladas da fruta. “A proposta é, além de vender a fruta cultivada sem defensivos agrícolas, produzir o nosso vinho”, assegura Ozaneide, observando que a região é famosa pela produção de vinho em grande escala, o que atrai investidores brasileiros e estrangeiros para o Vale do São Francisco. Numa plantação orgânica, as proteções das videiras são feitas com biocaldas e extratos, fabricados a partir de outras plantas, de esterco e até de cinzas de forno a lenha. Os cuidados com a produção estão sob a responsabilidade do agricultor Vicente Joaquim Cruz, 72 anos. Ele trabalhou por muitos anos em vinícolas da região, até ser despedido. “Ser empregado dos outros tem esse risco. Mas hoje eu cuido da minha própria horta e é daqui que tirarei todo o meu sustento”, diz,cheio de orgulho. Vicente, que aprendeu a plantar utilizando apenas agrotóxico, revela nunca ter acreditado no método orgânico. “Na verdade, não sabia o que era. Depois que fomos capacitados, percebi que até o gosto do alimento é melhor”, conta. Nos últimos anos, o agricultor só viu sua vida progredir. “Aprendi a ler aos 66 anos. Tempos atrás, passei no curso superior de Zootecnia. Isso tudo graças aos ensinamentos da Ozaneide e do trabalho com a Associação”, reconhece o agricultor. Nove outras famílias que estarão à frente da iniciativa também passaram por treinamento especializado para aprender as técnicas de cultivo. “Toda a distribuição de água na plantação é através da técnica conhecida como gotejamento. Do poço artesiano, a água é jogada para uma caixa, de onde a gente bombeia para a rega das plantas, por gotejamento, o que permite uma boa economia”, descreve Vicente.

Vicente Joaquim Cruz, que aprendeu a plantar utilizando apenas agrotóxico, revela nunca ter acreditado no método orgânico. Hoje, ao 72 anos, não só acredita como está vendo a sua vida progredir a cada dia.

Reduto feminino: cerca de 80% do quadro da Associação é composto por mulheres

PODERES AFRODISÍACOS Menor que o mandacaru, mas sempre confundido com este pela semelhança, o xique-xique é um tipo de cacto natural da Caatinga. Geralmente é utilizado na alimentação de animais. Agora, graças à iniciativa das mulheres do Assentamento Mandacaru, virou base para uma receita especial de doce que tem conquistado cada vez mais consumidores. “De um cacto da Caatinga, que ninguém valoriza, a gente consegue extrair um doce maravilhoso”, assegura Maria Gomes dos Santos, uma das integrantes da Associação. A doceira, que vem capacitando jovens para atuar no ofício, criando uma nova alternativa econômica para a região, destaca a qualidade do produto. “Um estudo comprovou a existência, no xique-xique, de 42% de fibras e 23% de magnésio. É bom para os ossos do corpo”, informa a

agricultora, mostrando um documento do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), em Pernambuco, atestando essas propriedades do vegetal. Outra doceira, Maria Nilza da Silva, revela que o processo de utilização do cacto é muito difícil “porque tudo precisa ser feito ‘na mão grande’. Descascamos, tiramos todos os espinhos, para só então começarmos a produção do doce”, explica, sem querer revelar detalhadamente a receita. “Por enquanto é segredo. Vamos tirar a patente”, diz. A produção de doces e geleias ganha reforço com o uso das frutas produzidas pelo Assentamento. “O carro-chefe, porém, é o doce de xique-xique”, assegura Ozaneide Santos, lembrando que o produto, inclusive, tem poderes afrodisíacos.

39


VISUAIS LIVRO

FOTO: DIVULGAÇÃO

IMAGENS DO CANGAÇO

NATUREZA CRIATIVA Idealizado em 1980 pelo mineiro Bernardo de Mello Paz, o Instituto Inhotim é um dos grandes atrativos da bacia do São Francisco. É também o maior centro de arte contemporânea a céu aberto do mundo, cercado por um majestoso jardim botânico (com mais de quatro mil espécies de plantas) e lindos lagos artificiais. Localiza-se no município de Brumadinho, vizinho a Belo Horizonte, ocupando uma área de aproximadamente 110 hectares. O espaço reúne pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, vídeos e diversas instalações. Mais de 20 galerias abrigam obras de 85 artistas de 26 nacionalidades diferentes. Algumas galerias são dedicadas às obras permanentes e outras, às temporárias. As primeiras foram criadas para abrigar o trabalho de artistas como Adriana Varejão, Cildo Meireles, Marilá Dardot, Miguel Rio Branco, Hélio Oiticica, Neville D’Almeida e Doris Salcedo.

40

MÚSICA MORÃO DI PRIVINTINA “Sou Barranqueiro, sou forte, filho de Nego D’Água, um nobre, protetor das corredeiras” Assim é descrita a garra do povo são-franciscano no canto poético do grupo musical Morão Di Privintina, do município ribeirinho de Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Criado em 1998, pelo compositor Paulo Araújo e pelo poeta João Filho, o grupo expressa em suas músicas e poesia as dores, os amores e a dura realidade do Sertão da Bahia. Já bastante conhecido no oeste baiano, o trabalho de Araújo ganhou maior visibilidade recentemente, graças ao convite para integrar a trilha sonora da novela Velho Chico, que está sendo exibida pela Rede Globo. Algumas músicas, inclusive, foram apresentadas pelo grupo na festa de lançamento do folhetim no Museu do Amanhã (RJ), no início de março.

O fotógrafo Márcio Vasconcelos sempre se encantou com as aventuras de Lampião e seu grupo de cangaceiros. Em 2010, viajou durante dois meses cerca de quatro mil quilômetros, refazendo a trilha de Virgulino Ferreira da Silva e seu bando pelo interior de Alagoas e Sergipe. O resultado foi o ensaio fotográfico laureado com o XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, exibido ao público em diversas exposições pelo País. Recentemente, Vasconcelos voltou a incursionar pelo tema, captando imagens inéditas para compor o livro Na Trilha do Cangaço – O Sertão que Lampião Pisou, que teve concepção e curadoria de Maureen Bisiliat, pela editora Vento Leste. O livro, de 104 páginas, traz um texto do historiador Frederico de Melo e apresenta imagens de cinco estados da região Nordeste – Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Bahia e Ceará, os quatro primeiros banhados pelo Velho Chico. Em sua incursão, o fotógrafo visitou cidades e pequenos vilarejos que estavam no caminho de Lampião no último dia de sua vida. O projeto levou em conta as imagens documentadas por fotógrafos da época e a busca de personagens que, de alguma maneira, estão relacionadas com a trajetória do cangaço.


ARTESANATO TEATRO

O olhar atento de Lizandra Martins sobre o seu cotidiano garantiu à jovem fotógrafa o ângulo perfeito para retratar o dia a dia do percurso feito pelas barquinhas do rio São Francisco na travessia entre as cidades ribeirinhas de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE). O esforço garantiu a artista uma primeira exposição fotográfica intitulada A Travessia, que teve lançamento no último mês de abril, com apoio do Serviço Social do Comércio (Sesc). Feitas com um Smartphone, as imagens ganham profissionalismo e espontaneidade ao unir as belas paisagens do Velho Chico com a vida cotidiana de visitantes e moradores dos dois principais centros econômicos do Vale do São Francisco. A exposição fica aberta ao público até o dia 1º de julho, de terça a sexta, das 8h às 20h, sábado e domingo, das 16h às 20h, na Galeria de Artes Ana das Carrancas, em Petrolina. A entrada é franca.

CERÂMICAS DE SANTANA São muitas e diferentes as peças artesanais produzidas nos diversos cantos da bacia do rio São Francisco, mas chama atenção a numerosa produção do município sergipano de Santana do São Francisco, localizado às margens do Velho Chico, no lado oposto a Penedo (AL). Os portugueses Pedro Gomes da Silva e Belarmino Gomes da Silva, pai e filho respectivamente, foram seus fundadores e montaram uma fazenda para produzir arroz e cana-de-açúcar. Nessa mesma fazenda foi implantada a primeira cerâmica local, batizada de “Carrapicho”. A partir daí, os moradores fizeram do artesanato em argila sua principal fonte de renda. O artesanato absorve hoje cerca de 70% da mão de obra local. Quem não faz peças, cava o chão para tirar a argila, um barro cinzento encontrado nas várzeas do rio, considerado o melhor do estado para confecção de cerâmicas. O sucesso das peças é tão grande que, além de abastecer vários estados brasileiros, elas são exportadas para países como Japão e Coreia.

41

FOTO: DIVULGAÇÃO

OLHANDO BARQUINHAS

O grupo teatral paulista Circo do Asfalto elegeu o território do São Francisco como palco para suas apresentações. Por meio do projeto Eu Vou pro Mar pelas Águas do Rio São Francisco, a trupe de atores e artistas circenses partiu de São Bernardo do Campo, em São Paulo, para encenar o bem humorado espetáculo Show da Percha em municípios da bacia. Todos os estados serão percorridos ao longo de 2016, com apresentações em pelo menos 15 cidades. O objetivo é levar cultura e arte aos povos ribeirinhos, com a perspectiva de difundir e formar público para as artes cênicas, especialmente a do circo. No percurso, o grupo pretende realizar oficinas de técnicas circenses e promover a exibição do documentário Sobre as Águas do Velho Chico, que retrata contos, histórias, “causos” e lendas do universo são-franciscano.

FOTO: LIZANDRA MARTINS / DIVULGAÇÃO

FOTOGRAFIA

O RIO NO PICADEIRO


FRANC ISCO SÃO

Piranha TEXTO: GEORGE OLAVO

SE RE S

DO

ILUSTRAÇÃO: RODOLFO CARVALHO

42

Piranhas são peixes de água-doce cuja voracidade e forte mordida as tornaram muito conhecidas. São naturais dos rios da América do Sul e pertencem à grande ordem dos peixes Characiformes, incluindo mais de 40 espécies classificadas na família Serrasalmidae. São predadores velozes. Possuem uma nadadeira caudal larga e poderosa, com o corpo comprimido lateralmente, recoberto por escamas muito pequenas. Os olhos geralmente são grandes, porém o olfato é o sentido mais apurado para a caça nas águas turvas das correntes ou sombreadas pela vegetação das margens, nos rios onde habitam. Predadores do topo da cadeia alimentar como as piranhas são essenciais para a manutenção da saúde e estrutura dos ecossistemas naturais, controlando o tamanho das populações de suas presas e removendo os indivíduos mais debilitados e vulneráveis dessas populações. As piranhas são importantes também para o homem, como recurso pesqueiro alternativo. O caldo de piranha, inclusive, é um prato muito apreciado na culinária regional da Amazônia e do Pantanal. Espécies de diferentes gêneros de piranhas se distribuem pelas principais bacias hidrográficas da região Amazônica, do Pantanal, do rio da Prata e do Paraná, no Sul, e também nas bacias do Nordeste brasileiro. As espécies mais conhecidas encontradas na bacia do rio São Francisco pertencem a dois gêneros distintos: o gênero Serrasalmus, representado pelas Pirambebas, e o gênero Pygocentrus, incluindo espécies referidas como “Piranhas-verdadeiras”. As piranhas do gênero Pygocentrus são reconhecíveis pela forma convexa de sua cabeça e enorme mandíbula (maxila inferior lembrando o perfil de um bulldog), usada para rasgar a presa. Essas piranhas, geralmente, vivem em grandes cardumes, caçando outros peixes, sendo comum o comportamento agressivo entre si, inclusive o canibalismo. Podem também atacar grandes vertebrados, quando solitários, debilitados ou moribundos, como aves e mamíferos. A espécie mais emblemática é a Piraya ou Piranha-amarela (Pyocentruspiraya), a maior entre as piranhas-verdadeiras do São Francisco, podendo atingir até 60 centímetros de comprimento. As Pirambebas (gênero Serrasalmus), por sua vez, apresentam a forma da cabeça mais côncava, com mandíbulas menos robustas. Várias espécies desse gênero alimentam-se principalmente de pedaços de barbatanas e escamas de outros peixes, além de nozes e frutas. Independentemente de sua dieta, todas as Pirambebas compartilham a marca inconfundível das piranhas: os dentes são triangulares, em forma de navalha afiada, grandes no maxilar inferior e menores no superior. Quando a boca está fechada, os dentes de ambos os maxilares se encaixam perfeitamente, cortando fatias das presas como uma guilhotina. Algumas espécies de Pirambebas, como Serrasalmus rhombeus, S. manuelie S. elongatus, por exemplo, são predadoras ativas quando adultas, apesar de não possuírem mandíbulas muito proeminentes.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.