Revista Chico Nº 3 - Março / 2018

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03 Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco • Março 2018

A guerra da água em Correntina The water war Correntina

O homem, a natureza e os agrotóxicos Man, nature and pesticides

Meu Bom Jesus dos Navegantes My Good Lord of the Sailors

O ensaio franciscano de Miguel Aun The franciscan essay by Miguel Aun

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Expediente

SU

PRESIDENTE / CHAIRMAN: ANIVALDO DE MIRANDA PINTO VICE-PRESIDENTE / VICE CHAIRMAN: JOSÉ MACIEL NUNES OLIVEIRA SECRETÁRIO / SECRETARY: LESSANDRO GABRIEL DA COSTA PRODUZIDO PELA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CBHSF - TANTO EXPRESSO PRODUCED BY THE CBHSF COMMUNICATION DEPARTMENT - TANTO EXPRESO

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Páginas Verdes / Green pages Uma janela para o Brasil A window to Brazil

Boas práticas / Good practices De grão em grão Grain by grain

Conflito / Conflict Estrada da fúria Road of fury

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UMÁRIO SUMÁRIO 22

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Cultura

Programa social

Culture

Social Program

O olhar de Miguel Aun

Direito universal

The look of Miguel Aun

A universal right

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Crime ambiental Environmental crime

Meio ambiente

Estranho no ninho

A stranger in the nest

Environment

Caso sério

A serious case

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Comunidade

História

Community

History

Andar com fé Walking with faith

Os homens das cavernas

Cavemen

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Foto: José Israel Abrantes

Editorial

Photo: José Israel Abrantes

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PACTO DAS ÁGUAS O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) e o Governo do Estado da Bahia deram um passo emblemático para o início concreto do longo processo de construção do Pacto das Águas do Velho Chico e seus rios afluentes. Depois da conclusão dos entendimentos que levaram a Agência Nacional de Águas, o CBHSF, os estados da Bacia e o setor elétrico a estabelecerem uma nova metodologia para a operação dos grandes reservatórios de água nas diversas conjunturas climáticas, a assinatura de um protocolo de intenções entre o Comitê e o estado da Bahia para implementação conjunta do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica é o segundo ato concreto de maior significado para incrementar a gestão eficaz e pactuada das águas e estimular o desenvolvimento sustentável em uma vasta e estratégica área que corresponde a cerca de 8% do território brasileiro. O protocolo logo deverá evoluir para a consecução de termos de cooperação técnica e outras formas de parceria, inclusive aquelas destinadas a potencializar os resultados e a escala dos projetos e ações a serem financiados com os recursos oriundos da cobrança pelo uso das águas do Velho Chico. Para que o protocolo não seja mais um daqueles documentos que ficam pairando no ar, as duas partes elegeram desde já a Bacia do Rio Correntes como o primeiro cenário de cooperação concreta, atendendo inclusive às necessidades urgentes de implementação de instrumentos efetivos de gestão hídrica que ajudem a solucionar os graves conflitos pelo uso das águas naquela região. Em breve os demais estados da Bacia, Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Goiás e o Distrito Federal, receberão acenos do CBHSF para que aproximações análogas a essa feita na Bahia sejam replicadas para que um dia o Pacto das Águas franciscanas, em torno dos objetivos e metas do seu Plano de Recursos Hídricos, se torne uma vitória da modernidade ambiental que o Brasil tanto está a reclamar! Anivaldo Miranda Presidente do CBHSF

WATER PACT The São Francisco River Basin Committee (CBHSF) and the State Government of Bahia took an emblematic step towards the concrete beginning of the long process of construction of the Water Pact for the Old Chico and its tributaries. After the conclusion of the agreements that led the National Water Agency, CBHSF, the basin states and the electricity sector to establish a new methodology for the operation of large water reservoirs in various weather conditions, the signing of a protocol of intentions between the committee and Bahia for the joint implementation of the Water Resource Plan for the river basin is the second concrete act of great significance to increase the effective joint management of the water, and to stimulate sustainable development in a vast strategic area that corresponds to about 8 % of the Brazilian territory. The protocol will soon evolve towards the development of terms of technical cooperation and other forms of partnership, including those aimed at maximizing the results and the scale of the projects and actions to be financed with the resources derived from charging for the use of water from the Old Chico. In order for the protocol not to become just one more document hovering in the air, both parties have already elected the Correntes river basin as the first scenario for concrete cooperation, including the urgent need for the implementation of effective water management instruments to help solve the serious conflicts over the use of water in the region. Soon the other states in the basin, Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Goiás and the Federal District, will be contacted by CBHSF so that agreements similar to that made with Bahia may be replicated. The idea is for the São Francisco Water Pact, according to the objectives and goals of its Water Resource Plan, to become a victory of environmental modernity that Brazil yearns for!

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Páginas Verdes

Uma janela para o Brasil Em entrevista à revista Chico, sobre os desafios do 8º Fórum Mundial da Água, que acontece este mês em Brasília, o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, defendeu a descentralização das políticas públicas para o enfrentamento da crise ambiental Por Revista Chico Você espera grandes resultados do 8º Fórum? Anivaldo Miranda - É difícil responder à pergunta. A grande maioria dos eventos internacionais dedicados à temática das águas tem deixado muito a desejar. Em verdade, os grandes acordos dedicados ao enfrentamento do fenômeno do aquecimento global e seus assuntos correlatos, como a crescente escassez hídrica no mundo, ficam muito aquém do tamanho dos desafios que a humanidade precisa enfrentar e da velocidade através da qual a degradação ambiental avança no planeta. Mas, isso não é motivo para desânimos. Ao contrário, nos anima ainda mais para articular ações que revertam essa situação. Na sua opinião, entre os grandes entraves ao avanço das políticas públicas do meio ambiente e da água, qual deles você gostaria de destacar? Os governos precisam compreender que chegou a hora de descentralizar pra valer as políticas públicas porque, sozinhos, seja no Brasil ou em qualquer outra parte da Terra, não serão capazes de enfrentar com êxito a crise ambiental global. No caso da água nunca foi tão urgente implementar os princípios da gestão participativa e compartilhada dos recursos hídricos, única capaz de envolver a sociedade civil e os usuários da água para garantir disponibilidade de água de boa qualidade para toda a humanidade. E como descentralizar essas políticas e torná-las mais participativas? É isso que queremos ouvir e aprender durante o 8º Fórum e demais encontros alternativos, porque as formas de tornar as políticas públicas mais participativas variam de país a país e até de região a região. No caso brasileiro, o melhor instrumento para alcançar esse objetivo são os Comitês de Bacias Hidrográficas que compõem a base do Sistema Nacional dos Recursos Hídricos e se constituem no melhor espaço institucional para arbitrar conflitos em torno dos direitos de uso da água e construir consensos para o seu uso mais racional. Porém, os Comitês de Bacias Hidrográficas precisam urgentemente de apoio do governo federal brasileiro e dos governos dos estados para serem criados em todas as Bacias Hidrográficas com condições mínimas de funcionamento e empoderamento efetivo. 6

No Brasil, portanto, a saída da gestão eficaz das águas está nos Comitês? Não apenas nos Comitês. Além de torná-los mais fortes e financeiramente viáveis através da implantação da cobrança pelo uso da água bruta, os governos, no Brasil, precisam universalizar em cada Bacia Hidrográfica a implantação dos demais instrumentos de gestão das águas, tais como sistemas confiáveis de outorga do direito de uso dos recursos hídricos, cobrança, sistemas de monitoramento de qualidade da água, integração da gestão das águas superficiais e subterrâneas, enquadramento dos corpos hídricos, maiores investimentos em ciência e tecnologia. Além disso, o Brasil precisa investir muito mais em gestão ambiental. Quais seriam as maiores ameaças à gestão das águas no Brasil e mais especificamente na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco? As maiores ameaças à gestão das águas no Brasil decorrem do insano processo de devastação dos grandes biomas brasileiros. E aqui me refiro não somente à Floresta Amazônica, mas também e, principalmente, aos biomas do Cerrado e da Caatinga, esses últimos vitais para a viabilidade do semiárido brasileiro, da Região Nordeste e do Norte de Minas Gerais. É urgente a aprovação de uma emenda à Constituição Brasileira que declare a Caatinga e o Cerrado como patrimônios nacionais. Como o Comitê do Rio São Francisco vai participar do 8º Fórum Mundial da Água? Somos um colegiado e vários dos nossos membros, homens e mulheres, participarão dos diversos eventos oficiais e não oficiais do Fórum, bem como de outros eventos alternativos. Além das publicações bilíngues que falam das nossas ações, o Comitê terá um estande com uma programação de atos culturais, lançamento de livros, assinatura de termos de cooperação técnica, reuniões com instituições parceiras, anúncio de projetos e um sem número de atividades outras que farão do nosso espaço um dos mais atrativos desse grande encontro internacional.


A window to Brazil In an interview to Chico magazine on the challenges of the 8th World Water Forum which is happening this March in Brasilia, CBHSF chairman Anivaldo Miranda defended the decentralization of public politics for facing the environmental crisis By Chico Magazine

The 8th World Water Forum in Brasilia which will happen between March 18 - 23 is an opportunity for a real and productive exchange of experiences among Brazilians involved in the theme of water and the international community that, directly or indirectly, interacts with the same problem. Journalist Anivaldo Miranda, chairman of the São Francisco River Basin Committee, spoke to CHICO magazine about the expectations around the main ecological event of 2018. CHICO- Do you expect great results from the 8th Forum? Anivaldo Miranda - This question is difficult to answer. The great majority of international events dedicated to the theme of water have left much to accomplish. In fact, the great agreements dedicated to the confrontation of the phenomenon of global heating and its related subjects, such as the increasing water scarcity in the world, are belittled when compared to the size of the challenges that humankind must face and the speed with which environmental degradation advances in the planet. But this is no reason for discouragement. On the contrary, it makes us even more excited to promote actions that will revert this situation. In your opinion, which of the great impediments to the advance of public policies for the environment and water you would like to point out as the most important ones? Governments must understand that this is the time to decentralize public policies because no one will be capable of successfully facing the global environment crisis alone, either in Brazil or any other part of Earth. In the case of water it has never been so urgent to implement the principles of participative and shared management of water resources, the only type of management capable of involving the civil society and water users to guarantee the availability of good quality water for all humankind. And how can we decentralize these policies and make them more participative?

In Brazil, therefore, the solution for efficient water management are the Committees? Not only the Committees. In addition to making them stronger and financially viable by charging for the use of the rude water, governments in Brazil must make the implementation of other instruments for water management universal, such as reliable systems for granting the right to use of water, interaction of the management of surface and underground water, classification of water bodies, and more investment in science and technology for all river basins. Moreover, Brazil must invest a lot more in environmental management. What are the biggest threats to water management in Brazil, and more specifically in the São Francisco River Basin? The biggest threats to the management of water in Brazil come from the insane process of devastation of large Brazilian biomes. And I’m not talking only about the Amazon Forest, but also and mainly about biomes in the Cerrado and Caatinga, which are vital for the sustainability of the Brazilian semi-arid regions, the Northeastern Region and the North of Minas Gerais. The approval of an amendment to the Brazilian Constitution that will acknowledge the Caatinga and Cerrado as national heritage is urgent. What will be the participation of the São Francisco River Basin Committee in the 8th World Water Forum? We are a collegiate body and a large number of our members, men and women, will participate in the several official and non-official events of the Forum, as well as in other alternative events. In addition to distributing bilingual publications that talk about our actions, the Committee will have a stand with cultural activities, book releases, signature of technical cooperation agreements, meetings with institutions partners, announcement of projects and several other activities that will make our space one of most attractive in this great international meeting.

This is what we want to hear and learn during the 8th Forum and the other alternative meetings, because the ways to make public policies more participative vary from country to country and even from region to region. In the Brazilian case the best instruments to reach this objective are the River Basin Committees, which make up the basis of the National System of Water Resources and are the best institutional spaces to arbitrate on conflicts around the rights of use of water and to build consensus for its more rational use. However, the River Basin Committees urgently need the support from the Brazilian federal government and state administrations in order to be created in all river basins with minimum operating conditions and effective empowering.

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Boas prรกticas

Trabalhadora observando o viveiro de mudas do Cerrado, em Patos de Minas (MG) Worker looking at the Cerrado seedling nursery in Patos de Minas (MG)

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De grão em grão Com ações pontuais, o CBHSF está contribuindo para revitalizar, preservar e engajar a população ribeirinha na grande missão: salvar o Velho Chico Por Luiza Baggio / Fotos: Bianca Aun 9


O São Francisco é o maior rio do Brasil, que nasce e morre em território nacional. Com 2.863 quilômetros de extensão, desponta na Serra da Canastra, em São Roque de Minas (MG), e escoa no sentido sul-norte pela Bahia e Pernambuco, quando altera seu curso para o sudeste, chegando até a foz no oceano Atlântico, na divisa entre Alagoas e Sergipe. Ao todo, corre seis estados e o Distrito Federal. A Bacia Hidrográfica do Velho Chico ocupa uma área de 640 mil quilômetros quadrados. Para cuidar dessa imensidão, um dos maiores tesouros do país, foi criado, em 2001, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), cuja missão é: realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da Bacia, protegendo os mananciais e contribuindo para o desenvolvimento sustentável. Nos últimos tempos, além das ações previstas no Plano de Recursos Hídricos, o CBHSF está investindo em questões locais, como as que você vai conhecer a seguir: Fiscalização Preventiva Integrada (FPI) Implantada em 2002, na Bahia, a Fiscalização Preventiva Integrada (FPI) é um programa continuado voltado para a defesa das comunidades tradicionais, da saúde, do meio ambiente e do patrimônio cultural da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Desenvolvido pelos órgãos públicos estaduais e federais de meio ambiente e saúde, Ministério Público e pelas polícias, conta com 10

o envolvimento de diversas entidades. Apoiada pelo CBHSF, a FPI tem se destacado pelo êxito no diagnóstico de degradação ambiental, possibilitando a prevenção de novos danos e a efetiva reparação dos já causados. Com atuação na Bahia, Alagoas, Sergipe e Minas Gerais, as equipes de fiscalização flagraram nos últimos anos diversas irregularidades durante as ações, tais como: descartes de materiais hospitalares e de vasilhame de agrotóxico em locais inadequados, além da existência de estabelecimentos clandestinos de abate de animais. Reconhecendo a enorme importância da Fiscalização Preventiva Integrada, em 2017 o CBHSF anunciou que investirá R$ 10 milhões para a realização da FPI no próximo triênio (2018-2020). Viveiro de mudas Uma parceria entre o CBHSF, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Prefeitura de Patos de Minas vai triplicar a produção de mudas destinadas à recuperação do Velho Chico. A parceria teve início em julho de 2017. O viveiro, localizado em Patos de Minas, pretende favorecer a recuperação de matas ciliares, nascentes, áreas degradadas, recarga hídrica e programas de educação ambiental para as comunidades rurais, visando à conservação do solo e, consequentemente, a produção de água.


A coordenadora da Câmara Consultiva Regional (CCR) Alto São Francisco, Silvia Freedman, é categórica ao afirmar que sem floresta não teremos água. O viveiro produz uma variedade de 491 espécies do Cerrado. “Hoje, a produção é de 200 mil mudas/ ano e a nossa expectativa é de aumentar para 700 mil/ano. Precisamos, a partir de agora, incentivar os produtores rurais para que plantem essas mudas em suas nascentes e nas cabeceiras”. Espera-se recuperar aproximadamente 750 hectares de áreas onde a revitalização é necessária e estrategicamente importante para a melhoria da oferta hídrica com mudas do viveiro. Reservatório “pulmão” em Piaçabuçu Ao longo de seu curso, o Velho Chico está sendo castigado por uma seca histórica. Desde 2013, sua vazão vem sendo reduzida paulatinamente. Com a redução do nível do rio, a água do mar tem avançado com cada vez mais força leito adentro, resultando num fenômeno de proporções trágicas: a salinização das águas. Pensando em uma solução mitigadora para o abastecimento de água em Piaçabuçu, o município que, por estar localizado na foz é o mais atingido, o CBHSF, em parceria com a Companhia de Saneamento do Alagoas (Casal), está desenvolvendo um projeto para a construção de uma espécie de “reservatório pulmão”. A proposta é que o reservatório tenha dimensões capazes de suprir a cidade inteira.

Estrada rural povoado de Resina A comunidade de Resina, localizada no território quilombola Brejão dos Negros, em Brejo Grande (SE), na foz do Velho Chico, também está enfrentando o desabastecimento ocasionado pela salinização do rio. Para minimizar o drama, o CBHSF vem desenvolvendo um projeto executivo para a construção de uma estrada de acesso a Brejão dos Negros, fundamental para aquela comunidade, tanto para garantir a oferta de água quanto para o escoamento da produção local. Kariri-Xocó A tribo indígena Kariri-Xocó, localizada em Porto Real do Colégio (AL), às margens do Velho Chico, tem água exposta a contaminação e que provoca riscos de doenças. O CBHSF, em conjunto com a Sesai e a Codevasf, realizou em janeiro de 2018 a limpeza do canal onde fica o ponto de captação que atualmente abastece a comunidade composta por aproximadamente 3,8 mil pessoas.

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Grain by Grain With prompt actions, CBHSF is contributing to revitalize, preserve and engage the riverside population in this great mission: to save the Old Chico. By Luiza Baggio / Photos: Bianca Aun

The São Francisco is the largest river that starts and ends in Brazilian territory. It is 1,779 miles long, starts in the Canastra mountain range in São Roque de Minas and runs from south to north through Bahia and Pernambuco, where it changes course due southeast and reaches the Atlantic on the border between Alagoas and Sergipe. In all it runs through six states and the federal District. The Old Chico river basin occupies an area of 398 thousand square miles. To take care of this vastness, one of Brazil’s richest treasures, the SÃO FRANCISCO RIVER BASIN COMMITTEE (CBHSF) was created in 2001 with the mission of running a decentralized, participative management of the basin’s water resources, protecting the springs and contributing for sustainable development. Lately, in addition to the actions from the Water Resources Plan, CBHS is investing in local issues such as the following: Integrated Preventive Supervision (IPS) Integrated Preventive Supervision was implemented in 2002 in Bahia and is a continuous program for the defense of traditional communities, health, the environment and the cultural heritage of the São Francisco River Basin. The program was developed by state and federal agencies for health and the environment and by police forces, and has the support of several other agencies. It is supported by CBHSF and has been prominent in diagnosing environmental degradation, allowing for the prevention of further damage and the effective recovery of the damage already caused. With activities in Bahia, Alagoas, Sergipe and Minas Gerais, the supervision teams have found several irregularities in the last years, such as the disposition of hospital and chemical waste at unsuitable locations, as well as clandestine slaughterhouses. CBHSF has recognized the huge importance of the Integrated Preventive Supervision, and in 2017 announced that it will invest BRL $10 million for its execution in the next three years (2018-2020).

Spare dam in Piaçabuçu All along its course, the Old Chico river is being ravaged by a drought of historic proportions. Its flow has been constantly reducing since 2013. With the lowering of the river water level, the sea water has advanced more and more inside the riverbed with a tragic result: the salinization of the river water. As a mitigating solution for the water supply for Piaçabuçu, the municipality that suffers the most since it is located at the river mouth, CBHSF is working in a partnership with The Alagoas Sanitation Company for the construction of a spare dam. The idea is for this dam to be big enough to supply the demand of the whole city. Rural road for the Resina settlement The Resina community is located in the Brejão dos Negros former slave settlement in Brejo Grande, Sergipe, at the mouth of the Old Chico, and is also facing the problem of water shortage caused by the salinization of the river. In order to minimize this problem, CBHSF has developed an executive project for the construction of an access road to Brejão dos Negros which will be fundamental for the community, both to guarantee their water supply and to allow for the sale of their local produce. Kariri-Xocó The Kariri-Xocó indigenous tribe is located in Porto Real do Colégio, Alagoas, on the margin of the Old Chico, and its water is exposed to contamination bringing about the risk of disease. In January 2018 CBHSF, together with Sesai and Codevasf, cleaned the canal which houses the collection point that supplies water for a community of close to 3,8 thousand people.

Seedling nursery A partnership between CBHSF, the National Forest Institute (IEF) and the Patos de Minas City Administration will triple the production of saplings for the recovery of Old Chico. This partnership started in July 2017. The nursery is located in Patos de Minas and helps with the recovery of riparian forests, springs, degraded areas, water recharge and environmental education programs for the rural communities, aiming at soil conservation and, consequently, water production. Sílvia Freedman, coordinator of the Alto São Francisco Regional Advisory Board (CCR), is adamant in saying that without forests we will have no water. The nursery produces 491 different species of cerrado (savanna) native plants. “Today the production is two hundred thousand saplings per year, and we intend to increase to seven hundred thousand per year. From now on we need to help local producers so that they will grow these plants on their springs and waterheads. It is expected that 750 acres of land will be recovered, which is necessary and strategically important for the improvement of water availability with saplings in the nursery.

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Conflito

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Estrada da fúria Em Correntina, no Oeste baiano, a população, com o apoio do Ministério Público da Bahia, luta para salvar o Rio Corrente e afluentes, exigindo um Plano de Bacia Hidrográfica e a delimitação do uso da água pelo agronegócio Por Andréia Vitório / Fotos cedidas pelo MPE (BA)

No dia 2 de novembro de 2017, feriado de finados, na cidade de Correntina, oeste da Bahia, mais de 500 pessoas invadiram e depredaram a fazenda Rio Claro, propriedade de uma empresa agrícola, a japonesa Igarashi. Nos vídeos que ganharam as redes sociais, viu-se a população incendiar galpões e derrubar postes de energia. Poucos dias depois, no dia 11 de novembro, 12 mil moradores, desta vez pacificamente, tomaram as ruas do município de 33 mil habitantes. O motivo era um só: a guerra pela água, trazendo para o presente o futuro apocalíptico do enredo de “Estrada da Fúria”, o quarto filme da antológica série “Mad Max”. O conflito se arrasta pelo menos desde 2015, quando o Comitê da Bacia do Rio Corrente expediu uma deliberação para que não houvesse novas concessões para uso de recursos hídricos da Bacia. Em novembro do ano passado, após os protestos, o Ministério Público Estadual (MP-BA) recomendou ao Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) a suspensão das concessões de outorgas para grandes empreendimentos. “Já constatamos que tem empreendimentos que, com 12 bombas de captação de água ligadas por 12 minutos, reduzem o nível de água do rio em 15 centímetros”, afirmou a promotora de Justiça Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa do São Francisco, do Ministério Público do Estado da Bahia. “Não é possível continuar com a quantidade de captação de água na Bacia do Corrente hoje”. 15


Nos idos de 1970, a dupla Sá e Guarabyra gravou o “Xote Correntino”: “Rio das Éguas vai passando em Correntina (...) Jamais se cansa de molhar por onde passa. Traz o peixe, traz a caça. Traz fartura até demais (...)”. Era um hino à abundância das águas que banhavam a cidade, situada na Bacia do Rio Corrente. Fosse hoje a letra seria outra, segundo o agricultor Cleiton da Rocha Souza, nascido e criado naquelas bandas: “A gente depende desta água. Vivemos de pequenos plantios e criação de animais. Se formos comparar com 15, 20 anos atrás, houve uma redução de 50% do nível das águas”.

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Cleiton vive com a família em uma propriedade onde planta alimentos para consumo, além de gerar renda comercializando hortaliças e leite: “Nós sempre produzimos sem matar nascentes. Agora, não tem mais nascentes preservadas. O agronegócio não leva em consideração o modo de vida das populações seculares. Com esse modelo de desenvolvimento e retiradas de grandes volumes de águas, superficiais ou subterrâneas, a tendência é que o rio morra”.


Foi exatamente nos anos 70, quando a famosa dupla gravava o “Xote Correntino”, que a crônica da tragédia começou a ser escrita, com a chegada dos grandes empreendimentos agrícolas. Entre eles, a japonesa Igarashi. Segundo os cálculos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Igarashi usa sozinha 182.203 m³ de água por dia, autorizado para as fazendas Curitiba e Rio Claro. O volume abasteceria 6.600 cisternas de 16 mil litros diariamente. O sistema de irrigação nas duas fazendas possui, ao todo, 32 pivôs para captação de água do Rio Arrojado. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), proposto pelo Ministério Público da Bahia, no final de 2017, ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), marca o capítulo mais

recente desta luta. São obrigações propostas: a conclusão dos estudos para elaboração do Plano da Bacia Hidrográfica para o Rio Corrente; a suspensão de novas outorgas de direito de uso de água, sejam superficiais ou subterrâneas, até a aprovação pelo Comitê do Plano de Bacia; a realização de um cadastramento para o uso dos recursos hídricos na Bacia do Rio Corrente e do Aquífero Urucuia e o monitoramento de vazões, entre outras. “Estamos investindo no melhor conhecimento do regime hídrico da região, com a implantação de novos pontos de monitoramento com telemetria e preparando projeto para cadastro destas Bacias, cuja execução parcial já foi executada de forma não satisfatória”, disse Eduardo Topázio, da direção do Inema.

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Imagens da mobilização popular denunciando os altos níveis de captação, os impactos na Bacia do Corrente e os problemas socioambientais Images of the popular mobilization denouncing high water capture levels, the impact on the Corrente Basin and social and environmental problems.

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Fala o povo

Os ribeirinhos à margem do Arrojado estão, às vezes, sem água. O que revolta esses moradores é isso. Falta água para produção e, de vez em quando, até para o consumo. João Batista Soares Ferreira, presidente Comitê do Rio Corrente

O agronegócio impacta comunidades tradicionais, que estão perdendo a identidade. Esses povos têm uma relação muito forte com o Cerrado. Os produtores antes plantavam pouco e colhiam muito. Agora, plantam muito, em áreas maiores, mas colhem pouco. Marcos Rogério Beltrão dos Santos, presidente da Associação Ambientalista Corrente Verde

Quanto mais alta a nascente, mais rápido seca, mostrando o rebaixamento do aquífero Urucuia, um dos mais importantes mananciais de água subterrânea do Brasil e grande alimentador do São Francisco. Não tem como dizer que a vazão do rio está diminuindo só por conta da estiagem. Samuel Britto, agente da Comissão Pastoral da Terra Centro-Oeste da Bahia

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Fury road In Correntina, Western Bahia, the population supported by the Bahia public prosecution service fights to save the Corrente River and its tributaries. This requires a river basin plan and the limitation of water use by agriculturers. By Andréia Vitório

On November 2, 2017, All Souls’ Day, over 500 people invaded and looted the Rio Claro farm, owned by Japanese agricultural company Igarashi in the city of Correntina, Western Bahia. In the videos that were posted on social networks the people set fire to warehouses and brought down power poles. A few days later, on November 11, twelve thousand people took to the streets in the same city of 33,000 inhabitants, this time peacefully. The reason was the same: the war for water, bringing to the present the apocalyptic future of the plot of “Fury Road”, the fourth film in the “Mad Max” series. The conflict has dragged on since at least 2015, when the Corrente River Basin Committee issued a resolution to ban new concessions for the use of water resources from the basin. In November of last year, after the protests, the Public Prosecutor’s Office (MP-BA) recommended that the Institute of the Environment and Water Resources (Inema) suspend the concession of licenses for large enterprises.

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“We have determined that there are projects with 12 water pumps turned on for 12 minutes, reducing the water level of the River in 15 centimeters,” said district attorney Luciana Khoury, Coordinator of the Center for The Defense of the São Francisco, of the Public Prosecutor’s Office of the State of Bahia. “It is not possible to go on with the amount of water captured from the Corrente basin today”. The dance is different. In 1970, singers Sá and Guarabyra recorded the song “Xote Correntino” (Dance from Correntina): “The river of Mares is passing through Correntina (...) Never gets tired of watering everything, wherever it goes. It brings fish, it brings game. Brings too much plenty (...) “. It was a hymn to the abundance of water that flowed through the city, situated in the basin of the Corrente river. Today the words would be different, according to farmer Cleiton da Rocha Souza, born and raised in the land: “We depend on this water. We live off small plantations and raising herds. If we compare now and 15, 20 years ago, there has been a 50% reduction on the water level”. Cleiton lives with his family in a property where he plants food for their own consumption, as well as generating income by selling vegetables and milk: “We always produce our food without killing the springs. Now there are no more preserved springs. The agribusiness does not take into account the livelihood of the people. With this model of development, and with the use of large volumes of water, both surface and groundwater, the trend is for the river to die. “ It was in the 1970s, when the famous duo recorded “Xote Correntino”, that the tragedy began to be written with the arrival of large agricultural enterprises. They included Japanese company Igarashi. According to the calculations of the Pastoral Land Commission (CPT), Igarashi alone uses 182,203 m³ of water a day, a volume allowed for the Curitiba and Rio Claro farms. This volume would fill 6,600 16-thousand-liter wells on a daily basis. The irrigation system in the two farms has, in all, 32 pivots for capturing water from the Arrojado river. The Term of Adjustment of Conduct (TAC) proposed by the Public Prosecution Office of Bahia in late 2017 to the Institute of the Environment and Water Resources (Inema), represents the most recent chapter of this fight. The proposed obligations are: the conclusion of the studies for the elaboration of the River Basin Plan for the Corrente River; the suspension of new grants of right to water use, whether superficial or underground, until approved by the Basin Plan Committee; registration in a directory for the use of water resources from the Corrente River Basin and the Urucuia Aquifer, and the monitoring of flow rates, among others. “We are investing in optimum knowledge of the water patterns in the region with the implementation of new monitoring points with telemetry capabilities, and we are preparing a project for an inventory of these basins, whose partial execution was already executed but in a non satisfactory way”, said Eduardo Topaz, director of Inema. According to him, the licenses issued in the region follow legal criteria with maximum per-user limits determined by law: 20% of the reference flow rate is adopted. “We intend to review these values, update and validate them with the improvement of the monitoring network”, he commented. He pointed out that Inema has prepared itself from the technical and legal points of view to act efficiently in the resolution of conflicts in water basins in the State of Bahia. “We are reviewing the terms of reference for the continuity of the Corrente and Grande plans, which were partially drawn up and with their diagnosis stages already completed, but they need a new contract for executing the next steps”. Finally, he pointed out that Inema will continue to measure the captured volumes and whoever does not abide by that will suffer legal consequences. When speaking of the next steps in the scenario, he listed: “Completing the Basin Plans, and updating the data on water availability and the register of users are our technical priorities. Opening a direct, more frank and proactive dialogue with society is another step we are taking by means of the initiatives and projects we will be presenting in the region. “

The rise, year by year. From 1960 to 1970 The expansion of the agricultural frontier into the western region of Bahia brings along land invaders and gunmen. Beginning of the implementation of reforestation projects, with the monoculture of Pinnus and Eucalyptus. Land invasions, gunmen, fraudulent deeds and corruption marked the decade, in addition to evidence of slave labor, overexploration of work and degrading work. From 1970 to 1980 The 1970s saw the largest number of murders in the countryside - and, consequently, a better organization of the Rural Workers’ Unions. From 1990 to 2000 Consolidation of agribusiness with the installation of the first central pivots, and consolidation of the resistance of local communities. In the year 2000, two farmers illegally make a 9-km-long, ten-meter-wide canal to divert the waters of the Arrojado River. The population of Correntina reacts and, in a symbolic act, covers the canal. In 2015 The Institute for the Environment and Water Resources (INEMA) grants the Igarashi Farm the right to withdraw a flow of 182,203 m³/day from the Arrojado river. The Corrente river CBH issues a resolution requesting that the government refrain from issuing new grants for projects in the Corrente river Basin until priorities of use are defined in the Water Resources Plan. The Integrated Preventive Inspection (FPI) - MP identifies a single enterprise with 12 capture pumps which, connected together for 12 minutes, reduce the water level by 15 centimeters. In 2017 November 2: occupation of the Rio Claro farm, property of Japanese company Igarashi. November 11: demonstration with about 12 thousand people denouncing high levels of water capture, the impacts on the Corrente Basin and the social and environmental problems of the region. Late November: Term of Adjustment of Conduct proposed to INEMA by the Public Prosecutor’s Office.

The people speak “The riverside people on the bank of the Arrojado sometimes have no water. This is what makes these residents angry. Lack of water for production and, from time to time, even for consumption “, (João Batista Soares Ferreira, Chair of the Corrente Committee). “Agribusiness impacts traditional communities, and they are losing their identity. These peoples have a very strong relationship with the Cerrado. The farmers used to plant little and reap a lot. Now they plant a lot, in larger areas, but reap little “ (Marcos Rogério Beltrão dos Santos, president of the Corrente Verde Environmental Association) “The higher the spring, the faster it dries, which shows the lowering of the Urucuia aquifer, one of the most important groundwater sources in Brazil and a major feeder of the São Francisco. You can’t say that the flow of the river is decreasing just because of the drought “, (Samuel Britto, agent from the Center-Western Bahia Pastoral Land Commission.)

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Cultura

O olhar de Miguel Aun Considerado um dos mais importantes fotógrafos brasileiros, com obras em acervos como MASP e Coleção Itaú, ele apresenta nas páginas a seguir um resumo em imagens magníficas da vida cotidiana à beira do Alto São Francisco Por Karla Monteiro

Venda em Pirapora (MG) Shop in Pirapora (MG)

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Na aurora dos anos 70, o mineiro Miguel Aun fez a escolha certa: a fotografia. Entre a carreira de engenheiro, recémformado pela UFMG, e duas câmeras no pescoço, uma de filmes P&B e outra de slides, pegou a segunda trilha. Em quatro décadas de andanças por Minas Gerais, reuniu um acervo de cerca de 50 mil imagens, parte delas colhidas nos arredores do Alto São Francisco. Da serra da Canastra à divisa com Bahia, cumpriu cada palmo, registrando rostos, rastros, bichos, paisagens. Segundo o compositor Fernando Brant, sua obra é “uma coleção de espantos”. Numa tarde molhada de janeiro, Miguel recebeu a reportagem da revista Chico para um passeio pelo primoroso acervo. E contou histórias. O pai era o Elias, do tradicional Foto Elias, uma das primeiras casas de fotografia de Belo Horizonte, fundada em 1935. Apesar do contato precoce com o mundo das imagens, foi estudar engenharia na UFMG e emendou o mestrado em física nuclear. Ao final, devidamente diplomado, resolveu voltar à origem. Naquele tempo, a única maneira de sobreviver do ofício era trabalhando para agências de publicidade. Enquanto ia se tornando um dos fotógrafos mais requisitados pelas principais agências de Minas encontrou na nova profissão o prazer. “Ganhei um concurso da revista Realidade, uma publicação muito importante da Editora Abril. Fiquei animado e passei a entrar nos concursos”, lembrou Miguel. “Fundamos então, nos anos 80, o Foto Clube Minas Gerais, que reunia fotógrafos importantes. Nosso programa era viajar o interior do estado e fotografar”. Com o sotaque mineiro carregado e a fala mansa, quase tímida, Miguel é hoje um dos maiores fotógrafos brasileiros, com obras em acervos importantes, como o MASP de São Paulo e a Coleção Itaú. Suas imagens espalham-se por diversos livros, entre eles “Minas dos Inconfidentes”, “História da Arte da Cozinha Mineira por Dona Lucinha” e “Minas Gerais cores e sentimentos”. E está trabalhando em mais um livro, uma compilação dos anos de estrada. “Lembro-me da primeira vez que fui a Pirapora, ainda na década de 80. O primeiro grande impacto foi a ponte. Fiz um ensaio na feira local. O rio era imenso, a gente tomava banho nas quedinhas”, contou. “Há dois anos fiz minha última expedição no São Francisco, repetindo viagens que já havia feito. Subi até quase a divisa”.

Pescador na região de Guaicuí (MG) Fisherman in the region of Guaicuí (MG)

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The look of Miguel Aun Considered one of the most important brazilian photographers, with works in collections as the São Paulo Arts Museum and the Itaú Collection. In the following pages he presents an essay with magnificent images of the daily life on the banks of the upper São Francisco Por Karla Monteiro

At the dawn of the 1970s, Minas Gerais-born Miguel Aun made the right choice: photography. Divided between the carreer of engineer, since he had recently graduated from the Federal University of Minas Gerais, and one with two cameras around his neck, one of them with black and white film and another with slides, he chose the second path. In four decades of traveling through Minas Gerais he gathered a collection of about 50 thousand images, some of them made in the surroundings of the upper São Francisco. From the Canastra mountain range to the border of Bahia he recorded faces, trails, animals, landscapes. According to composer Fernando Brant, his work is “a collection of astonishments”. One wet January afternoon, Miguel welcomed the Chico magazine reporters for a tour of his exquisite collection. And he told stories. His father was Elias, from the traditional Foto Elias shop, one of the first photography stores in Belo Horizonte, founded in 1935. Despite his early contact with the world of images, he studied engineering at UFMG and got his master’s degree in nuclear physics. In the end, with two degrees, he decided to return to his origins. At that time the only way to survive with photography was to work for advertising agencies. As he became one of the most requested photographers by the main Minas Gerais agencies he found pleasure in his new profession. “I won a contest by Realidade magazine, a very important publication by the Abril publishing group. I was excited and started entering contests,” Miguel recalls. “Then in the 1980s wee founded the Minas Gerais Photo Club, which brought together important photographers. Our idea was to travel the interior of the state and photograph it”. With a heavy Minas Gerais accent, soft-spoken Miguel is now one of the greatest Brazilian photographers, with works in important collections such as MASP, in São Paulo, and the Itaú Collection. His images are published in several books, among them “Minas dos Inconfidentes”, “History of the Art of Minas Cooking by Dona Lucinha”, and “Minas Gerais colors and feelings”. And he is working on yet another book, a compilation of his years on the road. “I remember the first time I went to Pirapora, still in the 80s. The first major impact was the bridge. I did an essay on the local fair. The river was huge, we would bathe in the falls,” he recalls. “Two years ago I made my last expedition to the São Francisco, repeating trips I had already made. I went all the way near the border. “

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Pedras de Maria da Cruz - Comunidade do Quilombo Palmeirinhas fazendo beiju


Pedras de Maria da Cruz - the Quilombo Palmeirinhas community making beiju (pancakes)

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Nascente do Rio São Francisco - Cachoeira Casca d ‘Anta Spring of the São Francisco River - Casca d’Anta Waterfall

Odit fugite doluptas sime vent fugit magnisto quaecab orrovid mo et rem quaes eostem vel ipsam, ommos 28


Lavadeiras em Janaúba (MG) Washerwomen in Janaúba (MG)

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Dia de feira em Pirapora (MG) Market day in Pirapora (MG)

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Campo de futebol improvisado em Itacarambi (MG) Improvised football field in Itacarambi (MG)

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Embarcação ancorada no São Francisco Anchored boat in the São Francisco river

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Vista do Rio SF na região de Ibiaí (MG) View of the São Francisco River in the region of Ibiaí (MG)

Menino com rede de pesca em Pirapora (MG) Boy with fishing net in Pirapora (MG)

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Programa social

Direito universal Em menos de duas décadas, o Programa Um Milhão de Cisternas beneficiou mais de cinco milhões de pessoas que vivem no semiárido brasileiro. Este ano, o governo federal anunciou corte de pelo menos R$ 250 milhões no programa Água para Todos Por Juciana Cavalcante / Fotos Léo Drummond -Arquivo Asacom 36


Morador do semiĂĄrido brasileiro beneficiado pelo programa Um MilhĂŁo de Cisternas Inhabitant of the Brazilian semi-arid region benefited by the Million Wells program

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Quando foi lançado, no ano 2000, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) tinha um objetivo bem definido: democratizar o acesso à água, direito básico de todo cidadão, e mostrar aos entes públicos a viabilidade de se conviver com o semiárido. A meta inicial era atender as regiões secas com a construção de cisternas para armazenamento da chamada primeira água. Ou seja: para consumo humano e utilização doméstica, além de promover a educação ambiental. Quase uma década depois, pode-se afirmar: trata-se de uma política pública de sucesso. Ao todo, foram construídas 609.842 mil cisternas de primeira água, beneficiando em torno de 5 milhões de pessoas, em todo o semiárido. Ainda há uma fila de espera de pelo menos 350 mil famílias que aguardam para receber a tecnologia. Ainda seguem previstas, em parcerias com a Fundação do Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além do Governo Federal,19.457 unidades. Parte dessas obras aguarda liberação de recursos. O programa é gerido pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), rede composta por mais de três mil organizações da sociedade civil atuantes nos 10 estados que compõem o semiárido (MG, BA, SE, AL, PE, PB, RN, CE, PI e MA). De acordo com um dos coordenadores da ASA, Cícero Félix dos Santos, a ação surgiu a partir de saberes populares e de entidades que desenvolviam em pequena escala tecnologias para a captação, o armazenamento e manejo da água de chuva. “Nossa luta foi para apresentar ao poder público e à sociedade que não se combate a seca, pois se trata de uma ação natural do meio ambiente. O correto é conviver com esse ciclo e por isso, através do aprendizado com as comunidades, começamos a apresentar experiências exitosas. Entre elas, está a tecnologia das cisternas de placa com capacidade para armazenamento de 16 mil litros de água”, explicou Santos. Em paralelo à construção, as famílias passam por trabalho de educação ambiental com temas ligados à terra, território, produção e comunicação, como forma de assegurar o equilíbrio socioambiental. “Há toda uma rede de ações feita para envolver as famílias no processo de convivência sustentável com o semiárido, mostrando suas potencialidades. Um dos nossos maiores destaques quanto à execução do programa é a transformação na vida das mulheres e crianças, que sofreram com muita força os períodos de seca”, comentou Santos. “As mulheres, por precisarem fazer grandes caminhadas para conseguir a água para casa e as crianças, por desde cedo precisarem aprender a equilibrar latas na cabeça, com o mesmo destino de suas mães. Hoje conseguimos reverter esse cenário em muitas famílias, oferecendo qualidade de vida”. O programa é executado com recursos previstos no Orçamento Geral da União. Em escala crescente nos últimos 10 anos, em 2018, o programa está sob ameaça. Do orçamento previsto de pelo menos R$ 250 milhões para o programa federal Água Para Todos, de onde são destinados os valores para o Programa Um Milhão

Programa Um Milhão de Cisternas beneficiou cinco milhões de pessoas no semiárido The Million Wells Program has benefited five million people in the semi-arid region

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de Cisternas, o governo propôs e aprovou um corte reduzindo o investimento para R$ 40 milhões, valor este que será repartido para todo o território nacional. As famílias veem com preocupação a notícia. “Antes da cisterna, a gente tinha água de uma adutora que captava do São Francisco, mas o problema é que chegava uma água suja e não tinha onde armazenar. Depois das cisternas tudo mudou”, afirmou a agricultora Ana Lúcia Santos da Silva, moradora de Massaroca, distrito de Juazeiro-BA. “Foi a melhor coisa que já aconteceu no semiárido. Só que estamos muito preocupados com o corte de verbas”. Crise hídrica Apesar da pior crise hídrica da história, as famílias atendidas pelo programa conseguem resistir à seca. Segundo Santos, a permanência no semiárido, diferente do que aconteceu na década de 1980, quando se registrou mortes por desidratação, conflitos pela água, saques, entre outros episódios violentos devido à seca, o cenário atual não registra os mesmos episódios e isso se deve à democratização do acesso à água. Além da água de consumo, a permanência da população no semiárido ganha reforço pela construção de cisternas que garantem água para produção de alimentos e sementes. O programa, ao mesmo tempo em que segue com o acesso à primeira água, garante também formas de produção. Segundo os critérios de atendimento, as famílias beneficiadas com a primeira cisterna já estão habilitadas a receber a segunda. Até o mês de novembro do ano passado, 96.426 cisternas já haviam sido construídas em todo o semiárido. Além da construção de 5.526 mil cisternas em escolas. Com uma demanda crescente pela água o programa precisará ser readequado. “Tudo ainda é incerto. Não sabemos quanto desse recurso será destinado ao semiárido, mas iremos continuar atuando dentro das possibilidades e lutando pelo direito de todos ao acesso à água”, concluiu Santos. Referente aos cortes orçamentários, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) emitiu, na XXXIII Plenária Ordinária, realizada no município de Paulo Afonso (BA), uma moção de repúdio sobre a falta de prioridade do Governo Federal com o programa. “O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco vê os cortes no orçamento do programa como algo extremamente danoso. Estamos falando de uma ação reconhecida internacionalmente pela maneira eficiente de democratização ao acesso à água de qualidade em uma região que tem tão pouca chuva e vê-se ameaçada provocando enorme prejuízo às milhares de pessoas que ainda aguardam água para consumo humano, ressaltando ainda o impacto para os pequenos produtores que vivem da agricultura familiar, modos de garantir vida digna às famílias”, afirmou o coordenador da Câmara Consultiva Regional do Submédio São Francisco, Julianeli Tolentino de Lima.


A universal right In less than two decades the One Million Wells Program has aided over five million people who live in the Brazilian semi-arid region. This year the Federal Government has announced a cut of at least BRL $250 million in the Water for All program By Juciana Cavalcante - Photos: Leo Drummond (Asacom)

When it was released in 2000, the One Million Wells Program (P1MC) had a very clear goal: to democratize access to water, a basic right to every citizen, and show the public agencies that it was feasible to live in the semi-arid. The initial goal was to service dry regions with the construction of wells for storing the so-called first water. Water for human consumption and domestic use, and also to promote environmental education. Almost a decade later, we can say that this is a successful public policy. In all, 609,842 first water wells were built, which have brought benefits to more than 5 million people all over the semi-arid region. There is still a waiting line of at least 350 thousand families that are waiting to have access to the technology. The partnership with the Banco do Brasil Foundation and the National Social and Economic Development Bank (BNDES), in addition to the federal government, still contemplates another 19,457 wells. A part of this construction work is awaiting resources to be initiated. The program is managed by the Brazilian Semi-Arid Association (ASA), a network of over three thousand organizations from the civil society that operate in the 10 states which together make up the Brazilian Semi-Arid (Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí and Maranhão). According to one of ASA’s coordinators, Cícero Félix dos Santos, the action came from popular knowledge and agencies that developed small-scale technologies for capturing, storing and managing rainwater. “Our struggle was showing the public authorities and the society that we cannot fight drought because it is a natural action of the environment. The right thing to do is to live with this cycle and therefore, by educating the communities, we started showing successful experiences, among which this technology of wells with panels, with a storing capacity of 4,227 gallons of water”, said Santos. Along with the construction of the wells, the families went through an environmental education program with themes that included the soil, territories, production and communication, as a way of ensuring social and environmental balance. “There is a whole network of actions to involve the families in the process of learning to live sustainably in the semi-arid, showing all of its potential. One of our most important highlights in the program is the change in the lives of women and children who suffer heavily in the dry season”, Santos remarked. “Women need to walk long distances to carry water home; the children have to start learning how to balance water cans on their heads from an early age, and will become just like their mothers. Now we can revert this scenario for many families, and offer them quality of life.” The program is executed with funds from the General Union Budget. The program is threatened in 2018, as it has been in the last 10 years in a growing scale. Out of an original budget of at least BRL $250 million for the Water For All federal program, the source of money for the Wells Program, the government has proposed and approved cuts that have reduced the investment to BRL $40 million, an amount still to be shared around the whole Brazilian territory. Families see this news with concern. “Before the well we would get water from a line that captured it from the São Francisco river, but the problem was that the water that got here was dirty, and we didn’t have a place to store it. After the wells everything has changed”, says agriculturer Ana Lúcia Santos da Silva, who lives in Massaroca, district of Juazeiro, Bahia. “It was the best thing that has ever happened in the Semi-Arid. But we are very concerned with the budget cuts”

Water crisis In spite of the worst water crisis in history, the families serviced by the program are able to brave out the drought. According to Santos, in the 1980s the semi-arid saw deaths by dehydration, water conflicts, looting and other violent episodes due to the drought, but now such episodes no longer happen because of the democratization to the access to water. The permanence of the population in the semi-arid is reinforced by the drilling of wells which guarantees water for human consumption and the production of foodstuffs and seeds. The program not only grants access to first water but also guarantees ways of producing it. According to service criteria, families that have been granted the first well are ready to get the second one. Up until last November 96,426 wells had been drilled all over the semi-arid. In addition, 5,526 wells were drilled in schools. With the growing demand for water the program may have to be revamped to service those in the waiting list for their first and second waters, as well as the water for community use such as in schools. “Everything is uncertain. We do not know how much of this money will come to the semi-arid, but we will keep on working within our possibilities and fighting for the right to access to water for all”, says Santos. In regard to the budget cuts, during the 33rd. Ordinary Plenary meeting in Paulo Afonso, Bahia, the SÃO FRANCISCO RIVER BASIN COMMITTEE has issued a repudiation motion against the federal government’s lack of priority regarding the program. The SÃO FRANCISCO RIVER BASIN COMMITTEE sees the program budget cuts as something extremely harmful. We are talking about actions that are internationally recognized due to their efficient way of democratizing access to quality water in a region with so little rain, a threatened region, which causes great harm to thousands of people who are still waiting for water for human consumption, and we also want to point out the impact for the small farmers who live off their family agriculture, looking for a way to guarantee a decent life for their families”, says the coordinator of the Regional Advisory Board of the Sub-medium São Francisco, Julianeli de Lima.

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Crime Ambiental

Estranho no ninho A criação de camarões em cativeiro vem se expandindo nos estados de Sergipe e Alagoas. Atividade predatória, que devasta manguezais e introduz espécie exótica ao ambiente, a carcinicultura tornou-se uma ameaça ao estuário do São Francisco, berço de vida e diversidade Por Vitor Luz / Fotos cedidas pelo MPE (SE)

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CamarĂŁo cinza do PacĂ­fico cultivado em cativeiro Pacific gray shrimp grown in captivity

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Com a salinização contínua das águas do São Francisco, ocasionada pela perda da força do rio e a consequente invasão deste pelo oceano, invertendo a lógica natural, criar camarões nas águas franciscanas virou uma possibilidade. Em Sergipe, são 700 criadouros. No estado vizinho, a Associação dos Criadores de Camarões de Alagoas- ACCAL, criada em junho de 2017, já possui 40 integrantes, dos quais 15 são produtores. Qual o preço que a natureza paga por isso? Segundo ambientalistas, a conta é alta: destruição dos manguezais para a implantação dos viveiros e introdução no ambiente de espécie exótica, gerando uma cadeia de problemas ao estuário, um berço de diversidade biológica, onde, afinal, o rio encontra o mar. O crime ambiental pode ser traduzido em números: a Fiscalização Preventiva Integrada (FPI) visitou cativeiros em Brejo Grande (SE) e encontrou uma miríade de irregularidades. Os fiscais fecharam dezoito criatórios, emitiram quarenta e cinco notificações em vinte áreas de 4 munícipios de Sergipe: Brejo Grande, Neópolis, Pacatuba e Telha. Para a promotora pública Lívia Tinoco, coordenadora da FPI-SE, o maior problema são os viveiros clandestinos, que desrespeitam até áreas de preservação permanente. Durante a FPI, ela se deparou com aberrações. Por exemplo: um carcinicultor que já explorava dois viveiros sem licença ambiental cercou um hectare na área do estuário do São Francisco, em Boca da Barra, município de Pacatuba, para expansão dos negócios. “Ele teve o tanque demolido e foi multado duas vezes”, contou a promotora “A carcinicultura deve seguir à risca os cuidados ambientais para não destruir o bioma da mata atlântica e o manguezal, vitais para o São Francisco e comunidades ribeirinhas”.

Vista aérea dos cativeiros de camarão no município de Brejo Grande (AL) Aerial view of the shrimp nurseries in the municipality of Brejo Grande (AL)

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Com a expansão da prática e a força do capital pressionando as autoridades locais, os deputados sergipanos aprovaram, em novembro de 2017, na ALESE, Projeto de Lei que dispõe sobre a Política Estadual de Carcinicultura, cujo autor é o presidente da casa, Luciano Bispo (MDB). A deputada Ana Lúcia (PT) contestou o açodamento e alertou para as severas inconstitucionalidades da lei. De acordo com ela, o projeto fere quatro artigos da Constituição Federal, dois artigos da Constituição Estadual e todo o ordenamento jurídico ambiental. “Entre os absurdos, está a suspensão de qualquer tipo de punição e multa para os carcinicultores que agredirem o meio ambiente nos próximos 20 anos”, denunciou a deputada em sua página oficial na Internet, onde expõe imagens aéreas da devastação. “Os carcinicultores estão devastando os manguezais. Precisamos ter muita atenção com este patrimônio natural”. Ana Lúcia rechaça a tese de que a carcinicultura veio para trazer um meio de subsistência para os ribeirinhos, que viram suas lavouras sucumbirem à água salobra: “A lei beneficia somente os grandes empresários do ramo, em detrimento dos pequenos produtores da região. Até heliportos existem na foz do São Francisco”. Fora na década de 1930, no Japão, que surgiu a ideia de criar camarões em cativeiro. No Brasil, a carcinicultura chegou nos anos 70, estabelecendo-se definitivamente com o aparecimento do camarão cinza do Pacífico (Litopenaeus vannamei), em meados dos anos 90. Com mais de 20 anos de existência, a cultura do camarão é praticada na zona costeira e também em águas interiores.


A stranger in the nest Raising shrimp in captivity is expanding in the states of Sergipe and Alagoas. Shrimp farming is a predatory activity, which destroys mangrove forests and introduces an exotic species in the environment, and has become a threat to the estuary of the São Francisco, the cradle of life and biodiversity. By Vitor Luz

With the continued salinization of the water of the São Francisco caused by the loss of the force of the river and its consequent invasion by the ocean against the natural logic, shrimp farming in the São Francisco has turned into an economic possibility. There are 700 farms In Sergipe. The Alagoas Association of Shrimp Farmers - ACCAL - was created in June 2017 and already has 40 members, of which 15 are producing shrimp. But what price does nature pay for that? According to environmentalists, the price is high: the destruction of mangrove forests for the implementation of the fisheries and the introduction of an exotic species in the environment. This generates a chain of problems to the estuary, known to be a cradle of biological diversity and the place where the river finally meets up with the sea. This environmental crime can be translated into numbers: The Preventive Integrated Inspection (FPI) department visited fisheries in Brejo Grande (SE) and found a myriad of irregularities. The inspectors closed eighteen fisheries and issued 45 notifications in twenty areas of 4 cities in Sergipe: Brejo Grande, Neópolis, Pacatuba and Telha. For district attorney and FPI coordinator Lívia Tinoco, the greatest problem are illegal farms which do not even respect permanent preservation areas. During the FPI inspection she came across real aberrations. For example: a shrimp farmer that was already exploring two fisheries with no environmental license fenced a one-acre area in the estuary of the São Francisco, in Boca da Barra, city of Pacatuba, to expand his businesses. “The tank was demolished and this person was fined twice”, said the district attorney. “Fish farming must follow environmental regulations strictly, in order not to destroy the biomes of the Atlantic and mangrove forests which are vital for the São Francisco and the riverside communities”. With the expansion of this activity and the forces of capital putting pressure on local authorities, in November 2107 the Sergipe house of representatives approved a bill creating the State Policy on Shrimp Farming, whose author is president of the house Luciano Bispo. Representative Ana Lúcia was against the urgency of the bill and warned about the unconstitutionality of the law. According to her, the project is severely unconstitutional. Specifically, it goes against four articles of the Federal Constitution, two articles of the State Constitution and the entire environmental legal system. “Among the absurdities we see the suspension of any type of punishment or fines for shrimp farmers that harm the environment in the next 20 years”, said the member of the house on her website, where she shows aerial images of the devastation. “Shrimp farmers are devastating the mangrove forest. We must, however, be very careful with this national heritage”. Ana Lúcia rejects the thesis that shrimp farming is here to improve the livelihood of the riverside populations, who have seen their crops collapse because of the salt water. “This law will only benefit large entrepreneurs, not the small producers in the region. There are even helicopter landing pads in the estuary of the São Francisco”.

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Caso sĂŠrio

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Meio ambiente

De um lado, ambientalistas denunciam o uso indiscriminado de agrotóxicos em diferentes pontos da Bacia do São Francisco, que impacta a qualidade das águas, ameaçando a vida dentro e fora do rio. Do outro, os produtores alegam não ser possível produzir em larga escala sem os pesticidas Por Andréia Vitório Segundo o Aurélio, a palavra agrotóxico significa: “(...) qualquer produto de origem química ou biológica usado na prevenção ou extermínio de pragas e doenças das culturas agrícolas (...)”. Fora do dicionário, porém, o significado se amplia, atingindo a fauna, a flora, as águas, as pessoas. Pelo menos é o que denunciam os ambientalistas. De acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o brasileiro ingere um galão de cinco litros de veneno a cada ano, colocando o Brasil no posto de maior consumidor mundial de pesticidas. “Enquanto a ciência não apresentar à agricultura alternativas técnica e economicamente viáveis para produzir os alimentos necessários sem o uso de agrotóxicos, não tem como deixar de usar”, defendeu o consultor de tecnologia da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Reginaldo Minaré. “Se o agricultor faz o uso correto e responsável do produto, o impacto negativo é praticamente inexistente”. Em meio à controvérsia sobre o uso exagerado ou não, o Velho Chico não escapa. Um dos principais cursos d’água do Brasil – passa por seis estados e 505 municípios – abriga em suas margens, da nascente à foz, projetos de agronegócio, grandes e pequenos. Para o pesquisador da Fiocruz, André Campos Búrigo, membro da ABRASCO, o modelo de desenvolvimento agrícola concentra a riqueza e socializa os impactos negativos. A contaminação por agrotóxico não se restringe ao local de aplicação – se disseminando via alimentos, águas e ar, prejudicando, principalmente, ribeirinhos e comunidades próximas às áreas de uso. Búrigo destaca duas aberrações: a facilidade com que os pesticidas entram no país e o uso indiscriminado de um conjunto de substâncias proibidas em outros países, justamente por oferecerem risco à saúde. Em 2017, ele participou da “Caravana Agroecológica do Semiárido Baiano: nos caminhos das águas do São Francisco”, que percorreu seis municípios do Submédio São Francisco, e viu de perto a situação. “Na sub-bacia do Rio Salitre, por exemplo, a água está sendo bombeada diretamente de nascentes para a irrigação, com uso intensivo de agrotóxicos manuseados por trabalhadores”, comentou.

Chuva de pesticidas De acordo com a promotora de Justiça, Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa do São Francisco, do Ministério Público do Estado da Bahia, a pauta é recorrente nas Fiscalizações Preventivas Integradas (FPI), realizadas na extensão da bacia. Na Bahia, onde atua, é possível encontrar muitos trabalhadores sem equipamentos de proteção individual, além de embalagens de agrotóxicos sem a tríplice lavagem. “Flagramos, em diversas operações de FPI, embalagens sendo reutilizadas até mesmo para plantar coisas que serão consumidas e para vender leite, por exemplo”, contou. A pulverização aérea é outro problema identificado nas regiões próximas ao São Francisco, principalmente, no Oeste da Bahia. Os malefícios, nesse caso, ganham ainda mais proporção e escala. Um dos danos que pode ser percebido, conforme a promotora, é a mortandade de abelhas, polinizadores naturais, primordiais para o equilíbrio do ecossistema. Ela citou, ainda, a presença das algas nas águas do Velho Chico – decorrentes de esgoto, mas, também, de pesticidas – além da contaminação de peixes e outras espécies aquáticas: “é uma cadeia, o problema ambiental é sistêmico”, ressaltou. “Temos tentado um diálogo para regulamentar e fiscalizar esse uso”. Na Bahia, entre os trechos mais críticos, estão a região Oeste, pelos grandes empreendimentos, uso intensivo, monocultura e pulverização aérea; e a região de Irecê e de Juazeiro, polo de produção de fruticultura. O impacto, entretanto, ultrapassa fronteiras. Para conhecer mais a fundo esse cenário, está sendo produzido pelo MP/BA um dossiê baiano de agrotóxicos. Um mal necessário? Tornou-se lugar comum defender os agrotóxicos como um mal necessário. A discussão, porém, gera polêmica. Os ambientalistas defendem acabar com a isenção de impostos para a comercialização de pesticidas e ampliar o financiamento de políticas para agroecologia. “O modelo de agricultura hoje se baseia em áreas enormes de monocultura, sem a diversidade que promove a presença de um inimigo natural para aqueles insetos. Não tem equilíbrio e os cultivos ficam vulneráveis”, disse Marina Lacôrte, especialista do Greenpeace em Agricultura e Alimentação. “Os agrotóxicos chegam com toda sua nocividade, num modelo de produção insustentável até mesmo para os próprios produtores”. O agrônomo Giovanne Xenofonte, membro da CCR Submédio São Francisco e da coordenação da ONG Caatinga, contou que na região onde vive, no município de Ouricuri, sertão pernambucano, o problema é muito grave: “Todo ano é lançada grande quantidade de herbicida para que a vegetação da Caatinga não se recupere, contribuindo para a formação de pastagens. Esse veneno chega às águas do rio. Estou falando de agricultor familiar de médio porte. O próprio crédito do banco canaliza para isso”. Para o consultor da CNA, Reginaldo Minaré, não é bem assim: “O agrotóxico é um item caro na planilha de custos do agricultor. Então, ele não vai comprar de forma indiscriminada – usa aquilo que é necessário, quando a praga ameaça”, garantiu. O diretor de Irrigação e Água da Associação de Irrigantes e Agricultores da Bahia (AIBA), José Cisino Meneses, assegurou não ser possível produzir em larga escala sem esses defensivos e que, até o momento, não há uma alternativa viável para abandonar o uso. “Acho que tem um exagero no que se fala sobre os impactos negativos ambientais e na vida das pessoas. Não há nada comprovado”, comentou.

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A serious case On the one hand, environmentalists denounce the indiscriminate use of pesticides at different points of the São Francisco basin, which impacts the quality of the waters and threatens life in and out of the river. On the other, rural producers say that it is not possible to produce in large scale without pesticides. By Andréia Vitório

According to the Aurélio dictionary, the word pesticide means: “(...) any product of chemical or biological origin used in the prevention or extermination of pests and diseases in agricultural cultures (...)”. Outside of the dictionary, however, the meaning is extended and reaches the fauna, the flora, the water, the people. At least this is what environmentalists are denouncing. According to data from the National Cancer Institute (INCA), the Brazilian Association of Collective Health (ABRASCO) and the Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz), Brazilians ingest one five-liter gallon of of poison each year, which ranks Brazil as the world’s greatest consumer of pesticides. “As long as science does not present technically and economically viable alternatives to produce food without the use of pesticides, there’s no way to stop using them”, said Reginaldo Minaré, technology consultant for the Brazilian Confederation of Agriculture and livestock (CNA). “If agriculturers make use the product correctly and responsibly, the negative impact is practically inexistent”. Amidst the controversy on the exaggerated use of pesticides, the Old Chico cannot escape. The São Francisco river is one of the main water

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courses in Brazil. It goes through five states and 521 cities, and from its spring to its estuary it shelters large and small agribusiness projects. For Andres Búrigo Fields, Fiocruz researcher and member of (ABRASCO), the model of agricultural development concentrates wealth and socializes negative impacts. Pesticide contamination is not limited to the application site - it spreads via food, water and air, harming especially riverside communities and those located close to the areas of use. Burigo highlights two aberrations: the ease with which pesticides enter the country and the indiscriminate use of a set of substances banned in other countries, precisely because they pose health risks. In 2017 he participated in the “Agri-ecological Caravan of the Bahian Semi-arid: on the path of the São Francisco waters”, which toured six cities of the submedium São Francisco, and watched the situation closely. “In the Salitre river sub-basin, for example, water is being pumped directly from water sources for irrigation, with the intensive use of pesticides handled by workers”, he commented.


Plantação de soja, uma das culturas que mais utiliza pesticidas de acordo com a ABRASCO Soy plantation, one of the cultures that uses the most pesticides according to ABRASCO

Pesticide rain According to district attorney Luciana Khoury, coordinator of the São Francisco Defence Center of the Public Prosecutor’s Office in the State of Bahia, this is often seen during the Integrated Preventive Inspections (FPIs) held along the extension of the basin. In Bahia, where she operates, it is possible to find many workers without personal protection equipment, as well as pesticide containers without triple washing. “We have seen, in various FPI operations, containers being re-used even to plant things that will be eaten and to sell milk, for example,” she said. Aerial spraying is another problem identified in the regions near the São Francisco, mainly in Western Bahia. The harm, in this case, earns even more proportion and scale. One of the damages that can be noticed, according to the D.A., is the death of bees, which are natural pollinators and essential for the balance of the ecosystem. She also mentioned the presence of algae in the waters of the Old Chico – originating from sewage, but also pesticides — and the contamination of fish and other aquatic species: “it’s a chain, the environmental problem is systemic,” she pointed out. “We’ve been trying to promote a dialogue to regulate and oversee this usage”. In Bahia, some of the most critical areas are the western region, given the large enterprises, intensive use, monoculture and aerial spraying; and the region of Irecê and Juazeiro, a fruit production hub. The impact, however, goes beyond borders. In order to get to know this scenario more in depth, the Bahian Public Prosecutor’s Office is producing a Bahia pesticide dossier.

A necessary evil? It has become commonplace to defend pesticides as a necessary evil. The discussion, however, generates controversy. Environmentalists advocate ending tax exemptions for the marketing of pesticides and expanding the financing of policies for agricultural ecology. “The model of agriculture today is based on huge areas of monoculture, without the diversity that promotes the presence of a natural enemy for those insects. There is no balance and the crops are vulnerable, “said Marina Lacôrte, a Greenpeace expert in food and agriculture. “Pesticides are extremely harmful in a production model that is unsustainable even for the producers themselves”. Agronomist Giovanne Xenofonte, member of the CCR of the São Francisco Submedium region and Caatinga NGO coordinator, said that in the region where he lives, in the city of Ouricuri, deep in Pernambuco country, the problem is very serious: “Every year a large amount of herbicides is released so that the Caatinga vegetation will not recover, contributing to the formation of pastures. This poison gets to the river water. I’m talking about mid-sized family farmers. Banks promote that when they loan money”. For CNA consultant Reginaldo Minaré, this is not entirely true: “Pesticides are expensive items on farmer’s cost spreadsheets. So they won’t buy them indiscriminately - they will use whatever is needed, when pests are a threat”, Minaré pointed out. José Cisino Meneses, director of Irrigation and Water for the Bahia Irrigation and Agriculture Association – ALBA, says that it is not possible to produce on a large scale without pesticides and that, up until now, there is no viable alternative to abandon their use. “I think there’s an exaggeration when people talk about the negative environmental impact and the effect in people’s lives. Nothing has been proven”, said Meneses.

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Andar com fĂŠ

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Comunidade

Entre os dias 7 e 14 de janeiro, a cidade de Penedo, no interior de Alagoas, recebeu 60 mil pessoas para celebrar o Bom Jesus dos Navegantes Por Vitor Luz / Fotos: Edson Oliveira A fé pediu passagem na histórica cidade de Penedo, no interior de Alagoas. A centenária festa do Bom Jesus dos Navegantes, que completou 134 anos, considerada a maior celebração religiosa do estado, reuniu, de 7 a 14 de janeiro, 60 mil pessoas. A programação foi eclética: apresentações culturais, práticas esportivas e shows de bandas reconhecidas nacionalmente. Como acontece todos os anos, o cortejo dos fiéis ganhou as velhas ruas e deslizou sobre as águas do São Francisco. “Recebemos o povo de braços abertos. Estamos respirando um novo momento, há um brilho de esperança nos olhos de cada penedense. A cidade tem prosperado consideravelmente nesses últimos anos em todas as áreas: social, saúde, educação e na assistência social”, comentou o prefeito local, Marcius Beltrão. “Bom Jesus dos Navegantes não é somente uma festa religiosa. Conta com atrações culturais para que a gente também possa aquecer a economia do município. Nestes dias de celebração, giram uma média de 25 milhões de reais”, comentou o prefeito. Este ano, o tema da festa do Bom Jesus dos Navegantes foi ‘Cristãos Leigos e Leigas, Sede, Sal da Terra e Luz do Mundo’. Além de atrair milhares de turistas, a celebração permanece uma tradição local. As casas ganham enfeites azuis e vermelhos. Os ambulantes invadem as calçadas. Os roletes de cana começam a trabalhar. E a roda gigante se acende para lembrar que é tempo de festejar. A procissão, ponto alto dos festejos, saiu da Igreja de Santa Cruz do Cortume, uma pequena capela construída em 1818.

Imagem de Bom Jesus dos Navegantes esculpida no início do século 20 Image of the Good Lord of the Sailors sculptured in the beginning of the 20th Century.

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Odit fugite doluptas sime vent fugit magnisto quaecab orrovid mo et rem quaes eostem vel ipsam, ommos

Personagem Enquanto serpenteava pela cidade, o cortejo ia sendo saudado pela população, misturando aplausos entusiasmados com cânticos e orações. Entre os fiéis, estava a aposentada Terezinha dos Santos, 98, que participa da festa desde criança: “Quando a procissão passa tudo de bom fica pelo caminho: saúde, alegria, felicidade, amor e anos de vida. Essa é a nossa riqueza, não há nada melhor do que isso. Sigo a procissão inteira arrastando a perna e com o apoio da minha bengala, mas não deixo de vir”.

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No Velho Chico Quando os fiéis se aproximavam do porto de Penedo, os apitos das embarcações já podiam ser ouvidos. Transferida para uma balsa, a imagem do Bom Jesus dos Navegantes seguiu sobre as águas do São Francisco, acompanhada por uma fileira de barcos, num espetáculo singular. Por onde a procissão fluvial passava o Bom Jesus era saudado com foguetório e as sirenes de novos barcos que iam se juntando ao cortejo. No fim da tarde, as embarcações retornaram ao porto de balsas e o Cristo foi conduzido de volta à capela da igreja de Santa Cruz, para a Missa Campal, ministrada pelo Dom Valério Breda, juntamente com todos os párocos da cidade: “Esta festa é uma forma de abençoar o rio, os peixes e todos que sobrevivem dele”, comentou o pároco Jackson Ribeiro do Nascimento.


Um pouco de história A celebração do Bom Jesus dos Navegantes foi introduzida no Brasil em meados de 1808, com a chegada da família real. Mas foi só em 1884 que a histórica cidade de Penedo recebeu a primeira edição da festa, que conduzia o Cristo Agonizante, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, da Igreja Conventual de Santa Maria dos Anjos. Até 1914, o ponto central dos festejos era lá, na Igreja Conventual de Santa Maria dos Anjos. Naquele ano, porém, um desentendimento do frei responsável pela paróquia e a comunidade, devido às atividades profanas que se espalharam pela cidade, como shows e danças, deu início a um novo ciclo. O representante dos moradores, Antônio José dos Santos, também conhecido como Tonho Peixe-Boi, encomendou ao mestre Cesário Procópio dos Mártyres uma nova imagem do Bom Jesus dos Navegantes. E a igreja da Santa Cruz do Cortume, como acontece até hoje, passou a sediar a celebração.

Padres abençoando o São Francisco Priests blessing the São Francisco

Barco seguindo a procissão fluvial Boat following the river parade

Penedo, a joia do sertão À beira do Velho Chico, no sul de Alagoas, fica Penedo, uma cidade linda, que preserva nas ruas centenárias a história da colonização portuguesa na Bacia do São Francisco. O nome significa “grande pedra”. Fundada em 1636, teve o acervo arquitetônico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Entre o casario colonial, estão 13 igrejas e 10 capelas. A Igreja de Santa Maria dos Anjos é a obra prima mais visitada. Para conhecer melhor a história de Penedo, o visitante pode ir à Fundação Casa de Penedo, que abriga uma biblioteca e uma hemeroteca, com arquivo iconográfico e documental informatizados. 51


Moradores assistindo a procissĂŁo fluvial Odit fugite doluptas sime vent fugit magnisto quaecab orrovid mo et rem eostem vel ipsam, ommos Inhabitants attending the quaes river parade 52


Walking with faith Between January 7-14 the city of Penedo, in the countryside of Alagoas, hosted 60 thousand people to celebrate the Good Lord of the Sailors. By Vitor Luz / Photos: Edson Oliveira

Faith was the big thing in the historical city of Penedo, deep in Alagoas country. The centenary celebration of the Good Lord of the Sailors, now 134 years old, is considered the largest religious celebration in the state and gathered 60 thousand people between January 7-14. The schedule was eclectic: cultural presentations, sports events and musical performances by Brazilian acts. As usual, the parade of the faithful took over the old streets and glided on the waters of the São Francisco. “The Good Lord of the Sailors is not only a religious celebration. It has cultural attractions, so we can also spice up the economy of the municipality. During these celebration days around BRL $25 million circulate in the city”, say mayor Marcius Beltrão. This year the theme of the Good Lord of the Sailors celebration was ‘Christians and Laymen, House, Salt of the Earth and Light in the World’. In addition to attracting thousands of tourists, the celebration remains a local tradition. The houses are decorated in blue and red. Street vendors take over the sidewalks. Sugar cane mills start to roll. And the Ferris wheel lights up to remind us that this is the time to celebrate. The parade, the highlight of the celebration, left from the Santa Cruz do Cortume Church, a small chapel built in 1818. Minister of Tourism Marx Beltrão was present. While it went through the city the parade was greeted by the population in a mix of enthusiastic applause, chants and prayers. Among the faithful was 98-year-old Terezinha dos Santos, who has been taking part in the celebration since she was a child. “When the parade goes by everything that remains along the way is good: health, joy, happiness, love and many years of life. This is our treasure, there is nothing better than this. I follow the parade all along, dragging my leg and using my cane, but I always come”.

At the Old Chico When the faithful got closer to the Penedo harbor the boat whistles could be heard in the distance. The statue of the Good Lord of the Sailors was transferred to a barge as it moved down the waters of the São Francisco followed by a line of boats, in a singular spectacle. Everywhere the river procession went the Good Lord was greeted by fireworks and the sirens of the other boats that joined the parade. At the end of the afternoon the boats returned to the barge harbor and the Christ image was taken back to the Santa Cruz chapel for the Field Mass conducted by Bishop Valério Breda and all other clergymen in the city: “This celebration is a way of blessing the river, the fish and all those who live off it”, said clergyman Jackson Ribeiro do Nascimento. A bit of history The celebration of the Good Lord of the Sailors was introduced in Brazil in 1808 with the arrival of the royal family. But it was only in 1884 that the city of Penedo hosted the first celebration, then carrying the statue of Christ in Agony that belonged to the Third Order of São Francisco of the Convent Church of Santa Maria dos Anjos. Up until 1914 the headquarters of the celebration were at the Convent Church of Santa Maria dos Anjos. In that year, however, a protest by the friar who was responsible for the parish and community against the profane activities that had spread around the city, such as shows and dancing, started a new era. Townspeople representative Antônio José dos Santos, also known as Tonho Manatee, ordered a new statue of the Good Lord of the Sailors from Master artist Cesário Procópio dos Mártyres. And the Santa Cruz do Cortume church started hosting the celebration, as it does to this day. Penedo, the jewel of the countryside Penedo is located on the margins of the Old Chico, in South Alagoas. It is a beautiful city, which maintains the heritage of Portuguese colonization in the São Francisco basin on its centennial streets. The name means “large rock”. The city was founded in 1636 and was listed as heritage by the National Artistic and Historical Heritage Institute (Iphan). Among the colonial buildings there are 13 churches and 10 chapels. The Santa Maria dos Anjos church is the most visited masterpiece. To learn more about the history of Penedo visitors can go to the Casa de Penedo Foundation, which holds a library with a collection of hard copies and digitized books and images.

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História

Os homens das cavernas No sertão de Alagoas, à volta do Velho Chico, acaba de ser descoberto mais um sítio arqueológico com pinturas rupestres que podem remeter a uma população que ali viveu dois mil anos atrás Por Delane Barros / Fotos: Edson Oliveira 54


Em Belo Monte, no sertão alagoano, a arqueóloga Karina Lima de Miranda Pinto encontrou pegadas do passado distante. Há tempos ela as procurava, por considerar os arredores do Velho Chico um manancial de sítios arqueológicos que contam a história do processo de ocupação da região. Encravado no povoado Telha, na área da fazenda Bom Sucesso, está uma estrutura de pedra, que a pesquisadora chama de abrigo. Ali, Karina se deparou com um mural de pinturas rupestres. Traços do cotidiano, que indicam a presença da população pré-histórica. O Rio São Francisco fica a cerca de seis quilômetros. Segundo Karina, outrora, correu à beira do abrigo. “Aqui estão pilões, que eram utilizados para amassar sementes e preparar as tintas para as pinturas. É um registro da ocupação que existiu nesse local, onde estão bem visíveis as sobras de cerâmica”, comentou a arqueóloga, apontando para pequenos buracos muito bem trabalhados na pedra. Segundo Karina, falta um estudo aprofundado para garantir a qual tradição arqueológica estão ligadas as pinturas, mas estas indicam serem da era pré-colonial, uma população de aproximadamente 2.000 anos. “No Nordeste é possível encontrar datações de até 9.000 anos”, disse ela. Após a identificação do novo sítio arqueológico da região, a pesquisadora informou o IPHAN, para que seja realizado o cadastro e dado início ao detalhamento do trabalho: “É preciso fazer um estudo na região, mas muito provavelmente encontraremos enterramento de vários objetos. Isso porque na superfície já estão visíveis as cerâmicas, então abaixo da camada de terra, com certeza, haverá muito mais material.”. Os contemporâneos Nascido e crescido no povoado Telha, em Belo Monte, Ednaldo Bezerra Silva é um dos trabalhadores e moradores da fazenda onde foi encontrado o abrigo arqueológico, a fazenda Bom Sucesso. Aos 23 anos, ele desconhecia o valor histórico do local. “Nunca soubemos desse material, nem da sua importância”, comentou. “Depois que o proprietário da fazenda foi informado, nós isolamos a área e fica aí sem nenhuma intervenção”. De acordo com ele, após a notícia se espalhar, tanto pesquisadores quanto estudantes têm chegado: “Fotografam, fazem entrevistas, mas não levam nada. Só vêm em busca de informações e conhecimento”.

O abrigo: arqueóloga Karina Lima de Miranda Pinto encontrou no povoado de Telha, na fazenda Bom Sucesso, mural de pinturas rupestres The shelter: archaeologist Karina Lima de Miranda Pinto has found a mural of cave paintings in the Bom Sucesso farm, city of Telha

Mais história Em Olho d’Água do Casado, também no sertão alagoano, não muito longe de Belo Monte, também foram encontrados sítios arqueológicos. As pinturas rupestres podem ser vistas em três pontos diferentes e foram identificadas em 2016, durante a Fiscalização Preventiva Integrada (FPI), ação executada pelo Ministério Público Estadual (MPE) e Federal (MPF), com apoio do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). Em sua grande maioria, essas pinturas indicavam traços geométricos. “Os sítios arqueológicos de pintura rupestre identificados no estado de Alagoas têm apenas a seu favor o registro no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Esse registro assegura institucionalmente a salvaguarda desses lugares” salientou a arqueóloga Karina Lima. “No entanto, eles não dispõem de políticas mais efetivas de preservação, como proteção e manutenção desses espaços. Em diversas localidades há relatos da população de que sítios foram destruídos há algum tempo, por exploradores e colecionadores de arte”. 55


Cave dwellers In the backlands of Alagoas, around the Old Chico, a new archaeological site has been discovered with cave paintings made by a population that lived there two thousand years ago By Delane Barros / Photos: Edson Oliveira

In Belo Monte, in the countryside of Alagoas, archaeologist Karina Lima de Miranda Pinto has found footprints from the distant past. She has been searching for quite some time, since she considers the surroundings of the Old Chico a rich source of archaeological sites that tell the history of the occupation of the region. Tucked in the Telha village in the area of the Bom Sucesso farm stands a stone structure defined by Karina as a shelter. There, the researcher came upon a mural of cave paintings. They were depictions of daily life, and indicate the presence of prehistoric populations. The São Francisco River is about four miles away. According to Karina, it once ran next to the shelter. “We found pestles used to knead seeds and prepare the dyes for the paintings. This is a record of the occupation of this place, and the pottery remains are easily visible,” says the archaeologist, pointing out small very well worked holes in the stone. According to Karina an in-depth study is needed to ascertain to which archaeological tradition the paintings are connected, but they show indications of being from the pre-colonial era, approximately 2,000 years ago. “In the Northeast you can find datings of up to 9,000 years,” she said. After the discovery of the new archaeological site in the region, the researcher reported to IPHAN in order to include it in the inventory and start with the detailing work: “We have to do a study in the area, but most likely we will find several buried objects. Ceramics are easily found on the surface. “ Contemporaries Born and raised in the Telha settlement in Belo Monte, Ednaldo Bezerra Silva is one of the workers and residents of the Bom Sucesso farm, where the archaeological shelter was found. At 23 years of age, he was unaware of the historic value of the place. “We have never known of this material, or of its importance”, he commented. “After the owner of the farm was informed we isolated the area and keep it untouched. According to him, many researchers and students have arrived after the news has spread: “They take pictures, make interviews, but they don’t take anything away. They just come in search of information and knowledge”. More history Other archaeological sites were found in Olho d’Água do Casado, also in the countryside of Alagoas and not far from Belo Monte. The cave paintings can be seen at three different locations and were identified in 2016 during the Integrated Preventive Inspection (FPI), an action taken by the State (MEP) and Federal (MPF) Public Prosecution Offices with the support of the São Francisco River Basin Committee (CBHSF). These paintings mostly indicate geometric designs. Also during the same operation fossilized bones of fauna that was extinct 10,000 years ago were recorded in the municipality of Gararu (SE). In this occasion the team revealed that previous studies had reported the presence of two species of ground sloths, one of them a giant sloth over three meters tall, as well as giant armadillos, saber-toothed tigers, an extinct species of elephant called stegomastodon, camels and horses, among other extinct large mammals. “The rock painting sites identified in the State of Alagoas are registered in the national inventory of archaeological sites of the National Arts and Heritage Institute. This registration institutionally ensures the safekeeping of these areas,” archaeologist Karina Lima points out.“However, they do not have effective policies for the preservation, protection and maintenance of these spaces. In several places there are reports by the population of sites that have been destroyed by explorers and art collectors”.

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Karina Lima aponta os pilĂľes que eram utilizados para amassar sementes e preparar as tintas para pinturas Karina Lima shows the pestles used to knead seeds and prepare the dyes for the paintings

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Foto: Evandro Rodney Photo: Evandro Rodney

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