Revista Chico Nº 4 - Dezembro / 2018

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04 Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco • Dezembro 2018

Transposição: veias abertas do Velho Chico A lei do veneno e a água Crimes ambientais em debate Lampião: os 80 anos da morte do cangaceiro dândi É verão em Morro do Chapéu 1


Expediente PRESIDENTE: ANIVALDO DE MIRANDA PINTO VICE-PRESIDENTE: JOSÉ MACIEL NUNES OLIVEIRA SECRETÁRIO: LESSANDRO GABRIEL DA COSTA PRODUZIDO PELA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CBHSF TANTO EXPRESSO COMUNICAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL COORDENAÇÃO GERAL: PAULO VILELA, PEDRO VILELA, RODRIGO DE ANGELIS EDIÇÃO: KARLA MONTEIRO TEXTOS: AILTON KRENAK, ANA CLÁUDIA ARAÚJO, ANDRÉIA VITÓRIO, ANIVALDO MIRANDA, CHRISTIANE TASSIS, IARA VIDAL, KARLA MONTEIRO, LUIZA BAGGIO, MARIANA MARTINS PROJETO GRÁFICO: MÁRCIO BARBALHO DIAGRAMAÇÃO: RAFAEL BERGO FOTOS: AZAEL NETO, BENJAMIN ABRAHÃO, CÍCERO PEDROSA NETO, CRISTIANO COSTA, EDSON OLIVEIRA, ELISA MENDES, FERNANDO PIANCASTELLI, GRUPO MATIZES DUMONT, LEO MÉRÇON, MANUELA CAVADAS E OHANA PADILHA ILUSTRAÇÕES: ANDRÉ FIDUSI E DAVI DE JESUS NASCIMENTO REVISÃO: ISIS PINTO E LUIZA BAGGIO FOTO CAPA: CANOAS NA ORLA DE GARARÚ / SE - FOTOGRAFIA AZAEL NETO IMPRESSÃO: ARW GRÁFICA E EDITORA TIRAGEM: 5000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DIREITOS RESERVADOS. PERMITIDO O USO DAS INFORMAÇÕES DESDE QUE CITADA A FONTE. SECRETARIA DO COMITÊ: RUA CARIJÓS, 166, 5º ANDAR, CENTRO BELO HORIZONTE - MG CEP: 30120-060 - (31) 3207-8500 secretaria@cbhsaofrancisco.org.br ATENDIMENTO AOS USUÁRIOS DE RECURSOS HÍDRICOS NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO: 0800-031-1607 ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: comunicacao@cbhsaofrancisco.org.br

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Páginas Verdes Christianne Ferreira

Crise Hídrica Crônica de uma tragédia anunciada

Conflito Veneno Legal

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08 12 22


SUMÁRIO 26

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Gestão

Crime Ambiental

O dinheiro sumiu

Leite derramado

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Crime Ambiental

Meio Ambiente

A pá de lama

O Último Suspiro

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História

Arte

Turismo

O cangaceiro dândi

Bordando ideias

O que é que a Bahia tem 3


Foz do Rio Sรฃo Francisco, em Piaรงabuรงu - Alagoas Foto: Edson Oliveira

Editorial

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O ANO E O FIM 2018: o que celebrar? Nesta edição da CHICO, a última do ano, brindamos o leitor com realidade e sonho, com distopia e utopia, com arte e resistência. A revista ganhou mais páginas, que abrigam uma série imperdível de reportagens. Do Alto ao Baixo São Francisco, histórias que nos mostram o quanto faz-se necessária a luta incessante pela sobrevivência do rio que mata a sede do interior do Brasil. Entre esperança e desesperança, temas importantes que levantam a discussão da urgente necessidade de se olhar cada vez mais para os nossos recursos hídricos: transposição, Lei do Veneno, Cerrado ameaçado, impacto das grandes tragédias ambientais nos rios e mananciais. Nas reportagens, o olhar de pesquisadores, ambientalistas e ribeirinhos. Como vem chegando o verão – e o tempo de festejar, a CHICO também é arte e cultura. Nas páginas, a fascinante história da família Dumont, que transformou a tradição do bordado mineiro em arte que colore páginas de livros de autores importantes e paredes de museus. Tem ainda um delicioso perfil de Lampião, o rei do Cangaço, morto há exatos 80 anos. E, para viajar e sonhar, um roteiro de Morro do Chapéu, um pedaço do paraíso na Bahia. Boa Leitura!

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A Palavra do Presidente

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Foto: Cristiano Costa


Tempo de amadurecer O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco chega ao final de 2018 mais experiente, amadurecido e coeso como nunca. Tudo isso é fruto de um dedicado trabalho dos seus mais de 120 integrantes titulares e suplentes, todos voluntários e voluntárias que representam os mais diversos segmentos dos poderes públicos municipais, estaduais e federal, além daqueles ligados às atividades econômicas e à sociedade civil de todo o território da bacia. Empenhado na consecução do Plano de Recursos Hídricos aprovado no final de 2016, o Comitê tem feito consideráveis esforços para tornar esse Plano conhecido e adotado por todos os entes da grande bacia hidrográfica do Velho Chico, um cenário gigantesco que abarca nada menos do que 8% do território brasileiro. Nesse sentido tem oferecido o Plano como base contributiva para o trabalho técnico do Comitê Gestor do Programa de Revitalização do São Francisco, bem como para a consecução de processos de planejamento importantes, como é o caso do Zoneamento Econômico e Ecológico da bacia empreendido pelo Ministério do Meio Ambiente. Nessa mesma direção o Comitê procurou e firmou com os governos dos estados ribeirinhos da Bahia e de Minas Gerais protocolos de intenção que permitirão um maior grau de cooperação entre o Comitê e esses estados na promoção de projetos comuns ao esforço de recuperação hidroambiental, além de pavimentação dos passos que serão necessários a um futuro Pacto das Águas envolvendo todos os estados da bacia. Termos de Cooperação foram firmados com o Instituto Interamericano de Cooperação Agrícola, com o Comitê do Rio Paracatu e com diversas outras instituições parceiras visando ampliar o horizonte de intervenções do Comitê em ações de capacitação de irrigantes, gestão hídrica, novas tecnologias e outros processos que façam avançar os métodos e a escala de uso racional das águas franciscanas. No que diz respeito à frente de ação para melhoria da qualidade das águas o Comitê tornou-se o maior financiador de Planos Municipais de Saneamento Básico em sua vasta área de atuação e agora iniciará, com as prefeituras municipais, a mobilização

para conseguir do governo federal os recursos que permitam transformar esse planos em projetos e, depois, nas obras de saneamento básico que são inadiáveis para salvar o Velho Chico. Em 2018, o Comitê lançou editais de chamamento para apresentação de uma nova família de projetos de recuperação hidroambiental a serem executados em 2019. Assentado em ritual impecável de abertura e diálogo com a comunidade técnica e ribeirinha, mais de duas dezenas de projetos se somarão à mais de meia centena já entregues e finalizados com os recursos da Cobrança pelo Uso das Águas do Velho Chico. Depois de um longo período de estudos e debates em sua Câmara Técnica de Outorga e Cobrança, além de audiências públicas nas regiões do Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco, o Comitê aprovou por maioria inequívoca uma nova metodologia de cobrança e atualização dos preços da água bruta, com estímulos para os usuários que implantam avanços tecnológicos no uso racional das águas. O Conselho Nacional dos Recursos Hídricos, através de suas diversas instâncias, homologou e oficializou a nova cobrança. Com esses recursos os estudos, as ações, obras, articulações institucionais e demais atividades de gestão hídrica tenderão a se ampliar ainda mais, a exemplo da expedição científica que o Comitê apoiou na região mais impactada do rio, o Baixo São Francisco, para estudar o impacto da poluição de suas águas, intrusão salina, erosão das margens e inúmeros outros estudos que servirão de ferramentas para ações mais ampliadas e efetivas em 2019. Uma única carta é insuficiente para relatar tudo que foi feito em 2018, mas o que descrevemos já dá uma boa ideia do sucesso do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que é hoje referência indiscutível na gestão responsável, sustentável e estratégica das águas franciscanas e brasileiras. Parabéns a todas as pessoas, homens e mulheres que ajudaram a devolver ao Velho Chico aquilo que ele merece e precisa: gestão, cuidados, recuperação e muito amor! Anivaldo Miranda Presidente do CBHSF

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Páginas Verdes

Christianne Ferreira Presidente da Agência Nacional de Águas (ANA)

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O Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (SINGREH) tem na base os Comitês de Bacias Hidrográficas, muito distantes da cúpula. Esses comitês têm apenas um assento no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Você acredita no sucesso desse modelo?

Christianne Ferreira No cargo desde janeiro, nomeada para um mandato de quatro anos, a presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Ferreira, falou com exclusividade à Revista Chico sobre o primeiro ano à frente da gestão dos recursos hídricos do Brasil. Evitando ser mais incisiva em temas espinhosos, discorreu sobre as realizações do órgão desde que assumiu o leme. Entre os temas abordados, o investimento de R$ 12 milhões na Bacia do Rio São Francisco para a realização de estudos hidrológicos nos principais aquíferos e um balanço do Programa Nacional de Fortalecimento dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Conhecer a opinião da mulher que terá em suas mãos o leme da principal agência reguladora e gestora das águas brasileiras é um dos referenciais (há, evidentemente, outros tão ou mais decisivos) capazes de permitir a toda a comunidade envolvida com recursos hídricos avaliar melhor em que direção e, digamos assim, ambiente institucional, a temática das águas se desdobrará nos próximos três anos. Por Iara Vidal Fotos: Divulgação ANA e Ohana Padilha

O SINGREH contempla instituições de diferentes naturezas jurídicas e funções distintas. A gestão compartilhada pelo uso da água é o que une a todos num arranjo institucional descentralizado, participativo e moderno. Como parte desse Sistema, destaco os Comitês de Bacias Hidrográficas, espaço democrático que incorpora, de forma oportuna, usuários, segmentos sociais, técnicos e políticos. A depender do tema, os entes do Sistema têm plena prerrogativa para deliberar e, em outras, constroem proposições para que instâncias supervenientes deliberem. Neste momento é relevante aperfeiçoar o processo participativo de gestão de recursos hídricos, melhorar a representatividade dos colegiados e fortalecer a atuação dos comitês de bacias. Por exemplo, o Projeto Legado: 20 Propostas para Aperfeiçoamento dos Marcos Constitucional, Legal e Infralegal da Gestão de Águas no Brasil – uma das ações preparatórias para o 8º Fórum Mundial da Água, que prevê a necessidade de ampliação da representação dos estados, de usuários e de organizações civis, com a revisão dos critérios de escolha dos representantes não governamentais no CNRH. A Lei 9.433 estabelece princípios para uma gestão moderna e eficaz dos recursos hídricos no Brasil. Mas no desenho do SINGREH, esses princípios nem sempre estão refletidos. Como a composição do CNRH, em que não é respeitado o princípio da representação paritária entre poder público, usuários das águas e sociedade civil. Você concorda com essa incoerência? Se não, pretende fazer algo para mudá-la? Todas as iniciativas que visem ao fortalecimento da atuação do CNRH e do SINGREH, em todas as suas instâncias, terão apoio da ANA, dentro do definido atualmente nas normas legais e regulamento. Nos contornos atuais, entendemos e trabalhamos para fortalecer o Sistema com a participação efetiva e produtiva de todos, cada esfera respondendo aos desafios que lhe são próprios, com qualidade técnica e legitimidade política e social Dos mais de 200 CBHs, apenas uma dezena são comitês de rios federais, o que denota resistência do governo em ampliar o número desses comitês em rios de domínio da União. Você pretende romper com essa resistência? E os comitês transfronteiriços, praticamente inexistentes? Nesse último caso a resistência maior é da ANA ou do Ministério das Relações Exteriores? A área de abrangência dos comitês interestaduais é de 1,7 milhão de Km², contra cerca de 2,7 milhões de Km² dos CBHs estaduais, dado mais relevante do que o número de comitês. Apenas a criação do comitê não tem o poder de resolver os problemas locais ou regionais relacionados aos recursos hídricos. A criação de comitês em rios de domínio da União requer uma ampla negociação política, estudos detalhados que mostrem a sustentabilidade financeira da bacia, notadamente a partir da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, além dos aportes operacionais e financeiros da ANA. Uma das ações atuais da ANA para fortalecer os comitês é o Programa Nacional de Fortalecimento dos Comitês de Bacias Hidrográficas, concebido para implementação em ciclo de cinco 9


anos. Já celebramos contratos com 14 estados – Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins. Apesar do processo de mobilização em curso na bacia do rio Uruguai, não temos comitê fronteiriço e transfronteiriço implantado. Outras iniciativas incluem a recente aprovação pelo CNRH do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do rio Paraguai e a assinatura, no 8º Fórum Mundial da Água, da “Declaração para a conservação, desenvolvimento integral e sustentável do Pantanal”. O Brasil não pode impor regras de gestão de recursos hídricos para bacias compartilhadas com outros países, mesmo entendimento do Ministério das Relações Exteriores. Nossa atuação tem se pautado na negociação de iniciativas bilaterais ou regionais para a gestão de recursos hídricos em bacias compartilhadas, como na Bacia Amazônica e na Bacia do Prata, por intermédio de iniciativas como o Projeto Amazonas: ação regional na área de recursos hídricos e o Projeto GEF Amazonas – manejo e gerenciamento integrado e sustentável dos recursos hídricos transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas, além de projetos bilaterais com Argentina, Bolívia, Colômbia, Paraguai, Peru e Uruguai, inclusive no que se refere à capacitação, a exemplo do curso de medição em grandes rios na bacia amazônica, ofertado a diversos países vizinhos. O Brasil tem uma das legislações mundiais mais avançadas na gestão das águas, mas está longe de universalizar a implementação dos instrumentos práticos dessa gestão no seu território continental, sobretudo nos Estados que pouco ou quase nada investem em gestão de recursos hídricos. Apesar das Unidades Federativas terem autonomia, você pretende mudar essa realidade? Uma das prioridades da ANA é fortalecer o SINGREH e os órgãos gestores de recursos hídricos e buscar maior articulação com as UFs. Como iniciativas em implementação já há alguns anos: o Pacto Nacional pela Gestão das Águas e o Programa de Consolidação do Pacto Nacional pela Gestão das Águas, com a adesão de todas as UFs, com recursos da ordem de R$ 73,8 milhões. Ações de capacitação contribuem para reduzir as assimetrias regionais, alcançaram desde 2001, mais de 115 mil pessoas. O Programa Produtor de Água visa incentivar o produtor rural a investir em ações que ajudem a preservar a água. A interação da gestão das águas de superfície, de domínio federal, com as águas subterrâneas, sob tutela dos Estados, encontra obstáculos com a falta de uma cooperação entre a União e as UFs. É possível reverter esse quadro? A ANA tem implementado várias iniciativas, com destaque para a aprovação de Resolução do CNRH que trata do estabelecimento de diretrizes para a gestão integrada de águas superficiais e subterrâneas. Desde 2007, a Agência tem uma Agenda Nacional de Águas Subterrâneas para fortalecer a gestão de águas subterrâneas nos estados. Essa Agenda foi revista e atualizada, e denomina-se “Agenda de Gestão Integrada de Recursos Hídricos Superficiais e Subterrâneos”, mantendo foco quanto ao apoio aos Estados em águas subterrâneas, com a realização de estudos conjuntos em uma abordagem hidrológica sistêmica. A ANA já investiu mais de R$ 30 milhões para fortalecer as UFs nesse tema, bem como na gestão integrada dos recursos hídricos subterrâneos e superficiais, atuando conjuntamente com 21 órgãos estaduais gestores de recursos hídricos, de todas as regiões 10


do país. Na bacia do rio São Francisco, a ANA investiu cerca de R$ 12 milhões em dois estudos hidrogeológicos envolvendo os dois principais aquíferos, responsáveis por mais de 90% do aporte de escoamento de base (águas subterrâneas) do rio São Francisco, o Sistema Aquífero Urucuia (SAU) e os Aquíferos Cársticos. O planejamento e a implementação desses estudos foram realizados em articulação com os Estados titulares desses recursos: Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Goiás, Piauí e Maranhão. A região amazônica é a maior do Brasil e onde se encontra a maior parte das nossas águas, mas a gestão dos recursos hídricos praticamente inexiste. Os dois maiores estados, Amazonas e Pará, até hoje não contam com comitês de bacias hidrográficas, à exceção do Comitê do Tarumã, no município de Manaus. Como explicar essa lacuna? A ANA tem implementado várias iniciativas, com destaque para a aprovação de Resolução do CNRH que trata do estabelecimento de diretrizes para a gestão integrada de águas superficiais e subterrâneas. Desde 2007, a Agência tem uma Agenda Nacional de Águas Subterrâneas para fortalecer a gestão de águas subterrâneas nos estados. Essa Agenda foi revista e atualizada, e denomina-se “Agenda de Gestão Integrada de Recursos Hídricos Superficiais e Subterrâneos”, mantendo foco quanto ao apoio aos Estados em águas subterrâneas, com a realização de estudos conjuntos em uma abordagem hidrológica sistêmica. A ANA já investiu mais de R$ 30 milhões para fortalecer as UFs nesse tema, bem como na gestão integrada dos recursos hídricos subterrâneos e superficiais, atuando conjuntamente com 21 órgãos estaduais gestores de recursos hídricos, de todas as regiões do País. Na bacia do rio São Francisco, a ANA investiu cerca de R$ 12 milhões em dois estudos hidrogeológicos envolvendo os dois principais aquíferos, responsáveis por mais de 90% do aporte de escoamento de base (águas subterrâneas) do rio São Francisco, o Sistema Aquífero Urucuia (SAU) e os Aquíferos Cársticos. O planejamento e a implementação desses estudos foram realizados em articulação com os Estados titulares desses recursos: Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Goiás, Piauí e Maranhão. Como você idealiza a cooperação entre a ANA e o CBHSF na gestão conjunta das águas da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e qual a posição da atual diretoria da ANA frente aos grandes desafios dessa bacia, sobretudo o esforço comum para tirar do papel o Programa da Revitalização do São Francisco? O Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco conta com a atuação da ANA e de outros órgãos federais, como o IBAMA, por meio do programa de conversão de multas ambientais que prevê aplicação de recursos em projetos ambientais estruturantes, recuperação de áreas de risco de escassez hídrica. Quanto à cooperação atual entre a ANA e o CBHSF, temos algumas frentes de atuação: i) instituição da Sala de Crise da Bacia do São Francisco; ii) participação nas discussões sobre regramentos para a bacia em articulação com os condições para a operação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco; iii) apoio nas discussões para revisão do Plano da bacia; iv) participação na discussões dos novos valores e mecanismos de cobrança na bacia; e v) participação no acompanhamento da implementação do seu plano junto à AGB Peixe Vivo. No Programa da Revitalização do São Francisco, a participação da ANA se dá por meio de representantes na Câmara Técnica do Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco que propôs, mediante consulta aos estados com território na Bacia, as “Linhas de Ação do Programa de Revitalização da Bacia do São Francisco”. 11


Crise HĂ­drica

Trabalhadora observando o viveiro de mudas do Cerrado, em Patos de Minas (MG) Worker looking at the Cerrado seedling nursery in Patos de Minas (MG)

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Crônica de uma tragédia anunciada De um lado, os moradores do sertão da Paraíba agradecendo de joelhos a chegada das águas do Velho Chico. Do outro, ambientalistas e pesquisadores que apontam na faraônica Transposição uma sucessão de erros que pode custar a vida do Rio São Francisco. Nossa reportagem visitou o açude do Boqueirão, em Campina Grande, abastecido pelo chamado Eixo Leste, que entrou em operação, ainda em fase teste, em abril de 2017 Por Christiane Tassis / Fotos: Elisa Mendes 13


Não tem nada melhor que a transfusão. Isso é uma bênção para a gente”, diz Maria de Lourdes Santos da Silva, 62, pescadora – ou “pescadeira”, como ela diz. Na varanda de sua casa verde e azul, no Pasmado, comunidade da zona rural do Boqueirão, no Cariri paraibano, brota agora, entre as plantas originais, uma samambaia que diz ter vindo com a água da transposição do São Francisco. Assim como a semente da planta, peixes “estranhos” chegaram na corrente do Velho Chico: “Os primeiros peixes eram diferentes, peixe feio, mole, frio, todo mundo ficou com medo, com nojo, acostumado aos peixes duros do açude”, conta a filha de dona Lourdes, mãe de onze, Cristina Santos da Silva, 32 anos, também pescadora e agricultora.

“Transfusão” é a palavra que muitos moradores das comunidades ao redor do Açude Epitácio Pessoa, o Boqueirão, utilizam para se referir à Transposição do Rio São Francisco. Se considerarmos a definição da palavra no dicionário, “fazer passar um líquido de um recipiente para outro”, “espalhar, difundir, derramar, transformar-se, operar a transfusão do sangue”, a metáfora faz sentido. As águas do Velho Chico chegaram ao Boqueirão em abril de 2017, em meio às chuvas de março, que fecharam o verão do agreste após sete anos de uma das piores secas da história e quatro anos de severo racionamento. O Boqueirão abastece Campina Grande e mais 18 cidades do entorno. Em 2017, o açude entrou em volume morto, com apenas 2,9% da capacidade total. Foi o pior volume registrado desde sua inauguração, em 1957, por Juscelino Kubitschek. “Dava para andar nele, na terra rachada, a gente via cobra, casas da antiguidade”, rememora Dona Lourdes. A solução imediata encontrada pelo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) foi escavar um canal através dos açudes Poções e Camalaú, em Monteiro (PB). O Eixo Leste da Transposição era, então, inaugurado, como medida emergencial, passando a funcionar em fase de pré-operação: “Foi feito uma espécie de rasgo nas represas destes açudes para a água passar mais rápido para Campina Grande”, explica João Fernandes, presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas da Paraíba (AESA): “Se fosse esperar que as obras estivessem prontas, a água não chegava a Monteiro e estaríamos em colapso total”.

A água brotava do chão. Veio enchendo de baixo para cima, devagarzinho, sobre o chão seco...Foi uma bênção para nós”, diz Cristina Santos, ao redor de sua plantação de feijão, hoje verdinha. Seu marido, Linduarte, 43, o Lindo, agricultor e deficiente visual, mesmo com o glaucoma avançado, sentiu a chegada das águas caminhando sobre o açude. “Dava para sentir a diferença”. Para ele, a transposição parecia uma lenda. “A gente sempre ouvia falar, desde criança, mas eu já não acreditava que saía mais não. Por incrível que pareça, às vezes o mal traz o bem. Veio esta seca terrível, a gente etava sem água para plantação, para animal, até para a gente. E aí o São Francisco chegou”.

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Foram quatro anos de irrigação suspensa. Não tinha água para nada, não podia plantar, tudo secou, não tinha comida, não tinha peixe”, lembra Josemar de Souza Santos, agricultor e pescador, pai de uma família de 11 filhos em Mirador (foto de um dos filhos). Sua esposa, Josefa Maria Alves, 60, completa, diante do verde da plantação de feijão de corda, jerimum, acerola, laranja e macaxeira ao redor da casa: “Passamos muita dificuldade. A água estava gosmenta, com mau cheiro, a gente tomava banho e ficava fedido.


Vai-e-vem Em março de 2018, praticamente um ano depois de inaugurada, a transposição das águas simplesmente paralisou. Foram detectados problemas e rachaduras nas estruturas de concreto nos açudes e o bombeamento acabou interrompido para reparos. O prazo inicial para a conclusão das obras era de 90 dias, mas foi constantemente adiado. Neste período, com a estiagem, o Boqueirão voltou a menos de 29% de sua capacidade, gerando insegurança nos moradores. “A gente fica preocupado, vê a água descendo, não avisam nada para a gente”, diz Garrincha, outro filho de Dona Lourdes, cuja renda depende do Boqueirão, o ponto turístico da cidade. Seis meses depois, em 14 de setembro, a transposição voltou a funcionar. Mas a alegria durou pouco: na noite seguinte, o bombeamento era de novo interrompido. Novas avarias haviam sido detectadas em um dos trechos do canal, com suspeitas de vandalismo para beneficiar o agronegócio.

Segundo o Ministério da Integração, no mesmo dia em que os danos foram identificados, os engenheiros responsáveis fecharam a válvula que controla a saída de água e iniciaram as correções necessárias. “Os indícios apontam que o dano pode ter sido causado por terceiros e, por isso, foi registrado um Boletim de Ocorrência pela equipe técnica do Ministério da Integração”, informa a assessoria do MI. A captação irregular e desvios criminosos da água tem sido uma constante ameaça à segurança hídrica. “Mal começou a transposição e os problemas já são muito evidentes”, comenta Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). “Aí entra uma discussão sobre se o conceito escolhido para esse empreendimento foi o melhor. O Comitê sempre advertiu que teríamos muito trabalho em administrar a transposição”.

A família de seu Josema de Souza Santos, de Mirador

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Feijão de corda produzido por Dona Josefa Maria Alves com as águas da transposição

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A pesca é fonte de renda para muitas famílias da região do Boqueirão

Elefante branco Para José do Patrocínio Tomaz, hidrogeólogo e mestre em Engenharia Civil na Área de Recursos Hídricos, há um problema quanto ao dimensionamento dos canais. “Eles foram projetados para a vazão máxima de cada um, uma vez que previam que o reservatório de Sobradinho poderia atingir o volume de espera (superior ao volume útil) ou mesmo sangrar”, afirma. Segundo Patrocínio, o projeto das obras da transposição é, no mínimo, inusitado: “Os canais são, geralmente, projetados para transpor uma vazão constante, mantendo o perímetro das calhas molhado. Se isso não acontece, os canais trabalham com perímetros secos, tornando-se vulneráveis às quebras, por ação da dilatação e contração térmicas que inevitavelmente enfrentam naquela região. Além de, em termos de obra civil, assentarem-se em rochas pouco consistentes, não suportando o peso e o atrito das águas sobre o fundo e as paredes do mesmo”. Para ele, o melhor teria sido investir em projetos de distribuição e abastecimento a partir da adução das águas do São Francisco, e não da transposição. João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, também teme que a transposição seja um “elefante branco”. Ele afirma que o São Francisco não tem capacidade para atender a demanda de água. Seria mais econômico promover obras nas regiões afetadas, buscando fontes de água mais próximas. “Com muito menos recursos, poderiam ter sido mais consideradas alternativas como a construção de cisternas para abastecimento humano e a pequena irrigação. As águas do Velho Chico seriam de uso complementar e não a fonte principal”, diz. Segundo o Ministério da Integração, foram feitos estudos e alternativas como esta foram analisadas, assim como o uso de águas subterrâneas, a dessalinização, o reaproveitamento de águas, a integração com outras bacias hidrográficas e a implantação de novos açudes. Mas nenhuma apresentou melhores resultados do que a integração das águas. Também um antigo crítico à transposição, o pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) João Abner Guimarães Jr. alerta para outro problema: as perdas de água durante o trajeto das águas de um local a outro. “Há mais de 60% de perdas por condução, e somam-se a isso outras relacionadas à evaporação, infiltração, além de outras questões que não se consegue no projeto. Na época da elaboração do projeto, estimava-se que as perdas seriam na ordem de 15%, mas elas já chegam a 60%”, diz. Segundo Abner, “tem prevalecido uma preocupação política, até eleitoreira, acima das discussões técnicas necessárias sobre a operação. Parecem evitar o debate sobre os problemas do Eixo Leste, pois essa discussão certamente atingirá a situação do Eixo Norte, que é uma obra ainda maior e mais complicada”. Incertezas e fragilidades

O relatório pode ser obtido na íntegra no link https://goo.gl/wwtpzX ou com seu celular escaneie o QR CODE ao lado.

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Em abril de 2018, o Ministério da Transparência e ControladoriaGeral da União (CGU) divulgou o resultado da avaliação do atual sistema de gestão do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF), a cargo do Ministério da Integração Nacional. Os exames evidenciaram que foi dado prioridade à execução das obras, mas postergado o planejamento para garantir a operação, manutenção e sustentabilidade da transposição a longo prazo. Há incerteza quanto ao impacto do custo de funcionamento e inadequação da estrutura necessária à gestão e operação do PISF. Para reverter estas fragilidades, o MI tem adotado medidas de fortalecimento do sistema de gestão do PISF, a cargo da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF). Por e-mail, a assessoria da pasta informou que o Plano de Gestão de Riscos será colocado em prática quando do início da operação comercial do PISF e, atualmente, está incrementando sua equipe técnica para atender melhor a demanda.


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Quem vai pagar a conta? Há ainda pouca clareza sobre quem vai pagar a conta da operação, até então custeada pelo governo federal. Só os gastos com energia poderão atingir cerca de R$ 800 milhões por ano. O valor deverá ser pago pelos estados envolvidos (CE, PB, PE e RN). O PISF está hoje orçado em R$ 10,7 bilhões e o custo final estimado da obra é de R$ 20 bilhões. “A transposição pode ser um presente de grego”, diz o pesquisador João Abner. “Essa água pode sair muito cara para a população. Durante esta fase de pré-operação, nenhum custo foi repassado pelos estados envolvidos. Ainda não existe mecanismo de cobrança. Minha hipótese é que estão esperando passar as eleições para que a fatura chegue”. Para ele , a gestão é complexa: “O maior desafio será separar as águas da transposição das águas naturais produzidas em cada região, que em condições normais serão dez vezes maiores do que a transposta. Nesse caso, como separar os diferentes usuários das águas misturadas?”. Recentemente, em 19 de setembro, a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou no diário Oficial da União a resolução 67/2018, que

define as tarifas para a prestação do serviço de adução de água bruta para 2018. O valor definido para a cobrança da Operadora Federal, a CODEVASF, foi de R$ 0,801/m³ para a tarifa de consumo e R$ 0,244 para a tarifa de disponibilidade. As tarifas serão multiplicadas pelo volume entregue aos Estados beneficiados, para computar o valor a ser pago a partir do início da operação em cada Estado. O custo total de operação para o transporte de água bruta em 2018 será de R$ 290,7 milhões, incluindo possíveis inadimplências, perdas de água e garantias para execução do serviço. Deste montante, serão pagos R$ 154 milhões pela Paraíba e R$ 24,7 milhões por Pernambuco. Os R$ 112 milhões restantes serão custeados pelo MI. Segundo a CGU, o repasse desses valores para as contas de água dos consumidores poderão significar aumentos entre 5% e 21%. A Codevasf informou que está sendo realizado um estudo sobre o uso de energias renováveis para diminuir os custos da operação.

eixo leste 217km

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Verde é a cor mais quente Um ano após as águas do rio São Francisco chegarem à Paraíba, o tom pardo da vegetação do semiárido ganhou novas cores. Pequenas plantações se destacam entre os xique-xiques, facheiros e mandacarus predominantes na paisagem. Segundo as regras da regras da Agência Nacional de Águas (ANA), cada agricultor só pode plantar e irrigar meio hectare, uma vez que a prioridade da transposição é o abastecimento humano e animal. “Cuidamos da agricultura de subsistência das pessoas, porque não tínhamos ainda água suficiente para atender todo mundo. É uma solução provisória, para proteger os menores e mais vulneráveis. Acho que atingimos este objetivo”, diz João Fernandes, presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba (Aesa). O modelo de irrigação liberado é limitado às técnicas de gotejamento e microaspersão, que os agricultores como José Alemar, 29 anos, hoje utilizam. “Agora a gente tem um pouco

mais de esperança”, diz ele, que havia deixado a comunidade de Mirador para ser seminarista em São Paulo. As promessas de uma vida melhor com a transposição fizeram-no retornar. Assim como José outros fizeram o mesmo caminho de volta. “A gente via pelo Facebook a alegria das pessoas, falando da transposição, da ‘chuvada’ e ficava doido para voltar”, conta o casal de agricultores Antônio Roberto de Araújo, o Tonhão, 37 anos, e Adinaílsa Araújo Vieira, a Naísa, 34 anos. Em 2015, sem ter como sobreviver em meio à seca total, migraram para o Rio de Janeiro com o filho de 16 anos, “fugindo do sofrimento”. Trabalharam como caseiros em um sítio na região de Teresópolis, mas, com as notícias de que a água ia chegar no sertão, decidiram regressar. A plantação de feijão ainda demora um tempo para a primeira colheita. Nem isso os faz titubear. “É uma vida sofrida, tem que ter coragem para trabalhar, nesse solzão de meu deus. Mas não tem nada como a casa da gente”, garante Naílsa.

Açude Boqueirão chegou a acumular um volume dez vezes maior após receber as águas do São Francisco 20


Comunidade Mirador, na Paraíba, é uma das beneficiadas com as águas da transposição

Confira o álbum fotográfico completo desta reportagem. Acesse o link https://goo.gl/uoU5mE ou com seu celular escaneie o QR CODE ao lado. 21


Conflito

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Veneno legal Saiba o que está em jogo com o Projeto de Lei que trata do uso, registro e controle dos agrotóxicos no país e entenda como isso pode afetar você Por Andréia Vittório

Os campeões

do veneno 1 - Brasil 2 - Estados Unidos 3 - China 4 - Japão 5 - França 6 - Alemanha 7 - Canadá 8 - Argentina 9 - Índia 10 - Itália

7 6 5 2

4

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1

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No cardápio de todo brasileiro, o feijão, um grão que nutre o país, do pobre ao rico, do Oiapoque ao Chuí. Além de nutrientes, porém, o nosso prato de todo dia pode carregar no tempero um resíduo perigoso, a malationa, numa quantidade 400 vezes maior do que a permitida nos países da União Europeia. A assimetria assusta? Pois, o limite do glifosato permitido na água potável que consumimos é cinco mil vezes o estabelecido na Europa. No ranking dos países que mais consomem agrotóxicos no mundo, o Brasil é campeão. Cada brasileiro ingere o equivalente a 7,3 litros por ano. Em meio ao rio de veneno que já banha o Brasil, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou, em 25 de junho, o Projeto de Lei 6299, de 2002, por 18 votos a favor e nove contra. O projeto original é de autoria do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, quando ainda ocupava o cargo de senador. Para alguns, o PL, apelidado de PL do Veneno, é sinônimo de modernização. Para outros, um atentando à vida dos brasileiros. Entre os críticos estão entidades como Ministério Público Federal, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Instituto Nacional do Câncer (INCA). Na prática Fazendo o caminho do agrotóxico despejado nas principais áreas ocupadas pelo agronegócio, chega-se ao Velho Chico. Coordenadora do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco (Nusf), a promotora Luciana Khoury, do Ministério Público da Bahia, declarou guerra à PL do Veneno: “O argumento de modernização não é plausível para justificar tantos atropelos e riscos. Já temos muitas falhas de controle. Através dos dados obtidos com a operação Fiscalização Preventiva Integrada (FPI), nós identificamos, por exemplo, na região de Irecê, Centro-Norte Baiano, que dos 10 produtos mais usados na região, nenhum constava na portaria de análise”, conta, lembrando que uma das causas da crise hídrica já é a contaminação dos rios pelos agrotóxicos. Entre os pontos críticos e preocupantes, constantes do teor do PL, cita: proposta de alteração do termo agrotóxico por produtos fitossanitários ou produtos de controle ambiental; o fato de que os estados não poderão restringir a distribuição, comercialização e o uso de produtos autorizados pela União; a polêmica centralização de competências de registro, normatização e reavaliação de agrotóxicos no Ministério da Agricultura, destituindo os órgãos federais da saúde e do meio ambiente destas funções, previstas na lei vigente. A esses órgãos, com o novo texto, caberia somente uma “homologação” da avaliação realizada pelas empresas. Para a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, Larissa Mies Bombardi, a possibilidade de que o PL do Veneno vire lei após a iminente votação em plenário é muito preocupante. Segundo ela, o texto “afrouxa” a proibição de substâncias cancerígenas, teratogênicas (que provocam má formação) e mutagênicas (que causam mutações genéticas). Somente produtos com risco inaceitável seriam banidos, sem deixar explícito o que isso quer dizer. Outro ponto é a possibilidade de autorizações temporárias para produtos que estão registrados em ao menos três países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sem análise complementar feita no Brasil. Do ponto de vista ambiental, a pesquisadora chama atenção para um termômetro importante: a morte de abelhas, polinizadoras fundamentais para a promoção da biodiversidade. A União Europeia acabou de banir três inseticidas, justamente em função da morte de abelhas. Enquanto isso, por aqui, há registros da diminuição de colmeias, inclusive de abelhas nativas.

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Os dois lados Para o chefe da Embrapa Meio Ambiente, o pesquisador Marcelo Morandi, o Projeto de Lei 6299/02 é positivo. “O Brasil é um dos países que mais produz e exporta alimentos e sua legislação precisa atender, de forma segura e eficiente, o avanço do setor agropecuário. Há, hoje, mais de 35 novos ingredientes ativos na fila de análise, via de regra mais eficientes e menos nocivos à saúde e ao meio ambiente do que produtos que já estão no mercado. No entanto, o método atual de avaliação e de registro não permite previsibilidade sobre quando os agricultores brasileiros terão acesso a essas novas tecnologias, já disponíveis em diversos países”, diz. Ele acredita, ainda, que o debate quanto ao consumo de agrotóxicos no Brasil tem se restringido a comparar países com áreas e produções agrícolas completamente diferentes: “Quando transformamos o consumo destes produtos por unidade de área cultivada no Brasil e em outros países no mundo, o Brasil ocupa a sétima posição, tendo a sua frente países como o Japão (consumo oito vezes superior ao do Brasil), Coréia do Sul, Alemanha, França, Itália e Reino Unido. Se compararmos a taxa de consumo por tonelada de produtos agrícolas produzidos, a eficiência no uso de pesticidas fica ainda mais evidente e ocupamos a 13ª posição, sendo superados também por Canadá, Espanha, Austrália, Argentina, Estados Unidos e Polônia.” O Presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa), Júlio Busato, argumenta que o PL não busca a ampliação do uso ou flexibilização e, sim, a desburocratização do processo de liberação: “O Projeto de Lei 6299/2002 significa a modernização de uma legislação de mais de 30 anos. Para avançarmos frente à concorrência internacional, precisamos fazer como eles, que modernizaram suas leis e desentravaram a ineficiente burocracia. Enquanto que no Brasil demora-se até 10 anos, na Europa, os produtos são liberados em no máximo três anos. Na Austrália e nos Estados Unidos, em dois anos. A modernização não vai facilitar o registro dos defensivos, mas vai permitir uma maior celeridade nesse trâmite.” Para o coordenador de políticas públicas do WWF-Brasil, Bruno Taitson não é nada disso: “A gente já tem uma crise hídrica em várias partes do país, além de problemas ligados à contaminação de solo, cursos d’água, lençóis freáticos, e os agrotóxicos têm uma participação considerável nisso”. De acordo com Marina Lacôrte, especialista do Greenpeace em Agricultura e Alimentação, os malefícios estarão por toda parte: “Se aprovado, o pacote do veneno trará mais veneno para os pratos das pessoas, mais problemas à saúde e ao meio ambiente e, por consequência, problemas graves de segurança alimentar”. Opine você também Uma enquete no site da Agência Câmara quer saber a opinião dos internautas sobre o PL 6299/02. Até o fechamento desta reportagem, 92% dos participantes (23.662) sinalizaram pela reprovação do projeto.

Acesse o site da Câmara dos Deputados para votar sobre a PL do Veneno: https://goo.gl/phS9xR ou utilize o QR Code ao lado.


Contra Diretoria de Qualidade Ambiental do Ibama “O meio ambiente pode ser afetado pela liberação de produtos cujas análises ainda não estejam concluídas. O fato de um produto ter sido aprovado em três países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não significa que as condições de uso autorizadas, como dose, forma de aplicação e número de aplicações, poderiam ser replicadas no Brasil, cujas características ambientais não são as mesmas verificadas em outros países.” Anvisa “O PL terceiriza as responsabilidades pelas doenças e agravos à saúde do trabalhador e do consumidor; pelo monitoramento dos resíduos de agrotóxicos e do uso adequado; pelo acompanhamento sistemático das populações expostas e das intoxicações; e pelos planos de emergência nos casos de acidentes de trabalho, transporte e ambientais que possam advir da cadeia produtiva e logística do agrotóxico”.

A favor Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindveg) “É fundamental esclarecer que as alterações que estão em debate não excluem o rigor científico e a transparência no processo de registros, que são essenciais para a segurança e o desenvolvimento da indústria nacional. Além disso, modernizar a legislação não significa flexibilizar ou facilitar o registro de defensivos agrícolas, e sim incluir critérios objetivos na avaliação, respeitando metodologias científicas que assegurem a competitividade da agricultura brasileira”. Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa) “Em relação à modernização da legislação, só existem vantagens diante da aquisição de tecnologias agrícolas que combatam as pragas com menos aplicações e de forma mais rápida, com menos toxicidade, principalmente, para os trabalhadores e agricultores expostos a esses produtos químicos. Aumenta-se a produtividade e reduz-se as perdas no campo para agricultores, levando quantidade e qualidade de alimentos com baixo custo para a população”.

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Gestão

O dinheiro sumiu Falta de repasse dos recursos da Cobrança pelo Uso da Água por parte do governo do estado ameaça ações de recuperação das bacias de Minas Gerais Por Luiza Baggio / Fotos: Ohana Padilha Anos de trabalhos em projetos para recuperação ambiental, de elaboração de planos de saneamento e de revitalização de nascentes estão comprometidos. Os 36 Comitês de Bacias Hidrográficas mineiros, responsáveis, entre outras coisas, por desenvolver projetos de revitalização, continuam enfrentando uma seca severa no que diz respeito a recursos públicos. Considerado um dos mais atuantes e representativos do país, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) denuncia a retenção irregular pelo governo de Minas Gerais dos recursos relativos à Cobrança pelo Uso da Água, à qual têm direito 12 entidades. Os repasses estão suspensos desde 2015 e os valores retidos já chegam a R$ 100 milhões, prejudicando o desenvolvimento das bacias hidrográficas. No caso dos repasses do Fundo de Recuperação, Proteção e Desenvolvimento Sustentável das Bacias Hidrográficas do estado de Minas Gerais (Fhidro) – que sustenta outras 24 entidades – o atraso chegaria a sete anos e somaria R$ 250 milhões. A arrecadação dos valores da Cobrança pelo Uso da Água é feita diretamente dos usuários, por meio da indústria e mineração, concessionárias de abastecimento de água e irrigação. Por lei, esses recursos deveriam retornar às suas respectivas bacias para execução de projetos de acordo com os programas de investimentos estabelecidos pelos planos diretores de cada Comitê. O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) e coordenador-geral do Fórum Mineiro de Comitês de Bacias Hidrográficas (FMCBH), Marcus Vinícius Polignano, explicou que ao longo dos últimos oito anos o governo está promovendo um contingenciamento ilegal com o não repasse dos recursos do Fhidro e da Cobrança pelo Uso da Água. “O repasse dos valores é de direito dos Comitês, uma vez que não se trata de um imposto, mas sim de uma contribuição pela valoração da água. Os rios de Minas estarão comprometidos se o Estado não fizer a sua parte”, afirmou. Polignano acrescentou ainda que a situação ameaça parar o CBH Rio das Velhas e, com ele, diversos projetos de recuperação ao longo da bacia, sobretudo o ‘Revitaliza Rio das Velhas’. “Estamos queimando tudo o que tínhamos em caixa nesses três anos de repasse zero do governo. O que está em jogo é o futuro do Comitê e de toda essa estrutura já criada. Tudo o que nós fizemos pode ir por água abaixo”, explicou. Preocupados com a crise na gestão dos recursos hídricos em Minas Gerais, representantes do FMCBH se reuniram em frente 26

à sede da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no dia 10 de julho de 2018, para um manifesto intitulado ‘Ação pelas Águas’. Após o manifesto os membros do FMCBH foram a todos os gabinetes da Assembleia e protocolaram um documento que pede apoio dos deputados estaduais em defesa dos rios. Como resultado da campanha ‘Ação pelas Águas’, o governo de Minas Gerais fez um repasse no valor de quase R$ 460 mil, no dia 11 de outubro de 2018. No entanto, de acordo com dados da Agência Peixe Vivo, somente para o CBH Rio das Velhas o estado ainda deve quase R$ 16 milhões, valor que já foi arrecadado e não repassado ao Comitê entre os anos de 2016 e 2017. Do previsto para a execução das ações para 2018 e 2019, há um déficit de aproximadamente R$ 10 milhões. Segundo o presidente da entidade, Marcus Vinícius Polignano, o acordo para pagamento foi acertado perante a Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, após mediação do Ministério Público Estadual. “O Procurador consultou a Fazenda do Estado e nos propôs um acordo parcelado para pagamento. É uma boa notícia, tendo em vista que o estado reconhece a dívida e entende que é algo que tem que arcar”, disse. O coordenador-geral do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (FNCBH), Hideraldo Bush, é solidário ao movimento ‘Ação pelas Águas’. “É inadmissível o contingenciamento dos recursos para os Comitês de Bacia de Minas Gerais, pois são eles que permitem que os CBHs exerçam de fato suas funções de lutar pela preservação e revitalização dos rios”, disse. Hideraldo Buch acrescentou que o repasse dos recursos é um desafio para os Comitês. “O maior problema dos Comitês atualmente são os repasse dos recursos para a manutenção dos seus trabalhos, inclusive alguns fecharam as portas. O Fórum Nacional de Comitês de Bacias precisa sentar e analisar como vai ser feita a gestão dos recursos”, destacou. Os Comitês mineiros também avaliam a possibilidade da judicialização para resolver o problema do contingenciamento dos recursos da Cobrança pelo Uso da Água, haja vista que em outros estados, como Rio de Janeiro e Alagoas, a justiça deu ganho de causa aos Comitês em situações similares. Outra importante ação foi sinalizada pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg). De acordo com o gerente de Meio Ambiente da entidade e conselheiro do CBH Rio das Velhas, Wagner Soares Costa, existe a possibilidade de orientar os usuários para que os depósitos referentes à Cobrança pelo Uso da Água sejam feitos em juízo. “O próprio usuário pode entrar na Justiça e definir o pagamento em juízo, de maneira que não fique inadimplente e não veja seu dinheiro indo para o caixa único do Estado, enquanto deveria ser aplicado na bacia hidrográfica de sua região”, disse. Para o presidente Marcus Vinicius Polignano uma gestão das águas eficiente e comprometida é de suma importância. “Estamos construindo um caminho de gestão das águas. E se queremos ter água precisamos fazer uma gestão verdadeiramente comprometida com o futuro disso. Continuamos cobrando do governo de Minas aquilo que nos é devido. Não adianta ter membros se não tivermos capacidade de suporte e se eles não tiverem como atuar. Com essa crise hídrica e dependendo cada vez mais dos nossos rios, não termos condições de desenvolver ações de revitalização por falta de recursos é um contrassenso”, pleiteou.


Semad busca regularização Segundo a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), desde 2015 o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), em resposta à solicitação dos Comitês, tem apoiado diretamente as entidades com recursos previstos na legislação do Fhidro. “O custeio dos Comitês para suas atividades e reuniões são exemplos desse apoio. Apesar da crise econômica pela qual passamos, temos estruturado os Comitês para que consigam cumprir suas premissas básicas, temos proposto uma pauta positiva e tentado fortalecer cada vez mais os Comitês”, esclareceu a esclareceu a diretora-geral do Igam, Marília Carvalho de Melo. Já em relação à Cobrança pelo Uso da Água, o secretário de estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, Germano Luiz Gomes Vieira, destacou como o estado tem se pautado na temática hídrica, apesar da crise financeira que vivencia, e assumiu compromissos importantes, em especial com os Comitês de Bacia Hidrográfica. “Temos que ter mais compromisso com o repasse de recursos, a evolução da governança hídrica depende disso. Desde que assumi a secretaria tenho tentado afinar a relação do governo com os Comitês”, disse. A Semad informou ainda que nenhuma atividade foi interrompida por ausência de recurso. “O governo está acompanhando com as agências de bacia seus cronogramas físicos e financeiros, para que nenhuma atividade seja prejudicada”, destacou texto encaminhado pela secretaria.

O que é a Cobrança pelo Uso da Água A Cobrança pelo Uso da Água é prevista pela Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei nº 9.433/97. Possui os seguintes objetivos: obter dinheiro para execução das metas dos planos de gestão dos recursos hídricos das bacias, como a recuperação hidroambiental dos rios, estimular o investimento em despoluição, dar ao usuário uma sugestão do real valor da água e incentivar a utilização de tecnologias limpas e poupadoras de recursos hídricos. Essa cobrança não é um imposto ou tarifa arrecadados pelas distribuidoras de água nas cidades, mas sim uma remuneração pelo uso de um bem público. Todos e quaisquer usuários que captem, lancem efluentes ou realizem usos não consuntivos diretamente em corpos de água necessitam entender que a água bruta tem valor econômico e um preço (a ser pago) bem inferior àquele que é cobrado pelo uso da água tratada e encanada. Além do mais, os recursos oriundos dessa Cobrança pelo Uso da Água bruta devem legalmente retornar para a gestão das águas na bacia hidrográfica de origem. O valor da cobrança é escolhido a partir da participação dos usuários de água, da sociedade civil e do poder público, no âmbito dos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs). Um dos parâmetros para definir os valores é bem simples: quem usa e polui mais os corpos de água, paga mais; quem usa e polui menos, paga menos.

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Crime Ambiental

Leite derramado

Em agosto, durante o XX Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (ENCOB), representantes de CBHs de todo o país discutiram o impacto de grandes tragédias ambientais nos recursos hídricos. Em foco Barcarena, Mariana e Correntina Por Ana Claudia Araújo Fotos: Leo Mérçon (Últimos Refúgios) e Cícero Pedrosa Neto 28


Mar de lama gerado pelo rompimento da barragem Fundão, em Mariana, considerado o maior desastre socioambiental do país no setor da mineração. Rio Doce em Conselheiro Pena / MG.

Centenas de quilômetros distantes uma da outra, Correntina (BA), Barcarena (PA) e Mariana (MG) têm em comum o mesmo triste roteiro: a abundância de riquezas naturais, a exploração descuidada destas, a tragédia ambiental. São três cidades traumatizadas, tentando reconstruir tudo, da estrutura econômica às relações sociais feridas pelo caos. Pela primeira vez, o XX Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas – ENCOB debateu o impacto das catástrofes que colocam em risco o uso da água no Brasil. O evento reuniu representantes de bacias de todo o país, entre 20 e 24 de agosto, em Florianópolis (SC). “A crise hídrica é socioambiental e planetária, mas as pessoas não estão sofrendo o seu impacto de maneira igual”, observou a promotora de justiça, do Ministério Público da Bahia, Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco (NUSF). “Há uma injustiça ambiental e é sob essa lógica que temos que enfrentar a crise”. Durante o debate, o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, Anivaldo Miranda, foi categórico: “O Brasil não pode se dar ao luxo de ter um acidente ambiental de proporções planetárias a cada ano”. Mariana No dia 5 de novembro de 2015, há exatos três anos, a pacata Mariana, a primeira capital de Minas Gerais, distante 118 quilômetros de Belo Horizonte, ganhou o noticiário mundial. Nunca se havia visto nada igual. Por volta das três da tarde, o rompimento da barragem de Fundão, operação conjunta das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, cuspiu um tsunami de lama: 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos, uma mistura pastosa e avermelhada de rejeitos de minério de ferro. O primeiro povoado no caminho era Bento Rodrigues, pequeno e paradisíaco distrito de Mariana, cercado de montanhas e cortado pelo Rio Gualaxo: 19 pessoas morreram. Do vilarejo centenário, onde fora erguida a primeira igreja de Minas, não sobrou nada. Sem sistema de alarme, os moradores se salvaram com a ajuda do divino – e a colaboração mútua. Dali, a lama seguiu serpenteando, acompanhando o curso do Gualaxo até desaguar no Rio Doce. O rastro da destruição ambiental e social até atingir a foz, em Regência, no Espírito Santo, é incalculável. A tragédia ceifou vidas, matou a história de localidades destruídas, contaminou a água, matou a fauna, a flora, o turismo, os meios de sobrevivência. Após o leite derramado, legando ao Brasil um dos maiores crimes ambientais do mundo, um Termo de Transação e Ajustamento de Contas (TTAC), assinado entre a Samarco e suas controladores, Vale e BHP, com a União e diversas autarquias federais e estaduais, criou a Fundação Renova, responsável pela reparação dos danos. As ações passaram a ser definidas pelo Comitê Interfederativo, que reúne também órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 29


Perdas e danos Como calcular o incalculável? Talvez esse seja o maior desafio da Fundação Renova. No aniversário de três anos da tragédia, os moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, os dois povoados inteiramente devastados, ainda vivem em lares improvisados no município de Mariana, aguardando o reassentamento. A nova Bento Rodrigues já está em construção, com previsão para a entrega das casas em 2019. Os moradores de Paracatu de Baixo acabaram de aprovar o terreno e o projeto urbanístico do novo povoado. Ao longo do Rio Doce são inúmeros os impactos: pescadores que não podem pescar, agricultores que não podem plantar, ribeirinhos sem água, lugares turísticos que não mais recebem turistas, comerciantes arruinados. Ainda sem um laudo definitivo, a água do Doce segue sob suspeita, com o consumo e a pesca proibida. Os atingidos sobrevivem com cartões de auxílio financeiro, pago mensalmente. Até agora, poucos foram indenizados. O processo de indenização é complexo e se arrasta, com avaliação caso a caso. Dos R$ 11,1 bilhões previstos até 2030 no orçamento da Fundação, R$ 2,5 bilhões foram gastos. Além de um processo criminal contra 22 pessoas, que está paralisado por ordem judicial, há ao menos outros 74 mil em andamento, além de uma ação civil pública que reúne os atingidos em Bento Rodrigues. A previsão de recuperação total dos estragos ambientais é 2032. A Renova cercou 511 nascentes na Bacia do Rio Doce e promete recuperar em dez anos, conforme prazo fixado pelo TTAC, 5 mil nascentes. “O programa de nascentes está caminhando bem”, conta a bióloga e presidente do CBH do Rio Doce, Lucinha Teixeira. Segundo ela, a valorização da participação do Comitê nas decisões e o fortalecimento do sistema são desafios importantes para se alcançar os objetivos de recuperação. “O Doce é considerado hoje o rio mais monitorado do Brasil. Temos que aproveitar e fazer agora a revisão do plano de recursos hídricos. A recuperação da bacia apenas vai acontecer se a gente empoderar a população e os Comitês”.

Manifestação popular em correntina Correntina No dia 2 de novembro de 2017, feriado de finados, na cidade de Correntina, oeste da Bahia, mais de 500 pessoas invadiram e depredaram a fazenda Rio Claro, propriedade de uma empresa agrícola, a japonesa Igarashi. Nos vídeos que ganharam as redes sociais, viu-se a população incendiar galpões e derrubar postes de energia. Poucos dias depois, no dia 11 de novembro, 12 mil moradores, desta vez pacificamente, tomaram as ruas do município de 33 mil habitantes. O motivo era um só: a guerra pela água. 30

O conflito se arrasta pelo menos desde 2015, quando o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Corrente expediu uma deliberação para que não houvesse novas concessões para uso de recursos hídricos da bacia. Em novembro do ano passado, o Ministério Publico Estadual (MP-BA) recomendou ao Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) a suspensão das concessões de outorgas para grandes empreendimentos. “Já constatamos que há empreendimentos que, com 12 bombas de captação de água ligadas por 12 minutos, reduzem o nível de água do rio em 15 centímetros”, afirmou a promotora de justiça, Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa do São Francisco, do Ministério Público do Estado da Bahia. “Não é possível continuar com a quantidade de captação de água na bacia do Corrente hoje”. Foi nos anos 70 que começaram a chegar à região os grandes empreendimentos agrícolas. Entre eles, a japonesa Igarashi. Segundo os cálculos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Igarashi usa sozinha 182.203 m³ de água por dia, autorizados para as fazendas Curitiba e Rio Claro. O volume abasteceria 6.600 cisternas de 16 mil litros diariamente. O sistema de irrigação nas duas fazendas possui, ao todo, 32 pivôs para captação de água do Rio Arrojado. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), proposto pelo Ministério Público da Bahia, no final de 2017, ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), marca o capítulo mais recente desta luta. São obrigações propostas: a conclusão dos estudos para elaboração do Plano de Bacia Hidrográfica para o Rio Corrente; a suspensão de novas outorgas de direito de uso de água, sejam superficiais ou subterrâneas, até a aprovação pelo Comitê do Plano de Bacia; a realização de um cadastramento para o uso dos recursos hídricos na Bacia do Rio Corrente e do Aquífero do Urucuia e o monitoramento de vazões, entre outras. Segundo relatório da Agência Nacional de Águas (ANA), a irrigação é responsável pelo consumo de 72% da água no Brasil. Barcarena Em fevereiro, Barcarena, no Pará, um lugar cercado de praias de areias brancas e coqueirais, distante 15 quilômetros de Belém, foi palco de mais um crime ambiental. Fotos aéreas registraram o vazamento de rejeito de bauxita em uma das barragens da mineradora Hydro Alunorte, de origem norueguesa. Embora a empresa tenha negado o vazamento, um laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC) confirmou a contaminação da água por metais pesados, como cromo, chumbo e níquel. Segundo o IEC, a Hydro Alunorte teria feito uma ligação clandestina para eliminar os efluentes, causando o dano. Estima-se que cerca de 50 mil pessoas tenham sido impactadas. Ao longo dos últimos 15 anos, Barcarena vem sofrendo sucessivos ataques. A média é de um acidente com grave impacto ambiental a cada nove meses. A trágica história remonta aos anos 80, quando empresas de exploração mineral começaram a se instalar por lá. Em operação há duas décadas, a Hydro Alunorte é recorrente, com histórico de crimes ambientais na região sem nunca ter pagado indenizações aos atingidos. As multas somam 17,1 milhões. A empresa segue recorrendo na justiça. O último vazamento está sendo investigado pelo Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal. “As indústrias se implantam, fazem seus grandes projetos de geração de riqueza para o Brasil, para o Estado, para os investidores, mas a população que vive no entorno está cada vez mais pobre e desassistida”, denunciou o presidente do Instituto Barcarena Socioambiental, Paulo Feitosa, durante o encontro em Florianópolis: “As pessoas morrem muito de câncer ou por


insuficiência respiratória. Um médico cancerologista disse que encontrou em Barcarena uma variedade muito grande de tipos de câncer”. A Bacia do Rio Pará não conta com Comitê de gerenciamento, conforme prevê o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. “Nós que somos nativos desta terra não temos como fazer nada porque as leis favorecem as indústrias e o poder econômico. Nosso apelo é para que as autoridades e Comitês possam olhar para o povo das águas”, denunciou Feitosa. O passo a passo da tragédia 17 de fevereiro: o MPPA recebe denúncias de moradores de Barcarena de que a água da chuva que se acumulou em diferentes pontos da cidade estava em tom vermelho. A suspeita era de vazamento de bauxita das operações da Hydro Alunorte, que atua na região desde 1995. 18 de fevereiro: fiscais da Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sesma) inspecionam a mineradora e informam que não houve vazamento. Mas notificou a empresa por verificar falhas no sistema de drenagem pluvial. O Instituto Evandro Chagas

(IEC), acionado pelo Ministério Público do Estado e pelo Ministério Público Federal, coleta amostragens de águas e efluentes. 21 de fevereiro: a Câmara dos Deputados cria uma comissão para averiguar o possível rompimento da barragem, com apoio técnico do Ministério do Meio Ambiente. 22 de fevereiro: o IEC divulga o resultado do laudo. Os índices de sódio, nitrato e alumínio estão acima do permitido. O PH da água está alterado, atingindo o nível 10. A análise revela ainda um alto teor de chumbo, que, com o consumo contínuo, pode gerar câncer. A perícia flagra um duto clandestino na mineradora que conduzia resíduos poluentes para um igarapé. 23 de fevereiro: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) pede a intervenção judicial na Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, com o afastamento do secretário do Meio Ambiente, Thales Belo, e do secretário adjunto de mineração. Ministério Público do Estado do Pará e Ministério Público Federal recomendam o embargo imediato de uma das bacias de rejeitos da Hydro Alunorte. Também é recomendado o fornecimento de água para as comunidades atingidas.

Barragem de rejeito da mineradora Hydro Alunorte em Barcarena no Pará 31


Crime Ambiental

A pá de lama Ailton Krenak nasceu na Bacia do Rio Doce e desde os anos 1980 se tornou um intelectual e líder na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil. Jornalista e escritor, recebeu das mãos do Ministro da Cultura, Juca Ferreira, o título de professor honoris causa, em 2016, concedido pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pertencente à etnia Krenak, que leva no sobrenome, viu durante décadas a região onde nasceu sofrer perdas profundas. Primeiro, o desmatamento e os empreendimentos obrigavam seu povo a migrar. Depois, em 2015, viu suas terras serem soterradas por um mar de lama com o rompimento da barragem Fundão, em Mariana (MG). Leia a seguir o depoimento de Ailton Krenak sobre o crime ambiental do Rio Doce cometido pela Samarco. O que a Vale e a Samarco fizeram, em conluio com os órgãos de fiscalização, é um crime. Não foi um acidente o derrame de lama em Mariana. Por Ailton Krenak / Ilustração: Davi de Jesus 32


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No Rio Doce, a minha vida de menino foi cheia de aventuras com meus irmãos e uns 40 ou 50 primos. O sobrenome Krenak veio da minha família indígena, o povo Krenak, que vive no Vale do Rio Doce, divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Eu nasci num córrego chamado Itabirinha. Lá tem uma reserva indígena onde vivem umas 100 famílias Krenak. Elas estão bem no rumo desse derrame que a mineração fez a 400 km da cabeceira do rio, mas que desceu até o mar e chegou ao Espírito Santo. No rio Doce, tenho mais de 50 anos de lembranças. Nossa família, juntando netos, bisnetos, tataranetos e todos os outros, dá umas 70 pessoas. Todos viveram e nasceram ali. Meus filhos cresceram indo para a beira do rio e conversando com ele, assim como também fazia a minha mãe, a avó deles. Quinze dias antes de acontecer esse derrame, minha mãe sonhou que tinha ido à beira do rio. O Doce pediu a ela que não entrasse na água porque estava envenenada. Depois do que aconteceu, ela fica lá olhando para o céu com o olho estatelado com um ar de “meu mundo acabou”. Minha mãe é a matriarca dessa aldeia. Nasceu ali e criou uma grande quantidade de filhos, netos e tataranetos na beira do rio. Agora, pergunta a eles: “Vocês não vão fazer nada, não? Eles mataram o rio. Vão ficar olhando?” Para os Krenaks, o rio Doce tem vida, é uma pessoa. Falar dele é como se referir a um antepassado. Ele tem o dom de curar as pessoas, de alimentar a imaginação e os sonhos. É onde batizamos as crianças. 34

É lógico que não é só um corpo d’água. São paisagens, montanhas. É uma região inteira onde o povo Krenak construiu suas aldeias no começo do século XX, quando ali só tinha mata. Essa vertiginosa tomada pelos empreendimentos, que chegaram devorando a paisagem, culminou com esse envenenamento do rio. Agora, todos os moradores estão com a mesma sensação de impotência e frustração diante da omissão do sistema de controle e gestão que deveria estar articulado sem situações como essa, de crime ambiental. O pessoal nas aldeias está até hoje com o rebanho parado. É a atividade que dá sustentabilidade à reserva, uma área pobre, apesar de ser berço da mineração. A totalidade dessas famílias vivia da pesca e da criação de gado. Há 10 anos, produzem leite e vendem para uma companhia de laticínios. A produção foi gravemente afetada. Estão tentando se recuperar, mas parte do rebanho morreu. Acabaram com o território e com a vida dessas pessoas. Agora, jogam a pá de lama. O sentimento que impera entre as famílias é um pouco de prostração e revolta. As pessoas mais atingidas são vulneráveis e não tem como reagir à altura, porque estão diante de agressores que são muito mais fortes e poderosos. É como se eles fossem grandes demais para levar uma multa e ir para a cadeia. É um adversário desproporcional. Que tamanho de multa vai afetar a Vale e a Samarco? No caso de responsabilidade criminal, vai prender quem?


É uma corporação, prende todos os diretores, todos os fiscais? Os mais jovens tem dito que sentem que roubaram o futuro deles, acusam essas corporações de serem ladras de futuro. Isso vai expulsar muita gente daquela região. Outra consequência será a desvalorização de tudo que construíram ao longo da vida. Quem vai querer comprar uma propriedade onde os animais não podem beber água do rio? A sensação é que estamos em um país sem governo. Isso cria uma sensação de injustiça grande. É uma indignidade o que fizeram com o rio. Eu já fui ao Japão, à Europa, aos Estados Unidos, já andei pela América Latina, entrei em lugares que só doidão, guerrilha mesmo, anda. Fui a reunião do Banco Mundial, na ONU, na CIA, na KGB. Para mim, esses lugares todos não têm importância nenhuma, porque o lugar mais bacana do mundo é o rio Doce. Não há mais vida no rio, está estéril, cheio de minério. Nossa vida sempre foi marcada pelo ritmo da natureza. Lembro da minha infância, quando tinha enchente, a água trazia árvores. Nessa época, não tinha percepção sobre coisas de meio ambiente, mas sabia que estavam roubando alguma coisa impagável e tirando da gente algo de valor inestimável. Hoje, sei que eles estavam acabando com as nossas nascentes, com as nossas águas, com os pássaros, com os bichos que amo. Se não tivessem tirado a mata das terras altas do Vale do rio Doce, as nascentes iam continuar produzindo muita água boa e limpa, que iam cair na calha do rio e com o tempo “água mole

em pedra dura, tanto bate até que fura”. Acontece que tiraram as matas. Meu desejo é cheio de esperança de que a natureza nos surpreenda e reabilite o rio. Duas vezes por semana, o caminhão-pipa passa nas casas e nos núcleos de produção de leite e enche grandes caixas d’água. É o suficiente para cozinhar, beber, lavar as coisas e dar água aos animais. Mas é uma situação de acampado. Ninguém vive assim, a não ser nos campos de refugiados da ONU, nos acampamentos dos sem terra em lugar flagelado. É situação de emergência. Os responsáveis por isso estão fazendo mitigação. Foi feito um resgate de algumas espécies que vivem nas margens e nos rios. Para as famílias que vivem de pesca, foi criada uma ajuda financeira. Aos que tiveram seus rebanhos envenenados ao tomar água do rio, vão avaliar o prejuízo para indenizar depois. Tem uma cerca isolando o limite inteiro da reserva com o rio para que o gado não chegue na água, porque se chegar vai morrer lá dentro. Parece que as mineradoras querem ficar só nisso, vão enrolar, enrolar, até que todo mundo esqueça, que tenhamos uma tragédia ainda maior. Isso é revoltante. Estamos articulados para reagir a essa ação e não vamos ficar na beira do rio prostrados. Os Krenaks estão o tempo todo berrando para mostrar que estão descontentes. Estão resistindo, porque amam o lugar em que vivem e têm histórias.

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Meio Ambiente

Último suspiro Com metade da área desmatada, o Cerrado pode desaparecer ainda neste século. A morte do bioma, originalmente 22% da paisagem, é também a morte dos mananciais de água do país Por Luiza Baggio / Foto: Fernando Piancastelli 36


A tragédia é silenciosa. Aos poucos, sem alarde, o Cerrado está desaparecendo: 80% da biodiversidade já sofreu alterações de fauna e flora. Originalmente compunha 22% da paisagem de todo o território nacional. Com ele, vão-se os rios. E entre os rios, o Velho Chico. O São Francisco possui mais de 90% de suas nascentes plantadas no Cerrado. Nos últimos 60 anos, o bioma mudou como nenhum outro bioma brasileiro. Sobre o Cerrado, construiu-se Brasília. E adentro dele, segue a expansão agrícola. Tanta interferência humana tem um preço. Se as chuvas tinham data para começar, agora driblam os meteorologistas. Se jorrava água nas nascentes, os rios e reservatórios estão cada vez mais secos. Ao lado da Caatinga, o Cerrado pede socorro. “Basta acessar uma imagem de satélite da região, para constatar grandes quadrículas nos interflúvios com monoculturas e grandes círculos demarcados pela irrigação de pivôs. Os motores que fazem funcionar as máquinas da irrigação são tão possantes que são necessárias baterias de motores auxiliares, para colocálos em operação”, comentou Altair Sales Barbosa, professor e criador do Memorial do Cerrado. “Quando este complexo começa a funcionar os rios sofrem impactos gigantescos, alguns param totalmente do ponto de captação para baixo. Pensem. Se fôssemos animais aquáticos o que faríamos? E, se fôssemos população ribeirinha, vivendo da produção familiar, ou se vivêssemos em alguma cidade ou povoado abaixo destes sistemas, qual seria a nossa reação?”, indaga. Segundo Sales Barbosa, onde houve modificação do solo a vegetação do Cerrado não brota nunca mais: “O solo é oligotrófico, carente de nutrientes básicos. Quando o agricultor e o pecuarista enriquecem esse solo, melhorando sua qualidade, isso é bom para outros tipos de planta, mas não para as do Cerrado. Não há mais como recuperar o ambiente original. O mais impactante é que as águas que brotam do Cerrado são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do continente sul-americano”. A extinção do Cerrado, para o pesquisador, significa a extinção dos mananciais de água do Brasil: as grandes bacias hidrográficas “brotam” dele. Chamado de rio da integração nacional, pela importância que tem para o interior do país, o São Francisco nasce em área de Cerrado e é alimentado, em sua margem esquerda, por afluentes do Cerrado: Rio Preto (GO); Rio Paracatu (MG); Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio Formoso, que nasce no Jalapão (TO). Não por acaso o Cerrado é conhecido como a “caixa d’água do país. Abriga nascentes ou leitos de rios de oito grandes bacias hidrográficas. Dois grandes fatores geográficos contribuem para que o Cerrado apresente tal relevância para o equilíbrio ambiental: posição e relevo. O bioma encontra-se em uma região central, o que contribuiu para que boa parte das bacias hidrográficas do país se concentre nele. Além disso, as altitudes presentes e o grande número de nascentes fazem com que haja um bom escoamento das águas para outras regiões, auxiliando na distribuição dos recursos hídricos. “Se há a degradação do Cerrado, não há rios para alimentar o São Francisco. Podemos contar, no mínimo, dez afluentes por ano, desses grandes rios, que estão desaparecendo”, finalizou Sales Barbosa: “O Cerrado, pode-se dizer, está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água. Os frutos dessa desarmonia serão colhidos ainda na geração atual”. 37


Animais do Cerrado

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Ilustração André Fidusi

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1 Lobo-Guará

2 Anta

(Chrysocyon brachyurus)

(Tapirus terrestres)

O lobo-guará é uma espécie de canídeo endêmico da América do Sul e único integrante do gênero Chrysocyon. Provavelmente, a espécie vivente mais próxima é o cachorrovinagre (Speothos venaticus). Ocorre em savanas e áreas abertas no centro do Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia, sendo um animal típico do Cerrado. Foi extinto em parte de sua ocorrência ao Sul, mas ainda deve ocorrer no Uruguai. É o maior canídeo da América do Sul, podendo atingir entre 20 e 30 kg de peso e até 90 cm na altura da cernelha.

A anta-brasileira ou simplesmente anta, também conhecida por tapir, é um mamífero perissodáctilo da família Tapiridae e gênero Tapirus. Ocorre desde o sul da Venezuela até o norte da Argentina, em áreas abertas ou florestas próximas a cursos d’água, com abundância de palmeiras. É o maior mamífero terrestre do Brasil e o segundo da América do Sul, tendo até 300 kg de peso e 242 cm de comprimento. Se diferencia das outras espécies do gênero por possuir uma crista sagital proeminente e uma crina.

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Arara-canindé

Jaguatirica

Onça Pintada

(Ara ararauna)

(Leopardus pardalis)

(Panthera onca)

A arara-canindé, também conhecida como arara-debarriga-amarela, arari, arara-amarela, arara-azul-e-amarela, araraí e canindé, é uma das mais conhecidas representantes do gênero Ara, sendo uma das espécies emblemáticas do Cerrado brasileiro e importante para muitas comunidades indígenas. É muito apreciada como animal de estimação. Ocorre da América Central ao Brasil, Bolívia e Paraguai.

A jaguatirica é um mamífero carnívoro da família Felidae e gênero Leopardus. São reconhecidas 10 subespécies, e o gatomaracajá (L. wiedii) é a espécie mais próxima da jaguatirica. Ocorre desde o Sul dos Estados Unidos até o Norte da Argentina, mas já foi extinta em algumas regiões de sua distribuição geográfica. Habita todos os tipos de ambiente ao longo de sua distribuição geográfica, até cerca de 1200 m de altitude. É um felídeo de porte médio, com 72,6 a 100 cm de comprimento e peso entre 7 e 15,5 kg.

A onça-pintada é uma espécie de mamífero carnívoro da família Felidae encontrada nas Américas. É o terceiro maior felino do mundo, após o tigre e o leão, e o maior do continente americano. Ocorre desde o sul dos Estados Unidos até o norte da Argentina, mas está extinta em diversas partes dessa região atualmente. É encontrada principalmente em ambientes de florestas tropicais, e geralmente não ocorre acima dos 1.200 m de altitude. A onça-pintada está fortemente associada à presença de água e é notável como um felino que gosta de nadar.


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6 Seriema

7 Pacú dente-seco

8 Tatu-canastra

(Cariama cristata)

(Mylesinus paucisquamatus)

(Priodontes maximus)

A seriema é uma ave predadora terrestre da família das seriemas, incluída antes na ordem “Gruiformes” mas cada vez mais colocada em uma ordem distinta Cariamiformes. A seriema habita desde o Uruguai e os campos do Sul do Brasil até o Cerrado, o Pantanal e o Sul da Amazônia e atinge também o Norte da Argentina. A sua área de ocorrência é estimada em 5,9 milhões de km². A espécie está ausente da Mata Atlântica e das terras altas do planalto ao longo do litoral do Brasil.

Esta espécie de pacú é extremamente rara e endêmica do Rio Tocantins. Seu gênero é o único entre os pacús que não possui quilha na região do abdómen. Seus dentes robustos se destacam e servem para sua alimentação que é baseada em material vegetal aderido às rochas e outros substratos dos rios. A espécie consta no livro vermelho da fauna brasileira como ameaçado na extinção e suas populações remanescentes estão isoladas pelos diversos barramentos presentes ao longo do Rio Tocantins.

Também conhecido como tatuaçu, é uma espécie de tatu de grandes dimensões, encontrado na maior parte da América do Sul cisandina. Tais tatus chegam a medir mais de 1 metro de comprimento. Têm o corpo coberto por poucos pelos e patas anteriores dotadas de garras enormes, que auxiliam na escavação de buracos. Estão vulneráveis à extinção devido à caça para obtenção de carne e pelo desmatamento do seu habitat. Os animais capturados pelo tráfico de animais silvestres sofrem uma alta taxa de mortalidade durante o transporte. O tatucanastra é também chamado de tatucarreta.

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Pirapitinga

Tamanduá-bandeira

(Brycon nattereri)

(Myrmecophaga tridactyla)

A pirapitinga é um peixe da família Bryconidae que inclui o dourado, a tabarana e a piraputanga. Sua alimentação é baseada em insetos e material vegetal, como flores e frutos, provenientes das matas ciliares. Ao longo do ano a pirapitinga desempenha curtas migrações, por isso suas principais ameaças são o desmatamento e a construção de represas, que interrompem suas rotas migratórias. Atualmente, a pirapitinga está listada como ameaçada de extinção, na categoria vulnerável.

O tamanduá-bandeira, é um mamífero xenartro da família dos mirmecofagídeos, encontrado na América Central e América do Sul. É a maior das quatro espécies de tamanduás e, junto com as preguiças, está incluído na ordem Pilosa. Tem hábito predominantemente terrestre, diferente de seus parentes próximos, o tamanduámirim e o tamanduaí, que são arborícolas. É encontrado em diversos tipos de ambientes, desde savanas a florestas. Prefere forragear em ambientes abertos, mas utiliza florestas e áreas mais úmidas para descansar e regular a temperatura corporal.

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História

O cangaceiro dândi Entre armas e agulhas de bordar, Lampião se transformou no maior ícone do sertão brasileiro. Neste ensaio, as várias facetas do rei do Cangaço Por Christiane Tassis Foto: Benjamin Abrahão - arquivo família Lampião Virgulino Ferreira disparava o rifle tão freneticamente que iluminava a noite da Caatinga. Dizem que vem daí o apelido: Lampião. Matava sem dó. O longo punhal era enfiado com um golpe certeiro, na base da clavícula, produzindo um esguicho de sangue. Quando não matava, aleijava, para que as cicatrizes riscadas à faca servissem de exemplo. Espalhando o terror em quase duas décadas de reinado no sertão, ele criou um estilo, virou um ícone. Gostava de costurar, bordar e posar para os jornais e revistas da moda. Saiu até no “New York Times”. Morto há oitenta anos, completos em julho, permanece controverso – e apaixonante: Robin Hood do sertão ou bandido sanguinolento? Lampião nasceu em 1898, em Serra Talhada, no agreste pernambucano. Em 1921, seu pai foi morto a tiros pela polícia em uma rixa por terras. Virgulino jurou vingança. Entrou para um grupo de cangaceiros e matou o informante que entregou o pai à polícia. Começava a saga de Lampião, o temido cangaceiro. Seu bando chegou a contar com cem pessoas. Herói justiceiro para os pobres e ladrão assassino para os ricos, roubava dos fazendeiros, matava, estuprava, sequestrava, torturava, tocava o terror. Mas também distribuía a riqueza que saqueava para os menos favorecidos. Tinha o respeito e a admiração da maioria da população oprimida do Nordeste, por desafiar coronéis, policiais e até o Estado Novo: chegou a ser incluído por Getúlio Vargas como “extremista” e teve sua sentença de morte declarada. O cangaço surgiu no chamado Polígono das Secas, quando a fome, a falta d’água, o coronelismo, a miséria e a repressão imperavam no sertão e era forte a tradição do “banditismo de honra”. A palavra “cangaceiro” vem de canga, uma peça de madeira utilizada nos animais de carga. 40


Virgulino Ferreira, o Lampião, foi o rei do cangaço

Desatre ambiental de Barcarena

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Entre armas e agulhas Aliás, não era pouca a carga que os cangaceiros transportavam. Dizem que só a roupa de Lampião pesava 30 quilos. Fora os mantimentos, armamentos, objetos pessoais e a máquina de costura Singer, onde ele mesmo costurava suas roupas. Pois o duro, corajoso e violento Lampião era também estilista. Em suas horas de paz, dedicava-se a tecidos, linhas e agulhas. E eram lindos os bordados, com flores, estrelas, símbolos místicos. Os lenços, chamados de jabiraca, eram de seda inglesa ou tafetá francês e bordados com a sigla C.V.F.L. (Capitão Virgulino Ferreira Lampião). As mãos que seguravam armas pesadas eram ornadas de anéis de ouro e pedras preciosas, saqueados dos coronéis e baronesas. O suor do calor do sertão e das roupas de couro era coberto com o perfume francês “Fleur d’Amour”, que Virgulino passava inclusive nos cavalos. Exigia que o bando andasse bem vestido,

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para serem reconhecidos pelas roupas. O gosto pela estética influenciou sua companheira, Maria Bonita, que chegou a sair na “Time Life” da época como uma “mulher da moda”. O xaxado era sua “dança de guerra”. Há relatos de ataques feitos ao som de “Mulher Rendeira” - que também foi atribuída como composição sua. Sanfoneiro, repentista, cantador, poeta, místico, enfermeiro e até dentista, Lampião era antenado com as novidades culturais da época. Ia ao cinema quando encontrava um. Lia as revistas “O Cruzeiro”, “FonFon” e “Noite Ilustrada”. Adorava ser fotografado, posava, imitando Greta Garbo ou Rodolfo Valentino, e a extensa iconografia registrada pelo fotógrafo sírio Benjamin Abrahão colaborou para sua mitificação. Gostava de ser fotografado com livros e revistas ou exibindo alguma matéria sobre ele mesmo, para mostrar que não era um “jagunço ignorante”, sabia ler. Presença constante nos jornais da época, sua fama correu mundo. Pelo New York Times, em artigo publicado em 1930, foi chamado de “Robin Hood da Caatinga”.


Emboscada Lampião morreu em 1938, em Poço Redondo, Sergipe, às margens do São Francisco. O grupo sofreu uma emboscada quando descansava na Grota de Angico. Dizem que foi traído por um de seus capangas, que entregou seu paradeiro à volante do tenente João Bezerra. “Volante” eram as forças repressoras que faziam o papel do Exército na época. Suas cabeças foram cortadas e expostas pela cidade, como um troféu. E percorreram o nordeste nas mãos do algoz, já em adiantado estado de decomposição, atraindo multidões. Festas, desfiles, fogos de artifício, rezas e banda de música acompanharam o cortejo sinistro. As cabeças foram examinadas por médicos-legistas, para detectar “indícios de monstruosidade”. Foram classificadas como absolutamente normais.

Maria Bonita ao lado de Lampião e de membros do bando de cangaceiros

Cabeças dos membros do cangaço viraram troféus e foram expostas em Piranhas (AL)

Lampião é turismo Na Rota do Cangaço, turistas fazem o trajeto da volante que matou Lampião. O ponto de partida é o cais de Piranhas. Pelas águas do São Francisco chegase até Poço Redondo. Em Piranhas há também o Museu do Cangaço, com fotografias, cartas, bilhetes e roupas que preservam a memória de Lampião. Lampião é cultura São infinitos os cordéis inspirados em Lampião, assim como uma considerável produção acadêmica e livros que contam a sua história e abordam a sociologia do fenômeno que ele expressou. Ele também inspirou grandes artistas brasileiros. • “Capitães da Areia”, de Jorge Amado (1937), faz citações referentes à Lampião • “O Cangaceiro”, filme de Lima Barreto (1953) • “O Lamparina”, filme de Glauco Mirko Laurelli (1963) • “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (1964) também faz citações à Lampião • “Corisco, o Diabo Loiro”, direção de Carlos Coimbra (1969) • “Lampião e Maria Bonita”, minissérie brasileira produzida pela Rede Globo (1982) • “O Cangaceiro Trapalhão”, direção de Daniel Filho (1983) • “Mandacaru”, telenovela produzida pela Rede Manchete (1997) • “Baile Perfumado”, direção de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997) • “Canta Maria”, dirigido por Francisco Ramalho Jr (2006) • “Cordel Encantado”, telenovela da Rede Globo (2011) • “A Luneta do Tempo”, filme de Alceu Valença (2016) • “Candeeiro Encantado”, música de Lenine • “Acorda Maria Bonita! Levanta vem fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já tá de pé....” A música mostra como era o dia-a-dia dos cangaceiros: acordar cedo, preparar comida e sair em fuga para escapar dos inimigos.

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Arte

Bordando ideias para transformar

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Nascente do Rio São Francisco representada em bordado

Fundado há três décadas, o Grupo Matizes Dumont transformou uma tradição familiar, o bordado, em arte. E usa agulha e linha para pespontar os caminhos da sustentabilidade e da preservação ambiental Por Karla Monteiro / Fotos: Grupo Matizes Dumont Foi em Pirapora, a 340 quilômetros de Belo Horizonte, ouvindo o balançar do Velho Chico, que tudo começou. Dona Antônia Zulma Diniz Dumont era uma bodadeira de mão cheia. Crivo, rechiliê e outros pontos antigos, não havia nada que não pudesse fazer com uma agulha na mão. De mãe para filhos, o afazer passou à prole: Demóstenes, Ângela, Marilu, Martha e Sávia. E chegou às netas: Lena, Luiza e Luana. Deste trançado de gerações, surgiu o grupo Matizes Dumont. O coletivo familiar que transformou o que sempre fora um passatempo caseiro em arte para se expor em museu, tecendo em painéis realistas o cotidiano e a cultura brasileira. Fundado há três décadas, o Matizes Dumont está bordando e rebordando também a própria história, ao retirar o bordado tradicional da sala da casa e levá-lo às paredes de museus e páginas de livros. O coletivo já ilustrou obras de Jorge Amado, Manoel de Barros, Rubem Alves, Marina Colasanti, entre outros. Na lista de prêmios que recebeu pelos trabalhos de ilustração, estão dois Jabutis, em 1988 e 2000, um dos principais da literatura. A partir de 1994, começou a frequentar as paredes de galerias de arte e museus. Em Brasília, fez exposições individuais em espaços como Museu da República e Teatro Nacional Cláudio Santoro. Fora do Distrito Federal, onde o Matizes Dumont se radicou, passeou por importantes instituições de Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e também Europa, com mostras na Itália e França. 45

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Na cadência do Velho Chico Além de fazer arte, o Matizes Dumont resolveu ligar os pontos e criou o Instituto de Promoção Cultural Antônia Dumont (ICAD), em Pirapora, onde desenvolve alguns dos seus projetos socioambientais. O ICAD é um espaço educativo e de convivência, de compartilhamento de ideias e ações voltadas para a cultura, educação, saúde, meio ambiente e revitalização de saberes antigos. Empenhados na discussão sobre o uso múltiplo das águas e da formação dos Comitês de Bacias do São Francisco, em 1999 e em 2000, os Dumont pegaram a barca em Pirapora, chamada de “Barranqueira”, e seguiram viagem, de porto em porto: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. O projeto “Caminho das Águas” percorreu 26 cidades do vale do Rio São Francisco e mobilizou regionalmente cerca de 40.000 pessoas. Hoje não há água suficiente para navegar, mas a luta segue, fazendo oficinas de mobilização nas comunidades ribeirinhas. Um grande painel vem sendo bordado coletivamente e a obra em progresso visa mobilizar o país para o ocaso do Velho Chico. Ao longo do caminho, em oficinas de bordados, um infinita colcha de paisagens, costumes, lendas vem sendo delicadamente construída. “Viajando na barca Barranqueira, ou em pequenos barcos, catamarãs ou mesmo por terra, fomos puxando o fio que o povo borda e reborda com suor, vontade, força e alegria de vencer a dor a cada dia”, comentou Marilu Dumont. Segundo ela, o painel já tem cerca de cinco metros de comprimento: “Começamos em julho de 1999. As imagens foram sendo construídas pela comunidade. E queremos continuar, sempre usando o bordado para despertar discussões sobre o São Francisco”. O trabalho educativo do grupo Matizes Dumont já soma diversas iniciativas, entre elas o projeto “Bordando o rio Ebro”, realizado em Zaragoza, na Espanha, o Projeto Entre Rios em desenvolvimento nos estados do Mato Grosso, São Paulo, Goiás e Minas Gerais. “Realizamos muitos projetos nas áreas de educação, da cultura, da preservação ambiental, do planejamento”, comentou Sávia: “Bordar, para nós, é um ato de convivência, de registro das memórias, de reflexão sobre temas diversos como água, flora, fauna, gente, lugares, sentimentos... E ainda um exercício de reflexão e transformação”.

Créditos: Bordados do Grupo Matizes Dumont sobre desenhos de Demóstenes O painel ao lado “No caminho das Águas” contém o mapa do rio São Francisco. Seu bordado foi iniciado em 1999 e segue Bem contínua bordação pelas comunidades brasileiras em oportunidades nas quais se discute e borda águas.

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Painel “No caminho das Águas”


Bordado “Lavadeiras” representa uma das tradicões do Rio São Francisco

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Turismo

O que é que a Bahia tem

Importante centro de pesquisas arqueológicas, Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina, reúne belezas naturais, paisagens pouco convencionais e muita história Por Andréia Vitório / Fotos: Manuela Cavadas 48


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Por quais caminhos podem nos levar as águas do Velho Chico? São muitas paisagens, histórias e personagens Brasil afora, em mais de 2.700 quilômetros de curso. Seguindo as águas, atravessando a Bahia, chegamos à histórica de Morro do Chapéu, localizada na Chapada Diamantina Norte, a 396 quilômetros de Salvador. Já na estrada, é possível avistar de longe o morro que deu nome ao local. Imponente, o “Morrão”, como é chamado, tem 1.293 metros de altitude e o mais lindo pôr do sol do sertão. Morro do Chapéu reúne de tudo um pouco: paraíso de orquídeas e bromélias; habitat de espécies em extinção, como as onças pintada e parda; centro de pesquisas arqueológicas. E até palco para os estudiosos de Ufologia. A paisagem inclui cachoeiras, grutas, sítios arqueológicos, formações rochosas impressionantes, como o Buraco do Possidônio, além de vilas 50

históricas como a Ventura – maior centro de diamantes da região no início do século XX. Da tranquilidade de um passeio despretensioso por suas ruas largas, com construções charmosas e centenárias, à adrenalina dos esportes de aventura, como rapel, bike e trekking, não faltam opções para se divertir, descansar e contemplar, curtindo um clima agradável, com temperaturas que conferem ao local ares europeus com tempero baiano. A região abriga três unidades de conservação estaduais: Parque Estadual Morro do Chapéu, Monumento Natural Cachoeira do Ferro Doido e APA Vereda Romão Gramacho – ou Gruta dos Brejões. Acolhe também rios oriundos das bacias do Paraguaçu e São Francisco. Do Velho Chico, destaque para a bacia do Salitre.


Morro do Chapéu (BA), localizado no norte da Chapada Diamantina, é um importante destino turístico

O rei negro Segundo Antônio Barreto Dantas Junior, 55 anos, historiador nascido e criado na cidade, a história de Morro do Chapéu se confunde com a do coronel Dias Coelho, primeiro coronel negro da Bahia. Descendente de escravos, tornou-se um dos homens mais influentes e prestigiados da Chapada Diamantina. “Quem vem a Morro do Chapéu vê ruas amplas e praças largas. Temos casarões conservados, ruas e praças bem espaçosas, frutos do plano diretor trazido da França por influência do coronel, uma das principais figuras negras do estado da Bahia”, conta. Morro de Chapéu foi uma cidade produtora de diamantes e viveu sua efervescência econômica nos idos de 1920, época em que a histórica Vila do Ventura recebia milhares de garimpeiros e mercadores importantes. O município foi criado em 1864 e elevado à categoria de cidade em 1909. Ainda hoje é possível ver construções históricas como a centenária Igreja Matriz e a capela Soledade. Esta última abriga uma imagem de dois metros da Nossa Senhora da Soledade vinda da França como presente ao Coronel Dias Coelho. 51


Cinco passeios

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Gruta dos Brejões O pórtico de entrada de 106 metros de altura já anuncia a grandiosidade. Brejões é uma das cavernas mais belas e exuberantes do Brasil, considerada, segundo o Museu Geológico da Bahia, a 4ª maior do estado e a 6ª do país. Está localizada no vale do Rio Jacaré, afluente do São Francisco, na área denominada Vereda Romão Gramacho. São cerca de 7 km de extensão, amplas galerias e diversas formações minerais: “Tem estalactites e estalagmites, que, pingando, ajudaram a formar, por exemplo, o Bolo de Noiva, uma das principais atrações”, comentou Nei dos Santos, guia da região. O vilarejo próximo, Brejões da Gruta, não conta com estrutura para estadia. Como o local fica a aproximadamente 180 quilômetros de Morro do Chapéu, a dica é levar um lanche e chegar cedo para melhor aproveitar o passeio. A presença de um guia é fundamental. 53


Lagoa da Velha Conjunto de sítios arqueológicos, o local é um importante celeiro de pinturas rupestres. Fica a cerca de 21 km de Morro do Chapéu, às margens da BA-052. Segundo registros, algumas pinturas datam de 3 mil anos.

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Buraco do Possidônio Uma cratera de aproximadamente 150 metros de diâmetro e 60 de profundidade. De fora, é possível avistar uma vegetação farta e árvores de grande porte emoldurando a área. Acredita-se que o “Buraco” tenha surgido em virtude de um abalo sísmico. O acesso é fácil, a 18 km da sede da cidade.

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Cachoeiras do Ferro Doido e Agreste

Ferro Doido fica na área de preservação ambiental do Monumento Natural do Ferro Doido, a 18 km de Morro do Chapéu. Possui um paredão coberto por uma vegetação diversa, com presença de bromélias, orquídeas e sempre-vivas. Seu ponto mais alto registra 98 metros de queda d´água. São mais de três horas de caminhada, mas vale cada passo. A cachoeira do Agreste tem queda d’água de aproximadamente 50 metros de altura. A 17 km de Morro do Chapéu, conta com poços profundos, onde diamantes já foram explorados. A trilha é de aproximadamente três quilômetros até a queda principal. Uma opção fácil, ideal para quem tem pouco tempo, é visitar a cachoeira Domingos Lopes. Sem a grandiosidade das citadas anteriormente, oferece um banho gostoso em meio à natureza, a 14 km de Morro do Chapéu. 56


Vila do Ventura A tranquilidade do local nada tem a ver com a efervescência que movimentou o vilarejo nos idos de 1920, auge da produção de diamantes. O carbonato, vendido diretamente no comércio europeu, era a principal fonte de renda da Vila do Ventura, que fica a 35 km de Morro do Chapéu. O burburinho econômico ficou para trás, mas ainda são mantidos o calçamento original em pedra e algumas construções coloniais, além da igreja. Por detrás de suas casas, sobrados e ruínas, traços importantes da história podem ser revelados. De lá, ainda é possível visitar a Cachoeira do Ventura, a 6 quilômetros da Vila.

Confiram o vídeo e a cobertura fotográfica completa desta reportagem. Acesse o link https://goo.gl/LZqNDS ou com seu celular escaneie o QR CODE ao lado. 57


Comitê em Ação

Aconteceu Por Mariana Martins

A água no centro das discussões O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) marcou forte presença no maior evento global que tem a água no centro das discussões: o 8º Fórum Mundial da Água. Além das participações em mesas de debates e palestras, o CBHSF montou um estande que contou com intensa e variada programação. O Fala Chico levou ao público a apresentação de estudos, palestras e mesas redondas com assuntos inerentes ao tema ‘Água e sustentabilidade’. No local, também houve reuniões e articulações entre o Comitê e outras instituições, como a Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] e com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura [IICA]. O destaque foi a homenagem com a Medalha Velho Chico ao ex-ministro do Meio Ambiente (MMA), Sarney Filho; ao atual ministro Edson Duarte; e ao secretário de Recursos Hídricos e Qualidade Ambiental do MMA, Jair Vieira Tannús Júnior. O evento ocorreu entre os dias 18 e 23 de março deste ano, em Brasília (DF).

Viramos carranca para defender o Velho Chico A campanha “Eu viro carranca pra defender o Velho Chico” para conscientizar a população sobre a preservação do rio e mobilizar a todos pelo uso responsável dos recursos hídricos chegou em sua 5ª edição. Em Aracaju (SE) e Januária (MG), uma exposição intitulada “Eu Amo Velho Chico” foi instalada e contou com a participação de alunos de escolas públicas. A exposição, composta por totens educativos e letreiros, atraiu a atenção das crianças e adolescentes, que puderam aprender mais sobre o rio, sua bacia e sobre a cultura das comunidades tradicionais ribeirinhas e suas lendas. Em Traipu (AL), também foi realizada uma mobilização com cerca de 250 alunos de escolas públicas da região. Gincana ambiental, palestras e a inauguração do letreiro “Eu amo o Velho Chico” foram os destaques da programação. A campanha foi lançada no dia 03 de junho, Dia Nacional do Rio São Francisco.

XX Encontro Nacional de Bacias Hidrográficas O CBHSF marcou presença durante o XX ENCOB, realizado entre os dias 20 e 24 de agosto, em Florianópolis (SC). O ‘Programa de Fiscalização Preventiva Integrada (FPI)’ foi apresentado, durante o encontro, pelo vice-presidente, Maciel Oliveira. O diretor técnico da Agência Peixe Vivo, Alberto Simon Schvartzman, tratou do tema ‘Implementação das ações e metas nos planos de bacia’. O presidente do CBH São Francisco, Anivaldo Miranda, destacou o debate sobre os crimes ambientais. Ele foi contextualizador da Mesa de Diálogos intitulada ‘Transparência na Gestão – Estado da Arte dos Conflitos‘.

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Prevenir para não precisar remediar Com o objetivo de apresentar à população as áreas inundáveis do Rio São Francisco e as ações para enfrentamento às cheias, foram realizadas reuniões públicas em Propriá (SE), Petrolina (PE) e Pirapora (MG). A atividade do CBHSF foi executada para alertar sobre os impactos da ocupação irregular nas margens do Velho Chico diante de uma elevação brusca do nível do manancial. As reuniões contaram com a participação de representantes da ANA, da Defesa Civil, Chesf, Cemig, prefeituras, entre outros.

Plenária A XXXIV Reunião Plenária do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), que aconteceu nos dias 17 e 18 de maio na cidade mineira de Lagoa da Prata, região Centro-Oeste do Estado, teve como tema central as águas subterrâneas. Entre os assuntos discutidos, a gestão integrada de recursos hídricos superficiais e subterrâneos e o Programa de Conversão de Multas Ambientais, do Ibama, foram os destaques. Durante a plenária foi também assinado o Protocolo de Intenções entre o CBHSF e a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais.

Uma estrada para o futuro O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco vem trabalhando na região estuarina como uma das prioridades para sua intervenção, sobretudo visando minorar os efeitos da intrusão salina que ameaça o abastecimento de água não salinizada às populações locais. Em setembro, foi entregue um trecho de estrada que tira do isolamento os quilombolas de Resinas e Brejão dos Negros em Sergipe. Eles estão festa e de parabéns porque graças à sua luta e tenacidade têm evitado a ocupação predatória da Foz do São Francisco!

II SBHSF Em sua segunda edição, o Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco reuniu aproximadamente 400 pessoas, entre estudantes, profissionais da área ambiental e pesquisadores nacionais e internacionais entre os dias 3 e 6 de junho. Com o apoio do Fórum de Pesquisadores de Instituições de Ensino Superior da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o evento aconteceu na Universidade Federal de Sergipe (UFS) e promoveu palestras, oficinas e mesas redondas com especialistas nacionais e internacionais, de diversas áreas ligadas ao meio ambiente.

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