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Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco • Dezembro 2020
Ameaça ao Aquífero do Urucuia, a caixa d’água que alimenta o Rio São Francisco Engavetado há trinta anos, o projeto da Usina Hidrelétrica do Formoso volta para assombrar o Velho Chico O que é o Marco Legal do Saneamento Básico? Nas comunidades indígenas, o luto e a luta contra a Covid-19
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SUMÁRIO 08
Páginas Verdes Rodrigo Agostinho
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Ciência
Degradação Ambiental
Sobre o invisível
Saara mineiro
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Enegia elétrica
Corte orçamentário
O sertão vai virar mar?
Mar de lama
38 Ensaio
Luto Luta
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Expediente PRESIDENTE: ANIVALDO DE MIRANDA PINTO VICE-PRESIDENTE: JOSÉ MACIEL NUNES OLIVEIRA SECRETÁRIO: LESSANDRO GABRIEL DA COSTA PRODUZIDO PELA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CBHSF TANTO EXPRESSO COMUNICAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL COORDENAÇÃO-GERAL: PAULO VILELA, PEDRO VILELA E RODRIGO DE ANGELIS EDIÇÃO: KARLA MONTEIRO TEXTOS: ANDRÉIA VITÓRIO, ANIVALDO MIRANDA, JUCIANA CAVALCANTE, KARLA MONTEIRO, LUIZA BAGGIO E MARIANA MARTINS PROJETO GRÁFICO: MÁRCIO BARBALHO DIAGRAMAÇÃO: RAFAEL BERGO FOTOS: AZAEL GOIS, BIANCA AUN, EDSON OLIVEIRA, LÉO BOI, LUIZ MAIA, LUIZA BAGGIO, MARCELO ANDRÉ, PAULO EMÍLIO BELARDINI, STHEL BRAGA, SHUTTERSTOCK, APIB, ARQUIVO PESSOAL: PRISCILA MAGELLA, TARGINO GONDIM, PAULO ARAÚJO E RODRIGO AGOSTINHO ILUSTRAÇÕES: ANGELO ABU E CLERMONT CINTRA REVISÃO: ISIS PINTO E LUIZA BAGGIO ILUSTRAÇÃO CAPA: ANGELO ABU IMPRESSÃO: ARW GRÁFICA E EDITORA TIRAGEM: 5000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DIREITOS RESERVADOS. PERMITIDO O USO DAS INFORMAÇÕES DESDE QUE CITADA A FONTE. SECRETARIA DO COMITÊ: RUA CARIJÓS, 166, 5º ANDAR, CENTRO BELO HORIZONTE - MG CEP: 30120-060 - (31) 3207-8500 secretaria@cbhsaofrancisco.org.br
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Perfil
Cultura
Alma sertaneja
O sertão é o mundo
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ATENDIMENTO AOS USUÁRIOS DE RECURSOS HÍDRICOS NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO: 0800-031-1607 ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: comunicacao@cbhsaofrancisco.org.br
www.cbhsaofrancisco.org.br
Pandemia O novo normal
54 Turismo Conhecer para amar
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Editorial O ano que não terminou 2020: certamente um ano difícil, quase insuportável. O país assistiu até agora a morte de mais de 150 mil brasileiros e brasileiras, vítimas da Covid-19. Em meio à pandemia, uma crise sanitária paralisou o mundo e nossas florestas e matas arderam em chamas, num espetáculo desolador em que onças pintadas, antas, tamanduás e outros tantos animais raros, sem esquecer os de menor porte como os insetos, foram fotografados em sofrimento agudo ou sequer registrados em seu desaparecimento por conta da grande escala de destruição causada pelo fogo em dimensões territoriais avassaladoras. Como se não bastasse, o Brasil vem atravessando também e cada vez mais conjunturas de insegurança hídrica que são claramente resultantes dos efeitos do aquecimento global potencializados pela insana devastação dos nossos biomas, degradação crescente dos solos e pelo uso irracional e descontrolado das nossas águas em coquetel amargo onde o desmonte da política pública do meio ambiente é apenas mais um dos ingredientes da instabilidade político-institucional vigente. Neste cenário bastante adverso a revista CHICO traz reportagens que nos mostram como, mais do que nunca, é preciso união, “é preciso estar atento e forte”, para construir o “Divino Maravilhoso”, da canção eternizada por Gal Costa. No caso o “Divino Maravilhoso” entendido como a necessidade premente de defesa e promoção de uma gestão verdadeiramente descentralizada, participativa e compartilhada dos recursos hídricos em todo o país. O Comitê da Bacia Hidrográfica do São
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Francisco (CBHSF) não parou, adaptando-se ao “novo normal”. Desde que o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso da Covid-19 no país, o Comitê trabalha para aperfeiçoar a comunicação digital e, assim, seguir tocando os projetos de revitalização e preservação do Velho Chico. As reuniões antes presenciais se tornaram virtuais e os projetos de campo seguem, agora em ritmo de aceleração, sob as orientações de segurança recomentadas pelas autoridades de saúde. Entre os temas tratados nesta CHICO “do ano que não terminou”, lembrando conhecida expressão literária, diversos assuntos de importância vital para os próximos anos: o corte no orçamento da Agência Nacional de Mineração (ANM), o estudo publicado pelo Journal of South American Earth Sciences sobre os riscos que assombram o aquífero do Urucuia, o marco legal do saneamento básico, além de uma entrevista com o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-BA), presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista. Para refrescar, porque ninguém é de ferro, a CHICO ainda traz o perfil Alma Sertaneja, as histórias de três cantantes das margens do Velho Chico e uma homenagem aos indígenas mortos pela Covid-19. Boa Leitura!
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A Palavra do Presidente
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Pacto das águas O impasse mais recorrente na consecução dos Planos de Recursos Hídricos das bacias hidrográficas é exatamente a dificuldade de implementação efetiva de sua execução. Os anos se passam, avanços se verificam na adoção de padrões mais operativos no que diz respeito à concepção e elaboração desses planos, mas grosso modo o impasse permanece. Isso ocorre porque esse aperfeiçoamento dos planos, seus objetivos, metas e diretrizes tem limites a partir dos quais devem entrar em cena outros instrumentais, se quisermos de fato materializar o planejamento que tanto perseguimos para tornar a gestão das águas mais veloz do que os fatores que causam sua crescente degradação e escassez. Esses outros instrumentais aos quais nos referimos estão corporificados, sobretudo, na articulação política (política no sentido estritamente institucional) que é necessário empreender para que os Planos de Bacias Hidrográficas entrem de fato no radar dos governos (da União, dos estados e municípios), dos poderes da República, das representações dos usuários das águas e da sociedade civil, para que todos possam sentir-se incluídos, mas, mais do que isso, convocados a dar a parte que lhes cabe na tarefa conjunta e complexa de gerir as águas e garantir a segurança hídrica de que precisaremos e muito no século dos extremos climáticos que começamos a atravessar. Ilusão imaginar que os Comitês de Bacias Hidrográficas, aos quais cabe a missão de elaborar e conceber esses planos, irão sozinhos garantir que estes sejam implementados, muito menos lançando mão apenas dos limitados recursos oriundos da Cobrança pelo Uso das Águas brutas em seus respectivos domínios. Isso porque a abrangência dos planos e suas metas gerais estão situadas em esferas muito mais amplas do que o universo de decisão dos Comitês de bacias, muito embora a eles tenha sido dada, em bom momento, a missão de serem os grandes animadores e articuladores das ações que podem e devem fomentar, entre todos os atores do grande cenário das bacias hidrográficas, os acordos, compromissos, as responsabilidades e a cooperação que são imprescindíveis para dar musculatura aos planos de bacias.
Os planos são concebidos e elaborados pelos Comitês com ampla representação de todos os segmentos que interagem com as águas, mas a finalidade destes é que sejam convertidos em uma linguagem comum a todas as instituições, públicas ou privadas, e às populações que integram uma determinada bacia hidrográfica. Os planos são, portanto, de todos. E suas metas e obrigações legais também. Pensando assim, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) vem trabalhando a concepção de um Pacto das Águas que venha a se constituir no grande suporte políticoinstitucional e no grande ambiente de diálogo capaz de mobilizar as forças e materializar os acordos que venham a garantir a base real sobre a qual poderá ser construída a consecução conjunta dos objetivos de seu Plano de Recursos Hídricos, que é de escala tão imponente e complexa quanto sua própria bacia hidrográfica. O Pacto das Águas assim concebido não é contra ninguém. É a favor da abertura de um longo caminho que vá trazendo a todos para que deem os passos que universalizem no território da bacia os instrumentos da gestão hídrica – do enquadramento das águas aos sistemas unificados de informação e monitoramento das águas – englobando as ações planejadas de revitalização de sub-bacias, sistemas sólidos de outorga, saneamento básico, gestão responsável de aquíferos e toda uma miríade de ações comuns e essenciais para garantir os usos das águas e a saúde dos rios como ecossistemas a serem preservados. O Pacto das Águas é, assim por dizer, a orquestra que vai dar vida à composição musical que, no caso, é o Plano de Recursos Hídricos. Por isso, como numa orquestra, exigirá muita afinação, muita conversa e muito trabalho. Tudo por uma causa não somente justa, mas também absolutamente vital.
Anivaldo Miranda Presidente do CBHSF
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Páginas Verdes
“O Brasil é o país que mais derruba florestas no mundo” Amazônia, Pantanal, Cerrado, Caatinga: segundo o deputado federal Rodrigo Agostinho, do PSB-SP, o desmatamento desenfreado traz prejuízos para o Brasil em três frentes. Primeiro, perde a biodiversidade da fauna e da flora, com espécies encontradas apenas no país. Em segundo, a própria agricultura dispõe, a cada ano, de menor volume de chuvas para o manejo das lavouras. E, por último, afasta investimentos internacionais e também fecha mercados para os produtos brasileiros, pela pressão de consumidores e investidores. O parlamentar, que é presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, avalia que o Rio São Francisco já tem
um número muito grande de usinas hidrelétricas e que continuar insistindo nesse modelo é um grande equívoco. Agostinho aponta que o governo federal subestimou os incêndios no Pantanal e que a demora em se tomar uma atitude trouxe uma perda irreversível da biodiversidade. No seu entendimento, as administrações estaduais e municipais têm uma grande parcela na responsabilidade pela revitalização da Bacia do Rio São Francisco, e que os municípios devem atuar com os Comitês de bacias, para que haja avanço nessa questão. Já o governo federal, diz o parlamentar, desmontou o único plano estratégico que o Brasil possuía para combater o desmatamento e sucateou a estrutura dos órgãos de fiscalização, como o Ibama.
Por Mariana Martins Foto: arquivo Rodrigo Agostinho e Shutterstock
Entre julho e novembro deste ano, o Brasil ardeu em chamas. Pantanal, Amazônia, regiões do Sudeste, como Minas Gerais, e no Nordeste, como o sertão baiano, sofreram com o fogo e perderam grande parte de sua biodiversidade. O que há por trás desse surto de incêndios no Brasil? Os incêndios vieram para ficar. Teremos que conviver com eles daqui para frente. O mundo esquentou. Desde o final dos anos 80, os cientistas apontavam que o mundo estava entrando em uma onda de aquecimento e a primeira grande mudança que teremos relativa ao aumento do calor é a redução das chuvas, a redução da umidade no ar, o aumento no período de estiagens e, com isso, secas e incêndios florestais. O Pantanal, que é uma planície inundável mais rica em biodiversidade do mundo, está há dois anos sem chuvas. Recentemente, o Semiárido na região do Nordeste sofreu uma seca sem tamanho. Se essa mesma seca tivesse acontecendo na região Centro-Oeste, teríamos um problema seríssimo, porque a nossa economia depende da produção agrícola. Isso não é algo totalmente improvável de acontecer. Pelo contrário, todos apontam que teremos essas secas frequentes em todo o Brasil. Com isso temos um ambiente muito propício ao fogo e práticas agrícolas extremamente rudimentares. Em grande parte do Pantanal permanece a prática de colocar fogo no pasto nativo, pois acreditam ser esta uma boa alternativa para a renovação do pasto. Só que este ano o ambiente estava como se fosse um barril de pólvora. O fogo saiu das fazendas, foi para dentro das unidades de conservação e nós estamos perdendo o bioma mais rico que sobrou no Brasil. 8
Teremos que nos preparar para combater esses incêndios. O Brasil tem uma estrutura muito precária. Não temos mais do que cinco aeronaves para combater fogo em um país que é do tamanho de um continente. O número de brigadistas treinados e capacitados é muito pequeno, faltam equipamentos dos mais simples, como os de proteção individual, não há sequer máscaras para se proteger durante o combate ao fogo. Como essa mudança no clima vai nos afetar? Nós mudamos profundamente a composição da nossa atmosfera. As secas vão acontecer o tempo todo, mas elas vão mudando de lugar. Em um ano é em uma região mais ao Norte, em outro é numa região mais ao Sul. A paisagem que a gente conhece vai mudar. Estudos do professor Carlos Nobre, do Thomas Lovejoy, apontam que muito provavelmente vamos ter um processo de savanização no restante do Brasil. Hoje, temos duas savanas - uma é a Caatinga, a nossa mata branca, a outra é o Cerrado. Mas os ambientes florestais, todos eles passarão por um processo de savanização, o que inclui a maior floresta tropical do mundo, a Amazônia, que já perdeu 20% de cobertura florestal além de 7% de sua área que está degradada, e a Mata Atlântica. O Rio São Francisco nasce no Cerrado, atravessa uma boa parte do Cerrado mineiro, depois, na região da Bahia chega à Caatinga e deságua na Mata Atlântica. O trecho final dele de Mata Atlântica, provavelmente vai ser totalmente alterado, pois já foi profundamente desmatado.
Deputado federal Rodrigo Agostinho
Isso está ligado ao desmatamento? A maior parte do problema no mundo não é por conta do desmatamento. É por conta da emissão de gases de efeito estufa, principalmente pela queima de carvão, de petróleo, de combustíveis. Mas no caso específico do Brasil, apenas 15% da energia vem de origem fóssil. O maior problema das emissões de gases de efeito estufa no Brasil tem origem no desmatamento. O Brasil é o país que mais derruba florestas no mundo. Estamos derrubando quase 1 milhão e meio de hectares de florestas por ano. Países que derrubam florestas e países que queimam combustíveis, todos juntos, estão esquentando o mundo e isso vai ser irreversível. O fato de sermos um país que derruba florestas interfere nas nossas relações internacionais? Perdemos investidores? Sim, é um impeditivo. Não existe negócio, não existem relações internacionais, não existe comércio exterior do Brasil com outros países enquanto o Brasil não fizer a lição de casa. Eu participei ativamente, no ano passado, das negociações do acordo do Mercosul, estive em delegações visitando países europeus e ouvimos de todos: “enquanto o Brasil continuar derrubando florestas não tem acordo nenhum”. Simplesmente não existe acordo. Alguns setores entraram no “modo desespero” e começaram a criar iniciativas próprias voluntárias. O caso mais recente, que chamou mais atenção, foi o caso da Marfrig, que é um dos maiores conglomerados de venda de carne do mundo. Eles resolveram fazer a rastreabilidade de todos os seus bois. Então, os frigoríficos do grupo não irão comprar
mais carne da Amazônia, carne fruto de desmatamento. O setor do comércio está percebendo isso e está atento. Agora, se o Brasil não fizer a lição de casa, não consegue atrair investimento. E agora, no pós-pandemia vamos precisar muito de atrair investimento externo. O Brasil é um país pobre, com muita desigualdade social, e para que a gente possa retomar o crescimento e a geração de emprego, precisamos do capital externo. E o que o Brasil precisa para fazer a lição de casa? De um conjunto de fatores. Para política pública não existe uma única solução mágica. Precisamos ter um plano sério de combate ao desmatamento. O plano que existia, ao invés de ser melhorado, foi deixado de lado - o PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal] e o PP Cerrado [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado]. Precisamos, dentro desses planos, atuar basicamente em duas frentes, mas com múltiplas ações. Uma frente é o comando e controle, a fiscalização, é não deixar as pessoas invadirem terras públicas, unidades de conservação, terras indígenas, é combater o desmatamento ilegal para plantio de soja ou criação de gado, a extração ilegal de madeira. O comando e controle é importantíssimo, mas ele tem que estar acompanhado de ações econômicas. O Brasil precisa investir de maneira muito pesada no turismo sustentável, que é algo que gera dinheiro e mantém a floresta em pé, precisa investir em economia da floresta, extração de recursos para a indústria de cosméticos e para a indústria farmacêutica. Há um mercado enorme de fibras naturais, 9
de castanhas, de borracha, de cacau plantado dentro da floresta, de café plantado dentro da floresta. O Brasil vai ter que vir com estratégias econômicas, com concessões florestais e aproveitar o mercado de carbono que se forma hoje no mundo. O mundo inteiro está disposto a investir na recuperação florestal e o Brasil pode ser um grande caminho para isso. Agora, as duas coisas têm que caminhar juntas. Temos que controlar o desmatamento e vir com uma alternativa, e essa alternativa hoje é o que falta. Deputado, como o Brasil poderá controlar o desmatamento sem fiscalização, com o desmonte de órgãos como o Ibama e o ICMBio? O mundo inteiro está pressionando o Brasil para reverter isso. Infelizmente, o atual governo não tem um olhar para isso. Um governo que foi eleito com a promessa de acabar com a indústria da multa, mas acontece que só tem uma indústria da multa porque tem uma indústria do desmatamento, uma indústria da criminalidade no ambiente florestal. Eu acredito muito que a pressão internacional ou a opinião pública consigam reverter isso. Mesmo quem votou no atual presidente não aceita que toda essa floresta esteja sendo derrubada. Acredito na possibilidade de a gente reverter isso com ações estratégicas de combate ao desmatamento e que incluem, sem sombra de dúvidas, o Sistema Nacional do Meio Ambiente, isso inclui Ibama, ICMBio, órgãos estaduais e municipais. E a boiada, está passando? As manobras para facilitar os licenciamentos ambientais, revogando decretos importantes para a preservação do meio ambiente. O que o senhor acha disso? Temos como exemplo a possível instalação da UHE Formoso, no Rio São Francisco, na região de Pirapora (MG). Temos hoje uma lei de licenciamento ambiental no Brasil, cujo marco regulatório é a Lei 6938, de 31 de agosto de 1981. Ela estabelece as regras do licenciamento ambiental e os estados aprimoraram essas regras. Recentemente tivemos uma lei complementar que regulou a questão das competências. O licenciamento ambiental precisa ser feito de forma transparente, por uma equipe multidisciplinar, ouvindo a sociedade civil e a área afetada pelo empreendimento. O que a gente percebe é que os órgãos ambientais não têm estrutura para fazer um licenciamento da forma mais adequada. Muitas vezes ele é feito com pressa, porque não se pode perder a janela de oportunidade de um financiamento, de uma liberação de um recurso. O Rio São Francisco já tem um número muito grande de hidrelétricas. Uma boa parte da vida que existia no rio já se foi com essas usinas. Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso, Xingó, são grandes hidrelétricas que acabaram mudando profundamente aquilo que a gente conhece do Rio São Francisco. Continuar insistindo nesse modelo é um grande equívoco. Os órgãos ambientais têm que ter coragem de dizer não. O Rio São Francisco já deu o seu quinhão para a energia elétrica do país. Não dá para a gente continuar destruindo os últimos trechos do Rio São Francisco para construção de reservatórios. Eu sonho com o dia em que a gente vai ter uma energia eólica, uma energia solar forte o bastante para podermos começar a desmontar essas hidrelétricas nos nossos grandes rios. Acho que isso não está tão distante. Já temos 8 a 9% do nosso país funcionando com a energia eólica, a energia solar está crescendo em um ritmo alucinante, já temos mais de 3 mil MW de energia solar instalada. Mas os órgãos continuam insistindo em fazer as coisas do jeito errado e a forma que a gente tem para coibir isso é usar o próprio sistema político, buscando o apoio do judiciário, do Ministério Público, da sociedade civil, para fazer as representações necessárias, entrar com ação popular, entrar com ação civil pública para que a gente possa
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defender aqui. Não podemos permitir que esses empreendimentos aconteçam com impactos ambientais altíssimos como a gente vem assistindo nos últimos anos. Está em projeto também a instalação de uma Usina Nuclear em Itacuruba, no estado de Pernambuco, qual a sua opnião sobre o assunto? Se os investimentos nucleares brasileiros continuarem sendo feitos pelo setor público, esse é um projeto com muito pouca viabilidade de se instalar, porque o Brasil está com uma dívida pública altíssima. A pandemia do coronavírus promoveu uma restrição num limite altíssimo do ponto de vista orçamentário, então, dificilmente o governo vai caminhar com uma proposta como essa. O governo ainda está tentando entender se vai ou não concluir a Usina Nuclear de Angra 3 (no Rio de Janeiro). Eu, particularmente, acho uma grande roubada, o Brasil que é um país que tem a maior área propícia para energia solar, eólica, 70% da nossa energia é hídrica, investir em uma bobagem como essa que é a energia nuclear. Eu acho que é um grande equívoco e eu acho que esse projeto não para de pé, pois não tem viabilidade ambiental. É uma área extremamente sensível, com população sensível, é um projeto que está sendo conduzido ainda na sua parte de concepção, sem qualquer debate com a sociedade. Não acredito nessa possibilidade, acho que o futuro do mundo é nas energias limpas e renováveis. Deputado, sabemos que é uma questão da ordem do executivo, mas gostaria de saber a sua opinião sobre porque demoraram tanto a decretar estado de emergência no Pantanal, que está ardendo em chamas desde julho? De maneira muito clara, o atual governo desmontou as estruturas que a gente tinha, demorou muito para contratar os brigadistas, achou que esse era um problema isolado, que um ou outro incêndio acontece todos os anos nas diferentes regiões do país na época mais seca. A nossa meteorologia sempre funcionou como se fosse um reloginho: apesar de alguns episódios um pouco mais extremos de seca ou de chuva, sempre as nossas estações têm data certa para começar e para terminar. E o governo, de certa forma, subestimou isso. Já perdemos metade do Pantanal, e perdemos o Pantanal mais rico que a gente tinha. Essa perda é para sempre. A hora que o governo quis se organizar já não dava mais tempo. Não adianta você pegar um soldado, jogar no meio do incêndio e falar “se vire e apague o fogo”. Você tem toda uma logística, um treinamento, senão você vai condenar essas pessoas a morrerem queimadas do mesmo jeito que as antas, as onças, as jaguatiricas, as cutias, as pacas, todos morrendo queimados. Os animais que sobraram estão morrendo agora de sede e de fome. Então, é uma crise muito pesada. É uma ação de crime de responsabilidade, de crime de improbidade administrativa dos dirigentes desses órgãos que deveriam ter tomado as providências e não tomaram. Essa é a análise que a gente faz. O parlamento está atento, observando tudo o que está acontecendo, mas não é o parlamento que vai lá na ponta apagar o fogo. Eu até entendo que a gente pode aprimorar a legislação. Há projetos importantes que poderiam estar sendo votados e que poderiam estar ajudando a ter um planejamento um pouco melhor. Existe um Projeto de Lei (PL 11 276/2018), que trata sobre o manejo de fogo no Brasil, e que está pronto para ser votado. Tem um outro projeto da deputada Bia Cavassa (PSDB – MS), o PL 1974/2020, que aumenta as penas para os crimes de incêndio em matas e florestas. Hoje, as penas para os crimes ambientais no Brasil são um grande absurdo. Acredito muito na possibilidade do parlamento fazer algumas ações, mas o governo brasileiro é que tem a caneta na mão, que tem as ferramentas necessárias tanto
para organizar melhor o combate ao incêndio, quanto para prevenir situações como essa. O Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco, fruto de parceria entre o governo e diversos outros órgãos, tem tido ações adiadas, proteladas e freadas em sucessivas mudanças de comandos e regras. Por quê? Há um conjunto de fatores. Há uma omissão enorme dos prefeitos e dos governadores dos estados por onde rio passa. Esse é um caso que não é de responsabilidade exclusiva do governo federal. Os governos estaduais sequer elaboraram os projetos executivos das obras necessárias para poderem pleitear recursos. Os governos municipais também não fizeram seus projetos. Não existe uma estratégia clara do que precisa ser feito. O governo federal fechou as torneiras para esse programa. Por exemplo, o fundo de multas do Ibama já tinha selecionado inúmeros projetos para investir dentro da Bacia do Rio São Francisco, notadamente com a restauração ambiental e com saneamento, e isso não aconteceu. O governo acabou com o fundo de multas e com uma série de outros fundos. Além disso, os estados do Nordeste têm governadores omissos, muitos prefeitos ao longo do Rio São Francisco também são omissos em relação ao rio. Não cuidam do Velho Chico. No máximo acham bonito, montam uma prainha, uma área de lazer na beira do rio, e as coisas ficam nisso. Os municípios podem sim atuar com os Comitês de bacias, para podermos avançar. Precisamos ter um planejamento adequado. Os Planos Diretores dessas cidades têm que ter como norte o aproveitamento racional dos recursos naturais, principalmente do Rio São Francisco. Precisamos que os projetos fiquem prontos para que o recurso possa chegar, precisamos que o governo federal crie as linhas de crédito a fundo perdido, a título de financiamento para que todos esses investimentos aconteçam. Se você não tem os projetos e não tem o dinheiro, aí fica muito difícil. É uma complexidade enorme, um número muito grande de cidades pequenas sem saneamento básico, jogando esgoto dentro do rio, práticas agrícolas sem conservação do solo, então toda vez que chove a terra vai para dentro do rio, hidrelétricas manejadas de forma totalmente equivocada, uma continuidade do desmatamento do Cerrado, da Caatinga, da Mata Atlântica. A gente continua perdendo cobertura florestal em um rio que já não tem mais água. Não dá para aceitar isso. Precisamos recuperar a cobertura florestal ao longo do Rio São Francisco e precisamos compatibilizar os usos. Áreas estratégicas precisam estar recuperadas para que possam ter água para que a gente tenha produção agrícola e para que as pessoas possam se beneficiar desse rio. Não adianta nada continuar fazendo um monte de canais se você não tem água para jogar para dentro desses canais para irrigar o Semiárido.
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Ciência
O Aquífero Urucuia é o maior do Brasil, abrangendo os estados da Bahia, de Minas Gerais, do Tocantins, Goiás, Maranhão e Piauí, e exerce influência na vazão das Bacias dos Rios São Francisco e Tocantins
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Sobre o invisível Publicado pelo Journal of South American Earth Sciences, uma das mais respeitadas publicações científicas do continente americano, estudo alerta para os riscos que assombram o aquífero do Urucuia, a caixa d’água que alimenta o Velho Chico Por Andréia Vitório Ilustrações: Angelo Abu O que é um aquífero? Talvez a melhor maneira de explicar seja recorrendo às metáforas: água invisível, caixa d’água do planeta, reservatório de vida. Os aquíferos livres são também chamados de freáticos, correndo mais próximos à superfície da terra. Já os aquíferos confinados, estes estão lá no fundo, bem guardados. O sistema é perfeito: recebem água pelas áreas de recarga, oriundas de formações geológicas, e despejam de volta na natureza, a conta gotas, conforme os ciclos de chuva, pela áreas de descarga, que vão formando nascentes, córregos e rios. Cerca de 30% de toda a água doce disponível no mundo são águas subterrâneas e somente 1% são águas superficiais. Dentre os 27 aquíferos brasileiros, está o Aquífero do Urucuia, localizado a oeste da Bahia, estendendo-se para os estados vizinhos, na margem esquerda do Rio São Francisco. Com área de aproximadamente 80 mil quilômetros quadrados, dele depende em grande medida a sobrevivência do Velho Chico. Um recente estudo, publicado pelo Journal of South American Earth Sciences, uma das mais respeitadas publicações científicas do continente americano, deu o alerta: o Urucuia corre perigo. Uma das principais causas é a superexplotação – ou bombeamento indiscriminado das águas do aquífero. Intitulado “Análise das flutuações da água subterrânea e do estágio do rio e sua relação com o uso da água e os efeitos da variação climática na bacia do Alto Grande, no Nordeste do Brasil”, o documento constatou o rebaixamento progressivo do nível de água em algumas porções da Bacia do Alto Rio Grande, afluente do São Francisco, entre 2011 e 2018, especialmente próximo à fronteira entre Bahia, Goiás e Tocantins. A queda ocorre, provavelmente, em virtude de uma combinação nada amigável: redução de chuvas em anos recentes e aumento de bombeamento em poços. Ainda não é possível, no entanto, definir com que intensidade cada um desses fatores está afetando o Urucuia. Conforme explicou Eduardo Marques, professor da Universidade Federal de Viçosa e um dos autores da pesquisa: “As ameaças ao equilíbrio do sistema são inequivocamente de origem humana. Dentre as principais causas do desequilíbrio estão a sobre-explotação, devido à expansão agrícola, e também a redução nos índices de chuva dos últimos anos, em especial de 2014 a 2016, que pode ter condicionantes antrópicos, devido às mudanças climáticas, mas pode ser parte de um ciclo natural plurianual”. 13
É possível contornar essas ameaças? Eduardo Marques acredita que sim, desde que sejam orquestradas uma série de ações: estudos contínuos com a ampliação da rede de monitoramento piezométrico do aquífero (nível d'água) com a Rede RIMAS; redução no número de outorgas em áreas já sobre-explotadas; maior e melhor controle do uso da água com a obrigatoriedade de implantação de hidrômetros e horímetros nos poços; controle da vazão utilizada nos plantios com uso de imagens de satélite e controle dos volumes plantados nas safras e até do tipo de plantio. “Isoladamente, a redução na precipitação não consegue explicar totalmente o rebaixamento do nível de água subterrânea, indicando que a agricultura irrigada pode estar relacionada à condição avaliada”, reforçou a engenheira ambiental, uma das pesquisadoras que também assinam o estudo, Tarcila Neves Generoso. Segundo Eduardo Marques, o oeste da Bahia, onde se encontra 75% do Aquífero do Urucuia, abriga uma das maiores fronteiras agrícolas do país, ainda em constante expansão: “Além dos poços com outorga, que são os que captam a maior vazão, há muitos outros sem outorga e que captam uma vazão pequena e que, somados, podem dar um volume razoável e sobre o qual não há nenhuma informação”.
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A escassez Sobre o vai e vem das chuvas, os números: uma análise realizada entre os períodos de 1980 a 1992 e 1993 a 2015 mostrou uma redução na precipitação média de até 200 mm por ano, mais a oeste do Aquífero, segundo Tarcila Generoso. Entre os períodos de 1977 a 2010 e 2011 a 2017 os decréscimos médios nas vazões médias e mínimas do SAU foram, em média, para as cinco estações fluviométricas analisadas, de 34 a 40%, respectivamente. Esse declínio foi identificado para os períodos entre 2011 a 2018, algumas vezes superior a cinco metros. Na porção mais a leste, a redução foi mais discreta: de 0,5 a 1 metro com aumentos na mesma amplitude, para o mesmo período. Embora a falta de chuva seja um grande problema, certamente, a superexplotação do Urucuia não fica atrás. De acordo com Roger Dias Gonçalves, pesquisador da UNESP Rio Claro, não se sabe nem o número exato de poços para a retirada de água para irrigação que existem na região: “Além de desatualizados, são muito imprecisos. Há um consenso de que os números oficiais estão muito abaixo do que é realmente extraído. Geralmente, os pesquisadores estimam haver 10 vezes mais poços operando”. Para o professor Gerson Cardoso da Silva
Júnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também um dos autores do artigo, o caminho seria “melhorar o nível de informações, ampliando significativamente a rede de monitoramento e o controle das outorgas de água subterrânea, permitindo a atualização constante do modelo hidrogeológico.” O coordenador da Câmara Técnica de Águas Subterrâneas (CTAS), do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), José Almir Cirilo, destacou: “Se a gestão das águas superficiais é desafiadora, quando se pensa nas águas subterrâneas o desafio se multiplica em virtude da falta de dados”. Ao que parece, os impactos chegam por todos os lados. Conforme Roger Dias Gonçalves, da UNESP Rio Claro, outro fator tem contribuído para uma queda acentuada do fluxo de base nos rios que drenam o Aquífero e levam água para o Rio São Francisco: “Estudos atuais utilizando alta tecnologia e satélites da NASA (missão GRACE) têm mostrado o forte impacto sobre o armazenamento de águas subterrâneas na região relacionado ao aumento da evapotranspiração na área”.
Tesouro Nacional Segundo dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), existem 27 aquíferos no Brasil. Eles ocupam 48% da área territorial, sendo responsáveis por cerca de 30% do consumo de água em todo o país, chegando a 70% em algumas regiões. O Brasil possui dois dos maiores aquíferos do mundo: o Guarani, localizado sob as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, e o Alter do Chão, na Região Norte. O primeiro está sob forte demanda, numa região de intensa atividade agrícola, econômica e com grande população, em especial, no estado de São Paulo. Já o Grande Aquífero Amazônico, cuja porção livre é denominada como Aquífero Alter do Chão, está mais preservado, por estar em uma região de baixa densidade populacional, com poucas atividades agrícolas e industriais que demandam água. O Sistema Aquífero Urucuia é um dos mais relevantes sistemas de abastecimentos subterrâneos do Brasil, localizado nos estados de Goiás, Tocantins, Piauí, Maranhão, Minas Gerais e, em sua maior parte, na região Oeste do estado da Bahia, ocupando uma área estimada de 120.000 km2.
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Degradação Ambiental
Saara mineiro
Estradas mal conservadas e construídas sem planejamento causam erosão e assoream os cursos d’água 16
Entre o norte e noroeste de Minas, à margem esquerda do Rio São Francisco, região eternizada por Guimarães Rosa no clássico “Grande Sertão: Veredas”, estende-se uma vasta degradação ambiental por quase 100 mil quilômetros quadrados de território que tem secado cursos d’águas que abastecem o Velho Chico Por Luiza Baggio Fotos: Léo Boi O progresso e a promessa de uma vida melhor chegam em caminhões, carros e motos. Andar a pé ou a cavalo, como faziam o jagunço Riobaldo Tatarana e seus companheiros em Grande Sertão: Veredas, é um costume que foi ficando no passado. A nova vida pede passagem e estradas riscam o sertão, encurtam distâncias e facilitam o comércio. Mas, construídas sem os devidos cuidados, degradam o meio ambiente no trajeto rosiano no norte e noroeste de Minas e impõem danos aos cursos d’água, aprofundados pelo carvoejamento e plantios de eucalipto, atividades ocorridas entre as décadas de 70 a 90. Estradas mal conservadas e construídas sem planejamento são fontes de processos de erosão do solo, que frequentemente criam enormes voçorocas – grandes crateras abertas nas encostas. Na pecuária extensiva, o manejo ruim das pastagens, com rebanhos acima da capacidade de suporte, aumenta a compactação superficial do solo e a erosão. Na agricultura de subsistência, o mau manejo do solo agrava os processos erosivos. Tudo isso leva ao assoreamento das nascentes dos córregos e rios, que se transformam em leitos de areia seca, enterrando os poços, o que provoca a escassez de água para o consumo humano e e a dessedentação animal e acabando com os peixes e toda a fauna aquática. “São 150 mil km lineares de estradas vicinais degradadas, acrescidos de mais uns três milhões de hectares de pastagens em áreas de pecuária extensiva e mais um milhão de hectares de cerrado degradado”, comentou Júlio Ayala, engenheiro agrônomo e membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Urucuia. “O cenário é dramático, visto que envolve o amplo território do norte e noroeste de Minas. Nessa área de 95,3 mil km² na margem esquerda do Rio São Francisco, localizam-se 38 municípios. Esse território é responsável por produzir 33% da vazão média, de 2.850 m3/s, que chega na usina hidrelétrica de Sobradinho, que além de regularizar a vazão do Rio São Francisco, é responsável pelo abastecimento das cidades próximas e a geração de 10% da energia do Nordeste brasileiro”. Segundo Ayala, o problema da degradação do solo teve início há longos séculos, desde a época dos bandeirantes: “Com uma pecuária extrativista e não conservacionista a degradação ambiental teve início nessa época e continua até hoje, agravada pela descapitalização do criador de gado, com a redução de sua margem de lucro e os poucos recursos para investir em correção, uso, manejo e conservação de solo. Além disso, com o deslocamento dos bandeirantes à procura de ouro, sal, couro, charque, e o próprio gado, foram abertas inúmeras trilhas, caminhos que foram agravando a erosão. O deslocamento do sertanejo à procura de aventuras sociais e econômicas, com abertura de caminhos, feitos com enxadão e picareta, também são canais de escoamento de águas fluviais, provocando profundas fendas em forma de ravinas e voçorocas comumente observadas nessa região”.
Destruição atinge os cursos d’água Deixar o solo descoberto, principalmente quando não se manuseia com os devidos cuidados, favorece o processo de erosão, que é intensificado por chuva ou vento. Com o desgaste, os resíduos são levados para as fontes de água e vão sedimentando, o que faz diminuir a capacidade e a vazão dos rios. Segundo um estudo elaborado por engenheiros do exército estadunidense e técnicos da Codevasf, divulgado na sexta edição da CHICO, o leito do Velho Chico vem sendo castigado com 23 milhões de toneladas por ano de sedimentos, boa parte transportada ao leito principal por afluentes, grande parte oriundos desse território de sua margem esquerda. Nas proximidades da nascente do Rio Pandeiros, no Norte de Minas, é possível encontrar o resultado do assoreamento. “O rio está sendo tomado pela areia. No meio da vasta vegetação de Cerrado e Caatinga, com árvores secas e terra árida, fica o pântano mineiro, que é formado pelas águas do rio onde se reproduzem várias espécies de peixes. Segundo os moradores, há uma década era impossível atravessar o leito. Os afluentes do rio, como o Córrego da Raposa, também estão sentindo os efeitos da erosão. Os bancos de areia estão em toda a extensão do rio. A área inundada era e cinco mil hectares. Hoje, ela não passa de mil hectares. O restante virou areia, assoreamento”, diz o biólogo, doutor em Geografia e pesquisador da região pela Universidade de Montes Claros (Unimontes), Walter Viana. O problema é que, sem a vegetação nativa, a água da chuva não será absorvida pelo solo e não chegará aos aquíferos que abastecem quase todas as bacias hidrográficas do país. “E quando chega um período de estiagem mais ou menos prolongado, os cursos d’água, que já não são alimentados de maneira satisfatória por precipitações, diminuem ainda mais o volume, provocando crise hídrica como a que assola o Brasil”, explica o biólogo. Superficialmente, durante a época da chuva, em função do escoamento, a configuração se aproxima à que existia na década de 1950. “Quando vem a estação da seca, essa água superficial da chuva não existe mais. Os rios têm que viver das suas nascentes, que são alimentadas pelos aquíferos. Mas, como eles estão diminuindo pela diminuição na recarga hídrica, muitos rios desaparecem na época seca, passam de perenes a temporários”, esclarece Walter Viana. O Urucuia é o principal aquífero subterrâneo com capacidade de retenção de água e disponibilização para o abastecimento de rios e poços na região da bacia encontrada no Norte de Minas com uma área em torno de 16.800 km². Como o Aquífero Urucuia tem como fonte de recarga as águas das chuvas e parte dele se encontra em áreas com acelerados processos de degradação, a infiltração da água fica prejudicada, também colocando em risco o Velho Chico.
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Bom exemplo O agrônomo Júlio Ayala conta que um produtor da região de Unaí, Noroeste de Minas, é engajado na preservação ambiental. “Ele nos procurou para contar que uma nascente da sua propriedade tinha secado, pois estava totalmente aterrada, provocada por décadas de assoreamentos vindos da erosão do solo. Partimos para a sua recuperação e hoje a nascente produz 27,5 litros por segundo em pleno período seco”. O produtor Losuir Zuffo, da Coopertinga em Formoso, Noroeste de Minas, acredita na produção sustentável. Ele iniciou a sua atividade agrícola no ano de 1991 e, atualmente, produz o dobro de alimentos na mesma área em comparação ao início da produção. “Quando cheguei à região e começamos a abrir as áreas para plantar nos deparamos com regiões bastante degradadas, com voçorocas imensas. Com as práticas adequadas de uso, manejo e conservação do solo e da água, conseguimos conter as erosões e aumentar a infiltração da água da chuva no solo, e assim tornar a terra mais produtiva e sustentável. Hoje produzimos muito mais em cima do mesmo solo e temos também fartura de água, visto que recarregamos em abundância as reservas subterrâneas e preservamos as nossas nascentes, em forma de veredas. Na minha propriedade rural em Formoso, em 29 anos de atividade agrícola, a produção de água praticamente dobrou, pois naquela época eu abastecia o caminhão pipa d’água da fazenda com 27 minutos, hoje, em agosto de 2020, abasteço o mesmo em 15 minutos, prova de que a água da nascente aqui aumentou com o manejo adequado do solo e a preservação da vereda”.
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O que fazer diante desse cenário? A degradação do solo em pastagens pode ser amenizada mediante a realização de um conjunto de medidas, desde que bem planejadas e voltadas para o manejo adequado. O agrônomo Júlio Ayala explica que é necessário um Programa Regional de Manejo de Bacias Hidrográficas contemplando todo o território degradado. “Devemos fomentar a educação ambiental e extensão rural voltadas para a adoção de boas práticas, na readequação e manutenção de estradas, conservação dos solos na agricultura e pecuária, e desassoreamento de nascentes e veredas. Para as monoculturas deveria ser definido por meio do Zoneamento Ambiental e Produtivo (ZAP), metodologia oficial do governo de Minas Gerais, uma proposta de gestão integrada em bacias hidrográficas, assim como mecanismos de compensação por serviços ambientais para produtores que conservam áreas de cerrado nativo, entorno de veredas e contenham nas suas propriedades projetos de manejo de solo que produzam água em quantidade e qualidade”. Trata-se de um tema extremamente sério, com gravíssimas implicações sociais, econômicas e ambientais para o futuro da região. "É possível encontrar soluções com base em processos participativos de planejamento e gestão moderna, como aquelas propriedades agrícolas localizadas nas chapadas, na parte alta deste território Norte e Noroeste, onde os produtores rurais convivem com produção sustentável de alimentos essenciais como soja, milho, feijão, trigo, sorgo, café, citros e sementes de capim, e conservação dos recursos naturais com produção de água em quantidade e qualidade. Precisamos transformar essas soluções em programas e projetos de grande escala, visto que os desafios são enormes. Entretanto, o tempo urge e o sucesso dessas soluções requer uma ação rápida”, esclarece Júlio Ayala.
O produtor Losuir Zuffo acredita na produção sustentável com o manejo adequado do solo para aumentar a produção de água
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Marco Legal
Saneamento básico
O saneamento básico promove hábitos higiênicos e controla a poluição ambiental, melhorando assim, a qualidade de vida da população
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Em 1974, o economista Edmar Lisboa Bacha disse que o Brasil era uma Bélgica cercada de Índia, a Belíndia. Quatro décadas depois, esse país contraditório e desigual segue real: 47% dos brasileiros ainda não têm acesso à coleta de esgoto. E 78% da rede existente atende à população do Sudeste, enquanto, na região Norte, apenas 10,2% dos habitantes contam com o serviço. Nesta reportagem, entenda o que é, afinal, o Marco Legal do Saneamento Básico, nova lei aprovada pelo Congresso Nacional, que, na prática, pode resultar na privatização da água Por Hylda Cavalcanti Fotos: Shutterstock, Bianca Aun e Azael Góis Infográfico: Clermont Cintra A definição legal de saneamento básico abrange o conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas fluviais urbanas. É tudo isso que está em vias de mudar no Brasil com o Marco Legal de Saneamento Básico, em meio a discussões acaloradas de ambientalistas, técnicos e políticos que fogem um pouco do foco do déficit existente no setor para uma questão não menos importante: é possível privatizar um recurso natural como a água? Aprovada pelo Congresso Nacional em julho e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro dias depois, a Lei nº 14.026/2020, que institui o marco legal, nem chegou a ser aplicada, porque depende de 12 vetos feitos pelo Executivo ao Congresso que ainda precisam ser apreciados. Mas é alvo de alertas sobre a importância de critérios a serem observados, a superação de uma deficiência real de regras e serviços nos municípios brasileiros e metas de investimentos a serem feitos pelo mercado. A nova lei, da forma como foi aprovada pelo Congresso, proporcionará alterações significativas na esfera de formulação de políticas públicas de saneamento básico e no arcabouço que sustentará a definição de projetos, planejamento e ações direcionadas à universalização do setor. Estimativas do governo são de que as novidades vão gerar até R$ 700 bilhões em investimentos nos próximos 14 anos. Analistas de organizações da sociedade civil e do próprio governo, no entanto, têm dúvidas de que tal meta seja cumprida com facilidade. Um dos pontos mais importantes da legislação é o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (CISB), órgão colegiado que ficará responsável por assegurar a implementação da política federal. O comitê, ainda em formulação, também tem a competência de coordenar, em âmbito federal, o Plano Nacional de Saneamento Básico, elaborar estudos técnicos e monitorar as normas de referência a serem editadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
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O que diz a lei Na prática, a legislação prorroga o prazo para o fim dos lixões, facilita a privatização de estatais da área e extingue o modelo atual de contrato entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto. Pelas regras anteriores, as companhias precisavam obedecer a critérios de prestação e tarifação, mas podiam atuar sem concorrência. O novo marco transforma os contratos atuais em concessões com a empresa privada que vier a assumir a estatal. O texto também torna obrigatória a abertura de licitação, envolvendo empresas públicas e privadas. Além disso, os contratos deverão se comprometer com metas de universalização a serem cumpridas até o fim de 2033: cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto. Outros critérios exigidos são a não interrupção dos serviços, redução de perdas e melhoria nos processos de tratamento. O cumprimento das metas será verificado periodicamente e as empresas que estiverem fora do padrão poderão sofrer sanções da ANA. O atendimento aos pequenos municípios do interior, com poucos recursos e sem cobertura de saneamento é outro ponto que será modificado. O modelo anterior funcionava por meio de subsídio cruzado, ou seja, as grandes cidades atendidas por uma mesma empresa ajudavam a financiar a expansão do serviço nos municípios menores e mais afastados e nas periferias. A partir de agora, para esse atendimento, os governos estaduais precisam compor grupos ou blocos de municípios que contratarão os serviços de forma coletiva. No tocante aos subsídios, famílias de baixa renda poderão receber auxílios, como descontos na tarifa, para cobrir os custos do fornecimento dos serviços, e também poderão ter gratuidade na conexão à rede de esgoto. Já em relação aos lixões a céu aberto, o projeto estende os prazos da Política Nacional de Resíduos Sólidos para que as cidades encerrem esses espaços. O prazo agora vai do ano de 2021 (era até 2018), para capitais e suas regiões metropolitanas, e até o ano de 2024 (era até 2021) para municípios com menos de 50 mil habitantes. A regulação do saneamento básico vai ficar a cargo da ANA, mas a legislação não elimina as agências reguladoras de água locais. Conforme o texto, os municípios e os blocos de municípios ficam obrigados a implantar planos de saneamento básico e a União poderá oferecer apoio técnico e ajuda financeira para a tarefa. O apoio, no entanto, estará condicionado a uma série de regras, entre as quais, a adesão ao sistema de prestação regionalizada e à concessão ou licitação da prestação dos serviços, com a substituição dos contratos vigentes. Outra novidade é que passa a ser ilimitada a participação da União em fundos de apoio à estruturação de parcerias públicoprivadas (PPPs), para facilitar a modalidade para os estados e municípios. Antes, o limite de participação do dinheiro federal nesses fundos era de R$ 180 milhões.
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Atualmente 35 milhões de pessoas não têm acesso a abastecimento de água tratada e 100 milhões de cidadãos não têm acesso à coleta de esgoto
Calamidade Segundo o instituto Trata Brasil, organização sem fins lucrativos que acompanha os avanços de saneamento básico e a proteção dos recursos hídricos no país, hoje, 35 milhões de pessoas não têm acesso a abastecimento de água tratada. Além disso, 47% dos brasileiros – ou 100 milhões de cidadãos – não têm acesso à coleta de esgoto. E apenas 46% dos dejetos produzidos no Brasil são tratados. De acordo com a entidade, grande parte do déficit no setor de saneamento se deve à fragmentação de recursos federais, irregularidades contratuais e indefinições regulatórias. Essas barreiras, com frequência, dificultavam a participação privada no setor e a qualidade nos investimentos. Os poucos avanços realizados foram facilitados por programas específicos como o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que incentivou a criação e o fortalecimento das concessionárias municipais, e pelos investimentos de bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Atualmente, os investimentos anuais na área não passam da metade do que o país demanda. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico, o SNIS, citam a região Sudeste com o melhor índice de coleta de esgoto no país, onde 78,6% da população é atendida. Por outro lado, o Norte é a região com maior déficit. Lá, apenas 17,4% dos esgotos são tratados e 10,2% dos habitantes possuem coleta de esgoto “O saneamento não poderia mais continuar no modelo que vigorava. A carência que nós temos hoje mostra que esse modelo de concentração pública não funciona mais”, avalia o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos. Em sua opinião, se o país continuar avançando nesse ritmo lento em relação ao setor, serão necessários 45 anos para resolver o problema do esgoto no país. Estudos do instituto mostram que os investimentos para universalizar esse serviço não vão acontecer do dia para a noite. Também corrobora essa opinião o especialista em saneamento básico Roberto Tavares, ex-presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento, a Aesbe. “Para poder retirar o déficit existente no setor, precisamos mais que triplicar o volume de investimentos. Com as amarras que existem na legislação ambiental, de uso de solo, de desapropriação, acho que nós só chegaremos à universalização em meados de 2040”, afirma ele.
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Contra e a favor Para parlamentares que se posicionaram contrários ao projeto no Congresso, o Estado não deveria repassar a missão de levar água e esgoto tratados para a iniciativa privada. Eles destacam o fato de a água ser um bem universal e são da opinião que a privatização aumentará a tarifa para áreas mais pobres com o fim do subsídio cruzado. No mesmo tom, a deputada Erika Kokay (PT-DF), que tem forte atuação na frente de combate à privatização de empresas estatais, afirmou que o investimento em saneamento básico deve ser feito pelo governo. “Nós precisamos, segundo dizem, de R$ 50 bilhões de investimentos por ano para universalizar o saneamento e a água tratada. E o governo direciona mais de R$ 1 trilhão para os bancos, um crédito que não chega às pequenas empresas”, compara. Para a deputada Alice Portugal (PC do B-BA), onde houve privatização do setor de água e saneamento, a situação de acesso a esses direitos piorou, como pode ser observado no estado do Amazonas e em alguns municípios do Sudeste. Ela cita exemplos de países como a França e o Canadá, que retraíram o processo de privatização do saneamento básico por considerarem se tratar de um setor estratégico. As expectativas do governo, por outro lado, são de que, com o marco legal, 90% dos brasileiros terão acesso a esgoto e 99% a água tratada nos próximos anos. Além disso, o Executivo espera que a mudança atraia investimentos privados, considerados fundamentais para a retomada da economia pós-pandemia. O Ministério da Economia avalia que os investimentos previstos podem gerar, em média, 700 mil empregos no país nos próximos 14 anos. Mas técnicos da pasta admitem que novas discussões e a necessidade de ajustes podem surgir na medida em que o marco for implantado. “A obrigatoriedade da contratação por concessão impede as alternativas que vinham sendo utilizadas até então, como contratos diretos e convênios (sem processo de concorrência). O que confere ao setor a estabilidade legal necessária à atração de investimentos. A necessidade de verificação sobre a capacidade econômico-financeira do novo concessionário também auxilia na garantia das metas de universalização do saneamento”, afirma, em defesa do marco legal, o economista Filipe Brand, com experiência na iniciativa privada e em administração pública. Pesquisa realizada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indica que o Marco Regulatório do Saneamento Básico no Brasil deverá aprimorar o modelo de gestão dos consórcios intermunicipais. Entretanto, de acordo com esse trabalho, é preciso levar em conta a situação fiscal delicada nos municípios, com endividamento e limitações em investimentos. “Não há regularidade nos aportes municipais para as melhorias traçadas no Plano Nacional de Saneamento Básico. Enquanto essas lacunas orçamentárias não forem preenchidas, haverá entraves para o progresso no setor”, afirmou o pesquisador do Ipea e doutor em desenvolvimento sustentável Gesmar dos Santos. O estudo do IPEA ressalta a importância de seguir com os recentes avanços nas instituições de regulação estaduais e municipais e considera relevante garantir um preço acessível na tarifa dos serviços de água e esgoto para a população. De um modo geral, especialistas têm destacado que veem o marco como a melhor forma de se alcançar a primazia do serviço e conseguir chegar às metas propostas pela legislação com o uso de parcerias público-privadas.
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Os vetos Entre os vetos mais polêmicos feitos pelo Executivo ao texto está o que tira a previsão de que o poder público pode assumir os serviços de saneamento de empresas públicas ou sociedades de economia mista que passem por alienação acionária. Conforme aprovado pelo Congresso, o poder público poderia assumir a atividade mediante indenização. Outro veto retira o ponto que permitia a prorrogação dos chamados contratos de programa, celebrados sem concorrência e fechados diretamente entre os titulares dos serviços e as concessionárias. Essa modalidade é usada atualmente na prestação de serviços pelas companhias estaduais de saneamento. Da mesma forma, foi vetado o trecho que permitia que estatais que prestam os serviços hoje renovassem contratos por mais 30 anos sem licitação. E o trecho que, na visão do governo, impediria que o setor de resíduos sólidos se beneficiasse das licitações do que foi definido no marco para o esgotamento sanitário ou para água potável. Também, os itens que criam uma nova regra para indenização de investimentos não amortizados das prestadoras de saneamento. Parlamentares de diversos partidos se dizem surpresos e avaliam que, se forem mantidos, esses vetos vão prejudicar a eficácia do marco legal, além de prejudicar os acordos celebrados com o governo para a aprovação da matéria. Na sua justificativa o governo argumentou que os dispositivos contrariam os objetivos da matéria – que é promover competitividade e eficiência por meio de contratos de concessão com licitação. O senador Otto Alencar (PSD-BA), um dos mais irritados com a situação, afirma que o veto à renovação de contratos sem licitação vai levar dificuldades para as estatais de abastecimento de água. “É um ato contra os interesses das empresas estatais, que vai lesar muito os seus ativos e dificultar muito as suas ações”, lamenta. Até mesmo o senador Rogério Carvalho (PT-SE), que votou contra o projeto, diz que os vetos presidenciais contribuem para reduzir o valor das estatais no mercado. “Vão contra todo o entendimento para preservar os ativos públicos no saneamento”, ressalta também o senador Eduardo Braga (MDB-AM).
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Privatizar: bom ou ruim? Para o presidente do Instituto Trata Brasil, Édson Carlos, a discussão sobre privatização e estatização tira o foco principal da lei. “A gente discute muito a questão do público e privado, e não a qualidade do serviço. Se você for olhar o ranking das avaliações das empresas de saneamento, vamos ver empresas públicas e privadas entre as melhores empresas e também empresas públicas e privadas com avaliações ruins”, afirma. “A questão é que se o sistema estivesse bom, ele não estaria sendo discutido. Temos essa discussão porque o modelo atual não está sendo eficiente”, acentua. De acordo com o presidente do Trata Brasil, o país investiu cerca de R$12 bilhões em água nos últimos 10 anos. Desses, R$ 4 bilhões foram investidos só em São Paulo. Outros quatro estados, a maioria do Sudeste, somam mais R$ 4 bilhões de investimento e os outros R$ 4 bilhões são divididos entre os demais estados da federação.
Ele também chamou a atenção para as tarifas cobradas pelas empresas privadas e o interesse de empresas estrangeiras sobre o controle do saneamento e esgoto no brasil. A seu ver, as empresas já possuem programas de tarifa social para pessoas de baixa renda, e sobre o interesse do controle do saneamento no Brasil, principalmente por empresas chinesas, ele entende que “Os países mais evoluídos já têm o saneamento num estado avançado. Então, eles têm muito dinheiro para investir e poucos lugares para efetivar esse investimento. O Brasil chama atenção nesse aspecto, pelo potencial econômico, a complexidade do sistema, a necessidade do investimento e a demanda, pela população, por serviços eficientes”. Segundo ele, o novo marco não é uma disputa entre público e privado, mas sim um cenário de colaboração. “Trata-se de um novo momento que deverá ser voltado para o cidadão”, afirma.
O novo marco legal de saneamento básico prevê a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033 e viabiliza a injeção de mais investimentos privados nos serviços de saneamento
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Números do saneamento Índice médio de atendimento total no Brasil. Ano 2018.
57,1%
Água
83,6%
Norte
10,5%
74,2% Nordeste
28,0%
População total atendida 169,1 milhões.
89,0% Centro-Oeste
52,9%
91,0% Sudeste
Esgoto
53,2 %
79,2% População total atendida 107,5 milhões.
90,2% Sul
45,2% Brasileiros sem acesso a saneamento básico
Sistemas de saneamento básico
Coleta de resíduos
Perda de água
2010 2018
89,2 milhões 52,1 milhões
101 milhões
26
R$ 405,00
Público Privado
R$ 377,00
Tarifa média per capita
Água 2018
48,7%
Investimento per capita 125,8 milhões
2010
2010
39%
Privado
Esgoto 2018
Público
60,8 milhões 39,4 milhões
Público Privado
R$ 3,78 R$ 4,72
Fonte: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
RANKING NACIONAL DE SANEAMENTO DOS MUNICÍPIOS Municípios
UF
Ranking 2019
Atendimento total de água (%)
Atendimento total de esgoto (%)
Santos Franca Maringá Piracicaba Cascavel São José dos Campos Ponta Grossa Londrina Taubaté Curitiba Ribeirão Preto Jundaí
SP SP PR SP PR SP PR PR SP PR SP SP
1 2 3 6 7 8 9 13 14 17 21 23
100,00 100,00 99,99 100,00 99,99 100,00 99,99 99,99 100,0 100,00 99,19 99,07
99,93 99,62 99,98 100,00 99,99 98,75 99,98 99,98 99,72 99,99 97,95 98,23
97,64 98,66 100,00 100,00 100,00 94,15 87,87 92,49 95,78 94,27 99,03 100,00
Caucaia São Luís Aparecida de Goiânia Rio Branco Joinville Cariacica São Gonçalo Jabotão dos Guararapes Duque de Caxias Teresinha Belford Roxo São João de Meriti Várzea Grande Gravataí Belém Manaus Santarém Porto Velho Macapá Ananindeua
CE MA GO AC SC ES RJ PE RJ PI RJ RJ MT RS PA AM PA RO AP PA
81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100
59,70 82,02 64,90 52,66 97,71 84,63 81,28 78,77 84,50 95,59 76,54 91,60 97,68 95,24 70,30 91,42 51,29 35,26 39,00 32,63
28,34 48,26 23,83 20,49 31,78 34,38 33,50 19,22 43,07 29,25 38,78 60,51 29,14 28,90 13,56 12,43 4,19 4,76 11,13 2,05
38,34 18,02 44,61 33,05 25,06 26,69 10,38 14,94 8,19 19,45 5,57 0,00 41,91 16,63 2,33 31,05 8,59 2,51 21,53 1,75
2019
MELHORES PIORES 2020
Esgoto tratado por água consumida (%)
EVOLUÇÃO DOS INVESTIMENTOS NOS ESTADOS UF
2014
2015
2016
2017
2018
Total 5 anos
Média anual
(R$ MM)
(por habitante)
Amapá (AM)
22,6
3,0
-
2,7
2,6
30,9
7,4
Rondônia (RO)
25,1
9,9
13,3
8,9
8,5
65,7
7,7
Piauí (PI)
82,8
39,2
24,5
34,9
33,5
214,8
14,3
Amazonas (AM)
70,2
31,3
64,1
27,9
26,8
220,4
15,7
Pará (PA)
182,0
88,9
150,3
79,3
76,0
576,6
16,5
Maranhão (MA)
132,7
127,9
146,5
114,1
109,3
630,4
20,3
Acre (AC)
28,9
18,2
26,8
16,2
15,5
105,6
24,3
Alagoas (AL)
32,4
95,0
93,0
84,7
81,2
386,4
24,8
Paraíba (PB)
114,6
65,4
197,1
58,3
55,9
491,2
25,5
Ceará (CE)
326,8
260,2
170,5
232,1
222,3
1.211,9
27,5
Rio Grande do Sul (RS)
549,7
490,1
490,2
437,2
418,8
2.386,0
42,6
Bahia (BA)
749,3
682,2
551,7
608,5
582,9
3.174,8
44,0
Rio Grande do Norte (RN)
171,7
182,9
143,1
163,2
156,3
817,2
47,9
Distrito Federal (DF)
210,6
151,8
196,3
135,4
129,7
823,7
55,4
Rio de Janeiro (RJ)
1.307,7
937,0
931,8
835,8
800,6
4.812,8
56,4
Minais Gerais (MG)
1.638,5
1.480,0
791,1
1.320,2
1.264,6
6.494,4
62,6
Sergipe (SE)
177,4
160,5
123,8
143,1
137,1
741,8
65,1
Mato Grosso (MT)
239,4
205,4
224,8
183,2
175,5
1.028,2
65,9
Espírito Santo (ES)
348,1
248,7
279,2
221,8
212,5
1.310,3
66,0
Pernambuco (PE)
901,4
644,0
605,4
574,4
550,3
3.275,5
70,0
Santa Catarina (SC)
428,2
569,0
515,0
507,5
486,2
2.505,9
71,3
Goiás (GO)
776,8
487,2
481,3
434,5
416,3
2.596,1
75,4
Mato Grosso do Sul (MS)
306,3
185,6
278,1
165,6
158,6
1.094,4
80,1
Paraná (PR)
1.299,1
956,3
822,7
853,0
817,1
4.748,2
84,3
Roraima (RR)
66,1
45,3
61,0
40,4
38,7
251,6
87,3
São Paulo (SP)
5.207,5
4.925,9
4.846,7
4.393,9
4.209,0
105,6
104,2
Tocantins (TO)
161,4
242,9
123,5
216,6
207,5
951,8
110,8
Total
15.557,2
13.333,6
12.351,9
11.893,6
11.393,3
64.529,5
63,8
27 27
Energia Elétrica
O sertão vai virar mar?
Capela de Manuelzão, personagem da literatura de Guimarães Rosa, localizada na comunidade da Silga (Três Marias/MG) poderá desaparecer com a construção da UHE Formoso
28
A tragédia anunciada por Sá e Guarabyra, em “Sobradinho”, pode se repetir, agora entre Pirapora e Três Marias, Minas Gerais, região do Baixo São Francisco. Engavetado por mais de trinta anos, o projeto de construção da Usina Hidrelétrica do Formoso, ressuscitado por decreto do presidente Jair Bolsonaro, prevê a inundação de nada menos do que seis mil hectares de Cerrado nativo, numa área equivalente a mais de 30 mil campos de futebol Por Luiza Baggio Fotos: Paulo Emílio Belardini, Léo Boi e Miguel Aun A água se esparramaria por cerca de 300 quilômetros quadrados, o equivalente a mais de 30 mil campos de futebol. Debaixo do imenso lago, submergiria parte do imaginário nacional, sítios eternizados por João Guimarães Rosa, no clássico “Grande Sertão: Veredas”: a Barra do De-Janeiro, onde Riobaldo e Diadorim avistaram o Velho Chico, na cidadela de Pedras, a Capela de Manuelzão, a região da Silga, que o escritor denominou Samarra, além do Pontal do Abaeté, porto que há séculos recebe os navegantes do São Francisco. Proposto inicialmente em 1985 e engavetado por uma lei estadual que declarou como área de preservação permanente a região entre Pirapora e Três Marias, no sertão mineiro, o projeto de construção da Usina Hidrelétrica do Formoso (distante 12 quilômetros de Pirapora e 88 quilômetros de Três Marias) voltou a assombrar ambientalistas e ribeirinhos. "O rio não suporta mais esse tipo de empreendimento. O que ele precisa é de revitalização, saneamento básico, coleta e tratamento de esgoto, recomposição das matas ciliares e combate às erosões, e não de investimentos agressivos”, comentou Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). “Contratamos um estudo que foi finalizado em novembro e que vai subsidiar o CBHSF nas discussões sobre os impactos do empreendimento”. Valendo-se de um decreto estadual de 2018, que passou a permitir a geração de energia em áreas de preservação, o presidente Jair Bolsonaro usou a famosa caneta BIC para assinar outro decreto, este enquadrando no Programa de Parceiras e Investimentos (PPI) a UHE do Formoso. Os empreendimentos qualificados ao PPI são tratados como prioridade nacional, o que agiliza diversos processos e atos de órgãos públicos. Ou seja: o processo de licenciamento está correndo a todo vapor. Divulgada em fins de 2019 e publicada no Diário Oficial em maio de 2020, a ressurreição da UHE do Formoso pegou de surpresa as comunidades ribeirinhas, o CBHSF e até mesmo as prefeituras dos municípios envolvidos: Pirapora, Buritizeiro, Lassance, Várzea da Palma, Três Marias e São Gonçalo do Abaeté. A empresa responsável pela realização da obra é a Quebec Engenharia. Segundo ela informa, a nova usina hidrelétrica terá a capacidade de 306 megawatt de potência e três turbinas. 29
“Estaremos matando um trecho do Rio São Francisco com a implementação da usina, mudando totalmente sua característica e toda a biodiversidade vai ser comprometida”, lamentou Anivaldo Miranda, durante o primeiro seminário online sobre a Usina Hidrelétrica de Formoso, organizado pelo CBHSF. No mesmo evento, em que participaram representantes da Quebec Engenharia, Universidade Federal de Lavras e Universidade Federal do Vale do São Francisco, Cláudio Fabi, do ICMbio, declarou: “Regular o rio, para o peixe, é mortal. Existe um gatilho que precisa disparar no peixe para começar o processo reprodutivo, como a mudança da temperatura da água. Quando tem essa regularização do rio, causada por uma UHE, isso tudo acaba. O peixe fica desorientado no seu processo reprodutivo num reservatório. E estamos falando de espécies praticamente ameaçadas, como o Dourado e o Surubim”. O homem chega e já desfaz a natureza Como bem se sabe, a crônica desta tragédia anunciada não é novidade, já cantada por Sá e Guarabyra em “Sobradinho”, a canção de protesto que ganhou o mundo, anunciando: “(...) adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé, adeus Pilão Arcado, vem o rio te engolir (...)”. Ao longo do curso do Velho Chico, enfileiram-se hidrelétricas, como as gigantes Itaparica, Três Marias, Xingó e Paulo Afonso. No entanto, a possibilidade de mais um grande empreendimento do gênero é vista por ambientalistas como um crime sem precedentes, diante do fato inexorável: o Rio São Francisco não é mais o mesmo. “Fico abismado que, ao invés do governo discutir como revitalizar o São Francisco, quer discutir como quebrar ainda mais as pernas desse rio. Não justifica um crime desse tamanho para gerar energia”, comentou Marcus Vinícius Polignano, secretário do CBH Rio das Velhas e coordenador do Projeto Manuelzão. Na bacia do Velho Chico existem atualmente 211 espécies de peixes, sendo que 135 são endêmicas, tais como Matrinxã, Dourado, Curimba, Pirá e Surubim. O rio percorre três biomas – Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga. Com a construção da UHE Formoso, seriam inundados nada menos do que seis mil hectares de Cerrado nativo, um bioma já comprometido pela devastação ambiental. Segundo o representante da Quebec Engenharia no seminário, Leôncio Vieira, no entanto, ainda não se pode prever os impactos de tamanho empreendimento: “Não podemos dar certeza porque os diagnósticos estão em fase embrionária de elaboração. Sim, vão existir impactos, mas há comparação com empreendimentos anteriores”. Há quem discorde. Para Anivaldo Miranda, presidente do CBHSF, além de todos os óbvios problemas sociais e ambientais de uma obra desta envergadura, que altera completamente a existência do Velho Chico, a proposta de construção de uma hidrelétrica para suprir a demanda energética nos dias atuais é totalmente defasada. “Não há demanda energética. O Brasil tem capacidade de produzir 93 mil megawatts médios, ao passo que o consumo em nosso país é de 65 mil megawatts. Está ocorrendo uma inversão da ordem de prioridades. Essa hidrelétrica está sendo construída para atender interesses que não são os prioritários para o conjunto da bacia e os promotores tanto sabem que estão construindo a iniciativa longe da opinião pública". De acordo com o presidente do CBHSF, prioritário seria avançar no Pacto das Águas. “A ideia do Pacto é que os estados e a união incorporem a questão dos recursos hídricos da bacia do São Francisco em sua vida política e institucional, de forma a garantir a quantidade, a qualidade e o uso racional e democrático das águas. Somente assim,teremos uma gestão mais sustentável”, finalizou.
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Veja os vídeos: Acesse https://bit.ly/ SeminarioUHEFormoso ou escaneie o QR CODE abaixo.
Região da foz do Córrego Formoso, em Pirapora (MG), área onde será construída a UHE Formoso 31 31
Além dos impactos ambientais, o patrimônio histórico, turístico e cultural está ameaçado com a construção da UHE Formoso 32
Debaixo d’água lá se vai a vida inteira Cientes que sua sina é lutar, os povos tradicionais do Velho Chico, como índios, quilombolas e pescadores, reunidos em 60 entidades, elaboraram um abaixo-assinado contra a construção da UHE de Formoso. Assinado por entidades como Cáritas Brasileira, Movimento dos Atingidos por Barragens e Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco, o documento destacou o “autoritarismo e as manobras para acelerar o processo de licenciamento ambiental”, já que não foram realizadas consultas à sociedade civil. Conforme o manifesto, estão em risco mais de 60 sítios arqueológicos, bens patrimoniais tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), além de veredas, várzeas, nascentes e espécies ameaçadas tanto da fauna como da flora. “Desse modo, nós, povos do São Francisco, manifestamos nosso total repúdio à construção da Usina Hidrelétrica do Formoso”, conclui o manifesto.
33 33
Corte Orçamentário
O rompimento de barragem da Vale em Brumadinho foi um dos maiores desastres ambientais da mineração do país, jogando 11,7 m3 de rejeitos no Rio Paraopeba, deixando 270 mortos e 11 pessoas desaparecidas 34 34
Mar de lama Com as tragédias de Mariana e Brumadinho eclipsadas pelo rol de tantas outras tragédias que assolam o Brasil e o mundo, cortes no orçamento da Agência Nacional de Mineração (ANM) podem inviabilizar a fiscalização de barragens de rejeito, o que coloca diretamente em risco o Velho Chico Por Luiza Baggio Fotos: Luiz Maia e Léo Boi
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No dia 5 de novembro de 2015, o Brasil parou para assistir o rompimento da barragem sugestivamente denominada “Fundão”, em Mariana (MG). Controlada pela Samarco, Vale e BHP Billiton, “Fundão” despejou 62 milhões de metros cúbicos de lama no Rio Doce, cuja bacia hidrográfica abrange 230 cidades de Minas Gerais. Calculase que os efeitos da tragédia serão sentidos nos próximos 100 anos. Três anos depois, outra tragédia estarreceu o país. Em 25 de janeiro de 2019, outra barragem da Vale rompeu, desta vez em Brumadinho (MG), jogando 11,7 milhões de metros cúbicos de rejeito no Paraopeba, um dos principais afluentes do São Francisco, com 546 quilômetros de extensão, abastecendo 35 municípios do estado. Somando os mortos dos dois crimes, foram 278 vidas perdidas – e 11 pessoas seguem desaparecidas. Pelo jeito, porém, essas duas tragédias de enormes dimensões, que colocam o Brasil no topo da lista dos países com o maior número de vítimas de acidentes com barragem, não foram suficientes para ensinar a lição. Segundo a Associação dos Municípios Mineradores do Estado de Minas Gerais e do Brasil (AMIG), a Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela fiscalização das mineradoras, pode perder 9% do já enxuto orçamento, o que fere a nova Lei dos Royalties do Minério, de 2017, que garante o repasse para a agência fiscalizadora de percentagem do CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral). Em 2019, foram arrecadados R$ 4,5 bilhões. A agência deveria ter recebido R$ 315,2 milhões, mas foram previstos apenas R$ 67 milhões. Segundo os municípios mineradores, esse número chegou a saltar para R$ 76 milhões em 2020, mas continua ainda muito abaixo do determinado na criação do órgão. Em 2021, esse montante deve cair para R$ 61 milhões, conforme a Lei Orçamentária Anual (LOA).
A ANM tem quatro fiscais para vistoriar cerca de 360 barragens de mineraçao em Minas Gerais 36 36
“É inacreditável que depois de rompimentos criminosos como os que ocorreram em Mariana (MG), Barcarena (PA) e em Brumadinho (MG) a parte do orçamento que será destinada à ANM seja de uma escala tão ridícula como a que está sendo proposta”, comentou Anivaldo Miranda, presidente do CBHSF. “Do ponto de vista da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco esse desmonte da ANM faz soar todos os alarmes, visto que sobre o Velho Chico pairam as ameaças de vários barramentos de alto potencial de dano e risco, e que através dos grandes afluentes e da calha podem comprometer irremediavelmente as águas sanfranciscanas. No que tange ao CBHSF vamos exigir apelos a todas as instâncias decisórias para que ainda seja possível salvar o orçamento da ANM para 2021 e, assim, garantir o mínimo de fiscalização nas barragens de mineração”. Atualmente, a ANM tem quatro fiscais para vistoriar cerca de 360 barragens em Minas Gerais. Outros dois estão afastados por serem grupo de risco para Covid-19. Em 2021, esse número pode chegar a zero, caso a redução no orçamento previsto na LOA para o órgão seja aprovado. De acordo com o consultor de Relações Institucionais da AMIG, Waldir Salvador, essa atitude do governo federal representa mais um corte grave em um orçamento que já era muito magro. Para Salvador, o orçamento da ANM teria que ser de no mínimo R$ 155,9 milhões, para que fosse possível uma ampla fiscalização. “Desse jeito, a agência praticamente não vai existir a partir do próximo ano. O governo está propiciando os maiores e os piores riscos ao país, porque não tem dado a devida importância ao tema”, afirmou Salvador. “A administração pública não é como a iniciativa privada, que consegue se reerguer rapidamente e retomar seu valor de mercado depois de uma avalanche de lama”.
Cortes no orçamento da ANM podem inviabilizar a fiscalização de barragens de rejeitos no Brasil
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Pandemia nas aldeias
LUTO LUTA
Cerca de 81 mil indígenas de 230 territórios encontraram-se ameaçados pela pandemia do novo coronavírus. Numa luta sem quartel contra o descaso e o abandono, os povos originários do Brasil precisam de apoio para salvar não só vidas, mas um patrimônio cultural e ambiental da humanidade Por Karla Monteiro Fotos: Arquivo APIB 38 38
Liderança indígena histórica, Paulinho Paiakan morre vítima da Covid-19
Aritana Yawalapiti, grande lutador e articulador de mundos, também foi vítima da Covid-19
No dia 18 de junho, a Covid-19 levou Paulinho Paiakan. E, pouco mais de um mês depois, Aritana Yawalapiti. A história dos dois líderes se confunde com a história da luta pelos direitos indígenas. Nos idos da década de 80, Paiakan ficara conhecido ao liderar duas batalhas: o reconhecimento dos direitos dos índios na Constituição de 1988 e o cancelamento do primeiro projeto da Hidrelétrica de Belo Monte. No começo dos anos 90, ele voltaria ao noticiário ao travar a luta pela demarcação da terra Kayapó. Já Aritana encarnava a guerra pela preservação do Alto Xingu, além de ser um dos últimos a falar o idioma tradicional do seu povo, o Yawalapiti. Com a expansão da pandemia do coronavírus nas aldeias, os dois guerreiros agora se tornam símbolo do descaso que coloca em risco os povos originários do Brasil. De norte a sul, a triste estatística avança, dia após dia, chocando o mundo. Em 1º de dezembro, somavam-se 40.340 casos da Covid-19 entre os índios, com 881 mortes registradas e 161 povos infectados. No brasil, a marca atingia, então, 6.335.878 contaminados, com 173.120 mortos. Segundo Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), a realidade é ainda muito pior, devido à subnotificação. Nos seus cálculos os casos de morte por Covid-19 ultrapassam em muito os números oficiais. Cerca de 81 mil indígenas de 230 territórios encontram-se sob ameaça, assistindo atônitos ao alastramento do novo cororonavírus nas aldeias. A média é de quatro mortes de indígenas por semana. “Quando tomamos consciência da pandemia, nossas organizações, sob a coordenação da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), passaram a orientar as lideranças sobre os principais cuidados a se tomar e também orientamos no sentido de fechamento das aldeias”, comentou Tuxá. “Depois mandamos ofício a todos os governadores de estado e ao governo federal solicitando suporte para a criação de barreiras sanitárias. Só dois governadores responderam, do Maranhão e de São Paulo”. Tem sido uma luta sem quartel, uma guerra de golpes baixos.
No começo de julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos a Lei nº 14.0212/2020, que prevê medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia do novo coronavírus. O presidente barrou 16 pontos. Entre eles, os que previam o acesso das aldeias à água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos. Três meses depois, com os vetos derrubados pelo Congresso Nacional, o plano de emergência previsto pela nova lei ainda não entrou em vigor. De acordo com Tuxá: “Já temos sete meses de pandemia e até hoje o plano emergencial não foi aplicado. Tem lugares que já atingiu imunidade de rebanho. A APIB está ingressando com medida no STF para exigir aplicação da lei”. Se não bastasse o não cumprimento das medidas legais, o governo federal parece ainda trabalhar com afinco para enfraquecer as lideranças indígenas. Em 18 de setembro, um post no Instagram do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, general Augusto Heleno, causou indignação, repercutindo nos principais jornais do mundo. Conforme Heleno, a APIB está por trás de um site cujo objetivo é publicar “fake news” contra o Brasil. O general citou nominalmente Sônia Guajajara, uma das principais lideranças indígenas do país, acusando-a de capitanear campanha pelo boicote internacional de produtos brasileiros. No texto considerado delirante pela imprensa, o ministro do GSI ainda lembrou que Guajajara é ligada a Leonardo Di Caprio, o inimigo eleito dos bolsonaristas. “As acusações, além de levianas e mentirosas, são irresponsáveis, pois colocam em risco a segurança dos citados. Estamos sendo ameaçados”, declarou Tuxá. “Quase tudo o que estamos conseguindo para proteger as aldeias é através de vaquinhas e de ONGs. Nosso povo está fazendo o enfrentamento ao governo em um nível muito superior do que o que se vê por aí”.
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Linha do tempo Há dez anos, em 2010, o grande xamã Davi Kopenawa publicou, na França, um livro profético: “A Queda do Céu”, republicado no Brasil pela Companhia das Letras. Um relato excepcional, ao mesmo tempo testemunho autobiográfico e libelo contra a destruição da floresta Amazônica. Na obra, as meditações de Kopenawa sobre o contato predador do homem branco, com o seu cortejo de violência, destruição e epidemias. O livro se tornou ferramenta crítica para questionar a noção de progresso e desenvolvimento. O país conta hoje 305 povos e 274 línguas diferentes. Com a pandemia do novo coronavírus, a memória histórica de epidemias voltou a assombrar. Elas chegavam para dizimar aldeias, etnias inteiras. De acordo com Andrey Moreira Cardoso, do Departamento de Epidemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o país pode estar prestes a assistir a outra tragédia: “Devido a diversos fatores, como falta de acesso a saneamento básico, desnutrição e anemia, as populações indígenas são as mais vulneráveis ao contágio da Covid-19”. Não seria difícil traçar uma linha do tempo da tragédia. Em 25 de fevereiro, ocorreu a primeira notificação da Covid-19 no Brasil, um homem de 61 anos que chegara de viagem à Itália. Em vez de aumentar a proteção nas aldeias, no dia 6 de março, a Fundação Nacional do Índio (Funai) suspendeu ações sociais, alegando falta de orçamento, como, por exemplo, distribuição de cestas básicas. Com isso, os indígenas foram obrigados a ir à luta, vendendo artesanatos nas cidades, o que aumentou a vulnerabilidade das aldeias. Com os passar dos dias, os absurdos foram se atropelando. Desconhecendo completamente a cultura indígena, os órgãos governamentais responsáveis pela saúde dos índios recomendaram a permanência dos contaminados nas comunidades. Sem casas compartimentadas, o novo coronavírus ficara livre para procurar vítimas. Só em 17 de março a Funai resolveu agir – ou não. Através de portaria, restringiu a entrada de estranhos em terras demarcadas, sem, no entanto, fazer o combate aos invasores. Ou seja: na prática, nada foi feito. Em 23 de março, veio a reação. Os próprios indígenas foram para as redes sociais, iniciando campanhas de conscientização e de denúncias contra a inação do Ministério da Saúde. O primeiro caso da Covid-19 numa aldeia foi registrado no dia 1º de abril. Uma jovem de 20 anos, da etnia Kocama, no Amazonas. E o primeiro caso de morte aconteceu oito dias depois, no dia 9 de abril, um jovem Yanomami. Naquele começo de abril, Bolsonaro sancionou a lei do auxílio emergencial. Como boa parte das tribos não tem Internet, os indígenas eram mais uma vez ignorados, tendo que deixar as comunidades para se arriscarem na lan-house mais próxima. Nas semanas que se seguiram, a contaminação andou a galope, sendo vetores até mesmo os próprios agentes de saúde. Ao mesmo tempo, a Funai recebia 11 milhões de reais para proteger os indígenas do coronavírus, mas só destinava de imediato 39% às ações que poderiam ajudar a conter o avanço da pandemia, que chegou até mesmo ao Vale do Javari, santuário ecológico na fronteira com o Peru, onde vivem 16 grupos isolados, uma das regiões com maior diversidade étnica do mundo. Se nada for feito para proteger as aldeias, além de vidas, um patrimônio cultural da humanidade corre o risco de extinção. “Os anciãos que estão desaparecendo são as bibliotecas vivas de todo este conhecimento tradicional, da língua, dos costumes, das danças, da música. Esse conhecimento se preserva nos mais velhos, e é através deles que chega aos jovens e se reproduz”, lamentou Angel Corbera Mori, professor de linguística na Unicamp e especialista em línguas ameríndias.
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Aurelia Jifichiu Jumemarima
Bep Karoti Xykrin
Amanciô Ikô
Api Suruí
Feliciano Lana
O QUE DIZ A FUNAI A Fundação garante que já investiu cerca de R$ 28 milhões no enfrentamento do novo coronavírus. Entre as medidas, está a entrega de aproximadamente 425 mil cestas de alimentos para mais de 207 mil famílias indígenas. Segundo a assessoria de imprensa da Funai, o intuito é promover a segurança alimentar e viabilizar a permanência dos índios nas comunidades. Embora os líderes indígenas digam o contrário – e organizações internacionais como Greenpeace também, a Funai ainda assegura que já foram realizadas 184 ações em 128 territórios indígenas para conter invasores, numa parceria entre Exército, Polícia Federal, Batalhões de Polícia Militar Ambiental e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). De acordo com a fundação responsável por cuidar dos povos indígenas, ainda em março, foram suspendidas as autorizações para ingresso em aldeias. Hoje a Funai contribui para a manutenção de 311 barreiras sanitárias. Além disso, entregou mais de 69 mil kits de higiene para reforçar medidas preventivas. Bekwyka Metuktire
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Paulinho Paiakan
Bernaldina Macuxi
Paulinho Paiakan
Laureano Cordeiro
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Domingos Mahoro
Laureano Cordeiro
Domingos Karai
ArikasĂş SuruĂ
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Perfil
Alma sertaneja Vivendo há 43 anos no Brasil, em Juazeiro (BA), o austríaco Johann Gnadlinger acredita que mais importante que combater a seca é aprender a conviver com ela no Seminárido 44 44
Radicado no Brasil desde 1977, o austríaco Johann Gnadlinger, vulgo João, está entre os primeiros a defender uma mudança de paradigma para que o sertanejo possa permanecer na sua terra: em vez de combater a seca, aprender a conviver com ela Por Juciana Cavalcante Fotos: Edson Oliveira e Luiza Baggio
Quando alguém lhe pergunta o nome, vai logo dizendo: João. Na verdade, João é licença poética para o austríaco, nascido em Eberstalzell, cidadela cortada por um cristalino afluente do Rio Danúbio. Em 1991, tendo chegado ao Brasil em 1977, Johann Gnadlinger assentou praça em Juazeiro, no norte da Bahia, plantandose à beira de outro rio, o São Francisco. Não tem nada que João goste mais do que o Velho Chico. Desde então, ele encafifou com uma ideia: virar a lógica. Em vez de combater a seca, aprender a viver com ela. Para isso, foi trabalhar no Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA). “No início nós éramos somente quatro pessoas. Visitamos muitas comunidades rurais do Semiárido para conhecer os problemas, estudar a situação da vida do povo e procurar saídas para uma vida no próprio Semiárido, sem a necessidade de sair para São Paulo ou trabalhar nos projetos de irrigação”, contou. “Comecei a trabalhar e elaborar o eixo clima e água, a minha especialidade é o ciclo da água, a necessidade de conviver com o clima Semiárido, as mudanças climáticas e tecnologias de captação de água de chuva, além da política da água. Consegui trazer experiências internacionais para contribuir para programas de cisternas que formaram a base de programas da Associação de Entidades do Semiárido (ASA)”. Lá se vão 30 anos desde que Johann virou João. Aos 72 anos, ele conta que sua conexão com o meio ambiente vem da infância. Seu pai Georg tinha um moinho de trigo que funcionava com uma microturbina Voith, instalada em 1932. “Quando meu pai se aposentou o moinho foi desativado, mas a turbina não. Junto com os painéis solares no telhado, produz energia para a casa e o que sobra até hoje vai para a empresa de eletricidade”. Trazendo da Europa a sua formação ambiental, o austríaco se tornou membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), como representante das organizações não governamentais da Bahia, através do IRPAA. “Nasci à beira de um riacho que conheci por dentro e por fora. Quando cheguei, em 1977, no Além São Francisco (agora Oeste Baiano) me apaixonei pelos rios dos Gerais, com seus buritizais naquele tempo intocados, mas assisti também perplexo ao início da ocupação desordenada dessa região pelo agronegócio. Em Juazeiro, onde moro com minha esposa e duas filhas, perto do Nego d’Água, símbolo do rio resistente a todas as agressões que está sofrendo, continua minha paixão pelo Velho Chico”. 45
O samba de uma nota só O filho da dona Anna tem três irmãs e dois irmãos, e deixou a Áustria com 28 anos, vindo para o Brasil com destino certo. A trabalho, mas já disposto a fincar raízes. Na época, arranhava o português, que aprendeu na universidade de Salzburg, Áustria. O professor de filosofia e reitor da Universidade Católica de Pernambuco (UnicapRecife), expatriado pela ditadura militar em 1969, Geraldo de Freitas, abriu o caminho para a nova língua. Além do português, também estudou literatura, geografia e história do Brasil. “Comecei a aprender português com ‘O samba de uma nota só’ de João Gilberto e a ‘Roda Viva’ de Chico Buarque, com textos de Jorge Amado e Euclides da Cunha. Lemos também a Carta de Pero Vaz de Caminha sobre a chegada dos portugueses no Brasil”, lembra. Mestre em teologia e formado em pedagogia na Universidade de Salzburg, adquiriu ainda mestrado de gestão ambiental e de recursos hídricos no Imperial College da Universidade de Londres, Inglaterra. “Li os livros de Paulo Freire e D. Hélder Câmara, nomes que eram proibidos de se pronunciar no Brasil durante a ditadura militar, mas tinham grande influência sobre os jovens na Europa. Conheci ainda o bispo D. Tiago Cloin, na Barra do Rio Grande, BA, que convidou pessoas de vários países da Europa para trabalhar na sua Diocese. Eu estava entre eles. Infelizmente, ele morreu antes de eu chegar”. Desde 1977, morou sempre na Bahia, na bacia do São Francisco, e por causa de seu trabalho como Vice-Presidente do International Rainwater Catchment Systems Association (Associação Internacional de Sistemas de Captação de Água de Chuva - IRCSA) e Presidente da Associação Brasileira de Captação e Manejo de Água de Chuva (ABCMAC) fez viagens para países como China, México, Israel, Iran, Índia, Tailândia, Etiópia, Japão e Austrália, para conhecer experiências de manejo de água, se apresentar em palestras e colaborar em seminários e cursos. “Desenvolvemos os cinco caminhos de lutas de providências de água para a vida no Semiárido: água de beber para as famílias, água na comunidade, água na agricultura, água para situações de emergência e água do meio ambiente”, enumerou. Como ribeirinho: “Vejo diretamente as mudanças de qualidade e quantidade de água no rio. Sofro pelo desrespeito que o rio, os moradores ribeirinhos e as comunidades da bacia estão sofrendo, vejo consequências das agressões dos grandes projetos”. Atuando na Câmara Técnica Planos, Projetos e Programas (CTPPP), do CBHSF, diz que teve a oportunidade de chamar atenção para fatos que considera importantes.“O fato de que 54% da bacia pertence ao Semiárido e contribuir para a elaboração da pauta Segurança Hídrica do Semiárido como uma das seis metas do Plano Plurianual da bacia”. Ele enumera: “preservação da Caatinga em pé, projetos de saneamento básico na área rural, recaatingamento, revitalização de microbacias, recuperação de áreas devastadas, indústrias de produtos da Caatinga a exemplo do umbu, reuso da água para a agricultura familiar, uso descentralizado de energia solar pelas famílias. E entendo que os recursos destinados a essa meta do plano têm que ser usados para esse tipo de projetos”. Na sua opinião: “A sociedade civil tem que ficar proativa nas propostas e nas denúncias. No IRPAA e em muitas outras entidades do Semiárido os/as colegas fazem seu trabalho constante de implantar tecnologias sociais, educação contextualizada, mostrando saídas para a vida sustentável do Semiárido e na bacia”. Com a língua afiada, João virou sertanejo de alma: “Lembro-me do que diz o historiador israelense Yuval Harari: 'Humanos sempre foram muito melhores em inventar ferramentas do que em usá-las sabiamente. É mais fácil manipular um rio construindo uma represa do que prever todas as complexas consequências que isso trará para o sistema ecológico e social mais amplo'. O nosso rio é um patrimônio único que devemos preservar para as gerações futuras. O futuro melhor ou pior do rio e da bacia depende das nossas ações hoje.”
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Para Johann Gnadlinger o futuro do Velho Chico e sua bacia dependem das nossas ações agora 47 47
Cultura
O sertĂŁo ĂŠ o mundo
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Priscila Magella, cantora natural de Pirapora (MG)
Três vozes, três estilos, três histórias da diversidade cultural do São Francisco. Como escreveu Guimarães Rosa para Teobaldo, “o sertão é o mundo”. Nascida em Pirapora, Minas Gerais, Priscila Magella traz a força da música barranqueira, vestida de contemporaneidade, encarnada na beleza singular da cantora. Natural de Juazeiro, Bahia, o forrozeiro Targino Gondim segue a melhor tradição de Luiz Gonzaga. Ganhador de um Grammy Latino, em 2001, seu melhor cartão de visitas talvez seja a autoria do hit de Gilberto Gil, “Esperando na janela”. E Paulo Araújo é filho de Bom Jesus da Lapa, também na Bahia. Entre o samba de roda e a marujada, canta o cotidiano sertanejo. Por: Karla Monteiro Fotos: arquivo pessoal Priscila Magella, Paulo Araújo e Targino Gondim
A Barranqueira... Quando ainda era bem menina, Priscila Magella fugia do salão de beleza da mãe, conhecida em Pirapora (MG) como Maria do Salão, e ia para a beira do São Francisco aprender a cantar. Não tinha dinheiro para pagar aulas de voz. De vez em quando, trocava faxinas na Sala Moser, imponente conservatório da cidade, por lições. Mas seu professor mesmo era o Velho Chico. Experimentando, foi descobrindo que se entrasse no rio e deixasse só a cabeça fora d’água sua voz ganhava a melodia da correnteza. Se nadasse até as pedras, podia se ouvir no eco. Nas duchas, o ritmo mudava. “Minha maior investigação de voz foi mesmo dentro do rio”, comentou ela, que, aos 36 anos, cursa Arte Dramática na Universidade de São Paulo (USP) e escreve o roteiro do musical “Velho Chico”: “É a história de uma mulher que se apaixona pelo rio e o rio vira gente”. Com um CD lançado, intitulado “A Barranqueira”, Priscila vive em São Paulo, mas tudo nela segue exalando o cheiro, a cor, a cadência do Velho Chico, como se encarnasse o rio, como se o rio saísse pelos poros. A voz é perfeita, elegante, afinada como a correnteza, nunca perde o tom, não erra notas. As letras, engajadas, políticas, trazendo as belezas, mas também as dores e as lutas ribeirinhas. O visual, contemporâneo, arrojado. Com os amigos David do Nascimento de Jesus e Surubim de Bigode, ambos artistas de Pirapora, o primeiro artista plástico, com representação nacional, e o outro um virtuose de várias artes, ela criou recentemente um coletivo em Pirapora para lutar contra a barragem de Formoso, projeto de instalação de uma hidrelétrica na região. No último 4 de outubro, o grupo organizou uma barqueata na cidade, para chamar a atenção para o que consideram uma obra ilegal e um crime ambiental. “Estamos correndo atrás, tentando pelas vias legais. Desde 1985 estão tentando construir essa barragem. Vamos lutar até vencer”. O primeiro contato de Priscila com a música foi o tio, o Capitão Magella, uma lenda em Pirapora, chamado de capitão da música Barranqueira. Em 1979, ele fora um dos artistas que se apresentaram no Show pela Anistia, ocorrido no Estádio do Corinthians, em São Paulo, reivindicando a libertação de presos políticos retidos da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco. Capitão Magella subiu no palco ao lado de nomes como Belchior, Fagner, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Danilo Caymmi, Sá e Guarabyra. Aos 38 anos, morreu – ou encantou, como Priscila gosta de falar: “Saiu com amigos numa expedição pelo São Francisco e, no caminho, pulou no rio para salvar uma moça que se afogava. Foi de encontro a um banco de areia”, contou. “Eu cresci com minha mãe dizendo que o São Francisco era perigoso. A gente não podia ir lá. O Velho Chico era um pecado”. Um pecado que sempre fez questão de cometer: “Todas as tardes eu fugia do salão e ia para o rio”. Com essa atração pelo pecado, Priscila se apresentou num palco pela primeira vez aos 15 anos, num festival local. Depois, cantou com todos os mestres dos Vales do São Francisco e Jequitinhonha, como Paulinho Pedra Azul e Marku Ribas. “Só não cantei em velório”, brincou ela, que, em 2007, se mudou para Belo Horizonte: “No final de 2008, voltei para Pirapora, precisava buscar minha essência. Fiquei quatro anos num mergulho de profundidade no Rio São Francisco, tentando compreender e trazer para minha música essa essência. Em 2013, lancei meu CD. Agora, estou estudando em São Paulo e escrevendo um musical para esse mestre, o Velho Chico”.
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O cancioneiro....
Paulo Araújo, o Paulão, é natural de Bom Jesus da Lapa (BA)
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Aos 14 anos, Paulo Araújo ganhou da mãe um violão. Havia pedido uma bicicleta, mas dona Maria Toledo enxergou mais longe. A família vivia, então, numa casa na rua Monsenhor Turíbio, no centro de Bom Jesus da Lapa, cidade apelidada por Euclides da Cunha de Meca dos Sertanejos. O fundo da casa de seu Delcleciano Toledo, o patriarca, dava para o morro sagrado do Bom Jesus, uma formação calcária que abriga o impressionante e belo templo, destino dos romeiros que todos os anos abundam na cidade baiana. Dos benditos e ladainhas, passando pelas cantigas de cego, cantos das lavadeiras e pregões populares, o menino Paulo cresceu captando os sons da fé, na incessante algaravia dos peregrinos. “Minha mãe ainda mora no mesmo lugar, a uns 100 metros do Tamarindo, um braço do Rio São Francisco. Para lá eu fugia para ter calma. Lá aprendi a nadar, a pescar com o meu pai”, contou ele. Em 2016, Paulo Araújo ganhou o Brasil, com a canção I-Margem, que integrou a belíssima trilha sonora da novela “Velho Chico”, da TV Globo. Sua carreira artística, no entanto, começara já nos primeiros acordes naquele violão que a mãe lhe presenteou. Uma amiga lhe passou as primeiras notas musicais. Depois, foi discípulo do mestre Paulo Gabiru, um paulista radicado em Bom Jesus da Lapa, que espalhava pela cidade suas canções, bebendo sempre no estilo regional do Médio São Francisco. “Samba de roda, Marujada, ele trazia todo o eixo cultural e popular local, em letras que narravam o nosso cotidiano”, comentou Araújo. “Na juventude, eu tocava nos bares da cidade. Com o desenrolar do tempo, fui me profissionalizando. Passei a tocar nos festivais. Fomos espalhando as nossas melodias e nossas histórias”. Entre as influências ele cita nomes como Alceu Valença e Zé Ramalho. Sua carreira profissional é marcada pela criação do grupo “Morão di Privintina”, com o poeta e parceiro musical João Filho, em 1998. Com este, compôs músicas celebradas, como “I-Margem”, “Nobre Barranqueiro” e “Tempo de Perau”, que integram o álbum “Cama de Quiabento”. A mistura das sonoridades do Rio São Francisco e do sertão catingueiro ao rock é a marca registrada do grupo, que lançou recentemente “Janela do Ermo''. Além da arte, Araújo também dedica tempo à militância em prol da revitalização e preservação do São Francisco, o rio que, afinal de contas, compõe a sua história. “Eu sempre acreditei no belo, no majestoso. Sempre que posso dou um pulinho na margem. De vez em quando navego. Todos os dias eu peço permissão de viver para o Velho Chico”.
O forrozeiro... O Brasil inteiro cantou junto: “Tá me esperando na janela, ai, ai. Não sei se vou me segurar”. Pela canção, eternizada na voz de Gilberto Gil, o baiano de Juazeiro, Targino Gondim, levou um Grammy Latino, em 2001. E “Esperando na Janela” foi a música mais executada no Brasil de 2004. Carregando a sanfona – e a herança de Luiz Gonzaga, Targino se tornou sinônimo de arrastapé, de rodopiar nas pistas, de músico que vem revolucionando o forró – e não só pela habilidade com que maneja o instrumento. Com 28 discos gravados, ele capitaneia o mercado forrozeiro no país, uma espécie de “embaixador” da safona.
Seu nome está à frente na produção de diversos festivais na Bahia e também em outros estados, como o Festival Internacional da Sanfona, que reúne em Juazeiro sanfoneiros do mundo inteiro. Nos seus discos, há sempre participações de músicos celebrados, como Zeca Baleiro, Gilberto Gil, Fagner, Carlinhos Brown, Moraes Moreira, Ivete Sangalo e até o moderno BaianaSystem. Targino mudou-se para a cidade de Juazeiro na Bahia, aos quatro anos de idade e, oito anos depois, já se apresentava em shows pelo sertão. A primeira vez que o Brasil ouviu a sanfona de Targino foi em 1994, quando mostrou na televisão “Até Mais Ver”. Mas a fama mesmo só veio quando foi descoberto por Regina Casé, com o Brasil Legal. Daí, já subiu até mesmo no palco do “Rock in Rio”.
Targino Gondim é forrozeiro e natural de Juazeiro (BA) 51 51
Pandemia
O novo normal Desde que o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de Covid-19 no Brasil, em 26 de fevereiro, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco CBHSF vem aperfeiçoando métodos de trabalho para se adaptar ao chamado novo normal. A certeza é uma só: as ações de revitalização e preservação do Velho Chico não podem parar. Com a pandemia se alastrando pelo país – até o dia 1º de dezembro já se somavam 173.165 mortos, o jeito foi reestruturar o cotidiano. As reuniões antes presenciais cederam lugar para os encontros virtuais. Os projetos de requalificação ambiental, a elaboração dos Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB) e os estudos de aprimoramento para a gestão dos recursos hídricos seguiram, sob as orientações de segurança recomendadas pelas autoridades de saúde. Por Mariana Martins
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Turismo
Conhecer para amar Vai passar! E quando passar, conheรงa para amar.
Bom Jesus da Lapa (BA) 54
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Cachoeira Casca D'Anta, Parque Nacional Serra da Canastra (MG)
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Piranhas (AL)
Rio São Francisco em Piranhas (AL)
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Pinturas rupestres do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, feitas entre 500 e até 9.000 anos atrás
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Cavernas do Peruaçu, em Januária (MG)
Festa Bom Jesus dos Navegantes, em Penedo (AL)
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Categoria: Entes do SINGREH
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