Revista Chico Nº 9 - Maio / 2021

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09 Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco • Junho 2021

O Nordeste está exportando energia - e o Velho Chico paga a conta Dois anos da tragédia de Brumadinho Conheça as obras dos artistas Véio e Fernando da Ilha do Ferro, ambos reconhecidos no seleto mundo das artes O Velho Chico e o repórter José Raimundo, uma longa história 1


Expediente PRESIDENTE: ANIVALDO DE MIRANDA PINTO VICE-PRESIDENTE: JOSÉ MACIEL NUNES OLIVEIRA SECRETÁRIO: LESSANDRO GABRIEL DA COSTA PRODUZIDO PELA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CBHSF TANTO EXPRESSO COMUNICAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL COORDENAÇÃO-GERAL: PAULO VILELA, PEDRO VILELA E RODRIGO DE ANGELIS EDIÇÃO: KARLA MONTEIRO ASSISTENTE EDITORIAL: LUIZA BAGGIO TEXTOS: ANIVALDO MIRANDA, DEISY NASCIMENTO, HYLDA CAVALCANTI, KARLA MONTEIRO, LUIZA BAGGIO, MARIANA CARVALHO E MARIANA MARTINS PROJETO GRÁFICO: MÁRCIO BARBALHO DIAGRAMAÇÃO: RAFAEL BERGO FOTOS: ALMACKS LUIZ SILVA, BIANCA AUN, BICHO CARRANCA, EDSON OLIVEIRA, GUILHERME BARBOSA, KEL DOURADO, LÉO BOI, MANUELA CAVADAS, MÁRCIO COELHO, OHANA PADILHA, ARQUIVO CBHSF, ARQUIVO JOSÉ RAIMUNDO E ARQUIVO GALERIA ESTAÇÃO (GERMANA MONT-MOR, GISELLI GUMIERO E JOÃO LIBERATO) ILUSTRAÇÕES: ANDRE FIDUSI E CLERMONT CINTRA REVISÃO: ISIS PINTO IMPRESSÃO: ARW GRÁFICA E EDITORA TIRAGEM: 5000 EXEMPLARES

SU Páginas Verdes

“Combinado não sai caro”

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DIREITOS RESERVADOS. PERMITIDO O USO DAS INFORMAÇÕES DESDE QUE CITADA A FONTE. SECRETARIA DO COMITÊ: RUA CARIJÓS, 166, 5º ANDAR, CENTRO BELO HORIZONTE - MG CEP: 30120-060 - (31) 3207-8500 secretaria@cbhsaofrancisco.org.br

Crime Ambiental

Fragmentos de uma tragédia

ATENDIMENTO AOS USUÁRIOS DE RECURSOS HÍDRICOS NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO: 0800-031-1607 ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: comunicacao@cbhsaofrancisco.org.br

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Ciência

Navegar é preciso

Arte

Realismo fantástico

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08 20 32 42


MÁRIO 10

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Geração de Energia

Gestão

Teia de Luz

Saída de emergência

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28

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Meio Ambiente

Eleição

Perfil

A mãe d’água pede respeito

O Parlamento das Águas

A grande pauta

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Coluna Social

Ensaio

Aconteceu

Caiu na rede 3


Édson Oliveira

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Edi torial ATENTOS E FORTES Enquanto fechamos a primeira CHICO de 2021, o Brasil ultrapassa a triste marca das 450 mil mortes por COVID-19. Diariamente estão morrendo mais de quatro mil pessoas, como se 20 aviões caíssem no país todos os dias. Mas é preciso resistir, seguir em frente, contar a nossa história. Este ano é de eleição no Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). Serão eleitos os 62 novos membros do plenário. Para celebrar a democracia, trazemos nesta edição um raio-X do “Parlamento das Águas”. A CHICO também não esqueceu Brumadinho. Em 25 de janeiro deste 2021, a tragédia que matou quase três centenas de pessoas e destruiu a vida no Rio Paraopeba, afluente do Velho Chico, completou dois anos. O que aconteceu de lá para cá? Quem pagou pelo crime? Saiba tudo na reportagem “Fragmentos de uma tragédia”. E, falando em traumas ambientais, fomos investigar ainda o que está se passando no sobrecarregado Sistema Integrado Nacional, que conecta a produção de energia nas hidrelétricas do país. E mais: um giro pela Lagoa de Itaparica, onde um projeto capitaneado pelo CBHSF vem ajudando a recuperar e revitalizar o mais importante berçário de peixes do São Francisco; as andanças do jornalista José Raimundo, o repórter da TV Globo que palmilhou o Velho Chico; a vida e a obra de dois artistas do sertão que hoje fazem sucesso internacional. E, para completar, embarque nas aventuras da Expedição Científica do Baixo São Francisco. Em tempos sombrios, “Navegar é preciso”. Boa Leitura!

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A Palavra do Presidente

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Bianca Aun

Subir o helicóptero Já está se tornando recorrente a cada ano a sucessão de volumes críticos de água nos reservatórios das hidrelétricas situadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Cenários antes quase que típicos da região semiárida do Nordeste estão se tornando perigosamente comuns em todo o território brasileiro. Esses baixos volumes, decorrentes de grandes mudanças no regime de chuvas do país, estão interferindo cada vez mais na regularidade da geração hidrelétrica e sua consequente distribuição no Sistema Interligado Nacional, uma notável conquista da engenharia brasileira, que, no entanto, não está livre das vulnerabilidades decorrentes do clima. Nos últimos meses, por exemplo, a região Nordeste assumiu um papel de inusitada relevância na exportação de energia para as demais regiões do sistema, destacando-se o fato de que, nesse contexto, a energia eólica passou a ter um papel cada vez mais importante na manutenção da regularidade do Sistema Interligado Nacional. Porém, na contramão dessa novidade, que tem uma conotação positiva, verificou-se, no entanto, uma preocupante exportação de energia a partir das hidrelétricas do Rio São Francisco justo quando, ao final do ano passado, o Velho Chico experimentava o seu primeiro ano de relativa normalidade de volumes de água em seus reservatórios e de vazões em sua calha depois de haver amargado uma difícil travessia de 7 anos de severa e incomparável estiagem que chegou a deixar ociosas, por falta de água, muitas turbinas de geração de energia hidrelétrica. Em dezembro de 2020 chegaram a ser defluídos, a jusante da Barragem de Xingó, por exemplo, volumes de até 3.000 metros cúbicos por segundo, uma vazão que pode ser comparável à vazão de cheias, tudo para atender às emergências externas à Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. A defluência não chegou a ameaçar com gravidade o volume dos reservatórios franciscanos, mas sem dúvida diminuiu os ganhos da difícil poupança de água dos anos anteriores em uma bacia hidrográfica de reconhecida vulnerabilidade, visto que o Rio São Francisco, além de atender a 70% da disponibilidade hídrica da Região Nordeste, atende também com quase exclusividade o Norte de Minas e o semiárido brasileiro.

Essa expressiva exportação de energia hidrelétrica do Sistema São Francisco para o Sistema Interligado Nacional foi tão inusitada que, para torná-la factível, foi preciso “flexibilizar” a Resolução 2081 adotada pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico em 2017, dada a excepcionalidade da operação. Nada garante, portanto, se medidas de largo alcance estratégico não forem idealizadas e postas em prática, que tais “excepcionalidades” não voltem a ocorrer e cada vez com maior frequência. Resta saber, no entanto, se em função da franca aparição dos efeitos decorrentes do aquecimento global, haverá espaço de manobra suficiente para gerir o Sistema Interligado Nacional em um cenário em que, além do efeito estufa planetário, o Brasil continue queimando florestas, devastando biomas essenciais e usando com grau inaceitável de irracionalidade as suas águas. Quando o Brasil como um todo começa a se parecer com o seu semiárido em termos climáticos é porque alguma coisa está correndo fora dos trilhos. E quando o semiárido, em termos hídricos, é chamado para socorrer, mesmo que em ocasiões excepcionais, a segurança energética do país, então o nível das ameaças que nos rondam estão se elevando de forma preocupante. Daí que, tanto o Operador Nacional do Sistema (ONS) quanto, de resto, o setor elétrico como um todo e a comunidade nacional que se envolve com a gestão das águas, da energia e do meio ambiente estejam chamados, a partir de agora e mais do que nunca, para subir o helicóptero e começar a reavaliar estrategicamente o cenário como um todo com vistas a se adaptar às mudanças climáticas e preparar o Brasil para os seus enormes dilemas ambientais, hídricos e energéticos.

Anivaldo Miranda Presidente do CBHSF

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Páginas Verdes

“Combinado não sai caro” Entrevista: Luiza Baggio / Foto: Bianca Aun

Engenheiro civil, doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o mineiro Leonardo Mitre está capitaneando um dos projetos mais importantes para a saúde do Velho Chico: o Pacto das Águas. Mesmo enfrentando longos períodos de seca, degradação ambiental e consequente escassez hídrica, o Rio São Francisco segue sendo fonte de vida para múltiplos atores. Regulamentar a partilha justa de suas águas nunca foi tão urgente. Iniciativa do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), o Pacto das Águas é exatamente o que o nome indica, um pacto firmado com a finalidade de evitar conflitos futuros. A CHICO entrevistou Mitre para falar sobre a sua missão. Qual será o principal resultado do Pacto das Águas? O Pacto é o instrumento político e institucional capaz de garantir que o Plano Diretor de Recursos Hídricos da BHSF saia do papel? A ideia é de o Pacto das Águas motivar os atores da política de recursos hídricos da bacia a atuarem de uma forma mais articulada e integrada. Assim será possível que todas as ações, não só as que estão previstas no Plano de Recursos Hídricos, como também as relacionadas à gestão necessárias de serem implementadas na bacia, para que assim sejam feitas e de uma forma mais harmônica entre as diferentes unidades da federação. Vai ser fácil colocar governadores, o Comitê e o governo federal em torno de uma mesa para firmar acordos estratégicos para a gestão das águas do São Francisco? Esse é um ponto interessante e fundamental para que o Pacto das Águas dê certo! Os políticos com poder de tomada de decisão devem se envolver com o Pacto das Águas da bacia do São Francisco. Será uma situação difícil, pois vai envolver o Distrito Federal mais todas as unidades da federação da bacia (Minas Gerais, Bahia, Goiás, Pernambuco, Alagoas e Sergipe), mais os estados que recebem as águas da transposição (Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte). Além da dificuldade de conciliar agendas, esses atores terão que articular e pactuar seus diferentes interesses para chegar em um objetivo comum, que é ter disponibilidade de água para todos. Por onde o Pacto das Águas deve começar? O Pacto das Águas da bacia do São Francisco inicia pela definição do primeiro tema para discussão e pactuação. Considerando que deverão ser celebrados acordos para cada tema específico, é fundamental definir um primeiro tema para a discussão e que seja possível integrar os interesses dos atores da bacia com vistas a atingir um objetivo comum. Ao escolher o tema de início é fundamental que todos estejam de acordo com as ações e os compromissos a serem assumidos, pois não se trata apenas de estabelecer vazões alocadas e de entrega, mas sim de compromissos de ações conjuntas e em prol da bacia. Deve ser encarado como um processo, com etapas a serem seguidas antes de sua assinatura e com ferramentas de monitoramento e de revisão ao longo do tempo. 8

No debate da Plenária que aprovou a Resolução que institui a ideia do Pacto das Águas, o ponto mais polêmico referia-se às chamadas "vazões de entrega" dos rios afluentes à calha central. Há razão para se temer a implantação dessas vazões? Eu não vejo razão para temor! Quem vê a “vazão de entrega” como polêmica tem a ideia de que ela pode restringir os usos em determinados estados ou bacias. Mas eu vejo exatamente pelo lado contrário, pois a partir do momento em que são definidas alocações de vazões para uma determinada bacia ou sub-bacia e são estabelecidas as vazões que vão continuar escoando para jusante, os usuários daquela área terão maior segurança hídrica para captar suas vazões. Então, na verdade, ao determinar a alocação de água e uma “vazão de entrega” aumenta-se a garantia de disponibilidade para os usos daquela bacia. Ao invés de restringir, na verdade o que está sendo feito é aumentar a segurança e garantia para os que ali estão. Para haver Pacto é preciso estabelecer uma base comum mínima em relação aos instrumentos de gestão da água no território da BHSF. Como o senhor avalia o estado da arte dessa gestão nos estados ribeirinhos? A bacia do São Francisco tem diferentes níveis de gestão e de implementação dos instrumentos definidos na Lei das Águas e são utilizadas diferentes fontes de informações. Por exemplo, ao longo da bacia são consideradas diferentes bases de dados, diferentes critérios para a outorga e cobrança pelo uso da água, entre outras situações. O que temos hoje é uma disparidade na forma de implementação dos instrumentos de gestão. Assim, um dos pontos do Pacto é harmonizar a implementação desses instrumentos. Em quais bacias hidrográficas do mundo essa ideia de Pacto prosperou? Para contextualizar a proposta de modelo para o Pacto, foram analisados outros pactos já existentes, como o Acordo do Rio Mekong, o Tratado de Ganges, Pacto do Rio Colorado, Pacto das Águas do Ceará e Pacto Nacional pela Gestão das Águas, além das propostas de Pactos da Bacia do Rio São Francisco nos planos decenais de 2004-2013 e 2016-2025. Vale destacar o Pacto do Rio Colorado, que é considerado o rio mais litigado do mundo, com batalhas judiciais sobre a repartição de suas águas que duram décadas. É o que mais se aproxima da situação do São Francisco, com um acordo entre diferentes unidades da federação, assinado em 1922, sendo o primeiro de maior relevância e encontra-se em funcionamento até os dias de hoje. As águas do Colorado são divididas entre sete estados norte-americanos e o México, onde se localiza a sua foz. Grandes cidades como Los Angeles, Las Vegas e Phoenix, vários projetos de irrigação e algumas usinas hidrelétricas dependem dessas águas.


Com o agravamento da crise hídrica no Brasil voltam a aumentar as tensões decorrentes dos usos múltiplos das águas do São Francisco, sobretudo entre geração hidrelétrica e demais segmentos usuários da BHSF, entre eles a vida aquática. Como se antecipar para que as tensões não virem conflitos? A partir do momento em que se tem critérios do uso da água acordados entre os diferentes setores e estados, tem-se naturalmente uma minimização das tensões. É aquele velho ditado: “o que é combinado não sai caro”. Vejo a questão dos acordos de uso da água em que um processo de alocação de água adequado poderá evitar conflitos. Por exemplo: o cumprimento de metas de vazões de entrega dos principais afluentes ao Rio São Francisco irá dar maior garantia de segurança hídrica para todos os usos de água na bacia. Dessa forma, irá incrementar a segurança hídrica e minimizar o risco de desabastecimento das demandas existentes. A recorrência preocupante de baixos volumes nos reservatórios das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste é um reflexo da queima de florestas no Brasil?

Prosseguindo esse novo padrão hidrológico, é o momento de uma reavaliação do Sistema Interligado Nacional (SIN)? Vejo o SIN como algo muito positivo. A grande característica do Sistema é poder gerir os reservatórios e o sistema elétrico nacional em função da sazonalidade dos períodos chuvosos no Brasil. Assim, o SIN possibilita que a energia elétrica percorra o Brasil de Norte a Sul, Leste a Oeste, otimizando o aproveitamento energético das hidrelétricas. Nessa imensa malha, formada pelas redes de transmissão e de distribuição de energia elétrica, estão conectadas as usinas de geração de energia e os consumidores. O SIN divide-se em quatro subsistemas: Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e Norte. As atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica no SIN são executadas pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), que segue regras estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), as quais têm por objetivo combinar o menor custo e as melhores condições de segurança de abastecimento para todos os consumidores.

Essa é uma questão difícil de responder, pois se tem que avaliar cada situação. No caso da bacia do São Francisco cada reservatório é uma situação diferente. Não dá para fazer uma avaliação de forma genérica. É preciso analisar uma série de fatores que influenciam no balanço hídrico e na sazonalidade das vazões de uma bacia.

Leonardo Mitre é doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos, e elaborou uma proposta de Pacto das Águas para a bacia do Velho Chico

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Geração de Energia

Teia de Luz

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Geração de energia

Nos últimos anos, a região Nordeste vem exportando energia para o restante do país. Qual o impacto disso no Rio São Francisco? Quais as vantagens e desvantagens do Sistema Interligado Nacional? Criado em 1998, o SIN ainda pode ser considerado uma alternativa sustentável? Por Hylda Cavalcanti Fotos: Manuela Cavadas e Edson Oliveira Ilustração: Clermont Cintra 11


Nos últimos anos, a região Nordeste vem se tornando exportadora de energia elétrica para o resto do país. Em 2019, foram repassados para o Sul e Sudeste cerca de quatro mil megawatts (MW). No ano seguinte, 2020, cinco mil MW. Até 2023, conforme as previsões, serão 13 mil MW. A razão disso é simples. O Nordeste produz muito mais energia do que consome: 11,5 mil MW contra 65 mil MW médios no Sul e Sudeste. Diante desse quadro, sobram perguntas. A condição de exportadora de energia é boa ou ruim para a região? Quais os impactos da sobrecarga de produção de energia no Rio São Francisco? Como distribuir melhor a energia nos estados brasileiros? E, principalmente, o Sistema Interligado Nacional, o SIN, festejado como grande inovação à época da implantação, ainda é viável? Segundo a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), do total de energia enviada para fora, 40% saem das usinas implantadas no Velho Chico. Outros 40% são gerados por eólicas e os 20% restantes por usinas térmicas, solares e hidráulicas. Implantado em 1998 e vinculado à Operadora Nacional do Sistema (ONS), o SIN possibilita o vai-e-vem de energia. Tratase de uma grande rede, que se estende por boa parte do Brasil, congregando sistemas de geração e uma malha de transmissão de eletricidade entre os quatro subsistemas: Nordeste, SudesteCentro-Oeste, Sul e Norte. Olhando hoje para tal capacidade instalada, destaca-se a produção de energia hidráulica na bacia hidrográfica do São Francisco, o que acende o alerta: o Velho Chico está no limite. E, forçar esse limite, de acordo com o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, “é trilhar o caminho de grandes conflitos, em futuro breve, envolvendo os setores que representam os demais usos múltiplos das águas franciscanas, como abastecimento humano, dessedentação animal, navegação, pesca artesanal, indústria, agricultura, turismo, aquicultura e, sobretudo, os usos necessários para manter a saúde da vida aquática, visto que o São Francisco é um ecossistema vivo, não um canal de cimento.” Segundo o diretor de Operação da Chesf, João Henrique Franklin, a vazão de 2.900 metros cúbicos por segundo (m³/s) é considerada normal, mesmo sendo a maior praticada nos últimos sete anos (a vazão média atual é de 2.769 metros cúbicos por segundo): “Enfrentamos uma crise hídrica que agora chegou ao seu fim. Estamos com Sobradinho normalizado. Seguimos as determinações da ONS e respeitamos os usos múltiplos das águas e as ocupações regulares, sob o reconhecimento dos órgãos competentes”. Além dessa vazão média, as vazões defluentes também estão sendo objeto de estudo. Sobradinho, por exemplo, estava no último dia 26 de abril com uma vazão defluente de 1.300 metros cúbicos por segundo. Xingó, no mesmo dia, registrou uma vazão defluente de 1.116 metros cúbicos por segundo. Historicamente, a vazão mínima defluente a jusante de Sobradinho foi fixada pelo Ibama em 1.300 metros cúbicos por segundo. No auge da estiagem que se estendeu de 2013 a 2019 chegou-se a praticar a jusante de Xingó vazões defluentes de 550 metros cúbicos por segundo, que causaram enormes impactos socioambientais e econômicos, sobretudo no Submédio e Baixo São Francisco, inclusive com o agravamento da intrusão salina na foz do São Francisco e a dramática piora da qualidade das águas em todos os trechos do rio, de Minas Gerais até Alagoas e Sergipe. Para contornar essa crise, quando o volume dos reservatórios chegou a se aproximar criticamente do volume morto, foi construída por consenso a Resolução 2081, adotada pela diretoria da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), em 2017. Ocorre que, para atender à situação atualmente preocupante dos reservatórios das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e o ONS solicitou, em dezembro de 2020, uma “flexibilização” dessa resolução, praticando a jusante de Xingó vazões de até 2.700 metros cúbicos por segundo que, em certa medida, baixaram os volumes dos principais reservatórios do 12

Em 2020 o Nordeste exportou 5.000 MW de energia elétrica para as regiões Sul/Sudeste, através do SIN, principalmente com a produção de energia hidráulica, na bacia do São Francisco, e dos parques eólicos instalados na região


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São Francisco, neutralizando em parte um ganho de água que o sistema São Francisco levou sete anos para acumular. Essas manobras imprevisíveis do SIN cobram alto preço ambiental ao São Francisco, demostrando as vulnerabilidades do próprio sistema e a necessidade de serem adotadas medidas que diminuam a dependência do Velho Chico. Na opinião do engenheiro hídrico Pedro Antonio Molinas, consultor e colaborador do CBHSF, a exportação de energia hidrelétrica para o Sudeste, particularmente oriunda da cascata de usinas do São Francisco, é exportação de água, que deveria estar sendo utilizada nas demandas locais. “Não se trata de ser mesquinho nem bairrista, sucede que essa água não tem substituto, isto é, se houver um superávit de energia no Sudeste, o que se repõe é energia, não água”, comentou. “Contra esse fato o CBHSF vem lutando há mais de uma década e grande parte da regulação atual nesse tema é fruto do esforço do CBHSF”. De acordo com Molinas, é usual que ocorram grandes chuvas na bacia do São Francisco, sem reflexo nas vazões. As águas, represadas nos reservatórios são turbinadas quando acaba a estação chuvosa da Amazônia e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí para de produzir energia. “Quem rege as cheias no São Francisco não é o clima local, é a produção energética de Tucuruí. Esse descompasso entre chuva e cheia causa sérios problemas ambientais e está hoje promovendo importantes degradações, particularmente no Baixo São Francisco”, explicou. Ele afirmou, ainda, que o SIN é imprescindível para conferir segurança energética num país continental, com uma matriz energética onde ainda prepondera a energia hidráulica. “Infelizmente esse sistema fere sensivelmente o planejamento por bacias hidrográficas, que é o que preconiza nossa legislação setorial e, sobretudo, confere o dia a dia da gestão hídrica a um único usuário, o setor elétrico, na pessoa do ONS. A professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA),Yvonildes Medeiros, tem outra visão. Como o SIN atua com tudo interligado, para ela, é natural que em alguns momentos o Nordeste esteja exportando energia hídrica e em outros momentos importando. “A gente tem de trabalhar no sentido de um elevar o outro para que o país consiga se desenvolver e possamos atuar de forma compatível”, ressaltou, chamando a atenção, porém, para que sejam observadas, com essa exportação, a vida aquática do rio, a população ribeirinha e a agricultura. O futuro é logo ali Um estudo divulgado em março pelo Instituto Acende Brasil, voltado para o desenvolvimento de ações e projetos que aumentem o grau de transparência e sustentabilidade do setor elétrico, apontou para o risco em um futuro iminente: as mudanças climáticas nas próximas três décadas podem causar perdas econômicas relevantes ao setor elétrico, impactando negativamente as operações de geração, transmissão e distribuição de eletricidade. O trabalho analisa os cenários até o ano de 2050, levando em consideração que o aquecimento global afetará, sobretudo, o regime de chuvas. Com isso, torna-se urgente incorporar as mudanças do clima à lógica de mercado, com maior investimento em pesquisa. Antecipar a ocorrência de eventos extremos vai ajudar a planejar planos de resposta de equipes de manutenção e dar mais eficiência a eventuais reparos. Além disso, governos e iniciativa privada devem buscar soluções tecnológicas que aumentem a resiliência das operações, como a adoção de redes inteligentes. “Esse é um tema que deveria ter prioridade de alocação de recursos nas verbas de pesquisa e desenvolvimento que são cobradas do consumidor de energia”, disse Cláudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil. Ele explicou que 65% da energia produzida no Brasil vem de hidrelétricas, o que torna o sistema muito suscetível às condições hidrológicas. Outro alerta é uma eventual necessidade de ajuste 14

na garantia física de usinas já existentes, devido às alterações do clima, além da perda de receitas e qualidade nos serviços de transmissão e distribuição. Lembrou também que o Brasil vive nos últimos oito anos um período de seca que afeta a geração de energia hidrelétrica. “Esses anos que estamos vivendo são os piores da série histórica, com recordes de secas. Há mil razões pra isso, mas uma delas, sem dúvida, é a questão da mudança climática”, disse, ao destacar que é necessário monitorar desde já os dados de chuvas e vazões de rios para identificar possíveis alterações estruturais em seus padrões e planejar o futuro do setor. A energia do vento A prática de exportação de energia do Nordeste para outros locais do país foi iniciada cinco anos atrás, com a expansão da geração eólica na região. Em novembro de 2019, fatores específicos fizeram esse envio de energia atingir volume maior. O primeiro deles foi a barragem de Sobradinho, que teve a maior vazão desde 2012. Outro foi a produção acentuada de energia das eólica. Também contribuiu para a função “exportadora” o aumento das interligações que podem transportar a energia do Nordeste para as outras regiões. Em 2001, quando o Nordeste enfrentou o racionamento de energia, houve redução considerável no volume das águas do São Francisco. Na época, não existiam interligações para “importar” mais energia e não existiam térmicas instaladas. Em 2020, o reservatório de Sobradinho alcançou o patamar de 94% do seu volume útil. O reservatório começou o ano com cerca de 30% de volume útil, até chegar a 94% em maio. Depois se iniciou a redução, terminado o ano com 46%. “Atualmente, a capacidade de exportação de energia elétrica do Nordeste é da ordem de 6 mil MW médios. Ou seja, hoje, estamos próximos de atingir esse limite”, admitiu o diretor de Operação da Chesf, João Henrique Franklin. Do ponto de vista da energia eólica, segundo o gerente executivo do Centro Regional de Operação Nordeste da ONS, Flávio Lins, o Nordeste é responsável por 85% dessa matriz no país. “Até 2023, o Brasil terá 19,9 GW de capacidade de geração eólica instalada. A fonte hoje já representa 9,2% da potência total da matriz elétrica brasileira, atrás apenas das hidrelétricas”, frisou. “Esse potencial nordestino pode, a médio prazo, proporcionar segurança e menor impacto ambiental, aumentar ainda mais a contribuição da região”, afirmou, na mesma linha, o vice-diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), Ildo Sauer. Mas a geração de energia eólica também é alvo de críticos que veem prejuízos ambientais e privatização de áreas comunitárias para a criação dos parques. Além disso, ainda há dificuldades na transmissão energética. Para o coordenador do Centro de Energia Eólica da PUC-RS, Jorge Antônio Villar, existem problemas para a expansão desse tipo de geração de energia no Nordeste. “Estudos realizados no Ceará mostram que os parques instalados no estado desestruturaram a dinâmica ambiental e ecológica de dunas locais, além de privatizarem áreas localizadas entre comunidades litorâneas e as praias sobre as quais elas tinham direito natural”, afirmou. “O crescimento da energia eólica deve contar com uma maior preocupação relativa aos métodos e procedimentos e uma avaliação mais rigorosa dos impactos socioambientais”. Preocupados com a situação e interessados em ampliar as energias renováveis no país, deputados federais lançaram, recentemente, uma frente parlamentar na Câmara dos Deputados voltada para o tema. São, no total, 212 deputados que querem concentrar no Congresso os principais pleitos do setor, para providenciar mudanças legislativas que possam ampliar as energias eólica e solar. O presidente da frente parlamentar, deputado Danilo Forte (PSDB-CE), afirmou que existe “uma convicção no mundo todo de que a proteção do clima e uma


menor geração de gases de efeito estufa passam pela produção de energia limpa”. Motivo pelo qual, destacou ele, “a frente é de interesse de todos, parlamentares de esquerda e direita, gente do PCdoB ao PSL”. SIN – ou não? Mesmo com tantos riscos para os usos múltiplos envolvendo a exportação de energia pelo Nordeste, o Sistema Integrado Nacional ainda é aclamado no mundo inteiro. O SIN consiste num sistema hidro-termo-eólico de grande porte, com predominância de usinas hidrelétricas e com múltiplos proprietários. É constituído por quatro subsistemas: Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e a maior parte da região Norte. A interconexão dos sistemas elétricos, por meio da malha de transmissão, propicia a transferência de energia entre subsistemas, permite a obtenção de ganhos sinérgicos e explora a diversidade entre os regimes hidrológicos das bacias. A integração dos recursos de geração e transmissão permite o atendimento ao mercado com segurança e economicidade. A capacidade instalada de geração do SIN é composta, principalmente, por usinas hidrelétricas distribuídas em dezesseis bacias hidrográficas nas diferentes regiões do país. Nos últimos anos, a instalação de usinas eólicas, principalmente nas regiões Nordeste e Sul, apresentou um forte crescimento, aumentando a importância dessa geração para o atendimento do mercado. Por meio do SIN, o Brasil é um dos poucos países que tem essa característica de ter sua transmissão de energia praticamente toda interligada. Apenas 1,7% da capacidade de produção de eletricidade do país está fora do sistema (áreas localizadas principalmente na região amazônica). São mais de 170 mil quilômetros de linhas de transmissão existentes, num processo que traz várias vantagens para a distribuição de energia, como o aproveitamento da sazonalidade das chuvas e maior detalhamento, planejamento e programação das transmissões, a partir da verificação das regiões de maior demanda para manutenção do sistema.

Para o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, as energias renováveis, como a hidreletricidade, bioenergia, eólica e solar, respondem por 47% do fornecimento de energia primária no Brasil, quando a média mundial é de 19%, e tendem a se ampliar. “Em relação à matriz elétrica, responsável pela geração de energia no país, as fontes limpas e renováveis representam 83%”, disse. As reservas Conforme o boletim mais recente da ONS, os volumes dos reservatórios devem atingir até o fim do mês de maio 82,6% no Norte; 65,7% no Nordeste; 58,2% no Sul; e 34,7% no Sudeste/ Centro-Oeste. Com relação às afluências, o documento indica a ocorrência de chuvas abaixo da média em todas as regiões do país. A previsão de carga no SIN apresenta elevação de 13,3%, com 68.738 MW, na comparação com o mesmo período no ano passado. Esse percentual deve ser visto de forma conservadora, já que é influenciado pelas reduções de carga observadas em abril de 2020, quando foi registrada a maior queda de carga do ano em razão da intensificação das medidas de isolamento social no período. Informações da ONS do início do mês são de que os armazenamentos nos reservatórios equivalentes aumentaram em todos os subsistemas, com exceção do Sul, devido ao volume de chuvas verificado no mês de março. Entretanto, a exemplo do mês anterior, o cenário ainda merece atenção, fato evidenciado pela permanência de afluências abaixo da média histórica na maior parte do país. Já no tocante à energia eólica, o Nordeste registrou recorde de geração no fim de setembro, mês em que os ventos na região são mais fortes e frequentes. De acordo com o coordenador de energia da Federação das Indústrias do Ceará, Joaquim Rolim, como a geração eólica tem crescido ano a ano, o Nordeste passa em vários momentos do dia e do mês a conseguir ser exportador de energia nesse segmento. “Então a energia que pro Nordeste é normalmente um insumo, passa a ser um vetor econômico”, destacou ele.

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Nordeste exportador de energia As águas do São Francisco e a força dos ventos aumentaram a produção média de energia nos últimos anos.

13 mil

Megawatts repassados

Segundo informações da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), o Nordeste tem se firmado, desde 2016, como região exportadora de energia para o restante do país.

5 mil 4 mil

Fonte: ONS

2019 16

2020

2023

(previsão)


40% Eólicas

Do total que está sendo enviado, 40% sai das usinas da CHESF que têm como matéria-prima as águas do Velho Chico. Outros 40% são gerados por eólicas e os 20% restantes saem de usinas térmicas, solares e outras usinas hidráulicas instaladas no Nordeste.

20%

Usinas térmicas e solares e outras usinas hidráulicas

40%

Hidrelétricas 17


Gestão

Saída de emergência 18


Iniciativa pioneira, a Sala de Crise do Rio São Francisco virou modelo para a gestão das águas no país Por Deyse Nascimento / Ilustração: Andre Fidusi Corriam tempos difíceis para o Velho Chico, com uma seca brava que se arrastava desde 2012. Por diversas vezes, o reservatório de Sobradinho ameaçara descer ao volume morto. Somando-se os quatro reservatórios que alimentam usinas hidrelétricas na bacia do São Francisco, o sistema estava operando com cerca de 5% de seu volume útil. Foi nesse contexto que a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) decidiu, em 2013, atendendo à demanda do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), criar uma Sala de Crise. A iniciativa, pioneira de um novo modelo de gestão de crises hídricas, deu tão certo que evoluiu para Sala de Acompanhamento - e a ideia se espalhou pelo país. “Com o sucesso, outras Salas de Crise foram instaladas em bacias que atravessavam eventos de cheias e de secas. Atualmente, há seis Salas de Crise em funcionamento: Tocantins, Hidrovia TietêParaná, Cheia do Madeira, Pantanal, Paranapanema e Região Sul”, comentou Joaquim Gondim, superintendente da ANA. “Há também outras quatro Salas de Acompanhamento: São Francisco, Grande, Paranaíba e Paraíba do Sul”, acrescentou. A Sala de Crise do Velho Chico seguiu em reuniões periódicas até 2019, quando o sistema hídrico do São Francisco, enfim, se recuperou, e foi criada a Sala de Acompanhamento. Ao longo dos anos, muitas catástrofes foram evitadas. Para garantir a continuidade de abastecimento de água de Aracaju (SE), por exemplo, houve intensa articulação para conseguir importar de São Paulo um maquinário de captação flutuante que havia sido utilizado no colapso do sistema Cantareira. Um dos grandes feitos da Sala de Crise, no entanto, foi a criação do Dia do Rio, que suspendia por um dia na semana as captações de água no São Francisco, exceto para abastecimento humano e animal. Vale destacar que a existência da Sala de Acompanhamento, teve, dentre tantos outros méritos, o de evitar uma enxurrada de ações judiciais que naturalmente surgiriam no contexto de conflitos esboçados pela crise hídrica principalmente entre os usuários que estavam à montante e à jusante dos reservatórios, na medida em que a construção dos consensos evitou o difícil cenário dos confrontos. Anivaldo Miranda, presidente do CBHSF, ressalta que a maneira mais eficiente de se evitar a eclosão dos conflitos pelo direito de uso das águas é o diálogo. “Antecipar-se a eles mediante o diálogo e a construção de acordos baseados no princípio de que, nos contextos de crise, todos devem correr riscos iguais e fazer sacrifícios salvaguardando tão somente o uso das águas para abastecimento humano e dessedentação animal como prioridades absolutas”.

Foi graças a esse aprendizado democrático e compartilhado que a Sala de Crise construiu os fundamentos da Resolução Ana n° 2.081, de 2017, que estabeleceu regras mais previsíveis para a operação dos reservatórios de água do Velho Chico e que o CBHSF considera como um dos passos mais concretos até agora dados para o início do Pacto das Águas proposto para consolidar na bacia as bases de uma segurança hídrica e um desenvolvimento sustentável com caráter satisfatório e duradouro para todo o transcorrer do século 21. Hoje, o objetivo da Sala de Acompanhamento, como o próprio nome indica, é acompanhar a resposta do sistema hídrico do São Francisco às condições de operação. Caso seja necessário, a instância atua para identificar, planejar e viabilizar medidas de adaptação e mitigação de eventuais impactos. Nos tempos difíceis da seca, as reuniões chegavam a ser semanais. Agora acontecem mensalmente, na primeira terça-feira de cada mês. Para Gondim, os encontros periódicos por videoconferência são inclusivos, pois permitem a participação de pessoas de diferentes regiões do país. “As reuniões estão disponíveis e são transmitidas pelo canal da ANA no YouTube”, contou. As discussões das Salas de Crise são baseadas no compartilhamento da melhor informação disponível de dois aspectos centrais: condições climatológicas e hidrológicas observadas e previstas, além da operação dos reservatórios, observada e prevista em diferentes cenários de vazões defluentes (liberadas pelos reservatórios). A partir disso, os atores locais manifestam impactos verificados ou potenciais, assim como são avaliadas medidas adicionais necessárias e passos para sua implantação. Nessa discussão, os órgãos gestores dos estados, as autoridades locais e os Comitês de bacias têm papel fundamental. De acordo com Anivaldo Miranda é de suma importância a articulação permanente para discutir a questão hídrica de forma democrática e participativa, como manda a Lei n° 9.433, de 8 de janeiro de 1997, mais conhecida como Lei das Águas, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). “A ANA, tendo o mérito de acatar, na hora certa, essa demanda do Comitê, consolidou o funcionamento de um fórum de gerenciamento de crises que está até hoje integrando todos os principais atores que se envolvem com a questão hídrica, incluindo o poder público em seus três níveis, União, estados e municípios, bem como os segmentos dos usuários das águas, da sociedade civil e as universidades”, finalizou.

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Crime Ambiental

Fragmentos de uma tragédia Dois anos após o rompimento da barragem de Brumadinho, a Vale e o governo de Minas Gerais assinam acordo bilionário de reparação, 11 pessoas seguem desaparecidas e quem ficou para contar a triste história tenta reconstruir a vida devastada pela lama Por Luiza Baggio Fotos: Léo Boi Ilustração: Clermont Cintra 20

Aquela manhã de sexta-feira, 25 de janeiro de 2019, parecia iniciar um dia igual a outro em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Por volta das 13 horas, no entanto, a barragem da mina do Córrego do Feijão, pertencente à Vale, estourou, cuspindo 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Em cerca de 60 segundos, jorrando a 80 quilômetros por hora, o tsunami alcançou os prédios administrativos, entre eles o refeitório. Era hora do almoço. Atropelando tudo e todos, a avalanche seguiu o seu caminho de destruição. Sete quilômetros depois, atingiu o Rio Paraopeba, um dos afluentes do São Francisco. Poucas tragédias coletivas podiam ser comparadas ao que se via ali. Ao fim do macabro dia, quase três centenas de pessoas encontravam-se desaparecidas e a tragédia de Brumadinho entrava para a história como a maior catástrofe da mineração no Brasil. Dois anos se passaram, completos em 25 de janeiro de 2021, com saldo de 270 mortes confirmadas e 11 pessoas ainda desaparecidas: o que aconteceu de lá para cá? Quem pagou pelo bárbaro crime? Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragem, até agora, só a Vale saiu ganhando. Em 4 de fevereiro último, sem consultar os movimentos sociais envolvidos na luta por justiça, o governo de Minas Gerais assinou um acordo com a mineradora: R$ 37 bilhões, com investimentos previstos em hospitais, na construção do rodoanel e no metrô de Belo


Horizonte. Apesar da cifra parecer polpuda, na verdade, ainda segundo o Movimentos dos Atingidos por Barragem, representa uma economia de R$ 17 bilhões para a empresa, em relação aos R$ 54 bilhões pedidos em ações de reparação. Ao ser questionado pela falta de transparência na negociação, o governador mineiro, Romeu Zema, economizou maiores explicações na imprensa: “Não prejudica ninguém, nem mesmo altera o andamento das ações individuais e criminais”, disse o gorvernador. “Infelizmente, a situação continua a mesma e o CBH do Rio Paraopeba segue excluído das negociações referentes ao rompimento da barragem da Vale em Brumadinho”, comentou o presidente da entidade, Ednard Tolomeu, que assumiu o mandato em outubro de 2020. “Não recebemos sequer uma cópia do acordo, mas garantimos que a celeridade das tratativas foi esplêndida. Nossa preocupação é em voltar a ter um rio com águas de qualidade e não mediremos esforços para alcançar esse objetivo”. O acordo entre o governo de Minas Gerais e a Vale foi concluído em apenas quatro meses. Para Romeu Zema, a celeridade consiste em virtude. Aos jornais, ele declarou ter visto “com bons olhos” a rapidez da tratativa. Já a mineradora afirma estar cumprindo com todas as obrigações, avançando no processo de indenização individual e por grupos, além de manter projetos socioambientais e socioeconômicos. “Desde as primeiras horas

após a ruptura, a empresa tem cuidado das famílias impactadas, prestando assistência para restaurar sua dignidade, bem-estar e meios de subsistência”, disse a Vale em nota. “Além de atender às necessidades mais imediatas das pessoas e regiões afetadas, atuamos também na entrega de projetos que promovam mudanças duradouras para recuperar as comunidades e beneficiar a população de forma eficaz”. Outro rio Um dos principais afluentes do Velho Chico, o Paraopeba, que se estende por 510 quilômetros e cruza 35 municípios de Minas Gerais, nunca mais foi o mesmo. Concluído no fim de 2019, um estudo científico publicado pela revista Science of the Total Environment, conduzido pelo biólogo Fabiano Thompson, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apontou a tragédia irreparável. O rio recebeu uma avalanche de ferro, alumínio, mercúrio e outras substâncias tóxicas. Suas águas se tornaram mais ácidas e, como consequência, veio a mortandade de espécies de peixes e plantas aquáticas. Dois anos depois, o Paraopeba ainda não deu sinais de vida. Conforme estudos periódicos do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), o rio não foi capaz de depurar os contaminantes. A água continua imprópria e sem condições de uso em toda a sua 21


extensão abaixo de Brumadinho. O IGAM realiza mensalmente o monitoramento da qualidade das águas superficiais e de sedimentos, com o objetivo de avaliar as alterações na qualidade e o avanço do material que estava depositado na mina Córrego do Feijão ao longo do curso de água e os níveis de poluição. Os últimos resultados divulgados, referentes às análises de fevereiro de 2021, mostraram que as águas do Paraopeba ainda apresentam padrões acima do recomendado de metais pesados, como ferro total e dissolvido, chumbo, cobre, manganês e alumínio. O parâmetro turbidez também é avaliado e sofreu oscilações devido ao período chuvoso que contribuiu para a remobilização do rejeito depositado no leito do rio. O IGAM reforça que ainda mantêm a recomendação de não utilização da água bruta do Rio Paraopeba para qualquer fim, como medida preventiva, no trecho que abrange os municípios de Brumadinho até o limite da UHE de Retiro Baixo, em Pompéu, a aproximadamente 250 km de distância do rompimento. Vida que não segue Para a população de Brumadinho, o tempo parou naquela cena trágica de dois anos atrás. O Corpo de Bombeiros continua trabalhando por lá, em busca das 11 vítimas que seguem desaparecidas. No Córrego do Feijão, comunidade que dá nome à mina, muita gente partiu e, quem ficou, enfrenta o vazio, o luto, a

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tristeza que não tem fim. Segundo os remanescentes, a Vale vem comprando os imóveis de quem decide ir embora e não faz nada com as casas. Com isso, Córrego do Feijão, antes um lugarejo turístico, cercado de montanhas e cachoeiras, está se tornando uma vila fantasma. Para seguir vivendo, o ex-funcionário da Vale, Sebastião Gomes, resolveu escrever um livro: “Na Tragédia da Lama, Sou Um Sobrevivente”, lançado pela editora Albatroz. Na hora do rompimento da barragem, câmeras de segurança flagraram Sebastião e o amigo Elias de Jesus Nunes tentando fugir desesperadamente, ziguezagueando numa caminhonete cercada de lama. “Achei que iria morrer naquele instante, mas senti a mão de Deus que pairou sobre mim e meus companheiros que estavam comigo”, disse. “Eu saí da Vale em outubro de 2019. É uma coisa que marcou demais, então optei por sair”. A tragédia também mudou a vida de Helena Taliberti, 62 anos. Ela pretendia se aposentar e curtir o neto que estava por vir. Mas, de uma vez, perdeu tudo: a filha, o filho, a nora, grávida de um menino que se chamaria Lorenzo, o ex-marido e a esposa deste. Sua família inteira encontrava-se hospedada na Pousada Nova Estância, soterrada pela lama. Da dor, Helena ergueu uma obra: o Instituto Camila e Luiz Taliberti. “Queremos dar voz às pessoas. É o contar, o falar para solucionar, para mudar uma realidade.”


O caminho do dinheiro R$ 9,17 bilhões Transferência de renda

Criação de um Programa de Transferência de Renda para os moradores das regiões atingidas, sucedendo o auxílio emergencial.

R$ 4,7 bilhões Bacia do Rio Paraopeba

Entre as ações estão a reforma e melhoria de todas as escolas estaduais e municipais, a conclusão de obras das Unidades Básicas de Saúde desses municípios, melhoria da Rede de Atenção Psicossocial e ações de promoção de emprego e renda.

R$ 6,55 bilhões Reparação socioambiental

O valor de R$ 1,55 bilhão será utilizado em obras para universalização do saneamento básico nos municípios atingidos e outros R$ 5 bilhões serão utilizados em obras de recuperação ambiental.

R$ 2,05 bilhões

Segurança hídrica na Grande BH Serão feitas obras nas Bacias do Paraopeba e do Rio das Velhas com a finalidade de garantir a segurança hídrica da Grande BH. As intervenções têm o objetivo de melhorar a capacidade de integração entre os sistemas Paraopeba e Velhas, evitando o desabastecimento.

R$ 4,95 bilhões

Construção de Rodoanel e melhorias no metrô Estão previstos projetos de mobilidade na RMBH que proporcionem melhorias na mobilidade também nos municípios da Bacia do Rio Paraopeba. Serão empregados recursos na construção do Rodoanel e para melhorias no metrô e na infraestrutura rodoviária.

R$ 4,37 bilhões

Investimentos em hospitais e outros Investimentos na melhoria de serviços públicos, que inclui ampliação e modernização dos hospitais João XXIII, Júlia Kubitschek e João Paulo II, e projetos de melhoria nas operações dos Bombeiros, Defesa Civil e polícias Militar e Civil.

Principais ações de reparação da Vale R$ 2 bilhões

Já pagos em indenizações civis ou trabalhistas

2,5 milhões

Total de rejeitos remanejado em m3, o equivalente a 25% do total vazado

106 mil

Auxílios emergenciais mensal

8.700

Pessoas já foram indenizadas

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Estruturas para cessar o carreamento de rejeitos para o Rio Paraopeba

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Barragens e diques a montante já completamente descaracterizados

1 bilhão

Litros de água distribuídos para uso doméstico, irrigação e dessedentação animal

5 milhões

Análises de água, solo e sedimentos realizadas

120

Estruturas geotécnicas monitoradas 24 horas por dia pelos Centros de Monitoramento Geotécnicos

3.200

R$ 5,89 bilhões

Animais domésticos, silvestres e de produção sob cuidados da Vale

No acordo também estão inseridos recursos que já tiveram sua aplicação iniciada pela Vale em projetos de reparação.

Fonte: Vale – dados de janeiro de 2021

Medidas emergenciais

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Meio Ambiente

Em 2017, a Lagoa de Itaparica secou, matando mais de 50 milhões de peixes. Três anos depois, com o esforço coordenado de várias entidades, capitaneadas pelo CBHF, a vida voltou a pulsar no importante berçário de peixes do Velho Chico Por Mariana Carvalho Fotos: Higor Soares e Kel Dourado A dantesca cena nunca saiu da cabeça dos moradores de Xique-Xique e Gentio do Ouro, no norte da Bahia. Em meados de 2017, a Lagoa de Itaparica, um dos principais berçários do Velho Chico, secou, virando um gigantesco deserto, com quase 80 mil hectares. E, sobre o chão rachado, padeceram mais de 50 milhões de peixes. O cheiro era insuportável. A tristeza, indizível. Com 24 quilômetros de extensão, o lagoão, uma das paisagens mais bonitas do Brasil, havia sumido. Quando cheia, podia ser avistado da Serra de Santo Inácio, com uma cadeia de dunas ao fundo, margeada por um vasto carnaubal. Segundo os moradores, já houvera períodos de seca brava, mas nada que se comparasse àquele cenário de desolação. “Foi uma das cenas mais tristes da minha vida, a gente caminhava quilômetros sobre um tapete de peixes mortos, outros agonizando”, lembrou o pescador José Pereira da Cunha, conhecido como Zé Cacunda. Outro morador da região, Domingos Pereira Guedes, também nunca viu nada igual: “Os animais criados pelas famílias daqui e que dependiam da lagoa berravam atrás das pessoas com sede. Meu coração dói só de lembrar”. Desde então, daquele famigerado 2017, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) vem batalhando pela recuperação da lagoa. E, agora, em 2021, finalmente será aprovado o Projeto Executivo de Limpeza da Lagoa de Itaparica, com o início das obras previsto para 2022. As primeiras imagens da tragédia chegaram ao CBHSF durante a XXXII Plenária Ordinária, em Recife (PE), com a exibição de um vídeo feito pelo professor de geografia, Railton Barbosa. “Quando recebi aquilo, compartilhei a situação com o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, e com a promotora de Justiça da Bahia, Luciana Khoury, e decidimos projetar o vídeo ali mesmo, para que todos vissem a gravidade da situação”, comentou Ednaldo Campos, coordenador da Câmara Consultiva Regional (CCR) do Médio São Francisco. De acordo com ele, a comoção foi geral. Ao fim do evento na capital pernambucana, já havia data marcada para uma reunião em Xique-Xique, envolvendo, além do CBHSF e das prefeituras locais, o Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) e Universidade Federal da Bahia (UFBA). 24

Edson Oliveira


A Lagoa de Itaparica, um dos principais berçários do Rio São Francisco, secou em 2017

A mãe d’água pede respeito

Veja o vídeo: Acesse bit.ly/ProjLagoaItaparica ou escaneie o QR Code ao lado

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Força tarefa A partir do encontro, foi elaborado um plano de ação denominado “SOS Lagoa de Itaparica”, composto por 10 itens, com responsabilidades divididas entre as instituições engajadas. Entre as medidas emergenciais ocorreu o primeiro salvamento de peixes, realizado por uma força tarefa que reuniu aproximadamente 100 voluntários de órgãos públicos, organizações não governamentais e da sociedade civil, transferindo mais de 118 mil peixes para o Rio São Francisco. A ação foi coordenada pelo IBAMA, que promoveu ainda outros dois resgates no ano seguinte. Ao CBHSF coube a realização do diagnóstico ambiental, documento concluído em 2019, que sinaliza 26 ações, incluindo o Projeto Executivo de Limpeza da Lagoa de Itaparica. O esforço coletivo já deu resultados. Em 2020, com o alto volume de chuvas, a Lagoa de Itaparica voltou a encher e as ações de recuperação ganharam novo fôlego: foram realizadas mais de 60 coletas de campo e cem ensaios de água, sedimentos, fauna e flora, contribuindo, assim, com a produção de conhecimento científico. A próxima ação, o projeto de limpeza, prevê a remoção de macrófitas, espécies invasoras que ameaçam a biodiversidade. As plantas serão usadas para compostagem, gerando toneladas de composto orgânico a serem doados para agricultores locais. A expectativa do CBHSF é aprovar o Projeto Executivo de Limpeza da Lagoa até o final do ano.

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Histórias de pescadores “Olhar a noite dentro d´água, na companhia da minha avó, ver a lua refletida no espelho d’água”, rememorou a pescadora Gilvânia da Silva Monteiro, de 36 anos. Aos 63, José Pereira da Cunha, o Zé Cacunda, recordou das pescarias com rede de caroá: “A gente puxava a rede e vinham milhares de peixes, eram 12, 13 homens puxando”. Os dois moram em Lagoa do Gomes, um dos sete povoados do complexo da Lagoa de Itaparica. “Quando vim morar aqui, ainda criança, não eram nem 5 casas. Hoje somos mais de 40 famílias”, ressaltou Zé Cacunda, que, assim como Gilvânia, guarda na memória os mistérios, os casos dos antigos. Reza a lenda, por exemplo, que quando os peixes sumiam bastava afugentar a Mãe D’água, a protetora que morava no fundo da lagoa. Em Lagoa do Gomes, todo mundo pesca, mesmo quem, como Gilvânia, tem outra profissão. Ela é contadora. Hoje, no entanto, a abundância do passado também virou lenda. A quantidade de peixes diminui a cada ano e as redes de caroá de Zé Cacunda foram substituídas pelas redes de nylon. A tecelagem, porém, permanece entre os ofícios dos moradores. Outra atividade local vem da carnaúba, a palmeira do Semiárido nordestino, que fornece palha e cera. Com o crescimento da população, os moradores sonham com melhorias, como energia elétrica, coleta de lixo e opções de lazer. De acordo com Gilvânia, até bem pouco tempo, “tudo era mato”: “Tinha muito pé de Xique-Xique, de Malva. Precisamos de maior conscientização para a preservação da lagoa, que é importante não só para nós, mas para a região de Irecê, Mirorós, Gentio do Ouro. Todos se beneficiam direta ou indiretamente dela”. Entre continuidades e rupturas, seu filho,


Edes Martin Monteiro Lima, de 6 anos, já a acompanha nas pescarias e conta que não tem medo de nadar na lagoa: “Só fico longe do lodo porque tenho medo de piranha”. Já o pescador Domingos Pereira Guedes mora no povoado Saco dos Bois, outra comunidade do entorno de Itaparica. Para ele, a lenda da Mãe D’água, muito popular na região, é a alegoria perfeita da condição do ecossistema local: “Os antigos contam que a Mãe D’água ‘segurava’ os peixes. Mas, na verdade, ela mantinha o equilíbrio, mostrando às pessoas o tempo da natureza, o que agora nós chamamos de piracema. Mas o povo não respeitou esse tempo, expulsou a Mãe D’água, até tudo secar”. A ciência da natureza Se a Mãe D´água zangou-se ou não, o fato é que estudos científicos e acadêmicos realizados a partir de 2017 confirmam a percepção dos moradores de que os problemas não surgiram do dia para a noite, nem podem ser atribuídos exclusivamente à irregularidade pluviométrica característica do Semiárido. Segundo Sinval Ribeiro, que defende tese sobre o assunto no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFBA, o desmatamento acelerado está no topo das preocupações: “O mapeamento temporal do uso de cobertura da terra, entre 1975 e 2018, constatou que houve uma perda de 1042 km² de áreas verdes, agravada a partir de 1995. Em 1975, o somatório das duas principais classes de cobertura vegetal totalizava 71% da área total. Em 2018, essa cobertura representava apenas 42%”. Vanderlei Pinheiro, engenheiro de pesca e analista ambiental do IBAMA, que trabalha na região Médio e Submédio do Rio São Francisco há mais de 40 anos, concorda: “Os recursos naturais

em volta da lagoa estão sendo extraídos de forma degradante, o carnaubal sofre com incêndios, retiram areia dos leitos das nascentes, desmatam as serras e encostas. Não existe fato isolado na natureza”. O deserto de chão rachado coberto por peixes mortos, o cheiro decorrente do processo de putrefação que atraía urubus, carcarás e outras aves de rapina, animais domésticos como porcos, cabras e jumentos tentando mitigar a sede em poços de lama, a desolação da população ribeirinha: o macabro 2017 aconteceu, na verdade, após cinco anos de secas encavaladas. O que outrora fora um lugar paradisíaco ganhara, então, status de desastre ambiental, levando a situação ao noticiário nacional. Todavia, após mais de três anos de muito trabalho, a vida voltou a pulsar na Lagoa de Itaparica. Aos 92 anos, o velho pescador Vanderlino Guedes, pai de Domingos Pereira Guedes, também morador de Saco dos Bois, alerta, no entanto: a Mãe D’água não é lenda. Ela mora no fundo do lagoão. E ele já a viu em carne e osso, muita brava com a ganância do homem.

Após três anos de muito trabalho, a vida voltou à Lagoa de Itaparica 27 27


Eleição

O Parlamento das Águas

Criado há 20 anos, em 5 de junho de 2001, o CBHSF vive, este ano, mais um processo eleitoral, através do qual serão eleitos os 62 membros que compõem o plenário da entidade. Os valores democráticos fazem parte da história do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco Por Luiza Baggio Fotos: Ohana Padilha e arquivo CBHSF 28


Veja o vídeo: Acesse bit.ly/Instit2020 ou escaneie o QR Code ao lado

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Como conhecer, entender, proteger, propor, escolher o melhor caminho para a imensidão chamada Rio São Francisco? Como atender todas as suas demandas? Como promover a revitalização, preservação e o desenvolvimento sustentável? Como manter viva a cultura ribeirinha? A busca por respostas para essas grandes questões encontra-se, hoje, no mesmo lugar: o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), que, este ano, vai viver mais um processo eleitoral democrático. Ao todo, serão eleitos os 62 membros que irão compor, na próxima gestão, de quatro anos, o Plenário do CNHSF, representando todos os segmentos que interagem com as águas de uma bacia hidrográfica que ocupa 8% do território brasileiro e abriga uma população de mais de 14 milhões de pessoas. Desde a sua criação, há 20 anos, que se completam em 5 de junho de 2021, a ideia que rege o CBHSF é a de gestão compartilhada, com mobilização permanente da sociedade civil. Se o São Francisco é o rio da integração nacional, o CBHSF é a integração das várias forças e potências em prol da saúde do Velho Chico. No Plenário do CBHSF convivem representantes da da União, do Distrito Federal e dos estados que compõem a bacia (Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe), de municípios ribeirinhos, usuários dos recursos hídricos, entidades civis e de representantes das comunidades tradicionais. O processo eleitoral será longo, com posse dos novos membros em plenária extraordinária prevista para os dias 15 e 16 de setembro. Uma longa história Experiência pioneira, vanguarda da gestão hídrica brasileira, o CBHSF começou a ser gestado com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever, tanto do poder público como da sociedade, de preservá-lo para as futuras gerações. A nova Carta é um marco na legislação ambiental do país. Nove anos depois, mais um passo: era promulgada a Lei das Águas, abrindo o caminho definitivo para se retirar a gestão dos recursos hídricos da esfera exclusiva do poder público, agregando os outros atores que formam o mosaico de interesses. A partir dessa lei, formou-se o básico consenso:

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água é um bem público. Sua gestão deve ser baseada nos usos múltiplos - abastecimento, energia, irrigação, indústria, pesca, entre outros - e descentralizada. Conhecido como parlamento das águas do Velho Chico, o CBHSF nasceu nesse contexto, em 5 de junho 2001, por decreto presidencial. A caminho da maturidade Desde a sua criação, o CBHSF avançou na gestão das águas do Rio São Francisco com a implementação dos instrumentos de gestão estabelecidos na Lei das Águas. Ao longo dos últimos quatro anos, as ações do Comitê foram orientadas pelo Plano de Recursos Hídricos da Bacia do Rio São Francisco (PRH-SF 2016-2025), que foi aprovado na gestão anterior, na mesma Plenária que elegeu a atual Diretoria Colegiada. Além disso, atualizou a cobrança pelo uso da água, implementou o SIGA São Francisco (sistema de informação da bacia), tem trabalhado no enquadramento dos corpos de águas e executado ações, projetos e obras de revitalização em toda a bacia. A atual gestão também atuou em prol do fortalecimento institucional do órgão, com o objetivo de torná-lo ainda mais representativo, preparando o colegiado para os próximos desafios e conferindo uma maior efetividade às ações voltadas à preservação do meio ambiente e à melhoria da qualidade de vida na bacia. Com esse objetivo a direção e o colegiado do CBHSF agiram em conjunto para elaborar o conteúdo e aprovar a metodologia de consecução do projeto mais ambicioso da bacia: o Pacto das Águas do Velho Chico. O pacto consiste em um conjunto de grandes compromissos e acordos a serem firmados pela união, os estados ribeirinhos e o Comitê da bacia visando metas estratégicas como a universalização da implantação dos instrumentos de gestão das águas em todo o território da bacia, a definição das vazões de entrega dos rios afluentes à calha central, a consecução efetiva do programa integrado de revitalização do rio e de seus afluentes, a universalização das redes de monitoramento da quantidade e da qualidade das águas, a universalização da cobrança pelo uso das águas em todo o território franciscano e outras das metas de grande escala previstas no plano de recursos hídricos.


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Ciência

Navegar é preciso

Veja os vídeos: Acesse bit.ly/AberturaIIIExp ou escaneie o QR Code ao lado

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A expedição percorreu 240 Km em dez dias, passando pelos municípios de Piranhas, Pão de Açúcar, Traipu, Porto Real do Colégio, Igreja Nova, Penedo, Piaçabuçu e a Foz do São Francisco

A caminho de sua 4ª edição, a Expedição Científica do Baixo São Francisco, que já virou livro e documentário, reúne volume inédito de informações sobre a vida no Velho Chico Por Mariana Martins Fotos: Edson Oliveira

Os trabalhos da equipe são realizados desde 2008 e os dados coletados são comparados ano após ano. Em 2018, com o apoio de várias instituições, dentre as quais o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), conseguiram emplacar a primeira expedição, que contou com mais de 40 pesquisadores e estudantes e passou por cinco municípios ribeirinhos de Alagoas. No ano seguinte, com a participação de 50 pesquisadores de 16 instituições e 28 áreas de pesquisa, a expedição cresceu e gerou um documentário. No último ano, percorreu 240 km na calha do rio, passando por nove municípios em dez dias. Por causa da pandemia do coronavírus, desta vez não houve visita das comunidades às embarcações e os trabalhos de educação ambiental foram reduzidos. Comandada pelo professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Emerson Soares, a expedição tem caráter científico e reúne dados a fim de que sejam feitas as correções em relação ao trato a ser dado ao Velho Chico. “As incursões pelo Baixo São Francisco nos possibilitaram reunir informações que, antes, se encontravam pulverizadas, dificultando a consulta e a elaboração de diagnósticos para o rio”, conta. Tanto é verdade que as pesquisas resultaram em um livro e em um documentário. As expedições chamaram a atenção da mídia, repercutindo os problemas ambientais da região através dos canais de comunicação que detêm os níveis mais altos de audiência. 33


Coleta de dados As embarcações de grande porte funcionam como laboratórios munidos de equipamentos de última geração, além de um barco robótico, capaz de oferecer informações precisas suficientes para traçar um “raio-X” do Velho Chico em diversos aspectos. Os pesquisadores coletam amostras de peixes, água, sedimentos, dados meteorológicos e socioeconômicos, bem como sobre assoreamento, desmatamento, níveis de poluentes no solo, metais pesados e dados para engenharia na parte de batimetria e relevo aquático. Como resultados, apresentados em um relatório de 2019, em relação à ictiofauna há pouca diversidade no Baixo São Francisco, com cerca de seis espécies representando 80% das capturas no local. Os pesquisadores também concluíram que fatores como a pesca com métodos não permitidos, o assoreamento, a poluição de efluentes, o represamento da água e o desmatamento da vegetação ciliar, aliados ao regime escasso de chuvas, estão prejudicando a reprodução dos peixes e esgotando os estoques pesqueiros. A grande quantidade de lixo jogada na calha do rio afeta a qualidade de água, provocando um forte estresse para as espécies, colaborando para a diminuição do alimento natural e do crescimento e desenvolvimento dos peixes. Em relação à qualidade da água, os resultados demonstraram que em todos os pontos de coleta a água está fora dos padrões de potabilidade recomendados para consumo humano. A influência da maré na salinidade das águas também foi avaliada pelos pesquisadores. Em Piaçabuçu, por exemplo, a entrada da cunha salina de maré altera as características da água, que permanece doce na superfície, mas se apresenta salobra nas camadas de fundo. A variação da vazão das águas também afeta a qualidade da água, interferindo tanto na biodiversidade quanto nas atividades econômicas. O alto índice de cianobactérias encontrado nas análises indica a poluição das águas. Isso significa que o consumo do manancial oferece riscos à saúde e necessita de investimentos elevados na implantação de Estação de Tratamento de Água (ETA). No outro eixo avaliado durante a expedição, a Educação Ambiental e Socioeconomia, apurou-se que o extrativismo de frutas nativas é a principal fonte de renda para muitas famílias da região da foz do Rio São Francisco, o que contribui com a conservação ambiental. A principal política pública acessada pela comunidade ribeirinha é o Seguro Defeso (benefício pago aos pescadores artesanais que ficam impedidos de exercer suas atividades durante o período reprodutivo dos peixes), seguido do Bolsa Família e da aposentadoria. O livro O livro “Baixo São Francisco: características Ambientais e Sociais” reúne uma série de dados analisados na região desde 2008, com ênfase nas expedições científicas de 2018 e 2019. Com a colaboração de 50 autores, a obra faz um panorama atual no que diz respeito aos problemas ambientais, sociais e econômicos, o grau de degradação e problemas com desmatamento da vegetação ciliar, assoreamento, extinção de espécies, avanço da intrusão salina, o uso de agrotóxicos, o deficiente saneamento básico e a carência de políticas públicas ambientais nos locais por onde a Expedição passou, em Alagoas e Sergipe. Segundo Emerson Soares, o livro, que também está disponível no formato e-book, possui o maior levantamento de dados já feito no Baixo São Francisco, congregando diversas áreas e contribuindo para resolução dos problemas.

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“Ele facilita porque tem uma linguagem clara e está sendo disponibilizado na internet de forma gratuita. Além disso, tem tradução para o inglês, já que parte do público interessado em saber mais sobre o Rio São Francisco não domina a língua portuguesa e com isso poderá ter acesso às informações”, acrescenta Emerson. A expedição resultou também em documentário. Foi registrada, entre os dias 18 e 27 de novembro de 2019, aquela que foi considerada a expedição científica mais abrangente da história no Baixo São Francisco. A próxima viagem Com o tema central “Uma jornada de conhecimentos e ações”, a Expedição Científica no Baixo São Francisco é considerada um dos maiores eventos prático-científicos do Brasil na atualidade. Segundo Emerson, a edição de 2021 reunirá cerca de 60 pesquisadores e 12 tripulantes, que atuarão em 30 áreas de pesquisa. “Temos certeza de que será um grande sucesso a expedição de 2021. Reuniremos mais de 18 instituições, com pesquisadores nas áreas social, ambiental, saúde, engenharias, entre outras, que executarão, além dos trabalhos de pesquisas, ações práticas nas comunidades. A exemplo de doação de equipamentos e estruturas para a melhora da qualidade ambiental e de saúde no Baixo São Francisco”, afirmou o coordenador-geral. As novidades anunciadas para este ano são as instalações de fossas biodigestoras com biogás e biofertilizantes, instalação de viveiros de plantas de espécies nativas, pesquisas e atendimentos de pessoas na área de oncologia (câncer de pele), além de instalação de possíveis biossensores para monitorar o rio em tempo real, exposição do museu itinerante sobre o Baixo São Francisco, área de fisioterapia para idosos e análise de fármacos na água. O presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, reafirma não só o apoio e o patrocínio à Expedição Científica, como também as expectativas de que ela possa brindar mais uma vez com novos dados e informações sobre o estado das águas no Baixo São Francisco e de todo seu entorno. Miranda pontuou ainda que, neste momento em que a ciência está sendo ignorada, até desprezada nos orçamentos e em atitudes negacionistas, o Comitê faz questão de caminhar no sentido contrário e compreende que sem o concurso da ciência e da academia é impossível a uma instituição como o CBHSF de fato enfrentar os grandes desafios da gestão em um século difícil como é este do aquecimento global. “Desejo sucesso a todos os pesquisadores. Iremos acompanhar com muita atenção e esperamos que os frutos dessa expedição reforcem ainda mais a consecução do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco e, sobretudo, uma intervenção cada vez mais eficiente nas ações que precisamos fazer para de fato permitir a grande recuperação hidroambiental que merece o nosso Velho Chico”, finalizou Miranda. Além do CBHSF, a Expedição Científica do Baixo São Francisco conta com o financiamento da UFAL, do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI), da Codevasf e da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) do estado de Alagoas. Como participantes e executores estão o Instituto de Inovação para o Desenvolvimento Rural Sustentável de Alagoas (Emater-AL), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe (Emdagro) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL).


Peixes contaminados com metais pesados, cianobactérias nas águas, coliformes em níveis acima do permitido, são dados que mostram a realidade do Baixo São Francisco 35


Perfil

A grande pauta 36


“Sou sertanejo e me identifico muito com essa região. Desculpem a falta de modéstia, mas conheço o Vale do Rio São Francisco como a palma da minha mão”, diz, orgulhoso, José Raimundo Carneiro de Oliveira, que nasceu em Riachão do Jacuípe, interior da Bahia

A história de José Raimundo, que durante quatro décadas de jornalismo, 31 deles passados na TV Globo, navegou o Velho Chico de “cabo a rabo” e o conhece como “a palma da minha mão” Por Karla Monteiro Fotos: Arquivo José Raimundo

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A reportagem se estendeu por uma longa semana de 1984. Todos os dias, José Raimundo, então repórter da TV Aratu, afiliada da TV Globo na Bahia, embarcava num aviãozinho em Salvador e descia em Juazeiro. No final do dia, voava de volta, rezando para conseguir chegar em tempo de mandar o material para o Jornal Nacional. Naqueles dias, o Brasil inteiro queria saber o que estava acontecendo no Rio São Francisco, onde milhares de peixes morriam asfixiados. “Eu vi surubim de 30 quilos boiando nas águas coalhadas de cardumes mortos”, lembrou ele. Em meio ao corre para lá e corre para cá, José Raimundo resolveu caminhar pelas redondezas. Por um golpe de sorte, desvendou o mistério, num furo de reportagem que lhe renderia o passaporte definitivo para o jornal mais disputado pelos repórteres da emissora, o JN, então apresentado por Cid Moreira. “Foi uma cobertura muito exaustiva. Ninguém sabia por que os peixes estavam morrendo. Até que, por acaso, andando num canavial perto da margem do São Francisco, eu me deparei com uma barragem de uma pequena indústria e percebi que a terra da trincheira era nova”, contou. “Daí foi um pulo para descobrir que essa barragem havia se rompido e despejado vinhoto no rio. Por essa denúncia cheguei a receber ameaça de morte”. Em quase quatro décadas de profissão, José Raimundo, que deixou a Globo em janeiro, após 31 anos de casa, testemunhou as dores e as alegrias do Velho Chico: “Fiz três viagens da nascente à foz, fora todas as outras vezes que cobri pautas específicas na bacia”. Na primeira grande empreitada, levou um mês inteiro, gravando um Globo Repórter, em 1999. Em 2001, repetiu a façanha, acompanhando um grupo de pesquisadores, numa expedição que marcou os 500 anos do São Francisco. Em 2008, mais uma vez completou o percurso, numa série de reportagens especiais para o Jornal Nacional: “Tenho uma relação afetiva com o rio, de amor, de respeito. Nunca houve uma real preocupação dos governos federais de revitalizar o São Francisco e, no momento, essa preocupação é nenhuma. Uma vez, Dom Cappio, o bispo de Barra, me disse que o Velho Chico era um paciente na UTI. Hoje é um paciente sem UTI”.

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Retratos na memória Falando de seu apartamento em Salvador, por videoconferência, José Raimundo enumerou os retratos que estão emoldurados em sua memória. A paisagem mais bonita que já viu na vida foi em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, a nascente do São Francisco. “O Velho Chico nasce simples, vai brotando devagarzinho, e, daqui a pouco, despenca na apoteótica cachoeira de Casca D’anta”, comentou. “O mais interessante é que logo ali ele pega o rumo do norte. Enquanto todos os outros grandes rios brasileiros correm para o sul, faz o percurso inverso, rasgando o Semiárido brasileiro”. Na região do Alto, José Raimundo se impressionou com o lago de Três Marias, filmou macacos-aranha para um Globo Repórter no Vale do Peruaçu, visitou a gameleira da Igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Barra do Guaicuí, cenário de “Grande Sertão: Veredas”, adentrou o Rio Pandeiros, que define como “um mini pantanal”: “O melhor de tudo foi a galinha ao molho pardo que comi num pequeno restaurante depois de andar nas impressionantes cavernas do Peruaçu. Nunca me esqueci”. Na região do Médio, lembra que conheceu os cânions, em Canindé do São Francisco, no Sergipe, antes da barragem de Xingó. E já teve oportunidade de ver a Lagoa de Itaparica, em Xique-Xique, na Bahia, transbordando. “Eu a vi cheia, espalhando-se por mais de sete quilômetros. Há quatro anos voltei e não tinha como não pisar em peixes mortos”. Outra triste memória José Raimundo guardou da foz, em Piaçabuçu, no estado de Alagoas: “Na primeira vez que fui lá, o São Francisco ainda era poderoso, entrava no mar. Hoje, 22 anos depois, vi gente pescando peixe de água salgada 70 quilômetros rio adentro”.


José Raimundo navegou desde a nascente do Velho Chico, em Minas Gerais, até a foz entre Alagoas e Sergipe 39


Do Sertão para o Brasil Assim como o Rio São Francisco, José Raimundo é sertanejo. Nasceu, em 1955, em Riachão do Jacuípe, interior da Bahia, próximo a Feira de Santana. “O Jacuípe, o maior rio baiano, corta o Semiárido, socorrendo muita gente”, contou. “Era a minha praia, o nosso parque de diversão”. Ainda jovem, ele se mudou para Salvador, para fazer faculdade de Sociologia. A essa altura, já tinha trabalhado como radialista numa pequena rádio de sua cidade natal. Ao chegar à capital baiana, em 1978, fez, então, o teste para a Rádio Sociedade, dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Passou, mas como não tinha vaga, ganhava a vida como caixa do Banco do Estado da Bahia. “Sempre que eu tinha uma chance corria para a redação da rádio, para pressionar por minha vaga. Numa dessas visitas, chegou o diretor da TV Itapoan, emissora da Tupi, também dos Associados. Era o Milton Colen, comentarista de futebol. Estava desesperado, precisando de um repórter urgente”, rememorou José Raimundo. “O Fernando Rocha, o diretor da Rádio Sociedade, falou para ele: ‘Repórter não tem, mas tem esse menino aí, que fez um teste conosco’. Eu nunca tinha visto uma câmera de televisão”.

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Naquele final dos anos 70, a TV Itapoan encontrava-se em ruínas, com a iminente falência da Tupi – e de quase todo o império de Assis Chateaubriand. Os equipamentos eram sucatas e o pagamento, incerto: “No fim do mês, eu recebia um relógio ou um eletrodoméstico que o departamento comercial conseguia como permuta”. As reportagens consistiam em literais aventuras. Quando José Raimundo ia, por exemplo, entrevistar o governador Antônio Carlos Magalhães, este fazia questão de gravar no saguão, com medo da câmera pegar fogo. “Os equipamentos eram tão sucateados, tão improvisados, com uma montanha de fios embolados e fontes de energia, que o ACM tinha medo”. Dali, do apagar das luzes da velha Rede Tupi, José Raimundo migrou para o admirável mundo novo da TV Globo. Primeiro, na TV Aratu, afiliada da Globo na Bahia. Na emissora de Roberto Marinho, percorreu do Jornal Nacional ao Globo Repórter, passando pelo Fantástico: “Sempre fui um repórter interessado pelos assuntos ambientais. Sou sertanejo e me identifico muito com essa região. Desculpem a falta de modéstia, mas conheço o Vale do São Francisco quase como a palma da minha mão”.


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Arte

Realismo fantástico 42


Cícero Alves dos Santos, o Véio, retrata a cultura do povo sertanejo em suas esculturas de madeira

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Um nasceu no sertão de Sergipe, na bacia do São Francisco, o outro, à beira do Velho Chico, em Alagoas. E ambos são hoje artistas reconhecidos pelos mercados de arte nacional e internacional: Cícero Alves dos Santos, o Véio, e Fernando Rodrigues do Santos, o Fernando da Ilha do Ferro, que ganha, em 2021, sua primeira exposição individual, na Galeria Estação, em São Paulo. Segundo Vilma Eid, diretora da galeria que também representa o trabalho do Véio, os dois têm em comum a madeira farta, o talento de autodidatas e o fato de partirem do tronco para darem forma à figura Por Karla Monteiro Fotos: Arquivo Galeria Estação (João Liberato, Germana Mont-Mor e Giselli Gumiero) Usando o movimento dos galhos de árvores de mangues, raízes e troncos, Fernando criava esculturas e móveis exuberantes e escrevia nas peças personalizando cada uma. As cadeiras criadas por ele assumem um aspecto singular, nenhuma com padrão convencional de móveis

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Olhar diferente (Véio, 2014)


O Véio Quando menino, Cícero Alves dos Santos, nascido no município de Nossa Senhora da Glória, no sertão de Sergipe, ganhou dos colegas o apelido de Véio, por gostar de ouvir a conversa dos mais velhos. Hoje, aos 70 anos, ele se tornou um artista consagrado e, na sua arte, incorporou, justamente, os casos que lhe renderam o apelido. O fascínio pelas lendas da cultura sertaneja compõe a base do seu trabalho, um imaginário fantástico recriado em madeira. No município vizinho de Feira Nova, no Sítio Soarte, criou o Museu do Sertão, reunindo um acervo de 17 mil obras que recontam os modos de vida do sertanejo. “Gostava de ouvir as histórias deles sobre lobisomem e coisas do tipo”, rememorou Véio. Segundo ele conta, ainda na infância, pegou gosto pela escultura. No começo, usava cera de abelha. Mas, como o material era associado às mulheres, fazia tudo escondido e desmanchava para que ninguém descobrisse o seu segredo. Depois, descobriu a madeira e passou a fazer esculturas grandes, seres estranhos, que lhe renderam outro apelido: “O povo me chama de louco. Não faço o meu trabalho para agradar ninguém, faço para mim, e, se eu gostar, já fico satisfeito”. Na galeria do Itaú Cultural, em março de 2018, Véio surpreendeu São Paulo – e os críticos de arte - com esculturas de seres com cabeças grandes, outros com formas alongadas, peças que pareciam brotar de um sertão fantástico: “Não sou de copiar, como papagaio”. Graças ao impulso criativo, ele muito cedo largou o trabalho na roça para se dedicar somente ao que o move: esculpir. Orgulha-se de pouco ter trabalhado para os outros. E jamais vendeu uma peça a um comprador que não a valorizasse.

O calango preto (Véio, 2014)

Seu Fernando No início dos anos 80, o fotógrafo Celso Brandão e a museóloga Carmem Lúcia Dantas faziam uma visita ao povoado de Ilha do Ferro, no município de Pão de Açúcar, em Alagoas, quando notaram, num bar local, bancos de madeira esculpidos em peças maciças, diretamente escavados em trocos. Não eram peças convencionais, lembravam as esculturas de Constantin Brancusi, o mais célebre escultor romeno e um dos principais nomes da vanguarda moderna. Curiosa, a dupla de forasteiros foi perguntar o nome do santo: “Seu Fernando”, informou o dono do bar. Da descoberta em diante, Fernando Rodrigues dos Santos, o Seu Fernando, nascido em 1928 e morto em 2009, ganhou o mundo. “Minha arte tem uma inteligência que só os artistas da natureza podem compreender”, ele costumava dizer. Analfabeto, Seu Fernando começou a esculpir ainda jovem. Trabalhando em lavouras de milho e feijão, gastava o pouco tempo livre produzindo pequenos objetos de madeira na oficina do pai, o sapateiro do povoado. Aos 40 anos, fez a primeira grande peça: uma espreguiçadeira. E, só nos anos 80, quando foi, enfim, descoberto, passou a exibir, em salões de decoração e exposições de design, a sua obra. Na inauguração do Museu Niemeyer, em Curitiba, dividiu o salão com os Irmãos Campana. Exaustivamente copiadas hoje, suas mesas, cadeiras e bancos aproveitam as formas originais dos troncos e raízes de árvores. A arte de Seu Fernando está intrinsicamente ligada ao São Francisco. A Ilha do Ferro, onde ele nasceu, apesar do nome, não é uma ilha, mas um povoado situado à beira da margem esquerda do Velho Chico. Com pouco mais de 450 habitantes, o lugarejo sempre conservou a forte tradição do bordado e da escultura em madeira. Desde muito jovem, Seu Fernando ia pescar e voltava para casa carregando “tocos de pau” e esculpia tanto peças de mobiliário quanto esculturas de bichos que povoavam o imaginário dos ribeirinhos. Muitas vezes as madeiras eram trazidas pelo próprio rio, que, nas grandes enchentes, ofertavalhe troncos de umbuzeiros e mulungus.

Obra sem título (Véio, 2012)

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Exposição “Fernando Rodrigues - Ilha do Ferro”, na Galeria Estação, em São Paulo 46


Fernando Rodrigues dos Santos era artesão e desde os 15 anos confeccionava a peças em madeira como bancos, embarcações, bonecos e tamancos

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Coluna Social

Aconteceu Por Mariana Martins

III SBHSF Realizado de forma online entre os dias 07 e 18 de dezembro de 2020, o III Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco teve como tema “A importância da ciência para o futuro do Rio São Francisco”. Fruto de uma parceria entre o Fórum das Instituições de Ensino e Pesquisa da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (FIENPE/BHSF), o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) e a Agência Peixe Vivo, o Simpósio contou com 2.035 participantes e com a visualização de mais de cinco mil pessoas no canal do CBHSF no YouTube. Foram realizadas duas conferências, seis palestras, seis mesas-redondas e 32 salas de apresentações online durante o evento.

Webinário ‘Desafios da Segurança Hídrica na Bacia do São Francisco’ foi tema de webinário realizado no Dia Mundial das Águas (22/03), pelo CBHSF. Debateram o assunto o presidente do Comitê, Anivaldo Miranda, o engenheiro e professor titular da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Valmir Pedrosa, e o engenheiro agrônomo e pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna. Em um cenário de tamanha proporção como o do Velho Chico, a preocupação com a garantia de água para os usos múltiplos da bacia é um tema que precisa estar em permanente discussão.

Prêmio ANA Realizada pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), por meio da Agência Peixe Vivo, a Campanha "Eu Viro Carranca pra Defender o Velho Chico" ganhou o Troféu Prêmio ANA na categoria Entes do SINGREH (Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos). A campanha concorreu com outros 37 participantes em sua categoria e ficou entre os 24 finalistas que mais se destacaram com ações em prol das águas do Brasil.

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PDRH e ECA O CBHSF, em parceria com o Comitê da Bacia Hidrográfica dos Afluentes do Alto São Francisco (CBH-SF1) e a Agência Peixe Vivo, contratou a elaboração do PDRH (Plano Diretor de Recursos Hídricos) e ECA (Enquadramento de Corpos de Água). Os estudos têm como objetivo fundamentar e orientar a gestão dos recursos hídricos na bacia dos Afluentes do Alto São Francisco.

Oficina de Comunicação A palestra “Comunicação como ferramenta de mobilização social” ministrada pelo jornalista Gustavo Nolasco, abordou questões importantes sobre as diversas formas de se comunicar e a sua eficiência dentro do processo de questões ambientais, dando voz, sem interlocutores, aos agentes da ação. Gustavo é coordenador de comunicação do Observatório Lei.A, plataforma de conhecimento e ação pelo meio ambiente criado em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Associação dos Observadores do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural de Minas Gerais.

SIGA São Francisco Para realizar a gestão do conhecimento e permitir o acesso a todos que tenham interesse sobre dados da bacia, o sistema é um dos investimentos prioritários do CBHSF. Composto por módulos integrados, já conta com quatro módulos criados e em funcionamento. São eles o Acompanhamento das Ações, SF MAP, o Web PLAN e o Info SF. O SIGA SF integra informações de recursos hídricos, permite visualizações em formato geográfico e disponibiliza apresentação de indicadores, promovendo mais transparência.

Festival de Cinema Realizada de forma híbrida (online e presencial) a 10° edição do Circuito Penedo de Cinema apresentou, durante sete dias em novembro do ano passado, mostras de filmes, debates, oficinas, palestras, rodas de conversa, conferências, apresentações artísticas. O evento acontece anualmente e conta com o patrocínio do CBHSF.

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Ensaio

Caiu na rede

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As duchas do Velho Chico em Pirapora (MG) @bichocarranca

A revista CHICO vasculhou o Instagram, hoje a maior rede social de imagens do mundo, para captar os instantes do Rio São Francisco. Selecionamos cinco perfis: Almacks Luiz Silva, Edson Oliveira, Bicho Carranca, Guilherme Barbosa e Márcio Coelho. Fotos: Bicho Carranca, Almacks Luiz Silva, Edson Oliveira, Guilherme Barbosa e Márcio Coelho 51


Aldeia Fulni-ô em Águas Belas (PE) @almacksluizsilva

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As águas do Velho Chico @edson_oliveira_photo

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Projeto fotográfico sobre o Velho Chico @marciocoelho_photografer

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Morador da Barreira dos Índios, "Mestre Carlim" mostra o resultado de sua pescaria @guilherme_barranqueiro

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www.virecarranca.com.br Participe da campanha em defesa do Rio São Francisco. Poste suas fotos no Instagram com a hashtag #virecarranca

Realização

Acesse os conteúdos multimídia do CBH São Francisco: Revistas, Boletins e Publicações on-line: issuu.com/cbhsaofrancisco Vídeos: youtube.com/cbhsaofrancisco Fotos: instagram.com/cbhsaofrancisco Podcasts: soundcloud.com/cbhsaofrancisco

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