Gastronomia
Fabricado artesanalmente, o queijo Canastra se impõe como ícone gastronômico de primeira grandeza do Alto São Francisco.
Meio Ambiente
As Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs representam alternativa energética para o país, mas trazem a necessidade de discussão sobre os seus impactos no meio ambiente.
Religiosidade
Ensaio fotográfico lança olhar antropológico sobre manifestações de fé popular na romaria de Bom Jesus da Lapa.
Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 01 | NOV 2012 ISSN 2316-7661
Projeto
Aroeira 1
Uma experiência de transformação social na foz do rio São Francisco
IMA G EM
Um fio d’água na serra é o começo: a partir da Canastra, no interior mineiro, o rio São Francisco toma seu curso país adentro rumo ao mar.
Revista Chico Publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Nº 01 | NOV 2012 ISSN 2316-7661
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Presidente Anivaldo de Miranda Pinto Secretário José Maciel de Oliveira Coordenador da CCR do Alto Marcio Tadeu Pedrosa CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL BAIXO SÃO FRANCISCO
CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL ALTO SÃO FRANCISCO
CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL MÉDIO SÃO FRANCISCO
CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO
Coordenador da CCR do Médio Claudio Pereira da silva Coordenador da CCR do Submédio Antônio Valadares (Totonho)
Coordenador da CCR do Baixo Carlos Eduardo Ribeiro Junior
Agencia de Bacia AGB PEIXE VIVO Diretora-geral Célia Fróes Diretora de Integração Ana Cristina da Silveira Diretor Técnico Alberto Simon
Coordenação geral Malu Follador Coordenação editorial José Antônio Moreno Edição de texto Suzana Alice Pereira Reportagem Antônio Moreno Fred Burgos Ricardo Coelho Suzana Alice Pereira Artigos Carlos Etchevarne Marcelo Latuf Ilustração Ana Raquel
ma das mais importantes conquistas
ras municipais, estaduais e federais, mas sim
da nacionalidade brasileira nos últi-
integradas nos grandes e coerentes espaços
mos anos tem sido a incorporação do
conformados pelos limites das bacias hidrográ-
conceito de democracia participativa
ficas.
ao cotidiano dos cidadãos e das instituições. Um
A revista “Chico”, que ora apresentamos em seu
processo lento, ainda bastante incompreendido,
primeiro número, é um dos incontáveis instru-
frequentemente exercido apenas no plano formal,
mentos através dos quais o CBHSF vai encarar
mas, seja como for, ascendente, semente para
e administrar os desafios aqui referidos, repre-
forjar uma nova cultura de cidadania.
sentados pela complexidade das ações a serem
Os comitês de bacia hidrográfica são dos mais
articuladas para a recuperação hidroambiental
eloquentes exemplos dessas novas formas
dos rios da bacia, inclusão socioambiental das
Fotografia Adenor Gondim Almir Bindilatti Bel Corção Bruno Figueiredo Ivan Cruz João Zinclair Lula Castello Branco
e tentativas de fazer a gestão dos espaços e
populações, construção do pacto das águas, in-
dos recursos naturais como sinônimo da tão
termediação de conflitos de interesses e tantas
desejada sustentabilidade, e de imprimir às
outras tarefas a cumprir.
atividades econômicas e políticas, exercidas
A revista, porém, não será apenas terreno para
nesse contexto, um conteúdo democrático mais
o tratamento da aridez dos problemas, tanto
Revisão Ana Lúcia Pereira e Christiana Fausto
avançado e consentâneo com as exigências de
em sentido real como figurado. Haverá espa-
transparência, permanente diálogo e controle
ço para inserir a arte e a cultura franciscanas
social crescentes.
em suas páginas. Inserir a gente ribeirinha e os
Na vanguarda desse movimento está, entre ou-
seus costumes, a poesia, a culinária, a literatu-
tros, o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São
ra, o folclore, os ritos, os sertões, os cerrados,
Diretora de Administração e Finanças Berenice Coutinho
Produzido pela CDLJ Publicidade
U
Editorial
Projeto gráfico e editoração Jorge Martins
Francisco – CBHSF, que representa uma expe-
as várzeas, as montanhas e até o mar, pois de
Capa Almir Bindilatti
riência das mais desafiadoras, qual seja, a de
gente e de geografia vasta é feito esse gigante
funcionar como construção institucional plural
que nasce nas Gerais e, como Gonzaga consa-
Impressão Gráfica Santa Bárbara
para que todos os entes públicos ou privados,
grou, “vai bater no meio do mar.”
sejam eles representativos do poder de Estado, da sociedade civil ou da iniciativa privada possam gerir, juntos, não apenas populações
Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBHSF Contrato nº 07/2012 - Contrato de Gestão nº 014/ANA/2010 - Ato Convocatório nº 043/2011. Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citando a fonte.
e áreas compartimentadas em rígidas frontei-
06 13 16
Sumário
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Sabor de mudança: pimenta rosa transforma vida de ribeirinhos
CBHSF: momento de afirmação
romaria: ensaio sobre a religiosidade popular
artigo: Vila de Piragiba. Uma riqueza que vem do passado
29 34 36 42
pequenas centrais hidrelétricas
entrevista: anivaldo miranda
19 21 28
artigo: Regime de chuvas na bacia hidrográfica do rio São Francisco
rio tâmisa:uma história de revitalização
21
34
O verdadeiro sabor da canastra
seres do são francisco: surubim
36 5
CAPA poeticaphoto
Sabor de
MUDA
PIMENTA ROSA ABRE NOVAS PERSPECTIVAS DE VIDA PARA COMUNIDADES DA FOZ DO Sテグ FRANCISCO
Texto: SUZANA ALICE PEREIRA | FOTOS: Almir Bindilatti e Lula Castello Branco
Q
NÇA
ue ligação é possível estabelecer entre uma fina especiaria, utilizada pelos chefs e gourmets para a preparação de iguarias apreciadas pelos frequentadores dos mais sofisticados restaurantes do mundo e uma comunidade pobre da foz do rio São Francisco? Embora remetam a realidades distintas, ambos têm como elemento comum a aroeira (Schinus terebinthifolius), espécie de árvore nativa da América do Sul que produz um fruto, a pimenta rosa − a poivre rose dos franceses − cada vez mais valorizada na gastronomia internacional. A despeito do nome, a pimenta rosa não pertence à família das pimentas. No tamanho, assemelha-se à pimenta-do-reino. Porém, a ardência é muitíssimo mais delicada e o sabor é levemente adocicado − conjunção perfeita para conquistar os paladares mais exigentes. Essa raridade gastronômica é muito comum na foz do rio São Francisco, em municípios localizados na margem esquerda, como Piaçabuçu e Penedo, no estado de Alagoas, ou na margem direita, como Santana do São Francisco e Neópolis, no estado de Sergipe. Ali, é raro andar alguns metros além dos limites urbanos das sedes municipais e não se deparar com um pé de aroeira. Em Piaçabuçu, por exemplo, logo depois do bairro da Paciência, em meados de outubro, quando já se encerrara a safra, bastava trilhar o terreno pantanoso da várzea da Marituba, à beira da estrada de terra, contornando os pés de cansanção, para alcançar os galhos verdes da árvore e colher os cachos de frutos vermelhos. Em áreas mais distantes, de acesso mais difícil, chega-se aos bosques de aroeira, onde a frutificação é mais intensa, embora a coleta implique em esforço maior − subir os pés-de-morro sob sol quente e expor-se ao risco de quedas e picadas de abelhas e cobras. Seja onde for, colher os frutos da aroeira não é nenhum mistério para quem mora na região. Abundante, a árvore faz parte do restrito leque de opções do mercado de trabalho local. Para a população pobre da foz, a sobrevivência é um desafio diário. As opções podem ser, literalmente, contadas nos dedos da mão. São as pescarias no rio São Francisco, no mar ou nas lagoas; a coleta de frutas como cambuí, manga, ingá, caju e jenipapo; a prestação de serviços domésticos, como faxinas; a agricultura, além de pequenos negócios, improvisados às vezes nas próprias casas, para venda de alimentos e bebidas. Catar aroeira não era, até este ano, pior nem melhor do que as demais atividades de subsistência. Como as demais, era um esforço necessário para sobreviver. Mas não se constituía, definitivamente, em oportunidade de crescimento ou trazia expectativa de mudança de vida. A cada safra, centenas de pessoas se embrenhavam no mato, sozinhas ou em grupos, a fim de trazer a pimenta rosa, vendida a preço irrisório: R$1,50 o quilo, já desgalhada, limpa e secada ao sol. O comprador eram empresas do Espírito Santo, o estado pioneiro na industrialização e exportação de pimenta rosa, em 1992, e maior produtor nacional. Fornecedores regulares, os ribeirinhos nunca chegaram a saber exatamente o destino final do produto que colhiam. Tanto é que na região a aroeira era conhecida apenas pelas propriedades fitoterápicas − antibactericidas e anti-inflamatórias −, muito valorizadas pelas mulheres, que utilizam a infusão de folhas para combater doenças do aparelho genital.
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CAPA foto: istockphoto
Uma proposta diferente Desde 2010 uma proposta nova começou a circular nas comunidades, de boca em boca. Em vez de venderem a indústrias, os produtores locais poderiam eles próprios comercializarem o produto, a preços bem mais elevados. Mas a troca exigia uma aposta e um investimento. A aposta era acreditar na possibilidade de assumir as rédeas de um negócio em que até então funcionavam como mera peça de uma engrenagem complexa, que não dominavam. O investimento era justamente adquirir o domínio sobre o negócio, ou seja, se capacitar para assumir um papel ativo, com todos os riscos e possibilidades inerentes. Muita gente sequer quis tomar conhecimento do assunto. Alguns ouviram e preferiram se resguardar na postura de desconfiança. Outros resolveram apostar. Estes últimos é que constituíram, em 30 de junho de 2011, a Associação Aroeira, para gerir o negócio da aroeira na foz do São Francisco e produzir a pimenta rosa diretamente para o mercado consumidor. Atualmente a associação já conta com 400 extrativistas cadastrados nos quatro municípios e 85 associados efetivos, atuando na produção. A proposta de parceria partiu do Instituto Ecoengenho, uma ONG sediada em Maceió, que com um currículo rico em experiências de geração de energia limpa e desenvolvimento de microssistemas produtivos em comunidades pobres, identificou ali as condições necessárias para avançar um estágio nesse tipo de ação, a partir de um produto- a pimenta rosa - capaz de incorporar um alto valor agregado. “A ideia foi construir uma experiência de gestão sustentável de negócios sociais produtivos para os ribeirinhos, sem ônus para os cofres públicos e mais adequado à preservação da mata ciliar do rio São Francisco. É uma ação comprometida com a inclusão social e com o processo de revitalização do rio”, explica o presidente do instituto, José Roberto Fonseca. O Ecoengenho formatou e inscreveu o “Projeto Aroeira: uma semente para inclusão socioprodutiva sustentável de populações extrativistas do Baixo São Francisco no Nordeste do Brasil” na seleção pública do Programa Petrobras de Desenvolvimento e Cidadania, obtendo a aprovação no final de 2010. Com esse apoio, o Projeto Aroeira assegurou os meios para deslanchar as duas principais ações iniciais, quais sejam, a criação da associação e a aprovação, junto ao Executivo e ao Legislativo do município de Piaçabuçu, da doação de um terreno público de quase 5 mil metros quadrados, destinado a abrigar a unidade de beneficiamento. Cada passo exigiu luta e persistência, como conta uma das associadas, Patrícia Conceição dos Santos, 32 anos: “Lembro das nossas primeiras reuniões de mobilização, no internato. Quem viu e ouviu percebeu que era um trabalho sincero. Fomos ao prefeito; fomos à rádio, para os ouvintes tomarem conhecimento; fomos para as sessões da Câmara, com a camiseta cinza. E eles não botavam em votação, ficaram vendo até onde a gente ia. Foram três sessões consecutivas, até a votação. Foi duro. Eles achavam que a gente ia desistir. Mas nós tivemos garra.” A doação do terreno, proposta pela Prefeitura de Piaçabuçu, foi aprovada pela Câmara de Vereadores, em regime de comodato. Começou então a implantação da unidade de beneficiamento. Com capacidade para processar 200 kg de
pimenta rosa, tem 300 m2 de área construída, dois geradores termossolares para produção de ar quente e um painel fotovoltaico de 1,6 KV, para geração de energia elétrica. O espaço abriga ainda a sede da associação e um auditório para palestras e atividades de capacitação. Em setembro de 2012 foi inaugurada a Unidade Demonstrativa de Beneficiamento Artesanal de Pimenta Rosa da Associação Aroeira, definida pelo presidente do Instituto Ecoengenho como “um passo para organizar a cadeia produtiva da pimenta rosa e outros produtos agroflorestais, desde a coleta até a comercialização, com padrão internacional de qualidade e incorporação de inovações tecnológicas, principalmente energias termossolar e fotovoltaica”.
Os agentes da mudança Entre aqueles que aderiram à novidade, boa parte veio das águas doces e salgadas da foz do rio São Francisco, com seus manguezais e lagoas próximos. São pescadores e marisqueiros que vivem dos peixes, dos crustáceos - principalmente pitu e camarão - e dos moluscos da zona estuarina. Nos últimos anos, eles vêm amargando prejuízos, causados pelos impactos dos problemas ambientais sobre o São Francisco, que se apresentam sob a forma de diminuição da piscosidade no rio, foz e lagoas. Entre eles, é comum ouvir afirmações como “o rio São Francisco está seco”, “não tem peixe”, “falta água” ou “não tem água para o peixe descer”. Cícero Santos da Conceição, 42 anos, é um dos que vieram das águas. Pescador, ele trabalhava em alto-mar, na captura de camarões para um dono de barco. “A pescaria não estava dando, tá uma paradeira. O rio não tem mais enchente, no verão não tem camarão e no inverno se mata o camarão na hora errada”. Diante da necessidade de sustento e da possibilidade de abraçar uma outra ocupação, ele não hesitou. Lançou-se à nova atividade e hoje é considerado um dos mais exigentes e qualificados catadores de pimenta rosa do projeto. Também Maria Lindinalva dos Santos, 45 anos, teve o rendimento familiar diminuído ultimamente. Tanto o marido, que é pescador tradicional, como ela, que pesca nas lagoas, se viram prejudicados pelas mudanças do rio. Extrativista, ela colhe frutas para vender em casa, na feira e nas portas, mas o resultado é insuficiente. Convidada para se associar ao projeto, foi uma das últimas a aderir. “Cismada”, como diz, desconfiou até o último momento, mas hoje colhe os frutos da decisão. Apontada como uma das extrativistas de maior produtividade da região, ela conclui que “a gente precisava ser valorizada. O preço que recebíamos pela aroeira era uma coisa simbólica. Hoje podemos dizer que é um trabalho digno. E nos trouxe união”. A jovem Mayara dos Santos Ferreira, 22 anos, que vivia de faxinas e da pesca de camarão e pitu, quando a lagoa secou aderiu ao projeto. Além do rendimento complementar, ela incorporou algo que não imaginava: mudança de atitude. Antes individualista, ela conta que o projeto operou uma transformação em seu modo de ser: “Aqui não é só meu, foi a primeira vez que trabalhei em equipe. Eu não escutava conselho, agora ouço. Tive que aprender, tive que deixar a minha ignorância de lado. Estou aprendendo e estou recomendando aos outros”. Gilda dos Santos, 34 anos, mulher de pescador, ajuda o marido vendendo pei-
A oportunidade de geração de renda e crescimento profissional vem atraindo jovens das comunidades ribeirinhas
xe e camarão em casa. “A pescaria estava fraca”, relata, justificando a decisão de se arriscar num projeto desconhecido. Satisfeita com o ganho alternativo, ela foi uma das primeiras a experimentar a utilidade da pimenta rosa na forma torrada e moída, que vem usando como tempero no preparo de peixes e camarões, em substituição à pimenta-do-reino. Na fase inicial de aproximação com a comunidade, o Instituto Ecoengenho valeu-se da experiência de Jorge Isidro dos Santos, 53 anos, técnico agronômico especializado em desenvolvimento sustentável, com atuação em projetos socioambientais no semiárido. Na foz do São Francisco ele observa os contrastes entre a riqueza natural e a condição socioeconômica, que se traduz num quadro de pobreza crônica: “Aqui é um lugar de muita potencialidade, mas o índice de analfabetismo é muito alto. Muitos apenas assinam o próprio nome, não leem. E todo recurso vem da pesca ou do extrativismo”. Jorge começou por identificar lideranças entre os catadores de aroeira, a exemplo do experiente Djenal Soares, do município sergipano de Santana de São Francisco, conhecido como “o rei da aroeira”, e Gilvânio Rocha dos Santos, um jovem de Piaçabuçu. Teve início aí a mobilização das comunidades desses dois municípios e também de Penedo e Neópolis. Gilvânio, 29 anos, também foi pescador, mas desde 2001 vinha atuando na coleta da aroeira, onde se tornou “cabeça de turma”, liderando 25 pessoas, que já chegaram a colher duas toneladas do produto para as indústrias. A remuneração e o risco não compensavam, avalia ele, que chegou a ser preso pelo Ibama, devido às práticas predatórias adotadas. Sem orientação, os cortes eram feitos com facão, pelas cepas, comprometendo o processo de reprodução das árvores.
assumindo o negócio A adesão de Gilvânio foi um momento decisivo para a conquista de credibilidade do projeto junto
à comunidade de Piaçabuçu. Diante dos dirigentes e mobilizadores do Instituto Ecoengenho ele viveu momentos de impasse. A questão central residia na transparência, ou “sinceridade”, que as pessoas ali usam como medida para dimensionar o real valor das palavras. “Pensava comigo: será que eles estão falando a verdade ou é mentira?”. O ceticismo tinha razão de ser: “A maioria dos projetos que a gente vê por aí é para roubar”. Depois dos questionamentos e esclarecimentos veio o convencimento, e ele passou a arregimentar outros extrativistas nos povoados de Satuba, Penedinho, Sudene, Peba, Potengi e Bonito. Hoje é um entusiasta do Projeto Aroeira, que lhe gerou ânimo inclusive para resgatar uma experiência interrompida no passado. Tanto ele como a presidente da Associação Aroeira, Ana Maria da Rocha, retomaram os estudos, para completar a escolaridade. Os associados se apropriaram efetivamente do negócio, estabelecendo inclusive um esquema de atividades que comporta produção individual e produção coletiva, além de um regime de escalonamento: “A gente bolou o sistema”, afirmam, orgulhosamente. Nos períodos de plena produção, na safra, cada associado trabalha quatro dias da semana externamente, na coleta. Na semana seguinte trabalha mais quatro dias internamente, no beneficiamento. Na fase de beneficiamento, o “mutirão” foi uma solu-
ção que emergiu naturalmente. Os produtores pactuaram que cada um é responsável, individualmente, pelo volume de pimenta rosa coletado, porém pode agregar uma turma para o beneficiamento do seu material, comprometendo-se com os colegas em participar, reciprocamente, do beneficiamento da produção destes. O resultado da venda se destinará sempre ao responsável pela coleta. “Quando é que uma pessoa sozinha poderia fazer uma caixa de pimenta rosa, como é que um de nós sozinho daria conta de um trabalho desses?”, indagam, respondendo que juntos conseguem produzir três caixas num dia e já registraram o recorde de dez caixas/dia. As primeiras caixas, contendo 40 unidades de 30 gramas cada, foram vendidas em setembro, e desde então os associados puderam avaliar melhor a lógica do negócio. “Ninguém sai perdendo!” constatam, entusiasmados com o bom funcionamento do esquema, e cientes da singularidade da atividade, que se distingue da relação anterior com as indústrias e tampouco pode ser classificada como emprego: “É uma renda diferente”, definem.
A capacitação Os associados do Projeto Aroeira cumprem um extenso roteiro antes de serem integrados à produção da pimenta rosa. A capacitação é condição
Ecológica Além do uso dos frutos como condimento alimentar, a aroeira tem utilização comprovada na recuperação de áreas degradadas e em programas de reflorestamento de matas ciliares. Os frutos adocicados atraem os insetos, que atuam como polinizadores e dispersores das sementes. A Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias − Embrapa, unidade Florestas, identificou uma taxa alta de frutificação, em torno de 82%. Além de fácil reprodução, a espécie apresenta facilidade de adaptação e crescimento rápido. Planta nativa do Brasil, ocorre em diversas regiões, na beira de rios e córregos, em várzeas, dunas e também em terrenos secos e pedregosos.
9
CAPA
Os procedimentos seguem rígidos padrões de higiene e qualidade
Vocação do lugar e produção artesanal fazem a diferença “O produto deles é todo artesanal, de excelente qualidade”. Essa é a definição da engenheira florestal Aline Boina, da Agriflor Consultoria e Projetos, do Espírito Santo, para a pimenta rosa produzida no Projeto Aroeira. Ela confere especial importância ao caráter artesanal da produção como fator que imprime um diferencial ao produto: “A aroeira é muito sensível, se for submetida ao processo industrial, com máquinas, os frutos quebram e a qualidade do produto diminui”, informa, explicando que a maior parte da produção de pimenta rosa exportada do Brasil é produzida industrialmente. Além do processo de beneficiamento, ela destaca a qualidade do material in natura: “A matéria-prima é boa, porque a região tem muito sol, e as plantas são bem adaptadas ao lugar. Os frutos são bonitos, avermelhados”, diz, com a experiência de especialista em aroeira, com atuação nas regiões Nordeste e Sudeste do país. A engenheira assinala ainda os apelos social e ecológico do projeto: “Eles produzem sem degradar ou poluir, e geram renda numa região onde a receita com atividades econômicas é muito restrita”.
para passarem de cadastrados a associados. O programa de capacitação funcionou como uma imersão em “um mundo de informações novas”. Os conteúdos abrangeram desde as informações básicas, sobre as propriedades terapêuticas da aroeira e as possibilidades culinárias da pimenta rosa, até os conhecimentos sobre extrativismo sustentável, energias renováveis, associativismo, gestão do negócio e relação com o mercado, além dos cursos práticos e teóricos sobre a coleta e o beneficiamento. “Os saberes locais são valiosos, enquanto conhecimento empírico, mas não se deve, por isso, subvalorizar as informações e avanços tecnológicos. Sem desconsiderar outras opiniões, nós acreditamos que o conhecimento popular não resolve tudo, que é possível introduzir tecnologias e informações novas. As inovações favorecem o êxito de projetos socioambientais. Usamos tecnologias existentes para empreender projetos sustentáveis,
com o máximo de praticidade e o mínimo de complicação”, explica José Roberto Fonseca. A capacitação para a coleta foi uma das etapas mais importantes, porque introduziu na região uma nova forma de manejo dos bosques de aroeira. Até então, os extrativistas adotavam métodos rudimentares, predatórios, como os cortes a facão, provocando desmatamentos. Foram orientados, desde então, a fazer cortes criteriosos, com tesouras e alicates de poda, a fim de estimular a produtividade da planta. Dentre os tratamentos silviculturais recomendados, o projeto ainda não desenvolve plantios de aroeira, embora cogite assumir como meta. A capacitação para o beneficiamento orientou quanto à sequência de atividades executadas dentro da unidade: separação dos cachos de pimenta rosa; lavagem, pré-secagem em ventiladores; secagem em estufas; seleção de grãos; estocagem; peneiragem; pesagem; envasamento, rotulagem e vedação. Permeando todas essas etapas, o rigoroso controle de qualidade, a fim de assegurar aspectos como limpeza, beleza e teor de umidade. Os associados também aprenderam sobre o funcionamento dos módulos de eficiência energética, que dispensam o uso de combustíveis fósseis ou energia da rede elétrica para o
Atendendo ao mercado da alta gastronomia, a pimenta rosa da foz tem padrão internacional.
aquecimento. Um coletor de calor gera energia térmica a partir do sol, bombeando ar quente até os secadores ou estufas onde as pimentas são desidratadas, num circuito fechado contínuo. O gerador fotovoltaico responde pelo consumo de energia diurno, e, quando conectado à rede elétrica, reduz ao mínimo o consumo noturno, para a iluminação. Por fim, a capacitação abordou o associativismo e a gestão do negócio, difundindo conhecimentos sobre custos, custeio, investimento, faturamento, lucro e outros aspectos, além de noções sobre logística, promoção do produto e relação com o mercado consumidor. Rita Paula Ferreira da Conceição, 27 anos, curso médio completo, agricultora, foi uma das primeiras a ingressar no programa de capacitação do Projeto Aroeira. “Participei desde as primeiras palestras e oficinas e me interessei, vi que era um projeto que ia dar resultado. Então trouxe comadre, mãe, irmã, vizinha... Aqui dá muito mais que a roça. Agora a roça é um complemento. Hoje a aroeira é o foco de tudo”, afirma. Atualmente ela atua como multiplicadora, capacitando os moradores que venceram a desconfiança e passaram a solicitar cadastramento. A habilidade e a perícia demonstradas pelos associados levaram inclusive o Instituto Ecoengenho a mudar os planos iniciais de contratar em Maceió dois técnicos para o controle de qualidade da produção. Rita é uma das duas associadas que foram contratadas em caráter experimental para desempenhar a função. A outra contratada é Terezinha Maria Teixeira Muniz, marisqueira, curso médio completo, que aos
O produto chega ao mercado em embalagens de 30 gramas
31 anos está vivendo a perspectiva do primeiro emprego. “Aqui não temos oportunidades, então nos submetemos a tudo para ver a melhoria dentro de casa. O trabalho com a aroeira é árduo também, mas estou vendo resultados. Já vendi uma caixa e agora estou com a possibilidade de ter uma coisa mensal. É um orgulho para nós termos o Projeto Aroeira aqui.”
O produto no mercado A pimenta rosa do Projeto Aroeira está sendo comercializada em vidros de 30 gramas, ao custo de R$ 8,00 a unidade. Além de mais vantajosa para o consumidor, que costuma adquirir oito gramas por R$ 7,00, permitiu uma elevação radical na remuneração dos produtores, que de R$1,50 por quilo, pago anteriormente pelas indústrias, passaram a aferir R$ 80,00 por quilo. Quanto à clientela, a opção foi claramente por buscar os nichos diferenciados do mercado: supermercados gourmet, restaurantes de alta gastronomia, lojas de bebidas finas, delicatessens e buffets. O publico estratégico, como divulgador do produto, são os chefs de cozinha, inclusive os adeptos da linha slow food. A estratégia de sensibilização do mercado se apoia na qualidade do produto: “Aqui fazemos a melhor
pimenta rosa do Brasil”, assegura o presidente do Ecoengenho. Com um potencial estimado em 12 toneladas por safra, a pimenta da foz tem um horizonte promissor à frente, diz ele, concluindo que “o mercado existe. É só a gente ter fôlego para ir buscar”. Uma preocupação que persiste diz respeito à ociosidade da unidade no período da entressafra. Para potencializar o uso das instalações e assegurar estabilidade ao negócio, está sendo elaborado um plano de expansão, ancorado em duas vertentes: a implantação de uma unidade-piloto para a produção de óleo essencial de aroeira, que alcança valores elevados no mercado, e a diversificação das atividades, para produção de frutas desidratadas. Uma vez alcançada a meta do aumento da escala de produção, a intenção é mudar a forma de organização, passando da atual associação para uma cooperativa, a fim de reduzir custos, melhorar a eficiência de gestão e aumentar a lucratividade. Nesse cenário, 30% dos resultados seriam destinados à constituição de um fundo de sustentabilidade do empreendimento. Também estão nos planos do projeto a implantação de viveiros de aroeira, a fim de realizar a etapa de plantio, e a implantação de unidades de beneficiamento nos outros três municípios, mantida a
mesma estrutura organizacional. “Essa quebra de paradigma está só começando”, afirma José Roberto, diante das muitas perspectivas que se abrem para a experiência. O entusiasmo, entretanto, ressalva, não anula o consciência da responsabilidade em relação às mudanças e expectativas que o projeto está criando nas comunidades pobres da foz do São Francisco: “A nossa responsabilidade é grande. Estamos mexendo com a esperança das pessoas”.
O Instituto Ecoengenho
José Roberto Fonseca, do Instituto Ecoengenho, aposta na tecnologia
A organização responsável pela execução do Projeto Aroeira traz no nome a concepção que norteia a sua atuação. Mesclando ecologia e engenharia, o Instituto Ecoengenho aposta nas tecnologias como instrumento para a transformação socioambiental, com inclusão social e desenvolvimento sustentável. A ONG é formada por uma equipe multidisciplinar, tendo à frente o engenheiro de pesca José Roberto Fonseca, ex-presidente do Instituto de Meio Ambiente de Alagoas − IMA. A capacidade de articulação nacional e internacional tem viabilizado muitas das ações, com parceiros como a United State Agency for International Development − Usaid, Banco Interamericano de Desenvolvimento − Bid, Fundação Fiorello La Guardia, Winrock International, Petrobras e Bolsa de Valores de São Paulo − Bovespa. O envolvimento do grupo com experiências de energia renovável começou no final da década de 1990, na Fundação Teotônio Vilela, com o projeto Luz do Sol, que levou energia solar a comunidades carentes. As ações tiveram continuidade no Instituto Ecoengenho, fundado em 2001, mas esbarraram na conclusão de que somente o acesso à energia não é suficiente para mudar o status de pobreza. O desafio seguinte foi ampliar o uso da energia renovável para além da iluminação e do conforto doméstico, experimentando a sua aplicação na produção, como já haviam feito os incas e os egípcios. Um microssistema de irrigação para geração de renda, o projeto H2Sol, foi implementado na localidade de Baixas, no município de São José da Tapera, dando origem ao produto Pimenta da Tapera. Com o Projeto Aroeira, que produz pimenta rosa, o Ecoengenho consolidou a opinião de que o produto com valor agregado, destinado a nichos de mercado, oferece mais resultados do que a produção para subsistência, como afirma o dirigente do instituto: “Mais do que a garantia da subsistência, devemos buscar novas perspectivas de vida para as comunidades pobres. Esse é o nosso conceito de erradicação da pobreza. Não há outra forma de erradicar a pobreza que não seja a geração de renda. A nossa lógica é produzir com pobres para vender para ricos. E isso não vem de um conhecimento teórico, esse conceito e essa vontade de mudar paradigmas vêm da indignação, porque sabemos o que é a miséria nessas regiões”.
para transformar a realidade social.
11
A chef Teresa Corção, uma das mais conceituadas do Rio de Janeiro, foi convidada a conhecer o Projeto Aroeira e a experimentar a pimenta rosa da foz do rio São Francisco. Ela esteve em Piaçabuçu, visitou as instalações da unidade de beneficiamento artesanal, conversou com o pessoal da Associação Aroeira e, na ocasião, juntou-se às mulheres na cozinha e preparou um molho para saladas. Voltou ao Rio “apaixonada”, como define, não apenas pelo projeto, mas pelas pimentas rosas que encontrou em Alagoas. “Em 35 anos de profissão nunca vi pimentas rosas de tão boa qualidade”, afirma, com a experiência de quem conhece bastante o produto, inclusive a poivre rose ou baie rose importada da sofisticada maison Fauchon, de Paris. Ela atribui a qualidade alcançada a dois fatores: a vocação natural do lugar e o método de secagem. “Essa forma de secagem adotada pelo Instituto Ecoengenho foi o grande diferencial, porque é homogênea, o fruto fica totalmente seco. A resina da pimenta rosa, quando crua, corre o risco de mofar, porque retém umidade. Na secagem ao sol, mesmo virando os grãos, um lado pode não ficar tão seco quanto o outro No método de secagem com o ar quente que vem da luz solar, o calor é distribuído homogeneamente, a casquinha fica seca, e o sabor, com uma leve picância, confere ao produto uma qualidade de gastronomia superior”. Não é à toa, portanto, que Teresa vem divulgando a descoberta com entusiasmo no Rio, onde, além de proprietária do restaurante O Navegador, integra um grupo de 18 “ecochefs” ligados ao Instituto Maniva. “Com essa qualidade, ela poderia estar nas melhores prateleiras das melhores vitrines do mundo. E ainda por cima é sustentável! É espetacular. Você compra um produto que tem todos os valores agregados possíveis”, diz, referindo-se à utilização de energia solar no processo de
foto: Bel Corção
Qualidade internacional
secagem e à geração de renda para a população da foz. A chef ensina que a especiaria pode ser usada em pó, depois de moída num moedor de pimentas, como tempero, ou batida num liquidificador, entre os ingredientes do molho. Também pode vir em grãos, por cima do peixe, como elemento decorativo, por causa da beleza dos frutos, que podem ser mastigados sem receio, explica, “porque além de saborosos e perfumados têm propriedades fitoterápicas, são cicatrizantes e anti-inflamatórios”.
Peixe preparado pela chef Teresa Corção com pimentas do Projeto Aroeira
A pimenta da Tapera Antes do Projeto Aroeira, o Instituto Ecoengenho implementou outra experiência inovadora na bacia do rio São Francisco, no município de São José da Tapera. No sítio Baixas, onde a comunidade colhia palha de ouricuri para a fabricação de vassouras, foi instalado um canteiro hidropônico muito simples, utilizando garrafas do tipo pet e um substrato com carvão da casca de arroz, areia e pó-de-serra. Devido à escassez de água e à inexistência de energia elétrica, foram utilizados módulos de energia solar voltaica para alimentar uma pequena bomba, responsável pela recirculação de água no sistema. Para corrigir as características da água proveniente de poços artesianos, utilizou-se um dessalinizador solar-térmico. O produto escolhido foi a pimenta, por algumas razões: a adequação ao sistema hidropônico, a resistência e a possibilidade de agregação de valor, quando comercializada em forma de vinagrete ou desidratada em secadores termossolares, como condimento. O apoio dos patrocinadores, como a Fundação La Guardia e a Usaid-Brasil possibilitaram que o projeto se desenvolvesse com mais liberdade: “Havia recurso para testar, podíamos ousar”, diz o presidente do Ecoengenho. Envolvendo um programa de capacitação e um plano de negócios, a Pimenta da Tapera transformou-se num caso de sucesso. Os potinhos de vidro chegaram aos supermercados e hotéis de Maceió, conquistando a aprovação dos consumidores e propiciando geração de renda para os produtores de Baixas.
As mulheres da comunidade atuam no canteiro hidropônico de pimenta
ENER G IA
Pequenas Centrais Hidroelétricas Uma alternativa energética e seus impasses
U
ma solução de menor impacto social e ambiental do que as grandes usinas, as Pequenas Centrais Hidroelétricas − PCHs têm sido apresentadas como uma alternativa econômica e ambientalmente viável para a geração de eletricidade, indispensável ao desenvolvimento do país. A consistência argumentativa de sua adoção como fonte energética tem despertado o interesse de investidores. Estima-se que no rio São Francisco e nos seus afluentes estejam previstas mais de 200 pequenas centrais hidroelétricas. A análise dessa fonte de energia e a compreensão dos impactos que o somatório dos empreendimentos previstos pode trazer para o meio ambiente e as comunidades ribeirinhas está na pauta de debates do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco − CBHSF. No entender do presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, não há alternativa para a geração de energia que não cause conflitos com a natureza. Se mal planejada e concebida, qualquer uma pode trazer mais danos do que benefícios. Ao examinar o projeto de PCHs, sugere ele, é preciso avaliar os possíveis impactos do seu conjunto no entorno e não apenas a avaliação individual de projetos. Só então deve-se definir quantas e quais devem ser construídas sem colisões com as necessidades das comunidades e do meio ambiente. “Sabemos, por exemplo, que há determinados cursos de água, cuja importância para a biodiversidade é tão grande que não comporta a construção de PCHs. É preciso que haja uma avaliação sistêmica e sinérgica dos seus efeitos cumulativos, para que os benefícios minimizem em muito os impactos”, afirma. A posição do Comitê é que, com tanta degradação ao meio ambiente observada ao longo de séculos,
Texto: Fred Burgos | FOTOS: joão zinclair
o desenvolvimento dessa atividade demanda uma base sólida de informações, capaz de sustentar com convicção os questionamentos naturais a processos que envolvem interesses tão amplos. A expectativa em torno das PCHs é que, em sendo um projeto bem-estruturado do ponto de vista ambiental, social e negocial, traga não apenas retorno financeiro, mas também possa levar o progresso para a região do empreendimento, sem danificar ou interferir substancialmente na natureza e na vida das populações. A temática assume importância crescente se for considerado que o São Francisco e seus afluentes possuem um alto potencial hidráulico-energético não explorado, o que faria das PCHs uma solução para o déficit energético regional. Segundo a assessora do Instituto Brasileiro de Mineração − Ibram e membro do CBHSF, Patrícia Boson, estimulado pelas organizações ambientais, o Comitê irá debater amplamente o tema, para que possa tomar uma posição conjunta. “No meu entendimento, a matriz hidroenergética é a melhor alternativa para o país. Mas é claro que ninguém afirmará isso quando ficar comprovado que um dado projeto em um local específico trouxer danos às populações e ao meio ambiente”, salienta. Conforme a resolução no 394, da Agência Nacional de Energia Elétrica − Aneel, uma PCH é uma usina de pequeno porte cuja capacidade instalada seja superior a um e inferior a 30 megawatts (MW). Além disso, a área do reservatório deve ser inferior a 3 km². O impacto socioambiental das PCHs, portanto, é consideravelmente menor do que o das grandes Usinas Hidrelétricas de Energia − UHEs. Na visão negocial, a pequena central hidroelétrica produz energia que é colocada à disposição do sistema elétrico brasileiro. O que for produzido tem a garantia estatal de que será
comprado. Mas nem tudo são flores. Operar a fio d’água (vazão natural) é uma característica de uma PCH típica. Em outros termos, não haveria um reservatório capaz de garantir a regularização do fluxo d’água. Com isso, em ocasiões de estiagem, a vazão disponível pode ser menor que a capacidade das turbinas, causando ociosidade. Porém, há situações nas quais as vazões são maiores que a capacidade de engolimento das máquinas, permitindo a passagem da água pelo vertedor. Por isso, o custo da energia elétrica produzida pelas PCHs é maior que o de uma usina hidrelétrica de grande porte, onde o reservatório pode ser operado de forma a diminuir a ociosidade ou os desperdícios de água. Há circunstâncias nas quais pequenos reservatórios se fazem necessários, já que nem todas as PCHs atuam apenas no fio d’água. No entender do professor Luiz Carlos Fontes, geólogo e coordenador do Laboratório Geo-Rio-Mar da Universidade Federal de Sergipe − UFSE, as PCHs não têm teoricamente um poder de reserva muito grande, mas retêm sedimentos (carga de fundo e de superfície). “Se eles deixarem de chegar ao rio principal, podem impactar, já que esses sedimentos são responsáveis por garantir a qualidade de água e afetam a produção de alimentos que chegam às casas”, observa. Ele explica que o rio não é só água, é também composto por sedimentos grossos (areias e cascalhos) e suspensos (lama e nutrientes). Portanto, é preciso considerar qual a influência das PCHs na retenção dessas cargas. É necessário, no seu entender, abordagens integradas dos impactos cumulativos de várias PCHs. “O rio principal é a soma dos seus afluentes. Existe um equilíbrio que, se quebrado, pode ocasionar mudanças inclusive na morfologia
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Por ocuparem áreas de maior desnível, as centrais poderiam ameaçar um eventual potencial turístico representado pelas cachoeiras
dos canais”, afirma o professor da UFSE. Para exemplificar o efeito em cascata que pode ser provocado por tais projetos, Luiz Carlos Fontes afirma que a carga que o rio aporta no oceano é de fundamental importância para uma ampla biodiversidade. Assim, cada afluente possui um papel importante, cuja modificação pontual afeta uma ampla dinâmica. Dentro do próprio rio, “a ausência de carga de fundo pode, por exemplo, fazer com que o processo de erosão seja mais acelerado. É fundamental que haja sempre transparência na gestão dos recursos hídricos. A vazão de um rio não depende só do clima, mas também das formas de uso que se dá a suas águas e a dos seus afluentes”, afirma. Outra questão levantada é que muitas PCHs têm uma vida útil curta. Isso porque, em alguns casos, como seus reservatórios são pequenos, sofrem assoreamento de forma rápida. “Faz-se investimentos grandes com recursos públicos, mas o investidor pode estar interessado apenas no período inicial da vida da usina, o que pode gerar maior interesse na construção e implantação do que na sua operação”, adverte Rogério Sepúlveda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio das Velhas, afluente do São Francisco. Sobre os impactos das PCHs, o biólogo e um dos coordenadores da Associação para Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro − Angá, Gustavo Malacco, questiona: “Se o empreendimento é pequeno e não afetará outras atividades, já que está baseado no fio d’água, por que precisa de reserva?” Na visão
de Rogério Sepúlveda, há o argumento de que as PCHs não produzem grandes inundações e alteram menos a qualidade de água. “Mas este é um argumento simplista”, diz ele. “O problema surge quando se troca uma usina média por várias pequenas e se começa a picotar o rio. Em Minas Gerais, no rio Santo Antônio, na bacia do rio Doce, existem cerca de 10 PCHs previstas, que somadas representam um grande impacto”, adverte. Por isso, a promotora de Justiça Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa do São Francisco do Ministério Público da Bahia sugere que, na definição de qual deve ser a fonte geradora de energia, “a prioridade deve ser sempre em razão das necessidades e expectativas das comunidades e do meio ambiente, e não com foco apenas no custo e ganhos econômicos dos empreendedores”. Para o dirigente da Associação dos Irrigantes e Agricultores do Oeste da Bahia − Aiba, Júlio Ribeiro, os estudos dos impactos ambientais de tais projetos são de importância fundamental para que os diversos usos das águas não sejam comprometidos. Proprietário de duas fazendas nos municípios baianos de São Desidério e Bom Jesus da Lapa, no Médio São Francisco, Ribeiro conta com mais de quatro mil hectares irrigados, onde planta soja, milho e algodão para os mercados interno e externo. “É preciso que se leve em consideração que a produção agrícola gera mais emprego e renda do que tais projetos. Mas, por outro lado, o armazenamento de água no período de maior vazão pode permitir que ela seja liberada no momento de escassez, regularizando o fluxo do rio”, observa. Por se prestarem à geração descentralizada, as PCHs são adotadas principalmente em rios de pequeno e médio porte, que possuam desníveis significativos ao longo do seu percurso, gerando potência hidráulica suficiente para movimentar as turbinas. Em razão da baixa vazão de muitos afluentes, as PCHs são construídas nas áreas de maior desnível. Mesmo sem um conflito imediato com os projetos de irrigação, podem entrar em competição com o potencial turístico do lugar, já que onde tem PCH habitualmente tinha uma cachoeira. “Com isso, exclui-se de um determinado município o potencial de se explorar o turismo, criando um problema adicional para a cidade, que perde sua fonte de receita efetiva ou potencial. Por isso, todo projeto de PCH deveria se adequar ao uso público das águas. Mas não é isso que ocorre”, avalia Rogério Sepúlveda, completando que as PCHs não pagam royalties ao município, trazendo benefícios muitas vezes apenas para empreendimentos externos às necessidades locais. Nessa mesma linha de raciocínio, Gustavo Malacco observa que a lógica de crescimento não deve estar apartada de uma seletividade na inserção do país na economia mundial. Em sua perspectiva, a definição do modelo econômico a ser conduzido pelo país não pode desconsiderar seu impacto destrutivo em torno de uma sede insaciável por água e energia. “Estamos, por exemplo, exportando matérias-primas, que precisam de grandes quantidades de água e energia no seu processo produtivo, quando os países europeus e o Japão deixaram de produzir esses insumos. As indústrias siderúrgicas e de celulose e papel são, por exemplo, eletrointensivas e grandes consumidoras de água. Com isso, o Brasil não só assume um passivo ambiental grande, como passa a comprar a preços altos produtos finais fabricados a partir desses insumos vendidos a preços baixos”, avalia.
Abaeté, o berçário de peixes do São Francisco Afluente importante do São Francisco e próximo à usina Três Marias, o rio Abaeté, em Minas Gerais, é considerado um berçário de peixes migrantes – para muitos, o mais importante da bacia do rio São Francisco. Estão previstas para a calha do Abaeté cerca de nove PCHs. “Vão matar os peixes ao bloquear seus canais de migração, impedindo o seu ciclo reprodutivo”, avalia Rogério Sepúlveda. No entender de Gustavo Malacco, o Abaeté é um rio prioritário para a biodiversidade. “O Estado e a União fogem de uma análise macro que garanta a avaliação dos efeitos integrados do conjunto de empreendimentos”, critica. Para Malacco, não é compreensível que toda bacia hidrográfica receba empreendimentos sem avaliação dos usos humanos e dos ecossistemas
existentes. “As indenizações não resolvem valores perdidos para sempre”, afirma. Um dos focos de preocupação são os efeitos eventualmente drásticos na vida aquática. “É claro que se forem fechados os canais de migração do Abaeté, isso afetará a reprodução de peixes em todo o São Francisco. É fundamental que se leve em consideração não apenas a importância econômica, mas também, e principalmente, a ecologia dos lugares. Se forem seccionadas as principais vias da piracema, o impacto do entupimento das veias do rio pode levar a um colapso da vida aquática, altamente rica em espécies”, afirma. Pescador aposentado, Norberto Antônio dos Santos é morador do município de Três Marias, em Minas Gerais. Sua preocupação com o futuro do Abaeté remete ao futuro de cerca de 1.200 pescadores que vivem em sua cidade. O rio é o último a chegar à barragem de Três Marias. Nele existem catalogadas 156 espécies, muitas das quais migram para lá em busca do acasalamento e reprodução. São dourados, surubins, traíras, curimatãs, piaus, pacus, entre outros. “Não somos contra o desenvolvimento do país, mas a gente quer que valores importantes da natureza e dos homens sejam levados em conta”, afirma. Sua inquietação é compartilhada pelo piscicultor Luciano Souza Ribeiro, membro do conselho administrativo da Cooperativa dos Piscicultores do Alto e Médio São Francisco − Coopeixe. Residente em Morada Nova de Minas, ele tem vivenciado de perto a apreensão local. “Tenho participado de várias reuniões nas quais esse temor tem sido compartilhado. E a nossa expectativa é que o bom senso prevaleça”, diz. Norberto dos Santos explica que mesmo em caso de usinas que operam em fio d’água, a água passa por uma decantação e tem sua temperatura reduzida para cerca de 22º C em média, o que afeta a qualidade do ambiente aquático para a reprodução. “Na vazão normal do rio, há condições
Para alguns, as PCHs podem representar um negócio de risco elevado para o empreendedor
ideais para a reprodução: água barrenta, riqueza de nutrientes e temperatura acima de 27º C”, diz. Ele informa que, no último período de reprodução, foram coletados 100 peixes no “pé” da barragem de Três Marias e 100 peixes do Abaeté em diante. “Cerca de 95% dos que se encontravam próximos à barragem não estavam em condições de reproduzir. Já ao longo do Abaeté, a situação foi inversa: 95% estavam prontos para a reprodução”, observa.
Um empreendimento com riscos para investidores As pequenas centrais hidroelétricas não são um “negócio da China” para amadores. Como investimento, do ponto de vista econômico-financeiro, estão submetidas hoje a um conjunto de regras que as tornou um negócio apenas para profissionais. A avaliação é do gerente de planejamento energético da Companhia Energética de Minas Gerais − Cemig, Marcelo de Deus. Segundo ele, normas foram editadas desde 2009, exigindo dos investidores estudos em profundidade para a avaliação da viabilidade das PCHs. A ideia é reduzir substancialmente os riscos em torno daquilo que se anuncia como garantia física, que é a energia que a PCH pode comercializar e com que o sistema elétrico brasileiro passaria a contar. Essas regras estão definidas na portaria nº 463, do Ministério de Minas e Energia, e na resolução nº 409, da Aneel, publicadas em 2009 e 2010. Tais normas definem requisitos de desempenho para as PCHs, que, por exemplo, caso não sejam cumpridas, representarão perdas de garantia física até a sua exclusão do Mecanismo de Realocação de Energia − MRE, trazendo grandes perdas financeiras e uma considerável elevação dos riscos comerciais para os seus proprietários. MREs são condomínios formados entre os geradores hidroelétricos com o objetivo de mitigar os efeitos de variabilidade das vazões. Marcelo de Deus observa que, principalmente nos primeiros anos de operação comercial da PCH, caso ela atravesse períodos prolongados de seca e de consequente redução nas vazões, o empreendedor poderá ter reduções em sua energia comercializável e impactos em seu plano de negócio. “Portanto, as PCHs se tornaram um negócio de risco elevado para quem não possui condições de planejamento e operação efetivas”, avalia.
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ENTREVISTA
Se não construirmos desde já o pacto das águas na bacia do São Francisco, poderemos conduzir os conflitos para um contexto de confronto que não interessa a ninguém
Comitê é uma nova forma de praticar
democracia Eleito em agosto passado para complementar o mandato até as eleições previstas para meados de 2013, Anivaldo Miranda, jornalista e ambientalista alagoano, mestre em meio ambiente e desenvolvimento sustentável pela Universidade Federal de Alagoas, foi escolhido por unanimidade para dar um novo rumo ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – CBHSF. O colegiado é responsável pelo estabelecimento das regras e das prioridades de gestão da água numa bacia que ocupa nada menos do que 8% do território brasileiro, está inserida em seis estados e mais de 500 municípios brasileiros, além de abrigar uma população de mais de 13 milhões de pessoas. Com tempo curto para exercer a presidência, Anivaldo está determinado a devolver ao Comitê o papel político-institucional que ocupou desde a sua fundação, há 11 anos. O objetivo é colocar na ordem do dia do debate e da tomada de decisões os principais desafios da gestão dos recursos hídricos no rio São Francisco e seus afluentes, articular com outros atores do poder público, da sociedade civil e dos usuários as ações e sinergias que devem caracterizar o Programa de Revitalização do Rio São Francisco e garantir em sua total plenitude a democracia interna, que é a própria essência do colegiado.
Chico – Durante a polêmica gerada pelo Projeto da Transposição, o Comitê esteve em grande exposição na mídia e no debate político. Depois desapareceu do cenário e perdeu peso político. Por quê? AM – No momento em que a polêmica da transposição foi superada pelo início das obras do projeto, foi inevitável e até natural o refluxo da mobilização nas hostes do Comitê. Por outro lado, emergiram ao primeiro plano das atividades do colegiado tarefas permanentes e urgentes da gestão das águas da bacia, tais como o cadastramento dos usuários, estabelecimento do sistema de cobrança pelo uso da água bruta, definição e implantação da agência de bacia e outros instrumentos de ação. Essas tarefas importantíssimas, desempenhadas com grande êxito em parceria e através da Agência Nacional de Águas – ANA, não tiveram o mesmo apelo de mídia como no caso da transposição. Mas essa não foi a única causa da perda do espaço político-institucional conquistado. De certa forma o Comitê abriu mão do seu papel de articulação interinstitucional, de explicitação e encaminhamento da solução dos conflitos da água e de construção dos pactos de gestão necessários para que esses conflitos não venham a explodir no futuro. Chico – Os conflitos são tão graves a ponto de se pensar em sua “explosão” futura? AM – Os conflitos ainda são perfeitamente contornáveis e administráveis. Mas se cruzarmos os braços e não construirmos desde já o Pacto das Águas no contexto da bacia hidrográfica do rio São Francisco, envolvendo, sobretudo, a questão das vazões e a sustentabilidade do uso dos seus recursos hídricos, com critérios socioambientais e de justiça democraticamente negociados e assumidos, aí, sim, poderemos conduzir os conflitos para um contexto de confronto que não interessa a ninguém. Chico – E o que o faz pensar dessa forma, digamos, pessimista em relação ao futuro? AM – Eu não diria pessimista. Mas sim cautelosa e preventiva, porque as demandas pelo uso da água na bacia do São Francisco são crescentes em função do crescimento econômico e populacional, enquanto os limites da disponibilidade
dessa água são absolutamente limitados. Portanto, é imperativo que a sociedade saiba se antecipar para estabelecer o equilíbrio necessário entre essas tendências contraditórias, até porque, no presente século, o fenômeno do aquecimento global poderá tornar dramáticos os conflitos da água nos países que não souberem gerir com responsabilidade os seus recursos hídricos. Chico – No caso da bacia do São Francisco, onde estão os conflitos já instalados e aqueles em potencial? AM – É preciso pontuar que o conceito de “conflito” na área de recursos hídricos refere-se à oposição de interesses em torno do uso da água, sem assumir necessariamente uma conotação de confronto. Daí a possibilidade sempre presente de intermediação desses interesses, seja nos conflitos já instalados, como foi o caso da transposição e é o caso presente do debate que envolve os impactos decorrentes das Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs, e conflitos em potencial, inevitavelmente embutidos em projetos como aquele que pretende a implantação de centrais nucleares na calha do São Francisco. Essas, digamos assim, diferentes iniciativas de uso da disponibilidade hídrica na bacia são recepcionadas de modo diverso pela população e pelo universo dos usuários, exigindo, portanto, um processo transparente e democrático de análise e tomada de decisões. O comitê de bacia é, exatamente, conforme determina a lei, o primeiro cenário para o tratamento adequado, republicano, participativo e legal dos choques de interesse quando o uso da água, que é um bem comum, causa tensões e disputas. Chico – Mas para cumprir seu papel o Comitê precisa ser reconhecido e respeitado pelas partes em disputa... AM – Pela lei, deve ser reconhecido e respeitado. Pelo ritual da vida, esse reconhecimento e respeito precisam e estão sendo conquistados. Afinal, os comitês de bacias hidrográficas são conquistas notáveis da democracia participativa, formas inovadoras para novos conceitos de uso, ocupação e gestão dos espaços e dos recursos ambientais – a água em primeiro lugar. É claro que nem todos estão preparados para essa nova
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ENTREVISTA
“Os primeiros projetos, 22 ao todo, de recuperação hidroambiental, já estão saindo do forno e começaram a ser executados em toda a bacia”.
cultura, onde o poder público, a sociedade civil e os interesses privados, representados pelo universo dos usuários, se encontram civilizadamente para discutir suas diferenças e até onde possível, harmonizar seus interesses. Mas, não tenha dúvida que chegaremos lá! Até porque os comitês de bacia não servem apenas para dirimir conflitos. Chico – Para que mais servem os comitês? AM – Não há limites para a criatividade. Os comitês são espaços para o debate da gestão hídrica e ambiental, para a ampla articulação de iniciativas, seja do poder público ou da área privada, feitas isoladamente ou em amplas parcerias. São instrumentos para estabelecer a complementariedade e sustentabilidade dos investimentos públicos e privados, ferramentas para impedir superposição de projetos, canais de diálogo para melhorar a qualidade do desenvolvimento, instituições eficazes para controlar o gasto e a aplicação do dinheiro dos contribuintes. Os comitês mexem ainda com cultura, com educação ambiental, com mobilização e sensibilização e aplicam, através de suas agências de bacias, o dinheiro arrecadado com a cobrança pelo uso da água bruta. Chico – No caso do CBHSF, vocês já estão usando o dinheiro da arrecadação? AM – Os primeiros projetos, 22 ao todo, de recuperação hidroambiental, já estão saindo do forno e começaram a ser executados em toda a bacia. Mais 24 projetos estão sendo definidos para 2013, abrangendo recuperação de nascentes, combate à erosão, melhoria da qualidade da água, banco de mudas, recomposição de mata ciliar e um sem-número de ações que, pouco a pouco, de forma direta ou em parceria com governos, prefeituras, autarquias ou empresas, irão mudar a face do São Francisco e de seus afluentes, desde Minas Gerais e Goiás até a foz do rio, na fronteira que separa Alagoas de Sergipe e faz o encontro das águas doces com o mar. Chico – Quais as suas expectativas para 2013, na qualidade de presidente do CBHSF? AM – São muitas. A começar pelo relançamento do Programa de Revitalização da Bacia do São Francisco, que em boa hora teve a composição do seu Conselho Gestor reformulada e agora vai contar com a presença de representantes do CBHSF, conforme oportuna recomendação feita pelo Tribunal de Contas da União ao governo federal. Além de vários ministérios e agências federais, o novo Conselho Gestor reunirá ainda representantes dos estados da bacia e das populações tradicionais, num grande esforço para planejar, coordenar e otimizar da melhor e mais justa forma a aplicação de mais de R$ 6 bilhões, que é o montante aproximado de todos os investimentos previstos para os próximos anos na bacia do São Francisco. Coordenado pela Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano – SRHU do Ministério do Meio Ambiente, o novo Conselho Gestor da Revitalização promete dar uma virada na cooperação que deve ser a marca registrada do programa. Chico – Além da revitalização, que outras expectativas? AM – A grande expectativa é dar impulso decisivo à construção do chamado Pacto das Águas em nossa bacia. Para tal, estreitaremos ainda mais nossos laços com nossa grande parceira, a Agência Nacional de Águas, e com nossos irmãos, os comitês estaduais de rios afluentes e as áreas de meio ambiente e recursos hídricos dos estados da bacia, para que todos explicitem seus projetos, seus planos, suas expectativas de uso da água, suas políticas, seus investimentos, em suma, seus interesses, da forma mais transparente. A partir daí iremos construir o pacto que exigirá de todos flexibilidade, compromissos com o futuro, bom senso e uma visão que não seja somente ditada pelo interesse local e paroquial, mas, sim, pela visão de bacia hidrográfica, de espaço e de desenvolvimento sustentável.
CBHSF
Momento de
afirmação
N
este ano de 2012 o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco vivencia um momento marcante da sua trajetória. Superados muitos dos desafios e dificuldades que testaram a sua capacidade de resistência, o colegiado se afirma como voz autorizada a falar pela bacia do São Francisco, assumindo uma posição de protagonismo na condução do seu destino e contribuindo de forma decisiva para o fortalecimento do sistema nacional de recursos hídricos. Um dos primeiros comitês de bacia criados no país, o CBHSF completa 11 anos de prática democrática, exercitando no seu cotidiano a gestão participativa de que trata a Lei das Águas (Lei 9.433/1997). O respeito à pluralidade de opiniões faz parte da sua essência, como decorrência natural da sua composição diversificada. Basta acompanhar qualquer de suas reuniões para dimensionar o desafio que é a atuação sob esses princípios. Reunindo um público tão amplo quanto eclético, frequentemente os encontros reunem numa mesma discussão empresários irrigantes, pescadores, industriais, barqueiros, dirigentes públicos, indígenas, mineradores, quilombolas, professores universitários, gestores de empresas estatais e representantes de ongs e associações comunitárias. Todos os atores sociais que usam a água do rio ou têm presença na bacia cabem no colegiado, que por isso mesmo costuma ser denominado “parlamento das águas”. Além desta, muitas outras singularidades formam o perfil do comitê - tantas, que por vezes chegam a dificultar o entendimento externo acerca da sua identidade. A própria natureza jurídica o distingue, já que é um ente do Estado brasileiro, sem, contudo, ser um órgão público. A forma de funcionamento é igualmente diferenciada: as decisões, pela ordem de importância, são prerrogativas do conjunto de 62 membros e de uma Diretoria Colegiada - Direc, articulados com quatro Câmaras Consultivas Regionais e subsidiados por Câmaras Técnicas e grupos de trabalho. Os integrantes de qualquer uma dessas instâncias não recebem qualquer remuneração para exercer suas atividades. O Comitê também é dotado de uma mobilidade notável. As atividades acontecem sob o signo da itinerância, alternando-se entre os territórios de cinco estados - Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais, além do Distrito Federal.
A articulação institucional do CBHSF junto a um dos principais parceiros, a Agência Nacional de Águas - ANA
É uma exigência natural, derivada da dimensão da bacia, estimada em 638.576 quilômetros quadrados, e da inserção geográfica de um rio de 2.863 quilômetros de extensão, que se fixou no imaginário coletivo como “o rio da integração nacional”.
Intervenções físicas É assim, com todas as inovações que o tornam uma experiência paradigmática de gestão, que o Comitê do São Francisco funciona. Foi o primeiro do país a instituir um Plano de Recursos Hídricos, em 2004, e ganhou notoriedade, nos três anos seguintes, em razão da prolongada resistência que sustentou contra a implantação do projeto de transposição das águas do São Francisco. Paradoxalmente, o que seria uma luta perdida serviu para fortalecer a musculatura política do colegiado, que se manteve coeso na posição assumida.
Em agosto de 2010, depois de cumpridas as etapas preparatórias, o Comitê reuniu as condições para organizar a sua agência de bacia e implementar a cobrança pelo uso da água – ambos previstos na legislação dos recursos hídricos. Conquistada a autonomia gerencial, contando com recursos financeiros próprios e uma estrutura de operacionalização, teve início uma nova etapa na vida institucional. No ano seguinte, em 2011, reunidos em plenária, os membros do Comitê aprovaram 22 projetos de recuperação hidroambiental, que em 2012 começaram a ser implantados em localidades das quatro regiões fisiográficas da bacia Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco. Atualmente estão sendo ultimados os procedimentos para a implementação de mais 24 projetos. Essas são as primeiras intervenções físicas do Comitê na realidade da bacia. A prioridade foi revitalizar e proteger as nascentes e áreas de
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CBHSF recargas de córregos, riachos e rios de microbacias do São Francisco. Dessa forma, se busca aumentar a quantidade e a qualidade da água disponível para pequenas comunidades, ao tempo em que se preserva o fluxo destinado à calha do rio principal. São ações pontuais, de caráter demonstrativo, geralmente não contempladas nas macropolíticas públicas, mas que emergiram como demandas importantes das comunidades regionais. O entendimento dos membros do Comitê foi de que, embora localizadas, essas ações têm relevância social e ambiental e suprem uma lacuna que não está sendo atendida pelos grandes projetos.
Atuação política Neste segundo semestre o Comitê empreendeu um novo ritmo às suas atividades, de forma a corresponder melhor ao papel que lhe foi conferido dentro da bacia e no contexto do sistema nacional de recursos hídricos. O reposicionamento se traduziu em movimentos nos planos externo e interno. No plano externo, o colegiado intensificou a interlocução com parceiros institucionais da área de recursos hídricos e meio ambiente, em âmbitos federal e estadual, adotando como base de procedimento a autonomia de opinião e o respeito mútuo. Uma das primeiras articulações teve como objetivo a incorporação do Comitê ao conselho gestor do Programa de Revitalização do Rio São Francisco - PRSF, conforme recomendou o Tribunal de Contas da União ao governo federal. A incorporação é uma antiga reivindicação, motivada pelo desejo de contribuir para uma melhor sinergia na execução dos programas governamentais na bacia. O ingresso formal no conselho se dará na próxima reunião plenária do Comitê, que ocorrerá em Penedo (AL), no final de novembro. No plano interno a tarefa que se impõe ao Comitê neste momento é o avanço na gestão dos recursos hídricos. Trata-se de um de seus maiores desafios: a condução dos conflitos pelo uso da água, de forma a estabelecer o uso múltiplo, justo e consensuado entre todos os usuários. A questão envolve assuntos controversos, a exemplo dos impactos da operação das grandes usinas hidrelétricas, os efeitos das Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs e ainda a perspectiva de instalação de usinas nucleares na bacia do São Francisco. A esse respeito, o presidente do Comitê, Anivaldo Miranda, explicitou recentemente a sua visão de que “conflitos não existem para serem colocados debaixo do tapete, existem para serem resolvidos”, ao tempo em que distinguiu conflitos e confrontos, defendendo o diálogo como meio para a construção do denominado “pacto das águas”. As condições para o enfrentamento dessa nova etapa começaram a ser construídas internamente, com a iniciativa do Comitê de resgatar plenamente a sua essência de colegiado, mediante a descentralização do poder. Desde agosto, foi restaurado o pleno funcionamento das Câmaras Regionais e das Câmaras Técnicas, que, assim, ampliaram a sua influência nos processos decisórios.
As Câmaras Regionais Na sua estrutura, o CBHSF conta com quatro Câmaras Consultivas Regionais - CCRs, que atuam no Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco. É papel das CCRs promover a articulação dos agentes envolvidos regionalmente com a gestão dos recursos hídricos, notadamente os comitês de bacias dos rios afluentes, bem como a identificação de demandas locais e regionais, que são encaminhadas à presidência, analisadas pelas Câmaras Técnicas e apreciadas pelo plenário, sob o prisma das prioridades institucionais e da viabilidade técnico-financeira. Os membros das CCRs compõem, juntamente com o presidente e o secretário executivo do Comitê, a Diretoria Colegiada - Direc. As reuniões das câmaras são públicas e acontecem com uma frequência mínima de três vezes ao ano. Suas atividades orientam-se pelo regimento interno e atendem aos requisitos do planejamento e da avaliação sistemática, envolvendo um plano de trabalho e um relatório anual. Entre os principais assuntos que mobilizam atualmente as atenções das CCRS se destacam a proposição e acompanhamento da execução de projetos de recuperação hidroambiental, o Plano de Aplicação Plurianual -PAP 2013-2015, além dos problemas ambientais de cada região.
As Câmaras Técnicas As Câmaras Técnicas são as instâncias encarregadas de realizarem a discussão e a análise de assuntos específicos, de natureza técnica, científica e institucional, com vistas à elaboração de pareceres destinados a subsidiar a tomada de decisões do Comitê. Nas Câmaras Técnicas é onde amadurecem tecnicamente muitas das questões institucionais estratégicas. Elas emitem pareceres e produzem e analisam minutas que, uma vez apreciadas e votadas pelos 62 membros, transformam-se em deliberações do CBHSF. Os integrantes das Câmaras Técnicas são profissionais especializados, geralmente vinculados a instituições representadas na composição do Comitê. Os nomes são indicados por membros titulares do CBHSF. Atualmente são três as câmaras de natureza técnica: a Câmara Técnica de Planos, Projetos e Programas - CTPPP, a Câmara Técnica Institucional Legal - CTIL e a Câmara Técnica de Articulação Institucional - CTAI. Da pauta recente da CTPPP constam assuntos como o Plano de Aplicação Plurianual - PAP 2013-2015. Pelo crivo da CTIL passam todos os assuntos e minutas de deliberações do Comitê que demandam o exame de aspectos
legais e formais. A CTAI se prepara para deflagrar o processo de mobilização para a renovação dos quadros do Comitê, nas próximas eleições, em 2013. Para assuntos específicos de maior relevância, o Comitê conta com Grupos de Trabalho GTs permanentes ou temporários. Atualmente funcionam o Grupo de Trabalho Permanente de Acompanhamento da Operação Hidráulica na Bacia do Rio São Francisco - GTOSF, o Grupo de Acompanhamento do Contrato de Gestão - GACG, além dos GTs criados para a revisão do Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia e para a realização, no próximo ano, de um seminário sobre as Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs.
A agência da bacia Criada em junho de 2010, a agência de águas do CBHSF cumpre a atribuição que lhe é conferida enquanto ente do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, qual seja, o de secretaria executiva, responsável pelo provimento das condições necessárias para a operacionalização das ações do Comitê. A agência da bacia responde pelo planejamento, execução e acompanhamento de ações, programas, projetos, pesquisas e outros procedimentos determinados pelo Comitê. Nessa condição, apóia o CBHSF no processo de decisão e gerenciamento da bacia hidrográfica. O apoio administrativo, técnico e financeiro abrange a avaliação de projetos e obras, realização de licitações, contratação de serviços e de pessoal, celebração de convênios, suporte logístico para as reuniões plenárias e da Direc, CCRs, CTs e GTs, além de outros eventos e demandas institucionais. A agência escolhida em seleção pública foi a Associação Executiva de Apoio à Gestão de Bacias Hidrográficas Peixe Vivo. Atuando como braço executivo de mais sete comitês de bacias hidrográficas em Minas Gerais, onde é sediada, a AGB Peixe Vivo tem no Comitê do São Francisco o seu principal cliente e o mais desafiante trabalho, como assinala a diretora geral, Célia Fróes: “É uma grande experiência, um grande desafio, porque é um modelo novo, uma construção nova, conjunta, entre o comitê, a agência e o órgão gestor, que é a ANA. Foi um marco na gestão dos recursos hídricos o início da cobrança e aplicação dos recursos do São Francisco. Estamos num momento muito bom, o Comitê está num momento de protagonismo, sabe agora melhor o caminho a ser seguido, está executando projetos... É um bom momento e estamos vislumbrando um grande futuro daqui para a frente”.
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Romaria
Em um ensaio revelador, o fotógrafo baiano Adenor Gondim documenta a peregrinação de fé de centenas de romeiros a Bom Jesus da Lapa, no oeste da Bahia.
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Olhando para o céu de cada um POR AdENOR GONDIM
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asci na cidade de Rui Barbosa (BA), ao lado casa de seu Pedro Nascimento. Negro alto, bonito, marido de Dona Ninha, pai de Olga e Gildo, meu inesquecível amigo e dono de um caminhão GMC. De janeiro a julho viajava o país inteiro – Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro... – mas quando chegava agosto, era sagrado. Seu Pedro, para alegria da rua, começava a arrumar o caminhão para levar romeiros para a Lapa do Bom Jesus. Três horas da manhã os romeiros iam chegando, acendendo uma fogueira no meio da rua para “quentar o frio” e fazer um cafezinho. Nessa noite a rua era uma festa. Ladainhas, benditos, rezas, causos, gargalhadas... E na saída do velho GMC, o foguetório iluminava os céus da cidade e o coração dos romeiros do Bom Jesus. “Já vai saindo a romaria da paz Já vai saindo a romaria do amor A romaria que vai saindo é do Nosso Senhor Avistei a santa igreja, avistei a santa cruz A romaria que vai saindo é do Senhor Bom Jesus” Eu tinha a maior curiosidade em conhecer a Lapa do Bom Jesus. Seu Pedro pedia para me levar. Meus pais eram “crentes”, batistas, não permitiam. Nunca esqueci os benditos, o som do conversório, o pipocar dos foguetes, a buzina, o ronco do velho motor do GMC e a voz estridente de seu Pedro avisando a hora da partida. Vinte e cinco anos depois, em 1981, já metido a fotógrafo, não morava mais em Rui Barbosa, o caminhão GMC já não existia, seu Pedro, encantado, agora levava romeiros para o céu, fui finalmente conhecer a Lapa do Bom Jesus. Fora de época, gruta vazia, o Bom Jesus crucificado, o silêncio da solidão dos deuses na grande Lapa da Pedra da beira do rio São Francisco. Em mim a lembrança da festa da rua da minha infância. Assim começou a grande paixão pelo longo e encantado caminho da religiosidade do povo da Bahia, que confunde e funde com beleza e graça a cultura religiosa e de costumes de três continentes. A Europa com o cristianismo colonizador, a África com o panteão dos orixás e a América com a cultura indígena. O que me encanta é a forma como cada devoto (não importa a religião) materializa o seu sentimento em relação ao sagrado. Assim foi nas festas de largo de Salvador, na romaria do Bom Jesus da Lapa, no Monte Santo, nas caatingas do Beato Pedro Batista e na nobreza da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira. Esse é o caminho que me levou ao céu de seu Antônio Romeiro e ao reino encantado de Aoiká de Dona Filinha de Iemanjá.
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Vila de Piragiba. Uma riqueza que vem do passado Carlos EtchevarnE*
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al poderiam imaginar os habitantes da Vila de Piragiba, no município de Muquém do São Francisco, oeste baiano, que desmatando as encostas das íngremes serras que cercam o povoado, para pastagem, detonariam um processo de erosão que iria repercutir diretamente na descoberta de um dos sítios arqueológicos mais significativos para a pesquisa sobre populações indígenas pré-coloniais realizadas até esse momento, no Médio São Francisco. De fato, a partir dos estudos feitos no sítio da praça da pequena Vila de Piragiba conseguiu-se iniciar uma linha de investigação que objetiva compreender melhor os grupos indígenas que arqueologicamente deram a se chamar de Aratu1. O oeste da Bahia, especialmente, parece ter sido densamente povoado por esses grupos, se considerarmos o número de sítios em Barreiras, Wanderley, São Desidério, São Félix do Coribe, Sítio do Mato, entre outros municípios além-sanfranciscanos. Como veremos a seguir, o número de urnas localizadas (muitas delas escavadas), assim como o conjunto de instrumentos em pedra, lascados e picotados, demonstram que eram instalações de longa duração e de alta densidade demográfica para os padrões de povos horticultores. Sinal de que existia um extenso horizonte social e cultural com relevante eficácia de adaptação às condições ambientais da-
Um povoado simples e acolhedor, onde as árvores funcionam como espaços para o lazer, interação e troca.
quela região, que, convém ressaltar, deveriam ser bastante próximas às atuais. Hoje, os materiais e as informações produzidas sobre o sítio Aratu de Piragiba são objeto da atenção de pesquisadores de várias partes do Brasil e servem de parâmetros para comparações com outros encontrados em território nordestino. Disto se deduz que Piragiba constitui uma fonte rica em informações históricas e é igualmente importante pelo seu potencial econômico, merecedor de ser aproveitado com uma correta gestão.
A vila de Piragiba e seus habitantes No início da década de 1990, quando foi identificado o sítio da praça, Piragiba era um povoado com apenas duas fileiras de casas que formavam um conjunto muito simples e pacato, porém gracioso e acolhedor2. Apesar de estar localizado a somente 2 km da BR que liga Salvador a Brasília, os recursos tecnológicos das grandes cidades não tinham chegado ainda. Não obstante, seus moradores souberam criar engenhosas estratégias para organizar a vida privada dentro da casa, a convivência entre os moradores da vila e os contatos com os povoados e as cidades das imediações. Nessa época prevalecia uma economia de agricultura de subsistência, baseada nos cultivos em pequenas propriedades familiares, havendo poucos
casos de moradores que criavam gado. O desmatamento provocado pelo corte da cobertura vegetal original para plantio de pastagem poderia estar apontando para o aumento da atividade pecuária, nos últimos anos. Por entre as duas serras que emparedam o vale onde está a vila, corre o meandroso riacho Santana, afluente do rio São Francisco, fonte dos recursos hídricos de que se serviam as pessoas, antes da instalação da água encanada. Atualmente, em períodos de chuva, o riacho aumenta de nível de forma extraordinária, em função do desmatamento das encostas das serras que cercam a vila. Sem a vegetação natural que amortecia as chuvas, a água desce de forma brusca para o riacho, fazendo com que este aumente de volume e de nível rapidamente. A velocidade dessa enxurrada impossibilita seguir a curva do meandro que está no extremo da praça, transbordando e inundando toda a vila. Desta forma se explica o processo intenso de erosão por que foi passando a praça, onde existiria o solo de habitação da antiga aldeia pré-colonial, levado pelas correntezas junto com os sedimentos naturais, rebaixando o nível e fazendo com que aparecessem os enterramentos funerários em urnas3. Uma ampla área retangular separava as duas fileiras de casas, com fachadas voltadas para ela. No centro desse espaço, denominado de praça, erguiam-se algumas árvores de grande porte,
embaixo das quais os habitantes da vila costumavam se sentar e conversar. Por essa época, um bom motivo de conversa eram os “potes d’índios” que estavam emergindo aos poucos na praça e que algumas pessoas tinham retirado para ver os conteúdos. À chegada dos arqueólogos, os moradores já sabiam que neles só encontrariam “ossos de gente quebrados” e tinham desistido de retirar mais potes. Sem saber muito bem o que fazer, o desinteresse para com as urnas foi tomando conta da população local. Este foi o sentimento geral que encontraram os pesquisadores quando chegaram à vila. Por isto, iniciou-se uma atividade paralela à pesquisa, que consistiu em estimular, sensibilizar e preparar a população para receber as peças que iam sendo encontradas e restauradas localmente. Elas formariam um bom acervo, com o qual se pensou na construção, no perímetro da praça, de um pequeno museu regional. Assim começou o sonho de que, com ele, a Vila de Piragiba passaria a ser conhecida, visitada e admirada e que traria novas energias à estagnada economia local.
As urnas dos grupos Aratu da Vila de Piragiba As urnas encontradas na praça de Piragiba correspondem a um universo de vestígios que se vinculam, como fora dito acima, aos grupos Aratu. Com este nome se designa macrounidades culturais referentes a sociedades de horticultores ceramistas, que mantiveram semelhanças em alguns aspectos da cultura material, em especial na produção cerâmica e nos padrões de enterramento. A horticultura dos grupos Aratu consistia no cultivo de algumas plantas já domesticadas por outros grupos, como o milho e alguns tubérculos. Ademais, produziam cerâmica de alta qualidade, ainda que suas formas fossem simples e com poucas ou raras decorações. Fabricavam instrumentos em pedra, pela técnica de lascamento, com formas que parecem ser lâminas de machados, para manipulação da vegetação, mas que poderiam ter também outras funções, como cavadores para o plantio, por exemplo. No sítio de Piragiba pode-se
observar que o grupo ali instalado fazia uso, como fonte de matéria-prima para a fabricação de ferramentas, dos afloramentos rochosos que se encontram, em abundância, nas margens e no leito do riacho Santana, a pouca distância do que seria a aldeia. Geralmente, nos sítios arqueológicos vinculados a essas sociedades indígenas pré-coloniais encontram-se muitas urnas funerárias, em que se colocavam os corpos dos indivíduos mortos inteiros, mas flexionados, acompanhados às vezes de algum objeto ou com adornos corporais, como colares ou pingentes, feitos de ossos ou dentes. As urnas eram individuais, isto é, cada uma tinha um único indivíduo, e na sua utilização não parece ter existido distinção por faixa etária. Adultos e crianças eram enterrados em recipientes que variavam apenas no tamanho, a depender da idade. Pelo seu aspecto externo, as urnas cerâmicas são lisas, têm formato de jambo ou de pera invertida (periforme) e todas elas apresentam opérculos ou tampas cônicas, que serviriam para vedar os recipientes, com a função de proteger os corpos da entrada da terra, uma vez que todas elas eram colocadas a uma distância entre 30 e 50 cm da superfície, aproximadamente. Este equipamento funerário é talvez o elemento que melhor caracteriza os grupos Aratu, posto que eles foram fortemente padronizados. De fato, observa-se pouca variação nos traços formais (como no tratamento de superfície e no formato do recipiente, por exemplo), em quaisquer das regiões do Nordeste onde foram encontrados. Disto pode-se deduzir que havia um padrão muito estável no tempo e no espaço, do tratamento dado ao corpo do indivíduo morto. O rigor na reprodução das formas, a existência de proteção para cobrir a abertura, a forma de deposição do corpo, completo e em posição flexionada, sugerem que por trás desses dispositivos materiais e comportamentos existiriam aspectos simbólicos amplamente difundidos sobre a visão da morte, que justificariam a sua repetição
As urnas funerárias encontradas eram de cerâmica e serviam para enterrar adultos e crianças indígenas
NOTAS 1) Aratu é um nome conferido pelos arqueólogos, em função de não existir documentação escrita que revele os nomes étnicos. Seguindo uma convenção, deu-se esse nome por terem sido encontrados vestígios desses grupos, pela primeira vez, na baía assim chamada, no Recôncavo baiano, próximo a Salvador. Desde a década de 1960 do século XX muitos sítios vinculados a esses grupos foram localizados em todo o território do Nordeste e Centro do Brasil, proporcionando um quadro de ocupação territorial bastante amplo. 2) As primeiras informações sobre o sítio da praça de Piragiba foram oferecidas pela geógrafa Ana Cristina Morais, que, em 1992, encontrava-se realizando um levantamento na região sobre uso de solos, para a Superintendência de Estudos e Estatísticas da SEPLANTEC. Ciente da importância dos vestígios, Morais solicitou a intervenção dos professores da UFBA Cid Teixeira, Pedro Agostinho e Carlos Etchevarne. Este último realizou visitas de reconhecimento e coordenou os trabalhos de escavações sistemáticas entre os anos 1996 e 1998 e, anos mais tarde, outras atividades mais pontuais. 3) Na superfície da praça apareciam, em geral, dois círculos concêntricos, que correspondiam às paredes das urnas e às dos opérculos, já quebrados. O contínuo processo de erosão fez com que muitas fossem deterioradas, de tal modo que em alguns casos só ficou da metade até a base do recipiente.
padronizada por longos períodos e em um amplo território. Em Piragiba foram identificadas mais de uma centena de urnas, se considerarmos além das contabilizadas pelos arqueólogos, as que tinham sido já arrancadas pelos moradores e por outros curiosos que chegaram à localidade. Elas estavam distribuídas em uma pequena planície aluvial que margeia, pelo oeste, o riacho Santana, quando este passa a atravessar um extenso vale, antes de desembocar no rio São Francisco. A maior parte das urnas encontrava-se na praça, mas havia outras nos quintais de algumas residências atuais e no campo de futebol, abrangendo uma área de ocorrência de 700 m por 150 m, aproximadamente. O fato de se encontrarem também peças líticas, como lâminas de machados, lascas e alguns outros instrumentos, indica que se tratava de um espaço de habitação que incluía no seu perímetro setores de sepultamento. Cabe pensar que fossem até os mesmos locais das casas. Assim sendo, os mortos continuariam a ocupar o espaço dos vivos. Ao todo, pode se dizer que se tratava de uma aldeia de grande porte e que teve um período de permanência prolongado. Em termos de marco cronológico, a única datação radiocarbônica realizada até o momento proporcionou uma idade de aproximadamente 850 anos, o que quer dizer que a aldeia estaria sendo ocupada por volta do século XIII d.C.
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O museu da vila. Um projeto pendente
Inicialmente desconfiada, a população local acabou contagiada pelo clima de descoberta e passou a colaborar com os arqueólogos.
O sítio da Roça de Zé Preto A menos de um quilômetro de distância da praça, já na zona de pequenas propriedades rurais, encontra-se a roça de Zé Preto, denominada assim por ser este o nome com que se faz chamar seu proprietário. O local diferencia-se da praça pelo aspecto ambiental, levando em conta que está afastado do riacho Santana, o solo é argiloso laterítico e a vegetação é baixa. Atualmente a área com vestígios arqueológicos está ocupada pela plantação de mandioca, milho, feijão, abóbora, cana-de-açúcar e outras espécies comestíveis da dieta cotidiana do proprietário. Ali se encontra a casa de farinha, onde se transforma a mandioca brava, cultivada na roça, em alimento farináceo. Zé Preto conservou, durante anos, os fragmentos que foram saindo quando plantava ou colhia, porque perspicazmente considerou que eles poderiam ter um significado histórico importante. Graças a essa iniciativa temos hoje uma boa amostragem de fragmentos cerâmicos desse sítio, que, pelos traços particulares, permitem ser enquadrados como correspondentes aos grupos Tupi. Efetivamente, com o estudo dos fragmentos foi possível reconhecer os tipos de vasilhames a que pertenciam, havendo um alto índice de assadores, ou seja, recipientes apropriados para processar a mandioca brava ou de preparação de beiju. As bordas elaboradas, as pinturas policromáticas, assim como seu formato retangular, largo e chato, são elementos diagnósticos para vincular esses recipientes e, por consequência, o sítio arqueológico todo aos Tupi. Com a denominação Tupi ficam englobados numerosos grupos étnicos que compartilhavam alguns aspectos sociais, econômicos, simbólicos e, sobretudo, da tecnologia de produção cerâmica. Eram horticultores, com acentuado consumo de mandioca na dieta alimentar. Estes grupos ocuparam grande parte do território brasileiro, especialmente o litorâneo, e, provavelmente, foram se internando usando os rios como corredores de
migração. Os Tupi vieram em diferentes ondas de ocupação territorial e quando chegaram os portugueses no litoral já estavam dominando amplos territórios. Por serem os grupos indígenas que mais se vincularam com os colonizadores temos descrições bastante detalhadas feitas pelos primeiros cronistas. Essas informações puderam ser comparadas com os restos de cultura material, razão pela qual se tem um conjunto de dados bastante seguros sobre eles. Em todo o Além São Francisco existem numerosos sítios Tupi, o que indica que eles se espalharam por quase todo o território que hoje representa a Bahia. As datações radiocarbônicas conseguiram colocar um ponto temporal ao sítio Roça de Zé Preto, correspondente a 450 anos, aproximadamente, antes do presente, isto é, no século XVI d.C. Com esse dado podemos comprovar que os grupos Tupi, ali instalados, não tiveram contato com os grupos Aratu que se estabeleceram na praça de Pirabiga, quase 400 anos depois. Mas deve-se pensar que eles poderiam ter reconhecido o uso anterior do local por parte de outros grupos, já que alguns instrumentos em pedra lascada característicos dos Aratu da praça estavam com os objetos cerâmicos Tupi, apontando para um aproveitamento funcional ou ritual.
Pelo exposto, pode-se afirmar que a vila de Piragiba apresenta uma situação arqueológica de grande riqueza informativa, acompanhada de um excelente acervo, que poderia servir como fundamento para a criação de um museu local. São dois sítios arqueológicos correspondentes às duas grandes tradições de culturas indígenas pré-coloniais do Nordeste: Aratu e Tupi. A ideia da criação de um museu local, onde pudessem estar expostas as peças coletadas durante os trabalhos de escavações, foi uma ideia que surgiu nos primeiros momentos da pesquisa. A paulatina transformação do sentimento de quase indiferença por parte da comunidade de Piragiba foi motivada, em grande parte, pelo envolvimento dos moradores em todas as etapas da investigação e pela expectativa de deixar os materiais na vila para exposição. Esta ideia foi crescendo e se consolidando até o ponto de ser hoje um projeto que todos desejam concretizado. Inúmeras tentativas nesse sentido foram realizadas por parte dos pesquisadores participantes, mas sempre houve impedimentos, especialmente de natureza burocrática. A comunidade de Piragiba espera preparada para o momento propício de erigir o museu. Ela é ciente de que detém em suas mãos um acervo cultural digno de ser mostrado, que ajudaria não somente a dinamizar a economia local, mas, sobretudo, a afirmar o sentimento de pertinência e a desenvolver a estima identitária.
Recipientes encontrados atestam o uso da tecnologia de produção cerâmica entre os povos indígenas
Prof. Carlos Etchevarne. Doutor em Arqueologia, Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Pesquisador colaborador do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto. Professor da Pós-Graduação em Arqueologia da UFPE.
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Regime de chuvas na bacia hidrográfica do rio São Francisco Marcelo de Oliveira Latuf*
O ciclo hidrológico, precipitação e monitoramento O ciclo hidrológico representa o ciclo da água na Terra, seja na atmosfera, superfície e/ou em subsuperfície, bem como em seus diferentes estados físicos (sólido, líquido ou gasoso). Representa um fenômeno global de (re)circulação da água no planeta, impulsionado principalmente pela radiação solar, tendo associadas a força da gravidade e a rotação terrestre. A precipitação é um dos componentes do ciclo hidrológico, sendo um dos principais parâmetros na definição dos tipos climáticos. Em zonas tropicais, os principais fenômenos de precipitação são na forma líquida (chuva), porém há a ocorrência de outras formas, como por exemplo granizo e neve. É caracterizada, ainda, como a principal entrada de água no sistema bacia hidrográfica, pois controla os ciclos de cheias e vazantes dos rios, a recarga dos aquíferos, a dinâmica ecológica dos sistemas rio-planície, dentre outros. Deste modo, é de primordial importância seu monitoramento espacial e temporal, com o intuito da realização de estudos, diagnósticos e acompanhamento da dinâmica dos climas. No Brasil, o monitoramento das precipitações é realizado por órgãos como o Instituto Nacional de Meteorologia – INMET, a Agência Nacional de Águas – ANA, além de diversos órgãos das esferas nacional e estadual. Entretanto, a densidade da rede de estações de monitoramento, bem como a extensão de suas séries históricas, ainda não atende, de forma satisfatória, todas as regiões do território nacional, havendo locais bem instrumentalizados (Centro-Sul), em contraponto a regiões com baixa instrumentação (Norte-Nordeste e parte do Centro-Oeste). A Organização Meteorológica Mundial – OMM recomenda, para a definição do clima de uma região, que sejam realizados a coleta e o processamento de dados de precipitação em uma série temporal de 50 anos ou atendendo ao mínimo de 30 anos. No Brasil, a série de 30 anos é classificada como Normal Climatológica, que representa o padrão médio das variações dos parâmetros meteorológicos, a exemplo da precipitação, temperatura e umidade. No Brasil, há disponíveis, pelo INMET (www.inmet.gov.br), dados das Normais Climatológicas de 1931-1960 e 1961-1990 de diversas estações do território brasileiro. Caso não haja a extensão de 30 anos de dados, adota-se o monitoramento mínimo de 10 anos, sendo esta caracterizada como Normal Climatológica provisória. Controle de chuvas na América do Sul e na BHSF O que controla as chuvas? Por que este ano está chovendo mais? Por que este ano está chovendo menos? São questionamentos comuns à população todos os anos, quando se tem a ocorrência de enchentes ou secas severas. O clima e suas variações são controlados, fundamentalmente, pela ação dos oceanos. Os oceanos ocupam algo próximo a 70% da superfície do planeta, tendo os oceanos Pacífico e Atlântico uma importância ímpar no controle das chuvas em toda a América do Sul, inclusive na Bacia Hidrográfica do rio São Francisco – BHSF. Nesse sentido, fenômenos que ocorram nesses oceanos influenciarão no
regime de distribuição de chuvas em toda a América do Sul. Um desses fenômenos, ainda não conhecido completamente, é o El Niño-Oscilação Sul – ENOS, que possui a capacidade de afetar o tempo e o clima na América do Sul. No Nordeste Brasileiro, bem como em grande parte da BHSF, os efeitos produzidos pelo El Niño (aquecimento anormal das águas no setor centro-leste do oceano Pacífico), tendem a reduzir o volume de chuvas; em contrapartida, os efeitos da La Niña (resfriamento anormal das águas no setor centro-leste do oceano Pacífico) tendem a aumentar o volume de chuvas. Estudos de diversos pesquisadores – dentre os quais destacam-se os trabalhos de Mantua et al. (1997), Mantua e Hare (2002) e Molion (2008) – apontam que o oceano Pacífico possui um ciclo interdecadal conhecido como Oscilação Decadal do Pacífico – ODP. Esta oscilação possui como característica o estabelecimento de fases quentes e frias, com duração entre 25-30 anos, tendo um ciclo completo próximo de 50-60 anos. Na Figura 1, observam-se as variações entre as fases quentes e frias da ODP, Adaptado de Molion (2008).
Figura 1. Fases quente e fria da ODP. Adaptada de Molion (2008)
Mas o que significam essas fases? A princípio, a fase quente reflete-se em um período onde as temperaturas da superfície do mar estão mais altas que a normalidade, influenciando em uma maior quantidade de água evaporada e, consequentemente, mais volumes de chuva. O contrário ocorre quando se estabelece a fase fria. Estamos vivenciando, provavelmente, o final de uma fase quente, tendo por vir uma nova fase fria. Isto poderá refletir na redução dos volumes de chuva na BHSF e em toda a América do Sul. Distribuição das precipitações na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Adotando-se os valores da Normal Climatológica (1961-1990) e da Normal Climatológica provisória (1991-2011), das estações climatológicas da Rede do INMET, obtidos por meio de Ramos et al. (2009) e BDMEP (2012), respectivamente, elaborou-se os mapas de distribuição das precipitações médias anuais na BHSF (Figura 2).
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(a)
(b)
Figura 2. Precipitação média anual de acordo com dados da Rede do INMET
Nota-se que as maiores alturas de chuvas na BHSF concentram-se próximas à foz do rio São Francisco (Alagoas e Sergipe), bem como em toda a borda ocidental da bacia (oeste da Bahia, Goiás, Distrito Federal e Minas Gerais) e borda oriental-sul (região próxima a Ouro Preto, Belo Horizonte e prolongamento da serra do Espinhaço até próximo a Montes Claros). Na Figura 3, observam-se os desvios entre a Normal Climatológica provisória (mais recente), comparado à Normal Climatológica (mais antiga).
Partindo da setorização proposta pelo Comitê da Bacia Hidrográfica rio São Francisco – CBHSF, pode-se constatar que a região do Baixo São Francisco possui, em sua maioria, áreas com expressivas reduções na precipitação média anual, chegando a alguns locais com reduções de 37%. A região do Submédio São Francisco possui também, em sua maioria, áreas com redução das precipitações. Porém, chama a atenção o fato de termos um incremento entre 21% e 40% nas precipitações próximas das cidades de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), de acordo com dados da estação climatológica Petrolina (82983). Ressalta-se que no Banco de Dados Meteorológicos para Ensino e Pesquisa – BDMEP do INMET, esta estação conta com 22 anos falhados no período de 1961-1990, sendo uma provável justificativa para o incremento “anormal”. Na região do Médio São Francisco há setores com reduções de até 19% na precipitação média anual, porém destacam-se as regiões da bacia do rio Paracatu, bem como as regiões do Norte de Minas Gerais, divisa com Bahia, com incrementos expressivos na precipitação média anual. Já na região do Alto São Francisco há incrementos de até 20% nas chuvas, exceto para os locais próximos das estações Bambuí (83582) e Oliveira (83637), onde foram registradas expressivas reduções nas precipitações médias anuais, chegando nesta última à faixa de 20% a 37%. Na Tabela 1, evidencia-se o comparativo realizado entre as regiões da BHSF, apoiado nas diferenças obtidas nas precipitações trimestrais médias, para a Normal Climatológica (1961-1990) e Normal Climatológica provisória (1991-2011).
Tabela 1. Comparação da precipitação acumulada por trimestre (1961-1990 e 1991-2011)
Figura 3. Desvios percentuais da precipitação média anual entre 1961-1990 e 1991-2011
Observa-se que na região do Alto São Francisco há um incremento médio de 11,3% nas precipitações do período chuvoso, que compreendem os trimestrais de NDJ e FMA. Porém, no semestre mais seco do ano há reduções expressivas, da ordem de 35,7%, com uma média de 22,1%. Na região do Médio São Francisco, o semestre mais chuvoso possui um incremento médio de 2,2%, porém ressaltam-se as expressivas reduções na precipitação para o semestre mais seco, da ordem de 25,2%. No trimestre ASO há um indicativo de reduções de 27,7%. O Submédio São Francisco possui a tendência para reduções nos dois primeiros trimestres analisados (NDJ-FMA), com média de 11,9%, tendo o trimestre FMA uma redução próxima a 20%. Já os trimestres MJJ e ASO possuem tendências de incremento médio de 74,6%, porém ressalta-se que esta região possui a estação Petrolina (82983), com diversas falhas, o que pode influenciar negativamente no cálculo. Já no Baixo São Francisco há tendências de reduções expressivas nas precipitações para os trimestres NDJ e FMA (semestre seco), com média de 24,6%. Já para o trimestre mais chuvoso (MJJ) há a tendência de redução de 5,2%, com aumento no trimestre seguinte em 4,6%.
Na Figura 4, observam-se as distribuições dos desvios comparados entre as precipitações trimestrais médias, para a Normal Climatológica (1961-1990) e Normal Climatológica provisória (1991-2011).
Figura 4. Desvios da precipitação trimestral acumulada (mm) para os períodos de 1961-1990 e 1991-2011
Considerações Este breve artigo não tem como objetivo aprofundar as discussões técnicas a respeito dos temas tratados, mas sim de dar ciência aos leitores sobre a dinâmica de chuvas na Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, identificada até o momento pelo Projeto de Pesquisa “Avaliação do regime de precipitação na bacia do rio São Francisco”, ainda em fase de execução, apoiado pelo Programa Permanecer da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Referências: BDMEP. Banco de Dados Meteorológicos para Ensino e Pesquisa. Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Disponível em: <http://www.inmet.gov.br/projetos/rede/ pesquisa/>. Acesso: 22/10/2012. MANTUA, N. J; HARE, S. R.; ZHANG, Y.; WALLACE, J. M.; FRANCIS, R. C. A Pacific interdecadal climate oscillation with impacts on salmon production. Bull. Amer. Meteor. Soc., v. 78, p. 1069-1079, 1997. MANTUA, N. J; HARE, S. R. The Pacific Decadal Oscillation. Journal of Oceanography, Vol. 58, pp. 35 to 44, 2002. MOLION, L. C. B. Perspectivas climáticas para os próximos 20 Anos. Revista Brasileira de Climatologia. Vol. 3, 2008. RAMOS, A. M, SANTOS, L. A. R. e FORTES, L. T. G. (Org.). Normais Climatológicas do Brasil: 1961-1990. Brasília: INMET, 2009.
Prof. Marcelo Latuf. Graduado em Geografia (Bacharel e Licenciado) pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrado em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa. Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (campus Presidente Prudente). Atualmente, é professor adjunto I da Universidade Federal da Bahia, campus Barreiras, onde desenvolve pesquisas nas áreas de dinâmica de ambientes fluviais e geotecnologias.
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M U NDO DO RIOS
Tâmisa uma história de revitalização
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O rio Tâmisa, na Inglaterra, constitui um símbolo da luta pela preservação dos rios no mundo. O “velho pai Tâmisa” dos ingleses já teve a morte declarada, renasceu e vem sobrevivendo sob ameaças constantes, pela vontade e esforço persistente do povo inglês. O Tâmisa nasce nas montanhas do sul da Inglaterra e corre em direção sudeste, atravessando a capital, Londres, para desaguar no Mar do Norte. Com 346 km, é o mais extenso rio a fluir inteiramente no país. A área de drenagem é de 130 mil km2. Nessa bacia vivem cerca de 30 milhões de pessoas, quase ¼ da população do país. O rio cumpre duas funções relevantes para esse contingente: abastecimento de água potável para Londres e corredor de transporte para pessoas e cargas. A história registra que até o século XVIII, quando teve início a Revolução Industrial, o Tâmisa era um rio muito limpo, de onde os ingleses retiravam água e alimento em abundância. O século XIX, de tantas transformações, foi uma página triste na história do Tâmisa. O crescimento de Londres, para onde acorreram as populações rurais em busca de emprego nas grandes indústrias e fábricas que surgiam, foi impactante sobre a saúde do rio. A novidade das descargas nos vasos sanitários e a extinção das fossas selaram o seu destino: o Tâmisa tornou-se o grande escoadouro dos dejetos humanos da população inglesa. Na história da cidade, o ano de 1858 é associado a um fenômeno que demarcou o limite do insuportável: “O Grande Fedor” (The Great Stink). Por essa época, as sessões do Parlamento, sediado no Palácio Westminster, na margem norte, tiveram que ser interrompidas por causa do cheiro repugnante. A Casa dos Lordes e a Casa dos Comuns embebiam suas cortinas em hidróxido de cálcio para suportar o desconforto. Data de então, em meados do século XIX, a morte de 14 mil ingleses, atingidos pelo cólera, infecção intestinal aguda transmitida principalmente pela ingestão de água contaminada, e o surgimento da teoria miasmática (hoje obsoleta, substituída pela teoria microbiana), que atribuía aos gases pútridos da atmosfera, resultantes da decomposição de matérias orgânicas, a origem de muitas doenças. Nessas condições, os políticos colocaram a poluição do rio na pauta de discussões. Entre 1860 e 1865, foram construídos os canais de esgoto e os diques Victoria e Albert, espécies de tanques de contenção, que permitiam deslocar a
água suja da cidade para 20 km abaixo e transportar os dejetos sólidos em embarcações do tipo ferry boat para despejá-los no mar após tratamento primário. Esse foi o enfrentamento possível até o final do XIX. No início do século XX, o rio voltou a ficar limpo, mas no meado do século o crescimento industrial e populacional voltou a impactar. Em 1947 o Museu de História Natural, após investigar a fauna aquática, declarou o rio Tâmisa biologicamente morto. Nas suas águas somente sobreviviam as enguias, que subiam à superfície para respirar. Com todos os riscos e sequelas implicados, a situação-limite ensejou uma tomada de posição: a Inglaterra decidiu que a morte do Tâmisa não interessava à sociedade inglesa. Começou ali uma nova história: o desafio da revitalização. Os poderes públicos aplicaram 200 milhões de libras num projeto de recuperação de 20 anos, entre 1964 e 1984. E os peixes começaram a voltar ao Tâmisa. A prova mais evidente de recuperação ocorreu em 1979, com o retorno do salmão, considerado uma das espécies mais sensíveis à poluição. A revitalização do Tâmisa tornou-se uma história de sucesso internacional. Nos anos seguintes, entretanto, a população de peixes estacionou e, no início do século XXI, o salmão desapareceu. Quando esteve em Belo Horizonte, em 2008*, Rachael Hill, da Agência Ambiental do Reino Unido, apresentou o programa de reabilitação de salmões adotado pelo governo inglês, observando, porém, que as mudanças climáticas e o tamanho populacional de Londres, atualmente com 7 milhões de habitantes, são fatores complicadores para os planos governamentais de tratamento, que custam em torno de 10 milhões de libras/ano e incluem um investimento de 2 bilhões de libras num supercanal de esgoto. Os sinais animadores no Velho Pai Tâmisa são a presença de centenas de espécies de peixes e invertebrados, o desenvolvimento da pesca comercial e as atividades de remo e navegação a vela. É igualmente promissor para o futuro do rio que a sociedade tenha se juntado aos esforços do poder público, como é exemplo a ONG Thames 21, que atua sistematicamente na limpeza das margens e na moblização de pessoas. Por todos esses motivos e por essa extraordinária história de resistência é que os londrinos, a cada ano, realizam um grande festival para celebrar o rio Tâmisa, que continua sendo motivo de grande orgulho para os ingleses.
* Conforme consta registrado no livro “Revitalização de rios no mundo: América, Europa e Ásia”, editado pelo Instituto Guaicuy em 2010, para registro dos anais do I e II Seminário Internacional de Revitalização de Rios, realizados em Belo Horizonte em 2008 e 2010 pelo Projeto Manuelzão da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com o Governo de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
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G ASTRONOMIA ARTI G O
O verdadeiro sabor da
Canastra Texto: José Antonio Moreno. Fotos: Bruno Figueiredo/odin
Juntamente com o rio São Francisco, nasce e floresce na Serra da Canastra, no centro-oeste mineiro, a fabricação caseira de uma iguaria que é verdadeiro patrimônio nacional: o queijo Canastra. Produzido com leite bovino in natura, em processo que lhe garante sabor e textura diferenciados, o Canastra há muito ultrapassou os limites da região conhecida como Alto São Francisco, ou mesmo as fronteiras de Minas Gerais, apesar das dificuldades impostas pela legislação sanitária quanto à fabricação e comercialização de qualquer produto à base de leite cru.
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e a França produz o Roquefor, a Itália venera o Parma Reggiano e Portugal faz sucesso com o Serra da Estrela, o Brasil não deve nada ao mundo com o queijo da Serra da Canastra. Este verdadeiro patrimônio mineiro – e brasileiro – é, assim como os seus congêneres internacionais, fabricado artesanalmente e, em geral, por famílias tradicionais que passam o ofício de geração a geração. Fazem desse produto a sua principal fonte de renda, mas, sobretudo, o objeto de uma dedicação quase exclusiva, temperando a receita com muita paciência e respeito às regras da boa fabricação. Simplesmente não dá para falar na região do Alto São Francisco, no centro-oeste mineiro, sem ativar o paladar: o queijo Canastra está presente na mesa da maioria das famílias da região e na bagagem de nove entre dez turistas que visitam a serra para caminhadas, trecking e banhos de cachoeira. Nas pousadas, ele aparece como elemento obrigatório do café da manhã, muitas vezes compondo a receita do pão de queijo, biscoitos, broas e outras iguarias locais. Na realidade, ele é “rei” na diversificada gastronomia regional, incluindo experimentações domésticas, em pratos do almoço e jantar.
Fresco ou maturado (com mais tempo de curado), o queijo Canastra nasce de um processo muito particular. Um dos segredos está no período curtíssimo entre o fim da ordenha e o início da fabricação. Há quem diga, porém, que o sabor diferenciado vem dos pingos d’água (soro) que escorrem do queijo preparado no dia anterior e utilizados para as novas produções. É o que dá sabor, textura e aroma particulares ao Canastra, asseguram os produtores mais tradicionais. Na região da serra, mais de 1.200 produtores se dedicam à tarefa diária de produção artesanal de queijo. Estima-se que essa produção seja superior a quatro mil toneladas/ano. Mas nem todos os fabricantes recebem o aval do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI. Uma das exigências é que o fabrico esteja localizado num dos sete municípios produtores exclusivos do Canastra: Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São Roque de Minas, Vargem Bonita e Tapiraí. Uma explicação recorrente dá conta de que fatores climáticos, tipo de relevo ou mesmo uma espécie de capim só existente na região estão na “fórmula” do produto de primeira linha. E isso não é para qualquer município.
Fazendo e vendendo O município de São Roque de Minas, berço do rio São Francisco – a pequena nascente do Velho Chico brota em território do Parque Nacional da Serra da Canastra – é um dos mais antigos produtores do queijo na região. Em seus chapadões e montanhas pastam as vacas que produzem, às primeiras horas da manhã, a matéria-prima do produto. Em geral, a ordenha é feita de forma mecânica. Mas encerra-se aí qualquer processo mais elaborado da fabricação do queijo: após a coleta do leite, todos os procedimentos são artesanais e tocados geralmente por membros de uma mesma família. É um processo longo, que pode durar entre 48 horas (queijo fresco) e 30 a 60 dias (curado). Em geral, a meta é a produção do queijo curado, mais resistente ao tempo e, segundo muitos, mais saboroso. Mas o difícil é encontrar paciência nos próprios compradores para aguardar o prazo de maturação: na maioria das vezes, leva-se para casa o queijo fresco. “Aqui é assim: o povo chega na agonia de comprar e nunca dá para aguardar o tempo de cura. É fazendo e vendendo”, diz, com uma ponta de orgulho, José Baltazar da Silva, 64 anos, um dos mais antigos
Localizado no Alto São Francisco, o município de São Roque de Minas tem na pecuária leiteira sua principal atividade econômica.
Nascente do São Francisco: um marco na vida de São Roque.
e premiados produtores artesanais de São Roque de Minas, cujo estoque costuma ser vendido diretamente ao consumidor em sua pequena fazenda nos arredores da cidade. Somente em São Roque são mais de 500 produtores artesanais de queijo. Uma cooperativa tenta estimular a produção, profissionalizar e disciplinar o comércio local, mas tem entre os principais entraves a rígida legislação sanitária, que impede a venda do Canastra fora dos limites de Minas Gerais, por não se tratar de produto pasteurizado. “O desafio, então, é manter a produção artesanal sem desrespeitar as leis”, afirma João Leite, presidente da Associação dos Produtores de Queijo Artesanal da Serra da Canastra, que reúne cerca de 400 produtores. Desde 1952 a legislação federal sobre vigilância sanitária, baseada na sistemática norte-americana, impede a comercialização no país de produtos fabricados com leite in natura. Foi a partir daí que a produção do Canastra – iniciada no século XIX, com o fim do ciclo da mineração – caiu na clandestinidade, afetando toda a cadeia, da produção ao transporte e comercialização, aumentando os riscos associados à falta de segurança alimentar. Como a inspeção passou a se dar em nível estadual, os produtores foram obrigados a restringir a venda para Minas Gerais, ainda assim quando certificados pelo Instituto Mineiro de Agropecuária – IMA, que impõe regras rígidas de higiene na produção da iguaria. Na visão dos produtores, falta aos órgãos oficiais
uma compreensão mais justa do mercado e dos mecanismos de produção do Canastra. Isso acarreta sérias ameaças à fabricação do produto, em que pese o reconhecimento do seu valor como patrimônio cultural e imaterial do país. Eles questionam inclusive a Portaria 57, editada pelo Ministério da Agricultura em dezembro de 2011, que a título de ajudar os produtores, passou a exigir, para maturação do queijo, o período mínimo de 60 dias, tempo necessário para que as bactérias se sobreponham aos micro-organismos maléficos do leite cru. A nova portaria fez o tiro sair pela culatra. Por dois motivos: primeiro por questões mercadológicas, uma vez que o consumidor costuma dar preferência ao queijo fresco, com tempo de maturação de até 21 dias; depois, porque faltam no país entrepostos devidamente regulamentados, com condições de armazenar uma grande produção de queijo, o que torna a venda antecipada (antes dos 60 dias) uma realidade difícil de ser evitada.
Sem medo da concorrência À frente da Associação dos Produtores de Queijo Artesanal da Serra da Canastra, João Leite não mede esforços para que as autoridades criem mecanismos mais coerentes com a natureza da produção do Canastra, diferenciando, por exemplo, grandes produtores e indústrias dos produtores artesanais. É assim, por exemplo, em diversos países da Europa, onde o queijo produzido com
leite cru circula livremente, sem barreiras geográficas. “Inclusive aqui no Brasil o queijo suíço de fabricação artesanal é vendido sem restrições”, argumenta. Polêmicas à parte, e em meio a todas essas dificuldades, a produção do queijo Canastra no Alto São Francisco mantém-se como uma das principais atividades econômicas da região, só superada pela pecuária leiteira e a agricultura. Por existir espaço para todos, praticamente não há rixas entre os concorrentes. Muito pelo contrário: um produtor costuma visitar o outro para trocar experiências sobre o processo de fabricação. Nesse caso, apesar das diferenças mínimas, cada um desenvolve com o tempo a sua maneira de fazer o Canastra. Essa “grife” acaba fazendo toda a diferença. A prova maior disso são os concursos regionais. Periodicamente, os municípios que integram o circuito de produção promovem certames de degustação de queijos. Os vencedores de cada município passam para a fase regional. É o caso de Reinaldo de Faria Costa, 47 anos, que recentemente ganhou o primeiro lugar no XI Concurso de Vargem Bonita, outra cidade produtora, e ficou em segundo lugar na fase regional. Orgulhoso dos diversos troféus que já conquistou em mais de 30 anos dedicados à produção de queijo, ele não esconde alguns dos seus segredos para gerar um bom produto: “Em primeiro lugar, o gado tem que produzir pouco. Gado que dá muito leite não faz bom queijo”, ensina, observando que fatores ligados à saúde do animal, que devem ser periodicamente vacinados contra doenças como brucelose e tuberculose, também estão diretamente relacionados à qualidade. Além disso, Reinaldo credita boa parte do seu sucesso aos cursos de manejo que fez por iniciativas de entidades como a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de
Minas Gerais – Emater e o Sebrae. “Nesses cursos, aprendemos técnicas para assegurar mais higiene ao processo. E a higiene, a meu ver, é a base de um queijo de qualidade”, observa. Trabalhando com o filho Vinicius, de 16 anos, em sua fazenda nos arredores de Vargem Bonita, Reinaldo produz diariamente uma média de 25 a 30 peças de queijo. Uma parte dessa produção atende diretamente a compradores de localidades vizinhas. Outra parte ele expõe num pequeno entreposto na frente de sua casa na cidade. A saída é rápida. Um pequeno aviso na porta, sem muito estardalhaço, é suficiente para esgotar a produção, atendendo aos moradores de Vargem Bonita e visitantes. “Quando é feriado, então, não dá para quem quer”, diz.
Intolerância a lactose Igual sucesso faz a Fazenda Agro-Serra, em São Roque de Minas. Trabalhando ininterruptamente, o queijeiro José Firmino de Faria, o Zé Branco, 43 anos, produz, juntamente com sua mulher, Romilda Aparecida, uma média de 30 queijos por dia, a maior parte escoada com a venda direta ao consumidor, na própria fazenda. A produção é diversificada: há desde os queijos tradicionais, com 16 centímetros de diâmetro, ao chamado Canastrão, ou Canastra Real, maior, mais gordo, ideal para famílias numerosas, festas e confraternizações. “Agora mesmo o que temos aqui está encomendado para as festas de Natal e Ano Novo”, afirma Zé Branco, que trabalha no ofício, aprendido em fazendas da região, há quase 15 anos. O curioso é que o gosto que ele tem em produzir o Canastra não condiz com a rejeição orgânica ao queijo e outros derivados do leite: “Desde pequeno que tenho intolerância a lactose. Não podia beber leite que passava mal”.
Reinaldo Costa: conquista de diversos prêmios e destaque em Vargem Bonita.
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Zé Mário: produção artesanal de dez queijos por dia em São Roque de Minas.
Na queijeira de seu Zé Mario A casinha simples, sem forro, com móveis antigos e fogão a lenha, dá o tom da pequena fazenda do seu Zé Mário, 64 anos, nos arredores de São Roque de Minas. Mineiro típico, no sotaque e na desconfiança, ele vem atender à porta. “Seu Zé Mário está? Talvez. Quem sabe, está”, ele brinca. Já que o assunto é queijo, não demora muito para oferecer o cafezinho – cujo grão veio de sua própria plantação –, puxar um banco à beira do alpendre e iniciar a prosa: “Para mim, fazer queijo não tem segredo nenhum. Fiz meu primeiro queijo com sete anos de idade. Como é que tem segredo?”, explica, para em seguida falar do que considera mais importante na fabricação do seu produto de tanto sucesso. ”Ter um gado sadio, isso é o mais importante. Aqui nós temos só dez vacas, mas são todas bem tratadas, como você pode ver. Vaca minha tem toda a vacinação em dia e não fica doente. Se ficar, até para carrapato a gente usa homeopatia”, diz. Outro quesito importante é a higiene do local de manejo. Para começar, o pasto fica distante do curral.
Produzindo o queijo Canastra Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 2008 como patrimônio cultural e imaterial brasileiro, o queijo Canastra típico decorre de um processo totalmente artesanal. A base é o leite de vaca, cru e integral, recolhido às primeiras horas da manhã. Imediatamente após a ordenha, o leite é colocado num tambor para receber o coalho e o “pingo”, espécie de fermento líquido produzido pelo próprio queijo do dia anterior. Cerca de uma hora e meia depois, o leite talha. Começa então o processo de fabricação propriamente dito. A massa, por ser mais pesada, tende a
“Assim, quando elas vêm caminhando vão deixando cair as fezes e a urina. Quando chegam para a ordenha estão limpinhas”, assegura Zé Mário, cujo verdadeiro nome é José Baltazar da Silva. Filho de Mário Rodrigues Cunha, criou-se na própria casa onde vive hoje e que pertencera ao avô, Pedro José de Barros. Com os dois antepassados, aprendeu a arte da ordenha e a fabricar o queijo Canastra. ”Aqui na região é assim: todo mundo aprende dentro da família. E aí vai passando para os filhos, para os netos”, observa. Na sua fazenda, a profissão de queijeiro é dominada também pela mulher, Valdete, e pelos filhos Carlos e Eudes, com 33 e 27 anos, respectivamente. A família cuida das plantações, do rebanho e da fabricação do Canastra. Atualmente, cabe a Valdete, sobretudo, a tarefa de produzir o queijo, já que Zé Mário e os filhos, por razões de higiene, ficam impedidos de entrar na queijaria, por trabalharem com a ordenha. A separação entre uma coisa e outra é sagrada: um sistema composto de coletor e funil permite que o leite abasteça a queijaria (também conhecida como “casinha do queijo”), sem que haja contato huma-
no. Valdete, por sua vez, trabalha com jaleco, botas, luvas e máscara. Nas janelas, telas evitam a entrada de insetos. Tudo para garantir um padrão de excelência no processo de fabricação. Tanto esforço tem suas compensações. “Aqui o queijo não chega para quem quer”, assegura Valdete. Por outro lado, Zé Mário já perdeu a conta do número de vezes em que viu o seu produto ganhar o título de melhor queijo Canastra de Minas Gerais, mais recentemente nos anos de 2011 e 2012. Em Belo Horizonte, toda a remessa que o produtor envia para o Mercado Central acaba no mesmo dia: “Muita gente faz a encomenda com antecedência e quando o queijo chega no mercado já está todo vendido”, orgulha-se Zé Mário, que com suas dez vacas produz uma média de dez unidades do Canastra – cada vaca produz 10 litros de leite, quantidade necessária para a fabricação de apenas um queijo no tamanho tradicional. “É uma produção pequena, eu sei, mas prefiro assim, porque dessa maneira posso garantir a qualidade. Eu não forço a produção de minhas vacas. Quanto mais a vaca produz mais aguado sai o leite e isso compromete a qualidade do queijo”, justifica o produtor. Qualidade que se traduz em números: na região, o queijo produzido por Zé Mário tem o maior valor de mercado – R$ 25,00 contra a média de R$ 15,00 da concorrência. Muito além das questões econômicas, o queijo produzido por Zé Mário tem status internacional. Simplesmente, foi um dos dois produtos escolhidos para representar o Brasil no último Salão do Queijo de Paris, realizado no início deste ano. Os franceses aprovaram.
baixar, e o soro que fica em cima é retirado. Espremida ou prensada manualmente, com um pano, a massa é colocada em moldes redondos, sugerindo o formato final do produto. Sobre a massa compactada, acrescenta-se o sal grosso. Depois de algum tempo, a massa é virada para que o sal possa ser colocado no outro lado. Por baixo da forma, o soro escorre, finalizando um processo que dura 24 horas para a produção do queijo fresco. Para a meia-cura é indicado o prazo de 15 dias, e para a cura entre 30 e 60 dias. Depois, o queijo é retirado das formas e vai ser “grosado” (com um ralo, elimina-se as imperfeições para dar um bom acabamento), sendo, então,
acondicionado numa prateleira de madeira arejada. Os tamanhos são variáveis, mas o formato é um só: cilíndrico. O tipo tradicional tem entre 15 e 17 centímetros de diâmetro e pesa de 1 a 1,2 quilos. O chamado Canastrão ou Canastra Real tem cerca de 30 centímetros de diâmetro e peso em torno de 6 quilos. O sabor é o mesmo: suave, ligeiramente ácido. Não se sabe ao certo exatamente quando o Canastra passou a ser produzido no país. Sabe-se, porém, que sua origem remonta o século XIX, com o declínio da mineração como principal atividade econômica da região, tendo como ancestral o queijo São Jorge, produzido nos Açores.
Na quitanda de Dona Alzira Não é exagero dizer que o queijo Canastra é a base de toda a gastronomia do Alto São Francisco. Ele está presente no típico pão de queijo mineiro, nos biscoitos de polvilho, nas broas de milho, nos bolos e panquecas. Mesmo quando entra na receita como coadjuvante, faz a diferença. Como dizem as cozinheiras e donas de casa da região, além de tudo o Canastra marca a hospitalidade local, pois, ao lado do cafezinho, costuma ser oferecido às visitas em sinal de boas-vindas. Na culinária típica, que não chega a ser tão cultuada na região, o Canastra entra, por exemplo, na composição do lobozó, prato que mistura ainda quiabo, jiló, taioba e farinha de mandioca. Também faz sucesso numa receita da galinha caipira de panela, acompanhada por um mexidinho de arroz com queijo curado e pimenta-de-cheiro. Quem bem personifica os poderes gastronômicos múltiplos do Canastra é dona Alzira da Costa Bueno, 65 anos, moradora da cidade de Vargem Bonita, que integra o circuito produtivo do queijo. De sua cozinha sai um sem-número de iguarias que tem o Canastra como base: são pães de queijo, broas, roscas, biscoitos, entre outras delícias. Não há qualquer placa na porta, mas todos indicam a sua “quitanda” como a melhor de Vargem Bonita. Nascida na zona rural, Alzira mudou-se para a cidade em 1961, quando se casou. Na fazenda, aprendeu a trabalhar com o queijo Canastra observando a lida de sua mãe, Augusta, que cozinhava para dez filhos. Desde quando iniciou sua produção, o que não faltam são fregueses na porta de casa: por dia, ela vende uma média de 100 pães de queijo. “As pessoas da cidade compram para tomar café da manhã. Os visitantes compram para levar”, estima ela, que também prepara doces caseiros de leite e laranja. Um dos segredos do seu sucesso são as características especiais do queijo, que ela encomenda na fazenda de um sobrinho. “Depois do Canastra, é o amor com que eu cozinho que faz a diferença”, diz.
Dona Alzira: pãezinhos de queijo, biscoitos e outras delícias.
Receita de dona Alzira “Rosca com queijo Canastra” é uma das especialidades de dona Alzira, que não faz segredo da receita. Veja como preparar: Ingredientes: 1 kg de farinha de trigo / ½ copo de óleo / 4 ovos / 1 lata de leite de vaca / queijo Canastra / 50g de fermento de padaria. Modo de preparo: Juntar o óleo, os ovos e o leite e bater no liquidificador, juntamente com um pouco de sal e duas colheres rasas (sopa) de açúcar. Acrescentar a farinha de trigo com o fermento até ficar com consistência de massa de pão. Amassar bastante. Deixar crescer no sol até dobrar de tamanho. Depois, fazer uma espécie de trança, abrindo com as mãos para a colocação do queijo no meio da massa. Em seguida, levar ao forno para assar.
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Entre os peixes de maior importância para a pesca no rio São Francisco, o surubim é sem dúvida a espécie mais valiosa para os pescadores artesanais e a mais conhecida da culinária regional. É peixe do Sertão, peixe de couro desprovido de escamas e coberto por pele grossa. Pertence a uma família de peixes (Pimelodidae, ordem Siluriformes) que têm hábitos noturnos. São pintados,com manchas negras arredondadas, de tamanho variável, nas laterais do corpo e manchas pequenas nas nadadeiras.Camuflados, ficam durante o dia no leito rochoso de poços e em locais mais profundos na calha do rio. O surubim sai para caçar à noite e alimenta-se principalmente de outros peixes. Pode alcançar mais de 160 cm de comprimento e ate 120 kg, embora encontrar exemplares desse tamanho já seja uma raridade.Entre novembro e março, realizam longas migrações rio acima para desovar - fenômeno conhecido como piracema. Milhares de ovos são liberados na correnteza, descem rio abaixo até as lagoas marginais formadas nas várzeas durante o período chu-
voso, quando os rios encontram-se acima de seu nível normal. Os peixes de piracema, como o surubim e o dourado,encontram-se ameaçados e já não são capturados em vários trechos do rio. As barragens estão entre as principais causas da diminuição da pesca, por impedir a migração reprodutiva. A construção de eclusas e escadas é imprescindível para permitir a passagem dos peixes durante a piracema. Também a pesca irresponsável durante a piracema compromete a capacidade de renovação dos estoques pesqueiros. O combate à pesca predatória e o respeito às regras do defeso da piracema podem promover a recuperação da abundância destes recursos, de grande importância comercial para a região.O defeso da piracema na bacia do São Francisco entra em vigor no dia 1º de novembro e se estende até 28 de fevereiro, quando a pesca em todos os rios da bacia sofre restrições determinadas pela legislação em vigor. As regras do defeso protegem tanto o meio ambiente quanto a própria atividade da pesca.
(Pseudoplatystoma corruscans Spix&Agassiz, 1829)
SURUBIM
FRANCISCO SÃO DO SERES
Texto: George Olavo. Ilustração: Ana Raquel