Agricultura
Ensaio
Entrevista
O triste fim da cultura do feijão que tanto orgulhou a cidade baiana de Irecê.
A natureza que brota nas serras e chapadões do Alto São Francisco
Ministro Aroldo Cedraz defende fortalecimento dos comitês de bacia
Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 02| AGO 2013 ISSN 2316-7661
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O DILEMA ENTRE AS VANTAGENS ECONÔMICAS DA ENERGIA EÓLICA E A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL.
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I MAG E M
Porto de Piaรงabuรงu, na foz do Sรฃo Francisco, sob o olhar do fotรณgrafo Lula Castelo Branco
Revista Chico Publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Nº 02 | AGO 2013 ISSN 2316-7661
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco Presidente Anivaldo de Miranda Pinto Secretário José Maciel de Oliveira Coordenador da CCR do Alto Marcio Tadeu Pedrosa CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL BAIXO SÃO FRANCISCO
CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL ALTO SÃO FRANCISCO
CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL MÉDIO SÃO FRANCISCO
CÂMARA CONSULTIVA REGIONAL SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO
Coordenador da CCR do Médio Claudio Pereira da silva Coordenador da CCR do Submédio Antônio Valadares (Totonho)
Coordenador da CCR do Baixo Carlos Eduardo Ribeiro Junior
Dilema e atualidade
Agencia de Bacia AGB PEIXE VIVO Diretora-geral Célia Fróes Diretora de Integração Ana Cristina da Silveira Diretor Técnico Alberto Simon Diretora de Administração e Finanças Berenice Coutinho
Produzido pela CDLJ Publicidade Coordenação geral Malu Follador Coordenação editorial e edição de texto José Antônio Moreno Redação Fred Burgos Ricardo Coelho Delane Barros Nilma Gonçalves Antônio Moreno Wilton Santos Artigo Anivaldo Miranda
Fotografia Tiago Lima Hugo Cordeiro Ivan Cruz Bruno Figueiredo Lula Castelo Branco Revisão Ana Lúcia Pereira Projeto gráfico e editoração Jorge Martins
Maturação editorial vem com o tempo. Vem
das questões vividas atualmente pelo município
com o fortalecimento da marca, o aperfeiçoa-
baiano de Morro do Chapéu, um dos campos
mento gráfico, a confirmação do estilo jorna-
mais propícios à expansão da energia eólica no
lístico. A revista CHICO chega ao seu segundo
país. No que pese a importância econômica e o
número sem a pretensão de estar madura,
caráter até certo ponto “limpo” dessa alterna-
mas traduzindo a certeza de que o caminho foi
tiva energética, há que se pensar no patrimônio
tomado. Lançada em novembro de 2012, em
natural da região.
meio às atividades da XXII Plenária Ordinária
A revista destaca ainda uma entrevista exclusi-
do CBHSF, realizada em Penedo (AL), a revista
va com o vice-presidente do Tribunal de Contas
buscou um modelo que se adequasse ao amplo
da União, o ministro Aroldo Cedraz, em que se
espectro que é marca do próprio comitê. Múl-
evidencia, entre outros temas abordados, a im-
tipla em suas abordagens, antenada com os
portância dos organismos de bacia na defesa e
acontecimentos, transparente em suas propos-
gestão dos grandes rios brasileiros. Em outro
tas conceituais.
aspecto, a Chico debruça-se sobre o triste fim da
Neste segundo número, a linha editorial incur-
safra agrícola do feijão em Irecê, na Bahia. E, fi-
siona por um dilema quase que natural aos dias
nalmente, envereda pelo processo de fabricação
Foto da capa Tiago Lima
de hoje: a necessidade de conciliar o desenvol-
da carranca à beira do São Francisco, reforçando
vimento econômico com a preservação ambien-
a sua importância como uma das peças mais ri-
Impressão Gráfica Santa Bárbara
tal. O caso vem particularmente à tona diante
cas e genuínas da arte popular brasileira.
Ilustração Cau Gomez
Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBHSF Contrato nº 07/2012 - Contrato de Gestão nº 014/ANA/2010 - Ato Convocatório nº 043/2011. Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citando a fonte.
06 12 16 UMA VIAGEM PELA REALIDADE DO BAIXO SÃO FRANCISCO
DO ALTO: ENSAIO SOBRE O ALTO SÃO FRANCISCO
ENTREVISTA: AROLDO CEDRAZ
Sumário
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PARQUE ESTADUAL MORRO DO CHAPÉU
ENERGIA NUCLEAR: MAIS UM DILEMA PARA O “VELHO CHICO
ADEUS AO FEIJÃO
19 2330
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RIOS DO MUNDO: DANÚBIO
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CARRANCAS: A EXÓTICA BELEZA DA ARTE POPULAR BRASILEIRA
NA ROTA
SERES DO SÃO FRANCISCO: BURITI
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C A PA
PARQUE ESTADUAL
O impasse entre o desenvolvimento e a preservação ambiental no sertão baiano TEXTO: FRED BURGOS | FOTOS: TIAGO LIMA
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CONSIDERADO ÁREA PRIVILEGIADA NA PRODUÇÃO DE VENTOS, O MUNICÍPIO BAIANO DE MORRO DO CHAPÉU, NA CHAPADA DIAMANTINA, VIVE O CONFLITO ENTRE OS AVANÇOS PROPORCIONADOS PELO “BOOM” DA ENERGIA EÓLICA NO PAÍS E A NECESSIDADE DE SE PRESERVAR O SEU PRECIOSO PATRIMÔNIO AMBIENTAL.
O
desenvolvimento de regiões remotas tem imposto o desafio contínuo de coexistência de crescimento econômico sem prejuízo substantivo à ecologia dos lugares. Em Morro do Chapéu, município baiano localizado a 388 quilômetros de Salvador, no lado norte da Chapada Diamantina, região identificada como uma das principais produtoras de ventos do país, o dilema está posto pelo projeto de instalação de torres de geração de energia eólica e a preservação de um parque estadual de inegável valor ecológico e arqueológico. Ambientalistas locais apontam para a instalação de torres de mediação de ventos – ação preparatória para a definição dos pontos das torres geradoras –, em áreas internas ao Parque Estadual de Morro do Chapéu, considerado tanto pelo governo federal como estadual como unidade de conservação ambiental de proteção integral. A Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel prevê a instalação de mais de três mil torres de geração de energia eólica na região de Morro do Chapéu. Três empresas já estão atuando na cidade. A Enel Green Power, de origem europeia, começa a instalar, a partir de setembro, 65 torres, sendo nominado de Parque Eólico Cristal. De origem cearense, a Casa dos Ventos tem sua expertise na elaboração de mapeamentos como diferencial para identificação de sítios eólicos. Sua atuação inicial está focada nos parques eólicos da região: Santa Dulce, Santa Esperança e São Damião. Há ainda a pernambucana Millennium Energy Brasil, que deverá instalar 165 torres geradoras ao norte do Parque Estadual de Morro do Chapéu. Segundo o secretário da Associação de Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu - ACV/ MC e membro do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, Luiz Dourado, na parte sul do parque são encontradas torres de medição de ventos instaladas ilegalmente, à altura da Serra da Bolacha. As torres estariam dentro da atual poligonal da unidade de conservação ambiental. “Em estudo apresentado pelo Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos - Inema-BA, em
audiência pública de 17 de dezembro de 2011, e remetido para o Ministério Público Estadual de Morro do Chapéu, consta um mapa do Parque Estadual no qual se observa a previsão de instalação de torres dentro do seu próprio polígono de proteção ambiental, identificando inclusive o nome dos futuros parques eólicos: Parque Eólico Santa Dulce, Parque Eólico São Damião e Parque Eólico Santa Esperança”, informa Dourado. Diretora de Unidades de Conservação do Inema-Bahia, Jeanne Sofia Tavares Florence observa que os estudos, assim como o mapa, tinham o objetivo de trazer a público os diversos aspectos relativos à questão ambiental, inclusive o que estava então previsto na área de geração de energia eólica. Por isso, foram levados a uma audiência pública para debate, análise e crítica. “Uma coisa é o que existe de dado ou projeção. Outra é o que pode ou não ser contemplado”, afirma. No entender do presidente da Associação dos Criadores e Produtores da Região, Odilésio Gomes, ex-prefeito de Morro do Chapéu de 1972 a 1976, período em que o parque foi criado, a energia eólica é uma das mais limpas que existem e os seus impactos são os menores. “É evidente que se devem respeitar as regras ambientais. Mas penso que, ao invés de combater a instalação de usinas na região, deveríamos reivindicar que parte dos recursos gerados pela energia eólica fosse destinada ao financiamento do manejo do parque”, salienta. Para Gomes, existem aspectos relevantes a serem considerados nos novos ventos de desenvolvimento econômico para o município trazidos pelos futuros parques eólicos, como a receita dos royalties da produção de energia, o aporte tecnológico que exigiria mão de obra local especializada e a receita produzida pelo arrendamento de terras para instalação das torres. “O município de Morro do Chapéu, como quase todos os instalados no sertão, vive o êxodo rural pela falta de alternativas econômicas. Precisamos encontrar formas de conciliação entre o desenvolvimento e a preservação de biomas”, avalia.
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C A PA CONFLITOS FUNDIÁRIOS Pela legislação estadual, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia detém a tutela legal da área, e a ele cabe efetivar as devidas salvaguardas e garantias de proteção do parque. A Associação observa a existência de uma estrada ilegal dentro do parque, construída pela Prefeitura Municipal, que teria sido alvo de dois processos de embargos do Inema (502/2006 e 005748/2007) e de uma série de denúncias formalizadas, sem qualquer indício de conclusão do processo administrativo por parte do órgão do meio ambiente do Estado. Além dos impactos ambientais, a estrada estaria provocando conflitos sociofundiários para além da ampliação da matriz energética e a franca entrada de caçadores na área do parque. A diretora do Inema Jeanne Sofia Florence,informa que não há conhecimento oficial do órgão sobre a instalação de unidades de medição dos ventos dentro do perímetro do parque. Assim, como conflitos fundiários envolvendo terras do Estado que integram a área. “Não nos foi solicitada a instalação de nenhuma torre na poligonal. Assim como não tem chegado até o Inema tais informações”, observa. O gestor do Parque Estadual de Morro do Chapéu, Tadeu Valverde, infor-
PARQUE FOI CRIADO EM 1973 O Parque Estadual de Morro do Chapéu conta com 46 mil hectares. Foi criado simbolicamente em 1973, na gestão do então governador Antonio Carlos Magalhães, com a consultoria do arquiteto-paisagista Burle Max, dentre outros especialistas. Em 1998, após estudo realizado pela Ecoplam – Empresa de Consultoria e Planejamento Ambiental, responsável por balizar a definição estrutural do parque, o governador baiano Paulo Souto instituiu na região três unidades de conservação ambiental: o Parque de Morro do Chapéu, com característica de proteção ambiental integral; a Área de Proteção Ambiental (APA) Gruta dos Brejões, identificada como área de desenvolvimento ambiental, portanto compatível com outras atividades socioeconômicas; e o Monumento Natural Cachoeira do Ferro Doido, também de preservação integral. O decreto que oficializou a existência do parque é o de n º 7.413, de 17 de agosto de 1998, com a definição de sua poligonal, que continua vigente até novo ordenamento. No ano de 2005, a antiga Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado – Semarh contratou estudo detalhado à Universidade Estadual de Feira de Santana, com o mapeamento não só dos recursos ambientais e hídricos, como também de sítios arqueológicos. Porém, nenhuma das três áreas ainda hoje possui plano de manejo, regularização fundiária nem o zoneamento ecológico/econômico. Sendo categorizada como unidade de conservação de proteção integral, ou seja, com restrição de uso, o Ministério Público e os ambientalistas entendem o Parque Estadual Morro do Chapéu como uma Zona Livre de Parques Eólicos (Zolpe).
ma que a denúncia das irregularidades foi feita junto ao Ministério Público e ao Inema, em 2011. Na época, existiam oito torres de medição instaladas sem licenciamento em área do parque. O licenciamento teria sido solicitado um ano depois, e concedido pelo governo do Estado. A anuência do Estado era determinante para que a empresa responsável pela instalação das torres pudesse participar de licitação da Aneel. “Não somos contra a energia eólica. Muito pelo contrário. As empresas que estão cumprindo a legislação vieram para ficar. O município tem seis mil quilômetros quadrados, quases todos bons para a geração de energia eólica. Por que então se utilizar de área do parque?”, questiona Valverde. De acordo com o coordenador da brigada de combate a incêndios florestais do município, Jaime Matos, muitas fazendas no entorno do parque possuem fundos de pasto que penetram as áreas delimitadas pela poligonal. Algumas dessas fazendas teriam sido compradas e os fundos de pastos cercados, fatiados e vendidos. Fundo de pasto é um modo tradicional de criar animais, em que a gestão da terra e de outros recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum para pastagem nativa. Os lotes fatiados teriam sido vendidos para pequenos produtores que estariam instalados dentro da área do parque.
A reivindicação de um plano de manejo é antiga. O plano é o que efetivamente tira o parque do “papel”. Segundo o secretário da Associação de Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu, Luiz Dourado, um dia após a solicitação ao secretário estadual do Meio Ambiente, Eugênio Spengler, da regulamentação das UCs e, em especial, a proteção do parque contra queimadas e a instalação de torres irregulares de medição de ventos, o vice-governador Otto Alencar, no exercício interino como governador, publicou o decreto nº 12.744, em 12 de abril de 2011, tornando nula a criação do parque. A Associação entrou com uma ação civil pública junto ao Ministério Público, solicitando a revogação do decreto, alegando a não realização de procedimentos normativos, como audiências públicas prévias, estudos e a análise do assunto pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. No dia 2 de maio do mesmo ano, o governador Jaques Wagner extinguiu o decreto de 12 de abril, tornando sem efeito a extinção do parque. A expectativa está hoje na redefinição da nova poligonal por parte do governo do Estado, o que não poderá resultar, de acordo com a Lei 9.985/2000 e o seu decreto regulamentador nº 4.340/2002, numa área menor do que atual. “Há a expectativa de que no segundo semestre deste ano a proposta de nova poligonal do parque seja analisada e votada pela Assembleia Legislativa Estadual. Uma vez aprovada, logo em seguida será definido o plano de manejo do parque, o que levará à eliminação dos aspectos que têm levado à fragilização do trabalho de proteção ambiental dentro da poligonal ao longo de todo esse tempo, desde sua criação em 1998”, informa a diretora do Inema-Bahia, Jeanne Sofia Florence.
Jaime Matos: fundo de pasto de pequenos produtores penetra na área delimitada na poligonal.
DEVASTAÇÃO DA FAUNA E FLORA Na visão de Jaime Matos, a preocupação da população local é, principalmente, com a devastação, grilagem e incêndios que têm surgido por conta do desmatamento para a instalação de torres de medição e que certamente se intensificarão com a instalação das torres de geração. Ele conta que a brigada de incêndio foi mobilizada para apagar um fogo dentro do parque. No dia seguinte, alguns dos seus componentes voltaram ao lugar para verificar se havia algum foco residual. No local, tinha sido deixada uma estrutura completa de uma torre de medição de ventos, instalada logo em seguida. “Ou seja, trata-se de terras do Estado dentro de um parque. Aí vem uma empresa, instala uma torre e finca uma placa afirmando sua propriedade”, informa Luiz Dourado. A preocupação com os danos à fauna e à flora do parque é grande por parte dos ambientalistas. A fauna da região é variada em razão da diversidade de vegetação: arara canaans, papagaio baiano (é encontrado na Serra das Araras, do Badeco e Salgado), periquitos, cardeal, capivara, coelho, lagarto, gavião, aracuã, jacu, pato, veado, onça, colibri dourado, etc. O colibri dourado foi alvo, inclusive, de pesquisa do falecido ambientalista e estudioso Alfredo Ruschi, que tinha identificado, em 1963, sua presença apenas no município. Hoje, sabe-se que é possível encontrar exemplares deste beija-flor em outros lugares, como em Vitória da Conquista, também município baiano. Em ofício encaminhado à Associação dos Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu, em
2001, por Rolando Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, órgão do Ministério do Meio Ambiente, o Parque Estadual de Morro do Chapéu é peça-chave no trabalho de preservação de felinos de grande porte, em especial da onça pintada, nativa dessa região. O parque está no enclave de um conjunto de corredores para circulação de felinos. Para especialistas, Morro do Chapéu possui a maior concentração e diversidade de cactos da Bahia, uma planta que armazena água, sendo de grande utilidade para a vida animal. Somente lá é possível encontrar a espécie melocactus albicephalus, cujo cefálio (cabeça) branco puro contrasta com as flores cor fúcsia. A região abriga ainda umas das maiores concentrações de orquídeas da Bahia. A Cattleya Tenuis, com suas flores verde-amarronzadas e labelo rosa, é encontrada apenas nas localidades de Angico e Cristal, no município, sendo motivo de peregrinação de orquidófilos japoneses, alemães e franceses.
PRINCIPAIS SUB-BACIAS DA BAHIA Mas a preocupação dos ambientalistas locais não recai somente sobre a fauna e a flora existentes no perímetro do parque. A atenção está também nos possíveis impactos de tais projetos nos recursos hídricos. A região de Morro do Chapéu é considerada “caixa d’água” das principais bacias hidrográficas da Bahia. Estudos desenvolvidos pela Universidade Estadual de Feira de Santana – Uefs, em 2005, apontam a existência de 546 nascentes e áreas de recargas hídricas na área, pertencentes a quatro sub-bacias: dos rios Jacaré e Salitre, que deságuam no rio São Francisco; e Utinga e Jacuípe, que aportam águas no rio Paraguaçu. “Quem guarda as águas são as montanhas. Se houver decapeamento da serra e seu seio for furado, será afetada a área de recarga das sub-bacias. E aí nos questionamos: por que a instalação de tais torres dentro do parque? Para aproveitar as serras. Mas, como me disse o grande geógrafo e ecólogo Aziz Ab’Sáber, precisamos evitar
O parque possui a maior concentração e diversidade de cactus da Bahia
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C A PA REGIÃO É RICA EM SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS Estima-se que na região de Morro do Chapéu existam mais de 200 sítios arqueológicos com pinturas rupestres. Para o professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, Carlos Etchevarne, tais sítios representam um imenso valor histórico documental sobre os grupos humanos pré-coloniais. “São bens patrimoniais coletivos não renováveis, protegidos por legislação federal. É nosso parecer que nos procedimentos relativos ao traçado dos novos limites do Parque Estadual de Morro do Chapéu seja incluído, impreterivelmente, o levantamento de sítios dessa natureza e que seja prevista a confecção de um corpus de diretrizes técnico-científicas específicas para a preservação desses locais, como legado para as futuras gerações de brasileiros”, informa. A análise do professor Etchevarne foi solicitada pela Associação dos Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu, preocupada com o destino dos sítios arqueológicos com pinturas rupestres da região, não considerados até então pelos estudos realizados para a nova delimitação do Parque Estadual, a ser implementada pelo governo do Estado da Bahia, de acordo com o decreto nº 12.810, de 2 de maio de 2011. Conforme a lei federal nº 3.924, que rege monumentos arqueológicos, o patrimônio arqueológico pré-histórico é considerado bem material pertencente à União.
Estimativa de pesquisadores é
A ideia do governo estadual é que seja definida uma nova poligonal do parque. Além da incorporação dos sítios arqueológicos, a Associação dos Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu propõe a inclusão na área delimitadora do parque das nascentes importantes do rio Salitre: Boca da Madeira, Carro Quebrado, Covão, Covãozinho, Jacarezinho. Essa proposta foi entregue oficialmente pela Associação ao Inema, em dezembro de 2011, por ocasião de consulta pública realizada em Morro do Chapéu.
que espaços como um parque ambiental desta magnitude sejam transformados em ‘mercadorias’ para favorecer grupos minoritários ilegais, em detrimento dos lídimos direitos da maioria, com alcance nas gerações futuras”, afirma Luiz Dourado. A preocupação da sua entidade ambientalista se sustenta no fato de que uma torre de geração de energia eólica, com 140 metros de altura, por exemplo, pesa 10 toneladas de ferro, exigindo grande movimentação de veículos, 300 caçambas de concreto e um hec-
de que existam cerca de 200 sítios arqueológicos na região
tare no seu entorno limpo, o que representa uma considerável supressão de vegetação. Segundo Márcio Brito, um dos fundadores da ACV-MC, da Associação Amigos da Natureza de Morro do Chapéu e funcionário da Biblioteca Municipal, o movimento de abertura de estradas para a colocação de uma única torre de medição já destruiu uma das nascentes do rio Salitre. “As estradas são muito largas. Por elas precisam passar carretas com mais de 43 metros de comprimento, exigindo uma grande supressão vegetal. O solo compactado cria uma camada impermeável. A vegetação local é de serrado (tabuleiro), de difícil reposição. Isso sem falar que as estradas tornaram o acesso ao parque mais fácil, o que tem representado o aumento considerável da caça”, observa. Já de acordo com o gestor do parque, Tadeu Valverde, várias nascentes foram aterradas, além das mais visíveis a olho nu. Para os ambientalistas locais, o fato de existir a previsão de instalação de cerca de três mil torres de geração de energia eólica na região de Morro do Chapéu e adjacências não torna aceitável que sejam colocadas algumas dessas torres dentro da área dominial do Estado, no polígono do parque, considerado uma unidade de conservação de proteção integral. No entender da Associação de Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu, não há fundamentação técnica, científica e o necessário amparo jurídico para ocupação de área pertencente ao parque.
Marcio Brito: abertura de estrada destruiu uma das nascentes do rio Salitre
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Para os ambientalistas locais, falta amparo jurídico para ocupação do parque com projetos eólicos
“O que desejamos não é defesa parcializada do meio ambiente, de forma radical e desarrazoada. Mas, sim, uma proposição em sintonia com a sustentabilidade socioambiental, a partir da inclusão de arranjos produtivos relacionados à própria gestão do parque, com repartição múltipla de benefícios permanentes, num ciclo virtuoso e de grande alcance socioambiental. O desenvolvimento econômico não pode se contrapor aos valores de vida existentes nos ecossistemas de relevância incalculável que a natureza nos oferece em toda a sua biodiversidade, garantido ao homem a qualidade do ar, da água, da terra e dos recursos naturais”, afirma Luiz Dourado.
RIO SALITRE RECEBE INVESTIMENTOS PARA SUA RECUPERAÇÃO Único afluente perene no submédio do rio São Francisco, que corta a chamada Região dos Lagos, o rio Salitre tem seu fluxo de água hoje intermitente, por conta da devastação das áreas próximas às suas margens. Segundo o presidente do Comitê do Rio Salitre, Almacks Luiz Silva, o aterramento de algumas de suas nascentes só faz agravar um quadro que vem despertando preocupação dentro do
próprio Comitê da Bacia do São Francisco. De 2012 a julho de 2013, o rio recebeu investimentos da ordem de R$ 838 mil do CBHSF, para a realização de uma primeira etapa de recuperação e cercamento de suas nascentes e construção de barraginhas de contenção para que não haja carreamento das margens, contendo a erosão e o assoreamento do rio. Os recursos são oriundos da cobrança pelo uso das águas do rio São Francisco. Em setembro deste ano, deve ser iniciada a segunda etapa do projeto, que prevê um aporte de R$ 1.260 milhão. Será realizado o trabalho de cercamento e
recomposição da Área de Preservação Permanente (APP), que contempla 30 metros de cada margem do rio, estendendo-se de Morro do Chapéu, onde nasce o Salitre, até o município de Várzea Grande. Espécies nativas serão plantadas nas áreas degradadas, juntamente com árvores frutíferas, para garantir renda para as populações locais. A região do submédio do rio São Francisco se estende de Remanso até Paulo Afonso. No dia 19 de julho, a Câmara Consultiva da Região do Submédio se reuniu na cidade de Paulo Afonso para decidir sobre os investimentos a serem realizados no próximo ano.
AMBIENTALISTAS TÊM PROPOSTA PARA MANEJO DO PARQUE A alternativa apresentada pela Associação de Condutores de Visitantes para por fim aos conflitos de interesses entre a preservação do Parque Estadual Morro do Chapéu e a instalação de usinas de energia eólica está baseada, segundo o seu secretário, Luiz Dourado, na compatibilização de fatores vocacionais e prioritários da região, a partir de um planejamento estratégico a ser elaborado, englobando três vetores: 1) A definição do plano de manejo tirando do “papel” as três unidades de conservação, incluindo o monumento natural Cachoeira do Ferro Doido, a partir de um modelo de inserção social que preveja o processo de participação e cogerência das três unidades; 2) A formatação e consolidação do polo turístico de Morro do Chapéu, a partir dos atrativos naturais do parque, em associação ao polo de Lençóis e adjacências, formando um cluster turístico na Chapada Diamantina. A ideia é aproveitar o potencial turístico do lugar na linha do ecoturismo de baixo impacto e alta responsabilidade socioambiental, em segmentos como turismo cênico, paisagístico, bird watching, aventura, cultural e científico; 3) Atendimento dos empreendimentos eólicos dentro da estrita legalidade; No entender da Associação, a monumentalização (definição do modelo de manejo) do parque servirá para congregar vários setores em torno da ideia do aproveitamento turístico da Chapada, tido como um dos mais promissores e relevantes da Bahia, ainda insuficientemente explorado, com amplo espectro de possibilidades em razão dos atrativos turísticos singulares. “A ideia é que seja traçado um planejamento estratégico para a região que garanta a este arranjo um amplo espectro de repartição de benefícios, com o resgate socioambiental (injustiça socioambiental), a promoção e a inserção da população mais necessitada, de forma criteriosa, eliminando a intromissão nefasta de atravessadores e especuladores oportunistas, de expropriadores mesmos, como sempre tem ocorrido”, sugere Dourado.
Luiz Dourado: ideal é que seja traçado um planejamento estratégico para a região.
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DE B AT E
ENERGIA Mais um dilema para o “Velho Chico” TEXTO: FRED BURGOS
M
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ILUSTRAÇÃO: JORGE MARTINS
ais energia para garantir o crescimento sustentado do Brasil. Essa máxima em torno do modelo de desenvolvimento adotado no país está por trás da decisão governamental de instalar quatro novas usinas nucleares no território brasileiro, definida no Plano de Expansão da Oferta de Energia Elétrica até 2030. Segundo a Eletronuclear, empresa estatal vinculada ao governo federal, as duas próximas usinas nucleares brasileiras serão construídas no Nordeste, às margens do rio São Francisco. A decisão vem carregada de controvérsias em torno da adoção de uma tecnologia de produção de energia em crescente desuso nos países centrais, em razão dos seus conhecidos riscos, de sua possível instalação na região sem o esclarecimento e a consulta prévia das populações, passando pela preocupação com a saúde dos ecossistemas do “Velho Chico”. Para os especialistas, o temor em torno da iminência de “apagões” tem garantido a pouca transparência na abordagem governamental do tema, sob a promessa de se trazer o progresso e a criação de empregos para o semiárido brasileiro. Mas, na forma e no conteúdo, as polêmicas são tão amplas quanto intensas. A reativação do Programa Nuclear Brasileiro foi decidida pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, em reunião no mês de junho de 2007, que contou com a presença de dez integrantes, a maioria ministros de Estado. A principal ausência foi a da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. A reclamação mais frequente remete à falta de uma discussão mais abrangente sobre o tema com setores da academia, cientistas e organizações da sociedade civil. O programa nuclear brasileiro foi adotado inicialmente durante o regime militar e se mantém ligado a setores que apoiam o uso militar da tecnologia atômica. Para o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Anivaldo de Miranda Pinto, todo processo que envolve o cotidiano de milhares de pessoas e a possibilidade ainda que remota de grandes impactos ambientais requer um amplo debate esclarecedor, antes que medidas efetivas sejam tomadas. “Um pressuposto básico da democracia é a participação dos cidadãos, que deve se dar associada ao direito à informação. É essa relação que sustenta a confiança, fator indispensável a todo projeto desta natureza”, diz. Segundo ele, a expectativa é que amplos debates e processos de consulta popular ocorram em torno do polêmico projeto de instalação de usinas nucleares na bacia do São Francisco. “Além do mais –complementa- independente da questão primordial que é saber se as populações interessadas aceitam ou não a implantação dessas usinas, ainda restarão muitas questões bastante complexas a resolver, como, por exemplo, a escolha do tipo de tecnologia a ser utilizada e que implicam em enorme potencial de discussão, haja vista a importância que têm na maior ou menor sustentabilidade econômica e ambiental do projeto.” O assessor da presidência da Eletronuclear, Dráusio Atalla, confirma que estudos vêm sendo realizados, mas ainda não há uma definição final. Apesar de não existir decisão sobre a localização exata das duas usinas no Nordeste, sabe-se que os estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe fazem parte dos estudos preliminares. No entender do professor associado do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, o engenheiro nuclear Heitor Scalambrini Costa, a decisão de retomada do Programa Nuclear Brasileiro foi uma medida, no mínimo, equivocada, “já que o país dispõe de recursos renováveis abundantes e diversos que podem atender a uma demanda eficientizada, sem desperdícios e com geração descentralizada, além da complementariedade entre as diversas fontes energéticas renováveis. Não há, portanto, razões para investir em energia nuclear no Brasil”.
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NUCLEAR CUSTOS SOCIOAMBIENTAIS
Segundo o dirigente do Grupo Ambientalista da Bahia – Gambá, Renato Cunha, o Brasil possui um amplo território e um rico potencial de fontes renováveis de energia que podem, associadas, contribuir para resolver o problema da oferta energética. “É fundamental que sejam incluídos em projetos dessa natureza os custos socioambientais. O São Francisco tem uma vocação histórica para a agricultura e a pesca sustentável. É importante que sejam pensadas alternativas que não colidam com as histórias dos lugares e, para isso, é fundamental que haja transparência na gestão dos recursos naturais”, afirma. Cunha avalia que uma das questões negligenciadas na matriz energética nacional é a eficiência atual do sistema. “Se potencializarmos as hidroelétricas existentes no seu total, teremos algo equivalente a uma nova Itaipu. Estudos mostram que é possível trocar turbinas antigas por mais modernas e eficientes ou mesmo adicionar uma nova turbina, além de se investir na minimização de altas perdas registradas no processo de transmissão de energia”, sugere. Pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco e membro do Fórum Interinstitucional de Defesa do Rio São Francisco, João Suassuna observa que há aqueles que defendem o uso de tecnologia nuclear como segura e produtora de energia limpa, mas os acidentes ocorridos nas usinas de Three Miles Islands, nos Estados Unidos; Chernobyl, na extinta União Soviética; e Fukushima, no Japão, sinalizam um grave risco que não se pode deixar de levar em conta. Centro do pior acidente nuclear já ocorrido, Chernobyl, hoje uma cidade-fantasma localizada no norte da Ucrânia, foi o ponto de origem da tragédia que resultou na morte de mais de quatro mil pessoas, em razão de um erro humano que liberou, em 26 de abril de 1986, uma imensa nuvem radioativa, contaminando seres humanos, animais e o meio ambiente de um grande área da Europa. Suassuna avalia que o risco de acidente é um temor permanente para as comunidades mais próximas às centrais nucleares. Dráusio Atalla, da Eletronuclear, afirma que, em razão de uma “inflação dos dados” sobre tais acidentes e do impacto no imaginário coletivo das bombas atômicas jogadas nas cidades japonesas Hiroshima e Nagasaki, o temor nuclear virou um “dogma”. Ele informa que relatórios da Organização das Nações Unidas – ONU dão conta de que menos de 60 pessoas morreram em razão do acidente em Chernobyl, contra as 4.000 mortes de “fontes não confiáveis”. “Em Three Miles Island houve apenas uma morte, por acidente de carro. E em Fukushima, onde ocorreu a entrada em fusão de três reatores, nenhuma pessoa morreu”, diz, completando que a geração de energia nuclear “é cercada por um aparato tecnológico de segurança não encontrado em nenhum outro setor”. Mas as controvérsias em torno da decisão de instalação de usinas nucleares no Nordeste não se atêm apenas aos riscos de acidentes. A geração do chamado “lixo atômico”, resíduo produzido no processo de geração de energia nuclear, é outro aspecto. Heitor Scalambrini Costa observa que, toda vez que se gera energia, produz-se impactos. Mas a questão nuclear é, acima de tudo, ética. “O desenvolvimento sustentável, na sua definição clássica, sugere que preservemos hoje para o desfrute de gerações futuras. Porém, a energia nuclear cria o problema hoje para o amanhã”. Segundo ele, não existe tecnologia no mundo capaz de lidar com o chamado lixo atômico. Esses dois aspectos associados têm feito com que países como a Alemanha, Itália, Áustria, Bélgica e Japão venham abolindo ou estudando a eliminação da tecnologia de suas matrizes energéticas. Atalla, por sua vez, aponta os investimentos que estão sendo feitos continuamente em tecnologias para a segurança no acondicionamento seguro dos resíduos e no seu reaproveitamento ou mesmo na sua conversão em elementos químicos com baixo ou nenhum efeito radioativo. “O que falta na discussão do rejeito é a percepção do tempo, em um cenário de grandes avanços tecnológicos contínuos”, avalia. Mas, enquanto as tecnologias atuais não garantem uma solução efetiva, a preocupação das pessoas se mantém em alta.
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FOTO: IFOTOLIA
DE B AT E Suassuna conta que membros do Fórum Interinstitucional de Defesa do Rio São Francisco em Pernambuco realizaram, recentemente, reuniões com a população de Itacuruba, município pernambucano com cerca de 4.500 habitantes, um dos possíveis candidatos a abrigar uma das duas usinas nucleares. A cidade margeia o rio São Francisco, está a cerca de 50 km do complexo hidroelétrico de Paulo Afonso e a aproximadamente 110 km do Raso da Catarina, que abriga uma reserva ecológica do Ibama, onde se especula que possa vir a ser o depósito do lixo gerado na futura usina. “Esclarecemos à população quais os impactos possíveis com a instalação da central nuclear no município. Houve uma revolta geral e, atualmente, ninguém quer mais que o projeto seja instalado lá. A população tem que ser ouvida e dar a sua posição, já que é ela quem vai sentir primeiro os eventuais benefícios e malefícios”, afirma. Mas além de aspectos gerais, que podem afetar qualquer lugar, há questões específicas que impactam diretamente o rio São Francisco. Como outras usinas termoelétricas, as centrais nucleares necessitam de grandes volumes de água para refrigeração e geração de vapor. Do ponto de vista de vazão do rio, não há grande impacto, já que a água é devolvida ao seu curso. Porém, ao ser devolvida, a água aquecida pode destruir o delicado equilíbrio biológico das águas do “Velho Chico”. Isso porque ela volta ao rio com uma temperatura até cinco graus acima da água do meio ambiente, o que pode matar plânctons e outros organismos, causando um efeito em cadeia devido à interdependência dos ecossistemas.
FALSA RETÓRICA As promessas de emprego e renda não passam incólumes por críticas. As estimativas atuais dão conta de que para a construção de cada uma das duas usinas serão necessários cerca de R$ 10 bilhões, para a geração de 1350 MW após seis anos, tempo necessário ao início de operação. Dados do Greenpeace, organização internacional de defesa do meio ambiente, avaliam que os recursos gastos para a produção de energia nuclear podem gerar o dobro da quantidade de energia se forem investidos em energia eólica, e quatro vezes mais se investidos em eficiência energética. “Com o mesmo volume de recursos, seria
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possível garantir a instalação de energia solar fotovoltaica em um milhão de residências”, estima Heitor Scalambrini Costa. Em uma região com poucas alternativas de geração de emprego e renda, a promessa de investimentos dessa ordem pode gerar expectativas elevadas. Mas um investimento de R$ 10 bilhões em uma usina nuclear tende a gerar poucos empregos, em razão do uso intensivo de tecnologia, concordam Scalambrini e Cunha. “Do ponto de vista da empregabilidade e dos ganhos financeiros para o município e estado que abrigarem a usina nuclear, há uma falsa retórica de que os investimentos automaticamente favoreceriam os moradores do entorno de tais instalações”, afirma Scalambrini. No site do Greenpeace, há informações de que, na Alemanha, para cada emprego direto gerado pela indústria nuclear, a geração de energia eólica produzia, até recentemente, 32 empregos e a solar, 1.426. No entender de Dráusio Atalla, um empreendimento como o de uma usina nuclear não pode se resumir apenas à geração de energia. “É preciso que seja construída uma governança com a participação de todas as esferas envolvidas direta e indiretamente com o projeto, para que aconteça uma ocupação do solo voltada à criação de oportunidades, que passem pelo eixo de controle e preservação ambiental, mas também pela geração de renda e emprego”, diz. No seu entender, são poucas as possibilidades para que as regiões que estão sendo avaliadas recebam um volume de investimentos dessa ordem e grandeza. Com frequência, a defesa da energia nuclear adota o argumento de que se trata de uma energia renovável, com baixo impacto no efeito estufa, responsável pelo aquecimento da atmosfera. Dados da Agência Internacional de Energia Atômica – AIEA, ao considerarem todo o ciclo produtivo – desde a mineração do urânio, o transporte, o enriquecimento, a posterior desmontagem do reator (descomissionamento) e o processamento e confinamento dos rejeitos radioativos – apontam que a alternativa nuclear produz entre 30 e 60 gramas de CO2 por kWh gerado. Já de acordo com a metodologia de Storm e Smith, adotada mundialmente para o cálculo de emissões de carbono pela produção de energia nuclear, o ciclo de geração por fontes nucleares emite de 150 g a 400 g CO2/ kWh, enquanto o ciclo para geradores eólicos emite de 10 a 50 g CO2/kWh. A expectativa do Comitê do São Francisco, afirma o presidente Anivaldo Miran-
Usina japonesa de Fukushima: desastre serviu como alerta mundial para os perigos da geração de energia nuclear.
da, é que um amplo debate aconteça, municiando as populações ribeirinhas com informações que lhes garantam o direito a uma decisão consciente sobre a questão.
OS RISCOS VÃO ALÉM DA VIDA ÚTIL DA USINA Os riscos de acidentes em uma usina nuclear e o armazenamento do lixo produzido e dos resíduos que sobram após a sua desativação estão entre as principais preocupações em torno da tecnologia atômica. A liberação de material radioativo é o que de pior pode acontecer em uma usina nuclear. Um dos elementos gerados no processo de produção de energia nuclear, o plutônio 239, precisa de 24 mil anos para que a sua massa – e consequentemente seus efeitos – seja reduzida à metade. O material radioativo liberado no meio ambiente pode contaminar pessoas, animais, água, solo e ar. “Esta é a grande e maior preocupação: a vidas das pessoas e dos seres vivos, de uma maneira geral, que podem ser atingidos até onde os elementos químicos que foram liberados para o meio ambiente puderem chegar”, afirma o engenheiro nuclear Heitor Scalambrini Costa. A amplitude dos efeitos é relativa a um conjunto de aspectos que dizem respeito às condições atmosféricas. No caso do acidente de Chernobyl, em 1986, a sede da usina ficava na Geórgia, mas os efeitos da nuvem radioativa foram sentidos em Portugal, a uma distância de mais de 5.700 quilômetros. “Muitos desses elementos químicos acabam se instalando
nos ossos, afetando a medula óssea, na tireoide, entre outras partes do organismo humano. Daí por que, geralmente, o número de mortes imediatas após o acidente é relativamente pequeno em relação a outros tipos de acidentes. Todavia, as mortes ocorrerão ao longo de décadas”, afirma Scalambrini. O ciclo do combustível nuclear começa com a mineração e se estende até o final da vida produtiva da usina. As insuficiências tecnológicas no armazenamento dos resíduos gerados na produção nuclear têm mobilizado a atenção de comunidades em todo o mundo. A ausência de tecnologia apropriada tem feito com que os resíduos sejam armazenados em locais em que o seu vazamento pode, no futuro, ameaçar o meio ambiente. Alguns países têm despejado seu lixo atômico no fundo do mar, em contêineres. Outros têm armazenado em minas abandonadas de sal, que também são altamente corrosivas. Assessor da presidência da Eletronuclear, estatal responsável por construir e operar usinas termonucleares no Brasil, Dráusio Atalla avalia que a preocupação com os resíduos produtivos é superestimada. “Angra II, uma das maiores usinas nucleares do mundo, gera de rejeitos por ano de 5 m3 a 6 m3, algo do tamanho de uma Kombi. Toda a usina é planejada e construída para abrigar com a máxima segurança esses resíduos”, afirma. Por outro lado, a palavra “descomissionamento” tem preocupado populações nos lugares onde se planeja armazenar o resíduo final após uma usina nuclear ser desativada. A vida útil média de uma central nuclear é de 25 anos, podendo chegar a 40 anos. Ao final de sua vida, não se trata só de desligar a tomada, como advertem os especialistas. O desmantelamento de uma usina pode gerar milhões de quilos de rejeitos, altamente contaminados. Atalla informa que o “descomissionamento” de uma usina contempla as etapas de desmantelamento, descontaminação e guarda. “O que sobra pode ser armazenado ou servir para construção de outra usina. O que não pode ser descontaminado é guardado em um ambiente seguro e controlável”, diz. Ele observa que uma usina demora cerca de dez anos para ser construída e entrar em operação. Sua vida útil é de, em média, 40 anos, mas pode chegar a 60 anos. “Fala-se já em vida útil de 80 anos. Investimentos intensos têm sido feitos em torno das melhores tecnologias de segurança e mesmo de transmutação de resíduos em elementos não radioativos. Cada usina em operação reserva parte de sua receita para lidar com seus rejeitos e mesmo de ‘descomissionamento’”, informa. Em 2006, portanto um ano antes da decisão de retomada do Programa Nuclear Brasileiro, relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados afirmava que o Estado brasileiro está longe de ter a estrutura necessária para garantir a segurança das ativida-
des e instalações nucleares. João Suassuna lembra o acidente ocorrido em 1987 – contaminação com o Césio 137, em Goiânia (GO). “Milhares de pessoas foram contaminadas neste que ficou conhecido com o maior acidente radiológico do mundo”, afirma. O acidente se deu não em uma usina nuclear, mas a partir de um aparelho utilizado em radioterapias. O seu mau acondicionamento, que permitiu que catadores de ferro velho tivessem acesso ao instrumento, tornou-se um exemplo da ausência de políticas de segurança na área.
O IMPACTO NAS ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO Uma das preocupações recorrentes trazidas pela possibilidade de instalação de usinas nucleares é a de contaminação das águas do rio São Francisco, já afetadas ao longo de séculos pelo descuido com o seu manejo. Segundo Heitor Scalambrini, do ponto de vista da radioatividade, o risco é pequeno, já que nos reatores existem circuitos independentes por onde circula a água. “O chamado circuito primário com água radioativa é altamente perigoso e fica restrito ao interior dos reatores. Há ainda os circuitos secundários, onde a água que circula não oferece perigo de radiação e é devolvida à sua origem”, informa. O problema levantado pelos estudiosos é que essa água, cuja função é circular nos equipamentos para refrigerá-los, é devolvida para o meio ambiente mais quente entre 30 e 50 graus, podendo chegar a gradientes maiores em relação à temperatura ambiente. Apesar de não existirem estudos conclusivos sobre os malefícios que podem causar ao rio, à sua fauna e flora, pesquisas apontam que na região de retorno da água mais quente há o desaparecimento de várias espécies vegetais e animais. Por outro lado, aponta Scalambrini, há a indicação de que em Angra dos Reis (onde estão situadas as usinas Angra I e Angra II) houve o surgimento de tartarugas que até então tinham desaparecido do local. Mas tartarugas possuem um espaço territorial muito amplo, não se resumindo à área próxima onde são despejadas as águas das usinas. Nas tecnologias convencionais, as usinas nucleares precisam de 40 m3 a 100 m3 por segundo de água para o processo de resfriamento dos reatores, o que representa uma vazão considerável para as condições do rio São Francisco e coloca a escolha da tecnologia como um dos elementos centrais de qualquer debate sobre o assunto. Os plânctons, base da cadeia alimentícia de rios e mares, não suportam grandes variações de energia. Estima-se que a vida num raio de 500 metros em torno do local onde são despejadas as águas que saem dos reatores sofre impactos relevantes com o choque térmico contínuo. “Creio que, numa relação de custo e benefício, podemos afirmar que esta água devolvida ao rio trará mais problemas do que solução”, conclui Heitor Scalambrini.
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AG R I C U LT U R A
Adeus ao
feijão A CIDADE DE IRECÊ, NA BAHIA, LUTA PARA PRESERVAR O QUE LHE RESTA EM RECURSOS HÍDRICOS, MAS NÃO SABE SE AINDA É POSSÍVEL RECUPERAR O TÍTULO DE “CAPITAL DO FEIJÃO” TEXTO: DELANE BARROS. FOTOS: TIAGO LIMA.
Rio Jacaré: água só chega à população quando ocorrem enchentes.
anos e de lá nunca saiu. Ele lembra que há cerca de dois séculos sua família tem ligações com a região, desde seus avós e bisavós. “Para quem conheceu a pujança daqui, é muito triste ver esse quadro atual”, resume Barbosa. De acordo com seu relato, a força dos dois rios era tanta que não apenas alimentava a população local, como também atraía as pessoas interessadas em pescar. Segundo o líder quilombola, até 1975 ainda se permitia pescar peixes como traíra, farrapes e o iá, entre outros de pequeno e médio porte.
COMEÇO DO FIM
I
recê, na Bahia, foi criado em 1926 e considerado município sete anos depois, por decreto governamental. O nome da cidade tem origem indígena e significa “pela água, à tona d’água, à mercê da corrente” e foi escolhido por sua localização, na região do rio São Francisco, conforme o livro Irecê – Um Pedaço Histórico da Bahia, do escritor Jackson Rubem. Os primeiros habitantes da antiga Lagoa Grande, atual microrregião de Irecê, sobreviviam graças a fontes de água, como cacimbas, aguados, lagoas e tanques. Os migrantes, de acordo com informação corrente junto à população local, viam a região com muito interesse, devido à quantidade de água que brotava nas cacimbas. A água, indiretamente, deu o título à cidade de “capital do feijão”, em virtude de plantações que se espalharam na área rural – cerca de 450 mil hectares de lavouras do produto, especialmente entre os anos de 1980 e 1990. Atualmente, a semente é lembrada na cidade apenas pelo nome da rodovia estadual que corta toda a região, a BA-052, conhecida como Estrada do Feijão. O feijão, mesmo, desapareceu! Vamos aos fatos: os dois principais afluentes do São Francisco, os rios Verde e Jacaré, sofreram enormemente com a exploração desordenada, o que afetou de forma bastante grave o lençol freático. Faltou a visão sustentável para o cultivo na região. Não houve a preocupação com a sustentabilidade, essencial para a convivência harmônica do ser humano com os recursos naturais. O resultado foi uma grande interferência na agricultura local e a transformação do cultivo. De acordo com dados da Secretaria de Agricultura do município, a eco-
Diante do fim da lavoura do feijão, os agricultores passaram a investir no cultivo de beterraba, cenoura, cebola e tomate.
nomia da região gira agora em torno das plantações de beterraba, cenoura, cebola e tomate. Mesmo assim, numa quantidade bem distante daquela vivenciada nos tempos áureos da “capital do feijão”. Representante da comunidade quilombola dos pequenos produtores do Vale Canabrava, Eudisson Barbosa dos Santos, recorda bem a força dos recursos naturais da região em época longínqua. “Até a década de 1970, o rio Jacaré era forte, mas, devido às várias barragens clandestinas construídas ao longo do seu leito, a partir de 1985 a água só chegava para a população com as enchentes e desde essa época vem diminuindo”, relata com o conhecimento de quem nasceu na região há mais de 50
O engenheiro agrônomo Joiran Souza Mendes, da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia – Adab, enumera três fatores que levaram ao enfraquecimento da cultura do feijão no local. “Primeiro, o desestímulo do governo federal que, em meados dos anos 1990 tirou o zoneamento agrícola para a região ou seja, o incentivo oficial; segundo, a proliferação da mosca branca, uma praga altamente devastadora para o feijão e, por fim, a morte dos rios que banham o município”, aponta. De acordo com números oficiais do município, durante o auge da “capital do feijão” havia pelo menos 70 mil hectares de área plantada e uma colheita de aproximadamente 800 quilos da leguminosa por hectare. Atualmente, não se cultiva nenhuma semente do produto na região. Para reverter a situação, Joiran Mendes considera que o mais viável é a realização do projeto Baixio de
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Ednaldo Campos: quadro de racionamento por causa da vazão reduzida.
Irecê, que consiste numa grande obra hídrica para beneficiamento de toda a região, mas ainda sem os estudos iniciais. “É uma grande luta de toda a região, que ainda está longe de se concretizar”, considera ele, mesmo mantendo as esperanças. Segundo o agrônomo, o barramento feito no rio Verde, conhecido como Barragem de Mirorós, que tem gerado conflitos pelo uso das águas, deve ser o caminho para o início do Baixio de Irecê, pois consistiria na construção de um canal estimado em aproximadamente 32 quilômetros de extensão. Dos dois rios em questão, que, juntos, muito contribuíram para dar o título de “capital do feijão” a Irecê, somente um apresenta condições de aproveitamento. Quem garante é outro engenheiro agrônomo, Joelson Matos, que inclusive elaborou a proposta de projeto para revitalizar o rio Verde. “Com 340 quilômetros de extensão, o Jacaré está praticamente morto, tornando impossível a sua revitalização. O seu leito está rachado e o que corre de água nele representa aproximadamente 30% de toda a sua capacidade”, afirma ele, com a segurança de quem já visitou toda a extensão e as nascentes dos cursos d’águas locais. A exploração comercial sem o devido acompanhamento técnico causou interferência no lençol freático dos rios, levando à morte do Rio Jacaré. A “capital do feijão” é coisa do passado. Ninguém mais cultiva a leguminosa em toda a região. Para Matos, o rio Verde, com seus 270 quilômetros, apresenta condições de revitalização, mesmo dispondo de 60% da água que teria em sua plenitude. O projeto de revitalização elaborado por ele está orçado em cerca de R$ 1,5 milhão e prevê a manutenção, preservação e recuperação das 28 nascentes do rio; ações de educação ambiental, através de palestras e oficinas; construção de viveiros de mudas e recuperação de matas ciliares. Ele destaca que a maioria das nascentes do rio Verde está pisoteada pelo gado, motivo pelo qual há necessidade de recuperação. Atualmente, o Verde abastece a população de Irecê, com uma vazão estimada em 520 litros por segundo. Das suas 28 nascentes, apenas seis ou oito estão vivas, conforme informações constantes no documento apresentado pelo
Joelson Matos: proposta para revitalização do rio Verde.
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agrônomo. Representante da sociedade civil junto ao Fórum Baiano dos Comitês, José Fernandes afirma que o ideal para atender à demanda atual seria uma vazão de aproximadamente 1.300 litros por segundo no rio Verde. Diante de todas as dificuldades, a população de Irecê e região passou a receber água a partir do rio São Francisco, mas a realidade atual do Velho Chico impõe, hoje, um quadro de racionamento. É o que afirma o presidente do Comitê da Bacia dos Rios Verde e Jacaré, Ednaldo de Castro Campos. “Isso se deve à baixa da vazão do São Francisco, conforme decisão da Agência Nacional de Águas – ANA que, em maio último estabeleceu a vazão em 1.100 m³ por segundo e, com isso, provocou o desabastecimento local”, afirma. O engenheiro Pedro Nunes, que em junho último fez uma apresentação referente à atuação da empresa Gama no trabalho de recuperação de rios, explica que a preservação de nascentes é a medida mais importante a ser tomada. Como ações paralelas, ele prevê adequações de estradas rurais, recuperação e conservação de áreas degradadas e a mobilização social como receitas para tentar trazer o rio à vida. Membro do CBHSF, o coordenador da Câmara Consultiva Regional (CCR) do Médio São Francisco, Cláudio Pereira da Silva, apela para a sensibilidade, tanto da população quanto dos governantes e daqueles que exploram comercialmente os recursos naturais. “O momento é de grande reflexão para todos nós. Defender a oferta de água é defender a vida, é defender gente. Há pessoas que acham que somente com a retirada de água é que acontece a degradação dos rios, mas não é. As pessoas perfuram poços artesianos de forma desordenada e isso é crucial para a manutenção e preservação de rios e todos os seus mananciais”, diz.
PE S QU ISA
Uma viagem pela realidade do Baixo São Francisco Formada por pesquisadores, primeira expedição realizada no Baixo São Francisco analisa problemas enfrentados pela população ribeirinha com a redução da vazão do rio.
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Equipe se preparando em Brejo Grande para dar início à jornada
“Estamos no paraíso”, garantiu um guia turístico, ao microfone. “Esqueçam seus problemas”, conclamou o outro, de dentro de seu barco, sob um céu azul-anil e sobre as águas esverdeadas do rio São Francisco. Para o olhar do turista, o que chama atenção, de fato, é a beleza exuberante do Velho Chico. Já para a equipe de pesquisadores que visitou o Baixo para avaliar os impactos provocados pela redução da última vazão na região, mesmo com tantos encantos naturais saltando aos olhos, não há como ficar indiferente às adversidades. A incursão, uma realização conjunta do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, por intermédio da Câmara Consultiva Regional do Baixo, faz parte da Primeira Campanha de Avaliação do Quadro Socioambiental do Baixo São Francisco, e reuniu oito estudiosos das principais universidades da bacia – Universidade Federal da Bahia – Ufba, Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE, Universidade Federal de Alagoas – Ufal e Universidade Federal de Sergipe – UFS. Entre 10 e 13 de julho, eles percorreram cerca de 250 quilômetros pelas águas, em dois barcos de alumínio (com seis metros de comprimento e capacidade para cinco pessoas cada um), o Nêgo D’Água e o Água Nova, em viagens que começavam pela manhã e só acabavam ao entardecer. Numa típica peleja nordestina, foram visitadas 25 localidades em Sergipe e Alagoas, o que proporcionou um rico levantamento de informações junto aos moradores ribeirinhos. O resultado ganhou formato de documento e será apresentado durante a XXIII Plenária Ordinária do Comitê do São Francisco, que acontece em Salvador, nos dias 19 e 20 de agosto. Doutor em Recursos Hídricos, o professor Antenor Aguiar, da UFS, observa que, com a atual diminuição da vazão para 1.100m3/s, a população está sendo afetada de diversos modos: “Dificuldades na travessia de balsas, problemas na captação de água para inúmeros fins (humano, irrigação), redução maior na atividade pesqueira, entre outros”. Vale destacar que o nível da vazão atual autorizada pelo Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e pela ANA – Agência Nacional de Águas está abaixo do mínimo estabelecido no Plano de Recursos Hídricos da Bacia, que é de 1.300 m3/s. Ainda segundo o engenheiro agrônomo, “é necessário enfatizar também que os prejuízos poderão ser observados a médio e longo prazos, na dinâmica fluvial e biótica do rio”. O geólogo Luiz Carlos da Silveira Fontes, também da UFS, ressalta que essas mudanças afetam desde a área marginal ao canal, “com a morte das lagoas marginais e suas funções no ciclo de reprodução dos peixes, a proliferação da erosão marginal, com destruição de mata ciliar e terras cultiváveis, até as mudanças no canal fluvial”. Representante da Ufba, a engenheira ambiental Cássia Fernandes Torres chama atenção para o lixo e os dejetos descartados no rio, e sua inevitável poluição. “Com a baixa vazão, a capacidade de autodepuração do rio é agravada com a falta do tratamento dos efluentes, os esgotos que chegam até o rio”, explana. A preocupação veio a partir da observação do lixo acumulado,
além das algas e da vegetação atípica, como a baronesa, cada vez mais comum nessa parte do Baixo São Francisco. Outro problema grave, o assoreamento, era evidente em todo o percurso. Presidente da ONG Canoa de Tolda, em Brejo Grande, e coordenador da expedição, além de coordenador da CCR do Baixo, Carlos Eduardo Ribeiro Junior afirma que “há cerca de 15 anos, o processo de erosão vem se acelerando”. “Isso acontece muito por conta das plantações de cana-de-açúcar e das fazendas com pasto para criação de gado, além, claro, da redução da vazão”, avisa. A gravidade é tanta que, para conter o assoreamento, os próprios moradores e donos de terras têm colocado pedras nos imensos paredões que se formam nas margens do rio. A equipe foi vítima dessa degradação. Para evitar que a embarcação batesse em um enorme banco de areia, Carlos Eduardo, que guiava o Nêgo D’Água, rebocou o barco por alguns metros. Para a manobra, ele ficou em pé, em pleno São Francisco, com água batendo na altura dos joelhos. No último dia de viagem, mesmo com todo o cuidado, a colisão foi inevitável, e a lancha teve sua hélice danificada. O incidente ocorreu perto do riacho Pau Ferro. O local costumava ser um dos mais fundos da bacia e, desde 2008, vem tendo seu volume de água reduzido.
MORADORES SOFREM COM ADVERSIDADES Para quem vive da navegação na região, a situação tem sido cada vez mais preocupante. Em Neópolis (SE), Jaílson Vieira Feitosa, comandante da balsa Santana do São Francisco, alerta que o risco de encalhe tem crescido em proporção geométrica, desde a década de 1970. “Eu navegava em barco à vela. Não tinha areia em canto nenhum desse rio, por onde eu andei. O nível de água era alto e a gente conduzia o barco em linha reta. Não precisava ficar fazendo curva, desviando de banco de areia, não”, desabafou ele, que é operador de balsa há 32 anos. “A gente fazia a travessia para Penedo em 10 minutos. Hoje, gastamos 15, 18 minutos”. Em Gararu (SE), Genelita Medeiros é enfática: “O rio está morrendo”. Proprietária de uma pensão no pequeno município, a senhora de 66 anos garante que viu o Velho Chico subir até a pracinha que fica em frente à sua casa. “Já tomei banho de rio aqui na praça, onde também passava uma lancha. Eu tinha uns 15 anos”, lembra. “Hoje, com a água presa, não acontece mais cheia, não. E isso comprometeu a renda das pessoas daqui, que viviam da pesca, da plantação de arroz e agora vivem de bolsa”, critica. Ao longo dos anos, o número de hóspedes em sua pensão também diminuiu. Para complementar o rendimento, Genelita vende marmita e quentinha. Após dois dias de pesca no povoado de Boca do Saco, João Batista conseguiu capturar poucos peixes. Para o senhor de 68 anos, morador do município de Pão de Açúcar (AL), a contenção da vazão é fatal. “Tem peixe, mas na vazante eles se entocam dentro do
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lodo ou nas pedras. A gente sobrevive disso (da pesca). Eu não tenho nenhuma outra função pra ganhar dinheiro”, diz ele, que é pai de oito filhos. Também ao ver de João, pescador desde 1979, o trabalho ficou mais difícil após a instalação das barragens. “Depois de Xingó, acabou tudo. Não temos mais cheia. Se não tem cheia, não tem parição, né?”. No povoado de Potengy, Antônio Batista dos Santos reclamava da água captada por meio de uma bomba operada pela prefeitura de Piaçabuçu (AL), e que se encontrava imprópria para o consumo. “A água daqui é mesmo que ser a água do mar. De dois anos pra cá foi que piorou. Antes, a água não salgava tanto, só quando tinha maré grande. Agora, está salgando direto, até na maré baixa. Às vezes a água fica tão salobra que não dá nem pra tomar banho”, relata. Na beira do rio, próximo à foz, Maria de Fátima enchia baldes e panelas com a ajuda de dois primos. Eles andaram cerca de dois quilômetros para conseguir a água que serviria para beber e cozinhar. “A gente mora ali no Potengy e tem de vir para cá, pois a água de lá está salgada. A única água boa aqui é essa dessas cacimbas que o povo cava”, explicou, mostrando a contradição que é morar às margens de um rio e ainda assim enfrentar dificuldades para obter água em seu estado ideal para consumo. Já longe da foz, no município de Niterói (SE), Cláudio Torres da Mota abastecia o carro-pipa para levar água à população de Esperança, distante 20 quilômetros. No povoado, essa ainda é a única fonte de abastecimento. “Trabalho para o Exército, que comanda a distribuição. Essa água é para o povo beber. A gen-
te coloca em cisternas”, disse o motorista. Ele segurava um pote de cloro, que seria usado para tratar a água. “A grande ironia é que a população ribeirinha não tem água boa para beber, ao contrário da ideia que se divulga Brasil afora”, destaca o professor Luiz Carlos Fontes. De acordo com Marcus Vinicius Polignano, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), essa deficiência, aliada à falta de saneamento básico, reflete diretamente na saúde dos moradores locais. “Vamos levantar informações para saber quais são as doenças de maior incidência nessa região. Mas, de antemão, é provável que a população desenvolva doenças crônicas (hipertensão, diabetes, cardiopatias), além de diarreia, disenteria e cólera”. A condição surpreendeu até mesmo os estudiosos, acostumados a lidar com situações-limite. “Estamos na segunda década do século XXI. Não podemos mais aceitar esse modo de vida”, criticou Antenor Aguiar. Já Polignano foi certeiro: “A deterioração do rio se reflete na deterioração de seu povo”. Para eles, a experiência foi transformadora. “Esse povo sofrido sabe fazer o melhor com os recursos escassos que lhe são permitidos. Digo permitido porque, quem mais tem causado os impactos socioambientais são as grandes corporações, isto não é novidade, mas constata-se na pele dos ribeirinhos, pescadores, plantadores de arroz, catadores de coco”, resumiu o sociólogo Sérgio Silva Araújo. A economista Avani Torres, vice-presidente do CBHSF, que também participou da expedição, concorda: “O que a gente percebe é que esse modelo energético, cada vez mais, imprime a depredação da natureza e das populações locais. Por conta disso, muitas famílias são obrigadas a sair daqui. As que ficam são resistentes”. A professora da UFRPE complementou, ainda: “A responsabilidade do Comitê é de colocar o pé no rio e ouvir a fala desse povo”. O geógrafo Melchior Nascimento aponta soluções para os problemas observados durante o estudo exploratório. “Considero como iniciativa fundamental que a política ambiental e de recursos hídricos implemente, através das agências signatárias, a vazão ecológica e ambiental”, pondera o professor. “Ainda nesse sentido, as áreas de preservação permanente devem ser recuperadas, a fim de minimizar o processo de assoreamento, especialmente naquelas situadas às margens do rio São Francisco e seus afluentes. Concomitantemente a essas ações, algumas medidas compensatórias devem ser já encaminhadas para minimizar a situação de abandono e o sentimento de desilusão da população”.
Há cerca de 15 anos, a água do rio chegava até a pracinha, na cidade sergipana de Gararu.
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E N SA IO O FOTÓGRAFO MINEIRO BRUNO FIGUEIREDO DEIXA-SE SEDUZIR PELO IMPACTO DA NATUREZA NOS CAMINHOS QUE LEVAM AO ALTO SÃO FRANCISCO. O VERMELHO DA TERRA, AS FLORES TÍPICAS DOS CHAPADÕES, AS ÁGUAS QUE BROTAM DAS SERRAS FAZEM DA VIAGEM UMA INSTIGANTE INCURSÃO CINEMATOGRÁFICA.
DO ALTO 23
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O ALTO DE PERTO
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O ALTO, DE DENTRO
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ENTRE SERRAS E CHAPADÕES J
POR BRUNO FIGUEIREDO
á fazia quase dois anos que estava vivendo um cotidiano totalmente urbano. Trabalho, festas, trânsito, computador, barulho, correria... ritmo sempre acelerado! E o pior é que o tempo passa e nem nos damos conta de como a #vidaloka das grandes cidades nos engole. Não tem escapatória, o DJ chega e bota todo mundo pra dançar... Mas a vida insiste em nos abrir janelinhas para lembrar de que tudo é sempre muito mais. Foi assim que segui para a Serra da Canastra naquela manhã de setembro. Só de pegar a estrada a sensação já foi outra. O vento na cara, as paisagens mais vivas, tudo fazia crer que dias incríveis estavam por vir. E vieram. As flores do serrado me saltavam aos olhos, mais vivas e coloridas; a cachoeira de Casca D’anta, a primeira queda do São Francisco após a nascente, parecia mais cheia e estrondosa; a natureza invadindo os espaços, desviando e atraindo olhares, transformando imagens em fontes de prazer e encantamento, entre as serras e chapadões da região. Mas parecia que a câmera convencional, assim como a vida na cidade grande, tendia a limitar o meu olhar e senti falta de algo que conseguisse traduzir melhor tudo o que via e sentia...e os aplicativos do iPhone se encaixaram como uma luva. Enfim consegui aproveitar as águas do São Francisco!!!
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A questテ」o dos usos mテコltiplos precisa ser equacionada TEXTO: ANTテ年IO MORENO
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| FOTOS: IMPRENSA/TCU
VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 62 ANOS, AROLDO CEDRAZ TEM SUA VIDA PROFISSIONAL MARCADA POR INÚMERAS REFERÊNCIAS NOS CAMPOS ACADÊMICO, POLÍTICO E ADMINISTRATIVO. SUA RELAÇÃO COM A ÁREA DE RECURSOS HÍDRICOS O TORNA UMA DAS MAIORES AUTORIDADES BRASILEIRAS NESTE CAMPO. É DE SUA AUTORIA O PROJETO QUE INSTITUI A POLÍTICA BRASILEIRA DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS, TRANSFORMADO NA LEI 9443, EM 2007. NESTA ENTREVISTA, CEDRAZ FALA DO SEU PARECER SOBRE O PROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO, DESTACA O PAPEL DO CBHSF NA DEFESA DO VELHO CHICO E ATESTA AS DIVERSAS FRAGILIDADES NAS AÇÕES RELATIVAS À RECUPERAÇÃO E AO CONTROLE DE PROCESSOS EROSIVOS NA BACIA DETECTADAS EM AUDITORIA PELO TCU.
Chico - Na condição de autor do parecer sobre o Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco, como analisa a situação atual do rio diante das medidas governamentais já tomadas até aqui? Aroldo Cedraz - É importante destacar, inicialmente, que a auditoria foi realizada pelo Tribunal de Contas da União – TCU em 2011 e, portanto, reflete uma realidade daquele momento. O Programa de Revitalização do Rio São Francisco é bastante amplo, englobando uma série de ações, e a auditoria tratou de forma mais específica das ações relativas à recuperação e ao controle de processos erosivos. As constatações do trabalho ensejam preocupação. Ao longo do tempo, tem-se observado uma diminuição do trecho navegável no rio, que hoje é de pouco mais de um terço do que já foi no passado, em função da intensificação do processo erosivo. Essa é uma das principais causas, também, da perda de vazão do rio, em cerca de 35% entre 1948 e 2004, de acordo com o Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR – Colorado/EUA). Hoje já se observam conflitos pelo uso das águas em determinadas regiões, como na bacia do rio Salitre, dada a escassez desse bem. Tal rio, por sinal, era perene e já se tornou intermitente, assim como ocorreu com diversos outros. Preocupa a constatação feita na auditoria a respeito da baixa execução financeira das ações ligadas à recuperação e ao controle dos processos erosivos. Do total do orçamento autorizado para o programa, à época da realização da auditoria, somente cerca de 2% do total tinha sido utilizado nesse tipo de ação. Chico - Por que o senhor defendeu a integração do CBHSF ao Conselho Gestor do Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco? AC - A Lei 9.433/97, da qual fui relator, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, tem como fundamentos, entre outros, que a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação dessa política e que a gestão desses recursos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Essa foi uma das inovações da lei, fazendo com que a gestão dos recursos hídricos deixasse de ser centralizada, com o Estado abrindo mão de parte de seu poder para compartilhá-lo com a sociedade. O Comitê de Bacia é um dos mecanismos previstos na lei para que essa gestão se faça de forma compartilhada. No caso da bacia do rio São Francisco, a auditoria detectou que o respectivo comitê tinha baixa participação no processo decisório, pela falta de alinhamento entre o comitê e o governo federal no momento de lançamento do Projeto de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Esse tipo de situação vai de encontro à concepção da lei. Por isso, vi com bons olhos a ideia, manifestada pelos próprios gestores do Ministério do Meio Ambiente – MMA, de alterar a composição do Comitê Gestor do Programa de Revitalização, incluindo a participação de um membro do Comitê da Bacia. No Acórdão do TCU que apreciou o processo, foi recomendado ao MMA que adotasse tal providência.
Chico - Como analisa o papel do Comitê de Bacia no cenário da política nacional de recursos hídricos? AC - Complementando a resposta da pergunta anterior, a ampliação do processo de integração dos atores sociais e governamentais, com o fortalecimento dos Comitês de Bacias, é de fundamental importância para aumentar a eficácia das ações planejadas. O Comitê de Bacia, por reunir todos os segmentos de usuários das águas, conhece os problemas em nível local e deve ter seu potencial efetivamente utilizado como articulador e integrador dos vários órgãos de governo atuantes na bacia, e também como mediador dos conflitos e interesses locais. Chico - Por que os comitês enfrentam tantas dificuldades para se impor como colegiados de interesse público? AC - Ressalte-se, em primeiro lugar, que a realidade dos diferentes comitês é bastante diversificada, não sendo fácil fazer um diagnóstico geral, válido para todo o Brasil. Faço algumas reflexões que julgo serem aplicáveis à maior parte deles. Há uma heterogeneidade muito grande na composição dos comitês, em termos de capacitação técnica. Muitas organizações sociais ainda não estão qualificadas para participação nas discussões no comitê, até porque muitas vezes têm dificuldades de acesso a informações técnicas a respeito da bacia. Com isso, há um grande risco de as decisões refletirem mais as visões dos órgãos de governo e dos grandes usuários, que normalmente têm maior conhecimento técnico acerca das questões ligadas à gestão de recursos hídricos. Esse desequilíbrio potencial observado na composição dificulta a atuação dos comitês nos moldes idealizados para ser um verdadeiro parlamento das águas da bacia. Um dos desafios que se impõem é de dotar os comitês de uma sistemática de distribuição de informações, de forma que todos os seus membros disponham de uma ferramenta de suporte para a tomada de decisão. Chico - O relatório de auditoria operacional que precedeu o parecer emitido pelo senhor deixa claro que as iniciativas de recuperação e controle de processos erosivos do São Francisco encontram-se “dispersas e são insuficientes para reverter o quadro de degradação”. Como as medidas de recuperação podem ser mais efetivas? AC - É uma questão que tem a ver com a anterior, relativa ao uso múltiplo das águas e conflitos em razão desse uso, evidentemente devido à escassez, situação que pode ser equacionada caso os atores atuem como verdadeira instância deliberativa, com equilíbrio de participação e representatividade de todos os usuários. A auditoria realizada pelo TCU aponta diversas fragilidades nas ações relativas à recuperação e ao controle de processos erosivos no âmbito do Programa de Revitalização do Rio São Francisco e sugere caminhos no sentido de corrigir essas fragilidades, fazendo com que essas ações de recuperação sejam mais efetivas. Uma delas foi objeto de uma das perguntas anteriores, em que o Tribunal recomendou que um representante do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco participe do Comitê Gestor do Programa de Revitalização, de forma a aumentar a participação social nas ações, seguindo o espírito da Lei das Águas. Posso citar alguns
A AUDITORIA REALIZADA PELO TCU APONTA DIVERSAS FRAGILIDADES NAS AÇÕES RELATIVAS À RECUPERAÇÃO E AO CONTROLE DE PROCESSOS EROSIVOS NO ÂMBITO DO PROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO E SUGERE CAMINHOS NO SENTIDO DE CORRIGIR ESSAS FRAGILIDADES.
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outros exemplos: – diante da constatação de que um dos aspectos que agravam o problema de erosão é a falta de alternativas econômicas para os pequenos agricultores, o Tribunal recomendou ao Ministério do Meio Ambiente que inclua, nos projetos de revitalização, mecanismos capazes de prover esse tipo de alternativa econômica, que proporcionem a sobrevivência desses pequenos agricultores que, por lei, estão obrigados a recuperar e preservar margens, nascentes e encostas. – frente à constatação de que um dos problemas que agravam a degradação do solo é a falta da cultura da preservação, o Tribunal recomendou à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba – Codevasf que inclua, nas ações de recuperação e controle de processos erosivos, iniciativas concomitantes de sensibilização ambiental, tanto nas escolas quanto nas propriedades rurais. Chico - A ausência de uma fiscalização rigorosa pode também justificar a falta de controle ambiental que paira sobre o São Francisco? AC - A atividade de fiscalização é muito importante, por seus efeitos dissuasivos e punitivos, tanto que foi tratada com grande destaque desde a concepção do Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. A auditoria constatou a insuficiência dessa atividade, e raras são as oportunidades em que se verificou a integração de ações com vistas à fiscalização, tal como preconizado no referido Plano Decenal. Isso certamente contribui para a crescente degradação do solo, pois favorece a ocupação imobiliária desordenada e estimula mineradoras, marmorarias, carvoarias, grandes agricultores e pecuaristas a operarem em desacordo com a legislação ambiental. O uso inadequado dos solos provoca enormes prejuízos econômicos, ambientais e o assoreamento de córregos, rios e lagos, além do soterramento de nascentes. É importante ressaltar que, apesar da importância da fiscalização, ela precisa estar conjugada com outras ações, como, por exemplo, de educação ambiental e de busca do fornecimento de alternativas econômicas para os pequenos agricultores. Chico - O que acha de iniciativas como a Fiscalização Preventiva Integrada – FPI, idealizada pelo Ministério Público da Bahia, para ajudar a conter essas agressões? AC - Entendo que a Fiscalização Preventiva Integrada, atividade desenvolvida desde 2002, contando com a participação de diversos órgãos federais e estaduais, é muito positiva. Para tratar de problemas complexos, em que há muitos atores envolvidos, a integração e a coordenação são atributos indispensáveis para o sucesso das ações. A FPI é um exemplo de iniciativa com essas características, e que também é feita em caráter preventivo, buscando, em primeiro lugar, evitar a ocorrência do dano, sem abdicar da atividade fiscalizatória típica. Chico - Como o senhor vê a questão dos usos múltiplos das águas do rio São Francisco? Qual o melhor caminho para compatibilizar os diversos interesses e necessidades em jogo? AC - A água é um bem fundamental para muitas atividades humanas (abastecimento humano e animal, geração de hidroeletricidade, navegação, abastecimento industrial, irrigação, recreação e turismo, pesca, aquicultura, etc.). A questão dos seus usos múltiplos é uma das principais a
A QUESTÃO DOS USOS MÚLTIPLOS É UMA DAS PRINCIPAIS A SEREM EQUACIONADAS QUANDO SE FALA DE GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS. É UM PROBLEMA QUE TENDE A SE ACENTUAR, CONSIDERANDO O AUMENTO NA DEMANDA POR ÁGUA E A LIMITAÇÃO DA OFERTA DESSE BEM
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serem equacionadas quando se fala de gestão de recursos hídricos, em qualquer bacia. É um problema que tende a se acentuar, considerando o aumento na demanda por água e a limitação da oferta desse bem. A Política Nacional de Recursos Hídricos tem, entre seus fundamentos, que a gestão de recursos hídricos deve proporcionar o uso múltiplo das águas e que, em situações de escassez, o uso prioritário é o consumo humano e a dessedentação de animais. Cabe à Agência Nacional de Águas definir e fiscalizar as condições de operação de reservatórios por agentes públicos e privados, visando garantir o uso múltiplo de recursos hídricos, conforme estabelecido nos planos de recursos hídricos das respectivas bacias hidrográficas. Um dos instrumentos fundamentais dentro da Política são os Planos de Recursos Hídricos. São planos de longo prazo, elaborados por bacia, por estado e para o país, segundo o que prevê a Lei 9.443/97, e que devem fazer o balanço entre disponibilidades e demandas futuras de recursos hídricos, inclusive com a identificação de conflitos potenciais. O desafio é fazer com esses planos sejam elaborados de forma consistente, que constituam um mecanismo de articulação com as políticas setoriais, buscando uma compatibilização entre elas, no que se refere ao uso da água. Chico - Há pouco tempo, a Agência Nacional de Águas – ANA, atendendo à solicitação do setor elétrico, autorizou a redução de vazões nos reservatórios de Sobradinho, na Bahia, e Xingó, em Sergipe. Qual a sua visão sobre a adoção de medidas como essa, considerando o quadro atual do São Francisco? AC -Trata-se, conforme já abordado, do mencionado conflito que decorre da múltipla utilização das águas em contexto de escassez, e que deve ser amenizado com maior fortalecimento, equilíbrio e representatividade dos Comitês de Bacia.
ART IG O
Democracia e Comitês de bacias
“Os Comitês de Bacia Hidrográfica talvez representem hoje uma das respostas mais promissoras para a busca frenética das novas formas e práticas que a democracia precisa urgentemente incorporar”
POR ANIVALDO MIRANDA*
A
s manifestações juvenis e populares que sacudiram o Brasil ainda estão muito recentes, mas delas já se pode extrair muitas reflexões, análises e até mesmo lições. Elas configuram um novo momento para o país, mais consentâneo com o século que se inicia e com seus muitos desafios. As interpretações sobre as causas e consequências dessas manifestações são muitas e referem-se a inúmeros fatores de ordem social, econômica, política, cultural e institucional. Um desses fatores, porém, decorre da atual incapacidade da democracia representativa tradicional em dar atendimento efetivo aos anseios da cidadania ávida por aumentar o seu grau de participação nas decisões e ações públicas que dizem respeito diretamente ao cotidiano das pessoas. Esse rebrotar da consciência cidadã não surgiu de repente. Já a partir do processo de elaboração e aprovação da atual Constituição Brasileira, que Ulisses Guimarães em boa hora batizou de “Constituição Cidadã,” a sociedade, através dos seus segmentos mais organizados, já incorporava à nossa democracia representativa as sementes de uma dimensão participativa que hoje se afirma crescentemente num mundo globalizado, mais e mais interconectado e exigente em termos de gestão dos negócios da cidadania. Os Comitês de Bacia Hidrográfica talvez representem hoje uma das respostas mais promissoras para a busca frenética das novas formas e práticas que a democracia precisa urgentemen-
te incorporar, para absorver não somente a já referida vontade de maior participação institucional direta dos cidadãos e cidadãs, como também para absorver as novas linguagens da cidadania, a demanda ascendente por maior transparência pública, o pluralismo da complexa convivência institucional entre sociedade civil, iniciativa privada e burocracia estatal e, sobretudo, formas de gestão do espaço e dos recursos naturais à altura da sustentabilidade ambiental que o mundo está a exigir. Pouco a pouco os Comitês de Bacia Hidrográfica estão deixando de ser simples promessas de modelos teóricos de gestão participativa e sustentável dos recursos hídricos, para se converterem verdadeiramente em espaços reconhecidos e colegiados de solução de conflitos de uso das águas, de indução para o emprego racional de investimentos públicos e privados, de construção da “visão de bacia” no processo de uso e ocupação dos territórios, de construção de uma cultura de diálogo e tolerância entre diferentes para a busca de soluções, negociadas ou mesmo convergentes, para os desafios do desenvolvimento sustentável. É fato que nem todos os atores do universo da gestão dos recursos hídricos entenderam o espírito da nova legislação que rege o uso das águas e, por extensão, não entenderam também o alcance dos Comitês de Bacia como a base dessa gestão. E menos ainda entenderam que tudo isso tem relação com o formato da democracia cidadã e participativa que a complexidade do país
e da época começa a reclamar. Todavia, como tudo na sociedade se faz como processo, a consolidação dos Comitês está em andamento. É ainda planta tenra que precisa de muita água, mas é exatamente de água que estamos tratando. Sobretudo quando o assunto é o emblemático Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que tem enorme responsabilidade na afirmação da política nacional de recursos hídricos em termos compatíveis com a democracia, a justiça, a sustentabilidade e a eficiência que o homem e a mulher comuns estão a exigir nas ruas. Essa responsabilidade vai recair brevemente nos ombros do novo colegiado e da nova diretoria do Comitê, que vão atuar em cenário mais favorável do que aquele enfrentado por seus antecessores. De fato, uma vez que foram resolvidas as grandes pendências internas e operacionais do CBHSF, agora chegou a hora de revisar o Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco, aplicar da forma mais criativa possível os recursos oriundos da cobrança pelo uso da água bruta, garantir efetivamente o princípio dos usos múltiplos das águas sanfranciscanas, dar ao Programa de Revitalização o caráter participativo que se impõe, e construir de fato, com todos os parceiros, o Pacto das Águas. (*) Anivaldo Miranda é jornalista, mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas e presidente do CBHSF.
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MU N D O DO RIOS
Danúbio TEXTO: ANTÔNIO MORENO *
S
egundo maior rio da Europa, banhando países do Oeste e Leste do continente, o Danúbio já foi um grande problema internacional. Tempos atrás, o uso de suas águas motivou intensos conflitos de interesses governamentais, provocando todo tipo de desavença em vista da desarmônica combinação de atividades econômicas, inclusive dentro de um mesmo país. A partir de 1990, no entanto, após a derrocada do sistema comunista no lado oriental da Europa, o rio passou a ser alvo de ações voltadas para a preservação ambiental. Um arranjo internacional fez progredir medidas severas de controle dos usos da água e de gerenciamento operacional dos recursos disponíveis. O Danúbio tem uma bacia de 800 quilômetros quadrados, onde vive uma população de cerca de 81 milhões de pessoas. O rio nasce na Floresta Negra, na Alemanha, e desemboca no Mar Negro, no Leste europeu, com uma saída muito pequena para o Mediterrâneo. No mundo, é a bacia hidrográfica contida no maior número de países: 19. Entre eles, tanto se encontram nações desenvolvidas como a Alemanha e a Áustria, como mais pobres, a exemplo da Moldávia. No total, o rio tem 2.850 quilômetros de comprimento.
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As primeiras iniciativas voltadas para o cuidado com o rio Danúbio datam de 1850, mas não tiveram grandes resultados. Por muito tempo, a chamada Cortina de Ferro que dividiu a Europa, impossibilitou o avanço da cooperação internacional, dificultada também pelo fato de serem muitas as línguas faladas na extensão do Danúbio, com destaque para o inglês, o alemão, o francês e o russo. Ainda assim, a Declaração de Bucareste sobre gerenciamento das águas, em 1984/1985, foi considerada um marco no enfrentamento das muitas questões ambientais existentes. O Danúbio engloba uma série de atividades econômicas, nem sempre harmônicas entre si. Na região do alto, está a concentração industrial, de responsabilidade dos países mais desenvolvidos, com empreendimentos focados na mineração, celulose e química, bem como na produção da energia hidrelétrica. No terço médio e baixo da bacia predominam o abastecimento de água potável, a agricultura, a criação de animais e a pesca. Os rumos do Danúbio começaram efetivamente a mudar com a realização de uma conferência internacional na Bulgária, em 1991. O resultado foi o lança-
FOTO: IFOTOLIA
mento de um programa sustentável de preservação ambiental calcado em dois pilares: um administrativo e de liderança; outro voltado para o meio ambiente. A elaboração dos projetos, que custaram cerca de 55 milhões de dólares, durou cerca de nove anos. Grupos de especialistas se debruçaram para encontrar as melhores soluções para as principais problemáticas, envolvendo todos os países da bacia do Danúbio. O primeiro passo deu-se com a implantação de um modelo de qualidade de água para toda a extensão do rio, com a implementação de um programa de redução da poluição. Em seguida, foram realizados 29 projetos de restaurações e revitalizações de afluentes, coincidindo com a Convenção de Proteção do Rio Danúbio, assinada em Sofia em 1998, com a criação de um secretariado para gestão das águas. Nessa convenção, propôs-se o uso racional das águas de superfície, a conservação das águas profundas em toda a bacia, a redução de nutrientes e outras substâncias nocivas à vida humana e animal, o controle das enchentes e o fim das poluições danosas, da nascente à foz. O documento contou com 14 signatários, incluindo a União Europeia, que deu total autonomia para a comissão gestora decidir os destinos do rio. Naturalmente, a consciência ambiental não é uma constante em toda a bacia do Danúbio: nos países localizados no terço médio e inferior os interesses
continuam sendo conflitantes, sobretudo entre os tomadores de decisões e os políticos. Mas os resultados obtidos até agora apontam para o sucesso da iniciativa: controle sistemático da poluição, solução de conflitos e boa convivência entre os diversos usos nas diferentes regiões. Um dos pontos de destaque do projeto implantado é o sistema de monitoramento transnacional. Consiste na produção de pesquisas laboratoriais, acompanhadas de relatórios, sobre a qualidade da água desde a nascente, na Floresta Negra, na Alemanha, até a foz no Mar Negro, na Romênia. Isso possibilitou a comparação dos resultados dos diversos países e a construção de uma metodologia comum. Outro ponto positivo nesse compartilhamento gerencial do Danúbio foi o diagnóstico realizado em toda a bacia, identificando desde restaurações hidromorfológicas até os diferentes tipos de poluição (nutrientes e orgânicas). Até 2015, alguns importantes resultados serão alcançados pela comissão gestora do rio no que diz respeito ao gerenciamento das águas, mas não será possível livrar totalmente o Danúbio da
poluição dentro desse prazo. Em cenários futuros, espera-se que haja uma redução considerável da poluição quando for implementado o tratamento de água da bacia urbana, regulamentado pela União Europeia. Só até o ano de 2027 é que haverá resultados mais consistentes quanto ao uso de fertilizantes danosos, pois aguarda-se a formação de consensos entre os países sobre a necessidade de redução de nutrientes. Outro programa prioritário diz respeito ao projeto ecológico visando à reprodução de peixes. O grande entrave é a existência de duas grandes usinas hidrelétricas, com uma diferença de mais de 30 metros no nível das águas, o que impossibilita que determinadas espécies de peixes entrem nos locais de procriação. Como base de todo o projeto sustentável do Danúbio está o processo educativo. O engajamento da população jovem é vista como prioridade. Foram desenvolvidos manuais para estudantes dos diversos países, gratuitos e devidamente traduzidos nas diferentes línguas. O Danúbio precisa da força e comprometimento das novas gerações para seguir o seu curso de maneira saudável e plena.
* Conforme consta registrado no livro “Revitalização de rios no mundo: América, Europa e Ásia”, editado pelo Instituto Guaicuy em 2010, para registro dos anais do I e II Seminário Internacional de Revitalização de Rios, realizados em Belo Horizonte em 2008 e 2010 pelo Projeto Manuelzão da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com o Governo de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
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C UAL RT TU IRGAO
CARRANCAS
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A exótica beleza da arte popular brasileira SAÍDAS DO IMAGINÁRIO FRANCISCANO, AS CARRANCAS REVELAM A BELEZA DO ARTESANATO POPULAR ASSOCIADA AO PRÓPRIO HISTÓRICO DA NAVEGAÇÃO COMERCIAL NAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO. FEIAS OU BONITAS? MESCLANDO ELEMENTOS HUMANOS COM CARACTERÍSTICAS ANIMAIS, AS CARRANCAS SERVIAM PARA AFASTAR OS MAUS ESPÍRITOS E LIVRAR OS NAVEGADORES DOS PERIGOS. HOJE, SOBRESSAEM COMO AUTÊNTICOS EXEMPLARES DA CRIATIVA ARTE POPULAR BRASILEIRA. TEXTO: RICARDO COELHO FOTOS: HUGO CORDEIRO E IVAN CRUZ
Gelson Xavier dos Santos, Adão Xavier dos Santos e Luzia Carneiro Soares: a arte cultivada em família.
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o tempo em que a navegação era um meio de transporte altamente difundido e prática constante nos principais rios do país, um elemento estético e extremamente criativo destacou-se em meio às águas do São Francisco: a carranca. Exposta nas proas das grandes embarcações, chamando enorme atenção, ela ganhou fama e representatividade na cultura dos municípios ribeirinhos do Velho Chico. Um verdadeiro símbolo de tradição, beleza e ludicidade. Na virada do século XVIII, quando o cenário do São Francisco, na sua parte navegável – entre as cidades de Juazeiro, na Bahia, e Pirapora, em Minas Gerais – ainda era marcado pelo intenso movimento de barcas carregadas de mercadorias, as primeiras “figuras” ou “leões de barca”, como também eram conhecidas as carrancas pela população, transformaram-se em ícones das cidades franciscanas. Mesclando aspecto humano e animal, essas criaturas esculpidas em madeira, com aparência mal humorada, sobrancelhas curvadas, olhos esbugalhados e dentes afiados, ficaram conhecidas como a protetora dos viajantes do São Francisco. Segundo as lendas ribeirinhas da época, as carrancas protegiam os navegantes contra os maus espíritos, perigos e maus presságios, evitando qualquer ameaça que pudesse surgir em suas jornadas rio a dentro. Dizem que as carrancas serviam também para espantar os animais e os duendes que habitavam as águas do São Francisco e que de lá saiam à noite para assombrar barqueiros, tentar mulheres e roubar crianças. Tais seres eram espantados pelas figuras das carrancas nas proas. Com o fim da navegação entre as cidades, em meados dos anos 1980, as carrancas, eviden-
temente, não puderam mais ser vistas nas embarcações, mas sua força no imaginário do São Francisco permaneceu inalterada. Tanto que ainda hoje são tidas como um dos mais expressivos elementos de arte popular brasileira e um dos souvernirs mais procurados pelos visitantes em diversas regiões franciscanas, especialmente nas cidades ribeirinhas mais turísticas.
POLOS DE PRODUÇÃO E VENDA Apesar de situadas em áreas distintas da bacia do rio São Francisco – Pirapora fica no norte de Minas Gerais, e Petrolina no semiárido de Pernambuco, fazendo divisa com o município baiano de Juazeiro – essas duas cidades têm uma peculiaridade em comum: são os principais polos de produção e comercialização de carrancas do país. Não é difícil constatar rapidamente essa realidade. As lendárias peças carrancudas são exibidas por todos os cantos, especialmente nos pontos comerciais das duas cidades. As carrancas são elementos de atração para os visitantes, com o poder de encantar também os moradores locais. “Aqui as carrancas vendem fácil”, atesta Roberta Cunha dos Santos, balconista que trabalha no posto de gasolina localizado logo à entrada de Pirapora, estrategicamente denominado de... Carranca. Dois locais em particular ganham destaque quando o assunto envolve a produção de peças desse verdadeiro patrimônio popular franciscano. A Oficina Mestre Quincas de Petrolina e a Associação de Artesãos de Pirapora são lugares simples, sem muito rebuscamento. Ambos os espaços foram cedidos pelas prefeituras de cada município como forma de estimular a produção e a comercialização das carrancas, colaborando para manter viva a tradição.
Nesses locais, onde trabalham em média dez artesãos (ou carranqueiros, como são chamados) é possível comprar as peças já prontas que estão em exposição, ou solicitá-las por encomenda. “Geralmente produzimos de seis a oito carrancas pequenas (até 15 centímetros de altura) por semana. Já as de tamanho mediano (30 cm até 2 metros), são fabricadas a cada três dias”, diz Vanilson Soares dos Santos, um dos artesãos mais conhecidos de Petrolina. Os preços são os mais variados possíveis, dependem do tamanho escolhido pelo comprador. “As carrancas menores, em formatos de chaveiros, brincos e pequenos souvenirs variam entre R$ 5 e R$ 15. Já as grandes, podem custar até R$ 1.500”, segundo informa Vanilson Santos, cuja produção atual é mais voltada para as miniaturas. A triste realidade é que, apesar de populares e culturalmente valorizadas, as carrancas não são muito lucrativas para os seus fabricantes. Em média, cada artesão, seja de Pirapora ou Petrolina, fatura entre R$ 800 e R$ 1.500 por mês. “O que compensa é o prazer de fazer carranca. Ou de saber que existe um reconhecimento da nossa arte. Os clientes gostam. Já veio gente aqui até do Japão”, conta orgulhoso Gelson Xavier dos Santos, carranqueiro da associação de Pirapora. Segundo ele, o imaginário em torno das carrancas é o seu principal atrativo. Correm histórias de que, na época das navegações, elas alertavam, soltando três gemidos, quando as embarcações estavam em perigo. “Há quem diga também que, por seu aspecto assustador, as carrancas tornaram-se grandes protetoras dos navegantes contra os maus espíritos e outras forças malignas”, observa o artesão. Independentemente dessas e outras crenças populares, as carrancas despertam a curiosidade de muita gente, seja como elemento decorativo, seja como souvenir. A mineira de Uberlândia Tânia Mara Correia de Melo foi apresentada à carranca por seu pai, quando era ainda menina. Em Pirapora a passeio, fez questão de passar na associação dos carranqueiros para levar algumas peças como lembranças para a família. “Para mim, as carrancas são bonitas e têm um significado especial”, justifica.
A ARTE, O TRABALHO, O RESULTADO É necessário tempo, prática e, sobretudo, instrumentos específicos para a criação de uma carranca. Para a maioria dos carranqueiros, o grande segredo está na escolha da madeira, que precisa ser “de qualidade”. Além disso, conta muito no ofício a habilidade com a arte do entalhe. Cinco tipos de madeira são utilizados no trabalho: sucupira, vinhático, pequi e tamboril, originárias do cerrado, e imburana de cambão, extraída na caatinga. “A escolha da madeira depende do tipo de carranca que queremos produzir”, comenta o artista plástico Roque Gomes da Rocha, também conhecido como Roque Santeiro, que trabalho no centro de artesanato de Petrolina. Madeira na mão, o artesão utiliza equipamentos como machado, facão, enxó (usado para retirar os excessos da madeira) e formão. O crivo, em formato de V, é responsável pelo desenho e o “bordado” da carranca; e o goivo, em sua forma redonda, é utilizado para a moldagem do nariz, boca e olhos. A pintura da peça, em cores normalmente berrantes, é a última etapa do processo, que pode durar de duas horas a um dia de trabalho.
ESTILOS GUARANY E VAMPIRO Dois tipos de carrancas são produzidas pelos artesãos de Pirapora e Petrolina. Há os que seguem o gênero criado pelo escultor, já falecido, Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany – verdadeira referência na fabricação de carrancas do São Francisco – e os mais tradicionais, que optam por desenvolver o estilo conhecido como “vampiresco”, que faz mais sucesso no mercado turístico. Os seguidores de Guarany conservam mais o estilo presente nas antigas embarcações que atracavam nos portos do Velho Chico, relacionando sempre a figura do homem com o animal. O leão, o dragão, o cavalo e o macaco são referências constantes até hoje na produção de carrancas desse gênero. Outro aspecto que “patenteava” a obra de Guarany são as vastas cabeleiras das esculturas. “Guarany valorizava os longos cabelos no sentido longitudinal do pescoço, na altura da orelha, agregando a cara de animais”, explica Roque Santeiro, observando que as carrancas desse tipo são mais artísticas. Por ser confeccionada mais rapidamente, a carranca vampiro é feita em maior quantidade e, consequentemente, destaca-se nas vendas. “O gênero vampiresco faz sucesso talvez por sua expressão mais aterrorizante, com seus dentes pontudos e afiados, nariz com ventas bem abertas e orelhas longas”, justifica o carranqueiro Adão Xavier, que integra a Associação de Pirapora. As cores predominantes nas carrancas tipo vampiro são preto (corpo) e vermelho (língua).
TRADIÇÃO EM FAMÍLIA Muita embora o retorno financeiro seja duvidoso, uma coisa o carranqueiro aprendeu e leva fielmente vida afora: a arte das carrancas jamais pode ser abandonada ou esquecida. Por isso mesmo, na Associação de Artesãos de Pirapora é muito comum encontrar gerações de famílias trabalhando conjuntamente na produção de carrancas. Uma dessas famílias é a da artesã Luzia Carneira Soares, que tem irmãos, tios e filhos exercendo a profissão. O pioneiro na família foi Sabino Carneiro Soares, irmão de Luzia, que antes de falecer passou os ensinamentos para os familiares. Gelson Xavier dos Santos e Adão Xavier, filhos do finado Sabino e sobrinhos de Luzia, são exemplos dessa tradição. Trabalham como carranqueiros desde crianças e têm orgulho do que fazem. “Quando criança eu ia para beira do rio olhar os barcos que chegavam com suas imensas carrancas. Era impressionante”, relata Adão. O seu sobrinho, Uanderson Pereira Nunes, é atualmente o carranqueiro mais novo da associação, com 26 anos. Começou aos 13 e não se arrepende de ter escolhido essa atividade para viver. “Meu pai me mostrou como se faz e pretendo passar esse ensinamento para os meus filhos. Não podemos deixar esse símbolo cultural acabar. A carranca faz parte da história do rio São Francisco e da nossa querida Pirapora”, orgulha-se.
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Trabalho árduo, que exige uma dedicação quase exclusiva, a arte do entalhe é admirada pelos visitantes das cidades ribeirinhas do Velho Chico
DESVALORIZAÇÃO DO OFÍCIO
ANA DAS CARRANCAS, UMA REFERÊNCIA.
Como muitos carranqueiros, Dona Luzia queixa-se da ausência de compradores para o seu trabalho. “Faltam turistas”, diz ela, lembrando o tempo em que Pirapora tinha cerca de 50 artesãos em atividade e recebia muitos visitantes. Nessa época, ela chegou a pagar a faculdade do seu filho no Rio de Janeiro somente do seu trabalho como artesã. “Antes vivíamos somente da nossa arte. Hoje isso é impossível. O artesão que não tiver outro emprego morre de fome”, queixa-se, confessando já ter pensado em largar a profissão. Na cidade de Petrolina, essa realidade não é muito diferente. Se antes eram 15 artesãos, hoje em dia apenas três executam a tarefa com assiduidade. Alguns optaram em trabalhar com arte sacra, por exemplo. “Eu mesmo não faço só carranca, faço também anjos e santos. É onde consigo minha principal renda”, diz Roque Santeiro. Seu irmão, Paulo Gomes da Rocha, largou definitivamente a profissão. “Vivi por mais de 30 anos fazendo carranca e isso nunca me deu dinheiro. Artesão só tem valor quando morre”, queixa-se.
Verdadeiro patrimônio da cultura pernambucana, Ana Leopoldina Santos, a Ana das Carrancas, é um símbolo da arte das carrancas. Seu grande diferencial: carrancas feitas em barro, com estilo próprio e requinte de obra de arte. Um detalhe interessante é que todas as suas peças apresentavam os olhos vazados. Na realidade, uma singela homenagem feita por ela ao marido e grande amor de sua vida, José Vicente de Barros, cego de nascença. Após a sua morte, em 2008, Ana Leopoldina foi homenageada com a criação do Centro Cultural Ana das Carrancas, em Petrolina. Um espaço administrado por suas duas filhas e que serve para introduzir os turistas e outros interessados na sua arte singular. O ambiente é repleto de peças produzidas pela artista e de prêmios a ela concedidos ao longo da vida. “Queremos que a futura geração conheça quem foi essa mulher”, afirma Maria da Cruz Santos, a Pepê, uma das filhas da artesã.
ONDE ENCONTRAR •
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Associação de Artesãos de Pirapora/MG – Rua A. Santa Terezinha, nº 120, Pirapora, Minas Gerais. Oficina do Artesão Mestre Quincas – Av. Cardoso de Sá, s/n, Vila Eduardo, Petrolina, Pernambuco. Centro Cultural Ana das Carrancas – BR 407, 500 - Cohab Massangano, Petrolina, Pernambuco
DICA DE LEITURA Carrancas do São Francisco Autor: Paulo Pardal Editora: Martins Fontes Edição: 3º Nº de Páginas: 274 Data de Lançamento: 2006
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COMPETIÇÃO
LITERATURA
REDE
FOTO: CHRISTIAN MENDES / FOCO RADICAL
A INVENÇÃO DO POVO BRASILEIRO
VELOCIDADE E VINHO ÀS MARGENS DO VELHO CHICO Para quem gosta de um bom vinho, o Vale do São Francisco é uma excelente parada. Motivo óbvio: a região é uma referência nacional no quesito produção de bebida. Mas quem preferir conhecer um pouco mais das belezas do Velho Chico vale a pena continuar a corrida em suas margens. Para os atletas de plantão, entre os dias 15 e 16 de novembro acontecerá a Wine Run Brasil 2013, um evento que reúne corredores de diversas faixas etárias que, além de participarem da meia maratona de até 21 km, no município de Casa Nova, na Bahia, desfrutarão de momentos de degustação e palestras sobre vinhos e sucos de uva, e de passeios na bacia hidrográfica do rio São Francisco. O conceito da competição é divulgar as principais regiões vinícolas do Brasil, sendo que esta edição ocorrerá às margens do São Francisco, que tem papel fundamental na irrigação da segunda maior região produtora de vinho do país. A maratona, organizada pela Zenith Sports e a revista Adega, terá sua largada no lago de Sobradinho. O primeiro trecho é de cerca de 9,6 quilômetros e acontecerá nos limites da Fazenda Fortaleza, onde fica a empresa produtora de uva de mesa e sucos. O segundo percurso, de 5,2km, será na ligação entre as Fazendas Fortaleza e Ouro Verde, esta última sede da vinicultura Miolo. O último trecho terá 6,2km e ocorrerá todo dentro da fazenda Ouro Verde. Além do cenário de beleza das vinícolas, as águas do Velho Chico têm muito a ver com a produção de vinho e a ideia de fazer a Wine Run na região. Vale lembrar que o São Francisco faz da região o único local do mundo com duas safras e meia por ano. Essa é a primeira edição do evento que acontece no Nordeste. Outras duas edições ocorreram no Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha (RS), reunindo, cada uma, um público médio de 1.200 atletas.
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Entre as preciosidades que é possível acessar democraticamente na Internet, a partir do Youtube, está a série de vídeos inspirada no livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, considerado a obra central do antropólogo Darcy Ribeiro (1913-1997). A série é toda comentada por Darcy, em depoimentos concedidos na cidade de Maricá (RJ) em junho de 1995, e narrada por Chico Buarque e Mateus Natchergale. A produção foi uma realização conjunta da Fundação Darcy Ribeiro, TV Cultura e GNT, sob direção de Isa Grinspum Ferraz. Cada vídeo dura cerca de 30 minutos O destaque são os três documentários que apresentam as matrizes da sociedade brasileira, Matriz Tupi, Matriz Lusa e Matriz Afro, indicados para quem busca conhecer melhor o processo de povoamento da bacia do Rio São Francisco, especialmente a origem de duas das comunidades tradicionais da região, os indígenas e os quilombolas. Matriz Tupi, que inaugura a série, é dedicado aos povos indígenas que habitavam o Brasil antes da chegada dos navegadores europeus. Além de registros da estadia de Darcy entre os Urubu-kaapor, em 1950, o vídeo traz depoimentos de Azis Ab’Saber e Washington Novaes. Matriz Lusa descreve as rotas das caravelas como marco da globalização planetária, e apresenta a realidade de Portugal à época, reportando-se às influências árabe e israelita sobre a península ibérica. Com imagens de Portugal, Açores e Maranhão, apresenta depoimentos do pensador português Agostinho da Silva e poemas de Fernando Pessoa na interpretação de Tom Zé. Matriz Tupi conta a migração dos povos yorubás, bantos, haussás e jejes e o rico legado cultural de origem africana que disseminaram em terras brasileiras. O documentário tem imagens de Pierre Verger, depoimentos da ialorixá Estela de Oxóssi e do etnólogo François Neyt, além de poemas africanos recriados por Antonio Risério e interpretados por Gilberto Gil.
CONVIVENDO COM OS PEIXES
Para quem se interessa pelas belezas do nosso Velho Chico, um cativante registro está no livro História Natural de Peixes de Água Doce: Teoria e Prática nas Escolas: Bacia do Rio São Francisco. Um passeio atraente que retrata um universo repleto de imagens subaquáticas e informações sobre os mais variados peixes do rio São Francisco. A obra traz uma reflexão sobre a importância da preservação das principais espécies em extinção no nosso rio da integração nacional, a exemplo do piau, surubim, pacamã e dourado. Desenvolvido a partir de estudos realizados em localidades da nascente e cabeceira do Rio São Francisco, a represa de Três Marias e os rios Cipó e Pandeiros, a publicação tem um lado educativo: objetiva promover, através de oficinas socioeducativas, uma melhor conscientização acerca da necessidade de preservação ambiental do São Francisco entre jovens de escolas públicas e privadas do estado de Minas Gerais. De iniciativa do Instituto de Estudos Pró-Cidadania, em parceria com a Petrobras, através do Programa Petrobras Ambiental, o livro foi elaborado por uma equipe multidisciplinar de profissionais, a exemplos de biólogos, geógrafos, educadores ambientais, comunicadores sociais, que também produziram e executaram as oficinas em dez municípios na região do Alto São Francisco. Acompanha o livro, um encarte em DVD, que traz diversas imagens subaquáticas dos peixes do São Francisco. Ao todo, dez municípios do Alto São Francisco foram visitados para a realização deste trabalho. Maiores informações a respeito do livro e projeto poderão ser obtidas no site da instituição: www.peixesdeaguadoce.com.br
PESQUISA AS VÁRIAS FACES DA CAATINGA
CINEMA
TURISMO
CANGAÇO VIRA PARQUE
O SERTANEJO EM CARTAZ Um sertanejo atravessa a área entre Petrolina e Juazeiro, adaptando-se ao que a natureza lhe oferece. O cenário é o da caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro. É neste clima que se desenvolve o roteiro do filme Na Quadrada das Águas Perdidas, dos diretores Wagner Miranda e Marcos Carvalho e que traz como protagonista o ator Matheus Nachtergaele, intérprete de Olegário, um ser absolutamente solitário, que contracena, praticamente, com animais como carcará e calango – há ainda um cachorro, evocando o clássico Vidas secas (1963), que o cineasta Nelson Pereira dos Santos adaptou do livro homônimo de Graciliano Ramos. O grupo musical Matingueiros, que representa o folclore do Vale do Rio São Francisco, cuidou da trilha sonora, junto com o violinista pernambucano Geraldo Azevedo e o compositor baiano Elomar Figueira Mello. É desse último, aliás, a canção que dá título ao filme, sobre o cotidiano dos moradores da região nos anos 1940.
O Cangaço Eco Parque é o novo atrativo turístico sergipano. O empreendimento, localizado no município de Poço Redondo, às margens do rio São Francisco, oferece aos visitantes atividades como ecoturismo, arvorismo, passeio de catamarã, além da trilha ecológica percorrendo o caminho até a ‘Grota do Angico’, última parada de Lampião (e seu bando), antes de o cangaceiro ser capturado e morto pelas “volantes”. Durante a trilha até a grota o visitante tem a oportunidade de curtir o visual das formações rochosas, as lindas ilhas e praias fluviais que existem nesse trecho especial do São Francisco. Além disso, poderá conhecer mais um pouco sobre o bioma caatinga e absorver toda uma cultura tipicamente nordestina. O eco-parque vem complementar todos os investimentos que o estado de Sergipe vem fazendo na construção da nova orla do Cânion de Xingó, bem como na divulgação do destino Sergipe, em especial, o Cânion do Rio São Francisco, um dos principais atrativos turísticos do estado.
As clássicas imagens da Caatinga com terra rachada, paisagem marrom e caveiras de gado espalhadas são, definitivamente, um clichê. Apesar de verdadeiras, não revelam a diversidade desse bioma exclusivamente brasileiro que é a caatinga. Na verdade, há muito mais cores, texturas e composições naturais do que se possa imaginar. Isso fica claro com o livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco – História natural e conservação. Realizado durante quatro anos pelo professor José Alves de Siqueira, titular do Centro de Referência em Recuperação de Áreas Degradadas da Universidade Federal do Vale do São Francisco – Univasf, a publicação apresenta 1.031 registros de espécies de plantas e comprova, com rigor científico, a riqueza da flora da Caatinga. Além do conteúdo científico, o livro impressiona pela plasticidade das fotografias produzidas pelo próprio Siqueira. O trabalho foi executado com mais 99 pesquisadores e 39 instituições, além da Univasf. O prefácio é do professor Marcelo Tabarelli, coordenador da área de biodiversidade da Capes, além de autor de Ecologia e conservação da Caatinga. O capítulo sobre cactos tem a participação de Nigel Paul Taylor, estudioso do Royal Botanic Gardens, com trabalhos em ecossistemas áridos em diferentes recantos das Américas. Para concretizar a pesquisa, os autores pegaram literalmente a estrada: rodaram 340 mil quilômetros em 212 expedições para escrever as suas 515 páginas. O resultado transcende o que se esperava ser de um profundo trabalho sobre a flora da Caatinga: propõe estratégias para conservação do bioma, faz um estudo detalhado das plantas aquáticas do semiárido mais populoso do mundo e produz um modelo analítico sobre a distribuição de árvores nativas. No capítulo dedicado aos cactos (dos quais 90% estão ameaçados), revisa o que já foi escrito sobre as sementes da biota e alerta sobre a ameaça de invasão biológica que a região enfrenta. O capítulo Flora das Caatingas do Rio São Francisco desmente afirmações que o bioma abriga poucas espécies exclusivas (endemismos). Além disso, revela espécies raras, sensíveis às mudanças climáticas e já trata do desafio que está posto para a conservação. Entre aspectos que surpreendem está o capítulo dedicado às plantas aquáticas. Os autores identificaram 191 espécies de aquáticas em região semiárida, além de 108 espécies de cactáceas, boa parte exclusiva do bioma.
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FRANC ISCO SÃO DO SE RE S
TEXTO: GEORGE OLAVO. ILUSTRAÇÃO: CAU GOMES
Buriti
O buriti (Mauritia flexuosa), a mais alta das palmeiras brasileiras, é símbolo do cerrado e do Brasil central, dos sertões e veredas do Velho Chico. Imortalizado na obra literária de Guimarães Rosa, aparece no modo de vida, nas expressões artísticas e no artesanato das populações tradicionais da bacia do São Francisco. Palmeira elegante e de estipe ereto, alça até 35 metros, exibe topo de copa arredondada e uniforme e folhas grandes que se abrem em leque. Floresce entre dezembro e abril, em longos cachos amarelados de até três metros de comprimento. Frutifica até junho, coquinhos castanho-avermelhados revestidos por escamas brilhantes, em cachos generosos. A polpa é amarela, tem semente dura e amêndoa comestível, para deleite de araras, jandaias e periquitos que se aninham no alto dos buritis, e também servem de alimento para mamíferos, como cotias, capivaras e antas. Os buritizais formam bosques e oferecem importante refúgio para a fauna. Funcionam como corredores de dispersão, conectando áreas já fragmentadas do nosso cerrado original, favorecendo a conservação e recuperação de sua biodiversidade. Um buritizal é oásis na sequidão dos gerais, “abre veredas no ermo da paisagem”, água certa e muita sombra. Beleza talvez incompreensível para quem nunca viu um buritizal “lequelequeando” ao vivo. O buriti é espécie indicativa da existência de água nos sertões, sinalizando brejos e nascentes, emoldurando veredas e cachoeiras. Sempre com o pé na água, os frutos dessa palmeira-do-brejo, ao caírem, são transportados pelos riachos, disseminando a espécie por toda a região. Assim como os buritis, os homens põem morada onde tem água. Os moradores das veredas plantam roça de sustento e criam o gado à solta, nas beiras dos riachos e ribeirões, nos brejos e olhos d’água. Os povos tradicionais do cerrado aproveitam praticamente tudo da planta do buriti. Além da beleza, da sombra e água fresca, do caule do buriti é extraído palmito de qualidade, sendo também usado na construção de casas tradicionais, cobertas pela palha de suas folhas. Das fibras das folhas são também produzidos utensílios para o dia a dia e peças típicas do artesanato regional: redes, tapetes, esteiras, chapéus, cestos, brinquedos, mobílias leves e muito mais. O fruto é fonte de alimento com alto potencial nutritivo para o consumo humano, rico em vitaminas, cálcio, ferro e proteínas. É consumido ao natural ou transformado em doces, sucos e licores. O óleo extraído do coco do buriti tem valor medicinal, é utilizado como vermífugo e cicatrizante. Também contém corantes e aromatizantes, hoje aproveitados pela indústria de cosméticos no fabrico de sabonetes, xampus, cremes e filtro solar. O buriti é de grande importância na manutenção das nascentes, conservam locais alagadiços, de água pura e permanente. “Árvore que emite líquidos”, “árvore das águas”, “árvore da vida”, sagrada para os povos indígenas. Recomenda-se preservar a palmeira mbyryti:
“O senhor estude: o buriti é das margens, dele caem os cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmo replantam; dá o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando que nem um cálculo”.
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(Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa).