CCJ | Funk: Qual é o Rolê?

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QUAL É O ROLÊ?


Funk:

qual é o rolê?

organização

Ana Paula do Val Maria Carolina Vasconcelos Oliveira


PREFEITURA DE SãO PAULO Fernando Haddad

SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA SECRETÁRIA

Maria do Rosário Ramalho SECRETÁRIO ADJUNTO

Maurício Dantas CHEFE DE GABINETE

Rossella Rossetto ASSESSORIA TÉCNICA

Airton Marangon Lia Palm Luciana Piazzon Barbosa Lima Thor Saad Ribeiro

CENTRO CULTURAL DA JUVENTUDE

FICHA TéCNICA DESTE VOLUME

DIRETOR GERAL

CONCEPÇÃO, TEXTOS E EDIÇÃO

DEPOIMENTOS

Ricardo Ponzio Scardoelli

Ana Paula do Val Maria Carolina Vasconcelos Oliveira

(participantes do Ciclo de Debates sobre o Funk) Amanda Prado Chico Macena Danilo Cymrot Débora Maria da Silva Gabriel Medina Juca Ferreira Mariana Gomes MC Juliana MC Leonardo Montanha Nabil Bonduki Netinho de Paula Panikinho Thelles Henrique Tica (Movimento Marcha Mundial das Mulheres)

DIRETOR DE PROGRAMAÇÃO E PROJETOS

Murilo Pace EQUIPE DE PROGRAMAS E PROJETOS - CCJ

Clayton João da Silva Eduardo Ferrari Elci Alves Arruda Gerson Brandão Ingrid Soares Santos Ítalo Yuri Juliana Niero Karen Rego Rodrigo Coimbra Rogério Fonseca Shayanny de Sá Thayame Porto

REVISÃO

Magnólia Maria de Araújo TRANSCRIÇÕES

Rafael Reis Bittencourt Patrícia Cucio Guisordi PROJETO GRÁFICO E DESIGN

Fernando Sciarra IMAGENS

Acervo CCJ Ana Paula do Val Fernando Sciarra

ASSESSORIA JURÍDICA

DANÇARINO DAS FOTOS

Thomas Américo de Almeida Rossi

Gustavo Carlini Costa

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO

Giovanna Longo

(entrevistados) Carla dos Santos Mattos Danilo Cymrot Juarez Dayrell Livia de Tommasi MC Bio G3 MC Garden AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Nabil Bonduki Alexandre Piero Amanda Prado Barbara Batista Marília Jahnel Guilherme César Renato Almeida


ÍNDICE

Abertura

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

Cap. 5

008

014

026

040

060

072

Maria do Rosário Ramalho

O nk é cultura?

Para começo de conversa, de onde vem tudo isso?

Preconceito e repressão

O lugar da mulher no nk

Reconhecimento e políticas culturais

010

Ricardo Ponzio Scardoelli 012

Apresentação

Pontos de vista

Para saber mais

085

102

Criminalização do nk: aspectos jurídicos (Danilo Cymrot)

Referências bibliográficas

091 Funk e relações de gênero (Carla dos Santos Mattos) 095 Juventudes

e Funk (Juarez Dayrell)


como “patrimônio nacional”, o samba so eu perseguições da polícia e de setores

O FUNK E A CIDADE

conservadores da sociedade. 2) o hip hop de São Paulo hoje é reconhecido internacionalmente, mas os fazedores desta arte ainda so em preconceitos e dificuldades para se firmar como expressão cultural reconhecida.

por MARIA DO ROSáRIO RAMALHO Secretária Municipal de Cultura

Na cidade de São Paulo, a grande crise que o nk en enta se dá principalmente por conta dos polêmicos “pancadões” ou “fluxos” de rua, organizados em comunidades nas periferias. Em local escolhido de forma

o menos nos últimos cinco anos o nk se tornou pauta

quase espontânea, centenas, e muitas vezes milhares, de jovens aglutinam

recorrente nos noticiários da cidade. Os pancadões,

em torno do som de algum carro bem equipado para realizar seus bailes

fluxos e rolezinhos se tornaram assunto de debates

de rua. Porém, os modos de relacionamento afetivos (que em alguns casos

intensos, com desdobramento em projetos de lei que

podem se tornar abusivos), o uso de entorpecentes (quando sem ações de

pretendiam proibir essa expressão cultural à programas,

redução de danos) e alta equência sonora, servem como argumentos que

como Funk SP que realizou bailes e shows em espaços públicos em

fortalecem a visão criminalizante dessas iniciativas. Com isso, percebemos

construção com os jovens que atuam nesse movimento cultural.

o surgimento de conflitos de toda ordem entre os equentadores dos bailes, os demais moradores dos bairros e as forças policiais.

O nk chegou em São Paulo há pouco mais de duas décadas e se instalou sobretudo nas periferias da cidade. Muito rapidamente cresceu dentre o

A rua é um dos principais espaços de sociabilidade que uma cidade dispõe. É

público adolescente e jovem. E hoje é consumido por uma parcela bastante

na rua que as pessoas encontram uma extensão das relações familiares e do

significativa da população. No entanto, en enta preconceitos de toda ordem,

espaço físico das apertadas moradias. É necessário que a cidade encontre

seja por conta da dinâmica da sua dança, da mensagem de algumas letras,

uma forma de garantir a rua como este espaço de festa, de descanso e de

da batida que remete aos tambores a icanos, ou por ser música produzida

sociabilidade pacífica entre seus moradores. A ocupação da rua com os bailes

e consumida por jovens moradores das periferias, em sua maioria, pretos.

nks revelam a necessidade de se fortalecer, sem discriminar, as práticas culturais das comunidades, ampliando a oferta de formação cultural e

No Brasil, as expressões culturais que emergem da cultura a icana

programação de qualidade, dando visibilidade aos artistas e à produção cultural

passam por longo processo de de afirmação até que sejam “oficialmente”

local. No último período ampliamos os números de equipamentos públicos

reconhecidas como válidas. O samba, jongo, capoeira, hip hop, umbigadas,

culturais nas periferias da cidade assim como o número de programações

evo entre outras manifestações culturais a o brasileiras em períodos

que dialogam com o nk enquanto manifestação cultural. Com tranquilidade,

anteriores foram vítimas de olhares desconfiados e afetados em sua

entendemos que as mudanças que foram protagonizadas na relação da cidade

forma por legislações e dificuldades na relação com o Estado e as camadas

com o nk tem como nascedouro, também, os diálogos estabelecidos no

privilegiadas da sociedade. Cito dois exemplos: 1) até ser reconhecido

Ciclo de debates sobre o nk que originou esta publicação. Boa leitura!

08

09


POR QUE O FUNK?

por RICARDO PONZIO SCARDOELLI Diretor geral do Centro Cultural da Juventude

às expressões culturais das periferias de São Paulo. Hoje, apesar do nk ser consumido por muita gente, de diferentes classes sociais, ainda existe muita polêmica entorno do seu estilo, das suas letras e de como é

CCJ – Centro Cultural da Juventude, equipamento da Secretaria

expressado – principalmente nos “pancadões”, “fluxos” e “rolezinhos”.

Municipal de Cultura, localizado na Zona Norte, na região da Vila Nova Cachoeirinha, é o maior centro público direcionado

Nesse cenário de polêmicas e desafios impostos à cidade na interação

aos interesses da juventude da cidade de São Paulo.

com o nk, a certeza é que não se trata apenas de um estilo musical, mas de uma expressão cultural potente e muito representativa e que

A partir de 2013, o CCJ implementou processos de gestão participativa

estabelecer políticas para o nk, é justamente estabelecer políticas

como a realização dos Fóruns de Gestão Participativa, o Orçamento

que reflitam sobre relações de gênero, preconceitos, juventude,

Participativo da Programação e o Conselho Consultivo que está em

entretenimento, estilo de vida, periferias e tantos outros temas. Ou

fase de consolidação. Estes são espaços para participação de grupos,

seja, é discutir a cidade e a garantia de direitos para quem nela vive.

entidades, coletivos, equentadores/as e moradores/as da região que têm a oportunidade de debater e construir coletivamente os projetos e a gestão

Os diálogos realizados no Ciclo de debates sobre o Funk, trazem a reflexão

do equipamento. Desde então, o nk sempre esteve presente no cotidiano

do quão complexa é essa manifestação cultural que não deve ser rotulada.

do espaço, seja nos fones de ouvido e nos celulares dos equentadores,

Eles, sem dúvida, serviram de base para um conjunto de políticas que se

seja nos rolezinhos realizados, nos shows e nos debates de diversas áreas

sucederam na tentativa de solucionar conflitos existentes e garantir mais

nos quais, constantemente, algo relacionado a esse estilo era abordado.

direitos para quem gosta do estilo, vive dele e até para quem não gosta.

Debater num local público, vivenciar e garantir espaço para o nk é

Essa leitura é uma ótima oportunidade para se refletir sobre

debater e vivenciar a cidade e sua juventude. É, sobretudo, garantir direito

concepções pré estabelecidas. Façam bom proveito!

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APRESENTAÇÃO ste livro tem como provocação

No primeiro dia, o tema discutido foi O nk

As discussões iniciadas no Ciclo de

mostrar vários pontos de vista e

inicial o Ciclo de Debates sobre

como expressão cultural, e os participantes

Debates sobre o Funk nos levaram a

estimulando o jovem a pensar e a chegar

o Funk, evento proposto pelo

conversaram sobre a legitimação do nk

adentrar ainda mais algumas destas

a suas próprias conclusões. O que não

Centro Cultural da Juventude

como cultura e sobre os preconceitos que

questões, principalmente por conta dos

é tarefa simples: todos são assuntos

(CCJ), equipamento da Secretaria

esta linguagem e seus praticantes so em.

acontecimentos que envolveram esta

contraditórios, sobre os quais é difícil

Municipal de Cultura de São Paulo, e

A segunda mesa foi sobre A criminalização

expressão nos últimos anos. É o que

construir opiniões muito incisivas –

realizado em agosto de 2013, em parceria

do nk, e aqui a discussão passou pela

fazemos neste livro. Buscamos apro ndar

quase nunca é o caso de ser “totalmente

com o Gabinete do Vereador Nabil Bonduki.

discriminação das manifestações culturais

as principais reflexões sobre o nk a partir

contra" ou “totalmente a favor".

da periferia e pelas polêmicas em torno

de referências e de colaborações de outros

Este ciclo apresentou uma série de mesas

da proibição dos pancadões e rolezinhos

entrevistados (pesquisadores e nkeiros),

O convite, aqui, é conhecer diferentes

de discussão bastante quentes sobre

no espaço público. No terceiro debate, A

que enriqueceram a construção narrativa

argumentos para desconstruir

alguns dos assuntos mais polêmicos

mulher e o nk, as participantes abordaram

das questões levantadas no Ciclo de Debates.

ideias e estereótipos prévios sobre

relacionados à cultura nk. As mesas

a forma como a mulher é tratada e inserida

reuniram integrantes do poder público,

no nk. Por fim, o último debate, Uma

A proposta deste livro é dialogar

leitura forneça algumas ferramentas

da sociedade civil, pesquisadores e, claro,

política cultural para o nk, retornou ao

principalmente com o público jovem, maior

a mais para você construir o seu

os próprios representantes do nk. A

tema do preconceito e da discriminação

praticante e produtor da cultura nk.

próprio mosaico de interpretações.

programação completa do evento pode

e colocou em pauta algumas propostas

Optamos por apresentar as principais

ser conferida na página seguinte.

de ações públicas voltadas para o nk.

polêmicas relativas a cada tema, procurando

CICLO DE DEBATES SOBRE O FUNK

8.13 15.0 Dia 15/08 O FUNK COMO EXPRESSÃO CULTURAL Juca Ferreira (à época, Secretário Municipal de Cultura de São Paulo) mc Leonardo (à época, presidente da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk - Apafunk/rj) Montanha (Funk tv/sp) mediação: Danilo Cymrot local: Centro Cultural da Juventude (ccj)

12

8.13 17.0 Dia 17/08 CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK Débora Maria da Silva (Movimento Mães de Maio) Nabil Bonduki (vereador, à época, presidente da Frente Parlamentar de Cultura e membro da Subcomissão de Juventude da Câmara Municipal de São Paulo) Gabriel Medina (à época, Coordenação de Políticas para Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo) mediação: mc Panikinho (idealizador da campanha Eu pareço suspeito?) local: Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes (cfcct)

a cultura nk. Esperamos que a

08.13 22. Dia 22/08 A MULHER E O FUNK Mariana Gomes (mestre em Cultura e Territorialidades, na Universidade Federal Fluminense) mc Juliana mediação: Tica (Marcha Mundial das Mulheres) local: Centro Cultural da Juventude (ccj)

Boa leitura!

24.08.13

31.08.13

UMA POLÍTICA CULTURAL PARA O FUNK Juca Ferreira (à época, Secretário Municipal de Cultura de São Paulo) Chico Macena (à época, Secretário Municipal de Coordenação das Subprefeituras de São Paulo) Netinho de Paula (à época, Secretário Municipal de Promoção da Igualdade Racial de São Paulo) Thelles Henrique (Liga do Funk). mediação: Amanda Prado local: Biblioteca Mário de Andrade – bma

A BATALHA DO PASSINHO Concurso de dança para jovens a partir de 15 anos de idade, que encerrou o Ciclo de Debates sobre o Funk. local: Centro Cultural da Juventude (ccj)


O FUNK é cultura? No seu sentido mais amplo, “a cultura pode ser considerada atualmente como o conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Ela engloba, além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças." (unesco, 1982)

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SIM!

O FUNK É CULTURA, APESAR DE MUITA GENTE DIZER QUE NÃO. 16

tÁ na

Antes de mais nada, cultura não é só música, dança, teatro e outros tipos de produção artística. Cultura é o conjunto de valores, hábitos e crenças que um certo grupo social partilha, ou seja, tem a ver com identidade e com vida cotidiana. Ela é aquilo que compartilhamos e que praticamos todos os dias, e não necessariamente algo extraordinário. Essa ideia fica clara na definição de cultura apresentada na página anterior, formulada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), organização que vem realizando uma série de discussões e conferências sobre políticas culturais, em nível mundial desde o fim dos anos 1960. Este conceito também fica claro na definição de “patrimônio cultural" formulada em nossa Constituição Federal.

cOnS

tItUIÇÃO

artigo 216 da constituição de 1988↓ Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência

à identidade, à ação, à memória dos e diferentes grupos formadores da sociedad brasileira, nos quais se incluem: I as formas de expressão;

II os modos de criar, fazer e viver; III as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.


ALGUMAS DEFINIÇÕES...

Mas sim, o termo “cultura" também pode significar as linguagens e expressões que um certo grupo ou indivíduo produz; por exemplo, um determinado tipo de produção artística. Nesse ponto, é importante

artigo 2 da declaração de friburgo

lembrar que a cultura não se resume somente à arte: todas as expressões produzidas pelos diversos grupos sociais são cultura, já

os direitos culturais (unesco, 2007)

que são manifestações de sua identidade – tanto que normalmente vemos esta palavra associada a vários adjetivos: culturas populares,

Para os fins da presente Declaração, o termo "cultura" abrange os

culturas periféricas, culturas indígenas, entre outras. O importante é

a.

pensar que esses termos devem vir sempre no plural, porque as

valores, as crenças, as convicções, as línguas, os conhecimentos e as artes, as tradições, as instituições e os modos de vida pelos quais uma pessoa

culturas são diversas. E, o mais importante, as expressões culturais devem ser pensadas em sua diversidade e sem hierarquizações: uma não é “melhor" que a outra, é simplesmente diferente.

raYMOnD

WIllIaMS, teórico que estudou a evolução do conceito de cultura, defende que ela deve ser entendida em dois sentidos: →

ou um grupo de pessoas expressa sua humanidade e os significados que dá à sua existência e ao seu desenvolvimento;

“… para designar todo um modo de vida – os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado – os processos especiais de descoberta e esforço criativo…” ( lliams, 1992)

B.

a expressão "identidade cultural" é compreendida como o conjunto de referências culturais pelo qual uma pessoa, individualmente ou em coletividade, se define, se constitui, se comunica e se propõe a ser reconhecida em sua dignidade;

c.

por "comunidade cultural" entendese um grupo de pessoas que compartilha as referências constitutivas de uma identidade cultural em comum, desejando preservá-la e desenvolvê-la.

18

19


uando pensamos a partir desses pontos de vista, a resposta para a

A disputa por um direito de

pergunta “o nk é cultura?" é quase direta: é claro que o nk é cultura;

“existência" envolve também uma

afinal, ele é uma das expressões mais praticadas pelas juventudes na

disputa por espaços. Se uma

atualidade, especialmente as que vivem em zonas periféricas de grandes

pessoa diz que um baile nk não

cidades. A cultura nk envolve não só a música, mas um conjunto de

pode acontecer, que não pode ter

valores, hábitos, modos de vestir e de falar muito específicos. O nk é,

nk na Virada Cultural, que não

então, cultura juvenil, cultura periférica, cultura urbana. E não se pode

pode ter nk na programação de

negar também que algumas de suas vertentes estão relacionadas à lógica

um centro cultural, isso significa

do mercado fonográfico; mas, ainda assim, trata-se de uma expressão

que a sociedade e cidade estão

vinculada à identidade e a modos de vida de diversos grupos juvenis.

fechando a porta na cara do nk, e, principalmente, de quem faz e curte

O debate O nk como expressão cultural, que deu início ao Ciclo

o nk. É como se pusessem uma

de Debates sobre o Funk, realizado em 2013 no CCJ, trouxe várias

placa “Aqui você não pode entrar".

discussões interessantes sobre esse assunto. MC Leonardo apontou:

ê diz c o v o d

MC

"Quan ão n k n u f o e qu é cultura, você está negando a existência do outro ".

LEO NAR DO

→ MaS a cIDaDE nÃO DEVErIa SEr DE tODOS

?

Quando a gente começa a pensar desse jeito, o debate logo esbarra em questões como preconceito e acesso, e vai ficando cada vez mais complicado. Como bem disse Danilo Cymrot, no mesmo debate: “a gente começa falando sobre o

a

"

construção da cidade que a gente quer passa necessariamente pela abertura de todas as portas, por considerar as demandas dos diversos grupos sociais" (Juca Ferreira).

nk e de repente está falando sobre urbanismo, segregação social, direito à cidade...".

20

21


n

o debate, o então Secretário da Cultura, Juca Ferreira, lembrou ainda que o nk é discriminado não só pelos governos e pela polícia, mas também por uma grande parte da população. Esse preconceito é justamente o que reduz a possibilidade de uma convivência pacífica na cidade.

"O preconceito só desaparece quan você conhece o outro de verdade" dissdo e MC Montanha (que com eçou sua carreira no rap) no debate O nk

MC

MONTANHA

como expressão cultural

E esta questão fica mais evidente quando observamos que quem faz e curte o nk geralmente são os jovens mais pobres, de regiões periféricas. Então, o preconceito em relação ao conteúdo está muito misturado ao preconceito em relação a quem faz o nk.

r pobre po a it fe a ur lt cu l, si ra B o n "aqui pobre" é considerada uma cultura

DANILO

Nas próximas páginas, trataremos de vários temas polêmicos pertinentes ao nk e à sua legitimação. Até aqui, o recado é o seguinte: ninguém é obrigado a

de nk, assim como ninguém é obrigado a gostar de ópera, ou de qualquer CYMROT gostar outro tipo de expressão. Não é disso que se trata. Mas não é correto afirmar que o nk (ou qualquer outra manifestação) “não é cultura", ou “é uma manifestação cultural menor", só porque não partilha dos mesmos valores e gostos. Não é preciso “defender com unhas e dentes" e nem de “queimar" o nk: o melhor é evitar essas posições extremistas. O nk, como várias outras expressões culturais, tem tanto pontos positivos como negativos; pode trazer mensagens tanto transformadoras como atrasadas; pode representar tanto um espaço de revolução como de continuidade dos valores que são dominantes num determinado contexto. É cultura, afinal. 22

Gostar é uma coisa;


reconhecer é outra. 24

25


PARA COMEÇO DE CONVERSA, DE ONDE VEM TUDO ISSO? Dos EUA nos 1960 ao funk como conhecemos hoje: uma longa trajetória

27


M

AS, AFINAL, DE ONDE O FUNK SURGIU E COMO CHEGOU POR AQUI? COMO ELE SE TRANSFORMOU NESSE FORMATO QUE CONHECEMOS HOJE?

Nos anos 1980 chegou aqui também o Miami Bass, um hip hop produzido em Miami que tinha uma mensagem de festa, celebração do corpo e da sexualidade. O novo ritmo, que invadiu as pistas dos bailes do Rio de Janeiro com uma toada de música eletrônica muito dançante e com graves pulsantes, foi incorporado pelo nk carioca, só que desta vez com diferenças importantes que mudaram a cena, principalmente na mídia. Há relatos de que as galeras de diversas favelas se reuniam nos bailes nk do Rio de Janeiro e inventavam trechos em português para as canções estrangeiras mais tocadas. Como as pessoas não falavam inglês, cantavam re ões com sonoridade semelhante às palavras das canções

O nk surgiu nos Estados Unidos, em meados dos anos 1960, quando

originais, fazendo paródias com uma boa dose de humor.

o “padrinho do soul”, James Brown, foi criando sões entre o jazz, o

Estas versões das músicas estrangeiras, que por aqui eram

soul e o rhythm and blues, que resultaram num novo ritmo musical de

chamadas de “melôs”, faziam muito sucesso nas pistas.

pegada firme e contagiante. O novo gênero consolidou-se no cenário da

PARA SABER

música negra norte-americana e espalhou-se como uma forte tendência,

Em 1989, o nk carioca tornou-se um gênero musical

conquistando definitivamente as pistas em todo o mundo.. Esse ritmo

com interesse comercial, depois do lançamento do LP

musical chegou com muita força ao Brasil nos anos 1970 com os bailes

Funk Brasil, produzido pelo DJ Malboro, um dos maiores

black, comandados por equipes de som famosas na época, como Soul

produtores do ramo. Por conta do sucesso desse disco nos

Grand Prix, Mister Funky Santos, Big Boy, Dom Filó e outros. No Rio

bailes, os anos 1990 estimularam outras composições de

de Janeiro, o novo ritmo so eu uma série de sões e mesclou-se a

nk em português. Muitos jovens se motivaram a compor

diferentes gêneros, como o samba, o jongo, a capoeira, entre outros.

e a cantar sobre suas comunidades, principalmente nos festivais que eram promovidos por empresários de equipes

MAIS DA HISTÓRIA DO FUNK, VEJA

Essa mistura de ritmos da música negra norte-americana e

de som. Esses festivais tinham critérios, como a exigência

AS FONTES

a o-brasileira foi a base para a criação dos primeiros nks

de que as músicas falassem sobre o contexto das galeras e

PESQUISADAS

cariocas. Os bailes se espalharam pelos subúrbios e morros,

estimulassem a paz nos bailes. É então que o nk carioca

com adesão de milhares de pessoas, que formavam uma massa

se torna autenticamente brasileiro e feito por quem curte

desconhecida da grande mídia e das classes mais altas.

e vive o mesmo estilo de vida – “feito de nóis pra nóis”.

NA SEÇÃO REFERÊNCIAS.

28

29


cariocas a partir desse período. Os temas mais cantados continuavam sendo a realidade das comunidades dos MCs e dos equentadores dos bailes. Canções românticas também faziam sucesso, e ficaram conhecidas como nk melody. O Rap da Felicidade, do MC Cidinho e MC Doca, e Endereço dos

Bailes, do MC Junior e MC Leonardo, são exemplos de músicas dessa época.

Os MCs Claudinho e Buchecha ganharam a mídia e se tornaram celebridades.

H

Havia basicamente 3 tipos de bailes nk no Rio de Janeiro em meados da década de 1990. Os bailes de comunidade, que eram gratuitos, aconteciam em quadras e terrenos dentro das

favelas e nas periferias, e onde não eram admitidas brigas. Nos

outros 2 tipos, os bailes normais e os bailes de corredor, que eram pagos e aconteciam em clubes ou quadras de samba, onde eram admitidas brigas.

As brigas eram uma espécie de encenação, tinham um tempo determinado de duração e uma série de regras – como, por exemplo, em relação ao lugar das mulheres. Esses bailes tinham in a estrutura precária e espaços inadequados para o número de equentadores. Alegando falta de segurança (pelas brigas e condições estruturais), o poder público tomou uma série de medidas no sentido de impedir a realização dos bailes, o que teve como efeito colateral a proliferação de bailes “proibidos", realizados às escondidas.

Nos anos 2000, o nk ampliou os seus temas para assuntos mais provocativos. Um grande número de canções com mensagens mais sexualizadas foram produzidas por MCs de todos os bailes nk do Rio de Janeiro. As canções que faziam apologia ao narcotráfico e ao tráfico de armas também estouraram nessa época. Esse tipo de música ficou 30

Mas, então, como esse funk chega ao estado de São Paulo?

Muitas duplas de MCs surgiram nos morros e no asfalto dos subúrbios

conhecido como nk proibidão, gênero que existe até hoje e que canta a realidade nua e crua do dia-a-dia violento e vulnerável das favelas cariocas. Para que as músicas consigam circular nas rádios e na TV, os

MCs costumam criar uma versão mais leve, recatada e sem apologias, diferente do proibidão, que só circula nos bailes e na Internet. Mas não foram só os nks proibidões que ocuparam os anos 2000. Há vários outros estilos (como o nk realidade, nk consciente, o nk romântico e outros) que você pode conferir no mapa da página 34.

A tecnologia foi uma grande aliada do nk carioca na sua expansão para outras cidades. A Internet, os sites de exibição de vídeos (como o Youtube) e as redes sociais (como Facebook e Orkut) foram os grandes responsáveis pela di são e o consumo do nk dentro e fora do estado do Rio de Janeiro. Com a superexposição dos nkeiros à mídia, a exploração dos profissionais da cultura nk aumentou na mesma proporção dos sucessos musicais. Então, em 2008, alguns grupos de pessoas ligadas à cultura nk ndaram no Rio de Janeiro a APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), instituição que zela pelos direitos dos nkeiros e luta contra a criminalização e a discriminação do nk.

Por volta de 1995, esse gênero começa a chegar na Baixada Santista, no litoral sul do estado, como afirma Baphafinha, um dos primeiros DJs do nk paulista no documentário Funk Ostentação. Na época, o som era muito discriminado e havia pouquíssimos cantores de nk no litoral paulista. Lourival Fagundes, um empresário carioca que morava na Baixada, foi 31


quem teria trazido esse gênero para as pistas da região. Desde então o ritmo cresceu vertiginosamente nos bailes da sua Discoteca Footloose, que chegou a ter selo, equipe de som, loja e um programa em rádio comunitária. Um grande circuito de bailes (nas boates e nas ruas) e dezenas de MCs surgiram em toda a Baixada Santista desde então. Foram várias gerações de MCs; a primeira dupla santista foi MCs Fredinho e Andrezinho, depois

vieram MCs Jorginho e Daniel, com um grande sucesso, Fubanga Macumbeira.

E

ste novo estilo, que alguns dizem ser “mais comportado" (quando comparado ao nk proibidão, por exemplo), tem uma boa aceitação

do público e da mídia. A TV é a sua maior di sora e

cede grande espaço nos seus programas de auditório para as celebridades do ramo (como MC Guimê, MC

Gui, MC Bio G3, MC Nego Blue, entre outros). As mulheres também ocupam bastante espaço no

ostentação, e inspiram seus looks nas cantoras pop Em meados de 2005 o nk chegou à capital paulista com muita força,

internacionais, como Beyoncé. A nkeiras são as

com o carioca Bonde do Tigrão. Mas a maior influência para a adesão dos

poderosas, as glamorosas, e combatem as recalcadas

jovens paulistanos foi mesmo o nk que então se produzia na Baixada

e invejosas em suas letras. No nk ostentação e em

Santista, e que já se configurava como uma identidade própria. Todos os

outros tipos, há várias mulheres que encontram

MC’s paulistanos beberam – e bebem até hoje – na fonte do nk santista.

espaço na mídia e no circuito comercial hoje, como as próprias Anitta e Valesca Popozuda, que hoje

O nk em São Paulo foi reprimido logo de início, como contou, em

são vistas como uma versão mais próxima do pop.

entrevista, MC Bio-G3, espécie de padrinho do nk paulistano na Zona Leste e autor do Bonde da Juju, primeiro grande sucesso da linha ostentação.

Atualmente, o nk é um dos estilos musicais mais consumidos pelos jovens nas periferias paulistanas,

Na cidade de São Paulo a diversidade de tipos de nk também é

com centenas de eventos acontecendo todas as

grande. Mas na região de Cidade Tiradentes, por volta de 2005, o nk

semanas nas ruas e casas noturnas da cidade, seja

paulistano começou a ser gestado como um novo estilo, que conhecemos

na forma de pancadões, rolezinhos, bailes ou outros.

por nk ostentação. Inspirado no gangsta rap americano, este tipo de nk exalta o consumo e a riqueza, com clipes luxuosos que exibem

Em 2012, um grupo de nkeiros, DJs, MCs e

carros, motos, dinheiro e mulheres. Os nkeiros paulistanos também

empresários paulistanos criou a Liga do Funk,

investem em superproduções de clipes para ilustrar com muita

para organizar a produção, articular redes

ostentação suas letras – mensagens que, segundo alguns estudiosos,

e, sobretudo, lutar pelos direitos de expressão

evocam o desejo de inclusão em uma sociedade de consumo.

dos produtores e uidores do nk.

32

33

→ > } }


1970

1980

1960

1990

ESTADOS UNIDOS

ANOS 80

ESTADOS UNIDOS

ANOS 60

James Brown cria o funk

DE ONDE

Miami Bass = funk (Brown) + batidas eletrônicas + elementos musicais latinos e caribenhos

RIO DE JANEIRO

ANOS 90

Funk feito de nois pra nois! Temas locais das comunidades, duplas de MC

VEM O

FUNK? ANOS 70

Miami Bass = funk (Brown) + batidas eletrônicas + elementos musicais latinos e caribenhos

ANOS 2000

Tecnologias, internet

Temas mais provocativos "proibidões": realidade, referências ao tráfico, erotização

ANOS 2000

RIO DE JANEIRO

Inspiração no gangsta rap dos EUA

ZONA LESTE DE SÃO PAULO

MEADOS 2000

Bonde da Juju, MC Bio G3 e MC BackDi

Funk Ostentação, que depois estoura em todo o Brasil

Funk comercial, que ganha o Brasil

RIO DE JANEIRO

MCs Claudinh o

ANOS 80

Melôs em português

Bailes de corredor

Início das tentativas de "proibição" dos bailes

2000

1989 LP Funk Brasil - DJ

Marlboro (sucesso)

e Bucheca despontam na mídia (primeiras celebridades do funk)

BAIXADA SANTISTA

+/- 1995

Funk explode na Baixada Santista, SP: MCs cantando temas locais

2005

Bonde do Tigrão

SÃO PAULO

MEADOS 2000

Funk conquista a capital

Mulheres ganham voz!


F UNK E REALIDAaD problem ss enfrentado pelas s comunidade

FUNK CONSCIENTE funk politizado, de denúncia social

FUNK IRÔNICO E DUPLO SENTIDO temas eróticos e polêmicos tratados com humor e deboche

FUNK MELODY romantismo, temas amorosos

FUNK PROIBIDÃO referências ao tráfico/crime; disputa entre facções (funk de recado) FUNK PUTARIA sexualidade e erotismo

FUNK OSTENTAÇÃO exaltação ao luxo, dinheiro, consumo e mulheres

FUNK CANTADO POR MULHERES poder sobre o próprio corpo, sexualidade, disputas

...

e muitos outros.....

...

... 39

...


PRECONCEITO E REPRESSÃO "Nossa sociedade presencia o crescimento de uma visão proibicionista de diversos tipos de manifestação pública. Essa visão conduz a um tipo de sociedade confinada ao espaço privado e a uma norma de comportamento previamente definida; tudo que foge a esta norma tende a ser criminalizado. Isto abre os caminhos para a violência policial, pois normalmente é a polícia que é chamada para restringir estas manifestações fora da norma." (Nabil Bonduki)

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PERIFERIAS,

AUSÊNCIA DE ESTADO E VULNERABILIDADE SOCIAL

X

O nk chega a São Paulo pelas periferias, e esse não é um contexto qualquer: o fato de ser uma cultura produzida por jovens periféricos explica muito do preconceito e da repressão que a linguagem so e. As periferias são o resultado de um processo de exclusão econômica,

mais altas vivem (o que chamamos de centro expandido da cidade) são

territorial e social que surge como principal efeito colateral do

as que recebem maiores investimentos, o que as torna cada vez mais

desenvolvimento da nossa cidade. No decorrer da sua história, São Paulo

caras. Como estas regiões mais ricas têm moradores com alto poder de

se desenhou pelo poder econômico das classes mais ricas e, principalmente,

consumo, os equipamentos de lazer, de cultura e de educação especializada,

pelos interesses do mercado imobiliário. As regiões em que as classes

historicamente, se concentraram também nessas áreas centrais.

42

43


E

sse desenho não incluiu as periferias e favelas, que foram autoconstruídas por uma massa gigantesca de trabalhadores, que, sem opções de moradia no centro expandido, se

aventuraram a viver nas bordas da cidade, muitas vezes em regiões

sem nenhuma condição de acesso a bens e serviços básicos, tais

como mobilidade, equipamentos públicos e in aestrutura. Hoje, algumas dessas regiões já são periferias consolidadas e contam com melhorias conquistadas “no grito” pela população. No

"AS PERIFERIAS produzem espaços de maneira

precária, não garantindo espaços públicos de qualidade para que as

manifestações culturais possam acontecer. E como existe um potencial muito grande na nossa juventude de se manifestar culturalmente, estas

manifestações acabam acontecendo onde é possível – na rua, num posto de gasolina; às vezes, juntam milhares de pessoas. E ao juntar

milhares de pessoas, acontece o que é comum em qualquer lugar de

aglomeração. Não é privilégio do funk: em qualquer lugar em que se juntam milhares de pessoas pode haver comércio de drogas, confusão etc."

NABIL

BONDUKI

decorrer das últimas décadas, algumas dessas áreas estão passando por intervenções do Estado (como foi o caso da implementação de equipamentos da rede de CEUs). Muitas também já presenciam

Para Nabil, os pancadões (assim como os rolezinhos e outros tipos de

a invasão do mercado imobiliário e a chegada de estruturas

encontro espontâneo, envolvendo ou não o nk) expressam um “desejo de

QUANDO

como hipermercados e shopping centers.

aglomeração da juventude". Gabriel Medina falou algo parecido: “A discussão sobre os encontros de nk na rua e em locais públicos remete à questão

Mesmo assim, em geral, as periferias são

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territórios na periferia. Quando se pensa uma Cohab, por exemplo, se pensa num espaço para depositar trabalhador: o cara trabalha, chega lá e dorme. Não se pensa que o cara tem filhos, que lá tem idosos etc. Lá não tem praça, não tem lugar para se divertir, não tem clube para balada.

É um espaço totalmente árido, que não permite que o jovem se expresse. Então o jovem de periferia não pode sair à noite, não pode se divertir, não pode beijar?" (Gabriel Medina)

Muitas vezes essas questões são bastante complicadas, porque o direito de reunião dos jovens

falamos locais de muitas moradias e pouquíssimos em "Estado", equipamentos sociais, educacionais, culturais, esportivos e de lazer. Por conta desse estamos processo e, principalmente, pela demora de considerando uma atuação efetiva do Estado, as periferias todas as apresentam condições precárias para o instituições jovem exercer sua cidadania e seu direito à de governo cultura. Na falta de opções melhores, esse existentes nos exercício muitas vezes acaba acontecendo onde é possível, por exemplo, no espaço da níveis municipal, rua, o que pode gerar alguns problemas. Veja estadual e o que disse o vereador Nabil Bonduki sobre federal. isto no debate A criminalização do nk:

da ausência completa de espaços de socialização para os jovens nos seus

no espaço público esbarra no direito de outras

Veja a discussão

pessoas que moram ou circulam na região, por

sobre o PL 2/2013

exemplo, o direito de silêncio e privacidade. 45

na página 48


D

iante desses conflitos, o que tem acontecido é um processo de repressão e, muitas vezes, até de criminalização dos encontros de nk, como os pancadões e os rolezinhos.

X

Como disse Chico Macena no debate Uma política pública para o nk:

"Há uma tendência histórica de processos de repressão na cidade. Diante da falta de equipamentos, o papel das Subprefeituras e da polícia vem sendo o de reprimir e proibir as manifestações culturais que ocorrem no espaço público." (Chico Macena)

Então, é impossível falar de "repressão ao funk" sem lembrar dos impactos que essa vulnerabilidade social, no seu sentido mais amplo, tem sobre a juventude. No debate, Débora Maria da Silva, do movimento Mães de Maio, lembrou quantos MCs haviam sido mortos de maneira violenta naquele momento no estado de São Paulo: 2010 MC Felipe Boladão e DJ Felipe 2011 MC Duda do Marapé 2012 MC Primo, MC Careca, Japonês do Funk 2013 MC Daleste

A escassa oferta de espaços de lazer, sociabilidade e cultura nas periferias é só uma das manifestações da falta de uma presença mais ampla do Estado nessas regiões. As margens da cidade também concentram altos índices de violência e de vulnerabilidade social. A população jovem – sobretudo os jovens negros e pobres – é a que mais so e por conta desses problemas. E, muitas vezes, a entrada do Estado nessas comunidades se dá somente pela via da repressão, tendo a polícia como único mediador. 46

47


Em São Paulo: o funk na zona de conflito O PL 2/2013 foi um projeto de lei aprovado em duas votações na Câmara Municipal de São Paulo, mas depois vetado pelo prefeito Fernando Haddad. O PL (projeto de lei) gerou bastante polêmica, porque propunha a proibição da utilização de vias públicas para a realização de "bailes funk e outros eventos musicais" que não tivessem autorização da Prefeitura. Ele foi proposto por dois vereadores expoliciais militares, o que levantou muitas reações contrárias ao projeto, já que muita gente vê a atuação da polícia nas periferias como violenta e repressora. Além disso, o PL mencionava diretamente a proibição aos bailes funk. Isto fez com que muita gente se manifestasse contra: afinal, por que falar especificamente do funk, sendo que várias outras manifestações culturais também fazem barulho nos espaços públicos? Por exemplo, carros com equipamento de som que tocam música eletrônica, forró ou qualquer outro gênero, ou mesmo de igrejas que praticam canto nos seus cultos... Por que mencionar unicamente o funk? A impressão é a de que tudo que faz barulho, que incomoda ou que gera aglomeração de gente é tratado como "funk", num sentido

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claramente pejorativo e preconceituoso, como bem disse MC Bio G3 em entrevista. O próprio Bio G3 lembrou que os eventos de rua que o PL queria proibir, na verdade, muitas vezes nem são "bailes funk" – que, a rigor, são eventos organizados, com uma produção, que normalmente acontecem em espaços fechados – mas sim encontros espontâneos, que, em geral, acontecem sem organização ou produção prévia. Muita gente percebeu que, com esse projeto de lei, o que os vereadores queriam era criminalizar duas coisas: o funk como linguagem e o hábito dos jovens de se reunirem em espaços públicos, especialmente nas periferias. Os jovens já têm poucos lugares propícios para os encontros e a sociabilidade – já não há equipamentos de cultura e lazer, imagine se proíbem a rua? Mas a questão dos pancadões e dos encontros com música alta na rua (ou em postos de gasolina, estacionamentos, praças etc) não é nada simples. Porque ela também esbarra em outros direitos – por exemplo, o direito dos moradores da região de ficarem em casa sem barulho, ou de transitarem na rua sem que a

passagem esteja impedida por uma festa. E esta também é uma reivindicação legítima. Como ponderou o vereador Nabil Bonduki, no debate sobre A criminalização do funk: "É justa a reivindicação da população de que ela não quer música alta na sua janela. Mas isto precisa ser tratado como uma questão de política pública, de forma a tentar compatibilizar os vários interesses que existem em nossa sociedade. E nós não podemos fazer isso simplesmente condenando ou criminalizando a parcela da população que quer se expressar. Precisamos encontrar espaços públicos em que isto possa acontecer sem causar tantos impactos. E isso vale para o funk e para outras manifestações também." (Nabil Bonduki) Não dá para negar que na questão dos pancadões existe um conflito de direitos e de interesses. Em que ponto o direito de um acaba prejudicando o direito de outro? Como fazer para equilibrar os interesses? De qualquer maneira, a cidade de São Paulo tem uma lei do silêncio, e acaba de aprovar uma lei específica que proíbe som alto em veículos estacionados em vias públicas (ou em calçadas privadas). Se o problema do barulho já pode ser resolvido com essas leis, então não parece existir necessidade de outra lei que se refira diretamente ao funk.

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O rolezinho da juventude nas ruas do consumo e do protesto por renato souza de almeida Artigo publicado no Le Monde Diplomatique 03 fevereiro de 2014)

“Sair de rolê...” significa dar uma circulada despretensiosa pela vila ou pela cidade. É possível dar um rolê de trem, de ônibus ou a pé. Geralmente, o rolê está ligado ao lazer ou a alguma prática cultural. Sai de rolê o pichador, o skatista, o caminhante... O que vem chamando a atenção de muita gente é como um simples gesto de sair e circular de forma livre tem ocupado um papel central nas principais mobilizações juvenis na cidade de São Paulo nos últimos tempos. […] Quem não é mais jovem e sempre morou nas periferias de São Paulo, com raras exceções, vai se recordar que a rua era o espaço por excelência da sociabilidade, do lazer e da convivência. Com a chegada do asfalto, vieram também muitos carros e se instituiu como verdade o discurso de que a rua é lugar perigoso e violento. Para muitos adultos, as políticas culturais só se justificam

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se for para “tirar os jovens das ruas”. Para os jovens, ao contrário, suas ações culturais só têm força e sentido quando acontecem na rua, no espaço público. […] A condenação da rua como espaço da violência veio acompanhada da chegada dos shopping centers também às periferias. Muita gente vai ao shopping tentar encontrar um vazio deixado pelo “fim” das ruas. Para além do consumo, busca-se num shopping um passeio mais livre, solto, e a possibilidade de encontro com pessoas de fora do círculo mais próximo, familiar. No entanto, esse encontro não acontece. Tampouco a livre circulação. As pessoas só encontram uma multidão “sem rosto e coração” – nos dizeres dos Racionais mc’s –, e a circulação no interior do shopping não pode ocorrer de forma livre e espontânea. Ela tem regras claras e rígidas: os pobres podem circular pelo shopping, contanto que finjam pertencer a outra classe social. Mesmo que circulem no shopping sem recursos para consumir, eles devem desejar consumir. Da mesma forma, os negros podem circular pelo shopping tranquilamente, desde que finjam ser brancos nas vestimentas, nos cabelos, no comportamento etc. Os rolezinhos em shoppings – da periferia ou das áreas abastadas –, que se tornaram um fenômeno neste verão, têm características muito semelhantes com os pancadões de rua realizados de forma espontânea e congregam um número significativo de jovens que se

reúnem, sobretudo, em torno da expressão cultural do funk. O polêmico e famigerado funk é um dos principais mobilizadores dos jovens na metrópole paulistana. E um dos segredos da sua força não está necessariamente no apelo sexual de algumas músicas ou na sua batida envolvente, mas na forma como ressignificou as ruas para esses jovens. “No dia em que tem pancadão, a rua é nossa!” E se a rua é “nossa”, podese fazer qualquer coisa, inclusive não fazer nada... E, se o “som é de preto, de favelado e, quando toca, ninguém fica parado”, não há necessidade de fingir ser outra coisa, como exigem os shoppings centers. Ao contrário, é um momento de afirmação dessa mesma identidade periférica. Nesse sentido, estar no shopping – no local que a sociedade estabeleceu para substituir a rua – é bastante provocador. Os rolezinhos levaram para dentro do paraíso do consumo a afirmação daquilo que esse mesmo espaço lhes nega: sua identidade periférica. Se quando o jovem vai ao shopping namorar ou consumir com alguns amigos ele deve fingir algo que não é, com os rolezinhos ele afirma aquilo que é! E quando faz essa afirmação ele revela a contradição na lógica dos shopping centers. Ou seja, os rolezinhos põem por terra a aparente circulação livre e o espaço aberto que os shoppings dizem proporcionar. Quando o jovem afirma, por meio do rolezinho, sua identidade de negro e pobre, a contradição se evidencia e a polícia é acionada, e tão logo o paraíso do consumo e do prazer se revela como o inferno do preconceito racial e da violência.

Esses jovens que hoje mobilizam os rolezinhos são intitulados “geração shopping center”, consumista, por parte dos mais velhos. Porém, a prática dos rolezinhos nos shoppings está revelando a contradição mais aguda desse espaço que tentou tomar o locus simbólico da rua. Nos rolezinhos, os jovens não são consumidores, mas produtores. Produzem um novo jeito de circular pelo shopping. Produzem uma prática cultural que se contradiz com esse lugar. Produzem contradição e desordem no sistema. E produzem uma nova gramática política ao afirmar sua classe num espaço que existe para negá-la. […] as ruas ainda estão longe de pertencer aos jovens. Por isso, os rolezinhos continuaram e aumentaram. Os jovens querem as ruas de volta. O pancadão é só um exemplo dessa demanda. Para demonstrarem que o desejo dos shoppings de assumir o lugar da rua fracassou, os jovens resolveram levar a rua para dentro dos próprios shoppings e escancararam a luta de classes na cidade. É como se o povo não estivesse mais na rua para exigir seus direitos. A própria rua virou um direito que esses jovens exigem.

*Renato Almeida mestre em Antropologia, professor e gestor do Núcleo de CEUs e Casas de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo

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Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o nk não é a primeira manifestação cultural que so e preconceito, discriminação e criminalização. No debate A criminalização do nk, o MC Panikinho e Nabil Bonduki lembraram que a repressão do Estado às culturas entendidas como “subversivas" não é de hoje. Elas são consideradas assim porque, muitas vezes, questionam a própria atuação do Estado dentro das comunidades – como é o caso, por exemplo, de alguns dos proibidões do Rio de Janeiro. Vale lembrar que o samba, o candomblé, a capoeira, o rap, entre outros, já foram marginalizados e mesmo criminalizados em outros momentos históricos.

RE PR

ES

ES

A Z I

OE

L A CR MIN IIM R C IN E A O LI SÃ

S

símbolo de resistência à escravidão. Terreiros foram perseguidos, o candomblé foi proibido, inclusive na Bahia. Há uma tradição da nossa elite de perseguir as práticas culturais populares e as manifestações que mostrem alguma autonomia em relação à cultura dominante. Isso tem a ver com a desigualdade da sociedade brasileira e com um processo de hegemonia cultural que as elites buscam reafirmar. Há 15, 20 anos, o hip hop também era discriminado, e hoje foi relativamente incorporado." NABIL BONDUKI

ZA

abemos que o nk é hoje alvo de um processo de

discriminação e até de tentativas de criminalização, que

partem não só da sociedade como do próprio Estado. A

As tentativas de criminalização do nk, na opinião de algumas pessoas, dão sequência a esse processo. O próprio Secretário de Cultura, Juca Ferreira,

ÇÃ

lembrou que existe, na nossa sociedade, uma associação preconceituosa e

O

discriminatória do nk com o crime e com o tráfico. Assim como o samba e o hip hop, o nk também precisa lutar para superar esse preconceito. A repressão ao nk, seja por parte da sociedade ou do Estado, bate de

sociedade recrimina o nk com o argumento de que “isso não é

ente com a conversa que começamos lá atrás. Se o nk é uma das

cultura", de que as letras das músicas são irresponsáveis, ou de que

manifestações de identidade dos jovens, então proibi-lo significa criminalizar

todos os nkeiros são “bandidos". E o Estado, além de ser bastante

uma parte dos hábitos, estilos de vida e práticas desses jovens. A coisa

ausente, muitas vezes conduz medidas bastante questionáveis

piora quando se trata justamente da juventude de baixa renda que vive

de repressão direcionadas ao nk e aos seus espaços.

nas margens da cidade – que já é alvo de tantas discriminações.

52

53

R P RE

O Ã Ç

“Hoje o samba já está totalmente incorporado, mas durante séculos foi considerado

Veja também trecho da conversa com o pesquisador Danilo Cymrot na seção Pontos de Vista


Q

UEM ESTÁ SENDO CRIMINALIZADO, AFINAL, O FUNK OU A POBREZA? Isso nos leva a perguntar: por que as manifestações culturais praticadas pelos pobres e/ou negros são sempre discriminadas e criminalizadas? Há quem diga que o alvo do preconceito e da repressão, na verdade, seja a própria pobreza.

Isso nos leva a pensar que, muitas vezes, o Estado tende a adotar posturas repressivas para “resolver" problemas que são causados pela sua própria ausência.

SERÁ QUE ESTE É O MELHOR CAMINHO?

No debate O nk como expressão cultural, Montanha e MC Leonardo fizeram várias provocações interessantes sobre esse ponto. Montanha

Além de ser reprimido pelo Estado, o nk (assim como outras expressões

levantou uma questão interessante: “quando o Tropa de Elite retrata

que nascem nas classes mais pobres) en enta também uma discriminação

a violência, o filme é considerado cultura; mas quando um menino

da própria sociedade civil, que, de modo geral, nem o reconhece como uma

pobre faz um nk tratando do mesmo tema, aí é apologia ao crime".

cultura, mas o associa à marginalidade, à criminalidade e à falta de ética.

“O menino faz uma letra violenta e é condenado; mas, nos programas de TV,

Está aí outro assunto complicado. A discussão de que “falta responsabilidade

a gente vê a violência no mesmo tom e não acontece nada com quem fala.

nas letras do nk" é bastante polêmica. As letras do chamado nk proibidão

O problema, então, não é o que se fala, mas quem fala". (MC Leonardo)

foram bastante criticadas por fazerem apologia à violência e às drogas, pela forma machista como a mulher é tratada e por serem explicitamente

Débora Maria da Silva, do movimento Mães de Maio, foi ainda mais longe no debate A criminalização do nk:

“O FUNK, ASSIM COMO O RAP, é UMA NECESSIDADE PERIFéRICA. é O COTIDIANO PERIFéRICO QUE ESSES JOVENS COLOCAM NO PAPEL. (…) O ESTADO CRIMINALIZA A POBREZA PARA FAZER A PERIFERIA SE CALAR.” 54

DÉBORA

MARIA DA SILVA

sexualizadas. Mesmo o nk ostentação, que surge com a ideia de “pegar mais leve" para conseguir maior inserção no mercado, também vem recebendo muitas críticas por conta de suas letras. Muita gente reclama de que este gênero estimula o consumismo e reforça a ideia da mulher como objeto. A QUESTÃO DA

No debate O nk como expressão cultural, MC Leonardo trouxe um contraponto

MULHER SERÁ

a essas críticas. Ele disse que o trio “sexo, dinheiro e poder", está em todos os

DISCUTIDA

lugares, e não só no nk. Em sua opinião, o nk não é o “culpado" pela força

NO PRÓXIMO

desses valores. Ao contrário, os nkeiros reproduzem nas músicas aquilo que

CAPÍTULO

55


estão vendo na TV, no cinema e na realidade. Vale lembrar também que esse

Em entrevista com o MC Bio G3 (primeiro cantor paulistano de nk

trio de valores é a base do gangsta rap dos Estados Unidos, que é uma das

ostentação), ele diz que o próprio uso do termo proibidão é ruim:

inspirações do nk paulistano. Nabil Bonduki pensa de modo semelhante:

“SE A GENTE FOR entrar na questão das letras do

“Eu acho muito errado o termo proibidão, não gosto de usar; eu costumo usar o termo nk realidade. Se a realidade é proibida, a novela, o filme

nk, temos que entrar também nas letras do axé, do sertanejo,

Tropa de Elite, tudo tinha que ser proibidão também, porque ensina o

do hip hop etc. Estímulo ao consumo está todo dia na televisão.

tráfico, ensina o roubo, a morte, o tiro, a tortura...". (MC Bio G3)

Estímulo à ostentação? É só assistir qualquer propaganda, está lá presente. E o estímulo à sexualidade também está nas novelas da

O nk ostentação também tem sido muito criticado pelo tom consumista

Rede Globo. Isso toca uma discussão muito mais ampla, que tem

de suas letras. Sobre isso, tanto MC Leonardo quanto Thelles Henrique

a ver com os valores da nossa sociedade". NABIL BONDUKI

(da Liga do Funk) defenderam, nos debates, que este tipo de música tem algo legítimo: é o desejo dos jovens de periferia que está presente nas

Este assunto também esbarra na discussão sobre ausência do Estado.

letras. Esses nks são cantados e ouvidos por jovens de uma camada da

Como? MC Leonardo acha que é injusto cobrar uma responsabilidade

população que normalmente não têm acesso a esses símbolos de poder e

ou uma ética do nk, sabendo que os nkeiros normalmente têm uma

de luxo, e sabem que esses produtos estão associados a uma aceitação na

formação precária. Passam por escolas públicas de baixa qualidade

nossa sociedade. É legítimo, então, que esses jovens queiram ter tudo isso.

e têm poucas opções culturais disponíveis além da televisão. “O nkeiro de São Paulo canta a ostentação, é um processo de sonho. É Segundo ele, no Rio de Janeiro o poder público nunca propôs uma ação

uma massa que provavelmente nunca terá acesso, mas tem sonho. É

ou um espaço de formação para quem fazia o nk, mesmo sabendo que

uma linguagem popular que fala do seu povo." (Thelles Henrique)

era a manifestação mais praticada pela juventude. A única coisa que fizeram foram medidas no sentido de dificultar a realização dos bailes.

Mas esse é um lado da conversa. Entrevistamos também o MC

“Para o nk nunca veio nada do governo. Cobrar que o nk seja ético

Garden, de São Paulo, que faz o

e tenha responsabilidade é uma covardia. É como se você abandonasse

que andam chamando de nk

uma criança, se encontrasse com ela 20 anos depois e quisesse que

consciente. Para ele, uma coisa

ela falasse bonito, que ela soubesse se vestir, que tivesse educação...

é entender que os meninos que

Queria eu que o nk tivesse responsabilidade social em suas letras!

escrevem nk reproduzem

Mas é uma covardia cobrar isso do nk. Faz mais sentido cobrar

uma realidade social (e não são

responsabilidade dos ritmos que se dizem 'universitários'. Por que o

“culpados" pelo consumismo ou

sertanejo universitário não fala sobre os problemas do Brasil?". (MC Leonardo)

por uma visão preconceituosa

56

57

Montanha lembrou ainda que, além do futebol, o funk é um dos caminhos que possibilitam a alg uns desses jovens que “cheguem lá", ganhem dinheiro e reconhecimento.


da mulher). Mas, na visão de Garden, as músicas deveriam contestar esse tipo de valor, e não reproduzi-lo ou estimulá-lo. Ele acha ndamental que o nk tenha uma preocupação social e transmita isso em suas letras. Para ele, o papel do artista é ajudar a mudar o que está ruim na realidade, e não reforçar essas coisas.

MC

GARDEN

"O funk está em todo lugar hoje em dia. Crianças de 10 anos escutam. E hoje a rede social aproxima muito o cantor de quem escuta. Então, precisa ter responsabilidade, porque quando você tem 1 milhão de views no Youtube, você acaba tendo uma influência sobre essas pessoas. Eu posto uma coisa e a rapaziada é influenciada, direta ou indiretamente, por aquilo.”

QUESTÃO COMPLICADA, NÉ? E VOCÊ, O QUE PENSA DE TUDO ISSO?

Sobre o consumismo, ele diz: “Antigamente o moleque ia para o baile de chinelo e era feliz. Hoje em dia, não. Ele tem que ter um tênis de 900 reais para se socializar e ser aceito. E isso acaba prejudicando, porque nem todo mundo tem a condição de pagar por isso... E o pior: às vezes a maneira mais fácil que o moleque encontra para ter o tênis e ser aceito é ir para o crime. Então a coisa da ostentação traz um discurso que pode ser prejudicial". (MC Garden) Como vemos, tanto as tentativas de criminalização e de repressão do nk pelo Estado quanto a sua discriminação pela sociedade são assuntos bem complicados. São questões que expõem os conflitos existentes entre os diferentes grupos sociais – cada um com sua reivindicação específica – e que esbarram em alguns dos piores problemas da nossa sociedade, como a exclusão social e o preconceito. 58

59


O LUGAR DA MULHER "É difícil enquadrar o discurso da mulher no funk como uma ruptura total com os padrões machistas, assim como também é difícil classificá-lo como uma total reprodução desses padrões." (Carla Mattos)

61


Há um último assunto controverso do nk pelo qual temos que passar: a imagem da mulher e o lugar que ela ocupa. A mulher tem um espaço considerável na cena nk pelo menos desde os anos 2000. Carla dos Santos Mattos, em entrevista , contou que até os anos 1990, o ambiente do nk era bastante pautado pelos homens. Nos bailes de corredor do Rio de Janeiro, por exemplo, as mulheres nem desciam para a pista em que os homens praticavam (ou encenavam) as brigas: elas ficavam assistindo de cima, e no máximo tinham o papel de provocar alguns conflitos, como também relatou o pesquisador Danilo Cymrot em entrevista.

P

ouco a pouco, a mulher foi conquistando um espaço no palco, primeiro como dançarina,

Veja trecho da entrevista na página 91

na época em que predominavam os bailes de

dança e as coreografias. A emergência das mulheres como cantoras –

Carla observa uma coisa muito interessante: as narrativas da disputa e do duelo

isto é, o momento em que elas ganham voz – acontece, segundo esses

continuam presentes nessa nova configuração. Mas o que acontece aqui não é

pesquisadores, quando o nk começa a conquistar um mercado mais

mais o duelo físico, como acontecia nos bailes de corredor do morro, e sim um

amplo, a partir do surgimento de outros temas nas músicas. Os temas

embate discursivo (em palavras), que ganha forma principalmente na “guerra

relacionados à violência e ao crime, apesar de continuarem a ser cantados

dos sexos" do nk sexualizado. Esse espírito de duelo também aparece nas

nos morros e nos subúrbios, não conquistavam o grande mercado; não

letras em que há disputa entre pessoas do mesmo sexo – por exemplo, entre

tinham inserção nas mídias e nem em grande parte dos bailes do asfalto.

a mulher fiel e a amante, ou entre a mulher bem resolvida e a “recalcada".

O nk começa a fazer sucesso de forma mais massiva justamente

É nesse cenário que surgem cantoras como Tati Quebra-Barraco e Deise Tigrona,

quando as letras das canções se tornam abertamente sexualizadas e

que vão, em alguma medida, dar uma resposta a um discurso machista: elas vão

surge um novo estilo que passou a ser chamado de “ nk putaria". E é

reivindicar sua liberdade sexual, o direito ao prazer e o direito a fazer o que quiserem

aí que a mulher consolida sua inserção, principalmente como cantora.

com seus corpos. Elas também querem o direito de usar o sexo como diversão.

62

63


LIBERTAÇÃO?

?

FEMINISMO

REPRODUÇÃO DA LÓGICA MACHISTA? 64

Mas o que essa questão tem de polêmica? Bom, esse ganho de projeção da mulher, pelo caminho do nk erótico, parece ter sido um movimento que surgiu como resposta a uma dinâmica do mercado. Mas, depois, isto passou a ser interpretado por alguns pesquisadores e militantes numa chave política.

M

uita gente começou a ler, nas letras dessas nkeiras, um discurso feminista, relacionado à identidade de gênero. Elas estariam

tomando voz e gritando contra os padrões machistas de sexualidade, afirmando seu direito ao prazer e à diversão – direitos que, até então,

eram privilégios dos homens. Algumas pessoas chegaram a dizer que as nkeiras estavam protagonizando um “novo feminismo". Do outro lado, outras pessoas questionam: por que a mulher só pode ter poder nesse lugar da sexualidade? Ela não pode falar de outro assunto que não o sexo? Ela faria o mesmo sucesso se interpretasse outros papéis? Isso não é uma reprodução de um padrão machista que sempre coloca a mulher como objeto? Como dá para perceber, os dois lados da conversa têm sua dose de razão.

→ NEM LÁ NEM CÁ

Carla Mattos propõe que o melhor é tentar entender essas relações e hierarquias de gênero sempre no lugar das ambivalências. É difícil enquadrar o discurso da mulher no nk como uma ruptura total com os padrões machistas, assim como também é difícil classificá-lo como uma total reprodução desses padrões. O que ela vê, na prática, são algumas rupturas e algumas continuidades, que se combinam muitas vezes de forma incoerente. No debate O Funk e a Mulher, Mariana Gomes seguiu um raciocínio semelhante, defendendo que o melhor é evitar interpretações extremas. Não é o caso de dizer que o nk é um novo feminismo (um 65


“feminismo sem cartilha"), sobretudo porque nem todas as nkeiras

adversidade, do perigo. A mulher tem, tradicionalmente, uma dificuldade

têm um compromisso intencional com a questão do gênero; muitas

de se colocar como protagonista nos espaços públicos. Entendendo esse

nem sequer pensam nesse debate, preocupam-se somente em fazer

contexto, pode-se afirmar que, ao tomar o microfone no palco do nk, a

sua música e seu trabalho. Mas também é preciso reconhecer que o

mulher dá um passo significativo para a afirmação de seu protagonismo.

discurso da mulher no nk tem pontos de contato com os movimentos feministas mais recentes, como a reivindicação da liberdade sexual e

Apesar disso, o espaço em que a mulher pode protagonizar ainda é restrito,

o combate ao aprisionamento dos padrões de beleza convencionais.

pois está diretamente relacionado à sexualidade. Carla Mattos lembra que a mulher deixa de ser somente um “objeto de desejo" e passa a ser também um “ser desejante"; mas, mesmo assim, ela parece só ter espaço quando o

O M S I N O G A T PRO PROTAGONISMO PROTAGONISMO

S

ES ES E P PA SP A ÇO A ÇO S ÇO S

DE

assunto é sexo. Isto quer dizer que elas ganham voz, mas não conseguem

“No começo as mulheres eram raras no papel de MC. Elas começaram a buscar o protagonismo no funk porque não tinham um papel de destaque na favela. Foi uma forma de exercitarem uma identidade. E elas vão conseguir destaque no funk putaria – é onde elas têm mais espaço". (Mariana Gomes) De acordo com Mariana Gomes e Carla Mattos, os posicionamentos e performances de gênero não podem ser compreendidos de modo

romper ainda com uma representação masculinizada do feminino. De qualquer forma, Mariana lembra que isso não acontece somente com o nk: o machismo predomina em nossa sociedade inteira, e as possibilidades de acesso da mulher são, de forma geral, bastante limitadas.

O

funk reflete uma cultura que é maior que o próprio funk." (Danilo Cymrot)

absoluto, mas devem ser entendidos em seus contextos específicos. Mariana conta o exemplo da MC Dandara, uma cantora com um amplo Para Mariana, a rua e a cultura da rua nunca foram espaços da mulher,

histórico de militância na favela, que fazia música de protesto, mas

principalmente nas periferias, já que a rua sempre foi associada ao espaço da

só conseguiu ganhar projeção quando começou a fazer nk putaria.

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67


Mesmo com essas limitações, é muito interessante pensar que esse estilo de nk abriu um espaço que até então era praticamente inexistente para a mulher. Ele abriu a porta para que muitas mulheres que surgiram depois começassem a cantar outras vertentes, como a ostentação, o nk melody, ou um nk mais pop. MC Juliana, que participou do debate O nk e a mulher, mesmo tendo só 17 anos, já considera o mercado do nk como uma possibilidade real. E talvez este espaço não estivesse aberto se as primeiras mulheres, lá atrás, não tivessem “chutado a porta” da maneira que foi possível naquele momento.

D

a mesma forma que é importante entender

o nk no seu contexto social específico, é

importante entendê-lo também a partir

de seus receptores. Danilo Cymrot, em entrevista,

lembrou que um mesmo discurso pode fazer sentidos diferentes de acordo com o público receptor. Ele exemplificou comentando a apropriação das músicas de cantoras como Valesca Popozuda e Anitta pelo público gay. Para Danilo, as músicas que falam de superação e de poder (em que as cantoras sempre se apresentam como poderosas, como pessoas que dão a volta por cima) soam bastante políticas quando são cantadas por um público que, historicamente, tem sido vítima de preconceito, de discriminação e de extermínio. 68

Deboche e personagens Danilo Cymrot também lembrou que a relação do funk com um suposto "feminismo" e com a política deve ser pensada levando em consideração alguns fatores. Em primeiro lugar, como também apontou Carla Mattos, deve-se levar em conta a própria narrativa do funk, que é uma narrativa do deboche, do “tirar onda" (bem diferente da estética mais séria e claramente militante do hip hop, por exemplo). Mas, segundo eles, o uso do deboche não impede o funk de colocar muitos assuntos sérios na fogueira, mesmo que em tom de brincadeira. Outro ponto que Danilo colocou é que algumas MCs que fazem sucesso com o funk putaria nem sempre defendem, na esfera pessoal, o discurso que estão cantando. Tanto que é comum, segundo ele, ver um mesmo MC cantando um funk proibidão e uma música evangélica, o que parece maluco; quer dizer, não existe, obrigatoriamente, uma coerência. “O fato de uma pessoa cantar uma coisa que tem envolvimento com o crime não necessariamente significa que ela é criminosa; ela pode cantar isso porque vende ou porque dá status. A mesma coisa vale no terreno da sexualidade. Muitas das cantoras que cantam putaria são extremamente conservadoras – às vezes aquilo é só imagem. Algumas cantoras, inclusive, já se declararam evangélicas". (Danilo Cymrot) Da mesma forma como aconteceu com MC Dandara, segundo Danilo, Deise Tigrona diz que entrou no funk putaria por motivos socioeconômicos, porque precisava sobreviver. “Às vezes, não por livre e espontânea vontade, mas por pressões econômicas, os mcs são aprisionados em determinados temas. E olha que curioso: a mesma sociedade que, na forma de mercado, incentiva a mc a cantar putaria, depois a condena moralmente". (Danilo Cymrot)

69


Ruptura com padrões de beleza Ainda que se possa questionar se os padrões e modelos femininos, no nk, não seguem uma representação construída pelo ponto de vista masculino - afinal, trata-se de um corpo que, praticamente, só existe em nção da sexualidade –, é preciso dar crédito ao nk por ter possibilitado a emergência de alguns padrões de beleza que são diferentes dos que aparecem tipicamente nas mídias. Como disse Mariana Gomes, no debate O nk e a mulher:

“É uma afronta para a burg uesia uma pessoa como Tati Quebra-Barraco, baixa e fora do peso padrão, ter conseg uido fazer tanto sucesso." (Mariana Gomes)

Bom, depois de tudo isso, dá para dizer que o nk abre, sim, alguns espaços novos para a mulher, mas não resolve todos os problemas da hierarquia de gênero. Ele continua operando com muitas representações machistas, e o espaço de protagonismo da mulher, embora seja maior do que é em outras linguagens, ainda tem seus limites. Mas, como bem apontou Carla Mattos, “as pessoas trabalham com os recursos (estereótipos, padrões, modelos) que elas têm disponíveis". Os discursos precisam ser entendidos em seus contextos específicos, com os receptores específicos e a partir das narrativas que também são específicas do nk. E também é preciso lembrar que, da mesma forma como o lugar da

MARIANA

GOMES

Mariana também enxerga no

mulher no nk mudou muito nas últimas décadas, a tendência é que ele

nk um movimento de desafio

continue mudando. Nos bailes de corredor, elas eram apenas coadjuvantes;

aos padrões de “certo e errado",

aos poucos passaram a ocupar o palco como dançarinas, e depois

ditados pelos homens. Ela observa

ganharam voz. Ganharam espaço e poder no tema “sexo", mas isso não

que em algumas vertentes do

significa que elas ficarão limitadas a esse tema para sempre – tanto que

nk – como na dança do passinho

já é possível ver mulheres cantando outras vertentes de nk hoje.

–, o homem passa a dançar, o que rompe com uma representação mais típica do estereótipo masculino como um corpo duro, sisudo. 70

A

s mudanças são graduais. Se as mulheres

vão assumir discursos mais politizados ou contestadores, vai depender da articulação e do desejo das nkeiras! 71


RECONHE _ CIMENTO E POLÍTICAS CULTURAIS “O funk é o desejo de afirmação de um território e é um direito cultural. Reivindicar a manifestação da diversidade cultural é legítimo. A política pública é a melhor forma de o Estado se relacionar com as expressões culturais da cidade.” (Juca Ferreira)

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73


C

omo vimos, a discriminação e a criminalização não são

A nosso ver, uma política cultural envolvendo o nk, seja

os melhores caminhos para resolver os problemas do

destinada a promover a cidadania cultural ou a linguagem em

nk. Em vez de atuar pela via da repressão, por onde o

si, precisaria estar ancorada em pelo menos três ideias:

Estado poderia ir? Se nk é cultura, as políticas públicas de cultura podem ser uma boa arena de ação. Políticas culturais para o nk poderiam ser pensadas pelo menos a partir de duas entradas. De um lado, tendo em vista a cidadania cultural, podem ser pensados programas e ações para garantir do direito de existência do nk e seu reconhecimento como

1

DIREITOS E CIDADANIA CULT URAL

uma das culturas que formam o mosaico a que chamamos “culturas jovens”, ou o outro mosaico a que chamamos “culturas periféricas”. Isso significaria entender o nk não somente como um gênero musical e de dança, mas como uma manifestação que envolve códigos, valores e um modo de vida específico. E de outro lado, poderiam ser pensados programas e ações destinados a incentivar e aprimorar o nk como linguagem, ou seja, apoiar a produção em si, tanto da música como da dança, por meio de diversas formas de apoio aos produtores dessas linguagens (por exemplo, transferência de recursos para a produção ou a circulação, formação dos artistas, entre outras ações).

1

2

IDENT IDADE JUVENIL

3TERRITÓRIO

IDENTIDADE, DIREITOS CULTURAIS E CIDADANIA CULTURAL

Um primeiro passo seria compreender o nk não somente como uma linguagem ou um estilo musical, mas como uma cultura

Algo já deve estar bastante claro nesse ponto da leitura: é impossível

específica, que envolve representações, códigos, práticas e valores

pensar uma política para o nk sem esbarrar em assuntos mais amplos,

próprios (modos de falar, de vestir, de pensar, entre outros).

como a ausência do Estado, a repressão policial, a criminalização e o preconceito, já discutidos aqui. Justamente por conta disso, a tarefa

Conceber o nk como cultura e como identidade significa também

de pensar políticas culturais envolvendo o nk se torna mais difícil.

pensá-lo do ponto de vista dos direitos e da cidadania cultural.

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A

As reflexões sobre cultura e políticas culturais no mundo

As discussões apresentadas nos capítulos

avançaram muito nas últimas décadas, e hoje se aceita a ideia

anteriores mostram que as polêmicas vinculadas

de que toda pessoa tem o direito de viver e ter respeitada a sua

ao nk ultrapassam o escopo de um debate

identidade cultural. Isso significa ter respeitada sua liberdade

sobre uma linguagem musical. Elas envolvem

de pensamento, seus modos de expressão, suas religiões e

temas como preconceito, acesso, conflitos de

opiniões (desde que não representem ameaça aos direitos dos

classe, usos da cidade etc. É central, então, que as políticas culturais compreendam que antes de

as pessoas devem ter acesso ao maior número possível de práticas e

ser uma linguagem, o nk é uma cultura. Analisar

expressões culturais, já que a diversidade em si é vista como patrimônio.

o nk somente nos seus atributos de linguagem (os aspectos musicais ou da dança, por exemplo) é um beco sem saída: se não se compreende o

conjunto amplo, diverso e não hierárquico de manifestações, e os indivíduos e

lugar do qual os atores sociais estão falando,

grupos possuem o direito de viver as identidades culturais que escolherem.

suas experiências e vivências na cidade e na sociedade, corre-se o risco de cair em julgamentos

Apesar de a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 já fazer menção à ideia de direito cultural, a emergência desse termo está bastante ligada ao contexto da chamada globalização: o en aquecimento de onteiras e o medo de uma suposta “homogeneização" cultural fizeram com que muitas culturas locais assumissem discursos mais radicais, na tentativa de se proteger. O reconhecimento da existência de diversas culturas e, ao mesmo tempo, a garantia do direito a viver cada uma delas surgem como respostas a essas tensões. Quando se pensa a cultura como direito, ela imediatamente se vincula também à dimensão da cidadania. Da mesma forma que ao cidadão são assegurados direitos humanos, políticos e sociais, a eles também passa a ser garantida uma cidadania

CONS

TITUIÇÃO artigo 215↓

outros). Também se assume, num cenário de democracia cultural, que

Como apresentamos na introdução desta conversa, a cultura é então um

NA

2

e até em preconceitos em relação à linguagem.

Na nossa Constituição Federal de 1988, os direitos culturais também já aparecem enquadrados como direitos fundamentais, ainda que no Brasil esse tema só tenha ganhado projeção alguns anos mais tarde: “O Estado garantirá a todos o pleno

exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. […]"

JOVEM COMO SUJEITO DE DIREITOS

cultural, que engloba o direito a viver culturas específicas, a usu uir da produção

Uma política cultural para o nk também deve partir do entendimento de que os jovens são

cultural, a produzir cultura, a ter uma formação cultural, entre outros. Aqui em

sujeitos de direitos, utilizando os termos de Gabriel Medina na discussão sobre A criminalização do

São Paulo, o tema da cidadania cultural ganhou bastante projeção, na esfera

nk, que fez parte do Ciclo de Debates sobre o Funk. Segundo Gabriel, a juventude precisa deixar de

pública, na gestão da Secretária Marilena Chauí (1989-1992), e nos últimos

ser vista somente como uma “etapa de passagem” para a vida adulta. Os jovens são sujeitos, ou

anos voltou a ser um assunto bastante central na agenda de política cultural.

seja, possuem uma identidade própria e precisam ter seus direitos e seu protagonismo garantidos.

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77


E

isso também precisa valer para os jovens de periferias, claro. Como todos os outros, eles também desejam se encontrar e se reunir fora de casa; afinal, estão justamente no momento de se diferenciar da esfera da família e firmar suas identidades próprias.

“Hoje entendemos o jovem como sujeito de direitos. E o direito à cultura, assim como o direito ao território, sempre foram

demandas muito fortes da juventude". (Gabriel Medina) Gabriel Medina lembrou também, no debate, que muitas vezes não é concedido aos jovens das periferias o direito à experimentação. Ele observou que a sociedade costuma aceitar com muito mais naturalidade as “falhas"

Já que são em espaços como os da cultura nk que os jovens experimentam a liberdade e a autonomia, eles não poderiam ser trabalhados como espaços de comunicação e criação de vínculos com esses jovens? Não seria possível trocar o enfoque da repressão pelos enfoques da reflexão e da mediação? Uma política cultural poderia, nesse sentido, usar os espaços do nk para pensar ações de formação e estímulo aos jovens, aproveitando o potencial que essa manifestação tem para se comunicar com a juventude. Políticas e ações nesse sentido, provavelmente, teriam impacto nas próprias mensagens das músicas, já que ampliariam os repertórios culturais desses jovens. Como bem lembrou o produtor cultural Thelles Henrique, no debate Uma política cultural para o nk:

dos jovens de classes mais altas (relacionadas, quase sempre, à esfera da sexualidade ou das drogas/álcool) do que as da juventude pobre e periférica. A pesquisadora Livia de Tommasi, em entrevista, argumentou em sentido parecido. Para ela, os bailes e encontros de nk representam um espaço de liberdade e autonomia para os jovens, além de um contexto de festa e lazer.

→ “Pensando sobretudo nas favelas, em que você tem

uma comunidade que é pobre em termos de acesso a lazer

e cultura, os bailes representam um espaço que eles têm de fato. E é um espaço de liberdade muito grande, porque, inclusive, é lá que eles vão experimentar as formas de viver a sexualidade, de assumir a própria sexualidade, que eu acho que é uma coisa ndamental". (Livia de Tommasi)

78

“O funk

ainda é mantido pelo poder paralelo. Então é compreensível que esses funks exaltem o tráfico; são eles que patrocinam os artistas da favela. O que eles vão exaltar? A mão que te abandona ou a mão que te alimenta? Partindo daí, é o momento ideal para o poder público chegar nessas comunidades, legitimar o funk e lhe atribuir o status de manifestação cultural. Assim, quem sabe, as letras das músicas não precisem mais exaltar a mão que atualmente os alimenta." (Thelles Henrique) 79


3

TERRITÓRIO

muito também a discussão sobre o fomento

Em terceiro lugar, pensar uma política cultural para o nk também

a uma linguagem musical específica.

pressupõe pensar o território. Isto envolve, dentre outras coisas, ter em mente o processo de formação das periferias e a questão da distribuição

A mediação e a escuta parecem ser

dos equipamentos e espaços culturais na cidade, já discutida anteriormente.

caminhos centrais para a solução de problemas referentes à legitimação do

O nk e outras expressões culturais das periferias não encontram

nk e aos espaços (não só físicos como

espaços adequados para desenvolverem suas práticas. Uma política de

também simbólicos) a serem destinados

descentralização de equipamentos públicos e de ações voltadas para os

a esta expressão. Não há receita única

extremos da cidade seria um grande estímulo para todas as expressões

para fazer uma boa política cultural

culturais que ecoam das periferias, inclusive o nk. Talvez, se existisse

para o nk ou para outras expressões

uma política de Estado mais eficiente nas garantias de direitos e de espaços

culturais de identidades. Mas o caminho

públicos de formação e uição cultural para os que estão às margens,

certamente passa pelo conhecimento

assuntos como os pancadões e rolezinhos gerariam menos polêmica.

dos interlocutores e de seu contexto,

afirmaram Chico Macena A REDE DE CEUs, por exemplo, poderia ser um equipamento mais aberto ao funk, como os preconceitos e o com e Thelles Henrique – mas, para isso, segundo os mesmos, seria necessário romper com os grupos de funk. desconhecimento dos próprios gestores e educadores, que muitas vezes não dialogam

e por muito diálogo e mediação. “Ainda não compreendemos os códigos juvenis e suas expressões.

É preciso, principalmente, pensar em políticas e ações culturais

Se não soubermos dialogar com os

territorializadas, que sejam desenvolvidas nos contextos específicos

jovens, faremos políticas de Estado

de cada região. Isto porque as próprias periferias da cidade são muito

equivocadas". (Chico Macena)

diferentes entre si, assim como os grupos sociais que as habitam. Como bem colocou o pesquisador Juarez Dayrell em entrevista , não podemos

A fala destacada ao lado, do ex-Secretário

tratar nem a juventude e nem a periferia como conceitos coerentes e

de Cultura Juca Ferreira, também mostra

abstratos. Eles envolvem uma enorme pluralidade de atores sociais, e

a necessidade dos próprios nkeiros

conhecê-los é ndamental para que se estabeleça qualquer diálogo.

e de jovens que curtem esta expressão se organizarem e reivindicarem seus

Veja trecho da entrevista na página 95

Pensar uma política pública para o nk, então, ultrapassa em muito a

direitos de expressão e identidade.

discussão sobre a permissão ou a proibição dos encontros de nk no espaço

O rap, o samba e tantas outras

público – ainda que este seja um assunto bastante sensível. Ultrapassa em

expressões já en entaram essa luta.

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“Precisamos entender quais são as demandas dos funkeiros, e aí o poder público poderá pensar ações e políticas". (Juca Ferreira)


FUNK! 82

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Criminalização do funk: aspectos jurídicos conversa com

Danilo Cymrot* *Criminólogo, doutor e mestre pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Universidade de São Paulo –USP. Pesquisa sobre criminalização de manifestações culturais, populismo penal e subcultura policial. Danilo é autor da dissertação de mestrado A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica.

o que é criminalização do funk? do que a gente está falando quando usamos esse termo? Quando eu falo em criminalização do funk, a primeira pergunta que surge é: funk é crime? Existe tipo penal que criminaliza o funk? Não, não existe. Quando Foucault fala da ascensão da sociedade disciplinar, uma das coisas que ele descreve é a infrapenalidade. Ele fala que, por um lado, existe uma lei que foi votada segundo todos os parâmetros

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legais, que transforma algumas condutas em crime; mas, por outro lado, existe uma série de condutas que não são descritas na lei, até porque não dá para serem descritas. Então, existe uma série de normas que são deixadas ao arbítrio da autoridade. Existe o que os juristas chamam de leis penais abertas, ou tipos penais porosos, que legislam sobre alguns crimes, e que protegem bens jurídicos coletivos e difusos – como, por exemplo, paz pública ou ordem pública. Bom, mas o que estes termos significam? Eles são tão abertos que, no fundo, seu significado só vai acabar acontecendo por aquela autoridade que vai decidir se a conduta está - ou não - violando a paz pública. Se você verificar por quais condutas os funkeiros são processados, normalmente é por apologia ao crime, ou outros crimes contra a paz pública ou a ordem pública. É uma área do direito penal estruturalmente seletiva. Isso significa que nem todas as condutas danosas serão igualmente criminalizadas, e nem todas as pessoas que cometem essas condutas serão de fato punidas. Por exemplo, eu posso consumir drogas em um momento de lazer, mas, por ocupar determinada posição social, eu não vou ser criminalizado. dentre todas as pessoas que cometem condutas que podem ser enquadradas pela lei do crime, quais são as pessoas que, concretamente, serão processadas e punidas?


Danilo Cymrot

Criminalização do funk: aspectos jurídicos ser definida e criada pelo legislativo.

Por razões históricas, a juventude negra e pobre tende a ser criminalizada. Este grupo é alvo principal das revistas policiais. Então se a polícia tiver que escolher entre um grupo ou outro para procurar drogas, vai fazer isto com os jovens mais pobres. E quando digo que o funk é criminalizado, é porque já existe uma associação do funk a uma parcela da população que é vista como “perigosa”. Então, só o fato dessas pessoas circularem já é suficiente para serem alvos de revista e de repressão policial.

Por outro lado, existe também o direito administrativo, que é o direito construído não só pelo legislativo, mas também pelo executivo. Ele existe para que o poder executivo possa legislar, por meio de decretos e regulamentações. Muitas vezes a lei é muito aberta e deixa uma margem grande para ser regulamentada pelo poder executivo. Por exemplo, o poder legislativo diz que é crime perturbar a paz pública, mas quem vai definir o que exatamente perturba é o poder executivo municipal, via decretos (por exemplo, o de regulação de decibéis para controle de ruído).

Vocês viram o que está acontecendo agora com os rolezinhos? O tratamento penal é isso: você pega um fenômeno que poderia ser encarado como uma manifestação natural, lança sobre ele uma óptica criminalizante e enquadra aquilo dentro de uma conduta penal – você chama de arrastão, por exemplo; ou diz que estão cantando músicas que fazem apologia ao crime.

Veja o que aconteceu no Rio de Janeiro. O pior entrave para a realização dos bailes foi criado pela Secretaria de Segurança Pública – ou seja, pelo executivo – com uma resolução que define os requisitos burocráticos a serem cumpridos para a realização do baile funk, como um certo número de vigilantes, disponibilidade de ambulância, entre muitos outros. E a Polícia Militar acaba sendo o órgão que, na prática, autoriza ou não. Então, o nível de arbitrariedade é muito grande. E aí vem aquela velha história de que o funk, em vez de ser um assunto para a Secretaria de Cultura, transformou-se em assunto para a Secretaria de Segurança Pública.

então, existem instrumentos legais que viabilizam o exercício desta arbitrariedade? O que acontece é o seguinte: existe o direito penal, estabelecido pelo poder legislativo, que dá uma série de garantias e tipifica condutas como crime. Qual é a raiz política e filosófica disso? O poder legistaltivo espelha a sociedade civil como um todo. Já o poder executivo é eleito pela maioria. Então, por razões políticas, a lei penal só pode

A criminalização do funk não ocorre

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propriamente pelas leis penais, mas por meio de normas administrativas. Essa prática de se utilizar cada vez mais do direito administrativo para criminalizar grupos sociais é uma tendência que acontece não só no Brasil. quais são os principais marcos que estão relacionados a esse enquadramento penal do funk? Isto se iniciou no Rio de Janeiro. O processo de criminalização começou em outubro de 1992, quando ocorreu um suposto arrastão na praia de Ipanema. O Brizola era o governador, quer dizer, um governador de esquerda, inimigo histórico não só da ditadura civil-militar como da Rede Globo. Isto aconteceu às vésperas do segundo turno da eleição em que a Benedita da Silva tinha chances reais de vencer; quer dizer, uma candidata petista, negra, favelada, mulher, contra o César Maia, que era o candidato da direita, branco, representando a ordem. Naquele dia, duas galeras rivais, a do Vigário Geral e a da Parada de Lucas (que eram comunidades vizinhas), se encontraram na praia. Assim como a cidade inteira, a praia era virtualmente dividida em pedaços, em que algumas pessoas podiam entrar e outras não. Circular na cidade era uma atividade arriscada para membros de galeras, e ao mesmo tempo perigosa e excitante. Então, nesse dia, um membro de uma galera acabou pisando no território da outra e eles começaram a brigar. O que aconteceu foi um confronto de galeras,

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um misto de briga e brincadeira, como as que aconteciam em bailes de corredor. O ocorrido gerou medo nas pessoas, que começaram a correr. A polícia chegou e os jovens que estavam lá fugiram. O fato é que houve uma edição maliciosa da mídia, construindo aquilo como um arrastão. E a culpa foi jogada no colo dos funkeiros: como pega muito mal você culpar os “negros jovens”, você usa o termo “funkeiro”. O funk sempre acaba servindo como um pretexto, mascarando um tipo de preconceito que vem desde a abolição da escravatura. Desde então, funkeiro virou sinônimo de pivete, e aí começa o processo de criminalização do funk no Rio de Janeiro. Este fato, somado a reclamações dos moradores da Zona Sul – que se incomodavam com o barulho dos bailes das favelas e com o trânsito, que ficava caótico –, gerou uma demanda de proibição dos bailes. E foi o que aconteceu. Houve uma CPI municipal, que não conseguiu provar a associação do funk com o tráfico de drogas, mas foi exitosa em fechar os bailes de comunidades. Eles mandavam a polícia, perseguiam os donos das equipes de som etc. Nessa mesma época, em 1995, alguns mcs começaram a ser intimados a depor na delegacia, acusados de fazer músicas de apologia ao crime. Bom, proibidos os bailes nas favelas, os mesmos migraram para o asfalto ou ficaram ainda mais no subúrbio.


Danilo Cymrot

Criminalização do funk: aspectos jurídicos de vereadores oriundos dos quadros da Polícia Militar, resolveu proibir os pancadões. É importante notar que o primeiro projeto de lei apresentado pelo vereador Conte Lopes para acabar com os pancadões tem os mesmos argumentos utilizados há tempos no Rio de Janeiro: a proibição alega que nestes espaços ocorrem consumo de drogas, obstrução da circulação e perturbação da ordem nas ruas, barulho ensurdecedor, entre outros aspectos.

Depois surgiram normas que colocavam uma série de requisitos para a realização dos bailes: autorização da Polícia Militar, instalação de câmeras de segurança, ambulância, banheiros químicos... Entre 2000 e 2009, surgiram várias leis, ora mais repressoras, ora mais progressistas, para regular a existência dos eventos de funk. Em 2008, com o contexto das upps, os bailes eram encarados como resquícios dos traficantes, porque eram festas financiadas ou frequentadas por eles. Até hoje existe um comandante que acaba se comportando como um xerife da comunidade. Ele bota toque de recolher, e toda vez que vai haver algum evento ou festa precisa de autorização dele etc.

Eu gostaria de chamar a atenção para a forma como o conflito está sendo mediado; afinal, existem diversas formas de lidar com ele. No entanto, precisamos, primeiro, entender porque ele existe. Por um lado, há jovens que querem ficar no meio da rua ouvindo som no último volume, com o portamalas do carro aberto. Por outro lado, existem os moradores, que também têm seus direitos e devem ser respeitados, pois querem dormir com tranquilidade e conseguir transitar na rua, e isso muitas vezes não acontece. O fato é que esse conflito está sendo conduzido pela via da discriminação, repressão e criminalização. O Estado está fazendo um tratamento meramente penal da questão, em vez de se colocar em uma postura de mediador e árbitro.

Parece até uma coisa meio inquisitorial; as pessoas têm medo do funk como do diabo. Se começa a tocar funk, a polícia chega e o comandante fala que não pode, é totalmente arbitrário. Está proibido porque está proibido, acabou. “Funk é bagunça, eu não gosto de funk” e sei lá o que. Juridicamente, como eles justificam isso? Por meio da imposição daqueles requisitos burocráticos que, na prática, inviabilizam os bailes. no caso de são paulo, como você vê esse enquadramento penal do funk? Na cidade de São Paulo, eu vejo uma repetição daquilo que aconteceu no Rio de Janeiro na década de 1990. O poder legislativo municipal, na figura

O pl 2/2013, que proíbe encontros nos espaços públicos e que cita diretamente os bailes funk, diz respeito

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ao mesmo processo que já aconteceu no Rio de Janeiro. No final das contas, são medidas meramente simbólicas e que sinalizam para um eleitorado conservador. Ou seja, enquanto não forem oferecidas alternativas para que o conflito seja prevenido ou minimizado, os problemas continuarão acontecendo. como você acha que estes conflitos poderiam ser minimizados? Uma das soluções passa pelo Estado, que seria oferecer um espaço adequado para estes encontros. No entanto, eu não acho que isto resolva o problema, que não é só falta de espaço adequado, mas envolve também uma questão subcultural, identitária. Muitos jovens não acham graça em ficar confinados em um espaço, ainda mais com policiais fazendo a segurança. Por exemplo, eu estive em um baile num morro pacificado pela upp (Unidade de Polícia Pacificadora) e estava vazio. Porque é muito desagradável quando você está dançando no baile e, de repente, passam dois policiais militares encarando. Ninguém gosta. Pensar em espaços adequados para o funk também é complexo, e fico um pouco cético quanto a algumas condutas para resolver a questão. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes estava querendo fazer a Cidade do Funk, um “funkódromo”, nos moldes do “sambódromo”. Eu acho que confinar o funk em um único espaço é uma conduta fadada ao fracasso; afinal, o grande prazer das

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galeras é transitar, circular, é dar o rolê. Além de espaços adequados para curtir o funk, o Estado tem que oferecer transporte público gratuito e de madrugada, para as pessoas circularem pela cidade. Se ele garantir isso, e as pessoas resolverem abrir o porta-malas dos carros com o som no último volume, aí, eu acho que essas pessoas poderiam até ser reprimidas, mas não no sentido criminal. Falo de atos administrativos, como, por exemplo, levar uma multa do condomínio. O papel do Estado é esse, mas ele é omisso, e quando intervém o faz de maneira equivocada, na minha opinião. como você avalia a questão dos rolezinhos? Eu acho engraçado como algumas coisas são computadas como grandes novidades. Claro que a hegemonia desse funk de agora é uma novidade, mas não significa que ele não existia. O rolezinho é um fenômeno contraditório, que se mostra conservador e progressista ao mesmo tempo. E acho que ele reflete demandas de todos os tipos, mas eu centraria principalmente em duas: o acesso a espaços de lazer e a inclusão no mundo do consumo. Os jovens ficam lá no estacionamento do shopping; não vão para comprar, vão simplesmente para zoar, paquerar, brincar, cantar... E o mais importante: é uma atividade feita coletivamente e em espaços que você não precisa pagar para entrar.


Criminalização do funk: aspectos jurídicos Danilo Cymrot Afinal, a “marca” sempre foi sinônimo de distinção social no Brasil. Por esse lado, o rolezinho abraça a ideologia do mercado e do consumo, o que denota um componente extremamente conservador, de quem quer se incluir dentro do sistema para consumir mais e mais, e sem questioná-lo. Então, o rolezinho tem essa coisa contraditória. “

Além disso, tem aquela coisa do tédio: o jovem está lá sem espaço de lazer e expressão, então ele vai procurar locais em que possa se socializar. Dar um rolê é uma possibilidade de interação social, e estes jovens estão ocupando lugares que, historicamente, a periferia nunca ocupou. Então, o fato de eles tomarem esses “espaços de consumo” já é uma coisa muito progressista, se pensarmos no direito à cidade. No entanto, isto não quer dizer que eles serão acolhidos nesses lugares, porque existem as discriminações e demonizações que o conservadorismo das classes dominantes reforça e reproduz, muitas vezes por puro desconhecimento. Afinal, fica fácil generalizar e rotular a periferia como espaço de insegurança e seus jovens como violentos e ameaçadores, quando não se conhece o outro. Então, quando essa massa de jovens ocupa o shopping gritando, cantando e dançando, automaticamente os estereótipos são reificados.

Funk e relações de gênero conversa com

E há um outro lado do debate que vê o funk como algo que está reproduzindo o padrão sexista patriarcal, em que a mulher é tratada como objeto. Esa também é uma posição muito extrema, então fica essa polarização.

*Mestre e doutora em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj), pesquisa sobre sociabilidade, gênero, violência e favelas. Ela também é integrante do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade Urbana (cevis).

Eu entendo que as pessoas trabalham com os recursos que estão disponíveis para elas stereótipos, normatizações, formas. Por exemplo, o grande paradigma, se eu posso dizer, do funk conhecido como "putaria" ainda é um pouco "guerreiro", ainda é um pouco masculino, mesmo quando a mulher assume o protagonismo.

Carla dos Santos Mattos*

Carla é autora da dissertação de mestrado No ritmo neurótico: cultura funk e performances proibidas em contextos de violência no Rio de Janeiro e da tese de doutorado Viver nas margens: gênero, crime e regulação de conflitos.

como você vê o lugar da mulher no funk hoje? que lugar é esse? Eu acho que a gente tem que encarar o lugar da ambivalência. Eu vejo um debate às vezes muito polarizado. De um lado, aqueles que enxergam autonomia, libertação e até feminismo no funk, porque nele a mulher assume um protagonismo como "ser desejante" e constrói uma posição do sujeito. Ou seja, ela sai do lugar da passividade e assume um lugar ativo. Bom, a gente teria que se perguntar: libertação? O que é libertação? A gente

Quanto à inclusão no mundo do consumo, eu vejo os rolezinhos como os filhos bastardos do lulismo. Existe um componente aí que é o fato de ter havido uma ascensão social dentro de um clima de euforia e de prosperidade econômica. Hoje os jovens podem comprar um tênis de marca e parcelar em milhares de prestações, mesmo não tendo saneamento básico em casa.

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est falando do sujeito moral cartesiano? Do feminismo daquele indivíduo moral, como a gente conhece naquela referência acadêmica? Nesse sentido, acho que não é.

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Por outro lado, aquela coisa de dizer “Eu vou ser um ser desejante eu tenho vontades não vou me rebaixar" em a ver com a questão de não ser inerte. Ou seja, está relacionada a essa metáfora de poder, de construção de um sujeito ativo. Mas esse sujeito não necessariamente é emancipador. Ele pode ser um sujeito hierárquico, que degrada o outro. Pode querer fazer uma submissão não-negociada. Então não dá para dizer taxativamente se é feminismo ou não, se é emancipador ou não. Precisa entender o contextos, as trajetórias biográficas das mulheres, os recursos que elas têm disponíveis, para entender a construção desses sujeitos.


Carla dos Santos Mattos

Funk e relações de gênero Nesse sentido, eu acho que o que tem que se olhar são as situações específicas, porque os comportamentos são performances. As representações de gênero não se constroem de modo absoluto, e sim, na maneira de interpelar o outro, de se colocar no discurso, em determinadas situações em que os agentes vão se construindo e se colocando como sujeitos morais. Isso acontece pela forma como eles estabelecem suas classificações nos contextos de ação. Então, o gênero aparece como performativo. como você percebe as relações de poder no funk? As letras do funk fazem uma articulação bem explícita entre poder e sexo, mesmo que algumas representações sejam para firmar hierarquias – tanto do homem quanto da mulher. Por exemplo, o homem que canta, muitas vezes, coloca a mulher em posição degradante, de submissão sexual. Mas o contrário também vale, porque a mulher faz essa inversão também a partir de uma perspectiva hierárquica. Em muitas letras, você vai ouvir a mulher falando em ir para festa zoar e fazer pegação, como uma forma de rivalizar, responder. Existe a referência da disputa, de quem se dá melhor no duelo. Ainda que nem todo duelo sexual seja necessariamente hierárquico, é notável que, aqui, uma linguagem patriarcal que denota relaçõe de poder. Por exemplo, a mulher fiel não vai questionar a infidelidade de seu

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marido, ela vai rivalizar com as amantes. Esse tipo de rivalidade feminina é parte de um jogo de representações que reforça a dominação masculina na sociedade. Mas mesmo com essa mensagem, não podemos negar que é o funk que permite que a voz feminina seja uma fala pública. Esta publicização de um lugar feminino se dá sob a chave do erotismo sexual – um lugar comum. Ou seja, o lugar de sujeição e subalternização é também um lugar de afirmação (mesmo que seja uma afirmação marginal). Então, a fiel não vai questionar algumas coisas, mas vai sempre se afirmar como uma pessoa que “tem moral”, “de mulher trabalhadora”, “que cuida da casa” e se mostra da maneira como vive. Da perspectiva de uma sociedade patriarcal, a fiel faz a sua voz, rompendo com o silenciamento feminino. Já no plano do duelo sexual, a amante fala de um lugar infame, proibido. Portanto, o funk tem esse movimento afirmativo do lugar marginalizado, das performances proibidas. O duelo retórico nas músicas traz a dimensão igualitária do conflito, na medida em que as partes conflitantes estão interligadas e participam do mesmo jogo discursivo. mas você acha que o funk representa alguma mudança nas relações de hierarquia de gênero e protagonismo? Essa questão da hierarquia também envolve ambivalências. Muitas vezes o

que se vê é a mulher assumindo um protagonismo, mesmo que para operar representações que surgem a partir do universo masculino. E às vezes elas fazem inversões; e outras vezes simplesmente reproduzem os padrões. De novo, vamos pensar nas figuras da mulher amante e da mulher fiel, que, em várias músicas, aparecem em confronto. A meu ver, esse duelo expressa uma continuidade do espírito de disputa e valentia dos bailes de corredores dos anos 80 e 90. Essas representações de disputa e valentia são bastante masculinas – ainda que algumas mulheres também brigassem nos bailes de corredor. Depois, com o fechamento dos bailes, a criminalização das galeras e os processos de pacificação (entre aspas, porque me refiro ao fim das brigas entre galeras funk), essas disputas migraram para o âmbito do discurso. Ou seja, passaram a ser expressas nas letras das músicas. E isso se manifesta principalmente numa "guerra dos sexos" (homem versus mulher), mas também entre mulheres, como no exemplo da disputa entre a amante e a fiel. Essa transposição dos duelos físicos para o âmbito do discurso acontece principalmente na virada dos anos 2000, com o surgimento de um funk de mercado, que alguns chamaram de new funk. Que traz essa pacificação entre aspas, porque os duelos continuam nas

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palavras – numa vertente discursiva, agora. Não é mais baseado em você estar lá no baile e ter a chance de entrar no grupo de guerreiros. Mas mesmo no campo discursivo, continua operando uma representação da valentia, do guerreiro, que é masculinizada. Então nesse lugar, por exemplo, a fiel brigará com a amante. Notem que há uma diferença: a fiel não brigará com o marido, porque ele ainda é o lugar da autoridade. Ela mesma reivindicará o lugar patriarcal, que é aquele do núcleo marital. Ou seja, ela tem esse lugar moral muito preservado e ela briga por isso. Então, ainda há uma gramática patriarcal imperante, que vem da representação, ainda muito vigente na periferia, do homem naturalizado como espaço de autoridade. Ele poderá trair por que ele é macho. É uma coisa naturalizada. Só que ao mesmo tempo, há uma novidade: a própria fiel nunca reivindicará que o cara precise protegêla. Ela mesma é um sujeito moral, ela se garante, ela baterá de frente. Ela não se rebaixará, ela tem o valor dela. Portanto, essa questão da hierarquia também envolve ambivalências. Tradicionalmente, é do sujeito homem essa capacidade de ação e poder. Isso tem a ver com um sentido de autonomia no mundo, na rua. Esse discurso guerreiro, de


Funk e relações de gênero poder enfrentar e ter disposição para poder encarar a adversidade, é uma construção da masculinidade. Isso é muito presente no rap, por exemplo. E talvez isso esteja refletindo numa representação de poder e capacidade de ação, na construção da feminilidade, que também passa pela rivalidade e pela disputa. Na esfera erótico-sexual, por exemplo, onde o protagonismo feminino é mais notável hoje (nas rádios, nas músicas e nos bailes), são os homens que começaram a provocar. Eles começam a classificar os corpos, dão nomes de frutas... Isso já no final década de 90. Mas depois, principalmente a partir da Tati Quebra-Barraco, a mulher começa a dar uma resposta em pé de igualdade, mesmo que, muitas vezes, a partir dos parâmetros dos próprios homens. você acha que o funk rompe com a ideia da ditadura da beleza? Eu acho que o funk tem essa construção de uma estética do confronto, até meio carnavalesca. Algo assim: já que a sociedade vai falar que é proibido, que é feio, eu vou assumir isso, afirmar mesmo. É um lugar de ser ofensivo e não ser defensivo. Não é padrão, e daí? Eu estou bem com isso. Eu acho que dentro dessas estéticas populares, é comum esse tipo de construção de inversão e ênfase na dicotomia. Mas eu não falaria propriamente numa

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Carla dos Santos Mattos ruptura com a ditadura da beleza. Ruptura eu acho que é uma palavra um pouco forte. Prefiro trabalhar com a ideia de ambivalência, de novo. Existem sempre continuidades e rupturas. Não é inteiramente isso nem inteiramente aquilo. E eu acho que isso sempre tem que ser pensado dentro de uma situação específica, não de modo absoluto. você acha que tem alguma especificidade na forma como a mulher toma a voz no funk? ela se coloca de um jeito diferente, por exemplo, em outras expressões? Eu acho que no funk as mulheres têm mais margem. Eu acho que elas brincam mais, sacaneiam mais...Porque o funk é irreverente. Tem a linguagem do jocoso muito mais presente. Tem essa estética de trazer por escrito uma coisa que pode ser vivida e ouvida. E essa coisa de sacanear e brincar, eu acho muito positiva. Por exemplo, existe uma música em que a fiel fala “se a gente não quer o marido, a gente troca, troca, troca de marido.” E a amante vai dizer: “Não troca. Não troca de marido, porque senão vai levar paulada, madeirada...". Aí, no baile funk de favela, onde tem o tráfico, eu vi as mulheres cantarem: “A gente troca de bandido.” Isso é tão irreverente, essa coisa de "sacanear" no funk é muito forte! Elas falam no tom da brincadeira, mas estão falando. “

Juventudes e Funk conversa com

Juarez Dayrell* *Cientista social, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (usp) e pós-doutor pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal. Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e é fundador e integrante do Observatório da Juventude da ufmg. Pesquisa sobre educação, cultura, movimentos sociais e ações coletivas, com enfoque na temática juventudes. Juarez é autor do livro A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude.

como você concebe o jovem? É importante partir da ideia do jovem como sujeito de direitos para compreender a juventude. O que significa isso? Significa reconhecer que a juventude é uma fase da vida em que o indivíduo está em formação, construindo sua identidade e suas escolhas. Nesse momento de formação ele precisa de suportes para que possa se constituir de fato como um cidadão. Esses suportes eu chamaria de direitos:

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direito à educação, ao esporte, ao lazer, à cultura, à saúde, à moradia, a uma boa alimentação e outros. Ou seja, direitos que culminarão na produção integral desse sujeito jovem e que possibilitarão a ele constituir-se como um adulto pleno. Quando eu digo "jovem como sujeito de direitos", eu quero enfatizar as especificidades de demandas próprias dessa fase da vida. Por exemplo, a gente tem discutido muito com o mec e secretarias de educação sobre essas especificidades. Afinal, quem frequenta o ensino médio, antes de mais nada, é o jovem. Então, você tem que pensar uma escola para jovens, com uma “pedagogia da juventude”; isso é entender o jovem como um sujeito de direitos. como você vê a relação entre funk e juventude? Para refletir sobre esta relação entre o funk e a juventude, a gente tem que voltar um pouco e pensar as especificidades dessa fase da vida. A primeira questão a se levar em conta atualmente é que não existe uma única categoria de juventude. Se partirmos de uma ideia universal de juventude, corremos o risco de aplicar uma perspectiva homogeneizadora sobre o assunto, o que explica muito pouco sobre o que é ser jovem. Pensar em juventude, hoje, é pensar na diversidade de expressões dos modos de ser jovem. Desta forma, para falarmos de juventude


Juarez Dayrell

Juventudes e Funk é necessário que se pense no plural, em juventudeS, que não são, necessariamente, iguais. Estas diferenças têm uma relação com a origem social e o lugar que os jovens ocupam, dentre outras variáveis. Por exemplo, um jovem de classe média é muito diferente de um jovem das camadas populares. E, mesmo entre os jovens de camadas populares, existem diferenças significativas, e não podemos afirmar que todos os jovens pobres são iguais também. Ao falar nesta relação com o funk nós estaremos falando em parcelas da juventude que não são necessariamente iguais. Dizer que "funk é igual a jovem, favelado e blábláblá" é uma construção reducionista que não explica nada. Atualmente, a juventude vem se mostrando muito diferente de outras gerações, muito em função das transformações mais amplas que a sociedade vem vivendo. Outro ponto importante para refletirmos é própria noção de identidade juvenil. Geralmente se pensa em identidade como se fosse uma essência, algo que já nascesse com o indivíduo, e não como uma construção social. Quando falamos em identidade, sempre estamos pensando em uma auto imagem socialmente construída, que é resultante das experiências sociais que cada um vivencia. Nesse sentido, uma entrada para pensar as identidades das juventudes é pensar na turma de amigos. O grupo tem um papel muito forte na construção da identidade,

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pois ela se constrói na relação com o outro, em um processo coletivo. Assim, a turma tem um peso muito grande e fundamental quando pensamos “o grupo ou o coletivo” no funk. O jovem vai ao funk sempre em turma - em “bonde”, como muitos deles dizem. Estes grupos, muitas vezes, passam a semana inteira aprendendo os passinhos que dançarão lá no domingo. Então, tem essa dimensão do grupo, que é extremamente importante como elemento de consolidação de uma determinada identidade, neste caso a dos jovens funkeiros. A gente tem que levar em conta outra dimensão constitutiva da juventude, que é a dimensão do lazer. A diversão é um ponto muito importante das culturas juvenis; cada vez mais a juventude vem se identificando com a produção simbólica, que se expressa no corpo por meio de piercings, tatuagens ou nas roupas. Cada vez mais o corpo se torna o ícone público com o qual a pessoa se mostra e se identifica. Você olha a pessoa e já sabe a qual estilo ela adere, porque esta adesão se concretiza no corpo, nos adereços etc. Outro aspecto importante para entender estas relações é o papel cada vez mais central da tecnologia na vida dos jovens. Por exemplo, para um mc produzir a sua música, no início dos anos 2000, ele dependia de um estúdio (sempre caseiro) para gravar a base, e isso não custava barato. Ou seja, havia uma série

de dificuldades. Hoje, não: o menino baixa no computador e constrói a sua base musical com a maior facilidade. Esse acesso tecnológico possibilita uma expansão muito maior da própria produção cultural. Um dos laços mais importantes entre o funk e os jovens é a produção cultural. Essa juventude contemporânea não se define apenas pela fruição cultural, mas é também caracterizada pela produção cultural. Boa parte dos jovens se coloca hoje no mundo como produtores culturais, mesmo que não tenham alcance algum no mercado, mesmo que seja por meio de um vídeo produzido em casa e colocado na internet. Então, noYoutube tem milhões de funkeiros que produzem um vídeo de uma base que ele próprio produziu e colocou lá. Essa dimensão da produção simbólica está posta. É nesse ponto da produção simbólica que eu acho que a gente pode situar mais claramente a relação entre o funk e a juventude. De todas as linguagens, a música sempre ocupou um papel central. Ela se torna um elemento fundamental de lazer, de sociabilidade e de agregação. As pessoas se identificam com um determinado estilo musical e, a partir disso, encontram pessoas e frequentam lugares. Então, a música se torna uma expressão de agregação. O funk tem um caráter claramente

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ligado à diversão. E, se a gente pegar a etimologia da palavra diversão, ela tem duas direções: uma é a ideia de divergir, e a outra é a ideia de diversão como tal. Essa dupla dimensão é muito interessante e está presente no funk. Mais do que a letra, o que envolve o jovem no funk é a música e o que ela produz de movimento corporal. No entanto, as letras não deixam de ser divertidas, com um tom extremamente jocoso, com um caráter de gozação ou, como os jovens dizem, zoação. Música e dança estão articuladas muito fortemente. Outra coisa que percebo são os tempos rápidos, característicos das culturas juvenis. O que vale é o hoje, é o presente. Existem poucos clássicos na produção musical do funk. Hoje tem um que está bombando, amanhã será outro e depois de amanhã outro. Tem um ou outro funk que vira clássico e que todos conhecem. O funk tem esse caráter fluído, assim como a própria juventude, em que a vivência do momento presente tem uma força muito grande. Então existem muitas conexões entre a juventude, enquanto fase da vida, e a expressão cultural do funk; ambas têm uma relação muito próxima. como você vê a questão da sexualidade no funk? O que você está perguntando me remete a outra característica da juventude contemporânea, que é a lógica que


Juarez Dayrell

Juventudes e Funk alguns atores chamam de ioiô – vai e volta: a experimentação como condição juvenil, como modo de vida juvenil. Isso não é de agora; os jovens, a partir dos anos 1950, foram assumindo uma maior autonomia em relação à família. Isso implica uma maior busca de autoconhecimento que vai se dar, necessariamente, na experimentação – você vai se conhecendo na medida em que experimenta. E isto é fundamental na construção da própria identidade, sobretudo juvenil. Na dimensão afetiva e sexual acontece a mesma coisa; há uma dimensão da experimentação que está posta. Por exemplo, há algum tempo atrás a gente falava do ficar. Hoje eu fico com uma, amanhã com outra e depois com outra... As gerações mais velhas arrepiavam com essa ideia. No entanto, esta é uma forma, até certo ponto saudável, do jovem se testar e descobrir suas dimensões afetivas e sexuais. Atualmente há uma erotização excessiva, mas isto não é um problema do funk; ele pode exacerbar esta tendência, mas a sociedade é totalmente erotizada. Se você pensar, por exemplo, na forma como a mídia lida com a própria mulher, isto fica muito evidente. Qualquer propaganda de carro põe uma mulher no meio. O que o funk faz, no meu entender, é exacerbar essa característica. E aí a mídia mais conservadora pega muito nesse aspecto para discriminar, como se fosse algo que só o funk fizesse. Nessa fase da vida os

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jovens estão muito abertos para esta busca. Então, neste sentido, também é uma característica que está posta. você vê diferenças entre as identidades culturais do funk e do hip hop? Bom, se eu comparar a identidade do funkeiro com a identidade do rapper elas serão qualitativamente diferentes. Porque a identidade do rapper está muito calcada numa visão de mundo que busca a compreensão da própria realidade. Uma visão de missão, com responsabilidade no discurso, pois tem que passar uma mensagem de denúncia para os outros. O hip hop tem uma dimensão política, que faz com que essa identidade seja constitutiva desse jovem no cotidiano como um todo. Já o funkeiro, é só ao ir ao baile que ele tende a se identificar com essa condição. A identidade do funkeiro não dá elementos para o cotidiano dos jovens. Durante a semana, o menino não é necessariamente funkeiro. Tem elementos constitutivos dessa identidade que são simplesmente a adesão ao estilo; não tem um mosaico ideológico que sustente uma compreensão do que é ser funkeiro, enquanto postura e visão de mundo. E não dá para falar que um é melhor que o outro: são expressões diferenciadas de uma cultura juvenil. Buscam objetivos diferentes, e são legítimos. Retomando a etimologia da palavra diversão, o rap vai muito para o lado do “divergir” e o funk para o lado do “divertir”.

como você enxerga a questão dos rolezinhos, que se tornou bastante polêmica em são paulo, recentemente? Para mim, o rolezinho tem um caráter político. Mesmo que o jovem que participa não tenha consciência, ele assumiu um aspecto político, na medida em que ocupa um espaço que não é dele. Força a visibilidade, e isso incomoda a elite. O shopping é um templo do consumo, feito para as classes média e alta. Então, quando o jovem pobre vai lá e ocupa este espaço para se divertir ou consumir, ele está transgredindo a ordem e está incomodando. Portanto, neste sentido, ele politiza este fato. É importante ficarmos atentos ao que o funk ostentação pode estar nos dizendo. Afinal, a sua tônica é o consumo, e as classes populares têm pelo menos o direito de sonhar com isto. Estamos em uma sociedade cujo valor é o consumo, no qual baseia sua identidade. Sendo assim, o funk ostentação nada mais é do que o reverso da moeda da sociedade de consumo. Se o jovem de classe média pode, por que o jovem pobre não pode? Só que o jovem de classe média não transforma isso em música, como sonhos de desejo, porque ele já tem o que quer. Agora, o pobre canta isso como uma expressão do seu desejo de consumir. Nesse sentido, não dá para falar de consumo ligado somente a algo material; o consumo tem uma dimensão simbólica

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impressionante. Andar com tênis e roupa de marca é uma forma do jovem se sentir aceito e reconhecido, e foi a sociedade de consumo que construiu isso. O reconhecimento por meio do consumo passa pela visibilidade, pela imagem, pela marca. Para um jovem pobre andar com uma roupa ou tênis de marca, muitas vezes ele precisa comprometer o seu salário do mês todo. Então, mais do que ser objeto de crítica, os rolezinhos precisam ser objeto de reflexão. O que significa isso? O que estes meninos estão querendo dizer? Outra questão que o rolezinho traz à tona é a sistemática tentativa de criminalização do funk. Isto é histórico: aconteceu com a ligação do funk ao arrastão, nos anos 1990, e depois com a associação do funk à droga, ao tráfico de drogas, à violência. Em cada momento é um discurso. Agora é o rolezinho, que acaba por suscitar uma vinculação à imagem do jovem pobre, preto, favelado – a tríade maldita. Desde 2005, o funk saiu das camadas populares e atingiu a classe média; e hoje é uma expressão cultural tanto de uma quanto de outra. No entanto, quando é tocado pela classe média, é cultura, e quando é tocado pelas camadas populares, é crime, apologia, arrastão... como você vê a relação entre a juventude e escola? A primeira coisa que me vem à cabeça foi uma entrevista que eu fiz com um


Juarez Dayrell

Juventudes e Funk jovem funkeiro, o mc Jefinho, músico muito reconhecido em Belo Horizonte. Na época, ele fazia o terceiro ano do ensino médio, e eu perguntei a ele: “E aí, como é a sua relação com a escola, sendo funkeiro?”. Ele me disse: “Olha, ninguém lá sabe que eu sou funkeiro, ou que eu escrevo funk”. E eu disse: “Nem a professora de português?”. Ele respondeu: “Muito menos ela”. Eu acho isso paradigmático: ele escreve música, é um poeta, e a professora é incapaz de perceber que na sua sala tem alguém que é poeta? Ela deveria incentivar, estimular, e utilizar nas suas aulas as letras que ele faz. Olha como a escola poderia ser uma coisa mais interessante! No geral, a escola não reconhece o jovem existente no aluno, e isso se expressa de diferentes formas. Ou seja, não reconhece o jovem e muito menos se adequa a ele. Pelo contrário, o jovem aluno é que tem de se adequar à escola. E aí vem o conflito, pois os tempos e os ritmos da cultura escolar estão muito diferentes dos desta geração. A estrutura escolar foi construída em outro tempo e espaço, numa outra sociedade que não a nossa, e não se adequou a esta nova realidade. A partir dos anos 1990, a escola recebeu uma imensa massa de alunos, que traziam com eles realidades, problemas e contradições que eles vivenciavam enquanto jovens pobres. No entanto, a escola não se adaptou a essa realidade, e isso criou uma esquizofrenia que gerou

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no jovem uma falta de sentido para a frequência escolar. De alguma forma, eles sempre se perguntam: “O que é que eu estou fazendo aqui?”. E isso se expressa na bagunça, na falta de compromisso, na constante evasão. A escola é muito "chata", então ela se torna o espaço da zoação. Se a escola não reconhece os jovens e não entende as suas necessidades, o que acaba acontecendo é que, de alguma forma, eles transgredirão aquele espaço. Eles darão outro sentido, o que acabará sendo uma forma de protesto. Se você não me reconhece eu também não te reconheço. como você analisa as políticas de juventude atualmente? A meu ver, há uma ausência de políticas públicas voltadas especificamente para a juventude. Avançamos na parte de institucionalização dos conselhos municipais, estaduais e nacionais, que hoje existem praticamente no Brasil inteiro; mas sua efetividade é muito pequena, o poder de pressão desses conselhos é muito pequeno. Eu posso afirmar com toda a tranquilidade que as políticas públicas voltadas para a juventude são extremamente precárias. Jovem ainda não é considerado sujeito de direitos. Precisamos reconhecer de imediato quanto a juventude neste país não tem sido considerada como sujeito de direitos e como um público de política específica. Analisando as políticas públicas para a juventude no Brasil, o que se constata é

que elas surgem timidamente, a partir do governo Lula. Se considerarmos hoje (2014) em relação a 2003, avançamos muito. Mas ainda estamos muito aquém da demanda. Por exemplo, já foram realizadas quatro conferências nacionais de juventude. As demandas da quarta conferência são muito parecidas às demandas da primeira conferência; ou seja, pouca coisa foi implementada de fato. E existe uma emergência com relação a isso. A própria sociedade civil e os jovens vêm se organizando das mais diferentes formas. Por exemplo, a constituição de coletivos de produção alternativa, a busca de ocupação de mercado com formas diferentes das tradicionais. E isso tudo vem se dando à revelia do Estado. Mas há exceções: o Programa vai, da cidade de São Paulo, é uma política de juventude muito interessante, pois financia diretamente os projetos culturais de jovens, sem exigir cnpj e outras burocracias. Isto possibilita que qualquer um tenha um grupo e faça o seu próprio projeto, sem precisar ser uma ong, ou sem precisar de uma entidade para mediar a relação. Acho isso um grande avanço em termos de políticas públicas. No entanto, programas como este são minoria. “

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PARA

SABER

REFERÊNCIAS

MAIS

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