Centro de Memรณria - UNICAMP n. 1, jan./jun. 1996
CMU " Publicações i ntorcômbio | Universidade Estadual de Campinas Centro de Memória
Outros
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Campinas - SP - Brasil
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t PROIBIDA A VENÇA OESTE VGLüM
Olhares
v. 1, n. 1, jan./jun. 1996
Docição
UNICAMP UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor JOSÉ MARTINS FILHO Coordenador Geral da Universidade ANDRÉ MARIA POMPEU V1LLALOBOS Pró-Reitor de Desenvolvimento Universitário JOSÉTADEUJORGE Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários ARCHIMEDES PEREZ FILHO Pró-Reitor de Graduação JOSÉ TOMAZ VIEIRA PEREIRA Pró-Reitor de Pesquisa CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ Pró-Reitor de Pós-Graduação CARLOS ALFREDO JOLY
áiS CMU CENTRO DE MEMÓRIA-UN1CAMP Coordenador JOSÉ ROBERTO DO AMARAL LAPA Coordenadora Associada OLGA RODRIGUES DE MORAES VON SIMSON Coordenador Científico HÉCTOR HERNÁN BRUIT Coordenador Científico Associado ÍTALO ARNALDO TRONCA Coordenadora do Grupo de Estudos Regionais MARIA LÚCIA DE SOUZA RANGEL RICC1 Conselho Científico ELISA ANGOTT1 KOSSOVITCH - ET1ENNE GHISLAIN SAMAIN - FERNANDO ANTONIO ABRAHÃO - HÉCTOR HERNÁN BRUIT - IRENE MARIA FERREIRA BARBOSA - JOSÉ ROBERTO DO AMARAL LAPA - OLGA RODRIGUES DE MORAES VON SIMSON - PAULO CELSO MICEL1 ROSAELENA SCARPELINE - WILSON SUZIGAN
OUTROS Olhares.
Campinas: Área de
Publicações/OMU-UNICAMR v. 1, n, 1 jan./jun. 1996.
ISSN 1413-5744
Comissão Editorial . CÁSSIA DENISE GONÇALVES DULCE FERNANDES BARATA FERNANDO ANTONIO ABRAHÃO HÉCTOR HERNÁN BRUIT JOHN MONTEIRO JOSÉ ROBERTO DO AMARAL LAPA OLGA RODRIGUES DE MORAES VON SIMSON PAULO CELSO MICELI (Coordenador) ROSAELENA SCARPEL1NE
Editor AMARILDO CARNICEL (MTb 15.519) Coordenação Editorial CARLOS ROBERTO LAMARI Revisoras ELISABETH REGINA MARCHETTI MARIA BEATRIZ MAZZARIOL SANTICIOLLI Digitadoras PAULA MARÍL1A GUEDES ROCHA RAQUEL DE SENA RODRIGUES Apoio Administrativo PAULO ROBERTO GOMES DO AMARAL LAPA
Sumário
EDITORIAL
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ARTIGOS O Carnaval nos Folguedos Populares Brasileiros MARLYSEMEYER 7 Carnaval em Sâo João del Rei: quando a tristeza é imposta para comprometer a festa IÊDA MARQUES BRITTO 19 Considerações sobre a Preservação do Patrimônio Histórico da Região Central de Campinas ANA CLÁUDIA FONSECA BREFE E CRISTINA MENEGUELLO 23 O Mundo do Trabalho dos Ferrcmãrios Aposentados das Oficinas da Companhia Pauusta de Estrada de Ferro de Rio Claro -1930 e 1940 LILIANA BUENO DOS REIS GARCIA 35 O Negro e o Mercado de Trabalho no Interior Pauusta LUCILA BANDEIRA BEATO 43 Idiosincrasia y Arquitectura en México CARLOS R. MARGAIN ARAÚJO 51 A Mulher e a Década de Vinte MÍRIAM LIFCHITZ MOREIRA LEITE 59 Vitimização, Cidadania e Políticas Públicas ALBAZALUAR 03 A Historiografia Brasileira nos Últimos 20 Anos: tentativa de avaliação crítica CARLOS FICO E RONALD POLITO 75 Um Interlocutor Privilegiado da Expedição Langsdorff: o botânico e médico austríaco Carlos Engler PLÍNIO GUIMARÃES MORAES 85 Giustizia e Libertà: miutância antifascista e confuto político na São Paulo dos anos 30 JOÃO FÁBIO BERTONHA 101 POESIAS Processo Humano - História JUACENIMASTRÂNGELO ABREU DOS SANTOS
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entrevistas MARIA ALICE ROSA RIBEIRO
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COMUNICAÇÕES O Projeto de Pesquisa: o conteúdo e seus itens CÉLIA M. MARINHO DE AZEVEDO Grupo Urbando - Manifesto
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No último número do Boletim do Centro de Memória (edição número 13), tivemos oportunidade de comunicar aos nossos colaboradores, leitores e amigos, que a publicação periódica continuaria circulando, mas como um órgão exclusivamente informativo. Com periodicidade trimestral, o veículo, em sua nova fase, mantém seções como Que pesquisas e quem pesquisa no Centro de Memória, informe-se, incorporações de acervoseXc. O primeiro número do novo Boletim c\rcu\ou ainda em abril. Paralelamente, em princípio com o mesmo conteúdo do antigo Boletim mas com uma nova feição gráfica, surge agora Outros Oiharescorr[ periodicidade semestral. Essa decisão da Comissão de Publicações do CMU fundamentou-se num conjunto de alterações que sofreu a Area de Publicações, visando conferir-lhe maior dinâmica. O Boletim, há muito, deixou de ter o perfil de um simples órgão de divulgação. A variedade, qualidade científica, literária e artística de suas colaborações, fez da publicação uma revista conceituada nos circuitos acadêmicos, tornando necessária a criação de nova publicação. Assim é que correspondendo à vocação de interdisciplinaridade do Centro de Memória, optou-se por ampliar o ângulo de visão, admitindo outros olhares que não aqueles com que habitualmente as ciências ditas humanas olham os seus objetos. Este é um ideal a ser perseguido, sem sacrificar a continuidade também das seções que os leitores já estavam habituados a encontrar no Boletim. A curto prazo, criaremos novas seções, incrementando entrevistas, propondo números temáticos e dossiês. Ampliaremos o Conselho Editorial, do qual passarão a participar também professores latino-americanos, europeus e norte-americanos. Mesas-redondas e maior espaço para as resenhas incluem o novo projeto. A dinamização da nossa Area de Publicações se fará sentir também rapidamente na reativação da revista de cultura Resgate, no incremento de nossas coleções de livros - Campiniana, Tempo & Memória, Seminários e Instrumentos de Pesquisa, que têm programados, ainda para este ano, vários lançamentos. Mas, antes de anteciparmos o que o leitor encontrará neste primeiro número, registre-se a continuidade do nosso propósito de abrigar o diálogo, o debate e a polêmica entre ciências, cuja fragilidade das fronteiras vem acentuando-se neste final de milênio. O sumário deste primeiro número é variado como convém, não deixando de apresentar dois dossiês, como vem se tornando prática entre as revistas universitárias brasileiras, tendo por tema respectivamente, o carnaval e o interior de São Pauio. Assim, o carnaval é contemplado com as reflexões de Marlyse Meyer, enquanto lêda Marques Britto fala dos comprometimentos que sofre o mesmo folguedo numa das cidades históricas
de Minas. Já a história regional e local, no caso o interior do Estado de São Paulo, recebe três títulos, enquanto Ana Cláudia Fonseca Brefe e Cristina Meneguello levantam questões sobre o Centro Histórico de Campinas, Liliana Bueno dos Reis Garcia mergulha no universo de trabalho dos que deixaram de trabalhar, os ferroviários aposentados de Rio Claro, e Lucila Bandeira Beato estuda a inserção e/ou marginalização do negro no mercado de trabalho do interior paulista. O espaço reservado à colaboração estrangeira, como vinha sendo feito no Boletim em sua primeira fase, continuará em todos os números de Outros Olhares. Nesse sentido, o arquiteto Carlos R. Margain Araújo, professor da Universidad Nacional Autônoma dei México (Unam), aponta em instigante artigo as idiossincrasias que marcam a arquitetura mexicana. As professoras Miriam Lifchitz Moreira Leite e Alba Zaluar, reconhecidas especialistas nos temas que abordaram neste número, tratam respectivamente da mulher em nossa versão brasileira dos anos loucos e da violência e segurança em nossos dias perante as políticas públicas. Ainda nessa linha, os professores Carlos Fico e Ronald Polito analisam a Historiografia Brasileira dos últimos vinte anos, assunto sobre o qual acabam de publicar a obra A História no Brasil 1980-1989: elementos para uma avaliação historiográfica, em dois volumes. Completam os artigos um dos últimos trabalhos produzidos pelo saudoso Plinio Guimarães Moraes, versando sobre o contato do médico austríaco Carlos Engler com a Expedição Langsdorff e um estudo de João Fábio Bertonha sobre as tensões da militância antifascista em São Paulo dos anos 30. O espaço da poesia foi assegurado pelos versos de Juaceni Mastrângelo Abreu dos Santos. A seção Entrevistas mostra o trabalho da Profâ Maria Alice Rosa Ribeiro, da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (Unesp), que acaba de passar um ano na Inglaterra e fala aos nossos leitores sobre o seu último livro História sem fim... Inventário da Saúde Pública. São Pau/o 1880-1930, lançado pela Editora da Unesp. Nas Comunicações, Célia Maria Marinho de Azevedo aponta os caminhos para a montagem de um projeto de pesquisa. Traz também o Manifesto do Grupo Urbando de jovens arquitetos de Campinas, que participou de seminário promovido pelo CMU. Ao finalizarmos este nosso colóquio com o leitor, reiteramos que Outros Olhares está aberta à colaboração, cujas normas se encontram na página 112.
7. Outros Olhares O Carnaval nos Folguedos Populares Brasileiros* Marlyse Meyer** Professora aposentada pelo Instituto de Artes- Unicamp. Professora do curso de pós-graduação da FFLCH-USP - áreas de literatura comparada, história do teatro e cultura brasileira
Aproveitando a concepção de carnaval e carnavalização e a amplidão do quadro carnavalesco traçado por Bakhtine, mais a visão abrangente de vários estudiosos por aquilo que um deles chama o acontecimento carnavalesco (Fabre e Lacroix, 1973), escolhi tentar falar do carnaval brasileiro em senso lato. Ou seja, inseri-lo dentro do calendário maior dos folguedos populares - ou danças dramáticas (Andrade, 1959; Carneiro, 1982) e referir-me, em senso estrito, à sua estética, isto é, ater-me à sua beleza a partir do senso comum, sem maiores preocupações filosofantes. A beleza tal como é desejada, preparada e sentida por aqueles que põem a festa na rua, tal como é recebida e sentida por quem a ela assiste e de que acaba participando. Uma fala igualmente carnavalesca, sem grandes pretensões teóricas, alimentada por esparsas lembranças de textos eruditos, lidos e relidos, e pelas fortes memórias de vivências que viraram experiências de vida. Falar enfim do ponto de vista desta que vos fala, uma professora que também é olheira, brincante e foliona. Acompanhante de reinados e congadas, fugindo do boi, do jaguará ou das bexigadas do Mateus; rindo com as traquinagens dos palhaços da Folia de Reis e dos mascarados da cavalhada; acompanhando irmãos do Divino num pouso da Folia, sobressaltada por seus tiros de trabuco no dia da festa. Carnavalesca enfim, no senso comum do termo, que já pulou dentro de uma corda na Bahia, com a professora Maria Isaura Pereira de Queiroz, no bloco de Filó e Sofia, e impenitente e arrebatada espec-
tadora em sucessivas arquibancadas da Presidente Vargas à Marquês de Sapucaí; vibrando numa sempre renovada e arrepiada emoção, quando o ribombar dos fogos e o longínquo troar da bateria anunciam as sucessivas explosões do belo, irrompendo na avenida. Atabalhoadas na memória, ficam a visão de um Joãozinho Trinta erguendo, triunfal, os braços e rindo para a gente, encharcado de chuva, o verde e rosa surgindo na aurora; de Paulo Moura impecável, na bateria de sua escola, no delírio contido de seu tamborim. E, último título, florão magno do currículo da professora festeira, acabei componente, intimidada e deliciada, de uma ala da Mangueira, exaltando o reino das palavras de Carlos Drummond de Andrade. Não que a professora tivesse perdido o senso crítico e não tivesse desvendado na escola de samba trambiques e lutas de poder, reprodução da hierarquia dominante e manipulações, a tão falada descaracterização cuja marca estava até na sua própria presença dentro da festa que deveria ser exclusiva da classe sambante. Mas se, como lembra Bakhtine, o discurso do carnaval é ambíguo, é ambivalente, a lucidez não elimina a fruição; nem a consciência dos mecanismos altera a sensação da beleza. Lembro, com autores que cito em carnavalesca desordem, Varagnac, Paolo Toschi, Gaignebet, Roberto de Simone, Peter Burke, Nathalie Davis, Daniel Fabre, Jacques Lacroix, Eneida, Roberto Moura ou Marília Barboza da Silva, ou, ou etc. e, naturalmente, Bakhtine, o que é o carnaval: tem a ver com morte e ressurreição, com
* Resumo de um artigo do mesmo titulo publicado em: CAMINHOS do imaginário no Brasil. São Paulo; Edusp, 1993. p. 174-223. *' Obras publicadas: DE CARLOS Magno e outras histórias. Cristãos c mouros no Brasil. Natal: Ed. da UERN, 1995. PIRINEUS. caiçaras...: da commcdia dellarle ao bumba-meu-boi. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1991. AS SURPRESAS do amor, a convenção no teatro de amor de Harivaux. São Paulo: Edusp. 1993, MARIA Padilha e toda a sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a pomba-gira de umbanda. São Paulo: Duas Cidades. 1993. CAMINHOS do imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp. 1993. FOLHETIM: uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. Com Maria Lúda Montes publicou: REDESCOBRINDO o BrasiL a festa na polida São Paulo: T. A. Queiror. 1985.
vida e morte, com luta entre o gordo, obsceno e delirante riso carnavalesco e a magra, seca e moralizante Quaresma; com o homem selvagem e sua máscara de bichos e outras máscaras contendo os mortos; com foles e bexigas regulando e controlando o passeio solto das almas, (Bakhtine 1970 a, p. 380; Burke,1980; Gaignebet e Florentin, 1974, capítulo VII); com os santos de fevereiro que remetem a antigas crenças, regulamentando a entrada em tempo carnavalesco e fim de inverno, simbolizados pelo urso peludo e guardião das almas e pelo Valentim/oZ/íara/(Gaignebet, 1974). Dois de fevereiro, a Candelária, Nossa Senhora das Candeias; são Brás, protetor das gargantas, que cura com duas candeias cruzadas, santo cabeludo como o urso e evoca, como Arlequim e como certas máscaras de Mateus, os antigos homens selvagens (Varagnac, 1948; Toschi, 1976; Gaignebet, 1974; Gennep, 1972). Notem-se as coincidências, apesar das intervenções sazonais, da força dos mitos transportados na memória dos portugueses colonizadores, e se mantendo: são também fortes datas no Brasil, o dois de fevereiro, Nossa Senhora das Candeias, da Candelária e dia de festa no mar; dia três, dia de são Brás, com os mesmos atributos e poderes cá e lá, e que marca os festejos carnavalescos da pequena cidade de São Brás do Suaçuí, perto de São João dei Rei. O carnaval, enfim, tem a ver com comida farta, sonhos, filhos e ritos de abundância, simbolizados em gigantões e gigantonas, aquelas mesmas que circulam até hoje nos carnavais belgas, suíços, alemães. E no Brasil. O momento dos contrastes absolutos, o sério e o cômico, o louvor e a injúria, informações e negações, galhofa e religiosidade, rito e contra-rito, pseudo-seriedade e paródia. Amplo, desdobrável, desenfreadamente livre, mas preso a regras estritas, solto e obrigatoriamente disciplinado, virando - provisoriamente - o mundo às avessas, tempo de inversão e de controle, imprevisível mas automaticamente limitado pelo provisório que é a sua marca; materializado em cortejos, carros alegóricos, fantasias luxuosas e grotescas, homens fantasiados de mulher ou de gigantescos bebês, desfiles de animais, bois
e cavalos de saias, grandes comilanças, casamentos burlescos, concursos, competições acirradas que permitiam ao mesmo tempo sublimar a violência e a sexualidade exacerbada e estimulava a competição dos grupos. Eis o mundo do carnaval, tal como parece ter sido vivido e reconstruído pelos estudiosos. E entre tantas abordagens com que Bakhtine o vai cercando, fiquemos com esta citação paradigmática: O carnaval é a segunda vida do povo, baseada sobre o princípio do riso (...). A festa (...) é a forma que revestia a segunda vida do povo que penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, da liberdade, da igualdade e da abundância. (Bakhtine, Mikhayl, 1970 a, p. 16-7). Essa cultura carnavalesca, que Bakhtine descreveu como sendo a grande cultura cômica específica da praça pública, continua, parece-me, a ser encontrada no Brasil, nos seus antigos e sempre presentes folguedos populares: aqueles que estiveram na origem do carnaval de rua carioca, este mesmo que se transformou no grande modelo do carnaval oficial, mas que nem assim enxotou de todo os velhos brinquedos. Com efeito, se o carnaval à veneziana e das grandes sociedades carnavalescas (das primeiras das quais, aliás, em 1855, José de Alencar foi membro fundador) foi o carnaval proposto pelas classes dominantes do Rio em meados do século passado para substituir o entrudo à portuguesa (Moraes, 1979, p. 32) (e também fortemente marcado por reminiscências arcaicas, farinha, fuligem etc.), em que brincavam todas as classes, porém não se deve esquecer, que corria um carnaval de rua paralelo. O carnaval dos trabalhadores da estiva, aqueles marginalizados que eram negros, de origem baiana, que circulavam em torno das tias feiticeiras, quitandeiras e festeiras de mesma origem, nos bairros da Saúde, Cidade Nova e morros adjacentes, onde samba e jongo reinavam soltos. Daqueles que botavam cortejos na rua, trazidos nas lembranças, os CLicumbis com negros vestidos de índio, e os ranchos, reminiscências de pastoris, ternos de reis, coroações de reis congos.
Podem-se detectar nesses folguedos vestígios, fragmentos que remetem àquele mundo tradicional, pré-industrial, estudado por Varagnac, Burke e outros, testemunhando, portanto, da sua presença no Brasil. O mundo tradicional, com seu sistema diferente, onde dominam o intemporal, o descontínuo, o analógico, o imaginário, a causalidade moral (Fabre e Lacroix, 1973, p. 268). Isto, apesar das inversões do calendário e tantas outras mudanças em relação aos gêneros de vida nos países de origem, Europa ou África, portadoras de memórias arcaicas, mescladas ou não às superimpressões do cristianismo evangelizador. Apesar de - ou quem sabe, por causa dessas radicais mudanças, o desconhecido mundo novo engedra, novamente, os fundamentos: reaguça e traz à tona os medos e as necessidades primordiais, no confronto com uma natureza hostil que deve ser reconquistada para conseguir o de comer; com um céu desconhecido, desertado pelos deuses costumeiros, onde os astros deram uma cambalhota, avesso de lua, o quente no frio, estrela polar virando Cruzeiro do Sul, sob os olhos marotos da Grande Ursa - Macunaíma. E por onde haverão de vagar as almas penadas e descansarão os mortos familiares nessa terra outra, já ocupada pelos espíritos nativos? Repensar em suma tudo que já fora de certo modo enfrentado e apaziguado com os mitos e rituais apropriados. Reinventar analogias a partir das antigas rememorações e sobre as daqueles que já haviam domesticado os segredos primordiais da terra que era deles. E deu nesta espantosa mistura, nesta geléia geral brasileira que vai construir um novo calendário folclórico, o qual haverá de misturar o tempo da arqueocivilização reencontrado e o tempo cristão importado (Bastide, 1959, capítulo 1). Pode-se distribuir esse calendário em quatro grandes momentos aglutinadores de folguedos populares: ciclo natalino. Da véspera de Natal aos Santos Reis, atravessando o Bom Jesus (lu de janeiro) e, em algumas regiões, espichando até 20 de janeiro, dia de são Sebastião. Carnaval - que pode já começar a 31 de dezembro ou com os santos de fevereiro estender-se pela MiCareta e até sábado de Aleluia, carnaval do
meio do ano. Festas do Divino Espírito Santo. Já foram e continuam sendo em algumas localidades em setembro/outubro (Bastide, 1959, p. 41), mas tendem hoje a se fixar na data oficial que é Pentecostes, o que permite reassociá-las às antigas comemorações de maio, das grandes comilanças comunitárias, mastros etc. Festa junina e seus festejos de cunho arcaico, fogueiras, sortes, outra vez mastros. Acrescentem-se as festas de orago. As dos santos negros, são Benedito, muitas vezes a 13 de maio, Nossa Senhora do Rosário, geralmente na sua data oficial, em outubro. Mas ambas, como todas as outras aliás, podendo se deslocar tanto no tempo como no espaço, uma característica do folclore de importação que é o brasileiro, diz Bastide (Bastide, 1959, p. 31, 32, 35). Deveríamos incluir a grande festa de são Jorge, que se destacou de sua posição tradicional na grande procissão de Corpus Christi, a 23 de abril, e que, juntamente com lemanjá a 31 de dezembro, está constituindo um novo ritual popular brasileiro? Força de Santa Madre: são de negros quase todos esses festejos, mas indissociáveis do calendário e da devoção católico-popular. Temos (tínhamos...) assim cheganças, barcas, guerreiros, bois, reisados, pelo período natalino, precedido e atravessado pelas Folias de Reis - reincarnações caboclas daqueles tradicionais grupos deambulatórios e pedintes ligados a momentos de mudança (Eneida, 1968, p. 1156; Moraes, 1979, p. 43). As mesmas folias que, sem palhaços, anunciam e pedem esmolas para as festas do Divino Espírito Santo, animadas pelas cavalhadas, cortejos de gigantes, comilanças e doces. Gongos, ticumbis, cambindas, moçambiques, pontões, congadas, reinados, catopés, ligados aos santos negros. Alardos capixabas comemorando são Sebastião. E outros muitos ainda. Sem esquecer as manifestações/racmde candomblé e de Xangô, saindo no carnaval propriamente dito: os grupos de afoxé na Bahia, Rio e Fortaleza e tendendo a alastrar-se; os maracatus no Recife.^ É tão forte esta ligação com o calendário do catolicismo popular tradicional
10 Outros Olhaies que vamos encontrá-lo também associado ao carnaval dos trabalhadores pobres cariocas estudado por Alba Zaluar (1985). As alegres manifestações da devoção popular, que são quase todos os folguedos tradicionais, constituem a chamada parte profana da festa religiosa oficial. Aquelas que vêm (quando vêm mencionadas) anunciadas como nosso folclore no cartaz-programa de novena. Incorporadas ou não à procissão solene, dependendo da boa vontade do padre ou do bispo, a qual muda de ano pra ano. É, em suma, a carnavalização da festa oficial, na acepção de Bakhtine, o que já ocorria nas festas religiosas de antanho: (...) na Idade Média, praticamente toda festa religiosa, Cor pus Christi em particular, tinha seu momento particular de praça pública. (Bakhtine, Mikhayl, 1970 b, p. 177). Fique claro, porém, no caso da forte e festiva alegria do folguedo popular brasileiro, que não se trata da praça pública envolvida na unanimidade de foliões brincando no contra-rito da total inversão carnavalesca a que se refere Bakhtine. As nossas são alegres, mas codificadas manifestações de um grupo particular, ligadas por promessa e/ou relação de vizinhança e gosto da brincadeira em conjunto. Associados aos tempos fortes do calendário religioso, os grupos podem também tomar parte no desfile oficial, mas sem perder sua identidade grupai. Saem geralmente na segunda-feira de carnaval, participando também de concursos. Configurando-se esses folguedos enquanto carnaval ização em relação ao evento religioso oficial, nem por isto significa uma soltura, uma liberdade total, que fosse só limitada pelo código da dança. O grupo tem uma organização rígida, é solidamente comandado pelo mestre ou capitão - e tem uma distribuição hierárquica por patentes militares, o que confirma essa rigidez. Mas esses folguedos apresentam ainda outro grau de coerção interna, mais impositivo que o regulamento, na medida em que seus componentes também são fiéis e devotos do santo. Subjacente ao desejo de festar, corre uma visão de mundo intrinseca-
mente ligada ao mistério da graça almejada e dos milagres pedidos pela intercessão dos santos e garantidos pela promessa, que obriga literalmente a botar a festa na rua. A festa, a dança, o canto, o malhar das caixas são, em suma, a forma pela qual se materializa a devoção. Note-se, portanto, a ambivalência de uma prática que, sendo considerada como face festiva, profana, da comemoração religiosa oficial é, na verdade, motivada por uma obrigação que amarra ao santo e exige que se pule para ele durante todos os anos da promessa. Redobrando as agruras da primeira vida, a dura vida cotidiana, cabe ao chefe, ao mestre, ao capitão a reduplicada obrigação de conservar a memória do grupo, de organizá-lo e de arranjar o dinheirinho para continuar a agradar ao santo, pulando para ele na rua, porque sem o nervo da guerra não fica garantida a renovação anual da promessa, o ressuscitar carnavalesco do grupo. Não só o rutilante Beija-Flor, mas até o mais humilde dos humildes precisa pelo menos ter a. farda em ordem: no mínimo dos mínimos, um ferro de engomar, um tênis trocado, uma fita renovada. Obrigação para o santo, promessa que alimenta a permanente recordação da festa passada e o pensamento na festa por vir, paradoxal e carnavalescamente são os aspectos coercitivos que vão suscitar e recriar a alegria festiva paralela. Observa-se que a oposição festa oficial/festa popular vale, evidentemente, para o próprio carnaval, nos seus dias certos. Continuam a existir, como já nos velhos tempos do começo do carnaval carioca de rua moderno, as manifestações paralelas ao grande desfile oficial. Blocos de enredo, blocos de embalo, blocos de sujos, clovis, sem esquecer aqueles espantosos foliões solitários. Não-incluídos na programação oficial, desdenhados pela TV; nem por isso deixam de brincar, de competir, concorrendo em concursos, aspirando a premiações patrocinadas, à moda antiga, por casas comerciais ou jornais de bairro e sonhando sempre com o outro, o grande, porque o espírito de competição sempre foi inseparável do carnaval. Segundo Martine Grinberg se se quiser encontrar uma estrutura fundamen-
tal do carnaval, esta seria o embate permanente. É o eixo em torno do qual se organiza o essencial dos ritos. Mas, além da carnavalização que representa o paralelismo festa oficial/festa popular, encontram-se outras reduplicações carnavalescas, festivas construções em abismo que vão marcando momentos diferentes da festa. Podem até estar inseridas na sua estrutura, além da primeira oposição básica.^ É o caso, por exemplo, da cavalhada dramática, parte profano/séria dos festejos do Divino, que já tem inserida, internamente, a figura discrepante e cômoda do espião mouro, e é por sua vez camavalizada por um duplo paródico, seu complemento estrutural: o bando dos mascarados, paródia cômoda do ritual sério, eminentemente carnavalesco (V. Bakhtine, 1970 a). Se a cavalhada, que opõe cristãos e mouros imitando torneios medievais - cujos atores, na origem, são de classes abastadas - pode ser vista como solene reafirmação da fé e da ordem vigente (Brandão, 1974, p. 19), sua imitação burlesca pelos cavaleiros mascarados que ocupam seu espaço nos tempos vazios da representação introduz a brecha da gozação e da irreverência, pela via salutar do riso e do deboche. Será algo equivalente a todos os rituais às avessas praticados pelas antigas associações carnavalescas de jovens, das diferentes abadias de Mau Governo, Conards etc. (Davis, 1979). A paródia instala-se em duplo registro na cavalhada do Divino de São Luís de Paraitinga a que já presenciei: a parte nobre é levada por pobres peões que tomam cavalos emprestados; os mascarados com seus molambos coloridos montam jegues e burricos, e nem falta a imemorial figura carnavalesca do burro montado às avessas, que remete também à tradicional festa medieval de l'âne que completava a fête du fou. (Haveria uma reminiscência na burrinha do bumba?). Já, inversamente, os palhaços das Folias de Reis, representando, como se viu, os soldados e Herodes e têm parte com o Diabo, não só marcham somente ao lado da folia de ambulante, como não penetram dentro da casa onde se leva a bandeira e se reza o terço. Esperam, do lado de fora, e a
espera pode ser longuíssima, conforme o número de promessas, mas, uma vez feitas as rezas, suspende-se o ritual sagrado e todos os irmãos, mais os palhaços podem varar a noite a dentro na catira e cachaça, agora autorizadas. Sem falar na grande festa final depois da ceia do remate no dia de são Sebastião ou dois de fevereiro no Rio. Desdobramento carnavalesco final, comum a todos os folguedos populares. Não mais a paródia, mas, agora sim, o momento da liberdade carnavalesca completa. Depois de brincar, rezar, pular, dançar, cantar, marchar, depois de feitas todas as visitas de obrigação, depois de ter acompanhado (de dentro ou como respeitoso espectador) a procissão, depois de comer e dadas as despedidas, antes de se desmanchar de vez o grupo, até pro ano se Deus quiser, tiram-se as fardas, fica-se à vontade e é cair no samba. A mesma coisa acontece no terreiro de candomblé, quando os visitantes que vieram assistir à festa do santo, uma vez comidos e bebidos se retiraram, os filhos da casa, com a roupa de todo o dia, caem no samba. Porque, no seu consubstanciai ecumenismo, ao povo brasileiro não bastam os santos do Fios Sanctorum e sua cabloca reatualização: a estes vêm se acrescentar, em tranqüilo concluio, orixás e voduns do panteon africano, melhor dizendo, afrobrasileiro. É tão sabidamente estreita, aliás, no universo popular, a interação santo/orixá, que não se coloca entre um e outro a relação oficial/não-oficial; não há precedência de um sobre o outro, antes simultaneidade, ou melhor, simbiose entre ambas as práticas. Assim a Folia de Reis fluminense tem a ver com Oxosse, o caçador, os caboclos e são Sebastião. Tudo misturado com a adoração ao Rei do Oriente, Jesus Cristo, e o medo do Demo, o qual encarna praticamente nos palhaços, tanto é que, numa espantosa confusão de papéis e pessoa, são eles os que mais ardorosamente cumprem com a promessa, pra se livrarem do Coisa Ruim. Os palhaços-Herodesdemônios têm apelidos e guias de seus orixás, ao passo que o mestre ou respon-
12 Outros Olhares sável da folia é geralmente também dono de terreiro de umbanda, portanto, durante o giro, a bandeira também não deixa de visitar os gongás. Mas principalmente, o que espantou a sulista que sou, acostumada à quase oposição Divino - festa branca e Gongos festa negra, foi ver se desenrolar o ritual completo do Divino do catolicismo popular branco, dentro da Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, onde a festa de Pentecostes é uma das datas de comemoração oficial da casa. Espantei-me também vendo um flamejante império do Divino numa das paredes da casa de Jorge Babalaô, ainda em São Luís (MA), ao lado dos altarzinhos de são Luís, rei de França, santa Joana d'Are e outros encantados. Candomblé e carnaval vivem em relação simbiótica, genésica, é só lembrar as já mencionadas origens do carnaval carioca. Não é de espantar pois se, reatando com a tradição fundadora, que remete a Bahia, o carnaval carioca, aberto oficialmente no sábado, tem como primeiro a desfilar, abrindo, portanto, o carnaval, o grupo carioca do afoxê Filhos de Gandhi. Porque o candomblé, como ritual religioso que é, também tem seus momentos carnavalescos de praça pública. São os momentos de desconsagração, de desafricanização do terreiro (Bastide, 1961, p. 114). Época de caos e confUsõo(...), período de expulsão dos orixás, que se acredita terem voltado para atÁfrica, e que se estende do carnavpl ao fim da Semana Santa. (Bastide, Roger, 1961, p. 113-4). Existe também, como já mencionei, a parte lúcida-pura, a carnavalização dentro do candomblé, quando os orixás deixaram seus cavalos, que todos se fartaram de comida e as visitas retiraram-se, fica-se entre si e cai-se no samba - samba de terreiro com pontos cantados, muita cerveja, e o mais que tiver - varando madrugada a dentro se for sábado. É ainda o carimbo que marca o fim dos festejos do Divino na Casa das Minas (São Luís do Maranhão). Haveria que mencionar rapidamente um folguedo, disseminado por todo o Bra-
sil com nomes diversos: o bumba-meu-boi. O bumba-meu-boi é a mais estranha, original e complexa das nossas danças dramáticas. É também a mais exemplar, diz Mario de Andrade (Andrade, 1959), que inventa para ele um mito de origem em Macunaíma. Tudo se encontra nesse espetáculo completo que é o bumba-meu-boi: teatro. Canto. Música. Dança. Comicidade, burlesco, medo, riso. Criatividade e engenho na construção dos bichos. E beleza. Beleza de melodia; beleza da interpretação da cantadeira; graça e beleza da coreografia de pés descalços; beleza dos couros dos bois, dos capacetes de plumas do caboclo-real, do chapéu de fitas dos rajados. Esta beleza que marca o bumba tão espetacularmente no caso maranhense, mais concentrada no caso nordestino, esta beleza vamos encontrá-la em todos os brinquedos populares que podem se distribuir ao longo do amplo arco carnavalesco, que tento traçar. Todos os folguedos populares têm comproqiisso com ela. Sair lindo na avenida; botar o brinquedo bem arrumado na rua. Todos os brincantes produzem a beleza que vai permitir levar a festa pra rua o mais bonito que der. E se as possibilidades são poucas, vontade é o que nunca falta. E a preocupação dos mais pobres, donde um;i palavra recorrente no vocabulário de todos os que conheci, a base das exigências que tiram de si próprios: o sacrifício. Vale sempre a pena fazer o sacrifício para isso ou aquilo. Pra criar mais um menino que nem é deles; pra fazer o tosco enxoval da filha, e principalmente para a festa do casamento; sacrifício para os comes e bebes, para aquele bolo enorme que marca todas as comemorações populares. A alegria é sempre a prova dos nove e vale qualquer sacrifício. E o que move a levar a brincadeira de ano em ano, mais forte que a promessa, apesar das renovadas dificuldades e renovadas decisões e até juramentos de não sair que não dá mais, quem o verbaliza é aquela senhora, dona J., dona de um cordão de pássaros de Belém do Pará, entrevistada por Sidney Pihon: a paixão; (...) é uma paixão que a gente tem. No ano que não bota, né... já fica triste, já fica assim (Pihon, 1981, p. 65). E a paixão gera beleza. Beleza das coreografias. Beleza da indui
18 Outros Olhares mentária. farda a festa não sai, como sem fantasia não há escola. Não esquecendo os coloridos das fitas do chapéu do congueiro, a chita quase ofuscante no seu bizarro arranjo dos palhaços de Folia, ou dos molambentos mascarados dos Divinos de pobre, a inventividade e criatividade dos mais humildes, lembremos a estonteante beleza do veludo preto enfeitado e redobrado dos couros do boi do Maranhão. Até as horrendas caretas, os cazumba da mesma festa maranhense têm que sair bonitas. São renovadas de ano para ano, se o dinheiro der, pelo simples prazer de inventar coisa nova, como explicou um brincante do boi ao antropólogo Sérgio Ferretti. Semelhantes a máscaras de rituais secretos africanos, tendo, como eles, ligação com os espíritos, os cazumba também podem ser aproximados daqueles mascarados que saem, pelo carnaval, nos subúrbios do Rio, os cio vis. Estes, armados de bexigas, tal qual os Mateus do bumba-meu-boi nordestino, bexigas que têm origem mágica, vestem roupas coloridas, espalhafatosas, imensas, tal como as dos balões do Maranhão, têm ainda em comum com eles, o fato de esconderem as mãos. Medo de serem reconhecidos, mas também ligação com os eguns, associados à morte. Lembramos ainda o delírio nunca repetido das gigantescas construções dos chapéus dos guerreiros de Alagoas, estapafúrdia mistura de bolas de natal, fitas, espelhos (para afugentar os espíritos), papel laminado, de que o Brasil inteiro pôde ver uma reprodução num cartaz de turismo. Era uma das figuras do grupo de guerreiros de dona Joana Gajurú, que nada recebeu em troca, nem mesmo um retratinho, tão estimado sempre por todos. Mais ainda no caso do modelo fotografado, já que nem ele, nem seus companheiros nunca souberam de sua própria beleza, nunca tendo podido se mirar num caco de espelho que fosse; luxo que a casa deles não comporta. Armações de guerreiros, capacetes de caboclo-reais cujas espantosas dimensões nada têm a ver com a necessidade de verticalização por causa de inexistentes arquibancadas. Gratuidade e inventividade de um luxo e beleza para Joãozinho Trinta
nenhum botar defeito. Diga-se, aliás, que se a concepção das fantasias da escola de samba é do carnavalesco, sua execução, pelo menos nas alas menores que pude observar, sem preocupação industrial, se faz dentro da tradição do saber festeiro popular, com os recursos possíveis, improvisando soluções, modificando o material previsto, mexendo até nos moldes se for preciso, em improvisadas e fervilhantes oficinas familiares. E a beleza dos adereços dos ricos ajaezamentos dos cavalos da grande e rica cavalhada de Pirenópolis, as flores de papel crepom dos burricos da mesma festa de São Luís do Paraitinga! Do altar do Divino chamejante no seu papel de alumínio encarnado! Desde os enormes altares do Império de Parati ou São Luís ao modesto de Anhembi e do terreiro de são Jorge em São Luís (MA)! Puro ornamento, em São Luís (MA) ainda a mesa de doces do Divino da Casa das Minas, um despotismo de formas, cores e arranjos. Do altar de são João do batismo do boi, aos enfeites do altar e do quintal do são Gonçalo na Freguesia do Ó. Os arcos e enfeites mil com bambus sobre o qual Alceu Maynard Araújo, chamava particular atenção (Araújo, 1957). A inventividade renovada a cada festa de orixá, dos arranjos de flores e folhas, aquelas palmeiras desfiadas de Ogum cujas folhas catadas no mato próximo, a elegância na apresentação da comida do santo, o delírio de frutas e folhas da festa de caboclo, sem que haja um decorador especial para criar um conjunto de beleza. O que me leva ao que é fonte de renovado espanto e renovado encantamento: o uso do espaço. As verdadeiras metamorfoses que transformam o menor quintal num espaço sagrado e festivo, dança de são Gonçalo, levantamento de mastro, festa de santo, ainda que não exista a vastidão de terreiro necessária à beleza enlouquecida do orixá dançando. Qualquer homem de teatro, da ala da erudita, poderia tomar lições no mágico metamorfosear de espaços diminutos de noite para o dia, o que significa noites não-dormidas pra quem vai pro trabalho de madrugada. Espaços onde, no cotidiano, há o tanque - a máquina de lavar às vezes - o depósito de cacarecos, que já se torna feérico na véspera da
14 Outros Olhares festa com toda aquela roupa branca engomada, esticada nos varais atravessados de lado a lado. Transformação desse espaço cotidiano num recinto de festa, sagrada ou profana, sagrada e profana. Isto se encontra por todos os bairros afastados, em todas as periferias onde o santo e o samba se completam e se harmonizam. Falar da relação com o espaço é lembrar ainda, no seu conjunto, a festa em louvor de Nossa Senhora do Rosário e são Benedito dos Homens de Cor, em Uberlândia. Ocupação em extensão da cidade toda, pela marcha batida dos ternos (são doze, os grupos) indo e vindo dos quartéis, cumprindo as visitas protocolares. Ocupação concentrada da praça, alegre e descontraída no dia da festa do santo, estonteante na noite seguinte, com o arreamento dos dois mastros plantados de um lado e do outro em frente à igreja. Surgem os grupos dos lados, de trás, subitamente, na frente da gente, varando o povo se preciso for, seguindo o avanço tranqüilo e imperioso do capitão empunhando na horizontal seu bastão de comando para abrir caminho. Sucedendose, altemando-se, simultâneos, dançando no lugar, esperando a vez, os ternos passam e repassam diante das portas abertas da igrejinha azul. Cantam e dançam, como Davi diante da arca, saltando acrobaticamente num movimento que parece arremeter para frente os surdos, solidamente atados na cintura, e eles continuam, lá no alto, a malhar ao mesmo tempo que traçam o prodigioso arabesco. Pulam sozinhos, mas também em grupos de dois ou quatro, numa fingida luta: saltam e erguem tambor contra tambor, arqueados em curva felina. Dança graciosa das meninas da bandeira, tais alegres e fervorosos jograis de uma Nossa Senhora Africana. Vertigem de sons e ritmos que nos envolvem e fascinam no simultâneo de suas diversidades. Como dizer a batida alucinante dos enormes patagongas marcando de modo quase diabólico os pulos sonoros dos moçambiques, o troar e repeniques de bumbos e surdos do catopé, enquanto ressoa, enérgica e ritmada, a malhação das caixas dos congos. O corpo, subjugado e sacudido pelo ritmo, envolvido pelos outros corpos dançantes, tem solicitados todos os sentidos; é preciso olhar também para o suceder de chapéus bordados, fitas, espe-
lhos, vidrinhos, capacetes de reis, saiotes e ainda o trançar do pau-de-fita, aéreo balé dos marinheiros. Tudo culminando no erguer dos diversamente enfeitados bastões dos moçambiques - é o moçambique que dá o fundamento, no cruzar ritmado dos mastros, no seu arreamento e transporte solene e dançante dentro da igreja. Nem bem estamos refeitos da emoção que já vem chegando nova onda de ternos, que nos envolve, de trás, de frente, dos laços, se atropelando quase, batendo cada vez mais alucinadamente, no afã de passar mais uma vez diante das portas sempre abertas da igreja azul, pular e cantar a flor de laranjeira ou aruê Terra de Angola e do Rosário de Maria, dizendo adeus meu senhor, adeus minha senhora, que despedida triste, está na hora de ir embora e sairem correndo pela rua, desmanchando o grupo até pro ano. Não há como não evocar os versos do poeta Carlos Drummond de Andrade: loucura santa, desabrochar do corpo em rosa súbita, em penacho, batuque, diabo, mico a cambalhota em si, o riso puro o puro liberta-se da prisão que cada um carrega em sua liberdade vigiada, medida, escriturada. Está na hora de despedir-se dos donos deste recinto, levar o boizinho e cantar até pro ano. Gostaria de não turvar a carnavalesca alegria do distinto público desse congresso e não direi portanto que, de ano para ano, está mais difícil o boizinho voltar. Pois a pobreza, falta de grana ou forçado auxílio, vai tirando uma figura daqui, outra de acolá, para ganhar mais, há necessidade de aumentar o número de funções. Com isso se encurta o enredo e é ridícula a paga - escassas as sortes - como vem sendo desde os tempos em que Mario de Andrade andava pelo Brasil: O Boi de São Gonçalo outro dia marchou de pé no areão várias horas de sol, pra chegar na Rendinha e ganhar quarenta paus! É horroroso. (Andrade, Mario de, 1983, p. 267). Estranho destino deste país do carnaval, onde a vitória da Quaresma teima em querer parecer definitiva, quebrando a
imemorial alternância, onde o carnavalesco riso de praça pública dos comícios das Diretas se metamorfoseou no luto sem retorno do cortejo definitivamente fúnebre de um Presidente que não chegou a ser. Trágico mundo às avessas. Mas como no país do futebol há que sempre tocar a bola pra frente, convém não esquecer que mestre Arnaldo continua em Itapira (SP) (espero que assim seja) a botar o seu terno de congo pra saudar, malhar e sambar pra são Benedito. Lembrar que, em São Luís do Quitunde e Maribondo (Al) se desmancharam guerreiros, eles ressuscitaram da memória de migrantes de lá, cá no Guarujá, São Paulo. Que, forçados a ir buscar trabalho na capital, o povo do reinado volta todo ano, já não em outubro, mas em julho, mês de suas férias, para louvar o rosário na Vila Nova do Príncipe, Serro (MG) onde os esperam os velhos e feiticeiros catopés de Milho Verde. E chegam acompanhados pelo terno de congo da industrial Contagem. O bem-encaminhado montador da Ford de São Paulo não esquece de voltar para Poços de Caldas; envergar suafarda de veludo azul de Carlos Magno, na festa de são Benedito a 13 de maio e muitos de seus colegas de São Paulo são irmãos fluviais do Divino em Anhembi (SP). Conhece-se a triste fama da Baixada Fluminense, mas esquece-se de dizer que lá, como nos morros, como também em São Paulo vêm aumentando as Folias de Reis. E dona Chiquinha e suas irmãs da Freguesia do O, em São Paulo, já vêem suas netas, cursando faculdade, mas continuando a tradição do gracioso caracol das voltas de são Gonçalo no quintal familiar. Continuam erguendo os mastros votivos com as respectivas ladainhas, eco paulistano dos mastros erguidos pelos católicos voduns, ao som das alegres caixeiras no longíquo São Luís do Maranhão. Ou, inversamente, os paus-de-arara que vão ao sul (a São Paulo, Paraná etc.}, quando regressam aos seus penates, após certa permanência nessas novas áreas culturais, introduzem sensíveis modificações nos hábitos de sua antiga comunidade; contam estórias que lá ouviram, cantam cantigas sulinas e tocam na fanfarra músicas regionais aprendidas no sul (Duarte, 1974, p. 329). Essas trocas e rememorizações parecem-me tênues, mas alvissareiras novidades:
a tradição, não-incentivada por qualquer organismo oficial, mas fênix renascida da própria mudança, pelos atores de sempre. Esta teimosa retomada denota uma obstinada conservação de uma experiência que é a da história dos brincantes, que se manterá viva e grávida de futuro, enquanto puderem continuar a exprimi-la, a narrá-la sob a forma de representação no espaço e a comunicá-la a quem souber entender a mensagem. E se insisti tanto em apontar os traços da arqueocivilização - para usar o termo de Varagnac - de antigas tradições, nas formas dos brinquedos populares, que por isso mesmo reputo carnavalescos - não foi só para elencar meras e ultrapassadas reminiscências ou justificar teorias, às vezes também muito amplas e vagas. Pelo contrário: o fato de vê-las aflorar nestes brinquedos rústicos de além Europa, de além África, aqui, na terra dos papagaios, me parece confirmar a força que emana daqueles que podemos chamar arquétipos, por terem informado tantas culturas, e, desta maneira, conferir a universalidade aos nossos humildes, fragmentados e alegres folguedos. Uma força, um simbolismo, ainda que inconscientes, que me parecem se manterem sempre presentes nestes nossos países debaixo do Equador, sempre em parto contínuo, para o que darei um só exemplo: a continuada presença daquelas típicas formas carnavalescas, os gigantões ou cabeções, ou bonecos. Podemos ver nestes últimos anos a força desses gigantes, de tão arcaica memória, e que vêm de há tanto, incrustados no imaginário nacional (onde a gigante Miota do livro de Carlos Magno torna-se figurante do Divino). Associados tanto a festas religiosas como ao carnaval propriamente dito, desde os modestos carnavais do litoral alagoano, aos cabeções de São Luís do Paraitinga e ou do Estado do Rio, da Maricota catarinense aos triunfantes bonecos das troças de Olinda e Recife, eis que também se incorporam aos recentes grandes momentos políticos brasileiros. Aquela força de vida que é tradicionalmente a deles, simbolizava a esperança popular ao construírem os bonecões de Teotônio Vilela e de Tancredo Neves. Vigília do boneco na angústia do Incor. E bonecos ainda, bonecos do carnaval de Recife e Olin-
da acompanhando o cortejo fúnebre do ministro Marcos Freire desde o aeroporto, pelas ruas de Recife, até o cemitério. Morte e ressurreição. Esperança e alegria, como aquela que levou a Estação Primeira de Mangueira a exaltar Carlos Drummond de Andrade - este poeta genial; suas obras são palavras de um reino de verdade - como dizia a letra do samba. Descarnavalizando - este texto assumiu, sem o menor constrangimento, o deslumbramento que já está num texto anterior (Meyer, 1993 a, p. 19-46) e vem embutido também na leitura da forma das manifestações populares no momento das diretas, e no trágico anticlímax dos funerais do Presidente Tancredo Neves (Meyer, 1985). Aproveitei o pretexto - falar do carnaval em congresso acadêmico - para, carnavalesca e desabridamente, render preito mais uma vez ao que de belo produzem as classes populares. Mas este texto também tem um subtexto, pouco original aliás: a preocupação que já é do artigo citado (Meyer, 1985) com o fosso entre a cultura letrada e a outra; fosso que tende a se alargar, constatação igualmente pouco original mas confirmada cada dia. Cada vez mais longe de mim e de minha classe o acreano brasileiro que nem eu. A observação da já referida festa de Nossa Senhora do Rosário e são Benedito dos Homens de Cor em Uberlândia só faz confirmar o fato e reaguça o problema que é na verdade político. A festa é ignorada pelo conjunto branco (?) da população, que tende a desprezá-la por ser festa de negro, coisa de senzala. Como me explicam alunas negras da Universidade Federal de Uberlândia: como aqui já foi quilombo, eles nem querem ouvir falar (Meyer, 1993 b, p. 161-9). A mesma atitude, alias, foi compartilhada por muito jovem negro de Uberlândia, no dizer do Capitão do Terno de Moçambique Estrela do Oriente, senhor Cândido Geraldo Ananias, que viam a festa como coisa de antigo, coisa de negw, atitude que tende, porém, a mudar com a liberdade que está dando este prefeito, ele quer esclarecer; a gente precisa esclarecer - então os moços têm outra vez orgulho de ser negro, diz o capitão. E, com efeito, a maioria dos ternos apresenta quantidade de jovens, entusiasmados tocadores e acrobáticos dançantes (diga-se aliás que os velhos não lhes ficam atrás); muita cri-
ança também, dentro do antigo preceito. E muito capitão moço. Este descompasso entre os que fazem e assistem à festa negra da praça e o alheamento do conjunto da população da cidade, coloca uma questão igualmente óbvia, e pouco original. Enquanto os brancos e, principalmente a classe política, não tentarem compreender esse outro que é também um brasileiro que nem eu, o negro e sua cultura tão brasileiramente reelaborada, que se traduz talvez cada vez menos pela conservação de antigos folguedos de cunho cristianizador e cada vez mais pela complexa elaboração de cultos afro-brasileiros, enquanto não houver esse reconhecimento, a aceitação de esclarecimento, qualquer tentativa de mudança está fadada a marcar passo, afundará cada vez mais o país real no brejo. Não basta haver número cada vez maior de branco procurando suprir a atual e universal carência de sagrado na freqüentação de terreiros. O que também implica uma apropriação desse rico universo simbólico e traduz muitas vezes uma opção de classes, por exemplo, ao privilegiar o candomblé e não a umbanda, como aponta muito bem Peter Fry. O próprio intelectual que, com seu trabalho de pesquisa visando sistematizar e organizar o caos aparente de uma mitologia em estado de invenção permanente, amplia o conhecimento intrínseco desse mundo em que se move a grande maioria da população espoliada brasileira, esse intelectual, no entanto, nem sempre rearticula este conhecimento com o da chamada sociedade global. Não basta deslumbrarmo-nos com as festas ou nos apropriarmos comodamente de cultos que teríamos preguiça e incapacidade de inventar, nem contentarmo-nos em devolver à comunidade os livros que ela nos inspirou e que ela sempre astuciosamente re(digere) aliás, o que levaria dialeticamente a reexaminar esses novos conteúdos. Para lançar ou consolidar as pinguelinhas que aproximam os dois lados do fosso para aumentar o respeito e o conhecimento do que move essa gente, circulando tão naturalmente do cotidiano à festa e, da festa ao sobrenatural, para fazer o trabalho político efetivo, haveria ainda que romper o gueto dos saberes etiquetados e compartimentados. Para tomar consciência e aprender a dialogar com esse formidável mundo paralelo que se desenvolve lado a lado com
17 o nosso diminuto, poderoso, arrogante e obscurantista poder de minoria dominante, e cujo conhecimento deverá ser a principal preocupação de uma classe política efetivãmente preocupada com a mudança; classe política que manipula o que há de mais
facilmente atingível ou cobra o conservadorismo e a alienação de gente cuja premente e cotidiana regra de vida é saber, cada dia, como vai sobreviver no dia seguinte, Que a pólvora ameaça explodir, no que não será festivo foguetório do Divino.
Outros Olhares
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Carnaval em São João dei Rei: quando a tristeza é imposta para comprometer a festa lêda Marques Britto Socióloga e autora do livro Samba na Cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural. (FFLCH-USP, 1986)
São João dei Rei, cidade histórica do período colonial localizada entre Lavras e Barbacena, tornou-se conhecida como o principal centro abastecedor interno na economia colonial, mais especificamente no século XVIII: era dali que saíam as tropas de mulas, carregamento de mantimentos, vestuários etc. que afundavam pelas cidades mineiras. Como em toda Minas Gerais, era grande o contingente populacional negro morador na cidade e que viria a ser o responsável pela forte herança cultural até hoje presente nas terras cercadas pelas montanhas. Desta maciça presença negra, que no passado constituiu séria preocupação para os dirigentes, aliada à pesada marca de exescravos, teve origem a profunda diferenciação social existente entre brancos e negros em São João dei Rei. Nas primeiras décadas deste século, um observador atento poderia constatar, além da referida diferenciação, a existência do confronto entre brancos e negros. O córrego do Lenheiro, que atravessa a cidade, é quase marca física de divisão estabelecida. De um lado, encontra-se a parte mais antiga da cidade, o comércio, e ganhando ladeiras de calçamento de pedras, chega-se aos morros: quanto mais elevados, maior a certeza de serem locais de moradias populares. Do outro lado do Lenheiro, os prédios históricos da antiga cadeia, hoje Câmara Municipal, do Fórum, da Prefeitura, os bairros mais novos da pequena burguesia e das famílias mais abastadas. Ambos os lados guardando marcas das riquezas
anteriores: a igreja de Nossa Senhora do Carmo e a de São Francisco, ambas de traçado do Aleijadinho, se bem que somente a última tenha sido realmente conservada, sem nenhuma alteração na proposta original, tanto externa quanto internamente. Para além da divisão imposta pelos chamados condicionamentos econômicos, na esfera social, movem-se brancos e negros nos espaços delimitados: as irmandades religiosas, as orquestras como as popularmente conhecidas, a dos Coalhadas e dos Rapaduras, os salões, enfim: do rezar ao cantar, a vida ali é vivida assim. Tampouco o lúdico escapou a esta divisão racial: durante o ano todo, a cidade é dos brancos com suas festas religiosas católicas, sendo as mais importantes as vinculadas à Semana Santa, cujas comemorações vão além dos concertos sacros e extravasam o recinto das igrejas chegando às ruas, com as belas e antigas imagens saindo em procissão e as pequenas capelas localizadas nas vias públicas - os passos, abertos à visitação. A época do carnaval marca uma trégua, invertendo as regras de convivência, em exemplar demonstração do caos, a base intrínseca do carnaval, ou seja, a inversão da ordem estabelecida. Nesses dias, a sociedade branca recua para o interior das casas, no muito às janelas e aos balcões. Então as ruas ganhas pelas organizações carnavalescas populares mostram de tudo: blocos de sujo, bandas e finalmente os ranchos, blocos e escolas de samba nos desfiles tão esperados pela população acomodada nas arquibancadas modestas e nas cadeiras dispostas nas ruas.
Alguns são muito antigos, com mais de 50 anos de fundação, e trazem como característica maior terem sido criados e mantidos por grupos negros moradores nos bairros que lhes emprestam seus nomes: o bloco Bate-Paus do Senhor dos Montes, São Geraldo, Escola de Samba Largo da Cruz, de Matozinhos etc. Por ter sido região muito rica em congadas, percebe-se sua presença na formação, já que os produtores culturais são os mesmos na maioria das vezes. Por um outro braço, a influência das agremiações cariocas também se faz sentir, pois o intercâmbio sempre aconteceu via Juiz de Fora, e é notada principalmente na batida dos instrumentos de percussão. Por detrás desta folia, a cada ano mais espichada (uma semana em 1985!) um precário equilíbrio, que nos últimos anos já vinha apresentando sinais de ruptura. Para as elites são-joanenses, o carnaval tem se resumido na alternativa de participação nos bailes dos clubes, já que não é de seu agrado nem mesmo o tradicional e jocoso Bloco da Alvorada, saudação oficial do carnaval quando todo mundo de pijama, o traje obrigatório, dança nas ruas ao som dos clarins. Quanto ao desfile das escolas de samba, apenas uma é considerada, aquela que vinda de Belo Horizonte foi organizada dentro do modelo hegemônico carioca de estética e luxo, limitada a presença negra à bateria com participantes moradores em São João dei Rei. Trata-se sobretudo da criação de um representante das elites, um intelectual com laços familiares e políticos suficientemente forte e que publicamente assumiu sua condição de classe social, ostentada na faixa enorme que encerrava sua apresentação em 1979: Somos uma escola burguesa dizendo ao povo alguma coisa. Nos anos seguintes, sua participação foi variada, ora como escola, ora como bloco ou cordão, mantendo contudo o luxo e grande número de participantes, o que veio
a estabelecer um referencial de prestígio, já que vinha sendo bem sucedida quanto à premiação. E sobretudo preenchera um vazio na aspiração burguesa de representação e predomínio da festa clareando um espetáculo tão bonito mas com muito negro. Observação recolhida inúmeras vezes pela autora junto a assistentes dos desfiles nos últimos anos. Contudo, o outro fator de maior força se impôs a partir de 1985: tratava-se da súbita notoriedade que São João dei Rei adquirira por ser terra natal de Tancredo Neves, Presidente eleito pelo Congresso Nacional. A repentina projeção reavivou, sem dúvida, na memória coletiva, anseios há muito esquecidos. De fato, São João dei Rei, desde os tempos da Inconfidência, viveu a promessa de um destino de grandeza, pois foi ali, na antiga Vila São José, hoje Tiradentes, que se reuniram os patriotas na que foi chamada pela História, a trama mineira. Mas, ao contrário de dias de glória pela liberdade conquistada a partir daquelas terras, viu seus heróis destruídos e amaldiçoados, mergulhando em pesado esquecimento. Duzentos anos depois, nova promessa de dias de afirmação com a ascensão de outro ilustre, agora ao posto supremo do país, fazendo justiça aos anseios gloriosos há tanto tempo reprimidos. Porém, o destino prometido não se confirmou nem com Tiradentes nem com Tancredo e, com a morte deste às vésperas de ascender ao cargo máximo, deu-se o adeus definitivo a esta possibilidade. De fato, não havia mais esperanças. São João dei Rei recolheu-se sobre si mesma, raivosa, a certeza repetida: agora nunca mais. Por muito tempo, os olhos do mundo estiveram ali, porque, inevitavelmente, deveria abrigar os despojos do morto ilustre no minúsculo cemitério da ordem de São Francisco, contíguo à igreja e a cuja irmandade Tancredo Neves pertencera.
Mesmo depois do cerimonial, os visitantes ilustres continuaram chegando, políticos influentes principalmente. São João dei Rei transformara-se em referência nacional, pois até presidente estrangeiro caminharia por suas ruas e passaria pelo estreito portal do cemitério. Durante o ano de 1985, a cidade foi resgatando seu quase destino de glórias; novas alternativas foram configurando-se, novas estratégias sendo percebidas. As romarias que se seguiram em visitas ao túmulo de Tancredo Neves serviram de estímulo para um novo tipo de turismo, as estreitas ruas mal comportando os pesados ônibus lotados de gente curiosa. Para São João dei Rei surgia a possibilidade de transformação em uma nova cidade santuário, e de acordo com esta proposta, seu carnaval, até então considerado o melhor de Minas Gerais, passaria a comprometer este clima, no vislumbre de restauração da magnitude duplamente perdida de forma trágica, antes mesmo de concretizar-se. À semelhança do que ocorrera no país, articulações desmembravam-se a todo momento e o carnaval, cujo período se aproximava, iria refletir o que se passava no interior dos arranjos políticos. Divergências sérias entre o prefeito e demais dirigentes políticos, ainda que abrigados no mesmo hegemônico partido, definiram os rumos imediatos a serem seguidos. Uma cidade santuário teria, acima de tudo, sua dignidade pública mantida se, enquanto solo sagrado, não comportasse a escancarada folia. Convinha, porém, que tais projetos grandiosos não ultrapassassem as paredes que os ouviam. Assim, até o último momento, as verbas públicas para blocos e escolas continuaram prometidas, mas não distribuídas. O prefeito tomou para si a tarefa de subir aos morros (sedes das agremiações carnavalescas populares), convocar as associações de bairros e propor a troca das subvenções por melhorias: asfalto, calçamento, rede de esgoto etc. Só a de um
desses blocos significava a quantia de Cz$ 750.000,00. O dirigente máximo da escola de samba autodenominada burguesa, então investido nas funções de Secretário de Estado da Cultura, mantinha suas divergências com o prefeito, pertencente acorrente política diferente da sua. E surgiram as promessas, por parte da Prefeitura, de doação de quadras às escolas de samba, concretizando-se, todavia, a doação de um grande terreno em área central apenas e justamente para a escola de samba burguesa. Dia lü de março de 1987, chegou o carnaval. O pessoal das escolas de samba e blocos, percebido o malogro, abriu os armários tirando alguma fantasia, qualquer uma, desde que em ordem; as baianas ajeitaram o que tinham, o pessoal das escolas foi aparecendo nas casas dos dirigentes pedindo instrução. A senha foi passando: o pessoal da bateria, camiseta, calça e tênis branco, boné mesmo de propaganda. Isto todo mundo tinha. Na hora combinada, todo mundo foi descendo rumo à avenida, cada um com seu instrumento. Um samba especial, coletivo, criação de compositores de diversas agremiações que havia sido feito a propósito, já estava decorado. Na avenida sem arquibancadas, apareceu uma corda, a delimitação do espaço físico, os alto-falantes despejavam rocks, a moçada protestava, o som era ligado e desligado. Por fim, depois de muita negociação, foi desligado. Todos os dias do carnaval de 1987 foram assim. Durante o dia, os grupos ficavam fazendo um batuque pelas esquinas. A polícia vinha e dizia: não pode continuar. Os sambistas reagiam, havia confronto. Novamente as notícias do que estava se passando corriam rápidas, boca a boca. Desceu todo o mundo de novo para os locais de confronto, as baianas sem as baianas. Ao final, o samba especial foi para o meio da rua. Pela primeira vez, em mais de 50 anos, não houve desfile de carnaval em São João dei Rei. O último rancho de Minas Gerais, justamente o Custa mas Vai, dali
de São João, acabou. Aliás, antes do carnaval já tivera sua sede, localizada na periferia da cidade, invadida pela polícia e depois fechada. O bloco mais antigo, o Bate-Paus, com 55 anos, não desfilou. Por decisões superiores, o festival de inverno de Minas Gerais foi transferido nesse ano, de Diamantina para São João dei Rei. Mas não foi sucesso.
Quando vivo, Tancredo Neves apreciava muito os desfiles de carnaval e, matreiro, sabia valorizar uma baiana catita com um reverente e público beijo em sua mão. Não faz tanto tempo assim, foi em 1979, ali na avenida Rui Barbosa. Mas naquela época, a tristeza não era ainda recurso oficial, máscara fora de hora, e a folia estava garantida.
&3 Outros Olhares Considerações sobre a Preservação do Patrimônio Histórico da Região Central de Campinas* Ana Cláudia Fonseca Brefe Doutoranda do Programa de Pós-Graduaçãw de História-Unicamp Cristina Meneguello Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História-Unicamp
Patrimônio: o passado revisitado pelo presente Nas últimas décadas, a atenção à memória tem se intensificado e difundido pela sociedade, atingindo diferentes grupos e setores sociais, mesmo que nas diferentes definições dela feitas estejam mescladas a memória entendida enquanto retenção de informações, enquanto possibilidade de resgate e de permanência do passado e enquanto reconstrução permanente. De modo geral, o crescente interesse pelo tema fundamenta-se nas convicções de que valorizar a memória é uma das últimas esperanças para se manterem tradições do passado que estejam desaparecendo e além disso, é a maneira mais eficaz de reforçar e manter a solidariedade e identidade de grupos sociais (memória coletiva).1 No entanto, apesar de fazer parte do universo de construção de identidades sociais e culturais, uma das principais características da memória é sua plasticidade, que lhe permite moldar-se a diferentes abordagens. Se de um lado a memória permite resgatar e repor antigas experiências, por outro, ela é o lugar através do qual se marca a diferença entre épocas e espaços e indica que, irremediavelmente, o passado só existe como exercício de construção consciente - e muitas vezes direcionado - do presente. É fundamental dizer, como magistralmente teoriza Pierre Nora no texto introdutório da obra Lieux de Mémoire, que a memória - sobretudo ao longo deste século - tornou-se um dos objetos privilegiados
da história. E, nesse caso, ao ser apropriada pelo conhecimento histórico transformou-se: entre a memória verdadeira, hoje refugiada no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio, nos sabe res reflexos, e a memória transformada por sua passagem na história, o que é quase o contrário: voluntária, deliberada, vivida como um dever e não mais espontânea; psicológica individual e subjetiva, e não mais social, coletiva, englobante.2 Ao deixar-se envolver pela densa rede da memória, a história sofre alterações, de forma que, durante boa parte do século XX, ela desenvolve-se e orienta-se como uma história-memória, sobre o modelo da rememoração da anamnese e da memorização - apesar de sua preocupação em ser crítica ela é, antes de mais nada descritiva.3 Por outro lado, a memória, depois de sua longa e gradual absorção pela história, recebeu novas formas de conceitualização e de definição. A medida que a sociedade perde os mecanismos para preservar sua memória - aqueles ligados à tradição oral há uma obsessão em materializá-la em registros escritos. Dessa forma ela foi tornando-se arquivística e preocupada em registrar todos os objetos, documentos, espaços, enfim tudo aquilo que, de alguma forma, parecesse significativo para ser conservado como memória: o sentido de desvanecimento rápido e definitivo combina-se com a inquietude do presente e a incerteza do futuro, dando ao mais modesto dos vestígios, ao mais simples dos testemunhos a dignidade virtual do memorável.4 Portanto, pode-se dizer que a memória é hoje um enorme estoque material resultante do
* Ene texto (oi redigido em 1994 e suas informares sobre tombamento1 abrangem até essa data. Na clássica obra /I Memórii CoUtíví haurice Halbwachs afirma que a memória se assenta na vivência dos grupos sociais, de modo que só existe lembrança ou capacidade de lembrar. enquanto houver uma tradição coletiva que a sustente. Para esse autor a memória é sempre coletiva e se apóia na coesão do grupo, pois ela é uma corrente de pensamento continuo - de continuidade natural - que retém do passado aquilo que está vivo ou ainda pode viver na consciência de um determinado grupo social. HALBWACHS. Haurice. A memóriã co/trin. São Paulo: 1Vértice, 1990. NORA. Pierre. Entre mémoire et histoire: Ia problémalique des lieux. In; Lei Lieux de Mémoire L: La Republique, Paris. p. 25. 1984. 1 Ibidem, p. 25. 1 Ibidem, p. 26.
Outros Olhares
'ARANTES. Antonio Augusto. Produiindo o pando: tümkiui de construção do patrimônio cultural. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/Condephaat/Brasiliense. 1984. p. 9. ' LEFÈVRE, José Eduardo. O resgale di irei antni São Paulo: Empresa Municipal de Urbanização (EmurbJ/Prefeitura do Município de São Paulo, 1991.
acúmulo compulsivo e desmedido de tudo aquilo que é importante lembrar, mas que a qualquer momento pode ser necessário recordar-se. No que se refere à preservação do patrimônio histórico-cultural de uma cidade e à constituição de uma memória urbana, tais considerações assentam-se em problemas básicos. O que deve ser preservado e o que deve ser destruído ou submetido a intervenções urbanas em uma grande cidade onde a necessidade de novos espaços é sempre presente? Como se determina a herança histórica de outras épocas; o que melhor expressa a cultura, a identidade e a memória de uma cidade; enfim, o que é digno de pertencer ao patrimônio urbano? De fato, estas decisões jamais se limitam a escolhas baseadas em critérios apenas técnicos e históricos, mesmo porque os olhares que se voltam para o passado urbano estão sempre comprometidos com problemáticas que partem do presente. De certo modo, a preservação pode ser definida como o trabalho transformador e seletivo de reconstrução e destruição do passado que é realizado no presente e nos termos do presente. No esquecimento ou na lembrança, em cada uma das diversas estratégias de restauro, monitoramento e reaproveitamento de velhas estruturas, ou na destruição, reencontra-se sempre o passado interpretado Na questão da preservação, perceber este mecanismo não implica em descartar a possibilidade de fazer escolhas e a necessidade de fazê-las. No caso específico das regiões centrais das cidades, são escolhas usualmente enfrentadas: afinal, como ocorre na maioria dos centros urbanos, tais regiões sofreram ocupações diferenciadas ao longo de sua existência. Se em períodos áureos elas são o local das residências dos grupos abastados e do comércio e lazer elegantes, vão sendo progressivamente tomadas pelo comércio massificado e por escritórios, enquanto os bairros residenciais se afastam rumo ao subúrbio. Por fim, transformamse em corredores para ônibus e pontos de distribuição do fluxo do tráfego e são ocupadas por populações de baixa renda, o que, numa visão não desprovida de preconceito, as desvalorizam ainda mais.
Esta mobilidade nas funções que uma região pode assumir ao longo dos anos é facilmente observável a partir do século XX, sendo que um último movimento deste processo parece ser o recente retorno da metrópole ao local de origem. Uma cidade como São Paulo buscou empreender um retorno ao centro levando a administração política de volta ao local da fundação, explorando uma relação histórica transparente.6 Independente disso, tem se tornado imperativa a manutenção das regiões centrais inserindo-as na trama urbana para que não se tornem manchas de estagnação. O tombamento da região central de Campinas - breve histórico A preocupação com a preservação do patrimônio histórico na cidade de Campinas, comparativamente a de outros centros urbanos, é muito recente. Isso gerou, ao longo do anos, um apagamento crescente dos traços da cidade do passado. Antes da década de 80 somente três tombamentos haviam sido realizados na cidade (Palácio dos Azulejos em 1967, Bosque dos Jequitibás em 1970 e Capela Nossa Senhora da Boa Morte em 1972), todos pela atuação do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), já que só em 1987 foi criado o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc), órgão responsável pela política de preservação do município. Até então, a ausência de políticas efetivas de preservação agravou a descaracterização sofrida pelos espaços, pois a cidade sofreu diferentes intervenções despreocupadas com a questão da preservação da memória urbana. Como tentativa de refrear a descaracterização, em 29 de dezembro de 1988, foi criado, através de resolução publicada no Diário Oficial, o Centro Histórico da cidade de Campinas. Para delimitação da área tombada criou-se um traçado que envolveu os quatro principais monumentos então tombados do centro da cidade, a saber, o Solar do Visconde de Indaiatuba (esquina da rua Barão de Jaguara com rua General Osório), o Solar do Barão de Itapura (Pucc
25 Central, rua Marechal Deodoro, 1.099), o Solar do Visconde de Itatiba, mais conhecido como Palácio dos Azulejos (rua Regente Feijó, 841) e a Catedral Metropolitana (praça José Bonifácio). [Vide mapa 1]. Essas construções foram escolhidas não apenas por seus valores artísticos e arquitetônicos, mas por serem marcos do desenvolvimento urbano da Campinas do século XIX, promovido em parte pelo surto cafeeiro na região. Os três solares demonstravam claramente a opulência e o poderio econômico que a lavoura cafeeira havia trazido para a aristocracia campineira que, subitamente endinheirada, investira em residências e melhoramentos urbanos. Tendo como referência esses quatro edifícios, traçou-se um polígono que começa na rua Major Solon, passa pela avenida Anchieta, rua Irmã Serafina, avenida Dr. Moraes Sales, rua José de Alencar, rua Ferreira Penteado, rua José Paulino, avenida Francisco Glicério, rua Dona Isoletta Augusta de Souza Aranha, rua Sacramento, rua 14 de Dezembro, rua Dr. Quirino até encontrar novamente a rua Major Solon, ponto inicial do perímetro. [Vide mapa 2]. A partir da resolução assinada pelo então Secretário Municipal de Cultura de Campinas, Antonio Augusto Arantes Neto, ficaram proibidas a reforma ou demolição sem a prévia autorização do Condepacc de qualquer uma das setenta e nove edificações que passaram a pertencer a esse zoneamento. Além disso, os termos da resolução em questão definiam que a área do assim denominado Centro Histórico deveria passar por um processo de recuperação, revitalização e planejamento visual que permitisse o seu reconhecimento e, sobretudo, que garantisse a visibilidade adequada dos imóveis preservados.7 A iniciativa do Condepacc encontrou críticos que a classificaram de oportunista e demagógica, principalmente por ter se dado no último dia do mandato do então Secretário Municipal de Cultura. As críticas ressaltaram também a falta de critérios, de fundamentação clara e de esclarecimento junto à população, especialmente aqueles proprietários de imóveis dentro da área do polígono.8 Por sua vez, o Condepacc sustentou o fato da área delimitada ser a mais
antiga da cidade bem como denunciou que, nos dias imediatamente anteriores ao tombamento do Centro Histórico, um edifício na rua Barreto Leme esquina com rua Luzitana foi demolido da noite para o dia, enquanto outro (onde se encontra o Bar Giovanetti II) teve suas características alteradas por uma súbita reforma. Na administração seguinte, os limites do Centro Histórico foram regulamentados, em 27 de julho de 1989, através do decreto n- 9.867, assim como o zoneomento de preservação que passou a reger a área, sendo definidas todas as regras para quaisquer reformas ou construções a serem realizadas neste perímetro. Novamente a questão do Centro Histórico gerou controvérsias, desta feita com representantes do setor imobiliário da cidade. De um lado a Associação de Empresas do Setor Imobiliário de Campinas (Habicamp) criticou a medida afirmando que o tombamento desativaria a região, inviabilizaria empreendimentos imobiliários e impediria o progresso urbano. De outro lado, o Sindicato dos Empresários da Construção Civil (Sinduscon) deu total apoio ao tombamento acrescentando que era preciso preservar a memória urbana da cidade mesmo que isso trouxesse prejuízos à construção civil.9 De modo geral, o argumento da necessidade de progresso, que muitas vezes oculta interesses imobiliários, é pouco convincente. Mesmo assim, já justificou inúmeras demolições ocorridas na cidade de Campinas - para citar o caso mais célebre, o do Teatro Municipal Carlos Gomes demolido por ocasião da administração do prefeito Rui Novaes. Ainda assim, a criação do Centro Histórico veio não apenas no sentido de preservar monumentos históricos, mas com a meta de transformar o centro em espaço de sociabilidade e de agradável circulação. A recuperação do espaço através do restauro e de um planejamento visual (despoluição das fachadas que ofuscam as construções mais antigas), teoricamente, tomaria a região atraente para comerciantes, freqüentadores e passantes, constituindo-se numa revitalização de interesse comum. Vale salientar, também, que as polêmicas que envolveram o Centro Histórico da cidade de Campinas não pararam por aí. Recentemente - mais pre-
Outros Olhares
' Resolução n1001 de 19 de dezembro de 1988, publicada no Diário Olidal do Huniclpio em 29/12/1988. 1 Uma das mais severas criticas ao então Secretário Municipal de Cultura. Antonio Augusto Arames Neto. veio do arquiteto Luiz Cláudio Bittencourt diretor da fundação Febre Amarela. A polêmica gerada pela resolução pode ser acompanhada nos jornais da cidade - Correio Popular e Diário do Povo • no período que vai do tombamento em dezembro de 1988 até sua regulamentação em julho de 1989. Conferir sobretudo: DIÁRIO do Povo, Campinas. 28 jan. 1989. CORREIO Popular, Campinas. 27 de jul. 1989. Mbidem.
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cisamente em fevereiro de 1994 - os Conselheiros do Condepacc, descontentes com o perímetro delimitado em 1989 como Centro Histórico de Campinas, decidiram por redefinir seu traçado. O argumento que justifica essa decisão - reforçado inclusive pela Supervisora do Patrimônio Cultural de Campinas, Ana Villanueva - é de que Campinas teve vários centros ao longo dos anos e, no entanto, os contornos do atual Centro Histórico não correspondem a nenhum destes c^/i/ros'. Assim, pretende-se redefinir o perímetro estabelecido em 1988, levando-se em conta uma delimitação que demarque, mais fielmente, essas regiões centrais do passado. Todavia, o novo traçado não foi ainda estabelecido.10 Impasses do pós-tombamento
" CORREIO Populir. Campinas, 26 (ev. 1994. " Conlerir, por exemplo: BOTEY defende a preservação funcional. In: 0 Estido de S. Eju/o, São Paulo. 29 ago. 1994. (Sobre a integração do patrimônio histórico i cidade contemporânea defendida pelo arquiteto catalão Josep Maria Botey). "MENESES. Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das ciências sociais. In: fíevim do Iniiiluio de Estudos BnsUeiros. São Paulo. n. 34. p. 1921.1992. No caso. o autor analisa estes mecanismos no que se refere ás coleções arquivislicas.
O impasse que a preservação apresenta às cidades em crescimento, entretanto, tem seu início exatamente no ponto em que o processo de tombamento tem seu fim. A concretização do tombamento não deve implicar na estagnação da região tombada, cabendo às iniciativas pública e privada garantirem a vitalidade daquele espaço. Ou seja, que a área protegida continue inserida no contexto urbano, e não se torne uma área à parte. A concepção que privilegia a função dada ao local tombado, de forma a evitar opresepismo (belos e inúteis imóveis tombados) é amplamente compartilhada por arquitetos, historiadores e urbanistas ligados à questão da preservação do patrimônio." Porém, não é de simples realização e, dentre outros, dois problemas são evidentes. O primeiro reside no destino dado a tais prédios - fatalmente, o de tornarem-se centros culturais, ou seja, museus dedicados ao próprio prédio que os abriga. Em parte, isso revela uma interpretação da memória como fator não-dinâmico, reduzida objetivamente a seus produtos materiais e ausente de uma investigação sobre seus agentes passivos e ativos - ou seja, uma memória reificada. Nesta abordagem, surpreende-se a memória transformada em mercadoria e em instrumento de legitimização sob a denominação de cultural.n A
aparente dificuldade em encontrar-se outros usos para prédios tombados que não os culturais revela assim uma armadilha do próprio tombamento - sem uso que não o museológico, eles findam por tornar-se um enclave dentro da estrutura de cidades que não estão paralisadas, e as quais apenas o uso racional dos espaços pode livrar da estagnação ou das manchas de destruição. Um segundo problema consiste na delicada questão, poucas vezes debatida de forma satisfatória, da não-existência de uma política adequada de compensação para os proprietários de imóveis tombados. Donos de valorizados lotes urbanos encaram como uma punição a perda da possibilidade de darem um uso àquilo que continua a lhes pertencer, mas então sob regras que apenas desestimulam a preservação por sua parte. É preciso admitir que argumentos românticos baseados em um ressuscitar da cidade do passado não são suficientes para evitar que os imóveis fiquem muitas vezes em estado de total abandono. No mais, argumentos do úpopreservação pela preservação, não-justificáveis inclusive do ponto de vista histórico, dificilmente podem atrair a iniciativa privada ou mesmo a mobilização dos cidadãos, fatores eficientes e necessários para a manutenção de tais regiões. Ainda que nos últimos anos veicular uma boa imagem associando-se a iniciativas preservacionistas tenha sido uma política constante de empresas e bancos, raramente o resultado vai além de uma manutenção da fachada de prédios completamente destruídos ou descaracterizados em seus interiores. Neste sentido, vale apontar para as sugestões valiosas apresentadas quando do processo de revitalização do Centro Histórico de São Paulo. Dentre elas, a idéia áe operação urbana, que além de conciliar as potencialidades do poder público com as do setor privado (por exemplo, o poder público ao propor a venda do direito de construção a um empreendedor, aplica os recursos obtidos com habitação dentro da própria área assim controlando a paisagem urbana), possibilita a manutenção de edifícios tombados. Isso porque, tendo em vista a impossibilidade de um retorno financeiro para o proprietário de imóveis tombados, a
29 operação urbana sugere uma espécie política de compensação, qual seja, a transferência do potencial construtivo do imóvel tombado para outra região, levando em consideração sempre o valor de uso que fora congelado pelo tombamento.13 Em Campinas desde o ano de 1993, estuda-se a possibilidade de realizar medidas desta natureza, tentando de um lado contentar os proprietários dos bens tombados e, de outro, garantir a preservação e conservação desses imóveis. Nesse sentido, pretende-se fazer de Campinas lugar de experimentação para o projeto piloto que está sendo desenvolvido pelo Condephaat que, em linhas gerais, busca desmistificar os processos de tombamento frente aos proprietários e, sobretudo, integrar as ações dos Municípios, dos Estados e da União nas questões que concernem ao patrimônio histórico urbano. Esse projeto, que ainda não está completamente definido, mas que já engloba discussões feitas entre o Secretário da Cultura de Campinas - Luiz Roberto de Liza Curi - e o Presidente do Condephaat - Marcos Gadelho - pretende atrair a iniciativa privada nos processos de tombamento e preservação, pois o poder público - como sabemos - não tem recursos para gerir o patrimônio histórico urbano. Algumas das medidas que permitem essa aproximação são: uma maior flexibilidade nas negociações entre o Estado e os proprietários; a eliminação - em alguns casos - das áreas envoltórias do imóvel tombado; a transferência do potencial construtivo do imóvel para outras áreas urbanas; a isenção de impostos aos proprietários e, até mesmo, a criação de alíquotas diferenciadas do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para os donos de imóveis tombados.14"13 Tão móveis quanto às características dos centros urbanos devem ser as políticas de manutenção das características do passado. Caso contrário, será uma contradição nomearmos edifícios tombados de preservados. Após o incêndio que quase o destruiu em fevereiro de 1994, restou do Solar Visconde de Indaiatuba, um dos pontos do polígono do Centro Histórico campineiro, apenas a parte externa, a casca (embora com seu interior todo reformado e utiliza-
do para abrigar um restaurante, sua parte histórica consistia quase que somente em sua fachada). Em meio a uma poluição visual que prejudica sua visibilidade, o Solar ainda se ergue, agora oco e vazado, advertindo-nos das questões aqui expostas.
Outros Olhares
Anexo 1: os quatro pontos do polígono16 Palácio dos Azulejos17 (rua Regente Feijó, 841, esquina com rua Ferreira Penteado) O primeiro tombamento realizado em Campinas foi o do Solar do Barão de Itatiba, imponente construção assobrada de esquina, datada de 1873, e mais conhecida como Palácio dos Azulejos devido aos azulejos portugueses que adornam sua fachada. Com 3.343 metros quadrados de construção e setenta e cinco cômodos, o Solar servia como moradia ao Barão de Itatiba, Joaquim Ferreira Penteado (1808-1884), quando de sua permanência na cidade, mescladas - como era costume dos fazendeiros da época - com as estadas na chácara do bairro Bonfim e na fazenda Duas Pontes.18 O Palácio em si é composto pelo Solar que pertenceu ao Barão e pelo anexo em estilo neoclássico que era de seu genro, Ignácio Ferreira de Camargo Andrade, sendo que a união das duas residências resultou num prédio proporcional dotado de grande pátio interno. A partir do começo do século XX, o local foi o Paço Municipal, tendo abrigado a prefeitura até a construção do seu prédio atual - na avenida Anchieta. Construído com adobe (barro socado, material empregado nas construções no Brasil antes da difusão do uso do tijolo), o Palácio atesta a riqueza trazida pelo café para a região de Campinas, pois, além de ser a primeira residência da cidade a utilizar azulejos na fachada, ostenta ainda uma sacada de ferro inglesa e um cimalhão (ponto onde se assentam os beirais do telhado) de louça branca. Ao longo dos anos, reformas alteraram algumas de suas características originais: a pintura comum nas paredes escondeu vários afrescos de srande
"Conlerir consideraçõts de LEFÈVRE. José Eduardo. Op. cit. "DIÁRIO do Povo, Campinas, 18 mar. 111993. CORREIO Popular. Campinas, 18 mar. 1993. " As informares contidas nos textos que se seguem são oriundas de nossa pesquisa nos arquivos da Coordenadoria do Patrimônio Cultural da Prefeitura Municipal de Campinas. Como todo material pesquisado encontra-se em pastas não-numeradas nos restringimos a indicar o nome das pastas - estabelecidos segundo critérios internos - e número dos processos de tombamento consultados. " Processo n1 1 7.270/70 • Condephaat - e pasta Condepacc I. "CAHPOSJÚNlOUeodoro de Sousa. História de Campinas; (subsídios). In: Monogafíi História do Muniapio de Cãmpinis. Rio de Janeiro: IB6E. 1952.
30 Outros Olhares
"Vide. por exemplo: CORREIO Popular, Campinas. 30 jun. 1957. . 7 jul. 1957. , ,9 jul. 1957. , , II jul. 1957. . . 18 ago. 1957. i "DIÁRIO do Povo. Campinas, 13 (ev. 1970. " , Jljan. 1970. " CORREIO Popular. Campinas. 30 maio 1972. "Em cana dirigida, naquele periodo. ao então diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o estudioso da cidade de Campinas Celso Haria de Mello Pupo diz o seguinte: Yemoi jjsin ma lua peh detirulçüo de um pitrimõnio histórico, inisico e irqukttônko de Cmpinis. J íorp íinmeia represenadi petos proprietários mnhos do PiUdo dos Azulejos compelindo ã Preleilurã e pressionzndoa com o peso de suis riqueas. i pleiteiri inubçSo de um tombzmento que se fez ms nuis sólidas bises de um vihr histórico e mis tico: remos i incuhun i serviço do lucro, desejmdo destruir um símboh dl cuhuri do pisado, um mirco histórico que é mestre e testemunhi dl vidi imperii! de Cimpims. Conferir processo n' 17.270/70-Condephaal. "Processo n' 9.516/69 - Condephaat e pasta Condepacc I.
qualidade, algumas paredes foram abertas, os telhados - em que existiam clarabóias e madeiramento foram substituídos por outros de qualidade inferior, bem como o piso original - de mármore espanhol - foi trocado. No entanto, essas ocorrências não permitem questionar a autenticidade da construção. No final da década de 50, dada a beleza e opulência de sua edificação, o valor histórico do Palácio dos Azulejos foi proclamado por historiadores locais que pretendiam ali instalar um Museu Histórico da cidade.19 Apesar disso, o tombamento do edifício só se deu em 1967 em caráter de emergência, pois o então prefeito Rui Novaes havia anunciado que pretendia fazer uma garagem no local. Embora tenha sido alegado que tal garagem seria "subterrânea", isso foi o suficiente para alarmar os organismos responsáveis que determinaram que o Palácio passaria a ser monumento histórico nacional, o que implicava, também, no tombamento e preservação das áreas circunvizinhas. Esse tombamento foi feito em 1967 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a partir de sugestão do então vereador Eder Leme que, através de requerimento apresentado à Câmara Municipal de Campinas discorreu sobre as condições históricas do Palácio dos Azulejos, pedindo imediata providência por parte das autoridades competentes, tentando impedir sua demolição pelo "progresso voraz" do prefeito Rui Novaes. Entretanto, o tombamento não livrou o Palácio dos Azulejos da ameaça de destruição. A administração municipal seguinte, do prefeito Crestes Quércia, adiou freqüentemente o pedido de instalação do Museu Histórico no local, alegando necessidade de espaço para repartições e sedes de clubes esportivos até que, em 1970, tentou junto ao Serviço de Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (SPAHN) anular o tombamento. O prefeito argumentava, através do advogado Hélio Moraes Siqueira, contratado pela municipalidade, que o prédio, depois das várias reformas sofridas ao longo dos anos, havia perdido suas características originais e - mais grave - poderia ruir inesperadamente.20 Além disso, a admi-
nistração argumentava que o tombamento feria os interesses de bancos que desejavam construir nas proximidades do Palácio edifícios de mais de 20 andares - o que não seria possível já que a área envoltória, num raio de 300 metros, também estava tombada. A idéia de "progresso", tão cara aos prefeitos campineiros, era apresentada como incompatível com a idéia de preservação do patrimônio histórico urbano: Tombamento impede progresso no Centro, dizia uma manchete de jornal na época.21 No ano de 1972, ainda na administração de Crestes Quércia, o Palácio dos Azulejos sofreu novas ameaças, quando o vereador Lindemberg da Silva Pereira, da Arena, apoiado por Natal Gale, exigiu o "destombamento" e a derrubada do prédio para a construção de uma ampla e moderna praça pública.22 Contudo, desta feita, a opinião pública, em parte sensibilizada e norteada pelo pronunciamento de estudiosos da cidade - como Celso Maria de Mello Pupo, Guilherme de Almeida, Jolumá Brito, João Amêndola e José de Castro Mendes - que já no final dos anos 50 haviam estabelecido a importância do edifício, protestou contra os escusos interesses dos políticos campineiros.23 Vale ainda lembrar que em 1988, quando foi aberto pelo Condepacc (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas) um novo processo para o estudo de intervenções que permitissem a melhor conservação do prédio e de sua área envoltória, foi justamente a mobilização desses estudiosos campineiros, naquela ocasião, que permitiu e reforçou a manutenção do tombamento do Palácio dos Azulejos. Catedral Metropolitana24 (praça José Bonifácio) Diferentemente dos outros imóveis que compõem o "polígono" que delimita o Centro Histórico de Campinas, o tombamento da Catedral Metropolitana deu-se de maneira rápida e sem percalços pelo caminho, em maio de 1981, por iniciativa do Conselho de Defesa do Patrimônio Históri■
81 co. Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). A construção da Catedral, no século XIX, foi possível graças aos recursos oriundos da lavoura açucareira, fornecidos pelos grandes senhores de engenho da região. Em 1807 foi escolhido o local para a edificação e, em seguida, iniciaram-se as bases para as taipas das paredes laterais. O projeto inicial era a construção de um modesto templo, mas ao longo do tempo, suas proporções foram crescendo cada vez mais à medida que se sucediam os responsáveis pelas obras. Em 1845, erguido o telhado, foi contratado o mestre entalhador baiano, Vitoriano dos Anjos Figueiroa, e os artesãos que trabalhavam junto com ele para a realização da decoração e acabamentos internos. Entre os anos de 1853 e 1861, eles compõem o altar-mor - considerado uma verdadeira jóia de ourivesaria, inspirada na escola barroca e neoclássica - dois púlpitos, os entalhes que compõem as grades do coro, as sacadas da capela-mor e da nave e, ainda, as tribunas. Por volta de 1862, Vitoriano dos Anjos foi substituído pelo mestre Bernardino de Sena Reis de Almeida, ituano de origem, que foi responsável pela conclusão da ornamentação interna, entalhando os altares laterais da nave e as duas capelas laterais. Por fim, para dirigir as obras de conclusão da Catedral, foi chamado o renomado arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, recém-chegado da Bélgica. Sua intervenção, segundo parecer da assessora técnica do Condephaat Solange Torres,25 deu ao conjunto arquitetônico uma composição mais acadêmica, contrastante com a ingênua e sadia arquitetura dos mestres locais. Esse fato fica evidenciado na modenatura (conjunto de molduras de uma construção, segundo o caráter de suas ordens arquitetônicas) neoclássica, na qual sobressai na fachada principal a coluna jônica e o frontão triangular. Depois de quase oitenta anos de constmção a Catedral foi inaugurada - e "benta" - em 8 de dezembro de 1883, em meio a grandes festejos.
Outros Olhares 26
Solar do Barão de Itapura (esquina da avenida Francisco Glicério com rua Marechal Deodoro, 1.099) O conhecido edifício do Pátio dos Leões, onde funcionam desde 1955 algumas das faculdades da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Pucc), é uma imponente construção que, originalmente com 9.343 metros e duzentos e vinte e sete cômodos, expressa a arquitetura monumental dos fins do Império: grande, espaçosa e ostentadora do poderio econômico dos famosos barões do café, enriquecidos pelo cultivo e comercialização do produto na região. Edificado, por volta de 1880, para ser residência de um dos mais prósperos fazendeiros e ricos proprietários do município, Joaquim Policarpo Aranha - o Barão de Itapura - o rico palacete, em estilo renascentista italiano, de alvenaria de tijolos queimados, telhados de platibandas (espécie de moldura chata), forrações internas de estuque (massa de gesso, água e cola usada em acabamentos) e ornamentos diversos em seu interior - como afrescos e lustres de cristal da Boêmia - destacava-se entre os edifícios coloniais da época por sua inusitada arquitetura e pelos materiais inovadores que foram empregados em sua construção. O tombamento definitivo deste prédio, como do Palácio dos Azulejos, deu-se depois de um longo processo que se arrastou por vários anos e, em seus trâmites, foi muitas vezes ameaçado de "destombamento". O início do processo de tombamento pelo Condephaat data de 1969, a partir do parecer do arquiteto Carlos Lemos, que julgou o valor histórico-arquitetônico do edifício, demarcando sua importância como monumento a ser preservado. Segundo esse parecer, o edifício sofrerá, ao longo de seus mais de cem anos de existência, algumas intervenções que procuraram adaptá-lo ao uso escolar - como aumentos na parte superior - o que alterou ligeiramente o estilo • ■ , , j-ii . , . original de sua fachada. Apesar destas reformas, Carlos Lemos ressaltou que o pa-
"Processo n' 9.516/69 • Condephaat, »processo n. |4,j35/69_ loi;bado condephaat.
»-í Outros Olhares
"Processo n' 02/88-1988. tombado pelo Condepacc
lacete do Barão de Itapura é - juntamente com o Palácio dos Azulejos - um exemplar representativo da arquitetura urbana do século XIX marcada pelo poderio dos barões do café. No início da década de 70, logo após o tombamento, o Condephaat apresentou propostas de restauração da construção à Pucc, que rapidamente argumentou que não tinha recursos para fazer os trabalhos de restauro no palacete e que, além disso, o processo de tombamento tinha causado prejuízo ao seu patrimônio. Posteriormente, já na década de 80, a Pucc sob a reitoria de Heitor Regina, iniciou uma campanha de divulgação pública tentando mostrar que a Universidade atravessava uma série crise financeira, inclusive com ameaça de fechamento. Dessa forma, alegava que o tombamento do Solar do Barão de Itapura concorria para o agravamento da crise da Universidade, já que esta não podia dispor de seu próprio patrimônio material. Por isso, Heitor Regina enviou carta ao então presidente do Condephaat, Ruy Ohtake, pedindo uma reavaliação do processo de tombamento do Solar. Nesta carta, utilizou-se de diferentes argumentos para tentar provar que o edifício em questão não apresentava qualquer valor histórico, artístico ou cultural e, contrariamente, era uma construção descaracterizada por múltiplas reformas, cujo único valor estaria na sua privilegiada localização espacial, altamente valorizada e que, uma vez vendida, permitiria à Pucc pagar suas dívidas. E interessante ressaltar que nenhum argumento foi esquecido, inclusive os "melodramáticos", nos quais se alegava que o custo social do tombamento fora demasiado elevado, não apenas para a Universidade, mas também para a cidade de Campinas que teve preservado um monumento histórico de valor duvidoso em detrimento de um centro difusor de saber. Estranho paradoxo: uma Universidade, enquanto espaço de difusão de cultura e conhecimento, não teria por obrigação defender e preservar o patrimônio urbano, artístico e cultural do passado da cidade? No entanto, apesar dos apelos feitos ao Condephaat, à Secretaria de Cultura de
São Paulo e até mesmo às instâncias superiores da Federação que cuidam do Patrimônio Histórico, a Pucc não conseguiu reverter o processo de tombamento do Solar do Barão de Itapura, que foi definitivamente tombado em outubro de 1983. Solar do Visconde de Indaiatuba27 (rua Barão de Jaguara esquina com rua General Osório) O antigo Solar do Visconde de Indaiatuba, cujas fachadas ainda teimam em permanecer de pé mesmo após o incêndio sofrido no início de 1994, foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc) em 1988. Tal como a Catedral Metropolitana esse tombamento transcorreu sem polêmicas, mesmo porque, do edifício original restaram somente as paredes externas, com suas portas e janelas azuis ostentando o estilo colonial da construção. Esse prédio encomendado por dona Tereza Miquelina do Amaral Pompeu, irmã do Visconde de Indaiatuba, foi construído num dos pontos mais nobres de Campinas - considerado área central desde a fundação da cidade. Suas obras foram concluídas em 1846, período em que a economia da região de Campinas encontrava-se em transição da produção açucareira para a monocultura do café e, por isso, o Solar apresentava, em termos de arquitetura, características de dois períodos distintos. De um lado era uma construção tipicamente colonial, pois foi inteiramente edificado em taipa de pilão (madeira e barro) com paredes divisórias de pau-a-pique e telhas de cerâmica estilo colonial. Por outro lado possuía elementos inovadores para a época: grande número de vãos, utilização de balcão com grades de ferro (material que chegou pela primeira vez no Brasil em 1838), uso de vidro nas janelas - o que demonstra a modernidade do prédio em relação aos seus precursores imediatos - e também um inédito recuo em relação ao limite lateral do lote, o que leva a crer na existência de um suposto jardim (tendência que começa a se difundir a partir de meados do século XIX).
33 Outros Olhares Todo esse conjunto demarcava o poder e a influência do Visconde de Indaiatuba na Campinas Imperial, destacando-se por sua intensa participação na vida política e econômica da sociedade campineira. Um dos elementos a serem ressaltados a seu respeito é o fato de que ele foi um dos primeiros fazendeiros a introduzir, já em 1852, o trabalho livre em suas fazendas Sete Quedas, Salto Grande e Saltinho - criando colônias de alemães e tiroleses. Como alguns de seus contemporâneos, o Visconde de Indaiatuba defendia a idéia de que o trabalho livre era mais lucrativo que o escravo, e também acreditava na superioridade étnica dos colonos estrangeiros em relação aos negros, o que, entre outras vantagens, permitiria a europeização do Brasil. Seu caráter empreendedor ainda se manifestou em outros setores. Atuou na fundação do Colégio Culto à Ciência e criou o Clube do Café, que difundiu o produto de cultivo paulista nos mercados internacionais. Graças a tão importante morador, o Solar era famoso, na época, pelas suntuosas festas que abrigava e pelos hóspedes ilustres que hospedava, como d. Pedro II e sua esposa dona Tereza Cristina. Ao longo de seus quase cento e cinqüenta anos de existência o Solar do Visconde de Indaiatuba teve diferentes usos e, dessa forma, foi objeto de profundas e diversificadas intervenções, sobretudo em seu interior, o que tornou irrecuperáveis algumas de suas características. Depois da morte de seus moradores, o Solar abrigou, no período que vai de 1891 a 1926, o Clube Campineiro, onde em 1901 foi fundado por intelectuais da cidade o Centro de Ciências, Letras e Artes. Entre 1926 e 1959, passou a sediar, no primeiro andar, o Clube Semanal de Cultura Artística e no andar térreo estabelecimentos comerciais. Foi nesse período que o prédio sofreu as duas maiores intervenções onde várias de suas características originais foram alteradas - como a troca do telhado, a remoção das paredes de taipa do pavimento superior e de todos os antigos ornamentos interiores. A partir da década de 60, o Solar perdeu seu caráter de espaço cultural e passou a ter múltiplos usos, sobretudo como estabelecimento comercial.
Entretanto - e apesar das descaracterizações que sofreu e do último incêndio - a manutenção de sua fachada e uma possível reconstrução do prédio são fatores que devem ser levados em consideração pelo Condepacc, já que o antigo Solar representa não apenas a opulência e o poderio de seu ilustre morador mas - e sobretudo - ele é a expressão de uma arquitetura de época, capaz de demarcar e caracterizar um momento histórico importante no desenvolvimento urbano de Campinas. Anexo 2: imóveis tombados na cidade de Campinas até 199428 1967 - Palácio dos Azulejos (Iphan/ Condephaat/Condepacc) Rua Regente Feijó esquina com rua Ferreira Penteado 1970 - Bosque dos Jequitibás (Condephaat) Entre as ruas General Marcondes Salgado, Uruguaiana e Pedro Alvares Cabral 1972 - Capela Nossa Senhora da Boa Morte (Condephaat/Condepacc) Dependência da Santa Casa de Misericórdia à avenida Júlio de Mesquita, 571 1981- Catedral Metropolitana (Condephaat/Condepacc) Praça José Bonifácio 1982 - Sede da Fazenda Três Pedras (Condephaat) Distrito de Joaquim Egídio 1982 - Estação Ferroviária (Condephaat) Praça Marechal Floriano Peixoto 1982 - Sede da Antiga Fazenda Mato Dentro (Condephaat) Parque Ecológico de Campinas 1982 - Prédio da Antiga Escola Normal (Condephaat) Entre avenida Anchieta, avenida Benjamin Constant, ma Boaventura do Amaral e rua General Osório 1983 - Edifício do Mercado Municipal (Condephaat) Entre ma Barreto Leme, ma Ernesto Kuhlmann, avenida Benjamin Constant e rua Alvares Machado
" '««o liitagem da Coordenadona de Patrimõnio CuHurai da Prefeitura Hunici ai de Can| inas P P -
1983 - Mata Santa Genebra (Condephaat) Fazenda Santa Genebra - Distrito de Barão Geraldo 1983 - Antigo Solar do Barão de Itapura (Condephaat/Condepacc) Rua Marechal Deodoro, 1.099 Pucc Central 1984- Antiga Escola Bento Quirino (Condephaat) Rua Culto à Ciência, 177 1986 - Casa Grande e Tulha (Condephaat) Avenida Dr. Adindo Joaquim de Lemos, 1.300 1987- Colégio Culto à Ciência (Condephaat) Rua Culto à Ciência, 422 1988 - Antigo Solar do Visconde de Indaiatuba (Condepacc) Rua Barão de Jaguara esquina com rua General Osório 1990 - Antigo Hotel Vitória (Condepacc) Avenida Dr. Campos Sales esquina com rua Regente Feijó 1990 - Complexo Ferroviário da Fepasa (Condepacc) Esse tombamento compreende uma série de prédios históricos e suas áreas envoltórias, conforme descrito abaixo; 1. Estação da Companhia Paulista, na rua Lidgerwood; 2. armazém geral na Avenida dos Expedicionários; 3. oficina da Companhia Paulista, na Avenida dos Expedicionários; 4. entradas do túnel de pedestre sob a linha férrea; 5. antigas oficinas localizadas na rua Cel. Antonio Manoel, esquina com a rua Francisco Teodoro; 6. caixa d'água localizada no pátio interno da Fepasa; 7. escritórios de administração, localizados no pátio interno da Fepasa; 8. usina geradora, no pátio interno da Fepasa; 9. duas oficinas de carros e vagões, no pátio interno da Fepasa; 10. rotunda de manobras, no pátio interno da Fepasa;
11. oficina de locomotivas no pátio interno da Fepasa; 12. armazém geral da Companhia Mogiana, na rua Dr. Ricardo. 1990 - Antiga Fábrica de Equipamentos Agrícolas Lidgerwood Manufacturing Ltd. (Condepacc) Avenida Andrade Neves esquina com rua Lidgerwood, 1 1991 - Imóvel situado à rua Padre Vieira, 1.277 (Condepacc) 1991 - Imóvel situado à rua Cônego Cipião, 1.074 (Condepacc) 1991 - Praça Professora Sílvia Simões Magro (Condepacc) 1991 - Mata da Fazenda Santa Elisa (Condepacc) Fazenda Santa Genebra - Distrito de Barão Geraldo 1992 - Imóvel situado à rua Dr. Sales de Oliveira, 429-433 (Condepacc) 1993 - Fazenda Jambeiro (Condepacc) Entre as ruas 22, 28, 31, 33 no Parque Jambeiro 1994 - Fábrica de Tecidos Elásticos Godoy & Valbert (Condepacc) Rua José Paulino, 1.829 1994 - Creche Bento Quirino (Condepacc) 1994 - Escola Estadual Francisco Glicério (Condepacc) Avenida Moraes Sales - lote 01 QT 1.075 1994 - Observatório Municipal de Campinas - Jean Nicolini (Condepacc) Serra das Cabras - Distrito de Joaquim Egídio Observação; Gostaríamos de agradecer a colaboração dos funcionários da Coordenadoria de Patrimônio Cultural da Prefeitura Municipal de Campinas, sem a qual o acesso à documentação teria sido inviabilizado.
feVf ss Outros Olhares O Mundo do Trabalho dos Ferroviários Aposentados das Oficinas da Companhia Paulista de Estrada de Ferro de Rio Claro - 1930 e 1940 Liliana Bueno dos Reis Garcia Professora Doutora do Departamento de Planejamento Regional/lGCE/Unesp - Rio Claro
O presente artigo está fundamentaa falhas e distorções próprias de um trabalho do na análise da visão do mundo do trabade reconstituição histórica. O que se buslho dos ferroviários aposentados das Oficou foi o máximo possível de fidelidade à cinas da Companhia Paulista de Estrada de memória, daí a utilização constante da fala Ferro, popularmente chamada de Paulista, do ferroviário. As confrontações foram feilocalizada na cidade de Rio Claro, nas décatas entre as próprias falas, pois as mesmas das de 30 e 40.' A interpretação deu-se apresentaram, na maioria das vezes, semeatravés da fala do ferroviário. Optei por tal lhanças quanto aos fatos narrados. alternativa para evitar que a fala se perOs registros escritos da Paulista redesse no tempo, e que gradativamente fosse sumiram-se nos Relatórios da Diretoria, nas se esmaecendo pelas falhas e esquecimenAtas de Reuniões e na Carteira Profissiotos naturais da memória. E o que se enconnal dos ferroviários, onde toda a sua vida trou foi um passado ainda vivo e presente de trabalho encontra-se registrada. na memória dos ferroviários. Ao falarem Fundamentando-se em Halbwachs, de seu passado, os ferroviários puderam reBosi afirma que a maior parte das vezes tomar e recriar em função de suas experiênlembrar não é reviver, mas refazer, reconscias atuais fatos e episódios não muito distruir, repensar, com imagens e idéias de tantes. hoje, as experiências do passado. A Suas concepções sobre o cotidiano memória não é sonho, é trabalho, a lemdo trabalho e também sobre suas próprias vidas foram por eles próprios reelaboradas, deixando transparecer as formas de exploração, a que foram submetidos, porém, mesmo conscientes disto, consciência essa hoje adquirida, preferem continuar senÇ?í. do ferroviários e morrer -•tfe kcomo ferroviários. A impossibilidade de confrontar-se os depoimentos sobre a prática da organização do trabalho com documentos oficiais da Paulista, VISTA GERAL DAS OFICINAS. RIO CLARO, OÉC. 60. AS OFICINAS FORAM CONSTRUÍDAS ENTRE 1930 EIQ-IO. ARQUIVO PÚBLICO E HISTÓRICO 00 MUNICÍPIO 0E RIO CLARO "OSCAR DE ARRUDA PENTEADO" levou-me, logicamente,
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Para maiores informações sobre o processo de formação, construção e organização da Companhia Paulista de Estrada de ferro, consultar DEBES. Célio. Á cminho do Oeste: subsídios para a história da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e das Ferrovias de São Paulo. São Paulo: Bentivegna, 1968. GARCIA, Liliana Bueno dos Reis. Rio Cbro e is oíidnãs di Componha Piulisii de [stndo de ferro: trabalho e vida operária • 1930-1940. Tese (Doutorado) - Unicamp, 1992. HAT0S, Odilon Nogueira. Ciíé e ferroviis: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: AlfaOmega, 1974. HATT00N JR.. Robert Haward. The Componha Piuliiu de Estndis de ferro, 1869-1900: o local railwa/ enterprise in São Paulo. Brazil. Vale Universily. 1971. (Himeo.).
36 Outros Olhares
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BOSI, Edéa. Htmõrii e sociedide: lembranças de velhos. São Paulo: T.1 A. Queiroz, 1980. p.17. CHAUi, Harilena. Os trabalhos da memória. In: BOSI. Edéa. M/mórii e sociedide: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz. 1980. p. XVII-XXXII. ' BERGSON. Henri. Hidére elmémoire: essai sur Ia relalion du corps a 1'espriL Paris: Presses Universilaires de france. 1968, 1 HAIBWACHS. H aurice. Li mémoire colleaive. Paris: Presses Universilaires de France, 1968. ' CHAUl, Harilena. Op. dl, p. XVII. 'BOSI, Edéa. Op.cit, p. 17. 'VIDAL Diana Gonçalves. Ho iresso dis rfr/ir.-virtuoses e conceptistas da sinfonia (sempre) inacabada do trabalho. Dissertação (Mestrado) - Unicarap, 1990, p. 18.
brança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora a nossa disposição, no conjunto das representações que povoam a nossa consciência.2 Lembrar é portanto refazer e não apenas reviver. O ato de lembrar significa, segundo Chauí, a reflexão e a compreensão do momento atual a partir do outrora.3 Para Bergson, lembrar significaria um movimento de vir de baixo, isto é, vir à tona o que estava submerso. Essa volta ao passado combina-se com o momento atual e presente. São, portanto, pormenores da nossa experiência passada que perpassam as lembranças e trazem à tona um momento único já vivido. É um processo evocativo por meio da memória e refere-se a uma situação definida e individualizada.4 Para Halbwachs, a lembrança é a sobrevivência do passado. É o passado conservado no espírito de cada ser humano e que aflora na consciência na forma de imagens lembranças.5 Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não se apresenta segundo Bosi, com a mesma imagem que experimentamos os fatos que estão sendo lembrados, isto porque os indivíduos que estão lembrando mudaram, não são os mesmos. A percepção do mundo a nossa volta mudou e com esse processo de mudança nossas idéias, nossos juízos de valores e a própria realidade mudaram. Mas isto não invalida a utilização das lembranças.6 Desta forma, o que obtive através das lembranças foi um reviver do passado, pois os ferroviários já libertos das suas atividades profissionais não mais sentiam o peso da opressão e, portanto, puderam falar da ferrovia livremente e até mesmo se conscientizaram da força opressora que ela foi. Ao falarem de suas vidas, os ferroviários estavam conscientemente falando de seu passado, ou seja, de sua própria vida, da vida do grupo em que eles estiveram inseridos, da vida da família, assumindo suas lembranças um caráter não só individual mas também grupai e social.1 O que o ferroviário fez ao lembrar foi retrabalhar o passado e o material coletado deixou transparecer uma riqueza imensa de detalhes do mundo do trabalho. Foram experiências, ressentimentos, sonhos, ilusões e desilusões que emergiram com as lembranças. Os depoimentos obtidos estão re-
pletos de valores e de representações que nos deixam entrever o discurso ideológico da empresa que foi introjetado pelo ferroviário, porém, demonstram ser o melhor caminho para recuperar a visão do mundo do trabalho nas décadas estudadas, haja vista que as oficinas hoje não espelham mais a eficiência e o progresso alcançados nas décadas passadas, processo que começa a se tornar visível já nos anos 50. Desta forma, ao reconstituir esse passado, optei pela orientação metodológica da coleta de histórias orais. Estas foram gravadas, transcritas, lidas e discutidas pelos entrevistados, o que me permitiu visualizar as suas concepções sobre o mundo do trabalho nas oficinas da Paulista. O contato com os ferroviários foi contínuo, realizado tantas vezes quanto necessário para poder coletar o maior número possível de informações. Para tanto procurei estabelecer uma relação direta entre o pesquisador e o sujeito a ser pesquisado. Não pude vivenciar a oficina em funcionamento, por isso, a fala do ferroviário foi de extrema importância. Portanto, a observação direta do processo de trabalho inexistiu. Foram as vozes dos ferroviários que me conduziram à reconstituição desse processo. Muitos aspectos ficaram obscuros e nem mesmo puderam ser relatados, pois muitos ferroviários que vivenciaram o momento estudado já calaram as suas vozes. Foram efetuadas dezoito coletas de histórias orais, com ferroviários entre 65 e 85 anos de idade. A duração média das entrevistas foi de duas horas, sendo as mesmas realizadas na residência dos ferroviários. Não se estabeleceu um roteiro rígido de perguntas, apenas algumas foram elaboradas em contatos anteriores, numa tentativa de orientar o entrevistado quanto ao objetivo do trabalho e também para reativar as suas lembranças. E lógico que houve interferências, isto é, critérios pessoais representados pela própria figura do pesquisador, se interpõem nessa relação, porém, segundo Vidal, os mesmos não invalidam os depoimentos recolhidos, nem mesmo a utilização da história oral como método* A amostra não foi estabelecida estatisticamente, dado a impossibilidade de computar-se o número de ferroviários ainda vivos e que vivenciaram o período que
37 se pretendia estudar. Também, a idade avançada foi outro fator que me limitou, pois muitos não se encontravam em condições de narrar. A escolha dos entrevistados foi feita por indicação de colegas de trabalho, porém, o que se procurou observar foi a coleta de depoimentos de ferroviários que trabalharam em diferentes seções da oficina e também que ocuparam diferentes níveis hierárquicos, desde os menos qualificados até os mestres, a fim de comparar, adequar e verificar as identidades e divergências de opiniões. O único critério realmente seletivo e que foi rigorosamente observado, foi o de ter vivenciado o processo de trabalho nas décadas de 30 e 40. As entrevistas foram gravadas, transcritas, analisadas e agrupadas por temas, o que demandou um longo trabalho de recorte e seleção dos mesmos, pois todas as informações sobre cada tema tiveram que ser reunidas para poder compor o discurso. O contato com os ferroviários entrevistados não se resumiu a uma única vez. Depois de transcritas, as entrevistas retornaram a cada entrevistado, para leituras e observações, as quais foram prontamente efetuadas. Os contatos também continuaram a ser mantidos durante a fase de redação do trabalho. Desta forma, o que procuro abordar é a história da luta dos ferroviários para sobreviverem, ao se submeterem a normas tão rígidas de controle e de opressão, que se faziam presentes em defesa da imagem de eficiência e de organização criada pela ferrovia. Através, de sua visão todo o cotidiano de trabalho e de suas próprias vidas foram por eles próprios reelaborados, recompondo desta forma a organização da oficina. Com esta reconstituição pude narrar a rigidez da organização do trabalho e a adequação do ferroviário aos princípios da empresa ferroviária, isto é, tornar visível o que a história da Paulista ocultou, ou seja, a história da vida e do trabalho dos ferroviários. Assim, das próprias relações de trabalho vão emergir o modo de ser do trabalhador ferroviário. São dessas relações que surge, o modo de ser moral9 do trabalhador.
A essa condição, o trabalhador reage ao seu modo. Essa reação pode ser em forma de reivindicações efetivas ou até mesmo o trabalhador pode reagir com o seu silêncio, com a sua aceitação das normas. Esta última forma foi a encontrada entre os ferroviários. Eles não reagiam violentamente, mas aceitaram as normas impostas.
Outros Olhares
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OPERÁRIOS DAS OFICINAS, RIO CLARO, DÉC. 20. ARQUIVO PÚBLICO E HISTÓRICO DO MUNICÍPIO DE RIO CLARO "OSCAR DE ARRUDA PENTEADO" Fez parte da disciplinarização da força de trabalho um processo longo de introjeção de uma moral do trabalho. Essa é associada à assiduidade e às próprias condições de trabalho exigidas pela oficina. A disciplina desenvolvida é a garantia do aumento da produtividade. As formas encontradas pela direção da empresa para difundir essas normas disciplinares percorrem os diferentes níveis da produção. Elas extrapolam os muros da fábrica, suas relações sociais, como uma forma de exaltar a grandiosidade do mundo do trabalho, ou seja, o mundo da Paulista. As relações daí advindas deixam transparecer relações paternalistas que sustentaram o amor dos ferroviários pela ferrovia. As mesmas desenvolveram neles o desejo de servir e de desenvolver a ferrovia. Os ferroviários amaram a ferrovia acima de suas próprias vidas. No entanto, esse amor pela ferrovia não significou a sujeição total dos mesmos às normas disciplinares impostas e à própria hierarquia institucionalizada, mas deixou „ ., transparecer a resistência sutil em seu tra-
-rosa, Mariainês. ímo.subjttrabalhadorprofissional. antigo de casa; um estudo de caso. Tese (Doutorado)-usp, 1991.
38 Outros Olhares balho, em seus atos e em sua fala. A resistência individualizada surge dentro do contexto das oficinas e vai revelar conflitos que estão presentes nas revelações individuais de cada ferroviário. A resistência é muitas vezes surda, anônima, porém, existe. Está presente e se faz sentir na fala do ferroviário. Essas revelações estão presentes no horário de trabalho, no salário, nas horas extras, nos bicos, nas promoções e nas normas impostas. O mundo do trabalho dos ferroviários "O ferroviário era um contador de horas" - o horário de trabalho A oficina ocupa grande parte da existência do ferroviário, pois o tempo passado nela representa no mínimo de oito a doze horas de seu dia. Os ferroviários são contadores de horas. O tempo torna-se uma constante em suas vidas, levando-os a dimensioná-lo na fábrica, não em termos de dia ou semana, mas de horas. Vivem em função das horas de trabalho: as que fazem, as que fizeram, as que deixaram de fazer ou as que pretendem ainda fazern) O controle do tempo é extremamente rígido. As normas impostas invadem a vida cotidiana do ferroviário, exaurindo-o. Determinam todos os seus horários, tornando-os constantemente alerta às necessidades da ferrovia, ou seja, do capital, que impõe de forma sutil o controle pelas horas trabalhadas. "A Paulista para o público era exemplar, mas para o empregado uma miséria" - o salário
" RAINHO, Luís f lávio. Os peões do grande ABC. Petrópolis: Vozes. 1980, p. 243. " Depoente: mestre da marcenaria. " Depoente: mestre do setor de vagões.
No contexto de Rio Claro, o emprego nas oficinas era o mais procurado e almejado pelos trabalhadores, em função da sua estabilidade e da pontualidade quanto ao pagamento dos salários. Esses dois elementos eram rigidamente observados pela Paulista, que sempre procurou dar essa garantia ao ferroviário. Porém a remuneração era baixa.
A Paulista para o público, era exemplar. Agora para os empregados não. Para os empregados era uma miséria, aquele ordenadinho não aumentava de jeito nenhum." A melhoria nas condições de vida era obtida com as horas extras e os bicos, jamais sendo reivindicada através de greves. Outra fonte para aumentar sua baixa renda era o não-gozo das férias e das licençasprêmio, que eram revertidas em dinheiro. O trabalhador da oficina sempre viveu uma vida de luta, de poucos recursos e de muito trabalho. Não de miséria, mas de pobreza. Trabalhava muito e o medo do desemprego, dado às poucas opções oferecidas pela cidade, acelerou e intensificou a exploração e o submeteu a duras condições de trabalho, obrigando-o a aceitar o aumento da produtividade. Isto levou a um rebaixamento do valor dos salários e à concomitante elevação dos lucros da Paulista. Há, no entanto, entre eles uma constante preocupação em manter um padrão de vida digno e honesto, num meio em que se caracteriza pela pobreza. Este fato tornou-se uma importante questão de princípio. São valores burgueses de honestidade e de laboriosidade que são introjetados pelos ferroviários. Geralmente as senhoras dos ferroviários, ela se adaptava àquele salário, aquele padrão de vida, quer dizei; a gente trabalhava na Companhia Paulista, tinha o ordenado x, e esse ordenado a esposa sabia, é lógico, do que se ganhava, e procurava gastar dentro daquele, daquela realidade, daquele salário.12 Outro aspecto a ser destacado diz respeito à dependência do ferroviário para com os gastos efetuados na cooperativa de consumo. Nesta, retiravam por mês todos os gêneros alimentícios, as roupas, objetos e utensílios domésticos, calçados etc. O gasto era descontado no pagamento, havendo um valor pré-determinado, ou seja, um mínimo que o ferroviário deveria receber por mês. Isto gerava uma dependência muito grande do ferroviário para com a Paulista, pois sua situação, na maioria das vezes, era sempre de devedor. Esta forma de exploração
39 Outros Olhares subjugava ainda mais a mão-de-obra, comprimindo os seus salários já baixos, ao mesmo tempo que impedia a saída do ferroviário da Paulista. O ferroviário está, portanto, sujeito à arbitrariedade da Companhia, que lhe impõe, tanto dentro como fora da fábrica, as suas condições de trabalho e o padrão de sua existência. Os cálculos e as diferentes fórmulas adotadas e monopolizadas pela administração da empresa, em relação ao salário, são utilizadas para exercer a dominação sobre o ferroviário. Da mesma forma são também mecanismos utilizados para gerar rivalidades, para incentivar a competição e para criar divisões internas entre os próprios ferroviários para gerar acomodações. O salário estimula a competição, é um instrumento de estímulo ao trabalho, ao mesmo tempo que condiciona a reprodução do trabalhador.
A saída da fábrica vai, portanto, representar um momento privilegiado da vida cotidiana do ferroviário, pois significa o momento de sua realização. É extenuante, porém, compensador, significa a própria realização individual do ferroviário como um trabalhador livre das amarras do capital. É um trabalho por conta, onde o
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OPERÁRIOS DAS OFICINAS, RIO CLARO, DÉC. 20. ARQUIVO PÚBLICO E HISTÓRICO 00 MUNICÍPIO DE RIO CLARO "OSCAR DE ARRUDA PENTEADO" "Se não fazer um "bico" não dava" - horas extras e "bicos" A extensão da jornada de trabalho dava-se com as horas extras. Estas eram uma constante para poder suplementar a deficiência do salário, significando um processo contínuo de exploração. Além das horas extras, outras atividades são também realizadas fora da fábrica, objetivando a complementação do salário. São os bicos, muito comuns entre os ferroviários. Eu era ajudante de carpinteiro pra fora. O capital invade o espaço fabril e sai vitorioso. O ferroviário aceita e subjuga-se ao controle do capital. Porém, ao realizar bicos, ele suplementa sua baixa renda e sai do controle do capital. Assim, ele põe para fora toda a sua criatividade. É portanto fora do espaço fabril que o ferroviário se realiza como ser humano.
próprio ferroviário controla a sua produção e o seu rendimento. É uma atividade secundária na vida do ferroviário, porém, muitas vezes chegou a representar sua fonte de renda mais importante. Dado o grau de especialização exigido, esses trabalhos extras são na maioria das vezes realizados pelos ferroviários mais qualificados, cabendo aos demais a realização de tarefas simples como limpeza de quintal, corte de gramas etc. O cotidiano do ferroviário encontrava-se, pois, dividido em dois momentos: o tempo de trabalho na oficina e o tempo de trabalho em casa. O primeiro correspondia à sua jornada de trabalho como ferroviário e o segundo à jornada de trabalho como marceneiro, carpinteiro, torneiro etc. O tempo livre praticamente inexistia. Apesar de ser realizado fora do espaço fabril, os bicos vêm significar a intensificação da exploração, pois o ganho na fábrica é insuficiente para sua sobrevivência
" Oepoenie: ajudanie de serralheiro.
40 Outros Olhares
^ "Nada contradizia a opinião dos chefes" - notas e promoções Havia uma nítida diferenciação salarial, baseada na produtividade e na eficiência de cada trabalhador. Daí as notas, as promoções em função dos trabalhos realizados. Estes critérios determinados pela empresa denotavam uma ordem seletiva dos ferroviários, onde osZ?o/25eram recompensados e os maus renegados. Os métodos de avaliação adotados pelas oficinas foram muitas vezes denunciados pelos ferroviários, isto porque a Paulista desenvolveu em suas oficinas, formas específicas de poder e de mando, centradas nas mãos dos chefes. É a ocorrência da concentração do poder, tendo como conseqüência o desenvolvimento de uma disciplina rígida. A chefia imediata era a fonte de todo o controle e despotismo. Com isto, emergem, freqüentemente, formas de apadrinhamento como um meio de subir na escala hierárquica. A conotação de bom ou mau empregado obedecia a critérios pessoais e a arbitrariedade dos chefes estava sempre presente nos momentos em que ocorriam as promoções. Estas representam realmente um grande temor por parte dos ferroviários, pois os critérios adotados eram pessoais e indiscutíveis, cabendo ao trabalhador aceitá-los passivamente. O resultado vai ser o conflito contínuo e constante, permeando a vida do ferroviário. "Lá dentro tudo era marcado, tudo era calculado" - normas e relações de trabalho As normas desenvolvidas pela Paulista continuam, no período analisado, calcadas nas tradicionais e costumeiras práticas de mando. No entanto, a partir de então elas, além dos elementos paternalistas, investem-se de modelos tayloristas, resultantes de um processo que objetivava a sua reorganização já dentro de moldes mais racionais, adequado à ampliação do capi-
tal. As tarefas passam a ser distribuídas de acordo com o nível de competência profissional de cada ferroviário, associando-se a um novo modelo administrativo. As normas estão fundadas numa bem planejada reestruturação hierárquica que até certo ponto inviabiliza formas coletivas de reivindicação, ficando as mesmas restritas ao plano individual. O que vai emergir são formas de solidariedade que nada mais são do que uma reação dos ferroviários a essas normas. Sem poder de barganha, os ferroviários solidarizam-se entre si. E uma forma de reação muitas vezes imperceptível, mas que no fundo deixa transparecer uma reação frente a uma nova situação a eles imposta. É um vínculo que se cria entre a vida da fábrica e a vida da íamília nos mostrando que as normas racionais não neutralizam a ação resistente do trabalhador. O controle existe, mas ele não é total, ele não se concretiza em sua totalidade. Para tanto, o ideal ferroviário transforma-se no ideal da família ferroviária. Fazem questão de manter a unidade familiar como se ela fosse um sustentáculo, ou seja, extensão da vida da fábrica. Não há distinção. Vida em família e vida da fábrica se unem, tornando-se um só elemento. São formas de comportamento que resultam das normas impostas Paulista, pois a mesma sustenta um processo de dominação via ideologia do trabalho. É pelo trabalho que o indivíduo se realiza como ser. Isto é imposto pela administração e introjetado pelos ferroviários. É uma denominação sutil e penetrante, que permite uma espécie de decodificação do discurso imposto aos operários pela própria empresa. A experiência concreta de vida na fábrica cria laços de solidariedade como um mecanismo de sobrevivência dentro da própria fábrica. No fundo é uma forma de resistência para poder sobreviver debaixo de normas tão rígidas de controle. Não é uma resistência que visa movimentos reivindicatórios, mas sim um meio de sobrevivência que chega inclusive a transpor os muros da fábrica, atingindo a esfera doméstica, e que se materializa na ajuda financeira aos ferroviários necessitados e também na realização de mutirões para a construção da casa própria.
41 Outros Olhares São, portanto, laços de solidariedade que se criam entre os ferroviários, em função de seus próprios interesses. No entanto, esses laços de solidariedade se subjugam aos regulamentos internos da oficina, ao mesmo tempo que os unem, criam mecanismos para evitar que a solidariedade se reforce e leve à formação da consciência de classe. Seguindo os princípios tayloristas, o tempo vai determinar a vida das oficinas. Todos os trabalhos são cronometrados, avaliados e tomados como parâmetros para a execução dos demais.14 O resultado é o aumento da produtividade e da intensidade do trabalho, significando um aumento das taxas de exploração. Avaliam o ferroviário individualmente, destacando o mérito de cada trabalhador; em função dessas avaliações, determinam a escala salarial. Cabe ao ferroviário a execução do que é determinado, de forma mais rápida possível, contribuindo para o aumento da produtividade. Todos os trabalhos eram cronometrados, e esses trabalhos nós tínhamos que tirar no prazo cronometrado. E aqueles que tiravam o trabalho mais rápido, tirado dentro daquele prazo estabelecido, ele recebia um prêmio. Ele ganhava um certo x em valor monetário. Então isso aí dava extras. O sujeito se esforçava para tirar no trabalho. Fazia o possível pra ganhar esse prêmio.'5 A fiscalização e o rigor das normas de trabalho extrapolavam-se até mesmo para a mobilidade do ferroviário, no espaço da oficina. Todos os seus passos lá dentro eram vigiados e cerceados, sendo que as normas disciplinavam as idas e a permanência no banheiro, e proibiam conversas durante o trabalho. Elas instauravam na fábrica um processo de vigilância contínua, mas apesar da rigidez das normas os ferroviários encontravam mecanismos para burlá-las. No banheiro não podia ira toda hora."' O desvio do material era duramente combatido e a quebra de qualquer peça das
máquinas implicava em desconto na folha de pagamento e a respectiva suspensão determinada pelo chefe da seção. O trabalhador ruim era constantemente remanejado de seção para seção. As demissões não existiam, porque a Paulista dava estabilidade ao ferroviário. Constantes multas eram aplicadas aos ferroviários. Essas, geralmente, implicavam em suspensão de um ou dois dias de serviço e sua não-remuneração. O controle dentro da oficina era visual. Denotava a centralização do processo de trabalho e de produção para o capital, tornando o trabalho extenuante, embrutecedor e enfadonho. Dada a opressão das normas, a reação dos ferroviários das oficinas da Paulista foi sutil. Ao estruturar-se dentro de normas mais rígidas de controle capitalista, a empresa obteve como resultado a internalização, pelo ferroviário, das normas da administração científica, porém, silenciosamente, deixam transparecer a consciência de sua existência e também, silenciosamente, reagem como podem às mesmas. Há um processo de submissão à vontade arbitrária dos superiores hierárquicos, mas há também a sua reação. O resultado é um processo ambíguo, desvendando ao mesmo tempo a submissão e a resistência. O ferroviário torna-se um operário subserviente às normas e regras impostas e ao mesmo tempo orgulhoso do seu desempenho na ferrovia. Cria-se uma nova estratégia de indivíduos até certo ponto submissos e produtivos, mas que demonstram sutilmente formas de resistência às opressões das normas impostas. Os ferroviários submetem-se ao controle da ciência e da técnica racional, curvando-se frente a ela, no entanto, não se deixando modelar, totalmente, pela racionalização. É um controle forte que extrapola o corpo do ferroviário, mas que não o subjuga totalmente. Ele é abrangente e atinge o
" Quanto à questão do taylorismo, consultar BRAVERHAN. Harry. Tnbilhto e apililmonopolisai degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar. 1977. CORIAT. Benjamin. E! Ulltr / e! cronômetro: ensayo sobre el taylorismo el (ordismo e Ia producción en masa. Hadrid: Siglo Ventiuno Editores, 1985. HAIER, Charles S. Entre le taylorisme et Ia lechnocralie: idéologies et Ia productivité industrielle dans TEurope des années 1920. En: techerches: Le soldai du travail (guerre, fascisme et taylorisme). Paris, n. 32-73. sept. 1978. HONTHOLLIN. Haurice de. Taylorisme et antitaylorisme. En: Socio/ogie du innit: conditions de travail, le taylorisme en question seizième année, d-Ed. oa/dec, | s.d. |. MORAES NETO, Benedito Rodrigues. Mãrx, To/hr Ford: a forças produtivas em discussão. São Paulo: Brasiliense. 1985. TAYLOR, frederich Winslow. Frincipios de odministaçSo dentiíia. São Paulo: Atlas. |s.d. |. VANDAGNÂ, Haurizio. tamericanisme et le management scientifique dans Tltalie des années 1920. En: Recherches. Op. cit "Depoenle: mestre do setor de carros. " Depoente: soldador.
seu cotidiano, tanto dentro como fora da fábrica, mas cria mecanismos de resistência, nos mostrando que há um descomprimento da ordem imposta e o surgimento de uma nova ordem por ele próprio recriada.
Não é a resistência coletiva que ressurge, mas sim, a resistência individualizada em cada ferroviário, em vista de suas aspirações e das suas frustrações em relação ao trabalho.
43 Outros Olhares O Negro e o Mercado de Trabalho no Interior Paulista*
Lucila Bandeira Beato Economista-UFF. Mestre em Engenharia da Produção-COPPE/UFRJ. Doutoranda em Economia. Responsável pelo Grupo de Estudos Afro-Brasileiros- Unicamp
A pesquisa Urbanização e Estrutura Ocupacional Regional do Estado de São Paulo -1970/1980, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Economia Urbana do Instituto de Economia da Unicamp, parte do pressuposto básico de que as estruturas ocupacionais são expressões empíricas da divisão técnica e social do trabalho. Em suas conclusões, destaca o papel integrador á<x industrialização brasileira quanto ao mercado de trabalho como um processo de integração heterogênea; entre elas, há as que se referem às principais transformações observadas na economia paulista, no período em foco: - consolidação no país de uma sociedade urbana-industrial, de forma sem precedentes; - peso significativo da produção industrial paulista e sua concentração nos setores de bens de produção e de bens intermediários; - ampliação da interiorização da indústria paulista; - consolidação da agricultura moderna, via intensificação dos processamentos técnicos e químicos; - processo de urbanização nas cidades do interior paulista que gera estruturas sociais mais complexas; as transformações colocadas pela urbanização; - as transformações quanto à qualificação das ocupações apresentam uma tendência geral à maior presença das nãomanuais; - o avanço do emprego assalariado mostra-se como característica central das mudanças na estrutura de emprego, tendo como contrapartida a redução dos autôno-
mos e não-remunerados. Esse avanço devese às modificações ocorridas no emprego agrícola e à maior organicidade dos mercados urbanos de trabalho; e - o aumento da participação feminina no mercado de trabalho apresenta-se, também, como uma característica central das mudanças na estrutura do emprego. A partir destas colocações iniciais, analisar-se-á agora as formas de inserção do trabalhador negro - aqui entendido como masculino e feminino - na estrutura ocupacional de 5 (cinco) municípios do interior paulista, restritas, no entanto, ao ano de 1980, tendo em vista que a ausência de dados sobre a população negra brasileira no Censo Demográfico de 1970 impede estudo preciso da evolução do trabalho negro no período 1970/1980, década em que ocorreram profundas transformações na estrutura econômica do país e na sua sociedade em geral. Foram selecionados municípios representativos, pois sedes de regiões e com características econômicas diferenciadas, a saber: Campinas - base industrial moderna; Ribeirão Preto - base agrícola moderna; Bauru - centro terciário, nó de comunicação para o oeste; Araçatuba - base pecuária inserida numa região de menor dinamismo; e Marília - base agrícola, mais diversificada, menos dependente da agropecuária, inserida numa região de menor dinamismo. Neste municípios, conforme mostra a Tabela I (estão anexas as Tabelas I a III),
' Trabalho apreseniado no / Encontro de Docentes. Fesquiíidores e PósGndumdos Negros realizado em setembro de 1989, na Unesp de Harilia.
a presença de trabalhadores negros na População Economicamente Ativa (PEA) dáse nas seguintes proporções: Araçatuba 29,3%, Marília - 27,8%, Campinas - 22,6%, Bauru - 20,6% e Ribeirão Preto - 19,2%. A Tabela II mostra os índices de pessoal ocupado, total e negro, no setor terciário em relação ao industrial, por município; por ela, verifica-se que o índice de trabalhadores negros no setor terciário relacionado ao industrial é sistematicamente inferior a esse mesmo índice para o total de trabalhadores. Coloca-se, então, em rediscussão a hipótese de sobreterciarização ou de maior informalização dos mercados de trabalho. Uma primeira avaliação destes índices apontaria para uma aparente tendência à maior formalização do trabalho do negro. Contudo, tal hipótese passa a ser descartada na medida em que se constata que o maior peso da força de trabalho negra no setor industrial deve-se, fundamentalmente, à sua concentração na indústria da construção civil, um setor que, ao contrário do de transformação, é marcado pela informalização das relações de trabalho. A Tabela III (de 1 a 5) mostra, no ano de 1980, a estrutura ocupacional dos trabalhadores negros, à qual se acrescem as taxas de crescimento do emprego total e as rendas médias dos principais setores de atividade econômica nos cinco municípios. Tendo por base a participação relativa do trabalhador negro em cada atividade econômica e o desempenho de cada setor, no que se refere ao crescimento do seu emprego total, ter-seá a distribuição das atividades econômicas, por município, em quatro quadrantes, conforme gráficos 1 a 5: 10 quadrante; atividades de dinamismo na geração do emprego superior à média do município; participação relativa da PEA negra inferior à média do município; 2- quadrante: atividades de dinamismo na geração do emprego superior à média do município; participação relativa da PEA negra também superior à média do município; 3- quadrante: atividades de dinamismo na geração do emprego inferior à média do município; participação relativa da PEA negra superior à média do município;
e 4- quadrante: atividades de dinamismo na geração do emprego inferior à média do município; participação relativa da PEA negra também inferior à média do município. A distribuição das atividades nestes quadrantes revela, por si só, independente do peso de cada atividade na estrutura ocupacional, os limites da diversificação possível ao trabalho do negro (quadrantes 2 e 3) e o campo de restrição à sua inserção em mercados dinâmicos de trabalho (quadrante 1). A concentração das atividades de maior dinamismo no quadrante 1 coloca em evidência o esvaziamento do 2, marca dos fortes empecilhos à entrada do trabalhador negro em mercados dinâmicos de trabalho. Ao lado desta constatação, colocase aqui e agora uma hipótese que vai além: o padrão de inserção do trabalhador negro em mercados de ivübaVao modernos ou não, de maior ou menor dinamismo, é homogêneo, mesmo quando se tem por base regiões economicamente diferenciadas e heterogêneas. Não se pretende entretanto conduzir a análise até às suas raízes. No que se refere ao exame dos quadrantes, o 1 aponta, numa avaliação da indústria de transformação restrita ao município de Campinas, para uma presença significativa de negros no setor metalmecânico - moderno, porém heterogêneo e em setores tradicionais, como mobiliário, vestuários e calçados, nos quais estão acentuadamente nos serviços de manutenção e apoio às atividades industriais, sobretudo como porteiros, vigias, ascensoristas e serventes e também entre os trabalhadores braçais sem especificação. Já em outros setores e agora abrangendo os cinco municípios, a presença do trabalhador negro no terciário é reduzida naqueles mais diretamente vinculados à modernização produtiva; mediana, nos transportes e comunicações, e menor no comércio. Destaca-se a pequena participação relativa de negros nos serviços técnicos-profissionais, nos serviços financeiros e notadamente no ensino público e no particular, apresentando as menores taxas no setor terciário. O quadrante 2 revela que nos cinco municípios a inserção de negros em ativi-
dades mais dinâmicas está restrita à indústria da construção civil, aos serviços de hotelaria e alojamento e aos de manutenção e conservação de edifícios; há ainda a presença em alguns outros poucos serviços diferenciados, no entanto, entre os municípios. Por exemplo, nos serviços de manutenção e conservação de edifícios a participação do trabalhador negro concentrase nas ocupações de porteiro, vigia, ascensorista e servente (86% de negros na PEA total destas ocupações), com predominância de mulheres (em Marília, chegam a atingir 76% da PEA total) e renda média mensal de um salário mínimo, uma das mais baixas observadas. O quadrante 3 concentra as atividades de menor dinamismo marcadas pela forte presença de trabalhadores negros, sendo caracterizado pelo trabalho tido como pesado ou sujo, ou ambos, tais como o emprego doméstico remunerado (nos cinco municípios), as atividades agropecuárias, as extrativas vegetais e outros serviços de transporte - possivelmente ferroviário - na maioria dos municípios, o que leva a que os trabalhadores negros sofram, mais fortemente, os impactos negativos desse menor dinamismo. A sua presença no emprego doméstico remunerado, onde o trabalho feminino representa cerca de 95% da PEA total, é a mais elevada entre todas as atividades. Ressalte-se a redução deste setor na PEA total, dado suas baixas taxas de crescimento do emprego nos cinco municípios, verificadas na década, com seus reflexos negativos destacados na inserção e absorção da mulher negra nos mercados urbanos de trabalho. O quadrante 4 revela atividades pouco dinâmicas e cuja presença do trabalhador negro é inferior à média, na maioria dos cinco municípios, tais como, entre outras, a administração pública, a segurança pública e defesa nacional, os serviços de confecção e conservação de vestuário. Na maioria dos municípios, o comércio ambulante, que é parte do terciário tradicional, e que, da mesma forma que o emprego doméstico remunerado, tem sua participação reduzida na estrutura da PEA total, apresenta proporção de trabalhadores ne-
gros entre as mais altas neste quadrante, sendo todavia reduzida a presença feminina. Em relação às transformações na estrutura de qualificação das ocupações observa-se, de imediato, a quase ausência de negros entre as funções não-manuais de maior crescimento, tais como as ocupações de gestão: administradores; gerentes e chefes (6% de negros, em média, nas principais cidades do interior paulista) e entre as ocupações burocráticas em geral. Algumas destas ocupações apresentam elevada participação feminina, conseqüentemente branca, possivelmente, porque estabelecem critérios de seleção baseados na boa aparência. As ocupações técnicas e científicas de níveis superior e médio estão também entre as que apresentam as maiores taxas de crescimento do emprego qualificado, na década. Nelas observam-se as baixas participações relativas de negros, com destaque entre as de nível superior. Portanto, o impacto da tendência geral à maior participação dos trabalhadores não-manuais na estrutura ocupacional no interior paulista não se reproduz entre os negros. Entre engenheiros e arquitetos; médicos, dentistas e enfermeiros diplomados; professores secundários e superiores, a proporção de negros, em 1980, varia de apenas 1% a 3% em todos os municípios, exceto Araçatuba. Com referência à tendência observada de avanço do assalariamento no interior paulista, a questão que se coloca é quanto à incorporação (ou não) dos trabalhadores negros à estrutura de emprego assalariado moderno. Como se dá essa incorporação? Que inserção têm os negros nas ocupações autocriadas? As ocupações conta-própria pressupõem desvantagens enquanto força de trabalho? Quais as que poderiam pressupor vantagens? Como se dá a integração do negro a mercados formais e informais de trabalho? Nos setores agropecuário e extrativo vegetal, os municípios apresentam níveis de assalariamento nestas atividades ligeiramente inferiores à média de cada município, exceto em Ribeirão Preto e Marília, onde o assalariamento da PEA nestes seto-
46 Outros Olhares pio, com exceção de Bauru. O assalariamento na saúde pública é total e tende a crescer na particular. O percentual de trabalhadores negros é maior e superior à média na saúde pública e menor na particular, chegando a cair a 50% do observado na saúde pública. Em relação específica à mulher no mercado de trabalho, a década de 70 marca a sua entrada maciça, por exemplo, em Campinas e em Ribeirão Preto, de 1970 a 1980, houve um crescimento de pelo menos 100% no total de mulheres trabalhadoras. A análise deste mercado aponta a concentração dos novos postos femininos de trabalho no setor terciário, onde se dá, também, uma presença diversificada nos segmentos modernos. Destaca-se ainda a indústria de transformação, principalmente em seus setores tradicionais, que aparece como segundo maior gerador do emprego para mulheres, seguido do comércio. Entretanto, as formas de inserção crescente do trabalho feminino apontam dificuldades quanto à absorção da trabalhadora negra. Se, por um lado, o emprego doméstico remunerado, que é a ocupação de maior concentração do trabalho feminino negro, apresenta, na década, baixíssima capacidade de gerar novas ofertas de emprego, por outro, as novas formas de absorção do trabalho feminino apresentam as mais baixas participações relativas da PEA negra e, por conseguinte, da mulher negra. O estudo das especificidades do trabalho negro, conforme aqui desenvolvido nos cinco municípios do interior paulista, permite projetar a possibilidade ou não de integração do trabalhador negro em mercados urbanos e modernos de trabalho e foi realizado em função de apontar perspectivas concretas para o futuro.
res é bastante elevado (cerca de 86% de empregados). Já na construção civil a presença de trabalhadores conta-própria é pelo menos duas vezes superior à média de cada um dos cinco municípios. Constata-se uma queda generalizada do assalariamento nesta atividade na década 1970/1980. A construção civil é marcada, também, pela forte presença de migrantes. O movimento geral do setor terciário foi de assalariamento e redução do emprego informal nos serviços vinculados à modernização produtiva, revelando a presença do trabalhador negro menor nos serviços distributivos e produtivos, tais como, comércio, armazenagem, transportes, comunicações, técnicos-profissionais, de apoio à produção e à atividade profissional, crédito, capitalização, comercialização de valores, administração e comércio de imóveis (os seis últimos apresentam os mais baixos percentuais de negros na PEA total do setor - cerca de 8%). Nos serviços pessoais tem-se um assalariamento total nas ocupações de hotelaria e alojamento. O percentual de participação de trabalhadores negros chega a ser duas vezes a média de cada município nas ocupações de higiene pessoal, garçons, cozinheiros e trabalhadores braçais. Os demais serviços pessoais, tais como confecção e conservação do vestuário, conservação e manutenção de edifícios, esporte, cultura, diversão, rádio e TV, apresentam um assalariamento crescente e uma presença mediana de negros. Nos serviços sociais há um índice de assalariamento bem acima da média do município, sobretudo em Araçatuba e Ribeirão Preto, no que diz respeito aos serviços comunitários, com a presença de negros ligeiramente inferior às médias de cada municí-
Tabela I PEA Total e Negra por Município Selecionado -1980 Municípios Araçatuba Bauru Campinas Marilia Ribeirão Preto São Paulo
Pop. Econ. Ativa
Total 48539 70100 275628 47095 129543 3704966
Fonte: Censo Demográfico -1980. Fundação IBGE. Tabulações Especiais - SPD/IE
Negra 14221 14441 62292 13092 24872 978111
% Negra 29,3 20,6 22,6 27.8 19,2 26,4
47 Outros Olhares Tabela II Relação PEA Total e Negra Setor Terciário/Setor Industrial -1980 Municípios Selecionados
índice
PEA Total Setor Terc./lndl.
Araçatuba Bauru Campinas Marília Ribeirão Preto São Paulo Total Est. São Paulo (1)
PEA Negra Setor Terc./lndl.
2,37 2,41 1,41 2,10 2,45 1,39 1,6
1,67 1,76 1,19 1,45 1,77 1,10
(1) 1970 = 2,0 Fonte: Censos Demográficos 1970 e 1980. Fundação IBGE. Tahulações Especiais • SPDIIE
Tabela III -1 Estrutura Ocupacional da PEA Negra, Taxa de Crescimento do Emprego Setorial na Década e Renda Média Setorial em Salários Mínimos Araçatuba, 1980 Atividades
Características Principais
Total Agropecuária
Total Terciário Total Município
PEA Negra (1)
% Negros
Tx. Cresc. Emprego
Renda MD-SM
2724 1924 2248 1079 591 73 5428 7175 14221
35,7 28,9
-1.2 7,8
5,3 2,2
17,4 25,8 23,0 27,3 25,0 29,3
3,9 -0,1 12,0 4,3 3,9 3,2
3,4 4,1 3,6 3,1 3,3 3,4
(1) Estimada Fonte; Censo Demográfico - 1980. Fundação IBGE. Tahulações Especiais • SPDJIE
Tabela III - 2 Estrutura Ocupacional da PEA Negra, Taxa de Crescimento do Emprego Setorial na Década e Renda Média Setorial em Salários Mínimos Bauru, 1980 Atividades
Total Município
Características Principais
PEA Negra (1)
2221 2461 1490 1152 92 6000 8744 14441
(1) Estimada Fonte; Censo Demográfico - 1980. Fundação IBGE. Tabulações Especiais - SPO/IE
% Negros
20,5 35,0 113,5 21,0 9,3 20,0 18,4 20,6
Tx. Cresc. Emprego
8,7 6,1 5,6 -0,1 8,6 5,1 4,5 5,0
Renda MD-SD
3,1 2,3 4,0 4,4 5,2 4,0 4,1 3,8
48 Outros Olhares Tabela III - 3 Estrutura Ocupacional da PEA Negra, Taxa de Crescimento do Emprego Setorial na Década e Renda Média Setorial em Salários Mínimos Campinas, 1980 Atividades
Características Principais
PEA Negra (1)
% Negros
Tx. Cresc. Emprego
1747
25,5 20,8 37,6 14,8 21.5 16,8 23,0 20,9 22,6
-2,5 9,1 7,7 8,4 4,6 15,5 6,9 7,1 7,3
10311 5305 2765 Total Terciário Total Município
32813 62292
Renda MD-SM 3,3 4,7 3,0 4,6 4,5 6,2 4,4 4,5 4.4
(1) Estimada Fonte; Censo Demográfico -1980. Fundação IBGE. Tabulações Especiais - SPDIIE
Tabela III - 4 Estrutura Ocupacional da PEA Negra, Taxa de Crescimento do Emprego Setorial na Década e Renda Média Setorial em Salários Mínimos Marília, 1980 PEA Negra (1)
% Negros
Tx. Cresc. Emprego
Renda MD-SM
Total Agropecuária Ind. Transformação Construção Civil
2665 .... 2598 .... 1591 ....
. 39,0 . 29,0 . 42,4
-3,6 4,4 6,8
Transportes Comunicações Serviços Total Terciário Total Município
362 38 4517 6164 13092
20,4 15,2 24,7 22,6 27,8
2,9 9,2 5,0 5,0 3.0
2.5 2.6 1.9 3.6 4,9 4,3 3,2 3,4 3,0
Atividades
Características Principais
(1) Estimada Fonte: Censo Demográfico • 1980. Fundação IBGE. Tabulações Especiais ■ SPD/IE
Tabela III - 5 Estrutura Ocupacional da PEA Negra, Taxa de Crescimento do Emprego Setorial na Década e Renda Média Setorial em Salários Mínimos Ribeirão Preto, 1980 Atividades Total Agropecuária Ind. Transformação Construção Civil Comércio Transportes Comunicações Serviços Total Terciário Total Município
Características Principais
PEA Negra (1)
% Negros
Tx. Cresc. Emprego
Renda MD-SM
1903 3960 4134 2807 1115 206 10477 14610 24872
27,6 18,0 33,0 12,0 19,9 15,4 18,5 16,8 19,2
-2,2 7.4 6,9 7,4 4,4 7,7 5,5 6.0 5,5
5,4 3,7 2.7 4,4 4,0 4.0 3.7 3,9 3,8
(11 Estimada Fonte: Censo Demográfico -1980. Fundação IBGE. Tabulações Especiais - SPDIIE
49 Outros Olhares Gráfico 1: Araçatuba 1980 T médio = 3,2 - % negros = 29,3 - T W = 3,4 Indústria de Transformação Serviços Industriais de Atividade Pública Comércio de Artigos Com. Veie.. Acessórios. Máq. Cumb. e lubrif Com. Mat. Primas e Aliv Auxiliares do Com Total Comércio Comunicação Serv. Hig. Pessoal c Alimentação Serviços Técnicos Outros Serviços Pessoais Serv. Esporte. Cult.. Diversão. Rádio e TV Serv. Comunitários e Assistenciais Serv. de Saúde Particular Ensino Particular Adminisiraçáo Pública Serv. de Ctéd.. Capitaluação e Com. de Vai Total Serviços Total Tetciátio Agropecuária Extrativa Vegetal (Dom. Urb.) Construção Civil Serviço de Hotelaria e Alojamento Serviço de Manut. e Conserv. de Edifícios Serviço de Saúde Públ. e Previdência Segurança Pública e Defesa Nacional 3.2 TM Comércio Ambulante Transp. Urbanos c Rodoviários Total Transportes Serv. Confecção e Conserv. de Vcst Serv. Rec. e Conserv. de Aparelhos. Veículos Ensino Público Adm. e Comércio de Imóveis Outras Atividades Agropecuária Extrativa Vegetal (Dom Rural) Extrativa Mineral Outros Serviços de Transporte Empregada Doméstica % Negros 29.3
(2,2) (4,2) (3,6) 12.9) (6.3) (3.4) (3.61 (3.1l (3,8) (2.4) I2.b) 13.0) (6.9) 13.2) 14.4) (5.01 '3.') (3.3) 18.7) (2.2) ('-81 (1-0) (3.5) W.fl (2,(1 '4.31 Wm l'-4! (2.7) (5.3) 5,3) (8-81 (2.0) C43-®' l -1' '8.61
Gráfico 2; Bauru 1980 T médio = 5,0 - % negros = 20,6 - W médio = 3,8 Extrativa Mineral Indústria de Transformação Serviços Industriais de Atividade Pública Comércio de Artigos Com. Veie.. Acessórios, Máq. Comb. e Lubrif Com. Mat. Primas e Aliv. Auxiliares do Com Total Comércio Comunicações Serv. de Hotelaria e Alojamento Serv. Hig Pessoal e Alimentação Serv de Recup. Conserv. de Apar.. Veículos Serviços Técnicos Outros Serviços Pessoais Serv. Esporte. Cult.. Diversão, Rádio e TV Serv. Comunitários e Assistenciais Ensino Público Ensino Particular Serv. de Créd.. Capitalização e Com. de Vai Administração e Com. de Imóveis Total Serviços Construção Civil Serv. de Manut. e Conservação de Edifícios Serv. de Saúde Pública e Previdência 5,0 T M Agropecuária Extrativa e Vegetal Rural Transp. Urbanos e Rodov Serv. Confecção e Conserv. de Vestuário Serv. de Saúde Particular Administração Pública Segurança Pública e Defesa Nacional Agropecuária Extrativa e Vegetal Urbano Comércio Ambulante Outros Serviços de Transporte Total Transportes Empregada Doméstica Remunerada Outras Atividades MPC % Negros 20,6
'8-5) '3.'l 16.9' '4.2) l104-8) j -8j C-1' '3.51 (2.9) 'Ij-jJJ '3-5' (3.3) ]5.8I '5.J' |4'!j ',2 l3-2' 2,3)2 4 'j '2.5' 5>3 J44-84 [-[ J43>'[ '4-5J J'[ '8'7j '''
so Outros Olhares Gráfico 3: Campinas 1980 T médio = 7,3 - % negros município = 22,6 - TW médio = 4,4 Indústria de Transformação Serviços Industriais de Atividade Pública Comércio de Artigos Com. Veie., Acess., Máquinas etc Com. Mat. Primas Total Comércio Comunicações Serv. Hig. Pessoal e Alimentação Serviços Técnicos Serv. Esporte, Cult., Diversão, Rádio e TV Serv. Comunitários e Assistenciais Serviços de Saúde Pública e Previdência Serviços de Saúde Particular Ensino Público Ensino Particular Serv. de Créd.. Capitaliraçâo e Com. de Vai Administração e Com. de Imóveis Construção Civil Serviços de Hotelaria e Alojamento Serv. de Manut. e Conservação de Edifícios Outros Serviços Pessoais T M 7.3% Comércio Ambulante Transp. Urb.e Rodoviários Outros Serv. de Transporte Serv. de Recuper. e Conserv. de Apar., Veie Administração Pública Total Transportes Agropecuária Extrativa e Vegetal Extrativa Mineral Serv. Confecção e Conserv. de Vestuário Empregada Doméstica Remunerada Segurança Pública e Defesa Nacional Outras Atividades NPC % Negros M 22,6
(4,7) (7,0) (4,3) (5,4) (9,4) (4,6) (6,2) (3,7) (7,3) (4,0) (4,3) (4,5) (7,3) 16.2) (5,3) (5.7) (6.3) (3.0) (4.1) (1.6) (4.3) (2,8) (4,2) (5,7) (3,4) (5,5) (3,3) (4,3) (1,8) (0,8) (3,9) (18,8)
51 Outros Olhares Idiosincrasia y Arquitectura en México
Carlos R. Margain Araújo Profesor de la Facultad de Arquitectura de la Universidad Nacional Autônoma dei México- Unam
Idiosincrasia: Temperamentopropio, por el cual se distingue de los de más. Características dei modo de ser y de actuar propio de la generalidad de los mexicanos. Arquitectura: Producto cultural exclusivamente dei ser humano cuya materialización involucra una gran cantidad de aspectos. Desde los bien variados de carácter estrictamente material (relacionados con su bienestar físico) hasta los tan o más importantes porque satisfacen aspectos de órden espiritual (arte y religión... entre otros). Premisas fundamentales La arquitectura como fuente de información socio-cultural y económico-política Cualquier producción arquitectónica constituye la materialización estructurada - de realidades sociales, econômicas, políticas y culturales dei conglomerado humano (sea éste: un grupo, una comunidad, una sociedad, un pueblo y/o una nación) - que la genere. Consecuentemente: Un adecuado análisis de una producción arquitectónica (en no importa qué lugar y época) puede revelar, además de aspectos de orden económico-político, los pertenecientes a Ias características socioculturales de la comunidad, sociedad o pueblo que generó esa arquitectura. Para hacer un adecuado análisis de una producción arquitectónica, es necesario puntualizar sistemáticamente los variados elementos materiales, así como los rela-
tivos a Ias diferentes realidades físicas y espirituales involucradas en dicha producción. Marco teórico para un análisis sistemático de la arquitectura. La puntualizacíón sistemática de esos variados elementos la presento en un cuadro organigramado Este cuadro constituye una expresión que gráficamente sintetiza, de manera ultrasumaria, los distintos aspectos y/o elementos materiales, espirituales, económico-políticos involucrados en una producción arquitectónica... y, a la vez, conforma el marco teórico para hacer ei análisis sistemático de ella. Temas base Ventajas implícitas en el estúdio y análisis de una producción arquitectónica con profundidad en el tiempo; esto es: generada en el pasado Guando el análisis sistemático se hace en nnü secuencia temporal de producciones arquitectónicas en un área dada. Ia información que se capte permitirá conocer: - Ias características propias y distintivas de cada uno de los diferentes lapsos y secuencias arquitectónicas habidas; - la posible existência de denominadores comunes que caracterizaron a Ias sociedades que Ias generaron, así como;
33 Outros Olhares Anexo
elaboro Carlos R. Margain
arquítectura
ES UN FROOUCTO DERIVADO DE
DEBE SAT1SFACER ADECUADAMENTE^Y ESTAR EN FUNCION DIRECTA DE:
FACTORES
OBSE IA/ACIONES
UNA REAÜDAD POUTICO-ECONOMICA
ENTRE MAS ESTABLE Y BIEN DEFINIDO, MEJOR. PUEDE SER COMPUTABLE
UNA REAUDAD SOCIO-CULTURAL
ENTRE MAS DEFINIDO Y BIEN INTEGRADO. MEJOR. PARA EFECTOS PRACTICOS PUEDE SER COMPUTABLE
CARACTERÍSTICAS GEQ.-CUMATICAS DE LA REGION
ESTE ES EL FACTOR MAS ESTABLE Y PUEDE SER COMPUTABLE
LOS ADELAI/fOS O CONOCJMIENTOS TECNOLÓGICOS DE SU ÉPOCA FACTOR TECNO-CONSTRUCT1VO
LOS CONOCIMIENTOS TECNOLÓGICOS D|.SU ÍOCA APUCADOS A LA CONSTRUCCION ABSOLUTAMENTE COMPUTABLE
IA SENSIBIUDAD ESTETICA DE LA REAUDAD SOCIAL Y CULTURAL QUE IA PRODUJO
ESTE ES EL FACTOR QUE CONVIERTE A LA ARQUÍTECTURA EN UN ARTE, SUS VALORES SON SUBJETIVOS POR LO TANTO NO SON COMPUTABLES TODOS LOS CINCO FACTORES ESTAN INTIMAMENTE INTERRELACIONADOS UNOS CON OTROS
Casa aberta al terrpo ,-XOCHIMILCO UNIVERSIDAD AUTÔNOMA METROBOUTANA-XOCI DEPARTAMENTO DE TEORIA Y ANALISIS
CONCLUSIONES ENTRE MÍS INTENSA Y MUTUA SEA IA INTEGRACII5N DE ESTOS DOS FACTORES UNO CON EL OTRO. MAS POSIB1UDADEJ HAY DE QUE PROOUCCION ARQUITECTONICA POR ELLOS GENERADA, TENGA VALORES PERMANENTES (TANTO ESPIRITUALES COMO MATE RIA LES)
SI ADEMAS, LA ARQUÍTECTURA ASI GENERADA SAT1SFACE ADECUADAMENTE TODOS LOS ELEMENTOS Y ASPECTOS INVOLUCRADOS EN CADA UNO DE ESTOS TRES FACTORES. INEWABLEMENTf ORIGINAN QUE LA ARQUÍTECTURA ASI PRODUCIDA TENGA. SIN LUGAR A DUDAS, VALORES PERMANENTES. ESTO ES QUE SERA ENTONCES UNA VERDADERA ARQUÍTECTURA
33 - Ias poças o muchas transformaciones que se presentaron en ei transcurso dei tiempo. Consecuente y logicamente. Sitomamos como ejemplo Io sucedido a este respecto en el transcurso dei tiempo, en el área geográfica hoy conocida como México, es, teórica y prácticamente factible el enterarse de vários de los aspectos que caracterizaron, espiritual y materialmente, a Ias sociedades, pueblos y/o culturas que vivieron... y Ias materializaron en Ias producciones arquitectónicas que ellos generaron y desarrollaron y que han 1 legado hasta nosotros... y Ias podemos estudiar... (via marco teórico): unos, los indígenas dei México precolombino, durante más de veinticinco siglos. Otws, durante los tres siglos de dominio espanol: los venidos de Espaha y sus descendientes. Nosotros, criollos y mestizos, junto con la población indígena existente y sus descendientes:... en suma: los mexicanos. Cabe aqui considerar Ias indudables ventajas que tiene - especialmente en lo que concierne a la arquitectura - el poder estudiarla y analizarla con sus características ya decantadas por el correr dei tiempo. En lo que toca a la generada en la época precolombina durante casi tres milênios en México, con todas Ias destrucciones ocurridas en el transcurso de tantos siglos, es, no obstante, bien factible puntualizar tanto sus rasgos diagnóstico como los denominadores comunes que tuvieron. Aspectos todos que nos indican, con claridad y amplitud, que fueron producto de un mundo de ideas radicalmente diferente a Ias dei otro mundo... el propio y característico de la cultura occidental... El mundo de ideas de la cultura occidental... radicalmente diferente al de Ias culturas dei México precolombino Puntualicemos ahora algunos de los aspectos propios y diagnósticos dei mundo de ideas de la cultura occidental. Este se ha caracterizado desde sus orígenes por la primordial importância que le concedieron sus antepasados: los griegos, al antropos, ai ser humano, al hombre... y tanto que sus dioses tenían apariencia y actitudes similares a Ias de los humanos... y para qué mencio-
nar Ias hasta hoy merecidamente famosas expresiones plásticas de todo ello. Los romanos herederos de los griegos, no sólo continuaron sino que enriquecieron Ia tradición antropocéntrica de manera ego y etnocéntrica. El cristianismo fue fusionado en parte con ideas dei emperador de cepa romana, Constantino (270/288 à 337): Jesucristo nace un 25 de diciembre, fecha inmediata al Solsticio de Invierno... cuando los dias comienzan a alargase... fecha en que los romanos celebraban el nacimiento - o renacimiento - dei diosSol Invictas. Esta transpolación cultural, rasgo usual en la historia de Ia humanidad (y que, también se presenta en México después dei encuentro) nos hace ver: - el hilo de continuidad entre el paganismo de los romanos y el cristianismo; así como: - la importância dei hombre, dei antropos entre los cristianos toda vez que, ni más ni menos, hemos sido hechos... a imagen y semejanza de Dios. De aqui que el antropocentrismo y sus deri vaciones hacia el egocentrismo que, ampliado, se convierte en etnocentrismo, constituyen todas: características-diagnóstico de la cultura occidental. El mundo de ideas de la Mesoamérica indígena bien documentado en su abundante arquitectura El mundo de ideas de Ias altas culturas indígenas de Mesoamérica, por el contrario carecia por completo de ese antropocentrismo y todos sus derivados, tan propios de Occidente. Esto es posible documentário con amplitud y es objetivamente demostrable, gracias a la abundante producción arquitectónica que, durante más de dos milênios, generaron Ias civilizaciones indígenas antes de la Ilegada de los espanoles. Lo abundante de esa producción se capta cuando consideramos; - lo que en forma de minas todavia existe a pesar de lo extenso dei lapso transcurrido y de Ias inevitables destrucciones que toda producción arquitectónica sufre en el transcurso de su gestación, nacimiento, desarrollo, culminación, fin y abandono;
Outros Olhares
- Ia escala de destrucción aún mayor sufrida por los restos de esa arquitectura, a partir dei encuentw. Esto último debido, justa y precisamente, al carácter etnocéntrico dei mundo de ideas occidental que, conscientemente considero (y parte de él todavia considera) que Io verdaderamente valioso, trascendente e importante es lo que el etnocentrista mundo occidental genera... Lo demás... tiene interés, sí, pero éste reside en su carácter exótico, esto es: no occidental... por lo tanto...
después de establecido el predomínio de ideas dei mundo occidental en la versión traída por los espaholes, la arquitectura generada pone de manifiesto el indudable mestizaje biocultural indo-espanol habido en México después dei hoy llamado encuentro. Y si esto es así, que características: - por una parte, lo diferencían de lo prehispánico y de lo espahol; y - por otra: lo relacionan con el uno y con el otro.
La arquitectura generada en México durante los tres siglos posteriores al encuentro: nos dice?
El mundo de ideas indígenas a traves de su arquitectura
Ahora bien, si el sistemático análisis de la producción arquitectónica dei México precolombino permite darse cuenta de: - que el mundo de ideas que la generó fue bien diferente al de la cultura occidental, entonces; - la información que nos proporcione el análisis de la arquitectura producida durante los tres siglos posteriores al encuentro de los dos mundos en México será: por una parte, más fácil de obtener por Io próximo dei lapso transcurrido (hace menos de 500 anos); por otra y sobre todo: sus características y significados serán, también, más fáciles de captar y entender. Y ésto porque esa arquitectura fue producto, en su casi totalidad, dei mundo de ideas al cual, desde el encuentro pertenecemos los habitantes de esa parte dei mundo hoy llamada: México. Establecidas y conocidas Ias características propias dei mundo de ideas indígena precolombino, así como Ias desarrolladas durante los tres siglos transcurridos después dei encuentro con el mundo de ideas occidental en su versión espafiola, entonces será perfectamente factible: - conocer si ambas producciones tienen algunos rasgos en común; y - si estos rasgos constituyen o no una fusión de los dos mundos de ideeis. Dicho concretamente: si la arquitectura generada en México después dei encuentro, esto es, expresado sin eufemismos:
La arquitectura en el México prehispánico A pesar de la enorme destrucción sufrida por los restos de la arquitectura generada en el largo devenir de Ias culturas indígenas dei nuevo mundo, fue tan abundante la cantidad de Io construído que, lo ya estudiado - y nada más en lo que hoy es México - es tan amplio que su presentación completa requiere vários semestres de cursos al respecto. En el presente caso eventualmente he de escoger sólo unos muy contados ejemplos, para hacer ver con claridad el mundo de ideas que generó tal riqueza. Aspectos cronológicos Ya desde este aspecto se da uno cuenta de la diferencia existente entre el mundo de ideas indígenas y el de la cultura occidental. Por esto presento una nomenclatura genérica muy utilizada hoy por lo sencilla y fácil de captar... pero que enfoca toda la secuencia histórico-cultural dei desarrollo indígena prehispánico, cien por ciento a la manera de Ia cultura occidental: Época Preclásica, Clásicay Posclásica. Lo cual, consciente e inconscientemente, nos hace pensar que los creadores de todas Ias antiguas culturas indígenas de América, tenían un concepto de la Historia igual al nuestro. Esto es, el ideado por los antiguos grecolatinos. Y este es uno de los casi innumerables errores a los que nos conduce la prepotência de analizar todo indefectiblemente a Ia manera occidental. Los antiguos me-
53 Outros Olhares soamericanos no tenían nuestro concepto de la Historia. Para ellos el correr dei tiempo y sus aconteceres no eran considerados como una continuidad en permanente secuencia... con todas X&s altas y bajas que se quiera. Ellos consideraban que todo se desarrollaba en ciclos; al terminar uno, éste acabado, redondeado, completo, dejaba de existir... ai hacerlo se iniciaba, nacía otro... que por ser nuevo... nada tenía que ver con ei otro; que, al completarse, había llegado a su fin... como todo acontecimiento cíclico... al que de inmediato... le seguia otro. Los ciclos mesoamericanos... y Ia arquitectura Tengo que referirme con algún detalle a los ciclos, por la importância que éstos tenían para los antiguos mesoamericanos... y para quien hoy se interese en conocer su mundo de ideas. Esto es necesario porque por ejemplo en los contados sitios que se conocen de Ia arquitectura generada por los olmecas de Vò. Época Preclásica o por aquella que muestra su inconfundible influencia, existen restos que nos indican la importância que le dieron a esculpir monolitos que indicaban: unos. Ias características individualizadas, autênticos retratos de sus personajes más importantes; otros con anotaciones calendáricas. En suma: hay poços, pero evidentes elementos que nos indican que los refinados olmecas, que florecieron por 800-900 a. C., conocieron, supieron y manejaron los famosos ciclos... los que grabados en lápidas formaban parte de Ias áreas urbanas que ellos generaron. Ese sistema incluía en su aspecto numérico no sólo el concepto dei cero (que da valor posicionai a los números... como sucede en el ábaco) sino, lo más importante, la expresión gráfica de este número. Este sistema fue ideado por los mesoamericanos vários milênios antes dei utilizado por la cultura occidental en Europa por el siglo XV... gracias al conocimiento de los números arábigos... Sistema que, no obstante su nombre no fue invento de los árabes sino hecho por los habitantes de la índia, por el siglo VI de la Era Cristiana. Esto es: los antiguos mesoamericanos idearon y usaron el siste-
ma con expresión gráfica dei cero unos 25 siglos antes de que los europeos utilizaran el sistema creado en la índia en el siglo VI... Piénsese; con números romanos imposible el progreso dei mundo occidental... sin álgebra, cálculo integral etc. Los mayas de la Época Clásica tomaron vários elementos característicos de la cultura olmeca (Época Preclásica). Entre estos hacer retratos esculpidos y/o pintados de sus personajes más importantes, así como y muy especialmente la costumbre de erigir, monumentos monolíticos fechados, hoy llamados esteias. En estos además de los retratos de los personajes, se labraron, magníficamente esculpidos, anotaciones calendáricas hechas en el mismo sistema numérico-calendárico utilizado por los olmecas. La cantidad de esteias mayas que ha llegado hasta nosotros (originalmente expuestas en Ias plazas más importantes de sus centros urbanos) ha sido tan numerosa que, en un principio se considero que los maya clásicos habían sido los inventores de ese sistema numérico-calendárico. Razón por la cual se le Ilama - acertadamente: Sistema Calendárico Maya... aunque ellos no hayan sido quienes lo inventaron. Paralelismos Aspectos urbanísticoarquitéctonicos presentes en el siglo VII en el México indígena y en el México hispano-colonial en el siglo XVIII En prácticamente en todas Ias ciudades maya-clásicas y en los sitios de mayor afluência humana, se encuentran esteias. Aunque presentan diferencias en forma y acabados, todas incluyen siempre los siguientes aspectos; - el retrato de personajes mayas de la élite gobernante más elevada, considerados descendientes de dioses; - datos a ellos referentes así como acontecimientos relacionados con la erección de la esteia', - a menudo anotaciones astronómico-calendárico-religiosas. El común de la gente que llegaba a estas ciudades era incapaz de leer (hoy los
56 Ouüos Olhares calificaríamos: analfabetas) la glífica beliamentepresentadaen relieves policromados. Razón por la cual debe haber sido adecuadamente informada por quienes estaban debidamente enterados al respecto... Io que hoy prosaicamente llamamos visitas guiadas. Esto era usual en el siglo VII. En el siglo XVIII, en el México-colonial era posible ver fenômenos prácticamente idênticos. Después de tres siglos de domínio político econômico de Espaíia, pero con un México biocultural mente mestizado; esto es, con una personalidad propia con visibles elementos físicos y espirituales de origen indo-espanol, sintetizados en el término: mexicano, el fenômeno de Ias visitas guiadas se repite. Me explicaré. Las realidades político-econômicas en el siglo XVIII eran estables (lo cual no implica decir que fueran socialmente justas); las concernientes a Ias características socio-culturales, después de tres siglos de convivir y mezclarse lo indígena con lo criollo de origen espanol, habían alcanzado una definición... la cual se había materializado arquitectónicamente (como sucedieron en todas Ias épocas o ciclos dei período prehispánico). Justo porque existia estabilidad político-econômica y la realidad socio-cultural estaba definida, tanto en el siglo VII, en el México indígena, como en el XVIII, en el México colonial, se repitió el mismo fenômeno socio-cultural-arquitectónico en una misma área geográfica. Veamos. En el siglo XVIII cuando en México los altares de las iglesias salen a la calle por así decirlo - (un solo ejemplo basta para puntualizar el fenômeno, que se generaliza poco después en el resto de México... como todavia hoy se puede corroborar): El origen, como tantos otros, viene de Espana; Ilega a México y aqui se transforma... inevitablemente. La llamada columna-estípite llega por 1730. Se materializa en la ciudad de México en la entrada de Ia Casa dei Arzobispado. Poços aíios después el barroco-estípite - que no: Churriguera - se desborda. A escasos trescientos metros dei Arzobispado, en la Catedral Metropolitana se construye el Altar de los Reyes. No mucho tiempo después se edifica el Sagrado Metropolitano. La enorme exuberância que es posible desarrollar con Ia madera y la lâmina de oro en el Altar de los Reyes, al salir a la calle, al edificarse
el Sagrario Metropolitano, mantiene en sus fachadas en esquina su exuberância, pero dentro de los limites que permite Ia piedra: la gris chiluca y el rojizo tezontle. Y todo el fenômeno arquitectónico-urbanístico y socio-cultural se extiende en el resto dei México de entonces. Ahora bien ^en dónde está el paralelismo prehispánico e hispano-colonial, sintetizado en lo arquitectónico-urbanístico y en lo de las visitas guiadas? Así como en el siglo VII cuando el común de la gente que llegaba a las Plazas más importantes y por ello más visitadas, admiraba visualmente templos-pirámide y las numerosas esteias... pero su significado materializado escultórica y polícromamente lo ignoraba (de ahí lo dei calificativo de analfabetos. En el siglo XVIII, toda esa maravilla arquitectónica y escultórica presente en las elaboradísimas fachadas de las iglesias que se construían, atraía indudablemente a todo aquel que lo viera, especialmente desde el atrio. Pero, salvo el Cristo crucificado y alguna que otra figura... el resto materializado plásticamente... lo ignoraba (por su analfabetismo iconográfico). Razón por la cual, sino constantemente sí en varias ocasiones en el curso dei afio, se hacían en el atrio Ias explicaciones necesarias. Cada fachada constituía una porción de Ia historia dei catolicismo... materializada plásticamente. Las esteias mayas eran, exactamente Io mismo; materialización estética de la historia dei sitio... pero, el común de Ia gente tanto en el siglo VII como mil anos después, en el siglo XVIII, requeria que le fuera explicado... por su analfabetismo iconográfico... Aspecto éste que persiste... con Ia desventaja que hoy, a diferencia dei siglo XVIII, no hay visitas guiadas para el común de Ia gente... ni en los dias de la Feria dei Santo Patrono dei Pueblo... como sucedia en el siglo XVIII. Exuberância estética en el México indígena y en el colonial Así como en el inciso anterior se explico algo dei paralelismo urbanístico y arquitectónico desarrollado en el México precolombino (siglo VII) y en el México hispano colonial (siglo XVIII), presentaré ahora insospechados paralelismos en lo llama-
57 do maya-tolteca (siglo XII) y el barroco-estípite (siglo XVIII) especialmente en el área metropolitana dei México de entonces. El barroco-estípite representado de una manera ejemplar en el antes citado Sagrario Metropolitano edificado en el corazón de la ciudad de México, representa de una manera clara y contundente un barroco que se puede calificar de geométrico (?) barroco-geométricoes un contrasentido. Ante la imposibilidad de describirlo con detalle en este breve escrito, sólo diré que unas cuantas fotografias, transparências o diapositivas, me permitirían demostrar visual y objetivamente el indudable contrasentido... para un europeo: ^barroco-geométrico?... Io es... y no hay mejor ejemplo que el Sagrario Metropolitano en Ia ciudad de México, edificado en el siglo XVIII. De similar manera es visualmente posible demostrar la fusión de un arte que se caracteriza por sus lineamientos geométricos, bien definidos, claros como Io es el generado por los toltecas y Ias características dei arte maya clásico en el cual predomina lo curvilíneo, movido, envolvente; esto es: bien diferente al tolteca. El arte, la arquitectura y el urbanismo consecuente, desarrollados en el altiplano central de México, a unos 2.200 metros de altitud sobre el nível dei mar; donde por sus características geo-climáticas y la vegetación resultante, se pueden apreciar lejanías; esto es, perspectivas que permiten ver y captar perfiles urbanísticos y arquitectónicos. El arte, en esculturas y pinturas, en arquitectura y urbanismo, como lo generado por los toltecas... o los teotihuacanos... o por los aztecas, se caracteriza por el predomínio de lineamientos de evidentes geometrismos, en los que se aprecian los perfiles, o definidos claros y rectilíneos en su mayoría. Por otra parte lo maya-clásico desarrollado en un área tropical lluviosa con densa y exuberante vegetación... donde no se pueden percibir distancias, lejanías para ver y captar perfiles urbanísticos... a menos que se mantenga de manera constante, permanente e ininterrumpida, libres de vegetación amplias áreas de terreno... desmontado, limpio de Ia densa vegetación propia dei trópico. El entorno geográfico no determina,
_. pero si influye de considerable manera en varias de Ias características de la arquitectura y dei urbanismo que en él se desarroIlan. Por eso el arte maya-clásico se diferencia radicalmente dei tolteca. Guando en el siglo XII florece un centro maya-tolteca en una zona dei área maya, situada en una región donde hay menos precipitaciones pluviales... y por ello la vegetación es menos densa. Región en la que, además, poco tiempo antes ya había surgido el hoy llamado Estilo Puuc (dei Epiclásico) diferente al maya-clásico por Ias estilizaciones geométricas que lo caracterizan. Por todo ello es explicable que al Ilegar lo tolteca a esa área maya en la parte norte de la península de Yucatán, encuentre todo favorable para fusionar sus características geometrizantes, rectilíneas y demás, con lo que había sido característico y propio de lo maya clásico: Io curvilíneo, envolvente, no rigidamente definido... como lo geométrico y rectilíneo. De esta manera el paralelismo entre el barroco-estípite (siglo XVIII) ejemplificado en el Sagrario Metropolitano, que materializa el aparente contrasentido incluído en el término barroco-geométrico o barroco-simétrico y lo maya tolteca (siglo XII) queda, cabalmente establecido: surgen en distintas épocas, con características equiparables... en Ia misma área: Mesoamérica. Realidades socio-culturales y económico-políticas, integradas y positivas, se materializan arquitectónicamente de similar manera Denominadores comunes existentes en dos épocas bien diferentes: una en los siglos VI y VII y otra en el siglo XVIII, en la misma área: Mesoamérica, se materializan arquitectónicamente de manera positiva y creadora. Lo hacen en forma diferente, claro está, pero en esencia, ambos casos son productos de realidades econômicas, políticas y socio-culturales estables y bien definidas. En los siglos VI y VII, en núcleo de la Época Clásica de Mesoamérica, el denominador común arquitectónicay urbanísticamente fue la utilización de lo que hoy llamamos tableros. Utilizados para realzar
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decorativamente Ias plataformas que escalonadamente de mayor a menor (de aqui que hoy Ias llamemos: pirâmides) sobre Ias cuales edificaban sus templos más importantes. Esto era característico en toda el área de Mesoamérica. En el siglo XVIII, el elemento denominador común fue la utilización de la llamada columna-estípite, en Ias más diversas regiones de la entonces llamada Nueva Espafía. En ambas épocas, la Clásica mesoamericana y en el siglo de lo mexicano y en la misma área: en cada región desarrollaron arquitectónicamente el denominador común en cada una de Ias dos épocas: tableros en Io prehispánico; estípite en el México colonial. En cada región y en ambas épocas sus habitantes mostraron su propia y diferente personalidad... entre otras al utilizar de la manera más adecuada aquellos materiales de construcción que cada región les brindaba. Así los denominadores comunes: tableros prehispánicos y estípite colonial, fueron ideados, proyectados y edificados en función directa de Ias realidades materiales e ingenios humanos que existían en cada región. Resultado: creatividades regionales diferentes, derivadas de realidades materiales diferentes con capacidades creativas propias. Es necesario ver Ias características que muestran los tableros en todas y cada una de Ias regiones de Mesoamérica: todas diferentes... y en función directa de Ias capacidades conocedoras y creativas, de quienes seleccionaron los materiales disponibles más convenientes y los emplearon funcional y estéticamente de la más expresiva manera. 1 - Los habitantes de Hispanoamérica que estamos concreta y adecuadamente interiorizados de nuestras características históricas y socio-culturales de orígen precolombino y/o de otros orígenes, consideramos necesario: - el dar a conocer debidamente y con el mayor detalle los elementos de orígen no espahol, especial y particularmente los de raigambre local americana, anteriores al arribo de lo espahol. Elementos que per-
sisten, en una u otra forma, en los países respectivos; - simultáneamente necesitamos interiorizamos con similar detalle de todo lo concerniente a la razón de ser, los orígenes de los elementos bioculturales que nos llegaron de Espaha en particular y de Europa en general; - todo lo anterior debe darse a conocer simultáneamente tanto en Espaha por expertos hispano-americanos, como entre nosotros por estudiosos venidos de Espaha. 2 - Para hacer realidad toda esta concertada conjugación, programar cursos en los que mancomunadamente se trate lo referente a Ias raíces bioculturales de todos y cada uno de los países de Hispanoamérica (por ejemplo en México: Nuestras Raíces Indo-Espanolas). De esta manera no sólo nosotros conoceremos mejor lo relativo a nuestros orígenes hispanos sino, algo igual o aún más importante; los propios espaholes tendrán oportunidad de conocer - por fin Ias características y la personalidad histórico-cultural de todos y cada uno de los países hispanoamericanos. Esto último es de elemental necesidad para la propia Espaha porque, Ias varias veces que he sido profesor-huésped o conferenciante en países europeos, me he dado cuenta que en todos ellos hay un mayor y evidente interés (quizá por razones econômicas, pero lo hay) por estudiar y conocer Ias realidades histórico-culturales de nuestros países, repito: mayor que en la misma Espaha... Esto no me lo han contado: Io he sentido, visto y oído al asistir a disertaciones habidas en Espaha, de carácter histórico-cultural con tópicos hispanoamericanos. 3 - Para enderezar el entuerto anterior es indispensable promover el establecimiento en Ias universidades más importantes, tanto de Espaha como de cada uno de los países de Hispanoamérica de Áreas de Estúdio que traten Ias raíces bioculturales de... (todos los países interesados en este proyecto que conmemora dignamente el 5U Centenário). Para esto debe contarse, como antes se indico, con la colaboración de especialistas, expertos conocedores hispanos y latinoamericanos.
A Mulher e a Década de Vinte Miriam Lifchitz Moreira Leite Pesquisadora do CAPH/USP e autora de Outra Face do Feminismo. (1984)
Esta pequena apresentação da mulher, na década de 20, foi elaborada como tentativa de escapar às tentações de uma descrição individualizada e parcial, sem cair em generalizações muito simplificadoras. Evidentemente, essa busca de equilíbrio é um esforço que transmito, sem ter a ilusão de ter chegado a resultados muito positivos. Explicitando um pouco: - ainda que os termos da proposta desta apresentação pareçam muito claros e exatos, não havia um tipo de mulher único e sim tipos diferentes em camadas diversas da população, e a década de 20, embora pareça um período específico de 10 anos, entre 1920 e 1929, referese, contudo, a inúmeros processos sociais, políticos, econômicos e culturais, iniciados às vezes muito antes e deflagrados ou extintos, em alguns casos, bem depois. Acrescente-se que, se a história da mulher se altera em alguns momentos, o ideário e o simbólico, para os quais tendem todas as formas de sua educação, religiosa ou leiga, permanece. As circunstâncias alteram-se, e novas formas passam a conviver com o núcleo educacional consagrado pelas Encíclicas Papais - de como formar boas mães. Com esta introdução relativizadora, gostaria de diluir as afirmações maniqueístas que por acaso tenham escapado em meu texto, apesar dos esforços em policiá-las. Os anos decorridos entre 1921 e 1930 foram anos de transformações muito profundas, principalmente para as populações das cidades grandes e médias do Brasil. No que se refere à população feminina houve transformações visíveis e muitas outras que passaram desapercebidas ou ainda não foram compreendidas.
Apesar das transformações visíveis poderem ser constatadas, a significação e a análise delas variou muito mesmo entre os contemporâneos. Uma série de inovações tecnológicas como o telefone, o automóvel e o cinema invadiram as cidades grandes e difundiram-se entre as camadas mais abastadas da população confundindo-se, em muitos casos, com a modernização aparente da moda dos cabelos a la garçonne e das saias acima dos joelhos. A aceleração do ritmo de atividades, intensificada pela industrialização crescente das cidades, passava a exigir a utilização de novos meios de comunicação e transporte, alterando fundamentalmente a vida das famílias e principalmente a de suas mulheres. Estas já vinham alterando o ritmo de suas atividades com o auxílio das máquinas de costura e das máquinas de escrever. A aceleração do ritmo das comunicações aproximou muito as famílias, ao mesmo tempo em que o aumento da população em menores espaços diversificava as atividades necessárias à vida urbana. Deixavam então de ser predominantes as atividades agrícolas e comerciais. A área de serviços ampliava-se enquanto uma indústria incipiente mobilizava abundante mãode-obra de homens, mulheres e crianças, e trabalhos administrativos e financeiros passaram a ter necessidade de trabalhadores alfabetizados e especializados. Em São Paulo, na década de 20, romperam-se as condições de auto-suficiência cias grandes famílias, pela introdução de exigências individualistas da vida urbana no mundo privado e de recolhimento anteriores. A vida doméstica das mulheres viu-se invadida pela comunicação de mas-
60 Outros Olhares sa, representada por jornais, revistas, telefone, automóveis e pressionada pelas imposições de novo ritmo de atrações veiculadas pelo cinema americano, que expunha comportamentos diferentes e novos relacionamentos, identificados como vida moderna a que todos aspiravam, embora poucos tivessem acesso. Os periódicos semanais e mensais explicitavam essas diferenças e as diversas atitudes diante delas. Basta ver que são dessa década a Vida Moderna e a Vida Doméstica, bem como a Fon-fon que como a Klaxon eram uma consagração da buzina do automóvel. Ao mesmo tempo em que iam se impondo, os novos costumes sofriam restrições e ridicularizações da parte dos humoristas, que criaram como seus estereótipos a melindrosa e o almofadinha. Havia nessa configuração uma crítica ao prazer com as aparências e com o gosto do luxo e da frivol idade característicos das caricaturas criadas para simbolizar a vida urbana, as pernas descobertas até os joelhos e os hábitos sem-compostura dos moços que se reuniam já fora do ambiente doméstico imitando o que viam no cinematógrafo. Essas alterações visíveis não atingiam da mesma forma o comportamento de toda a população urbana. Alguns aspiravam à modernização e não tinham recursos para financiá-la. Os católicos manifestavam-se contra ela atribuindo aos novos comportamentos e às novas idéias que começaram a circular a decadência da família, a imoralidade das mulheres e o abandono das crianças. Os positivistas consideravam que a família deveria ser, antes de tudo, o meio de preparação do cidadão, na vida privada, para o que era preciso - uma divisão rígida dos papéis sexuais. O homem deveria sustentar a mulher, enquanto esta desenvolveria suas qualidades altruístas de conformismo e dedicação aos filhos. Deveria existir uma separação rígida e intransponível entre a esfera social e a doméstica que a mulher só transporia em casos extremos. Em contraposição a essas atitudes conservadoras surgiram, na década de 20, algumas formas de feminismo, procurando defender os direitos da mulher à cidadania, a remunerações condignas e à maternidade consciente. Todas elas sofreram reações e repressões no âmbito educacional, legisla-
tivo e na imprensa periódica. De maneira ambígua, esta apoiava a vida moderna, sem contudo aceitar que as mulheres dela participassem. O espaço público deveria continuar reservado aos homens, chamando-se de mulheres públicas as prostitutas. O espaço público, fosse para trabalhar, para disputar o poder ou mesmo para defender a família quase sempre equiparava a mulher às prostitutas. A década de 20 assiste, assim, a um grande desenvolvimento de organizações associativas de mulheres, inicialmente com objetivos restritamente filantrópicos, mas aos poucos políticos e educacionais de diversos níveis, talvez como reação à intensificação do tráfico de brancas que se verificou então nos portos brasileiros, como também diante do número de crimes passionais que assassinaram impunemente tantas mulheres, nesse período. Embora deputados e jornalistas exprimissem uma reprovação intensa ao trabalho da mulher fora do lar e uma desconfiança perversa com relação ao voto feminino, as mulheres das classes populares sempre trabalharam na lavoura e nas fábricas e as de classe média já tinham transformado o magistério na primeira profissão respeitável, a qual a mulher poderia ter acesso, canalizando para as escolas normais as moças que aspiravam a um aprimoramento cultural e uma forma de penetrar nos outros ramos do ensino médio e superior, até então reservado às de camadas mais abastadas. Mal ou bem-vistas, as mulheres das camadas médias estavam tomando conta dos cargos de professoras primárias, de funcionárias públicas e de jornalistas, raramente por vontade de realização pessoal, mas fundamentalmente por necessidade de sobreviver e pela ausência crescente de figuras masculinas na família que as tutelassem. Entre as associações que se desenvolveram nesse período, embora não muito visíveis, houve o grupo das sufragistas, que lutaram pelo voto feminino, conquistado em 1932 e anulado em 1937, com o Estado Novo. As Federações pelo Progresso Feminino, lideradas por Bertha Lutz, de 1918 a 1932, desenvolveram uma ação em nível parlamentar, através de pressão política característica dos grupos dominantes da República. As alas femininas dos grupos
61 Outros Olhares anarquistas e comunistas chegavam a oporse ao sufragismo. Idealizando a família operária, aspiravam a uma condição de união livre, sem fundamento na propriedade como a família burguesa, em que o casal de companheiros esclarecidos e conscientes tivesse condições de ter ou não os filhos que desejasse. Supunham que essas uniões provocariam o fim da prostituição e da marginalização das mulheres solteiras. Mas é uma terceira tendência a mais atual e a menos conhecida. Trata-se da tendência da não-violência, inspirada em Tolstoi e Gandhi, da qual a grande figura foi Maria Lacerda de Moura (1887-1945). Dentro de seu anarquismo individualista, optava pela recusa de toda hierarquia entre trabalho manual e intelectual ou entre homens e mulheres na vida social. Aspirava a uma fraternidade de seres em nível de igualdade, atingida por um esclarecimento pleno e sem-hipocrisia, onde em comunidades autogeridas e ligadas à natureza, fosse possível recusar-se terminantemente às guerras desencadeadas pelos Estados em busca de lucro. É sempre conveniente lembrar que tanto a urbanização quanto a industrialização não atingiram da mesma forma grupos diferentes da população. A urbanização resultou num aumento do padrão educacional exigido, principalmente da população feminina, o que se refletiu tanto na educação formal quanto na informal (recebida através dos meios de comunicação de massa, e não mais através de mães e tias). A ampliação do comércio, nas cidades médias e grandes, constituiu também um fator de alterações profundas na vida e no comportamento da população crescente que se diferenciava cada vez mais. Contudo, as alterações não ocorrem num tempo único. A década de 20 testemunha o convívio de
padrões de comportamento e maneiras de ser coloniais, com tramas modernas e costumes resultantes das alterações da vida de sua população. As diferentes camadas sociais viveram alterações em ritmos diferentes. Na década de 20, travam-se os primeiros debates sobre o trabalho da mulher e do menor e é imposto o modelo da família nuclear e da mulher dedicada exclusivamente ao lar, por uma tendência do direito, da higiene e do urbanismo de alterar o espaço arquitetônico, combatendo os cortiços e desqualificando a miséria e a falta de higiene e de nível moral das camadas mais pobres. Também na década de 20 é quando a oligarquia cafeeira se instalou em solos urbanos, alterando o aspecto das cidades e formando novos bairros, distanciados social e urbanisticamente das camadas mais pobres. Contudo, também para esta camada houve desajustamentos, provenientes das condições da vida urbana, e que ficam claros nos processos de divórcio analisados desse período. Os ramos pobres dessa oligarquia é que vão fornecer as primeiras funcionárias, professoras e jornalistas. O magistério passou a ser considerado uma profissão respeitável para a mulher por permitir conciliar o trabalho com as tarefas domésticas e também por aliviar as grandes famílias do peso das tias solteiras. Assim é que a década de 20 vai assistir não só ao início da feminização do magistério primário, como também a organização do ensino que irá se espalhar pelos diversos estados, laicizando sensivelmente essa área, ao mesmo tempo em que incorpora as normas religiosas relativas ao comportamento feminino.
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instrução popular e qualificação profissional no E. S. Paulo, 1873 a
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63 Outros Olhares Yitimização, Cidadania e Políticas Públicas Alba Zaluar Professora Livre-Docente de Antropologia-Unicamp Professora Titular de Antropolog ia-Un i ve rs idade Estadual do Rio de Janeiro
Anos de governo autoritário, inflação, conflitos sociais e uma taxa crescente de criminalidade nos grandes centros urbanos fizeram do Brasil um país peculiar. O Estado tornou-se o foco dos conflitos sociais, seja como árbitro, seja como seu demiurgo. A violência e o crime são apenas um dos problemas através do qual as pessoas, inclusive os criminosos, articulam seu pensamento sobre o governo. Uma visão sociológica, que imputa causas sociais ao aumento da violência tornou-se senso comum, mas ela perde para a perspectiva muito mais forte que é a interpretação institucional deste fenômeno amedrontador do Brasil metropolitano moderno. A visão exclusivamente moral do crime é quase tão rara quanto a psicopatológica, que era freqüente na literatura médica e judiciária no começo do século (Garrara, 1986). Este modo de interpretar o delinqüente não se tornou hegemônico, embora não tenha desaparecido inteiramente. Mas a visão social e institucional do crime tornaram-se meios de criticar e fazer demandas ao Estado, relacionadas direta ou indiretamente à segurança. O crime tornou-se um fato político. O quadro final das idéias políticas e sociais a respeito da violência, no entanto, está longe de ser homogêneo ou coerente. Ao contrário, os dados da maior pesquisa de opinião feita no Brasil - o Rio contra o crime - revelam uma polifonia de diferentes discursos acerca do tema, que dividem homens e mulheres, jovens e velhos, moradores de favelas e de bairros de classe média. Durante esta pesquisa de opinião, feita em 1984, 227.526 questionários foram recolhidos de barraquinhas, espalha-
das por toda a região metropolitana, para onde as pessoas se dirigiam voluntariamente, quando queriam respondê-los. Estes questionários tinham uma página da frente com perguntas fechadas e um verso, onde se podia escrever livremente sobre as causas e as medidas necessárias para evitar a violência. Dos que responderam ao questionário, a grande maioria escreveu algo no verso: apenas 18% dos bairros de classe média, alta e baixa, e 21 % de favelados não o fizeram. Do total dos questionários foi feita uma amostra de 5% que permitiu o processamento das respostas e dos textos codificados em três grandes questões: a moral, a institucional e a social.1 A questão moral, segundo a orientação seguida na codificação dos textos, incluía a visão religiosa, mas não se restringia a ela, pois a maioria dos textos continham uma avaliação moral das políticas públicas, dos políticos e do governo, ou seja, a visão moral do crime no Rio durante a década de 80 não poderia ser identificada à crença determinística da ação de entidades religiosas como causa do crime. A interpretação institucional do crime, por sua vez, não era exclusivamente jurídica, isto é, baseada na responsabilidade e na escolha individual dos que escolhem a via do crime, mas também incluía a compreensão préjurídica e determinística das causas da criminalidade ou as noções de senso comum do direito natural. A questão social continha menções aos problemas sociais que afetavam a criminalidade sem necessariamente determiná-la e era, como as outras, dirigida ao governo na forma de demandas de vários tipos. A codificação inicial dos textos pos-
1 Para a descrição detalhada dos procedimentos metodológicos e demais dados ven ZALUAR, Alba. Gênero, cidadania e violência. In: Didos. Rio de Janeiro, v. 43. n. 2. 1991.
sibilitou a quantificação dos itens pensados como traduções, em linguagem erudita ou teórica, das categorias de pensamento e das idéias de senso comum possivelmente encontráveis na população. Como em toda tradução, alguma traição foi perpetrada, embora uma segunda leitura dos textos tenha permitido minorá-la. Foram dezoito linhas, com vários campos todas elas, a primeira referente à identificação do respondente, as cinco seguintes com os dados do questionário fechado, dez que abriam as possibilidades de caracterização das questões moral, social e institucional e as duas últimas sobre a responsabilidade dos criminosos. Estas doze linhas da codificação das sugestões, com exceção da primeira, tinham cada uma nove campos (ou nove possibilidades de marcação). Ora, como estas não eram necessariamente excludentes, um mesmo texto de sugestões permitia marcar vários campos numa mesma linha e nenhum em outras. Além disso, dos 11.728 questionários, apenas 9.508 continham sugestões na folha do verso, o que explica, porque os percentuais de cada item são em geral baixos. Os textos variavam muito em tamanho, em diversidade de sugestões e nas interseções entre elas e constituíam fragmentos do que se pensava ou dizia a respeito. Neste artigo, apenas alguns itens destas duas últimas linhas da codificação, os relativos à visão dos criminosos e de sua responsabilidade, e que foram assinalados em 50% dos questionários, serão utilizados. A pesquisa de opinião, tal como foi feita pelo Ibope, apresenta dois problemas metodológicos. O primeiro é entender porque tantas pessoas foram mobilizadas para preencher o questionário e o segundo, mais sério, é avaliar a representatividade estatística dos respondentes para o conjunto da população do Rio de Janeiro. Um quadro de aumento da incidência de crimes violentos, muito comentado na imprensa ao longo dos anos 80, amedrontava e chocava a população, na qual corriam as estórias dos assaltos sofridos por amigos e parentes, na maior parte das vezes nem comunicados à polícia. Os dados sobre a criminalidade no Brasil são precários, pois se limitam aos fornecidos oficialmente pela polícia e pela
Secretaria de Justiça do Estado, responsável pelo sistema carcerário, dependendo, pois, da vontade ofiçial de torná-los públicos. Desde 1987, por exemplo, os moradores do Rio de Janeiro não têm acesso a estatísticas oficiais sobre o crime na região metropolitana. Muito menos foi feita qualquer tentativa de avaliar os números da cifra negra, embora seja voz corrente que ela seja enorme no que se refere ao crime do colarinho-branco. Os últimos dados publicados revelam, entretanto, que as taxas do crime violento estão crescendo continuamente de 6 por 1.000 habitantes em 1982 para 8.5 em 1986 - e que a participação dos menores delinqüentes em 1985 era três vezes maior que em 1982 (Campos, 1987). Mas a idéia de que todas essas taxas são apenas uma forma disfarçada da luta de classes, não tem fundamento, visto que são maiores na periferia da cidade, onde moram os pobres. Tudo leva a crer que os pobres são as principais vítimas desta onda de criminalidade violenta que assola o Rio, seja pela ação da polícia ou pela dos próprios delinqüentes, visto não terem os recursos políticos e econômicos que lhes garantam acesso à justiça e à segurança. Por isso mesmo, a idéia de que favelados ou moradores da periferia vêem nos membros de quadrilhas locais heróis, líderes ou aliados é simplista e equivocada (Zaluar, 1988 e 1989). A grande maioria dos que responderam ao questionário declararam ou ter sido assaltada (54% das mulheres e 56% dos homens nos bairros; 48% das mulheres e 49% dos homens nas favelas) ou ter alguém na família assaltado (79% das mulheres e 76% dos homens nos bairros; 74% das mulheres e 66% dos homens nas favelas). Estes números não são muito diferentes dos obtidos em pesquisas de opinião amostrais feitas recentemente nas grandes cidades brasileiras, que registram em torno de 60% das pessoas afirmando terem sido ou terem alguém da família assaltadas. Portanto, a preocupação atual com a segurança não parece ser insensata, não podendo ser explicada pela tese da alienação, ópio do povo ou do medo imaginário apenas. No entanto, o medo da população está sendo canalizado nesta direção e pode ser manipulado politicamente para apoiar
es Outros Olhares medidas autoritárias que ameaçam a frágil democracia brasileira, fortalecendo uma cultura política repressiva, e a idéia do crime como fato político. De qualquer maneira, o fato da resposta à pesquisa analisada aqui ter sido voluntária não nos permite projetar seus resultados para o conjunto da população carioca, mas não nos impede de comparar os números relativos às diversas categorias sociais dos respondentes, igualmente afetados pelas razões para mobilizar-se a responder. Em outras palavras, trata-se da opinião de vítimas da violência e não de seus agentes, vítimas que pertencem aos mais diversos segmentos da sociedade. Os dados dessa pesquisa mostraram que os favelados, como todos, estão muito preocupados com a presente situação e apoiam soluções sociais e institucionais para mudar tal quadro, principalmente reformas na polícia e na justiça. Mas os favelados escreveram mais sobre a eficiência e o comportamento da polícia, enquanto que os moradores dos bairros de classe média e alta estavam mais atentos com o desempenho da justiça, o que demonstra a presença repressora constante da polícia nestes locais pobres. Surpreendentemente, o processamento dos textos codificados não exibiram senão um percentual muito pequeno de sugestões de ações extralegais, tais como o extermínio de criminosos, justiça privada, mutilação de criminosos e a intervenção das forças armadas que, juntas, atingiram apenas 5% em toda a metrópole. E as taxas dos bairros pobres (Baixada Fluminense), onde a maior parte dos crimes violentos são cometidos, nunca foram mais altas do que as de bairros de classe média e alta, dos melhores educados e mais treinados no jogo democrático. Os favelados e os moradores da Baixada exibiram adesão igualmente fraca aos valores explícitos e ilegais da violência. Outro sinal de apoio aos valores democráticos no senso popular de justiça foi que 21% dos respondentes nos bairros e 18% nas favelas afirmaram ser necessário democratizar ou universalizar o aparato institucional. As afirmações condenando a corrupção nestas instituições e no governo chegaram a 26%. As demandas por mais
eficiência na justiça e na polícia como meio de prevenir a criminalidade e corrigir criminosos chegaram a 32% nos bairros e a 33% nas favelas. Não obstante, a pena de morte e o trabalho obrigatório para os prisioneiros e criminosos ocuparam a maior parte das reflexões das vítimas da violência sobre a punição devida aos criminosos e foram as principais políticas penais propostas por elas. Mas algumas diferenças na maneira de conceber estas penalidades foram notadas entre os gêneros e as classes sociais, cujo único critério disponível foi o local de moradia, especialmente as favelas e os bairros regulares. Pelos textos lidos foi também possível anotar diferenças na própria concepção de trabalho, na justa medida da dor ou na natureza da eqüidade. Mas é quando se compara as imagens que os respondentes tinham dos criminosos e da responsabilidade deles pelas ações que cometeram, que as diferenças entre os sexos tornam-se mais significativas, como a indicar um imaginário que poderíamos chamar feminino e outro, masculino. Só foram levados em consideração aqui aqueles textos que faziam menção explícita ao criminoso e à sua responsabilidade com as ações transgressoras que cometera. Na linha da punição para os criminosos, a de número 18, uma das sugestões mais rigorosas era, sem dúvida, a morte (campo 18.5, morte para criminosos violentos ou reincidentes). Na codificação dos textos haviam, porém, mais duas possibilidades para a morte em outras linhas (pena de morte, campo 12.3; e extermínio dos criminosos, campo 13.8, sendo apenas a primeira explicitamente jurídica), que foram juntadas à anterior, a única que vinha associada a uma caracterização do criminoso para formar um outro arquivo, chamado morte. Nele as mulheres foram ligeiramente superiores aos homens (tabela 1). Esta tendência feminina em assinalar a punição e a pena de morte é mais clara entre as mulheres da classe média alta (dos bairros 1 e 2) e entre faveladas, mas tornase cada vez menor nos outros bairros (3 e 4) de classe mais baixa. Nas favelas, embora as mulheres estejam mais presentes que os homens neste arquivo, elas têm taxas menos
significativas do que nos outros bairros. Em outras palavras, quanto mais alta a classe social, maior a demanda pela pena de morte. As mulheres da classe média e média alta (bairros 1 e 2) estão claramente mais presentes neste arquivo. Homens e mulheres da periferia empobrecida (bairros 3 e 4) e das favelas guardam uma diferença de quase 10% em relação aos outros bairros. Quando examinamos outra tabela que distingue os percentuais por cada item incluído no arquivo-morte, vemos que as mulheres predominam em todos os itens, mas em proporção insignificante no que sugere a ruptura com as normas jurídicas ou com a ação legal (extermínio de criminosos), o que é igualmente verdadeiro para as faveladas. Se são as mulheres de classe média alta que predominam no arquivomorte, são elas as responsáveis pelo número superior do sexo em todos esses itens. Mas esse predomínio se manifestou nos textos quase que totalmente em termos jurídicos legais, visto que a interseção entre o item da pena de morte e da morte para criminosos violentos e reincidentes é de 93,35%, no arquivo geral. A leitura dos textos das mulheres de classe média revela, entretanto, que a sua lógica estava mais próxima do argumento que faz da pena mais rigorosa um dissuasor mais eficaz do crime (Bentham, 1962) do que do utilitarismo jurídico mais presente entre as mulheres faveladas. Mais do que correcional, esta é uma resposta simultaneamente associada com um espírito primitivo de vingança e com uma técnica retributiva ou dissuasória, parcialmente explicada pelo fato de que, neste arquivo-morte, 60% das pessoas já haviam sido assaltadas e 88% tinha alguém da família nesta situação, números mais elevados do que os da amostra geral. Quando passamos para um outro arquivo, montado através dos itens, em várias linhas, que se relacionavam ao trabalho dos presos ou ao trabalho como atividade capaz de reformar, recuperar ou salvar as pessoas da criminalidade (reforma moral pelo
mundo do trabalho, colônias agrícolas, combate à ociosidade do presidiário, punição por trabalho forçado, recuperação através do trabalho, e trabalho não-forçado para o preso), deparamo-nos com ainda maiores discrepâncias entre os sexos, especialmente nas favelas (v. tabela 1), o que significa dizer que as mulheres faveladas escreveram mais sobre o tema do trabalho do que os homens, o que também acontece nos bairros de classe média e alta (Zonas Sul e Norte), mas em diferença desprezível na Baixada Fluminense (tabelas 1 e 2). No total, 48% desses questionários que mencionavam algum desses itens foram escritos por mulheres, enquanto 41% foram escritos por homens. Mais uma vez, as mulheres dos bairros de classes alta e média assim como as faveladas predominam sobre os homens no que pode ser entendido como uma disposição mais punitiva e mais severa para com os condenados. Mas se olhamos a incidência por cada item do arquivo, outras interpretações aparecem, visto que as mulheres acreditaram mais na recuperação através do trabalho, na moralização da sociedade através do mundo do trabalho e no trabalho que por si mesmo vale, sem a idéia de recuperação e tampouco a de escravidão. Em outras palavras, o trabalho veio associado, no discurso das mulheres, muito mais a um ethos que deveria formar ou educar os indivíduos do que ao castigo. O fato mais gritante é que nas favelas, que representam os setores mais pobres da população, o trabalho era apresentado na sua forma mais vaga, isto é, sem qualquer referência ao seu caráter forçado. Presos deveriam trabalhar e pronto. O trabalho teria um valor em si, como se a adesão ao ethos de trabalho particular das classes populares - o ethos do provedor - fosse solução suficiente para a sociedade violenta, sem qualquer necessidade de qualificar este trabalho como punição ou escravidão. Ao nível ético-político, no entanto, o trabalho é um elemento universalizador que igualaria todos e equilibraria a justiça,
67 tornada assimétrica, porque alguns trabalham enquanto outros, como prisioneiros e bandidos, não. Esse seria o elemento fundamental de sua idéia de eqüidade. Para as mulheres, ainda mais, o trabalho seria o elemento moralizador e educador que garantiria a recuperação do criminoso. Os textos das mulheres faveladas analisados mostram com clareza como, a partir de suas experiências do cotidiano e da necessidade de trabalhar para sobreviver, fato fundamental de sua vida social e econômica, e matriz de suas noções morais sobre a família e os papéis de cada um nela, elas montam sua argumentação política sobre a injustiça da situação presente. Esta montagem fala muito mais da situação vivida por elas, enquanto parte da classe trabalhadora, do que da situação de fato dos prisioneiros. Além disso, as menções a medidas contra o desemprego como meio de diminuir a violência chegaram a 24,50% em favelas, 30,37% na periferia pobre, e desceram a 16,11% nos bairros de classe média. Estes dados são coerentes com outros encontrados na amostra sobre diferenças entre os gêneros. As mulheres exibiram uma preocupação maior do que os homens na questão social, particularmente naqueles itens que se referiam à educação ou proteção àqueles que se considera como necessitados da ajuda ou proteção governamental: 49% delas sugeriram medidas dessa ordem, enquanto 39% dos homens o fizeram. Na área social, a medida campeã é a que propõe a proteção ao menor para prevenir a criminalidade: 62% das mulheres e 56% dos homens. Nas favelas os números não são muito diferentes, mas 51% das mulheres faveladas apontaram para a melhoria da distribuição de renda também. Os textos lidos, especialmente os das mulheres, exibem um caráter paternalista e dadivoso nessa proteção, não sendo visto na perspectiva do direito do cidadão reclamado legitimamente. Entre as mulheres, portanto, parece predominar a lógica do espaço doméstico, seus interesses e sua moral, enquanto os ho-
mens, relativamente afastados dele, se guiam mais pela lógica do mundo viril da rua e pelas injunções do mercado de trabalho. Para as mulheres, a rua é mais claramente marcada pelo signo do malefício porque oposta à casa, construída simbolicamente sob o signo da proteção ao mais fraco e da cooperação e solidariedade entre os membros do grupo doméstico, ameaçando desta a já parca segurança e ainda mais a já precária paz. Para os homens a rua é perigosa e desafiadora ou atraente ao mesmo tempo: é o espaço onde se desenvolve outro ethos da masculinidade, muito mais devedor dos valores do mundo viril da força e da submissão do mais fraco. A caracterização do mundo da rua como o espaço do indeterminado, da ausência de regras e, portanto, da violência que favorece o mais forte, é insofismável. Porém, contra ela, não fica apenas a casa, sua antônima e sua possibilidade de mediação e síntese (Da Matta, 1985), mas também a constituição de um outro espaço - o público - no qual os trabalhadores têm garantidos os seus direitos e a lei é igual para todos.2 São os homens que por, simultaneamente, sofrerem com as humilhações e participarem da lógica da rua, o espaço da violência dos bandidos e da polícia corrupta a eles aliada, e com as dificuldades do mercado de trabalho, acabam por denunciar a primeira, mas entendê-la pela ótica da segunda. Assim, para as mulheres, o trabalho, a questão social e moral, foram concebidos a partir da ótica familiar, dos problemas cotidianos e interesses específicos do grupo familiar, dos seus dramas e de suas necessidades, mas serviram para politizálos, dando-lhes uma relevância pública. Enquanto o homem articulou mais a sugestão de trabalho com questões institucionais pensadas a partir da própria necessidade administrativa e da eficiência da justiça, a mulher o fez a partir das necessidades do grupo doméstico, que se vê onerado pelos impostos. A preocupação maior das mulheres com a questão social, como já foi dito, deve-
Outros Olhares
1
0 brilhanle eiludo de Roberto Da Halta (1985. p. 48-50, 59-61. 67) sobre a casa c a rua como alegorias básicas da sociedade brasileira apresenta a rua como a ambigüidade e síntese do espa;o da lei autoritária e do anonimato, movimento e perigo. No entanto, é possível perceber nos textos aqui loulizados que o terceiro elemento do triângulo sociológico por ele analisado não é o outro mundo, mas o mundo terrestre do público ordenado por leis universais e garantias aos cidadãos assim igualizados. Esta 6 a utopia popular terrena ainda por se realizar integralmente, mas já demandada. E ela é ao mesmo tempo estruturada e estruturante dos outros elementos do triângulo com os quais está em permanente tensão. Saindo do paradigma estruturalista. é preciso dizer também que não há um só modelo de casa: a casa das classes populares não é a casa-grande do mundo privado da elite brasileira. Por isso mesmo, ela pode servir de modelo para pensar o mundo público sem cair no dientelismo e no paternalismo. Ao contrário, a divisão equânime de trabalho entre os membros do grupo doméstico serve de base de uma noção de justiça que perpassa os textos analisados e que serve de mistincii ou crltia a este modelo hegemônico na vida públia brasileira, contaminada pelo mundo privado da casa-grande. Os problemas da transposição de seus princípios e normas para o plano político são outros e serão abordados no final deste texto.
68 Outros Olhares se principalmente ao peso dos itens relacionados com o cuidado ou proteção ao menor e a demandas em relação ao emprego e à distribuição de renda. Ora, todos esses itens têm também, de fato, um vínculo imediato com a lógica familiar e, no plano político, com o assistencialismo no primeiro caso, e com a organização de uma sociedade mais igualitária, no segundo. E como se as mulheres, quando pensassem sobre a sociedade e sobre o governo dela, o fizessem mais a partir da família, o que é verdade tanto para as avaliações do justo e do injusto e das demandas ao governo daí decorrentes, quanto para legitimar certas ações estatais repressivas com imediato impacto sobre a família, tais como o controle da natalidade, bem como das políticas assistencialistas de proteção ao menor já mencionadas. No plano das matrizes sociais ou da mimesis, este vem a ser o discurso feminino ou a lógica feminina, construída a partir dos signos e símbolos já discutidos e que constituem a cultura político-jurídica aqui analisada. Pensar a questão institucional independentemente parece ser muito mais uma lógica masculina, daí a predominância dos homens nos itens referentes à reforma institucional ou à democratização do aparato estatal, o que não quer dizer que as mulheres não se valham desse discurso, ou que combinem os dois criativamente e vice-versa. A insistência um pouco maior das mulheres com a caracterização do crime e com a punibilidade do criminoso pelas vias aqui apresentadas, não significa o seu afastamento da ordem racional-legal ou de uma mentalidade jurídica moderna em prol de uma lógica pré-jurídica. Isto porque, quando se analisa os itens da codificação, que permitiram identificar os textos que defendiam algum tipo de ação extralegal ou derrogação do ordenamento jurídico, defesa da justiça privada ou segregação de pobres, favelados e pretos, os homens sistematica-
mente apareceram em percentuais um pouco mais elevados que as mulheres, exceção feita às mulheres faveladas nos dois últimos itens, embora os dois sexos ficassem sempre em percentuais bem baixos: para cada um desses itens, entre 5% e 0,5%. Mas os homens favelados lideram no item extermínio aos criminosos, também fora da ordem legal. Portanto, se as noções pré-jurídicas das mulheres as fazem pender mais para o lado moral e religioso da questão criminal, o pré-jurídico do discurso masculino aparece como extensão da cultura da violência, também caracterizada por ser viril e de rua (Zaluar, 1988 e 1989), na medida em que revelam violência explícita contra os outros, sejam eles os prisioneiros ou os suposta e potencialmente considerados criminosos. Mas, considerando que apenas 5% dos homens defenderam meios ilegais e violentos, enquanto 9% das mulheres recorreram a um discurso explicitamente moral, pode-se dizer que predomina nesta cidade a mentalidade jurídica. Entretanto, é necessário assinalar que os habitantes do Rio de Janeiro mostraram, no que se refere às punições rígidas e muitas vezes cruéis que sugerem, a mesma perplexidade e preocupação com os dilemas do sistema penal que os teóricos da reforma no século XVIII discutiram (Venturi, 1971). Os reformistas, decepcionados quanto à possibilidade de transformar a sociedade desigual, que consideravam a base da criminalidade, ou seja, descrentes da realização de sua utopia igualitária, passaram a sugerir medidas marcadas pelo utilitarismo jurídico, pela eficiência e racionalização do sistema judicial, tendo alguns, por causa disso, chegado a propor medidas repressivas tais como o trabalho forçado - Beccaria e Voltaire - a eliminação da função reprodutora do criminoso - Diderot - ou mesmo a pena de morte - Kant (Venturi, 1971, p. 95-116). Cerca de 50% dos textos dos mora-
dores dessa cidade, marcada pela desigualdade e pela insegurança, apresentam dilemas similares e alguns permanecem naquilo que foi definido como o estado da natureza que Beccaria, o grande reformista, por princípio queria evitar ao abolir a pena de morte na sua reforma do sistema penal. Terminam propondo o direito de matar os criminosos como meio último e mais eficaz de estancar a cadeia da violência. Mesmo assim, existem diferenças entre os que defendem a pena de morte, que vão desde a noção pré-jurídica e anterior à própria concepção de direito natural - a da Lei de Talião - até o utilitarismo jurídico moderno que concebe a pena de morte como o meio mais econômico e eficiente da sociedade se livrar dos criminosos considerados irrecuperáveis. Na primeira possibilidade, os moradores da cidade, inclusive mulheres, permanecem presos na lógica da vingança privada, embora a maioria (apenas 5% da amostra não o faz) transmita ao Estado a função de vingar as vítimas. Na outra, os cariocas, homens e mulheres, invertem o raciocínio de Voltaire que se posicionava contra a pena de morte, não com um argumento de princípio como Beccaria, mas porque, trabalhando duro, o criminoso iria ressarcir a sociedade, o que não faria se morto (Venturi, 1971, p. 10012). O oposto deste raciocínio utilitarista é o discurso mais comum entre as mulheres, enquanto aquele, baseado na vingança ou na idéia da retribuição, é mais encontrável entre homens, pois o utilitarismo jurídico é o que se articula mais coerentemente com as preocupações sociais, especialmente as referentes ao cuidado com os menores que as mulheres exibem. Esta é a razão do conflito em torno da distribuição dos serviços do Estado, o que as leva a reivindicar mais verbas para políticas sociais em detrimento das verbas para as prisões. E o argumento principal que justifica esta posição das mulheres no
conflito é o fato de que os prisioneiros não trabalham. Nos textos examinados, os dilemas da sociedade desigual e do sistema penal não-resolvidos estão claros: a prisão não funciona como instituição punitiva e regenerativa, porque gera o ócio, e desenvolve os vícios, além de criar privilégios para os presos, dadas as péssimas condições de vida e trabalho dos trabalhadores pobres e suas famílias, e o desequilíbrio na eqüidade que advém do fato de que eles têm que trabalhar e pagar impostos enquanto os prisioneiros não. Assim, parece que no Brasil, onde ainda não há serviços sociais e assistência estatal eficientes, isto é, quando as políticas sociais não são do nível encontrado no estado do bem-estar social, existem sinais de que o conflito entre contribuintes e não-contribuintes torna-se cada vez mais importante, em comparação com o conflito clássico entre capital e trabalho. Visto que a sociedade é desigual, a punição do criminoso adquire mais importância no imediato, e de forma autoritária. É contra essa absurda injustiça que, a seus olhos, premia o vagabundo que optou pelo ganho fácil, isto é, por não trabalhar, e pune o pobre, mantendo a ligação escravizadora deste a seu trabalho, e que fazem delas ou de suas famílias as vítimas contumazes da agressividade daquele, que elas mais escrevem. No entanto, os que mostraram maior preocupação com a necessária democratização e universalização do aparato institucional também escreveram muito sobre o trabalho dos condenados. Quase 24% destes defenderam o trabalho nas prisões em seus textos. Isto quer dizer que nem todos os que advogaram o trabalho tinham uma noção repressiva rígida, o que fica ainda mais claro nas favelas, onde 55% dos textos sobre trabalho referiam-se ao trabalho não-forçado, enquanto apenas 28% nos bairros regulares fizeram o mesmo. Ironicamente, os moradores do Rio,
/lr<^ 70 Outros Olhares especialmente as mulheres, que defendem a morte ou o trabalho obrigatório para os
remete à imagem do trabalho que deriva não da escravidão mas da expulsão do paraíso.
criminosos, têm visão oposta à de Foucault
Com esta qualidade positiva que constrói o homem para servir e cooperar com os outros, o trabalho é um elemento fundamental na cena bíblica: viverás com o suor do teu rosto. A sina dos proletários é a sina dos homens na perda do paraíso, o signo de sua
(1975) sobre a prisão. Enquanto Foucault entendeu-a como instituição fundamental na sociedade disciplinar, com função normalizadora para impedir o criminoso de praticar novos crimes, os habitantes desta cidade consideram-na um antro de vício, uma escola de crime e um lugar do privilégio que nega a disciplina do trabalho e a renúncia à liberdade que o trabalho significa. Os paradoxos do sistema penal e seus fracassos, que levam ao diagnóstico da irrecuperabilidade dos criminosos de carreira, os levam a defender a pena de morte, principal objeção dos esclarecidos reformadores que Foucault critica. Em termos da discussão mundial sobre o sistema penal, não estariam com os reformistas, muito menos com os radicais, mas com os da teoria da dissuasão e, principalmente da retribuição (Hart, 1968). Interpretar esta grita em torno do trabalho dos prisioneiros exige o aprofundamento da própria noção de trabalho que
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Essa mairiz da concepção de trabalho também coloca o simbólico na infri-turutun, tal como o nhos do provedor. A casa e o trabalho, portanto. não são elementos apenas econômicos, mas (azem parte do cultural através de seus significados socialmente construídos. Constituem, assim, o esquema simbólico que é o mediador em vários planos da prática. (v. Sahlins, 1979 c 1988). inclusive a política. Has a cultura política brasileira, cuja história se dá em outro plano, por processo independente. também aparece na concepção de casa e trabalho, dando-lhe o seu aspecto autoritário e suas associações bíblicas. Ela poliliia a organização social assim como o modelo de casa e de trabalho conformam a ação política das classes populares. Porém, a história dessa matriz bíblica do trabalho no Brasil ainda não foi reconstituída. pois os historiadores sempre escreveram no pressuposto de que a única matriz era a escravidão.
aparece nos textos. Esta não é uniforme: o trabalho pode ser apresentado como punição, mas também como traço inerente à condição humana ou um valor humano fundamental e geral - os homens vivem do que existe e só sobrevivem do que produzem. Em geral, os textos populares, lidos como afirmações jurídicas, mantém as tensões entre várias noções simultâneas de trabalho, bem como os argumentos dissuasórios e retributivos. E porque a associação implícita entre punição e trabalho, mesmo nos textos em que o trabalho é visto como parte da condição natural do homem? A visão insuportável do prisioneiro que vive, ou seja que come e dorme, sem pagar por isso,
incompletude, a marca de sua falta. Outro paradoxo: a prisão, a casa de horrores e da medida injusta da dor, torna-se equivalente ao paraíso, onde não é preciso trabalhar para viver.3 Por fim, esta parece ser a rationale do ethos do provedor que faz necessária a contribuição de todos no esforço de trabalho, especialmente a do chefe de família, exceção feita às crianças muito pequenas. A família, enquanto o paraíso da criança, termina cedo para as classes populares. A mesma lógica familiar parece montar a lógica da relação entre os cidadãos e o Estado, com as limitações, paradoxos e perigos mencionados. Essa concepção de trabalho, em termos gramscianos, é contra-hegemônica ou de resistência na medida em que implica a demanda por igualitarismo no e pelo trabalho, como propunham muitos pensadores do socialismo e do anarquismo (como Kropotkin), mas é dominada ou devedora dessa peculiar hegemonia capitalista que se estabeleceu no Brasil na medida em que a concepção laborista, ao invés de criativa, e autoritária de trabalho nela se faz presente. Dessa forma, confirma-se o caráter bizarro do senso comum, segundo Gramsci, e de significação pré-construída em um universo simbólico fechado e limitado, como LeviStrauss entende a bricolagem. Essa duplicidade, ambigüidade ou polissemia é que constitui sua realidade política. Quais as associações entre estas noções de trabalho e a cidadania? Nos tex-
tos, quando fazem demandas ao Estado, a maioria escreve enquanto quem paga impostos, mas poucos demandam tratamento ou serviços iguais e muito poucos usam os termos cidadãos ou direitos. Esta é claramente uma noção parcial ou limitada de cidadania, pois afirma-se principalmente como obrigação que pede ou se queixa aos
como se, quando todos trabalhassem, desaparecesse a possibilidade de se fazer, de alguns, escravos, para que outros dispusessem do tempo necessário à atividade pública, à liberdade, à criação. A armadilha dessa proposta está em que, assim, talvez se fique preso a uma concepção autoritária do
que tomam decisões e agem em seu lugar.
trabalho e ela sirva de base a um regime totalitário, em que desaparece a cidadania
Mesmo assim, uma versão popular de cidadania que tem no trabalho seu pressupos-
como atividade pública de pessoas livres, tal como sugeriu Hannah Arendt. Ou a sim-
to, e que é ainda mais enraizada do que a
ples idéia de um brasileiro nascido livre.
cidadania regulada (Santos, 1979), criada
No plano da justiça, sugere, portan-
como estratégia no governo de Vargas no sentido de incorporar pouco a pouco a massa trabalhadora.
to, uma utopia igualitária em que todos os cidadãos deveriam contribuir igualmente em esforço e receber do Estado, eqüitativamente, em serviços. O mérito (Rawls,
Quando aplicada a prisioneiros, essa idéia de cidadania não deixa lugar para que se pense sobre os direitos deles. Porque é
1978) advindo do trabalho antecederia o direito social. Uma nação de trabalhadores
uma visão do trabalho comprometida com
em que têm os direitos de cidadão, não os
a lógica do grupo doméstico, em que para se comer, é preciso trabalhar, e a ótica pro-
que nascem no território nacional, mas os que trabalham e contribuem para a renda nacional, o que não passa necessariamente pela carteira de trabalho. Aparece o para-
letária de que sem trabalho não se sobrevive, faz do trabalho uma condição natural do humano. O trabalho não é algo que se escolha nem está associado à liberdade ou à criação, mas ao produzir e à sobrevivência, que se torna a garantia do direito:
doxo de reunir, neste imaginário, uma concepção do cidadão-indivíduo em que os direitos e, principalmente, os deveres são iguais para todos, uma concepção coletivis-
direitos humanos só para quem produz. No plano do humano, é o trabalho que dá dignidade, valor moral à pessoa; ele é o próprio pacto que instaura o humano, assim como o tabu do homicídio. Juntos, es-
ta de organização da sociedade através do trabalho e uma concepção autoritária que pretende dar ao Estado a função de forçar, até a morte se for preciso, a realização desta igualdade no trabalho e na contribuição
ses tabus não-explícitos fazem do criminoso um ser monstruoso que deve morrer: quem
ao governo. Individualismo e espírito coletivo a um só tempo, devedores simultaneamente da utopia liberal nunca realizada
mata tem que morrer, quem não trabalha, morre. Mero esforço físico, mero gasto de energia corporal, o trabalho, nessa imagem, é labor (Arendt, 1987), mas ao contrário da concepção grega que fazia dele condição do não-cidadão, ele é a própria base da cidadania, nessa idéia igualitária da distribuição eqüitativa do esforço por todos. E
(Barretto, 1987), da utopia socialista nem sequer conscientizada, bem como da cultura política autoritária do Brasil, são os ingredientes dessa ideologia mista. Em face da impossibilidade de implantar esta justiça, esta nação de trabalhadores, fermenta o claro conflito distri-
trabalham, instituindo uma oposição entre nós e eles, ou bem ela é dada como perdida, o que aumenta a indignação moral e o clamor por justiça nos termos autoritários aqui expostos. É o dilema entre aquela árvore que não dá fruto, corta-se e eduquese a cabeça do povo e não será preciso cortá-la, duas frases retiradas de questionários da gente pobre nem sempre articuladas numa visão esclarecida e humana da sina terrível dos prisioneiros neste país.
butivo em torno do atendimento estatal e surgem os dilemas da sociedade desigual e do seu sistema penal paradoxal que pioram ainda mais a sorte dos prisioneiros. E não apenas porque estes são odiados, temidos e excluídos da sociedade. Nesse dilema, ou bem a questão social é posta como pressuposto da realização da justiça, e a exigência por mais atendimento e serviço do Estado coloca a população trabalhadora como rival dos criminosos e prisioneiros que não
Tabela 1 Arquivo-Morte Percentuais dos sexos nos bairros
bairros 1 bairros 2 bairros 3 baip-os 4 favelas
n' quest. 514 444 229 70 120
homens % sexo 24,05 22,65 20,66 21,80 19,10
base 2137 1960 1108 321 628
mulheres % sexo 29,13 24,96 21,96 20,17 20,46
n' quest. 562 351 203 47 132
base 1929 1406 924 233 645
Tabela 2 Arquivo-Morte Percentuais em cada item relacionado à morte por sexo pena de morte
extermínio criminosos
morte para viol. reine.
bases
Bairros: homens mulheres
19,60 22,44
3,01 ...3,12
19,98 22,86
6241 4999
Favelas: homens mulheres
15,61 16,43
3,50 3,25
17,36 19,22
628 645
Tabela 3 Arquivo-Trabalho Percentuais dos bairros por sexo
bairros 1 bairros 2 bairros 3 bairros 4 favelas
n' quest. 428 357 194 50 76
homens % sexo 20,02 18,21 17,50 15,57 12,10
base 2137 1960 1108 321 625
n' quest. 448 298 182 36 96
mulheres % sexo 23,22 21,19 19,69 15,14 14,88
base 1929 1406 924 223 645
73 Outros Olhares Tabela 4 Arquivo-Trabalho Punição/recuperação do criminoso Percentuais de cada sexo por item punição pltrabalho forçado 53.44 43,00 771
homens mulheres bases*
recuperação p/trabalho
trabalho não-forçado
46,00 51,00 563
49,22 47,00 703
•Estas bases constituem o número total de questionários que mencionaram os itens assinalados na amostra geral
Tabela 5 Percentuais em cada item do trabalho por sexo
homens moralização p/mundo do trabalho colônias agrícolas denúncia ociosidade trabalho forçado recuperação p/trabalho trabalho não-forçado bases
Bairros 1,2,3, 4 mulheres
homens
2,64 14,12 12,18 6,56 5,70 6,54 4999
0,79 8,91 3,98 2,38 2.22 7.48 628
1,5 13,72 9,23 6,60 4,15 5,54 6241
Favelas mulheres 1,23 9,14 5,58 1,55 3,56 7,90 648
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74 Outros Olhares
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-
. Juventude e crime: teleguiados e
21
-
• Polícia e comunidade: paradoxos
22
-
. Nem líderes nem heróis: a verda
23
-
. Gênero, cidadania e violência.
75 ✓ A Historiografia Brasileira nos Últimos 20 Anos:
Outros Olhai-es
tentativa de avaliação crítica* Carlos Fico Ronald Polito Centro Nacional de Referência Historio gráfica *:i: DEH1S/UFOP
Para a compreensão do estágio atual da historiografia brasileira é essencial uma referência à evolução das universidades do país ou, mais especificamente, aos cursos brasileiros de pós-graduação em história. Isto porque a quase totalidade da produção historiográfica brasileira efetiva-se nestes cursos (através da produção de teses de doutoramento e de dissertações de mestrado) ou em torno deles (com os trabalhos gerados pelos professores que neles atuam).1 Decerto que há produção importante fora das universidades. É o caso, por exemplo, de certos núcleos não-universitários de pesquisa, como o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) e a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Contudo, é nos cursos de pós-graduação que se verificam maior constância de produção e significativa diversidade que possibilitam a visualização de tendências, permanências e rupturas. A universidade brasileira, ao contrário da experiência de outros países latino-americanos, como o México, surgiu somente em 1920, com a fundação da primeira universidade oficial do Brasil, a Universidade do Rio de Janeiro. Por seu turno, os cursos das áreas de ciências humanas e sociais não foram os primeiros a serem criados. As primeiras opções privilegiaram os cursos de Medicina, Farmácia, Engenharia e Direito, expressões de necessidades bastante práticas. As Faculdades de Filosofia, no âmbito das quais surgiriam os cursos de História, somente apareceriam com a reforma universitária de 1931, sendo a
primeira a da Universidade de São Paulo, em 1934. Com isto, aliás, o vqíusío Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ocupou o espaço de construção (grandemente ideologizada) da História Nacional, com fortes laivos de patriotismo, oficialismo e mesmo simples bajulação. Isto teve e tem conseqüências terríveis, felizmente, minimizadas pela constante profissionalização da história produzida pelas universidades e institutos de pesquisa já mencionados. Assim, não é surpreendente que os cursos de pós-graduação em história tenham assumido sua estrutura atual apenas em 1971, embora houvesse anteriormente defesas de teses históricas no âmbito de algumas universidades em função de concursos. Portanto, para que se possa compreender parte dos condicionantes da produção historiográfica brasileira relacionada aos cursos de pós-graduação (que, como dissemos, é a mais importante), uma questão é fundamental: em que circunstâncias se dá esta implantação? Decerto que não se pretende, no espaço deste trabalho, esgotar o problema - que é apenas introdutório a uma série de temas relacionados à avaliação destas duas últimas décadas de produção historiográfica - entretanto, três observações devem ser feitas. Em primeiro lugar, os primeiros cursos de pós-graduação em história no Brasil foram pensados, levando-se em conta certos referenciais temáticos, metodológicos e teóricos estrangeiros, notadamente aqueles oriundos da França. Já se destacou bastante a influência francesa na historiografia brasileira,2 tanto quanto já se discutiu à exaustão as conseqüências das in-
* Trabalho apreseniado na mesa-redonda sobre a América do Sul no Congreso IntemdomlAmiria btím / d Ciribe: dos décidis de refíexión história da ADHILAC. no Héxico. em 31 de maio de 1994. *" As reflexões seguinies são (rulo dos trabalhos desenvolvidos pelo Centro Nacional de Referência Historiográfica do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto, criado em 1993.0 CNRH objetiva, primordialmente, reunir, classificar e divulgar registros dos trabalhos de história produzidos no Brasil. bem como propor análises historiográficas. É coordenado pelo professor Ronald Polito, estando a ele vinculado como pesquisador o professor Carlos fico. 0 CNRH conta ainda com a consultoria do professor Carlos Guilherme Hota, do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Para a efetivação de suas tarefas, o CNRH vem obtendo o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEHIG). 1 Opinião contrária foi dada por Fernando Novais, em palestra proferida no inicio dos anos 80, mas somente publicada em 1990. Ver: NOVAIS, Fernando. A universidade e a pesquisa histórica: apontamentos. In; Estudos Amçidos. São Paulo, v. 4, n. 8, p. 108-15, jan./abr. 1990. ' Ver, dentre outros: IGLÉSIAS, Francisco. História. CNPq. In: AviUigio SPersptcti/is. Brasília; CNPq: Coordenação Editorial, 1983. v. 7. (Ciências Humanas e Sociais). MOTA. Carlos Guilherme. Ideohga dl cultun bmsHeiü (l9d]-l9J4j: pontos de partida para uma revisão história 6. ed. São Paulo: Áda 1990, p. 33. CARDOSO. Ciro Flamarion Santana; PÉREZ BRIGN0U. Héclor. Os métodos do Artó/ú-introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográ(ia econômica e social. 2. ed. Rio de Janeiro: GraaL 1981. p. 470-7.
76 Outros Olhares
1
Sobre a iademiuçSo da teoria martista veja-se: ANDERSON, Perry. Comidtntions on Weuer Hirxism. |s.l. |: |s.n. |. 1976. Acerca da presença da produção intelectual marxista no mundo de língua inglesa consulte-se: ANDERSON, Perry, In lhe tncks o! historiai mieriiíism. Londres: Verso Edilions, 1983. 'Sobre o tema ver HORSE. Richard. Uma entrevista com... In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2. n. 3. p.1 77-93, 1989. RODRIGUES, José Honório. Os estudos brasileiros e os bniiliinists. In: Rf/isti de Histórií São Paulo. v. 54. n. 107, p. 189-219, jul./set. 1976.
fluências externas em países subdesenvolvidos. Não é o caso de se retomarem tais problemáticas aqui, mas de se enfatizar um aspecto. Há um tipo de descompasso: enquanto na França já amadureciam as concepções do que seria a Nova História, no Brasil dos anos 70 foram importadas problemáticas relacionadas principalmente ao que se pode caracterizar como a primeira fase da11 Escola " dos Annales. O problema não é a discussão sobre a qualidade intrínseca destas tendências (questão, aliás, legítima e importante), mas a cristalização desta defasagem, promotora de um hiato que não pode ser ignorado. Temáticas e metodologias desenvolvidas na França nos anos 50, somente o seriam no Brasil nos anos 70. Da mesma forma, trabalhos brasileiros que incorporam as contribuições da chamada Nova História surgiram apenas nos anos 80. Que conseqüências podem advir de uma tal situação? A constante tentativa de superação do descompasso, de resto operacionalmente impossível, talvez tenha impedido, por algum tempo, a percepção de outras tendências, frutíferas em outros países e para as quais só mais recentemente se voltaram as atenções dos historiadores brasileiros. Fique claro, então, que queremos sublinhar aqui um certo traço inerente às origens da pós-graduação em história no país e não condenar como perniciosas quaisquer influências estrangeiras. A influência francesa, por exemplo, teve inúmeros benefícios. Outro traço marcante da época da instalação dos cursos foi a fortíssima presença teórica das diversas correntes marxistas entre historiadores, talvez nem tanto através de elaborações conceituais profundas, mas pela via de um certo clima, de um certo ambiente acadêmico. Já era visível, por outro lado, a influência do marxismo em outros setores, como em algumas importantes elaborações teóricas desenvolvidas por sociólogos e economistas entre os anos 50 e 60. No entanto, a maioria das pesquisas em história, destas décadas, era factualista e empiricista. Nos anos 70, muitos foram os trabalhos que utilizaram o aparato conceituai do marxismo e, mesmo, muitas temáticas eram indiscutivelmente gera-
das a partir de reflexões desta natureza. Aspectos políticos também explicavam essas opções, notadamente o quadro gerado pela ditadura militar, que abalou o país a partir de 1964. Também aqui não se trata de discutir a eficácia de tal enfoque teórico, mas de se destacar que o predomínio quase absoluto de qualquer opção teórica tende a empobrecer as possibilidades de reflexão epistemológica. Decerto que este não foi um traço comum apenas ao Brasil.3 Um episódio bastante peculiar, contudo, também marcou os estudos históricos no Brasil dos anos 70. Trata-se dosbrazilianists, termo cunhado a partir da Conference on Latiu American History, ligada à Associação dos Historiadores LatinoAmericanistas dos Estados Unidos. O surgimento de novos interesses no âmbito da estratégia política e econômica norte-americana em relação à América Latina, a partir dos anos 60,4 somados a aspectos da conjuntura política e econômica brasileira, suscitaram a presença de pesquisadores norteamericanos no país, que se constituíram em grande contingente de especialistas em História do Brasil, cerca de seiscentas pessoas, em 1975, segundo José Honório Rodrigues.5 Foram diversos os conflitos entre esses especialistas e a comunidade nacional de historiadores. E impactantes certas características dos brazilianists, como a opção pelo estudo de fases mais recentes da história brasileira (predominava, até o início dos anos 70, a opção, dentre os brasileiros, pelo estudo da fase colonial de nossa história). O predomínio da perspectiva teórica marxista, a busca de opções temáticas e metodológicas francesas e a forte presença de norte-americanos buscando compreender a contemporaneidade brasileira - características do momento de implantação dos cursos de pós-graduação - talvez tenham sido inspiradores da busca de maior rigor teórico, de renovação metodológica e melhor tratamento do material empírico que se verificou desde então. Se estas eram algumas das características da época da constituição dos cursos de pós-graduação em história no país, que traços podem ser apontados como defini-
77 dores do padrão de história que então efetivamente se praticava? Em 1971, Eurípedes Simões de Paula apresentou quatro conclusões gerais, numa mesa-redonda que buscava avaliar o estado geral da pesquisa histórica naquele momento. Com elas se tem uma idéia da situação. O famoso historiador indicava que: 1. a maior parte dos pesquisadores não era brasileira, mas sobretudo norte-americana e inglesa; 2. as instituições dedicavam-se à docência, não à pesquisa; 3. os pesquisadores nacionais não possuíam sólida formação científica e orientação segura; 4. não havia ainda um órgão no país capaz de melhor dispor dos recursos destinados à pesquisa histórica/' Ainda em 1971, um dos mais lúcidos analistas da historiografia brasileira, Francisco Iglésias, afirmava que quem conhece a historiografia brasileira sabe que ela é ainda bastante precária.1 Na mesma ocasião, Iglésias chamava a atenção para a aplicação mecânica de esquematismos teóricos e para o que ele classificava como alienação, isto é, uma persistente recusa dos historiadores de então em se debruçarem (como os brazilianistsjà o faziam) sobre temas mais recentes da história brasileira^ algo que José Roberto do Amaral Lapa designou, com felicidade, como conspiração anticontemporânea.9 Em 1975, Carlos Guilherme Mota afirmava que ainda não havia ocorrido um debruçar efetivo dos historiadores universitários brasileiros sobre a História do Brasil." Em 1982, uma das principais agências brasileiras de fomento à pesquisa, o CNPq, divulgava suas avaliações sobre os cursos de pós-graduação brasileiros. O relator para a área de história destacava que, do conjunto de cursos, nem todos (...) têm razão de ser e alguns deviam mesmo ser desativados" por falta de condições mínimas. Referindo-se ao período em torno de 1979/1980, o principal analista brasileiro de historiografia, Amaral Lapa, indicava que a produção individual da nova geração de historiadores brasileiros ainda não ha-
via realizado as expectativas que tinha o autor, em 1976, quando do lançamento de seu livro clássico.12 Portanto, trata-se de uma relação de autores gabaritados que, em termos gerais, avaliava negativamente a produção historiográfica brasileira dos anos 70 e início dos anos 80. Certamente que aqui se destacaram suas afirmações do contexto em que foram produzidas, contexto este que continha também impressões positivas. Mas parece indiscutível a sensação geral de fragilidade da produção naquela época. Hoje a situação é bem diferente. Houve uma evolução significativa e até mesmo surpreendente, sobretudo quando se considera que vinte anos não é tanto tempo. O fato é que a consolidação dos cursos de pós-graduação em história no Brasil é um fenômeno dos anos 80. Ainda que os mesmos, em sua maioria, tenham sido criados na década anterior, uma avaliação mais detalhada de seu perfil, bem como do montante dos trabalhos realizados naquele período, indicaria o seu caráter incipiente. Instalados os cursos de pós-graduação, seus frutos mais efetivos ficariam para os anos 80, tanto quanto um fluxo mais contínuo e permanente de pesquisas (que também se relaciona com a ampliação do número de bolsas mantidas pelas agências de fomento) e uma definição de perfil institucional um pouco mais precisa. Isto se dá num quadro de ampliação da bibliografia considerada pelos historiadores, com a multiplicação de enfoques teóricos e metodológicos. Observando o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação em história no país durante os anos 80, uma primeira constatação é a do seu relativo crescimento em relação à década anterior. Não que tenham proliferado descontroladamente, ainda que alguns surjam e atestem também este relativo crescimento. Mas houve um amadurecimento interno dos que existiam e uma certa estabilização, para a maioria, de um fluxo de pesquisas. Para se ter uma idéia, registre-se que, entre 1973 e 1979, o total de dissertações de mestrado foi de 275. Entre 1980 e 1989 este número elevou-se para 665.13 E apenas entre 1990 e 1993 foram defendidas cerca de 350 dissertações.14
Outros Olhares
' WESTFHALEN. Cecília Haria; HÊQUELUHE. Jair. Estado atual da pesquisa histórica no Brasil. In: Revisu de Hiuóríi São Paulo. v. 43. n. 88. p. 356, out./dez. 1971. 'IGLÉSIAS, Francisco. A pesquisa histórica no Brasil, In: Revhu de Histórk São Paulo. v. 43. n. 88. p. 373-415. out./dez. 1971. * IGLÉSIAS. f rancisco. Op. cit.. 1971. p. 375-8. 'LAPA, José Roberto do Amaral. Historiognh bnsitein comeniporinee: a história cm questão. 2. ed. Petrópolis: Vozes. 1981. p. 40. " HOTA, Carlos Guilherme. Op. cit.. p.25. "IGLÉSIAS, Francisco. Op. cit.. 1983, p. 202. " A avaliação está em: LAPA, José Roberto do Amaral. Op. cit, p. 31. A outra obra referida é: LAPA, José Roberto do Amaral. A hisíórii em yí/«W"u;hisIoriografia brasileira contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1976. 208 p. "FICO. Carlos: POLITO.Ronald. A Histórii no BmH (1980-1989): elementos para uma avaliação historiográFica. Ouro Prelo: Editora UF0P, 1992. v. I. p. 43. "Estimativas do Centro Nacional de Referência Historiográlica.
78 Outros Olhares
11 Dados mais complelos podem ser oblidos em: FICO. Carlos; POLITO, Ronald. Op. du p. 31-60. " IGLÉSIAS. Frandsco. Op. dl., p. 205 e 197. "FICO, Carios; POLITO, Ronald. Op. dl., p. dO-l.
Do ponto de vista geral, a dominância nestes cursos é a pesquisa em História do Brasil, como não poderia deixar de ser. E, no que se refere às suas áreas de concentração, a tônica é dada pela História Social e Econômica, vindo em segundo plano a História Demográfica e da Cultura. Apenas nos últimos anos se verifica nas áreas de concentração de novos cursos criados uma leve tendência à ampliação dos enfoques para além da História Social e Econômica. Quanto às linhas de pesquisa, predominam os enfoques regionais. Portanto, também no Brasil verifica-se um movimento comum no mundo ocidental, qual seja, o desenvolvimento de abordagens sócio-econômicas (em detrimento das políticas) e a consolidação do predomínio da História Social.15 Destaque-se, contudo, que a História Política, no Brasil, nunca deixou de ser praticada e, na verdade, não experimentou grandes renovações teóricas ou metodológicas como de algum modo ocorreu com a História Social. Muitos trabalhos de História Política persistiram numa perspectiva linear de análises de individualidades ou da corriqueira sucessão de episódios da pequena política. Francisco Iglésias foi taxativo, em 1982, caracterizando o nível mediano de quase totalidade das dissertações e teses ou, ainda, analisando o surto de estudos brasileiros de então, considerandoa maioria, fracos.16 Cremos que os anos 80 apresentam um melhor comportamento, com uma diminuição dos casos realmente fracos e uma sensível ampliação dos trabalhos de maior qualidade, principalmente entre as teses de doutorado. A obtenção de títulos não deixou de ser apenas um ritual acadêmico que para muitos serve somente para conferir ao titulado (quando docente do magistério superior) o direito de progredir na carreira. Mas a tendência a uma definição mais clara das exigências teórico-metodológicas e técnicas de pesquisa dificulta, cada vez mais, a defesa de textos sem níveis mínimos de rigor. De qualquer modo, a comunidade de historiadores brasileiros é ainda incipiente, não ultrapassando em muito o número de 2.000 profissionais com títulos de pós-graduação obtidos no Brasil: mestres, doutores
e livre-docentes somados. Segundo dados levantados entre 1987 e 1989, a estrutura da pós-graduação em história no país ocupa uma posição mediana entre as ciências humanas e sociais, considerando-se a relação entre número de cursos de pós-graduação e o total de cursos conceituados com grau máximo pelo governo federal.17 É, portanto, pequena a parcela de pesquisadores experientes na área de história, nos moldes tradicionalmente reconhecidos pelas mais respeitadas agências de financiamento à pesquisa do país. Há um conjunto de questões mais nebulosas, por assim dizer, que também dizem respeito a uma reflexão historiográfica que se possa esboçar sobre o Brasil nestas últimas décadas e que, segundo nosso ponto de vista, interferem na forma como a história vem se profissionalizando no país. Referimo-nos às relações que paulatinamente foram se estabelecendo entre a comunidade nacional de historiadores e o mercado editorial, por um lado, e os meios de comunicação, por outro. De fato, houve um significativo crescimento do mercado editorial brasileiro nos últimos vinte anos, e, com isso, as relações entre historiadores e tal mercado naturalmente se estreitaram. Por outro lado, as revistas publicadas nestes últimos vinte anos pela comunidade de historiadores, no conjunto, vêm surtindo pouco efeito. As editoras universitárias não têm sido capazes de manter padrões de periodicidade e são pouco competitivas em termos gráficos. Some-se a isto o fato de que os periódicos divulgam, em muitos casos, trabalhos não-originais, condensando, por exemplo, em forma de artigo, uma tese não-publiçada em virtude das dificuldades de divulgação da produção na área. Ainda assim, a constituição de um público consumidor mais amplo, particularmente o universitário, de obras de história, bem como a superação dos limites impostos pela censura à área editorial no país, permitiram, a partir dos anos 80, a tradução e edição de centenas de títulos que, bem ou mal, atualizaram certos setores bibliográficos. Alguns aspectos positivos são incontestáveis: há maior divulgação de trabalhos de história, o volume de resenhas
79 de livros aumenta nos cadernos da imprensa, tanto quanto mais historiadores, um bom número deles ligado às instituições universitárias, ocupam postos de coordenadores de coleções de livros e são chamados a opinar sobre temas históricos eleitos pela mídia. Contudo, paralelamente, também surgiram problemas nesta relação, notadamente no campo das chamadas modas editoriais e dos sucessos de venda de coleções paradidáticas ou de livros de bolso, infelizmente condensando muito mais os prejuízos do que as vantagens que estas opções podem ter. As modas editoriais também surpreenderam as editoras universitárias, às quais deveria caber papel mais importante na divulgação do conhecimento produzido, sob pena de se verificar aquilo que indiscutivelmente ocorre hoje no Brasil, a saber, o que repercute na mídia é parcela minoritária da produção acadêmica. Se perguntarmos a um leigo hoje, no Brasil, o que ele supõe que os historiadores pesquisam, ele não titubeará em afirmar: bruxaria, sexualidade e vida cotidiana. E, entretanto, a produção em torno destas temáticas ainda é muito pequena, não sendo difícil perceber, porém, que temas relacionados à subjetividade e ao cotidiano terão grande produção nos anos 90. Assim, certos temas tiveram baixa produtividade mas repercutiram muito. Outros, como a história demográfica e econômica, continuaram, paulatinamente, gerando pesquisas, apesar de não despertarem qualquer interesse social mais amplo e mal conseguirem ser publicadas - que dirá de venda de livros. Portanto, é possível distinguir movimentos internos à própria comunidade e tendências efetivamente relacionadas com o mercado editorial ou com demandas sociais mais amplas. Neste particular, ainda é bastante incipiente, no Brasil, a presença de historiadores em veículos de comunicação de massa, como a TV, embora seja visível que existam possibilidades neste sentido. É neste espaço dialógico complexo que talvez se possa encontrar alguma forma de equilíbrio que expresse a legitimidade da história ou a resposta à pergunta sobre a serventia da história. Neste campo de preocupações também se insere a problemática das efemérides, isto é, datas alusivas a episódios notáveis da história. Foram muitas no período, relativas à história do Brasil, da América e eu-
ropéia. No Brasil, comissões organizadoras foram criadas, recursos financeiros destinados e muitas notícias veiculadas na imprensa, inclusive através de cadernos especiais e encartes alusivos às datas que, em alguns casos, possuíam sofisticada elaboração gráfica e/ou significativo conteúdo. O que se pode dizer, naturalmente, é que este tipo de repercussão torna a história mais conhecida do público em geral e favorece a publicação de trabalhos - o que é positivo. Mas, é preciso sublinhar, tal dinâmica também colabora para reafirmar a imagem do historiador como a de alguém ligado ao trato encomiástico com o passado ou de um guardião de datas e heróis - o que é péssimo. Alguns aspectos são marcantes nestes últimos vinte anos da historiografia brasileira. Com a consolidação dos cursos de pós-graduação, em sua quase totalidade voltados para a História do Brasil, foi um resultado natural a ampliação dos trabalhos sobre a história do país em detrimento daqueles sobre outras sociedades. Segundo nossos levantamentos, esteve acima de 15% o número de trabalhos sobre história não-brasileira produzidos entre 1973 e 1979, caindo para cerca de 9% entre 1980 e 1989. A História da América, lamentavelmente, apresentou acentuada diminuição no número de trabalhos, que já era pequeno. Esta diminuição é, sem dúvida, decorrência dos diversos cursos terem abandonado esta área de concentração, especialmente a pós-graduação da Universidade Federal Fluminense, onde os trabalhos sobre História da América foram majoritariamente defendidos. Isto levou o governo federal, no final dos anos 80, a caracterizar como carente o desenvolvimento de pesquisas nesta e em outras áreas. Este dado preocupante aponta para o paradoxo de uma comunidade que se profissionaliza, ao mesmo tempo que diminui sua participação nos fóruns internacionais. Os esforços da segunda metade dos anos 80 para cá, no sentido de se retomarem as pesquisas em história não-brasileira, têm se expressado pela constituição de diversas associações de especialistas, como em História Medieval ou História Antiga, por exemplo, e seus primeiros frutos já se tornaram visíveis nos últimos anos. Sem dúvida um aspecto marcante do período é a confirmação da hipótese enun-
Outros Olhares
80 Outros Olliares
"Um importanie balanço hiiloriográ(ico sobre o lema é o de: FAUSTO, Boris, Estado, classe trabalhadora e burguesia industrial (1920-1945); uma revisão. In: Novos Estudos Cebnp. São Paulo. n. 20. p. 6-37, mar. 1988. " RAGO, luzia Hargareth. Do abiri 10 hr a utopia da cidade disciplinar - Brasil. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 218 p. (Coleção Estudos Brasileiros. 90).
ciada por José Roberto do Amaral Lapa, em meados dos anos 70, a propósito do predomínio dos estudos sobre o período mais recente - o republicano - da história brasileira. De fato, até 1973, a análise temática das teses de doutoramento da Universidade de São Paulo, indicava que o período colonial era o mais abordado, com mais de 40% das pesquisas. Essa porcentagem cairia bastante (para 13%) no período 1973/1979 e a fase republicana assumiria a liderança com 46%. Durante os anos 80 esta tendência se consolidaria. Levantamentos do Centro Nacional de Referência Historiográfica mostram que, do total de 835 teses e dissertações defendidas entre 1980 e 1989, 85% referemse ao Brasil, sendo que, deste universo, quase 60% estudam o período republicano. E, do período republicano, foi o espaço/ tempo dos primeiros anos da República o principal objeto de estudo das pós-graduações, onde predominaram os trabalhos sobre as regiões de São Paulo e do Rio de Janeiro. Trata-se também de uma mudança importante da comunidade dos historiadores. Semelhante alteração chamou a atenção dos analistas e algumas tentativas de explicação foram aventadas. Dentre elas, o próprio fato dos historiadores começarem a considerar o passado mais imediato como objeto de abordagem histórica, coisa impensável nos quadros das reflexões historiográficas anteriores. Há também a presença dos brazilianists, atraindo as pesquisas para os temas contemporâneos. Da mesma forma, parece ter ocorrido uma identificação entre a história que se praticava até 1973, predominantemente sobre o período colonial, e as técnicas, metodologias e concepções teóricas dos historiadores que ocupavam espaços acadêmicos importantes; técnicas, metodologias e concepções estas que já eram vistas, pela nova geração da época, como superadas. Esta coincidência infeliz acabou por afastar aqueles novos historiadores dos temas coloniais, talvez na esperança de que, assim procedendo, também se afastariam dos vícios que criticavam (tais vícios diziam respeito, sobretudo, a certo empirismo ou factualismo). E ainda, a concepção teórica marxista, então identificada como renovadora, seria mais facilmente aplicável estudando-se o quadro de implantação do capitalismo no Brasil, do surgimento de um incipiente movimento ope-
rário, tal como se divisava na Primeira República. Neste contexto de renovação, obras muito importantes surgiram, como a História da Indústria e do Trabalho no Brasil, de Francisco Foot Hardman e Victor Leonardi, publicada em 1982 e que trata de aspectos como o desenvolvimento industrial e capitalista no Brasil, a formação da burguesia, as condições de trabalho e de vida do operariado e suas questões organizacionais e mobilizatórias. Em 1976 já havia sido publicado Trabalho Urbano e Conflito Social, de Boris Fausto, verdadeiramente um clássico, indispensável para a compreensão das correntes políticas e da dinâmica do movimento operário. É consensual o reconhecimento da excelência de seu estudo sobre o trabalhador urbano e a utilidade das análises de categorias profissionais específicas. Em 1982, seria publicado o Classe Operária, Sindicatos e Partido no Brasil, de Ricardo Antunes, originalmente uma dissertação de mestrado em Ciência Política mas que em muito contribuiria para o debate histórico relativo à problemática da consciência de classe. Portanto, uma das questões candentes da historiografia brasileira dos últimos vinte anos foi, sem sombra de dúvida, o estudo do movimento operário e suas questões conexas. Aqui, contudo, é preciso registrar um aspecto curioso: tais estudos virtualmente desapareceram no final do período, isto é, a partir de meados dos anos 80. Ora, não é uma simples coincidência que este tenha sido o momento de repercussão, no Brasil, da crise do marxismo. Falar em movimento operário, em certos círculos, seria mesmo uma postura/ora de moda. Assim, ao contrário de novas leituras sobre a temática, inspiradas talvez em concepções teóricas que se contrapunham ao marxismo, o que tivemos foi um quase abandono do tema. Poucas foram as tentativas de revisão historiográfica sobre o movimento operário no Brasil.18 Certos autores se esforçaram por renovar a tendência, com leituras diferenciadas da questão. Podemos citar alguns exemplos. Luzia Margareth Rago, em trabalho publicado em 1985,19 estudou a resistência cotidiana da imprensa anarquista às estratégias de disciplinarização do operariado na fábrica e fora dela - livro que bem
81 Outros Olhares caracteriza uma época de impasses teóricos, pois a autora tentou conjugar orientações como as de E. P. Thompson e Michel Foucault. Um O Silêncio dos Vencidos,2" publicado em 1981, Edgar Salvadori de Decca buscou desvelar o fato histórico Revolução de 30 como construção intelectual ideológica ocultadora de sua verdadeira dimensão, qual seja, a de lugar privilegiado de leitura da práxis do proletariado em torno dos anos 30. Mas, aparentemente, não conseguiu resolver o impasse entre a busca de uma explicação para o período, calcada em conflitos polares de tipo classista, e as características regionalizantes do Brasil de então. Buscando compreender o sentido do controle social no cotidiano da classe trabalhadora, Sidney Chalhoub21 também procurou inovar evitando partir de modelos teóricos preconcebidos e enfatizando a riqueza documental propiciada pelos documentos relativos às rixas urbanas cotidianas - dimensão sempre problemática quando se almeja uma articulação teórica global. Embora essas tentativas de renovação tenham ocorrido, o que se verificou, em termos gerais, foi um abandono do tema do movimento operário. Levantamentos do Centro Nacional de Referência Historiográfica indicam que o auge da produção de teses, dissertações e artigos sobre o tema circunscreve-se aos anos de 1982 e 1986, decaindo desde então. Um dos temas que muito foi rememorado por causa das efemérides no Brasil foi a escravidão, em função do centenário de sua abolição ocorrido em 1988. Tal tema, contudo, configura-se numa tradição de estudos no Brasil que, ao longo destes últimos vinte anos, passou por etapas bastante diferenciadas. Podemos perceber, nos últimos anos, um verdadeiro movimento de revisão historiográfica que ainda está em curso e que, seguramente, ocasionou o principal debate historiográfico do período no Brasil. De fato, os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, de Florestan Fernandes, Octavio lanni e Emília Viotti da Costa,22
nos anos 50 e 60, de Ciro Flamarion Santana Cardoso e de Jacob Gorender,23 nos anos 70, e recentes contribuições de jovens historiadores, no final dos anos 80, como Silvia Hunold Lara, Sidney Chalhoub e João Luís Ribeiro Fragoso,24 prosseguem a análise de um filão que os quase 400 anos de escravidão no Brasil explicam. Filão explorado, muitas vezes, de pontos de vista díspares, como o demonstra recente trabalho de avaliação historiográfica de Jacob Gorender, A Escravidão Reabilitada,25 no qual acusa os novos historiadores de estarem patrocinando o triunfo acadêmico de Gilberto Freyre e sua visão patriarcalista da escravidão brasileira. Ligado por diversos modos ao tema da escravidão, outro debate historiográfico importante destes últimos vinte anos avança uma discussão já presente no país desde os anos 30: a da natureza do modo de produção do Brasil nos períodos colonial e imperial. Há, contudo, certos traços, no debate contemporâneo, essenciais para a sua compreensão. É somente a partir dos anos 70 que se vai consubstanciando a posição dos que supõem a especificidade do(s) modo(s) de produção no Brasil, sendo a obra de Jacob Gorender a mais conhecida e debatida.26 Até então, a maior parte dos estudos que empregavam a categoria de modo de produção, segundo Amaral Lapa, poderiam se dividir, basicamente, entre os que acatavam a predominância de um modo de produção feudal ou semifeudal no Brasil, e os que admitiam um modo de produção capitalista.27 O auge do debate teórico ocorreu entre os últimos anos 70 e os primeiros anos 80, sendo a publicação de Modos de Produção e Realidade Brasileira, em 1980, um marco disto. Desde então, as polêmicas passaram a atrair um número menor de pessoas, mesmo que contribuições teóricas e empíricas importantes tenham ocorrido nos anos 80. Mas é o próprio tema e sua perspectiva que, nos quadros da ainda atual crise do marxismo, não atraem a comunidade de historiadores da mesma forma que há dez anos atrás. E
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sa Outros Olhares
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claro que isto afeta não apenas a história econômica da escravidão, mas também os rumos de sua história social. Uma das características advindas com a criação dos cursos de pós-graduação por todo o país foi o estudo da História Regional ou do tipo de história que, sob este nome, se vem praticando no Brasil. Analisando o II Encuentro de Historiadores Latinoamericanos, José Roberto do Amaral Lapa destacava, com acerto, que os trabalhos de História Regional demonstravam o alcance que a Universidade pode ter com a interiorização do ensino superior e portanto a desmetropolização do conhecimento histórico.2* Hoje, entretanto, a situação é um tanto diferenciada. Os critérios de escolha dos temas regionais ou locais não têm sido muito sólidos. Muitas vezes tais escolhas parecem decorrer da simples localização do curso de pós-graduação numa dada região. 'Rinto que, sobre regiões onde esses cursos inexistem, são raros os trabalhos de história. Daí que críticas de paroquialismo têm sido feitas,29 isto é, o comprometimento com dada região não obedece a critérios de relevância ou originalidade, mas tão somente a parâmetros de viabilidade. Em muitos trabalhos a noção de espaço é quase ausente, prevalecendo o enfoque temporal. O significado de região, da mesma forma, é tido como um dado, não resultando, como seria de se esperar, do imbricar de perspectivas sociais, econômicas, culturais ou outras com a problemática espacial. Portanto, hoje, no Brasil, este é certamente um dos impasses que se colocam para a comunidade de historiadores. Aliás, este não é o único impasse historiográfico recente no Brasil. Também aqui se defrontam os defensores da microhistória e autores de influência marxista voltados para estudos da história sócioeconômica típica. O fato é que as demandas contemporâneas estariam chamando a atenção para a necessidade de compreensão da inserção do sujeito diante das grandes estruturas. Realmente, quando estudou a estrutura econômica ou a estrutura social, certa história de viés marxista deixou pouco espaço para a compreensão do sujeito diante delas. Além disso, determinadas lógicas não-materiais ou lógicas simbólicas, também passaram despercebi-
das. Parece que estas razões explicam, em certa medida, o sucesso das temáticas em torno do cotidiano ou da subjetividade. Há uma espécie de convicção generalizada sobre os fenômenos macro-estruturais segundo a qual eles não corresponderiam à vida real, não teriam carne e sangue.™ Assim, por maior que seja a pretensão teóricocientífica dos estudos macro-estruturais, eles não convenceriam por não dizerem de perto a esta necessidade de identificação imediata de uma humanidade singularizada em suas ações corriqueiras. Portanto, a dimensão do cotidiano, nesta linha de raciocínio, possibilitaria uma história prenhe de humanidade, já que em tal esfera dá-se todo tipo de episódio em que nos reconhecemos. Tal equívoco (podemos chamá-lo assim pois, claro está, há tanta realidade em fenômenos estruturais quanto em episódios do dia-a-dia) possibilita melhor compreensão da maneira pela qual os autores da história do cotidiano tratam a dimensão empírica. Numa primeira mirada, pareceria ao analista desavisado tratar-se de uma aposta no factual, tantas costumam ser as descrições de episódios, as narrativas de trajetórias de vida de personagens específicos. Aspectos particularíssimos são arrolados, trabalhosamente, numa história que, diga-se, não é fácil de fazer. Contudo, o que preside uma tal opção pouco tem a ver com as motivações e perspectivas da antiga/zAtoire évènementielle. Para distinguir a força atual da história do cotidiano é preciso perceber a diferença que há nesta retomada do empírico. Não se trata, agora, de uma crença na capacidade da história de dar conta de todo o real, de recuperar aquilo que efetivamente ocorreu visando à construção de um padrão científico de viés positivista. A história do cotidiano não quer recuperar aquilo que efetivamente ocorreu, mas parece nos lembrar a todo momento que aquilo ocorreu com efetividade, isto é, não quer deixar nenhuma dúvida de que se refere ao inundo das ocorrências mais efetivas ou concretas. Não fala de estruturas desprovidas de carne e sangue. Refere-se a homens e mulheres de existência real e, daí, a teia de episódios que procura constituir e reconstituir. Portanto, além de uma resolução mais satisfatória entre a dimensão estrita do cotidiano e as questões macro-históricas (muito embora seja clara a impossibilidade
83 Outros Olhares destes planos serem subsumidos a um mesmo padrão teórico de explicação), também seria preciso encaminhar uma boa reflexão sobre a categoria de realidade no que concerne aos estudos históricos. As pesquisas sobre o cotidiano são um dos elementos de um processo bem mais geral, a saber, a diversidade de orientações temáticas e metodológicas que se vem observando nas pesquisas no país, principalmente a partir dos anos 80. Ainda que reduzidos numericamente, os trabalhos sobre bruxaria, sexualidade, corpo, loucura ou imaginário já se fazem presentes também no Brasil, indicando aquela tentativa, já mencionada, de atualização permanente da comunidade em relação aos rumos da pesquisa no exterior. Se isto por um lado é positivo, indica também certa pobreza imaginativa dos historiadores para a proposição de caminhos originais, querem termos metodológicos, quer temáticos. As novas preocupações temáticas e metodológicas assimiladas através da bibliografia estrangeira, contudo, afetam um número bem maior de trabalhos, a partir da renovação de antigos temas. É assim que, como já foi dito, os estudos sobre escravismo ou movimento operário acolheram, eles também, novas perspectivas e foram redimensionados. No âmbito destas significativas transformações por que passou a história no Brasil nos últimos 20 anos, o conceito e a prática com as fontes também se alteraram expressivamente. Com o volume da produção que vai se instituindo e a multiplicação dos recortes e problemas, as pesquisas passaram a lançar mão dos mais diversos tipos de fontes, tentando tratá-las com mais rigor técnico e metodológico. É perceptível, por exemplo, a tendência a certa quantificação e seriação de dados em alguns campos, como os da história demográfica ou econômica, ou um tratamento menos impressionista dos discursos ou representações, através de contatos da História com a Lingüística e com as diversas teorias literárias. É assim que vem se constituindo, bem recentemente, bibliografia nacional mais especializada sobre cada abordagem metodológica ou tipo de fonte. Os historiadores agora não se utilizam apenas de documentos depositados em arquivos, mas
se tornam igualmente sensíveis a outras modalidades de informação, como fotografias, depoimentos orais e registros sonoros, propagandas, programas de televisão, filmes, artes plásticas, memórias, literatura. Além disso, houve uma ampliação dos tipos de documentos arquivísticos utilizados, como no campo das fontes cartoriais e eclesiásticas. Estas renovações, contudo, em alguns momentos geraram certas recorrências inconseqüentes, como a moda da utilização de jornais sem o indispensável emprego de fontes contrastantes. Como se vê, muitas coisas mudaram nestes últimos 20 anos. Diminui a influência das correntes mais ortodoxas do marxismo, ao mesmo tempo que multiplica-se a influência da historiografia estrangeira, particularmente francesa e inglesa, sobre a comunidade nacional. Mas já se faz sentir também a presença de parte da historiografia norte-americana e italiana contemporâneas. A alteração do panorama teórico no ambiente acadêmico é tão nítida, que questões candentes há dez anos atrás parecem, vistas do presente, pouco significativas. É o caso, por exemplo, do debate travado entre marxistas e estruturalistas até o princípio dos anos 80, quando, então, essa discussão se redefine integralmente num quadro bem mais complexo. O marxismo se sofisticou durante os anos 80, com o amadurecimento da leitura de Gramsci, de Lukacs, da Escola de Frankfurt, da historiografia inglesa representada por um Thompson, um Hobsbawm, um Perry Anderson ou da historiografia italiana de um Ginzburg. Igualmente, a filosofia francesa pós-estruturalista e pós-moderna ocupa um lugar central nas discussões do período, sendo Foucault um autor influente, em particular nos setores relacionados com a história da sexualidade ou dos processos de disciplinarização social. Para alguns, a influência de Foucault foi uma moda passageira. Ao que parece, o problema deve ser abordado de outro modo, pois Foucault forneceu caminhos palpáveis de ampliação do horizonte da pesquisa histórica. No campo particular da Teoria da História, as mudanças operadas nos últimos 20 anos são também enormes. Um aluno de um curso de pós-graduação em História, em
1971, praticamente não encontraria bibliografia publicada no Brasil a respeito desta área, mesmo porque a própria existência das disciplinas de Teoria da História nos currículos da graduação universitária é um fato recente. Ainda que lacunas essenciais continuem não-superadas, diversas obras foram e vêm sendo traduzidas. Com um relativo atraso, passou-se a discutir textos importantes da reflexão estrangeira. A lista seria grande, mas é importante chamar a atenção para os últimos cinco anos, com a publicação de muitos trabalhos de caráter teórico e metodológico vinculados à nova história francesa contemporânea, bem como de um grande número de textos teóricos de historiadores da cultura de língua inglesa. E mais ainda, com a introdução do debate sobre as relações entre narrativa e história, por exemplo. A publicação dos trabalhos de Hayden White e Dominick Lacapra, dentre outros, já começa a gerar pesquisas que exploram a dimensão narrativa dos eventos. Aqui, mais agudamente que nas interrogações advindas de uma história do cotidiano, o problema do estatuto de realidade se impõe com toda veemência, exigindo redefinições sobre o estatuto ontológico da história,31 e tudo indica que esta discussão ainda persistirá, pois nosso atraso é ainda grande em relação às polêmicas internacionais. Uma tentativa de balanço dos caminhos da história no Brasil nos últimos vinte anos sugere alguns traços que, em maior ou menor grau, interferem nas perspectivas que possamos apontar para o futuro próximo, com todos os riscos que um objetivo deste tipo implica. Ainda que a afirmação seja superlativa, o traço mais importante deste período, para nós, é o da profissionalização crescente da comunidade dos historiadores, somada às conseqüências advindas deste fato. Entenda-se aqui por profissionalização precisamente a forma moderna através da qual as ciências humanas passam a ser praticadas nos quadros das sociedades capitalis-
tas contemporâneas, com seu respectivo mercado de bens culturais e sistemas de informação complexos. Esta profissionalização, contudo, define-se também no rol das orientações internacionais sobre o que seja a natureza da história e sua prática. A moderna história no Brasil busca atingir este duplo alvo: a utilização de instrumentos e conceitos atuais definidos pelo debate histórico internacional e sua inserção na sociedade brasileira, onde a história se repropõe a pergunta sobre sua serventia. Um forte aspecto unificante destes vinte anos seria, portanto, a multiplicação progressiva de objetos, problemas e enfoques historiográficos, mas também de espaços institucionais e públicos de atuação deste grupo de especialistas. Esta multiplicação implica hierarquias. Desta perspectiva, as influências mais profundas vêm do marxismo e da historiografia francesa, ambos em seus diversos matizes. Há vários pontos de estrangulamento, sendo o mais complicado a tentativa permanente e frustrada de atualização dos historiadores com respeito ao que se faz em certos países, com raros indícios de um pensamento original. Isto se expressa claramente na quase inexistência de colaborações substanciais de historiadores brasileiros nos fóruns internacionais. A ausência de tendências historiográficas claras, de objetos razoavelmente cobertos, em termos tanto extensivos quanto intensivos, é a outra face da mesma moeda. Em um campo de tanta diversidade, é muito difícil indicar perspectivas que não sejam gerais. Mas há algumas tendências, ainda que tênues, como o retorno ao estudo do penodo colonial, a constituição de uma história da cultura em novos termos, o aumento de enfoques antropológicos, de preocupações com o cotidiano, com as mentalidades, as artes e a micro-história, em detrimento da história econômica e social típicas, e a ampliação de discussões em teoria da história e em historiografia. Estão dadas as condições para que a história no país adquira uma consistência que ainda lhe falta, em que pese a enorme diferença entre hoje e os idos de 1974.
85 Outros Olhares Um Interlocutor Privilegiado da Expedição Langsdorff: o botânico e médico austríaco Carlos Engler*
Plinio Guimarães Moraes Mestre em Ciência Política pela Unicamp, Conselheiro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e Pesquisador do Centro de Memória-Unicamp
A motivação dos viajantes, contudo, demonstra, em inúmeros casos, seus interesses humanistas. Foram afetados por uma aura romântica, que lhes atribuía uma loucura serena em que, vítimas de um delírio ambulatório, insistiam em caçar borboletas... Os viajantes foram também colecionadores e classificadores. Míriam L. Moreira Leite Viajantes Naturalistas: caracterização Considerações iniciais ... não pertence, em verdade, ao ofício do historiador... o querer erigir altares para o culto do passado, desse passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca... uma das missões do historiador... consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. (Holanda, Sérgio Buarque de, 1977). No momento em que a América se entrega ao delírio de como enfrentar os 500 anos de sua anexação ao mundo do século XVI, é extremamente oportuna a ocorrência deste Simpósio. Isto porque nos permite desenvolver uma reflexão mais ampla, acerca do significado aparente e dos outros significados que tiveram os viajantes, os naturalistas, os imigrantes e sua obra. Assim como estão tentando fazer com Colombo, devemos ter cuidado suficiente para não enquadrá-los nem como vilões, nem como heróis. A proposta é abrangente. Não se pretende vislumbrar a preservação da natureza em enfoque restrito sem uma correlação
direta com os aspectos econômicos, sociais, políticos, científicos e culturais, qual seja, na sua interface mais ampla com o ecológico. E sob este prisma, também não se olhará aqui neste texto para Langsdorff, Engler ou qualquer outro estrangeiro que aportou no Brasil, somente à procura de coisas concretas, mas também de outras abstratas, estas últimas, muitas vezes constituíram-se no motor de suas atividades nestas plagas. O olhar do europeu sobre a natureza, apesar da procura pelo novo - plantas ou animais desconhecidos - realizava-se dentro de uma unidade discursiva, porém se estruturava através de velhas significações. Sérgio Buarque de Holanda insiste, parece-nos de forma apropriada, que o imaginário europeu permitia à natureza americana ser reconhecida e hierarquizada segundo padrões estabelecidos nas metrópoles. Se ao escrever, este autor pensava nas nações ibéricas dos anos Seiscentos, nada impede que a mesma observação seja estendida a outros países e a outras épocas. De concreto, enfocadas a flora e a fauna sob o princípio renascentista, indicavam o fato de que o homem - centro do universo poderia utilizá-las como bem o quisesse. Destruindo a natureza, inclusive. Todavia, não foi diferente nos séculos seguintes, já sob influência de outras filosofias, especialmente naquele que aqui mais nos interessa (século XIX), independentemente (ou até por causa disto) dos estágios de desenvolvimento que o capitalismo foi tendo. De palpável, movidos por interesses os mais diversos, a maioria destes viajantes à distância de seu continente de
* Este artigo é uma versão do texto apresentado no IV Simpósio Internacional Langsdorff. em Petrópolis, em 6/6/1992. Foi recebido este artigo para publicação, quando o autor ainda integrava o quadro de pesquisadores do CHU, tendo falecido em 17/4/94.
origem, procuraram colher material para estudo e/ou coleções, mal sabendo que o destino desse material seria a perda pura e simples, a exceção do acervo de Langsdorff, que é o grande achado destes nossos novos tempos. Enfrentando chuvas e trovoadas, doenças e viagens, rompimentos e conflitos pessoais, aí está um manancial de conhecimentos, mesmo que a ausência de manuseio por décadas e décadas tenha sacrificado alguns dos seus enfoques. Ainda antes de entrarmos nas considerações históricas, comporta relembrar uma importante ponderação de Miriam Moreira Leite. Segundo esta autora, os viajantes estrangeiros fixavam-se apenas temporariamente no país de pesquisa, conservando uma posição de autonomia diante do espaço ocupado pela população local. Preservavam uma mobilidade social e econômica que por vezes os aproximava da compreensão e estima das pessoas, mas por outras vezes, gerava uma hostilidade difusa. Esta última característica era enfatizada sempre que os movimentos nacionalistas afloravam, no caso do Brasil em 1822,1830 e 1889, só para citar alguns exemplos. Nesta perspectiva do naturalista europeu no Brasil, vê-se que sua percepção do outro, das coisas e da natureza em si mesma era diferente daquela que os locais manifestavam. A população do país reagia de outra forma àquela dos viajantes que traziam sua experiência social. Insiste-se inclusive na influência que a tradição iluminista, trabalhada e defendida pela ciência do século XVIII, exerceu sobre os visitantes ao longo de todo o século XIX. E esta foi a centúria relevante para os visitantes no Brasil pois antes, como veremos, pouco se tem a anotar de expressivo. Por fim, também a alertar outro contraste, temos que relembrar as diferenças entre um viajante (como Langsdorff) e um imigrante (como Engler). Ambos cientistas, ambos de origem germânica, ambos com um saber específico adquirido em universidades européias, porém o primeiro parece tender sempre a conservar padrões culturais de sua comunidade original sendo que o segundo, já lhe acrescenta uma predisposição a incorporar os esquemas mentais do povo visitado (Leite, 1990). As descrições que Saint-Hilaire e Hercules Florence fazem da personalidade e temperamento de Langsdorff são definitivas sob
este aspecto. Além de que, pelo menos em projeto, a viagem é sem volta para um (imigrante), enquanto para o outro (viajante), ao contrário, o retorno a seu país de origem é previsto para acontecer em algum momento, com o maior número de resultados possíveis e isto é o que interessa de fato. Antecedentes históricos das viagens científicas ao Brasil Coincide, aproximadamente com a metade do século XIX, a divisão entre cientistas e os humanistas que passaram a identificar os primeiros com a industrialização, o comércio internacional e o trabalho altamente especializado, sendo alheios à arte, à beleza e à justiça social. (Leite, Miriam L. Moreira, 1990). Apesar da importância que os relatos dos viajantes tiveram para o conhecimento do Brasil e o desenvolvimento da ciência e tecnologia no país, estes documentos só ocorreram efetivamente a partir do século XIX. De 1500 até o fim do século XVIII, aconteceram fatos isolados, uma ou outra viagem que merece superficial citação a seguir. Partimos do pressuposto que o desenvolvimento da pesquisa científica de um país depende, essencialmente, do grau de desenvolvimento de suas forças produtivas, sua economia, sua política, sua cultura/«to sensu (Szmrecsányi, 1985). Neste caso, a estrutura global de nosso país enquanto colônia agroexportadora assentada no escravismo, não poderia mesmo propiciar condições satisfatórias de desenvolvimento a qualquer ramo da ciência e da tecnologia. Pelo contrário, a colônia era mesmo para atender pura e simplesmente a necessidades econômicas da metrópole. E o que é pior, esta mentalidade afetou diretamente o aperfeiçoamento das técnicas utilizadas na exploração dos próprios produtos como o açúcar, os minérios, o café, o algodão, o que foi propiciando com que os concorrentes mundiais ocupassem espaços vitais no tocante à produção destes elementos. Os holandeses no Caribe exemplificam a assertiva no tocante à cana-de-açúcar.
Esta postura atrasada da corte portuguesa, é de qualquer forma paradoxal. Pois se de um lado ela dificultou ao máximo as viagens de exploradores estrangeiros ao Brasil, sob o discurso da defesa dos minérios preciosos e do receio que idéias subversivas viessem a desestabilizar o sistema colonial, de outro, foram justamente os portugueses que trouxeram das índias ao continente europeu as primeiras coleções científicas (Basalla, 1967). Da mesma forma que a nação lusitana teve uma expressão de vulto na passagem da era medieval para a Renascença, centralizando seu Estado, organizando suas fronteiras, tomando atitudes avançadas no comércio marítimo, nas navegações (a Escola de Sagres, por exemplo, teve a dimensão de um projeto da Nasa nos tempos modernos), nos descobrimentos enfim, depois de 1640 retraiu-se a um papel de segunda categoria entre os países europeus. Acabaram aqueles laivos préburgueses que haviam emanado durante a dinastia de Aviz (1385-1580) e que propiciaram feitos de projeção nos diversos campos do conhecimento, inclusive no artístico. O estilo manuelino, que utilizava técnica apuradíssima, foi um exemplo desta observação. A impressão que fica é a de que faltou sustentação na burguesia nascente para levar adiante um projeto autônomo de Nação. O posicionamento de Portugal, em especial depois deste curto período, regrediu, entregando-se a posturas conservadoras inimigas da modernização. Sua posição frente às colônias, o Brasil entre elas, mediava-se por uma retrógrada religião católica que havia sobrevivido à Idade Média. Assim sendo, tributários dos resquícios do período das trevas, os reis lusitanos dificultavam e até impediam qualquer crescimento científico. Conforme palavras de Oliveira Pinto, exceto no campo da geografia com a viagem de Charles-Marie de Ia Condomine ao longo do rio Amazonas em 1742-1743, é difícil encontrar algo digno de nota no período colonial referente à história das ciências no Brasil. Mesmo se tivermos a boa vontade de citar alguns franceses que nos Seiscentos e Setecentos aqui estiveram em viagens ou relatos (d'Abbeville, d'Euvreux, Nantes, Thevet)
ou até a entrada pesquisadora de Gabriel Soares de Sousa, o argumento central não se altera. Outrossim, há um hiato não-português em que nosso país conheceu um despertar do conhecimento na área que aqui nos interessa. Isto se deu durante a ocupação holandesa do Nordeste em meados do século XVII. Foram poucos anos da administração de Maurício de Nassau, que, casando preocupações materiais às do espírito, lançou alguma luz em nossa história artística, científica e cultural. Trouxe aquele príncipe pintores (Franz Post e Eckout), médicos (Willem Pies), botânicos (George Marcgrav) e outros pesquisadores, podendo-se dizer hoje que um dos frutos desta época - A Historia Naturalis Brasilis - é o marco inicial do estudo científico das plantas e dos animais peculiares à região dominada pelos flamengos (Pinto, 1973). Marcgrav teria sido, junto com o Príncipe Nassau (aqui conhecido como conde) o primeiro a realizar observações astronômicas e meteorológicas no hemisfério sul em bases científicas. Por outro lado, muitos autores consideram Pies (Piso, como ficou conhecido) como o fundador da nosologia brasileira. E convém também relembrar que até o projeto urbanístico de Recife foi obra daquele período. A obscuridade que desceu sobre o Brasil depois deste breve interregno foi quase total. Efêmeras academias, iniciativas isoladas de um ou outro político mais esclarecido como foi o caso do quarto ViceRei do Brasil, d. Luis de Vasconcelos. Este ou aquele esporádico viajante como o primeiro naturalista brasileiro que estudara em Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira, o qual esquadrinhou, em 1783, os cursos fluviais do Amazonas e do Pantanal a mando do governo português e cuja coleção guardada no Real Museu de Ajuda, de Lisboa, foi levada para Paris, quando Napoleão invadiu Portugal. Mas nada sistemático, nada realmente de peso cultural que pudesse merecer uma nota especial. Nem mesmo o famoso von Humboldt, inspirador da maioria dos viajantes do século XIX, conseguiu visitar o Brasil. A metrópole desconfiava
ser um espião a serviço das potências inimigas. O cenário começou a mudar, podese dizer drasticamente, após a vinda da família real portuguesa em 1808. Acossada pela invasão napoleônica, a corte de d. João VI veio para a colônia. Segundo consta, pelo menos o príncipe regente teria vindo com intuito de aqui se estabelecer. Aqueles projetos antigos do Marquês de Pombal, Ministro de d. José I, avô de d. João VI, de transferir a realeza de Portugal e toda a sua entourage para as Américas, acabara por se concretizar, mesmo que não fosse de moto próprio. E neste cenário de abertura dos portos, de fundação das escolas de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, do surgimento do Real Jardim Botânico, do Museu Nacional, da Escola de Belas Artes além de outras instituições de pesquisa, que o alemão-russo Langsdorff iria aportar no país. Neste prisma, é relevante insistir que a vinda de d. João VI exerceu um papel efetivamente modernizador. Imagine-se uma cidade em torno de 50 mil habitantes como era o Rio de Janeiro, literalmente invadida por umas novas 10 mil pessoas. Foi o caos. As mudanças em todos os campos, inclusive o urbanístico, {coradesapropriação de residências para os nobres que chegavam) foram profundas e não se pode ignorar este fato. Para um país importante do capitalismo periférico como era o Brasil, não será fiel com a História deixar de reconhecer as mudanças propiciadas pelo transplante da corte para as Américas mesmo que alguns dos vice-reis sediados no Rio de Janeiro (como Gomes Freire de Andrada, o Marquês de Lavradio ou d. Luis de Vasconcelos e Sousa) já tivessem se dedicado a modernizações urbanísticas e científicas. Junto com todas estas alterações ao longo do século passado, veremos um correr de expedições científicas com nomes expressivos que aí sim, ajudarão substancialmente no conhecimento de nossas coisas. Spix e Martius, Saint-Hilaire, Maximilian von Wied-Neuwied, Sellow, Freireyss, Swainson, Delalande, a expedição austríaca que acompanhou a Arquiduquesa Leopoldina, Agassiz, Lund, Reinhardt, Warming, d'Orbigny, Poeppig, Gardner, Darwin,
Castelnau, Russel, Wallace, Descourlitz, Beske, Ehrenreich até Prentiss na passagem para o século XX, foram vários os que aqui vieram buscar elementos para desenvolver os estudos em seus respectivos países. Assim sendo, a Inglaterra, os estados germânicos, a França, o Império austro-húngaro entre outras nações, enviaram seus especialistas para coleta e análise, numa verdadeira disputa política (e econômica) para ocupação de espaços. Movidos pelos reflexos do Iluminismo e da Revolução Francesa, os chefes de estado e de governo das maiores potências tinham efetivo interesse em obter material exótico. Qual uma nova forma de colonização, talvez. Sem dúvida, como desenvolvimento sócio-econômico-político já fosse outro, mesmo ainda escravista, estes viajantes e naturalistas deram uma contribuição relevante ao desenvolvimento da ciência e tecnologia brasileiras, assim como para o conhecimento do país. Participaram de um redescobrimento, correndo por caminhos e paisagens muitas vezes desconhecidas. As vindas de Langsdorff e a postura do governo russo Cada observador tem seu próprio ponto de vista pelo qual vê e julga os novos objetos, tem sua própria esfera, na qual se esforça por incluir tudo que está em mais estreito contato com seus conhecimentos e interesses. (Becher, Hans, 1990). O início do século XIX vinha carregado de transformações emanadas quer das revoluções francesa e americana, quer de toda a filosofia iluminista que dera à ciência um lugar privilegiado. No contexto, as nações européias enfrentavam-se no campo político visando a expansão territorial e de idéias. Em alguns momentos, estes confrontos ocorriam na arena diplomática (esta é uma época de grandes diplomatas); em outros, só a guerra poderia resolver as divergências e o confronto que teve Napoleão como centro foi o mais importante do período. Nesta fase, o chamado Império das Rússias começava a se firmar como uma
das nações mais poderosas do mundo, ao lado da Áustria, Inglaterra, França, e o que em 1871 veio a se constituir a Alemanha. Governada por um jovem czar idealista e dono das melhores intenções, a Rússia reforçou a posição que Pedro, o Grande e seus seguidores haviam construído. Alexandre I sucedeu ao governo de terror de Paulo I e buscou assessorar-se em conselheiros jovens e dinâmicos procurando implementar reformas liberais (Grimberg e Svanstrõm, 1983). Imbuído de ideais do Século das Luzes transmitidos por seu preceptor na juventude (o suíço La Harpe), Alexandre I atirou-se à tentativa de modernização de seu país, o que à época estava muito relacionado à idéia de ocidentalização tendo por paradigma a França. Apesar de entusiasta sensível, enfrentou resistências profundas dos conservadores além de sua personalidade conter algo de quimérico. O último de seus ministros vinculados ao chamado modelo ocidental Speranski - caiu, após enfrentar a corrupção, a burocracia, os privilégios da nobreza e a tentativa de elaborar uma Constituição nos moldes da francesa. E neste caldo de cultura que o Barão Georg Heinrich von Langsdorff também conhecido como Grigori Ivanovitch Langsdorff (depois de sua naturalização russa), tendo mantido contatos científicos com os países mais desenvolvidos, vai aportar na Rússia. Conseguirá do czar 40.000 rublos de subscrição e 10.000 rublos anuais. Segundo Komissarov a grande expedição (1825-1829), ao final, tinha dispendido por volta de 326.000 rublos o que era quantia substancial para a época, além de consumir parte do próprio salário de Langsdorff (Komissarov, informação verbal). Oportuno relembrar que não se tem muito clara a razão principal do apoio, por parte de Alexandre I às investidas de Langsdorff. Uma das versões vincula à sua sensibilidade ao Iluminismo; uma segunda a seu ministro das Relações Exteriores que mais adiante citaremos; outra ao seu profundo misticismo; quarta hipótese, busca de auxílio nas ervas tropicais a seus achaques de saúde e uma última defende o simples posicionamento de um chefe de estado expansionis-
ta. Nada impede inclusive, que estas alternativas se combinem entre si. Uma das perguntas mais instigantes que se faz é o por que Langsdorff sai de seu país de origem em direção ao oriente europeu. Uma das alegações mais razoáveis defendida por Boris Komissarov, é que o clima nos diversos estados germânicos no início do século XIX era provinciano, paroquial, visando objetivos fúteis em que o máximo que se atingia era um ou outro palácio de gosto arquitetônico e artístico duvidoso ou uma peça de música para deleitar membros das cortes. Nada que atendesse ao espírito essencialmente científico, racional, adequadamente estruturado. Langsdorff estudou na Universidade de Gõttingen, talvez o maior centro universitário do Iluminismo alemão daqueles tempos, sob a influência de professores brilhantes e que lhe despertaram o espírito pesquisador e crítico. Nomes como Bütner, Michaellis e Blümenbach, o grande naturalista professor de von Humboldt e de Wied-Neuwied, exerceram decisiva influência na sua formação acadêmica (Komissarov, informação verbal). Após ter passado por Portugal na missão do Príncipe Christian von Waldeck que lá fora estruturar o exército lusitano, Langsdorff manteve vários contatos relevantes. Já tendo aprendido o português (ficou 6 anos em Portugal), começou a escrever a cientistas franceses (entre outros, Saint-Hilaire) e russos (o matemático Füss, o lingüista Kraft e o astrônomo Schubert, que acabou por se tornar seu primeiro sogro), até que conseguiu realizar seu sonho recôndito: agregar-se a uma expedição em torno do mundo. Isto ocorreu nos anos 1803-1806 sob o comando de von Krusenstem, quando bateu pela primeira vez em terras brasileiras, mais especificamente no litoral de Santa Catarina. Como diz Sevcenko, pode ter ocorrido uma espécie de êxtase emocional que de um lado sintonizou este naturalista alemão com a imaginação romântica daquele século, assinalando assim a admirável base de sua inspiração científica (Becher, 1990). Nos retornos posteriores como cônsul-geral russo no Brasil (desde 1813) quan-
90 Outros Olhares
1 No tocante à ligação de Langsdorfl com políticos brasileiros relevante í apontar o seguinte. Sua proximidade ocorreu com o Conde di Bmí Antonio de Araújo e Azevedo, que chegou a chefiar o gabinete de d. João VI. Francólilo. estudou em Coimbra e na Alemanha. Trouxe ao Brasil a primeira tipografia completa, que depois propiciou a Imprensa Régia. Possuía uma coleção mineralõgica e material para as pesquisas químicas. Criou a Academia de Belas Artes trazendo a Missão Francesa de Lebreton, Hontigny e Debret. Incentivou o plantio de chá por chineses nas terras do Jardim Botânico e nas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ao morrer, deixou ao Brasil um jardim particular com I.AOO exemplares de plantas nativas tropicais a que chamava hortas inu/emis. Sua biblioteca particular (oi um dos núcleos da Biblioteca Nacional. Em contraste com o Conde da Barca, havia o Conde de Linhires anglófilo ferrenho ligado a Lord Strangford, também grande estadista. Os dois alternavam-se na influência ao príncipe regente. Mais afeito às questões da guerra, o Conde de Linhares constituiu a Academia Militar e a fábrica de Pólvora, Também sua biblioteca particular foi outro dos núcleos da Biblioteca Nacional. Por fim, já no governo de d. Pedro I. Langsdorlf aproximou-se de seu ex-colega de universidade na Alemanha, o patriarca da Independência. José Bonifácio de Andrada e Silva.
do permaneceu longo período por aqui, ou já no início da década de 20, quando preparou, e comandou a grande expedição de sul a norte de 1825 a 1829, Langsdorff deixou uma marca indelével: personalidade forte e decidida, sua característica central nos parece ter sido de um poliativista e polipesquisador. Exerceu atividades as mais diversas, da diplomática à de pesquisador científico, de fazendeiro interessado no implante de colonos livres (na Fazenda Mandioca) à de estudioso de questões etnográficas, sociais, econômicas, antropológicas. Permeando seus eventuais contatos com políticos brasileiros poderosos que o apoiavam (Conde da Barca e José Bonifácio de Andrada e Silva), teve tempo para olhar até para a poesia e a música tão pouco valorizadas por alguns falsos cientistas.1 A principal influência que lhe foi exercida na Rússia partiu de um dos braços fortes de Alexandre I: seu chanceler, o Conde Nicolau Rumiantseff. Segundo Komissarov, foi decisivo o papel deste que é apontado por alguns como o pai do capitalismo naquele país. Rico, prestigiado, grande proprietário rural, fez vários investimentos financeiros na área da pesquisa científica e da cultura. Teria sido por sua indicação que Langsdorff passou ao serviço do Estado russo, reforçada esta posição pela liderança exercida pelo ministro plenipotenciário da Rússia no Rio de Janeiro, o francês Franz Borel. Em nossas terras, a facilidade de seu diálogo em português com d. João VI e posteriormente com d. Pedro I, enquanto todo o corpo diplomático se comunicava em francês, completou o cerco. O cientista estaria daí por diante amarrado aos destinos destes trópicos, num entrelaçamento que nos parece produtivo para ambos os lados. Aquela sensação de efervescência existente na Europa da época projetou-se num desejo de aventura, num espírito irrequieto, perserutador, vivendo na busca obsessiva do saber. Nas palavras de SaintHilaire, que com ele viajou a Minas Gerais em 1816, com Langsdorff, a pessoa mais ativa e incansável que jamais encontrei em minha vida, aprendi a não desperdiçar um minuto sequer durante uma viagem de
pesquisa, a não levar em consideração as privações e a suportar serenamente todos os possíveis incômodos. Meu companheiro de viagem andava de um lado para o outro, agitava-se, chamava um, fazia observações a outro, corria, escrevia seu diário, organizava sua coleção de borboletas, e isso tudo ao mesmo tempo... Falava tão rapidamente que chegava a perder o fôlego como se tivesse feito uma longa caminhada. (Becher, Hans, 1990, p. 40). Nesta febril ânsia de realização ao cumprir a missão financeira pelo governo russo de colher material científico e iconográfico do Brasil, é que Langsdorff cruzou, em 1825, com outro cientista europeu que vivia nesta época na cidade de Itu, no interior da província de São Paulo. Este encontro, segundo as primeiras informações que levantamos, foi privilegiado para os dois e muito provavelmente, para o Brasil. Carlos Engler, perdido no interior paulista Em Itu encontrei reunidos todos os meus companheiros e, com eles, me detive alguns dias. Travei conhecimento com o Dr. Engler, austríaco, homem todo voltado para a ciência. Sua biblioteca qualificada e assinaladamente alemã, acompanhava-se de um gabinete de física e um laboratório, assim como de instrumentos de astronomia. (Florence, Hercules, i977b). Segundo Frederico de Barros Brotero, no dia 28/8/1832, o Juiz de Paz da Vila de Itu, na província de São Paulo, afixou editais e baixou portarias determinando que os estrangeiros ali residentes comparecessem à sua presença para declarar a respectiva naturalidade, idade, morada, ofício e o tempo que desembarcou em portos brasileiros. Parece ter sido uma das primeiras manifestações nacionalistas ouvidas naquela vila, depois da Independência. Segundo este autor o comparecimento foi decepcionante, só nove pessoas sendo que em Itu deveriam existir muitas mais. Até há pouco tempo o livro destinado a estes regis-
tros ainda se encontrava no Cartório do Escrivão de Paz daquela cidade. O último dos estrangeiros que se apresentou foi o Dr. Engler, cujo termo assim se apresentava: Aos seis dias do mês de outubro de 1832, natural de Viena, 32 anos, morava no Distrito de Itu, vivia além de suas rendas, de sua arte de medicina; desembarcou nos portos do Brasil em janeiro de 1821. Quatro anos mais tarde (1836), na lista de recenseamento precedida, vê-se: Carlos Engler, residia no Ia Distrito norte, natural de "Vianna" (sic!), com 36 anos, sabendo ler e escrever, tendo meios decentes de subsistência. Esposa de São Carlos (atual Campinas), 27 anos, três filhos: Caro Una, branca, solteira, 4 anos; Carlos com 3 anos e Dorismundo com um ano. (Brotero, Frederico de Barros, 1942; São Paulo. Arquivo do Estado de São Paulo, 1821-2). Dessa forma, pressupõe-se pelas suas próprias declarações que Carlos Engler nasceu na Áustria em 1800, tendo falecido em 18/9/1855 com testamento aberto quatro dias após e apresentado à Coletoria de Itu em 1 /3/1856, documento este onde existem valiosas informações além das específicas sobre seus herdeiros. Retratar com justeza a personalidade deste austríaco como ressalva sua biógrafa, a bisneta Chloé Engler de Almeida, é tarefa árdua. Todavia, este problema é enfrentado com praticamente todos os estrangeiros, cientistas ou não, que para cá vieram nos séculos anteriores. Consegue-se de alguma forma acompanhar seus passos no Brasil mas sempre com lacunas às vezes expressivas, quer referentes ao período anterior à chegada, quer mesmo durante a fase em que atuaram no nosso país. O imaginário é muito acentuado, como bem alerta Almeida de maneira honesta em seu ensaio sobre o ancestral. Segundo consta por informações dos descendentes em Itu, Campinas e São Paulo, Engler teria vindo ao Brasil por razões diversas que se somaram. Aspectos políticos, econômicos, religiosos entre outros, fundiram-se numa questão especificamente
familiar: órfão de pai com mãe prepotente, não seguiu a trilha universitária decidida por ela o que a levou a cortar suas relações com o filho. Ao invés de seguir a carreira de médico, como há gerações os Engler se dedicavam, nosso cientista optou por seguir os estudos de engenharia, botânica, geografia, astronomia, química e história natural. Praticamente às vésperas da formatura é que Charlotte von Engler teve ciência de que seu filho não seguiria a opção da família (Almeida, 1978). Sectária, filha de militar, luterana até a medula, criticava os contatos do filho com alguns colegas católicos. Estes o teriam influenciado mal, segundo sua mãe, tanto que proibia os filhos desde criança, a manter o convívio com os papistas. No dia da colação de grau em engenharia, na Universidade de Viena, em 1819, é que a velha matriarca cientificou-se que seu filho deixara a medicina no terceiro ano da faculdade. A primeira e definitiva conseqüência foi a proibição do uso do título de nobreza da família (baronato de Hartberg) a ele que era o primogênito, expulsando-o de casa e deserdando-o (Almeida, 1978). Karl von Engler decidiu então viajar por influência de um padre católico amigo (Peter Weimberg) que vinha para o Brasil ser missionário. Abrasileirou o nome para Carlos, e anos depois de ter lido sobre plantas medicinais dos trópicos (os famosos livros de Francisco Hernandez, médico da Corte de Fernando II, da Espanha) estava no Atlântico. Na mesma nau d. João VI, que trouxera sua conterrânea Leopoldina alguns anos antes, aportou no Rio de Janeiro em 1821. Seu primeiro trabalho na então sede da corte portuguesa foi exercido no Viveiro da Lagoa Rodrigo de Freitas, sob a direção do germânico Kauche, naquele que era conhecido por Jardim de Plantas Exóticas. É de todos conhecido o hábito de d. João VI passear nestes jardins cariocas o que propiciou um dia o contato de Engler com o soberano, que prontamente cobrou-lhe apresentar-se em palácio à nora austríaca, futura imperatriz brasileira. Por inadequação ao estilo de autoridade de Kauche e pelo choque psicológico no contato com a escravidão que na sede da monarquia era ostensiva, Carlos Engler
decidiu embrenhar-se mais para o interior, abandonando a mata atlântica que tanto o impressionara. Conseguiu da Arquiduquesa Leopoldina uma designação para a função de engenheiro auxiliar de minas na Fábrica de Ferro São João do Ipanema, entre Iperó e Sorocaba, na capitania depois província de São Paulo. Segundo consta, agradeceu, mas não aceitou ser designado para o lugar de diretor do Viveiro no Rio. Seu contato com os especialistas alemães que trabalhavam na citada Fábrica Ipanema, propiciou uma nova perspectiva, reforçada nas conversas com o diretor Luis Guilherme Varnhagen, que, desde 1817, exercia as funções de direção. Esta foi a terceira oportunidade em que Engler se permitiu divagar nas andanças pela flora brasileira. Primeiro nas encostas do Rio, depois na Serra do Mar ao subir para o planalto e agora, nos arredores de seu novo trabalho. As orquídeas eram sua paixão. Empolgou-se no delírio de uma loucura calma e serena pelas matas e campos, muito ao gênero dos naturalistas, inclusive Langsdorff. O espírito de aventura e de desbravamento alheio a todos os eventuais perigos, típico daqueles que se dedicam aos estudos e experimentos científicos fora dos gabinetes, levou Carlos Engler a ficar perdido na floresta por três dias. Quando o encontraram, julgando-o morto por índios ou animais ferozes, surgiu como se nada tivesse acontecido, só com as vestes um pouco rasgadas. Na verdade, segundo Almeida, não lhe satisfazia lidar com o controle de qualidade dos minérios. Sua ardente obsessão era outra e foi naquele momento, ao ser encontrado pelos companheiros dado como desaparecido, que ele decidiu abandonar a engenharia e a mineralogia. Estas teriam sido opções de ordem mais emocional visando protestar contra a dominação de sua mãe. Queria mesmo se dedicar à botânica, o que, de qualquer forma, seria difícil se ele tivesse permanecido na corte vienense onde os Habsburgos eram muito voltados aos formalismos aristocráticos, vez ou outra amenizados por alguma valsa ou opereta. Todavia, não seria esta a ciência pela qual ficaria conhecido, se bem a utilizasse
daí por diante em seus experimentos. Certo dia, ainda na Ipanema, o diretor Varnhagen acordou com fortes dores abdominais e o médico que buscaram em Sorocaba não foi localizado. Já desenganado o doente, Engler lembrou-se de que sua formação - eclética - também tinha o estudo de alguns anos em medicina. Pois curou o chefe com a ajuda essencialmente das ervas locais. Daí em diante, não seria mais reconhecido a não ser como Dr. Engler, o médico. Entre Campinas e Itu passou a morar e a clinicar. Na primeira destas cidades, casou-se com Carolina Angélica do Amaral, filha do Tenente José Rodrigues Ferraz do Amaral, chefe liberal e abastado proprietário de terras campineiro. Dos seis anos que durou este seu primeiro enlace, teve três filhos mencionados no início deste capítulo. Viúvo, uniu-se depois com uma ituana, Gertrudes Teixeira da Fonseca, filha também de um bem-posicionado fazendeiro e político de Itu. Interessante apontar que são casamentos sempre em famílias tradicionais, brasileiras, bem situadas social e economicamente e em especial - com chefes proprietários de terras que exerciam o poder político local. Relacionado à atuação de Carlos Engler como médico naquela época, é relevante transcrever as palavras de Vitalina Pompêo de Sousa Queiroz, em 1951: Existiu sempre em Campinos número notável de facultativos estrangeiros que se tornaram credores da estima e da amizade da população, prestando seus bons serviços com grande dedicação e contribuindo com suas luzes e sua prática em países mais adiantados, para a civilização dos costumes familiares da grande família campineira, da higiene, da habitação e da alimentação. O mais antigo de todos, de que a memória se recorda, e que conheceram nossos conterrâneos apenas de nome, pois faleceu há mais de 70 anos, o ilustre anglo-saxão Dr. Carlos Engler, químico e facultativo notável e de saudosa memória em Campinas, Itu e outras cidades do Estado e mesmo da Capital... decorridas tantas dezenas de anos depois de sua morte, conservam ainda os descendentes das ilustres matronas que
foram suas contemporâneas, regras de higiene, receitas simples e preparadas com plantas nossas, consideradas como salutares e que são reconhecidas e empregadas hoje pela ciência moderna. (Queiroz, Vitalina Pompêo de Sousa, 1951). Este aproveitamento das plantas da flora brasileira era a essência do trabalho de Engler, acoplado ao conhecimento formal que ele atualizava sistematicamente através da assinatura de revistas européias e de uma biblioteca variadíssima e que, nos parece, dispersou-se e perdeu-se toda, citada tanto por Hercules Florence como por outro viajante, o pastor norte-americano Daniel Kidder. Transcrevemos a seguir palavras deste último que visitou Itu no final da década de 30, do século passado. A nossa recepção nessa localidade, não foi menos cordial que nas outras conquanto tivesse sido um pouco mais formal. Encontramos com facilidade a casa do Dr. Engler, que estava literalmente cercada de doentes e de emissários de clientes, à espera de receitas. Mandamos entregar as cartas que trazíamos e fomos imediatamente conduzidos ao quarto que nos estava destinado, sem, entretanto, vermos pessoa alguma da família. O Doutor apareceu logo e mostrou-se extremamente amável e atento a tudo de quanto seu hóspede pudesse precisar. Homem de mais ou menos quarenta e cinco anos, além de médico insigne era também botânico efilólogo notável. Alemão nato, falava com grande facilidade, além de sua língua materna, o inglês, o francês e o português, entendendo ainda o espanhol, o italiano e o russo. Sua biblioteca era a maior e a mais valiosa de quantas vimos no Brasil. Dispunha ainda de completo laboratório de química. Sua fama projetava-se por grande parte do país e era imenso seu tirocínio. De grandes distâncias e de todas as direções afluíam clientes ao seu consultório. (Kidder, Daniel Parish, 1980). Itu, nas primeiras décadas do século passado, era uma das cidades de maior projeção cultural, extrapolando as fronteiras paulistas. Enriquecida primeiro pelas
monções que saíam de um porto próximo (hoje Porto Feliz), depois pelo ciclo da cana-de-açúcar (1750-1850) do qual foi o maior centro produtor da província beneficiado pelas excelentes terras pretas propícias a esta gramínia. Itu projetou-se como a mais próspera, populosa, desenvolvida e envolta em opulência até que o ciclo do café deslocasse o eixo de desenvolvimento para sua vizinha Campinas. Segundo o viajante Mawe, o caminho de Itu a São Paulo era o canal por onde passava toda a riqueza gerada na dita capitania (depois província), transformando-se em meados do século passado num centro financeiro e bancário que propiciou o surgimento das primeiras indústrias têxteis de São Paulo. Em Itu, trabalhavam músicos e pintores (Elias Álvares Lôbo, Tristão Mariano da Costa, Jesuino do Monte Carmelo, Almeida Júnior, Miguelzinho Dutra), atuavam políticos de projeção nacional (Feijó e Paula Sousa), além de expressivos fazendeiros e comerciantes. Nunca é demais lembrar que foi da Câmara de Vereadores de Itu que partiu uma das poucas sugestões no país ao projeto constitucional de d. Pedro I em 1823, nãoreconhecido pelos assessores do soberano, que acabou promulgando, em 1824, uma Constituição segundo seu modelo autoritário. É neste ambiente que Carlos Engler desenvolveu suas aptidões nas duas últimas décadas de vida. Segundo se tem notícia, poucos eram os médicos existentes em Itu à época. Três Paula Sousa, um irlandês chamado Patrício Killiam, Joaquim Mariano da Costa (já praticamente cego), Francisco Gabriel de Freitas e Carlos Engler. A concorrência, é óbvio, deve ter gerado disputas pela clientela e a passagem contada por Nardy Filho em artigo d'O Estado de S. Paulo de 3/11/1957 é exemplar. Descreve aquele historiador que, quando o médico irlandês Ricardo Gumbleton Daunt procurou clinicar em Itu, antes de se estabelecer em Campinas, acusou Engler de exercer a medicina sem a competente diplomação. Este é um vácuo até o momento na história do austríaco, pois a tradição oral familiar não é unânime: uns dizem que ele não se formou, exceto em engenharia; outros que ele teria posterior-
94 Outros Olhares mente recebido seu diploma de médico. O concreto é que ele não registrou devidamente o diploma (se porventura o tinha) e em contraste, possuía a maior clientela e o maior carisma da região. A resposta da Câmara de Itu ao Governo Provincial instado por Gumbleton foi taxativa, vislumbrando apoio à atuação de Engler. Dizia a Comissão de Justiça da Câmara local, em 8/4/1853: Acerca da queixa de abusos de médicos curarem sem habilitações necessárias, a Comissão é de parecer que se informe que não tem entrado em uso semelhante lei pela falta de médicos habilitados. (Nardy Filho, Francisco, 1957). E o vienense continuou atendendo pacientes, tanto em seu consultório de Itu quanto no sítio Emburu, de sua propriedade na vizinha Indaiatuba. Nesta última área rural é que possuía o laboratório citado tanto por Florence quanto por Kidder. Aí, também socorria e até operava escravos fugidos, sempre às escondidas e com o apoio da mulher. Sua forte sensibilidade para com a grave questão social gerada pelo cativeiro, preservava a mesma indignação da época em que abandonara o Rio de Janeiro buscando refúgio no interior paulista. De qualquer forma, encontramos em quase todos os europeus aqui chegados nos Oitocentos, cientistas ou não, nobres ou não, um respeito ao trabalho manual e intelectual praticamente desconhecido no Brasil, dada a distorção gerada pelo escravismo. Langsdorff e Engler encontram-se em Itu
'Trecho gentilmente traduzido pela Dra. Rosemarie Erika Horch, do Instituto Hans staden, de São Paulo.
Em Itu, e na cidade vizinha de Porto Feliz, às margens do Tietê, Langsdorff conheceu duas pessoas que o convenceram a alterar o plano previsto da expedição: Karl Engler e Francisco Álvares Machado e Vasconcellos! O primeiro era um químico vienense de 25 anos, rnineralogista e médico, que havia chegado ao Brasil há alguns anos. Vivia da prática médica e ocupava-se com pes. .„ . , .. _ /r~ Q111™* em CienClOS natUfOlS. (Expedição Langsdorff ao Brasil: 1821-1829, 1988).
Perdido no interior de São Paulo mesmo que numa cidade privilegiada para a época, o contato com viajantes e pesquisadores estrangeiros que por lá passassem tornava-se questão de sobrevivência cultural. Transformava-se numa oportunidade de troca de idéias sobre suas terapias à base de ervas, suas cirurgias (como de catarata), seus instrumentos cirúrgicos construídos artesanalmente por ele próprio. Na elaboração destes materiais, nas coletas de plantas para pesquisa, nas operações e em outras atividades, Engler tinha a seu lado, também como Langsdorff, um negro de sua total confiança conhecido por Tito. Na verdade este precursor da medicina alternativa moderna, da homeopatia de tão larga aceitação em nossos dias, via-se satisfeito, quando trocava experiências com seus pares que vinham dos mais variados cantos. Segundo se lê na página 38 do livro de Friedrich Sõmmer, Die Deutschen in São Paulo, era comum Engler fornecer cartas de apresentação a patrícios germânicos como ocorreu com Carlos Rath, Friedrich Brand e Theodor Klett, quando foram a Piracicaba. Pelo que se depreende nesta altura de nossos estudos, tem-se a impressão que Engler agia sem ambição pessoal nessas trocas de informações.2 Através dos conflitos e acusações de charlatanismo no exercício da medicina e das pesquisas com ervas, o dogmatismo cheio de (pré)conceitos e teorias distantes da evidência experimental ía sendo contestado. No interior de um país longe dos centros pensantes europeus, as formas de olhar o planeta iam sendo reinventadas num trabalho desprendido mas de caráter científico. A mesma condescendência e abertura que Carlos Engler - um luterano - dispensava aos católicos como sua esposa, ele dedicava à natureza e à ciência. Alegre, brincalhão, excêntrico, folgazão, individualista ía, regado de vez em quando por alguns copos de cerveja, desenvolvendo suas atividades numa cidade com laivos culturais mas ainda extremamente provinciana. Segundo Hercules Florence, teria sido Engler quem apresentara Langsdorff a Álvares Machado. Este último, político, fazendeiro, exercendo também funções judiciais e medicina prática, possuía rara erudição. Tanto Álvares Machado como o pe. Anto-
nio Feijó mantinham relações de amizade com Engler, sendo que na fazenda de propriedade de Feijó em Sorocaba foi seu médico particular. O que reforça o que dissemos acima acerca do relacionamento aberto, típico de seu temperamento tão diferente dos valores que Charlotte von Engler tentara lhe impor. O austríaco, pelas circunstâncias, acabou por exercer um papel de elo de ligação entre os diversos membros da expedição Langsdorff de 1825-1829 tanto em seus inter-relacionamentos, quanto nos contatos de Itu e Porto Feliz. O fato do vienense dominar vários idiomas e ser muito conhecido e bem relacionado na região, permitiu-lhe servir de pólo de atração, articulação e polarização, dinamizando os efeitos. Não podemos nos esquecer que eram diferentes as origens étnicas e lingüísticas da expedição. Franceses (Menetriés, Taunay e Florence), alemães (Langsdorff, Hesse e Riedel), russo (Rubtzov), sem contar a segunda mulher de Langsdorff a alemã WiIhelmine, que tiveram oportunidade ímpar para diálogo em suas línguas de origem com alguém que morava e conhecia o local. Florence chega a insinuar que seu casamento com Maria Angélica, filha de Álvares Machado e Vasconcellos, teria sido fruto também da apresentação de Engler. Nas palavras de Komissarov, de setembro a dezembro de 1825, a maioria dos integrantes da missão se reuniram em Itu. Aos poucos se montava a comitiva, extensa, que acabou por ter trinta e nove integrantes contando os braçais. Com os contatos desenvolvidos por Langsdorff naquele final de ano, decidiuse modificar o roteiro a ser seguido. Aos invés da viagem por terra até Goiás e depois Mato Grosso, seria mais útil e interessante, do ponto de vista científico, empreender uma navegação fluvial de Porto Feliz diretamente a Cuiabá. Esse caminho não havia sido percorrido antes por nenhuma expedição científica européia (Komissarov). Segundo Aziz Ab'Saber (Seminário internacional sobre o acervo, 1990, p. 23), esta fórmula adotada era mais difícil que a outra, se bem que as monções, por razões diversas, tenham-na utilizado séculos antes. Ainda na descrição contida no livro edi-
tado pela Fundação Nacional Pró-Memória, Quem influenciou bastante na tomada desta decisão (ir, pelos rios) foi o químico, mineralogista e médico alemão Karl Engler, que vivia em Itu há cinco anos e o apresentou ao brasileiro José Joaquim d'Almeida, realizador de uma viagem fluvial de Porto Feliz, a oeste de Itu, pelo rio Tietê, até Cuiabá, a principal cidade de Mato Grosso. D'Almeida ajudou Langsdorff na elaboração do plano de viagem e Engler forneceu-lhe carta de recomendação ao juiz, médico e grande latifundiário, figura importante na política de São Paulo, Francisco Álvares Machado e Vasconcellos, morador de Porto Feliz. A 22 de novembro, Langsdorff, Riedel e Hesse partiram ao seu encontro. (Chur, L. A., coord., 1981). Deste momento em diante, até a sua morte em 1855, Carlos Engler de alguma forma manteve contato com a expedição e seus continuadores, Hercules Florence em especial. Para exemplificar esta nossa observação, vê-se na página 89 do citado catálogo da Fundação Nacional Pró-Memória entre os materiais e documentos coletados e que se encontram na Academia de Ciências da Rússia, o seguinte: Medicina /1825, novembro de 1826, junho Uber Schlangenvergiftung (sobre envenenamento por cobras) Anotações de Karl Engler com sua própria caligrafia Folhas avulsas, formato 21,5 x 30,7 cm Idioma: alemão Fundo 63, inventário I, n- 29, folhas 1-2 (Chur, L. A., coord., 1981). O fato de haver anotações do próprio punho de Engler, nos induz à hipótese de que seu contato com a expedição não foi superficial. Com Florence, por outro lado, esta relação acabou por ser de profunda amizade conforme se nota na passagem a seguir. Segundo a biógrafa Chloé de Almeida, Florence estava na companhia de Engler e alguns franceses quando um amigo comum chamado Certain comunicou que Daguerre havia descoberto na França o
modo de fixar a imagem sobre chapa de aço polido. Nas palavras usadas por Chloé de Almeida, Hercules Florence, ao constatar que o seu silêncio fora a causa da perda de uma glória que deveria ser sua, não suportou o impacto. Teve uma síncope, e se eu (Carlos Engler) não o amparasse, teria batido com a cabeça no chão. Transportado para dentro de minha (Engler) casa e deitado no sofá, socorri-o às pressas. Felizmente, recuperou logo os sentidos, conservando, porém uma expressão abobalhada, perplexa. Pela sua modéstia, o Brasil deixou de ser o berço de uma das mais notáveis invenções deste século. (Almeida, Chloé Engler de, 1978). Muito ainda há a descobrir nos papéis dispersos sobre a atuação de Engler para posterior confrontação com o acervo Langsdorff. Voltamos a ponderar que entre os familiares eles se perderam e os diários dos diversos participantes da expedição, provavelmente, podem cobrir estas lacunas com relevantes informações para nosso objetivo. Uma das questões que mereceria ser aprofundada é a descrita por Boris Komissarov e que insinua uma outra possível faceta do Barão Langsdorff como pessoa humana, contrastante com a ausência de ambição de Engler. Nas palavras do professor russo de história: Sobre o chefe da expedição russa, (Florence) Hercules refere-se em tom neutro, mas em um trecho fornece informações que comprometem claramente o cientista: Langsdorff apropriou-se de parte da descoberta de Karl Engler sobre as propriedades medicinais da raiz cainca (chiococca racemosa) que se tornou posteriormente importante artigo de exportação da província de Mato Grosso. Ao que parece, isso foi escrito a partir das palavras do próprio Engler, com quem Florence relacionava-se nos
anos seguintes à expedição. No entanto, Langsdoiff travou conhecimento com Engler em novembro de 1825 e, sobre as propriedades curativas da cainca, escreveu em seu diário, ainda a 25 de maio de 1824, encontrando-se na fazenda de João Arruda, em Minas Gerais. A 2 de maio de 1825, Langsdorff, já um conhecido médico europeu, comunicou à Conferência da Academia de Ciências Petersburgo os resultados positivos da cura de doentes de hidropisia, através da cainca. Na cópia de 1855-59, não há referência à história da cainca. Provavelmente porque, em 1855, Engler havia falecido. (Komissarov). A confirmar esta atitude pouco louvável de Langsdorff que não é rara até nossos dias, não podemos condená-lo por isto. Temos que confrontar este posicionamento com os outros, positivos se assim podemos denominá-los. Foi Langsdorff, quem primeiro elaborou o projeto efetivo de mudança da capital do Brasil para o centro do país, em local próximo de onde hoje se encontra Belo Horizonte; propôs a criação de uma Universidade no país, intento que só no século XX aconteceria, em contraste com a América espanhola que desde 1538 possui centros universitários; apresentou projeto de colonização com trabalhadores livres trazidos da Alemanha, muito antes de Blumenau ou do Senador Vergueiro; propôs a criação de uma colônia européia em Camapuã, vislumbrando desde aquela época preocupações estratégicas; elaborou uma reforma financeira para o Brasil; foi o primeiro a utilizar arado de ferro em nossas lides agrícolas; foi também pioneiro no uso da vacina antivariólica em todo o mundo; precursor de métodos de empalhar peixes; propôs a montagem adequada da Fábrica de Ferro São João do Ipanema, cujas jazidas já eram conhecidas desde o século XVI. Enfim, este homem de temperamento forte e decidido, ao mesmo tempo que procurava ajudar os outros queria ser o primeiro em tudo. Poderia e deve ter tido mais vaidade
97 Outros Olhares que Engler. Ambos germânicos, se bem que um alemão e outro austríaco o que já é bastante diferente, ambos cientistas, ambos voltados às pesquisas na natureza. Engler se recolheu à solidão, discrição e ao nãoformalismo, enquanto Langsdorff optou por outro caminho. Talvez até por isto, tenha ficado vinte anos desligado do mundo até sua morte, enquanto o austríaco liberou suas angústias psicológicas de forma mais razoável para seu equilíbrio interior. De concreto, outrossim, é que para a ciência e o Brasil em geral o contato dos dois parece ter sido altamente compensatório e não aconteceria, provavelmente, caso não fossem interlocutores privilegiados por toda as interfaces que neste trabalho já citamos. Engler realmente faleceu em 18/9/1855 tendo sido enterrado no pátio interno da Igreja de São Francisco de Itu, hoje desaparecido. Ironia do destino, este luterano afável e tão pouco radical, tanto que foi médico particular de Feijó e casou-se duas vezes com católicas, foi sepultado num templo católico. Como ocorre amiúde nos meios conservadores, os ódios moralistas dos falsos de sempre logo se fizeram ouvir. Talvez por isto, como conseqüência, quando o pátio interno da igreja foi desmontado desapareceram algumas lápides entre as quais, a que continha o seu nome. O trabalho científico e o progresso da ciência são produtos não apenas do esforço especializado de cientistas, individuais ou reunidos em grupos ou em entidades, mas também, e principalmente, da sociedade como um todo, que os mantém e sustenta materialmente (Szmrecsányi, 1985, p. 167). Por seu individualismo e porque se autofinanciava, é provável que Engler em seu esforço às vezes quixotesco não deixou seus feitos científicos do início do século passado organizados numa instituição qualquer. Usou ele não só a cainca mas os limões, as laranjas, o quinino, a ipecacuanha, o agrião-bravo e os tamarindos para preparar soluções aos mais diversos males. Seus descendentes, algumas gerações após, ainda preservavam as receitas de sua autoria e conselhos visando a saúde e higiene. Todavia, a pesquisa até agora indica que
estes descendentes não conseguiram preservar a biblioteca, os documentos, suas anotações. A herança que ficou foi pequena e praticamente oral. Não comporta a nós numa primeira análise caracterizar Engler, Florence ou Langsdorff em suas ações ou inter-relacionamentos, como heróis ou vilões. Isto inclusive porque é muito difícil vislumbrar os anos 1820 com os olhos do fim deste século. O que aqui se pretendeu conforme no início se propôs, foi procurar afugentar do presente os demônios da história na oportuna frase de Sérgio Buarque de Holanda. E eles são muitos, aterradores às vezes. O hoje, é hoje. Ao historiador, qualquer das áreas a que se dedique, cabe resgatar o passado para entender o presente e ajudar a projetar o futuro. E este resgate se faz através do interesse de cada hoje, de cada momento da História. Vivemos um mundo novo nestes anos noventa que prenunciam um novo milênio antecipando o fim cronológico do século XX. E sem dúvida, meio ambiente é uma das exigências centrais do nosso presente até para a própria sobrevivência do planeta. Esta sábia e silenciosa mãe chamada natureza não nos renega, mas também não é milagrosa a ponto de repor, indefinidamente, as destruições que seus filhos cometem. Através do estudo da atuação de um cientista austríaco - botânico por amor, médico pelo destino - além dos inúmeros conhecimentos em outras áreas, pudemos captar um pouco do que acontecia neste país há 170 anos atrás. Este homem, atirado nos trópicos por fatores vários, amou sua natureza de adoção, respeitou os feitos e costumes do povo a que se ligou profundamente tanto que se casou, por duas vezes, com representantes das velhas famílias paulistas. A retrospectiva histórica que procuramos executar visou relembrar a importância da preservação tanto do que foi feito pela natureza quanto pelo homem. E como lembrete final, temos que as utopias as quais a humanidade cada vez mais necessita, precisam centrar-se no homem, antes de tudo.
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Os cientistas e viajantes que visitaram o nosso país, após a abertura dos portos a todas as nações amigas, ficaram admirados com a exuberância da floresta brasileira, a beleza natural do Rio de Janeiro e outros portos da costa brasileira, os costumes de um povo, que tanto diferiam dos seus e a miscigenação de raças diferentes, fato este praticamente desconhecido em seus países. Os desenhistas e pintores, que acompanhavam estas expedições científicas, tinham vindo com a função específica de reproduzirem aflora e a fauna do país. Contudo, não puderam se furtar a retratarem o que tinha de belo na mata virgem, os indígenas em seu habitai, os negros com seus costumes africanos e outras tantas paisagens que impressionavam como a natureza ainda intocada pelo homem.
100 Outros Olhares Embora alguns desenhos perdessem um pouco de seu brilho com a gravação inclusive ganhavam uma certa europeização introduzida pelo gravador que não conhecia o país - não deixaram de ser um documento pictório de uma certa época. Estes testemunhos são as fotografias de seu tempo. Através delas, podemos estudar a moda da época, quais as casas existentes em determinado trecho de uma rua e as transformações que se verificaram na paisagem. Rosemarie Erika Horch Álbum de Viajantes que Estiveram no Brasil na Primeira Metade do Século XIX
101 Outros Olhares Giustizia e Libertà: militância antifascista e conflito político na São Paulo dos anos 30 1
João Fábio Bertonha Doutorado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-Unicamp
A consolidação do regime fascista na Itália em 1926 levou os partidos políticos italianos a transferirem suas sedes para o exterior (especialmente para a França) e tentar reorganizar, fora da Itália, a luta contra a ditadura que se instaurava. Uma das vertentes dessa luta foi a criação, em 1927, da Concentrazione d'Azione Antifascista, um cartel formado pelo Partido Socialista Italiano, Partido Socialista Unitário, Partido Republicano Italiano e Liga Italiana dos Direitos do Homem. Esse organismo que durou até 1934 coordenou as ações do antifascismo não-comunista italiano nesse período.1 A Concentrazione não foi, porém, o único organismo antifascista não-comunista existente no período. Um outro movimento, o Giustizia e Libertà também atuou nesse momento, espalhando suas idéias, como também fez a Concentrazione, no mundo imigrado italiano na Europa, Américas e Austrália por isso convém escrever um pouco mais sobre ele. O movimento Giustizia e Libertà surgiu no fim de 1929, visando dar nova vida a um antifascismo abalado por contínuas derrotas para o fascismo e pelo imobilismo2 da Concentrazione. Ele supunha que os partidos tradicionais não haviam conseguido evitar os triunfos fascistas e que, portanto, deviam ser substi-
tuídos por um movimento novo, ou seja, o Giustizia e Libertà.7, Também eram questionados os valores tradicionais da Concentrazione, com sua moderação excessiva e sua visão de fascismo como um câncer acidental na história da Itália. Num certo sentido, entendemos que o Giustizia e Libertà parece ter respondido, ao menos em parte, a um desejo de renovação por parte de setores do antifascismo indignados com as políticas continuístas da Concentrazione A Esse desejo de renovação parece ter sido seguido também por boa parte da seção da Concentrazione no Brasil. De fato, são freqüentes as notícias no La Difesa (jornal dos antifascistas socialistas e republicanos ítalo-brasileiros e também porta-voz da seção local da Concentrazione de 1930 a 1934) que deixam claro o descontentamento de parte dos concentracionistas brasileiros com os rumos tomados por esta organização.5 E verdade que, ao lado destas, surgem outros artigos confirmando a lealdade dos antifascistas brasileiros à Concentrazione,6 mas que existia alguns sinais de descontentamento, é inegável. É no sentido de preencher as expectativas de renovação do antifascismo que encaixamos a sólida demonstração de entusiasmo pelo movimento Giustizia e Libertà o qual o identificamos ao tra-
Sobre a Concentmiint, vide: DEUELL Charles. Italian aniilascisl stralegies in lhe decade after Hatteolli's assassination. In; hiHin Quirttríy.i. 23. n.88, p. 47-59, 1982. DROZ, Jacques. fantiíascisme italien. In: Hisloire de rmiifiidime en Europe 1923-1939. Paris: Éditions La Decouverte, 1985. p. 25-72. fEDELE. Santi. Appunli per uno studio sul PKI negli anni delia Concenirarione Andlascista (1927-1934). In; Storii Conlempormei v. 6, n. I.p. 59-84, 1975. Sobre a ação da Concenlríiionc no Brasil vide: BERTONHA. João Fábio. 0 intiÍiímmo sodiHm iuliino de Sio PjuIo nos ms 20 e 30. Dissertação (Hestrado)-lnslilulo de filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 1994. Cujo quinto capitulo gerou este 1 artigo. No inicio, o uso do termo imobilismo nesse artigo incomodou-nos, pois parecia, que estaríamos apenas repetindo a argumentação critica de Giusddi e Libertà contra a Concentruione. Um estudo cuidadoso dos textos sobre a Concentruione indicam-nos, porém, que a análise de Giustidi e Libertà era justa: acreditando que o fascismo era um simples ocidente na história da Itália e que ele teria, portanto, uma queda nituroL os membros da Concentruione tenderam a uma quase que total falta de movimentos e açóes contra o fascismo. 0 termo imobilismo, portanto é, nesse contexto, correto. 1 As informações sobre o Giustidi e Z/ií/tí foram extraídas de: CAROCCI.Giampiero. Canlifascismo. In: Storii dltdii diHunità id oggi 7. ed. Hilano: Feltrinelli. 1986. p. 301-11. E também dos textos de: DEUELL Charles. Op. cit. DROZ, Jacques. Op, cit. FEDELE. Santi, Op. cit. 'Os militantes antifascistas ligados ao Giustidi e Libertà viam as políticas concentracionislas de moderação como análogas, a do grupo conhecido por Awtówque, formado por deputados de vários partidos, combaliam o fascismo antes que este tomasse o poder. Como o resultado desse combate foi a ascensão de Hussolini ao poder, não é de se estranhar a existência de divergências sobre a repetição de táticas e estratégias entre os antifascistas. Sobre o Arentino, vide os textos scitados na nota I. Vide as criticas ao imobilismo da Concentruione t sua visão de que o isolamento internacional destruiria o fascismo ent PETRACCONE, Pasquale. Solidarietá Democrática e Giustizia e Libertà. In: Li Diíesi. 30 mar. 1930. VI. 303. 'Vide, por exemplo: FERV0RE di consensi e solidarietá con Ia Concentrazione e La Difesa. In; Li Difesí 3 ago. 1930. VI, 319. E vários outros.
102 Onü-os Olhares
' Vide. por exemplo: IL fANGOSO e sanguinoso tramonto delia tirannia di Hussolini. In: ü Diíesi 30 nov. 1930. VI, 333. IL PROCESSO Bassanezi per il volo su Hilano rívelõ al mondo lazione eroica dei movimento Giuslizia e Liberli In: Li Di/esi 14 dez. 1930. VI. 335. E muitos outros. I Os dados a seguir vem de; DEL2ELU Charles. Op. cil. DROZ. Jacques. Op. ciL ' Ãulonomii e espirito critico são, obviamente, valores subjetivos. Para Giustim e Uberti lulonomii era a possibilidade de aluar com ações diretas de propaganda na Itália, fugindo do imobilismo da Concentririone. que já comentamos na nota 2. Já espirito critico deve ser entendido como a possibilidade de pensar alternativas para definir e combater o fascismo sem cair nos erros (ver o (asdsmo como ocidente. câncer na história da Itália, por exemplo), que eles atribuíam aos concenlracionistas. " CONTRO tutie le patacche. In: LiDiiesã. VII, 340. II HARIANI. Hario ci scrive: sono agli ordini delia Concentrazione. In: U Diíesi 7 sei. 1930. VI. 324. Bassanezi e De Rosa são ativistas do Giustiiii e Liberli<\m realizaram, respectivamente, um vôo sobre Roma e um atentado antifascista. "NOI: per Lazione, sopratutto per Lazione. In: U Diíesi 18 jul. 1931. VIII. 364. " ANTIFASCISTI. al lavoro. In: Li Diíesi 25 jul. 1931. VIII. 365. "IL PROGRAHHA rivoluzionario di Giuslizia e Libertà. In: L itiiii 16 fev. 1932. VIII, 429. Cltalia foi a versão diária do La Difesa, que rirculou em 1932. 11 Parece que Giustiiii e Uberti entusiasmou também parte dos adeptos de Frola, outro lider antifascista. Libero Battistelli, por exemplo, é mencionado no artigo de FEDELE, Santi. Op. cil., p. 72, como grande admirador e amigo de Giustiik e Uberti
balhar com o La Difesa entre o fim de 1930 e o início de 1931. Surgem, de fato, nesse momento, entusiásticas declarações de apoio ao Giustizia e Libertà1 e isso é relevante para indicar o estado de ânimo de parte da militância concentracionista no período. Não devemos, porém, superestimar esses dados e apresentar uma análise que indique uma quase rebeldia dos concentracionistas ítalo-brasileiros contra a Co/zcc/rtrazione e a favor de Giustizia e Liberta. Não é isso que ocorre. Na realidade, os militantes da seção brasileira da Concentrazione parecem reagir de forma quase automática às idas e vindas do relacionamento do Giustizia e Libertà com a Concentrazione, aceitando Giustizia e Libertà, enquanto pareça ser aliado íntimo da Concentrazione, e negando-o depois disso. Vejamos esse ponto melhor. Quando do surgimento do grupo Giustizia e Libertà, houve alguns atritos com a Concentrazione* Para tentar resolver isso, os dois grupos chegaram a. um acordo (julho/1931), pelo qual Giustizia e Libertà entrava na Concentrazione e concentrar-se-ia na atividade antifascista na Itália, enquanto o órgão concentracionista se dedicaria à militância com os grupos de italianos emigrados. Esse acordo durou pouco, pois nem os órgãos constituintes da Concentrazione (PSI, LIDU, PRI e CGT) desejavam parar de fazer propaganda na Itália, nem Giustizia e Libertà queria realmente perder sua autonomia e espírito crítico9 frente ao imobilismo dos partidos tradicionais. Já no início de 1932, o acordo é rompido e as relações entre Giustizia e Libertà e Concentrazione pioram com o passar do tempo. Toda essa trama internacional refletiu-se na situação vivida pelo antifascismo italiano em São Paulo. No começo, Giustizia e Libertà e Concentrazione pareciam ser um único organismo; A Concentrazione criou um organismo seu - Giustizia e Libertà - para a propaganda, para a ação, para a luta, na Itália.
E isso tornava as coisas mais fáceis: pertencer ao Giustizia e Libertà e à Concentrazione significava a mesma coisa. Até Mario Mariani, notório líder antifascista ítalo-brasileiro, chega a escrever que havia criticado a Concentrazione em 1927 por seu imobilismo. Agora, Tpovém,<iConcentrazioneí Defende De Rosa, exalta Bassanezi, torna-se a sucursal exterior do movimento insurrecional italiano Giustizia e Libertà. Eu estou às ordens da Concentrazione." Isso a eximia de todos os pecados anteriores. Ser um defensor de Giustizia e Libertà e da Concentrazione não constituía, pois, nenhum paradoxo. Pelo contrário. A situação altera-se à medida que as relações entre a Concentrazione e Giustizia e Libertà começam a se deteriorar. Os concentracionistas brasileiros começam a questionar as posições de Giustizia e Libertà, a manifestar solidariedade com a Concentrazione*2 e a defender que esta não se resigne a um papel fora da Itália, mas que atue também dentro.13 Surgem, pois, posições concentracionistas. Existem sinais de que pelo menos parte dos concentracionistas insistiu em ficar a favor das posições de Giustizia e Libertà. Num artigo de L'Itália de fevereiro de 1932,14 por exemplo, faz-se um histórico de Giustizia e Libertà e defende-se a tese de que apenas os conservadores se afastaram dele. Os verdadeiros revolucionários continuariam com ele. Sinal, pois, de alguma divergência interna ao concentracionismo. Esses sinais de divergência não devem, porém, nos iludir. Apesar desses e de outros sinais15 de que a atividade do Giustizia e Libertà não passou desapercebida no mundo antifascista italiano do Brasil, não há indícios no sentido de formação de uma seção brasileira de Giustizia e Libertà. De um lado, isso é natural (pois, como já foi ressaltado, os acordos entre os dois grandes organismos antifascistas previam a ação de Giustizia e Libertà apenas na Itália), mas
nos parece estranho que, após o rompimento da aliança ConcentrazionelGiustizia e Libertei em 1932 e até o fim desse último em 1937, não hajam sinais de militantes de Giustizia e Libertà no Brasil. A explicação para tal fato ainda é uma incógnita. De qualquer forma, percebe-se como a conjuntura do antifascismo no exterior se refletiu imediatamente na situação vivida no Brasil e isso é relevante, ao indicar, como os antifascistas ítalo-brasileiros pertencem a um conjunto maior de preocupações, o qual cobre todo o mundo ocidental no período. Dizer isto, ou seja, reforçar a idéia da interligação intelectual mundial dos antifascistas ítalo-brasileiros nesse momento não significa afirmar, contudo, que todo o seu pensamento fosse mera cópia de algo imposto de fora. Pelo contrário, o processo nos parece ser muito mais dinâmico. Entendemos que os líderes do antifascismo ítalo-brasileiro como Piccarolo e Mariani aproximaram-se da Concentrazione devido a afinidades evidentes de seus pensamentos com o manifestado por aquele organismo. Uma vez ligado a ela, absorveram e reelaboraram tal pensamento conforme suas próprias idéias e interesses e
segundo a situação vivida no Brasil. O mesmo ocorre com Frola e os outros líderes antifascistas em relação ao Giustizia e Libertà. Nem simples absorção, nem independência total, mas um processo dinâmico de troca de idéias e experiências, de criação e redefinição que marcou o movimento antifascista italiano no Brasil. É fundamental ter consciência, de fato, de que boa parte dos debates e das situações vividas pelos antifascistas em São Paulo eram derivações - obviamente remontadas e reelaboradas localmente - de problemas oriundos de um contexto maior. Essa demonstração de que os antifascistas locais estão inseridos num duplo contexto (local e mundial) pode ser demonstrada pelo que já apresentamos sobre a ação de Giustizia e Libertà no Brasil: não houve ignorância do que se passava na Europa, mas por alguma razão parece não ter havido ação independente de Giustizia e Libertà em São Paulo. Sinal de que o contexto interno também contava ao qual devemos reportar-nos para tentar explicar essa estranha ausência na luta antifascista italiana no Brasil de entreguerras.
Processo Humano - História
Juaceni Mastrângelo Abreu dos Santos
Do nada o tudo Uma transformação constante Recuo e avanço Uma busca de eternidade Ou uma caminhada para a estética Trata-se de toques de arte Enraizamento cultural natural e artificial Poder e diferença se exaltam Proferem-se discursos eloqüentes e envolventes São defesas e ataques Percebe-se a construção e a reconstrução Emerge a resistência A sensibilidade quer ser mais forte Os sistemas sugam detalhadamente Cadê o riso desvairado? A boca cariada explode num sorriso de esperança Mas prevalece o ter e não o ser E a História tempo do tempo movimenta as incertezas Com registros, métodos, interpretações e críticas E interferência e ação De forma que é uma interação Tudo isso é História, é o homem, é um processo.
Entrevista com a historiadora Maria Alice Rosa Ribeiro Com o seu último livro - História sem fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo 1880-1930 - a professora Maria Alice Rosa Ribeiro, que leciona História Econômica Geral e Formação Econômica do Brasil na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, ganhou o Prêmio Jabuti - Ciências Humanas de 1994. Passou um ano na Inglaterra, como Honorary Research Fellow, no Institute of Latin American Studies da University ofLondon, e foi de lá que nos concedeu esta entrevista. O livro foi lançado pela Editora da Unesp, trazendo apresentação do professor José Enio Casalecchi e prefácio do escritor Moacyr Scliar. O seu livro História sem fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo 1880-1930foi distinguido com o Prêmio Jabuti - Ciências Humanas de 1994. Como recebe esse galardão e o que ele significa para a sua carreira universitária e de intelectual? Ter sido agraciada com o Jabuti significou um enorme reconhecimento pelo trabalho de pesquisa e de reflexão sobre a sociedade brasileira. Na verdade, eu senti uma recompensa e um estímulo ao trabalho de investigação, de busca de novas fontes que registram a nossa história. O prêmio manifestou, realmente, a valorização do ofício do historiador no resgate da nossa história. Tendo em conta que o seu primeiro livro, resultante da Dissertação de Mestrado, você estudou o trabalho na indústria têxtil paulista e este segundo procede a um inventário da saúde pública, a que se deve tal mudança na linha de pesquisa e no tema? No livro Condições do Trabalho na Indústria Têxtil Paulista 1870-1930, co-editado pela Hucitec e Editora da Unicamp, trato da industrialização do Estado de São Paulo, sob uma ótica pouco explorada em estudos sobre um setor industrial - a do processo de trabalho, das relações entre trabalhadores e o capital e das condições de trabalho dentro da fábrica. A pesquisa envolveu o levantamento de documentos sobre as fábricas de fiar e tecer algodão. Nesse sentido, as fontes operárias, as fontes oficiais e das empresas serviram para recons-
truir as condições de trabalho têxtil: o processo de trabalho, o ambiente fabril, a disciplina, a divisão do trabalho, a hierarquia, a direção, a jornada de trabalho, os salários e para registrar a presença de uma mão-de-obra especial - mulheres e crianças. Eu penso que o tema do meu livro História sem fim... Inventário da Saúde Pública guarda relação com o trabalho anterior, embora não-explícita ou não-visível à primeira vista, o tema de ligação entre ambos talvez seja a formação do trabalho livre e as condições dos trabalhadores pobres na sociedade paulista, no último quartel do século dezenove às primeiras décadas do século XX. As diferentes abordagens condições de trabalho, processo de trabalho, condições de vida e de saúde - remetem para a questão da constituição e das transformações do mercado de trabalho numa sociedade que se incorpora à produção capitalista. Após a realização da minha Dissertação de Mestrado, eu coordenei, no Departamento de História da Unicamp, uma pesquisa sobre a formação do trabalhador assalariado que abordava o tema da qualificação e da formação profissional do trabalhador urbano. O tema do mercado de trabalho, novamente, é tratado só que de uma outra perspectiva: a da educação do trabalhador e da sua formação profissional. Este trabalho foi publicado pela Editora da Unicamp, com o título Trabalhadores Urbanos e o Ensino Profissional. Portanto, eu penso que embora os temas sejam distintos, eles convergem para um tema maior: a questão das condições
de vida dos trabalhadores - trabalho, educação e saúde. Em que, especificamente, a mudança de regime político, de Monarquia para República, afetou, no Estado de São Paulo, as políticas de saúde pública? A mudança de regime afetou de forma marcante a situação de São Paulo não só em termos econômicos, pois representou a autonomia do estado na gestão de uma política econômica voltada para os seus interesses, como também no que diz respeito à implementação de uma política de formação do mercado de trabalho. Isto é extremamente significativo, pois trata-se do estado assumir a responsabilidade de constituir o mercado de trabalho livre, por meio de uma experiência inovadora - a do financiamento da imigração - distinta de todas as outras formas de criação do trabalho assalariado para o capital. Aqui não se repetiu a expropriação maciça de trabalhadores do campo, como foi na Inglaterra e nos demais países europeus. Ao garantir o trabalho em abundância, de modo a não comprometer a expansão da economia para o capital cafeeiro, o estado arcou com uma agenda social, pouco percebida, ou melhor, ignorada pelaMonarquia. A entrada de um número extraordinário de imigrantes (homens, mulheres e crianças) trouxe para a sociedade paulista problemas relativos à população e às desigualdades, pois tratavam-se de homens livres. A sociedade paulista viu-se frente a uma massa de miseráveis, como bem expressou Mario de Andrade: Os seres do navio de emigrantes são de todas as nacionalidades, apenas os fugitivos das distribuições defeituosas, os enxotados, os que serãò sempre demais para os que pretendem gozar o luxo do mando total. Portanto, a organização da corrente imigratória não foi a única tarefa absorvida pelo estado, com ela veio o aumento acelerado da população, a rápida urbanização e a necessidade de construir uma infra-estrutura institucional capaz de atender minimamente os problemas sociais, como saúde, educação e emprego. É a partir da República e da organização da imigração subvencionada que o aparato ins-
titucional da saúde pública passa a ser montado, com a criação de instituições sanitárias específicas, como o Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, o Instituto Bacteriológico (mais tarde Instituto Adolfo Lutz) o Desinfetório Central, o Instituto Vacinogênico etc., e com a elaboração de uma legislação sanitária voltada para os problemas das camadas mais pobres da população. Sendo Doutora em Economia e já tendo uma obra anterior voltada para a História Econômica, como situa este livro, cujo tratamento temático tende a uma história social, pela sua abrangência? Esta é uma questão difícil de responder, porque exige a definição de campos específicos do conhecimento. Eu penso que os meus estudos estão situados na interface da história econômica e social. E impossível trabalhar a história econômica ou a economia, sem cotejar seus desdobramentos sociais. Economia é uma ciência social, antes de tudo, apesar das tentativas de escamotear o seu caráter e torná-la uma ciência próxima das ciências exatas ou das ciências da natureza. Fugindo um pouco da questão, atualmente, percebe-se que os economistas têm se esforçado em escamotear o caráter social da economia, nos sucessivos planos econômicos, desde o malfadado plano cruzado, eles nos brindam com pérolas do tipo: plano tecnicamente perfeito ou tecnicamente correto, como se o plano fosse aplicado num laboratório com todas as variáveis de temperatura e pressão sob controle. Embora o seu estudo esteja explicitamente voltado para o fato urbano, você tem condições de dizer alguma coisa sobre a saúde pública no meio rural de São Paulo no mesmo período? Eu não vejo o meu estudo como voltado explicitamente para o fato urbano. Ocorre que a política de saúde pública vem à tona motivada por razões ligadas ao crescimento populacional e à concentração da população nas cidades, sem que estas disponham de infra-estrutura mínima como água, esgoto, limpeza pública. Além disso,
UM f* j a precariedade das condições de vida na cidade é mais visível. A miséria convive lado a lado com a riqueza, elas estão muito próximas e em freqüente contraste, o que constitui constante ameaça. Já no meio rural, a miséria aparece mais diluída, ela perde visibilidade na imensidão do horizonte, confunde-se com a natureza e com a paisagem. Agora veja bem, em São Paulo, as epidemias influenciaram fortemente a tomada de medidas de saúde pública e essas epidemias seguiam o caminho dos imigrantes na direção das plantações de café. No meu livro, o primeiro capítulo trata das epidemias de febre amarela, cuja incidência maior era entre os imigrantes vindos para as fazendas de café. E certo que as epidemias concentravam-se, principalmente, nas cidades portuárias, como Rio de Janeiro e Santos, porém desta última cidade, elas se alastraram pelo interior, ou seja, para a região cafeeira, para onde iam os trabalhadores imigrantes. Logo, combater a febre amarela tornou-se uma questão fundamental para viabilizar a política imigratória. No
capítulo terceiro, eu retomo a questão das condições de saúde no meio rural para mostrar que, depois dos combates à febre amarela e da descoberta do seu vetor transmissor - o mosquito - o meio rural foi abandonado às doenças, como o tracoma, a ancilostomíase ou amarelão e a malária. Finalmente, eu encontro o trabalhador nacional, o Jeca do Monteiro Lobato, opilado, largado ao seu próprio destino e rotulado de preguiçoso. É então, que o meio rural passa a ser objeto específico da política de saúde, com um código sanitário próprio. Tem projeto de algum novo livro? No momento, eu estou envolvida em uma pesquisa sobre a indústria e o mercado de trabalho na cidade de São Paulo entre 1914 e 1945, ainda não sei bem a que resultados vou chegar e da contribuição desse estudo, ou seja, se ele é capaz de trazer alguma coisa relevante, passível de ser publicada. Eu não pensei em livro, mas talvez num artigo.
Mana Alice Rosa Ribeiro HISTORIA SEM FIM... Inventário da saúde pública
ÜNESP
Onüos Olhares
108 Outros Olhares O Projeto de Pesquisa: o conteúdo e seus itens Célia M. Marinho de Azevedo Professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas- Unicamp
Este texto foi escrito pensando nos estudantes que pretendem escrever um projeto de pesquisa, mas não sabem bem como começar. Os itens do projeto, tal como sugeridos aqui, são aqueles comumente exigidos pelas instituições de apoio e auxílio à pesquisa. Mas os itens, é claro, nada dizem sobre o conteúdo que se lhes deve dar. As sugestões apresentadas abaixo seguem a orientação que venho dando aos alunos que me procuram às voltas com o problema de como fazer um projeto. Embora eu acredite que várias destas sugestões não se diferenciem muito da orientação dada por outros colegas de ofício, é preciso deixar claro que o que se segue é de minha responsabilidade única e exclusiva, não devendo ser tomado como posição geral do Departamento ao qual pertenço. Como historiadora, pensei em conteúdos apropriados a projetos de pesquisa em história. Mas é possível que algumas destas sugestões também possam auxiliar os estudantes das outras ciências humanas a enfrentar o difícil momento de transformar grandes idéias em projetos de pesquisa. O projeto de pesquisa começa a partir do próprio tòw/o, o qual deve ser bem claro e conciso, devendo expressar o objetivo básico do projeto; evitem-se títulos literários que nada esclarecem (em folha de capa, juntamente com nome, título acadêmico do candidato, universidade e ano da obtenção do título). Na página seguinte, fazer um índice dos itens e respectivas pá-
ginas. Em seguida, desenvolvam-se os seguintes itens: I - Introdução (1 ou 2 páginas): apresentação do tema e sua justificativa de forma sumária; deve situar o leitor de forma objetiva desde a primeira linha. II - Balanço bibliográfico (cerca de 10 páginas): o balanço da bibliografia sobre o assunto da pesquisa deve organizarse em torno de um eixo bem definido desde o início. Aconselha-se evitar divagações. O balanço não visa tão somente provar que o autor do projeto está bem ciente dos principais estudos e debates (clássicos e mais recentes) em torno do assunto, mas deve estar sobretudo conectado com a proposta de pesquisa. Por isso, o autor deve fazer perguntas bem definidas à bibliografia, evitando divagações que fujam do assunto da pesquisa. Estas perguntas dirigidas à historiografia, cujas respostas devem ser trabalhadas ao longo deste balanço bibliográfico, devem ajudar o autor do projeto a formular seu tema e uma ou mais hipóteses a serem explicitadas no próximo item. O balanço deve também provar para quem avalia o projeto de que o proponente tem condições de ir além da bibliografia existente e de no futuro oferecer contribuições efetivas. Observações importantes: 1 - O balanço deve mostrar que o conhecimento acumulado pelo proponente
sobre o assunto permitirá a ele se mexer com desenvoltura e pisar em terreno seguro no momento da pesquisa. Por isso mesmo, dispensem-se citações e referências impressionistas a autores do tipo, fulano em seu brilhante estudo, sicrano em seu excelente artigo. Se o proponente considera um estudo excelente e brilhante, é melhor que ao invés de adjetivá-lo, demonstre ao longo do texto porque, e em que, ele é tão importante para esta área de estudos. Os elogios a autores nada dizem se tiverem como única função preencher o espaço na página, e muito menos se os membros da banca examinadora estiverem entre os autores elogiados. Não há nada pior do que passar uma impressão de subserviência, sobretudo quando se trata de um projeto de pesquisa científica e que visa construir uma carreira intelectual. Por outro lado, as críticas a autores devem ser sempre muito bem fundamentadas. Evite fazê-las, escorando-se em críticas já feitas por outros autores. Se o autor do projeto concorda com a crítica feita por sicrano a fulano, reproduza o debate com suas próprias palavras e de preferência tente ir além dele, levantando questões próprias relacionadas com a proposta do projeto. 2 - Evite fazer citações extensas. Deve-se reproduzir com as suas próprias palavras a tese de alguém; é preciso lembrar que a citação constitui trabalho alheio e que estará ocupando espaço em branco a ser preenchido pelo trabalho do autor do projeto. Em países onde os direitos autorais são levados a sério, a citação extensa de um autor pode ser considerada reprodução ilegal de texto alheio. 3 - Todas as citações, e também todas as reproduções não-textuais do pensamento de alguém, devem se fazer acompanhar de notas bibliográficas (nome de autor, título da obra grifado, local de publicação, editora, ano de publicação) corres-
pondentes. É preciso nestas notas citar as páginas referidas no texto, de modo a permitir que quem avalia o projeto possa conferi-las. III - Objetivos da pesquisa (cerca de 3 páginas): este item deve explicitar e desenvolver o que já foi acenado na Introdução. E este o momento para apresentar o tema de pesquisa, bem como a hipótese ou hipóteses decorrentes, ou seja, as proposições que o autor pretende provar através do trabalho de pesquisa. As hipóteses podem ser apresentadas na forma de questões ou de afirmações, mas deve ficar claro que elas precisam ser ainda provadas. O projeto perde a sua razão de ser, se passar a impressão, de que se pretende provar o que já se tem como uma certeza, ao estilo dos panfletos políticos. A formulação destas hipóteses deve ter uma estreita correlação com o balanço bibliográfico anterior, isto é, elas devem surgir das questões dirigidas à bibliografia pelo proponente do projeto, bem como do modo como ele trabalhou esta bibliografia e das conclusões a que ele chegou. Além das hipóteses, é preciso abrir dois subitens: o espaço da pesquisa e a sua periodização. Tanto em termos de espaço quanto de periodização é preciso oferecerse uma argumentação lógica; de modo algum o autor deve dar a impressão de que o espaço da pesquisa foi escolhido porque fica perto de casa, ou que a periodização deve-se ao fato de que o conjunto de documentos que se encontram no arquivo perto de casa só vão do ano tal a tal. Embora estes sejam argumentos de ordem extra-acadêmica importantes, eles não têm importância alguma, se se resumirem a isso, e podem mesmo ajudar a inviabilizar o projeto de pesquisa (quem é que vai financiar uma pesquisa se se suspeitar que as justificativas se resumem a preocupações paroquiais
110 Outros Olhares com o conforto doméstico do candidato?). Em suma, é preciso argumentar em termos de espaço e periodização com base no conhecimento que se tem da bibliografia sobre o assunto; outra vez, a formulação destes dois subitens deve ter uma estreita correlação com o balanço bibliográfico anterior.
selecionadas, e adiantar a maneira como se pretende trabalhá-las. As técnicas de pesquisa podem ser demonstradas a partir de um trabalho de pesquisa preliminar. Ou então, elas podem ser nomeadas quando já se apresentam mais sistematizadas, como nos casos de história quantitativa e história oral.
IV - Planejamento da pesquisa (1 página): deve-se aqui apresentar um cronograma bem planejado da pesquisa desde os seus passos iniciais até a redação final. E importante demonstrar que o projeto pode ser desenvolvido e concluído dentro de um determinado período (de preferência aquele coberto pelas agências financiadoras).
VI - Recursos para a pesquisa (cerca de 2 páginas): aqui é preciso oferecer um mapeamento das fontes da pesquisa, dos períodos cobertos por elas, bem como dos seus arquivos.
V - Métodos e técnicas de pesquisa (cerca de 2 páginas): não se espera aqui nenhum manual de receitas prontas, mas é preciso esclarecer que tipo de pesquisa se pretende fazer e o porquê da proposta. Trata-se de história oral? História quantitativa? Análise de discurso? História comparada? História social combinada com outros campos disciplinares, como por exemplo, a antropologia e a literatura? Em suma, a discussão metodológica deve partir do modo como o autor do projeto se situa teoricamente combinado com o balanço crítico que ele já fez da bibliografia sobre o assunto. Quanto às técnicas, é importante que se explicite o modo como as fontes serão
VII - Bibliografia: deve ser apresentada de forma organizada, separando-se a lista das fontes primárias (manuscritos, livros, panfletos, periódicos) das fontes secundárias. Além disso é bom desde já apresentar em itens separados as teses acadêmicas, os artigos, os livros. A bibliografia deve apresentar apenas material relacionado à pesquisa, evitando-se incluir tudo o que já se leu na vida. Por fim, o projeto deve ser redigido em linguagem clara, objetiva e adequada em termos gramaticais. Evite-se tentar fazer literatura ou demonstrar erudição a todo custo. A argumentação lógica, com base no conhecimento aprofundado sobre um dado assunto, é essencial para provar a viabilidade de um projeto.
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Outros Olhares Grupo Urbando Manifesto Pode-se até reconhecer que eles são o bando da urbe. Mais uma das Iríbus que ao se identificarem e se reunirem não se confinaram a espaços contudo, como os demais, pois na verdade o seu espaço é a cidade com os seus vazios e os seus vcdos. Vieram ao Centro de Memória, a nosso convite, para darem o seu recado, provocando saudáveis debates e se foram. Mas esperamos que voltem sempre. Por isso mesmo, Outros Olhares abre espaço para o Manifesto que deixaram. São dez arquitetos e urbanistas, todos formados pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Pucc), que há dois anos se reúnem sistematicamente, às quartas-feiras, às 19 horas, no casarão do MIS, no Largo do Café. O seu Manifesto mostra que ainda é possível educar os nossos sentidos e sentimentos para que outros olhares e outras práticas possam preservar a cidade que todos queremos. Que ao menos os sussurros do tempo não deixem de falar sobre o inconformismo e a indignação que se levantam. Bandeirantes e colonos europeus devastaram florestas e expulsaram índios neste continente. Aqui, entre os paralelos 20 e 25 sul, plantaram café e construíram cidades à semelhança das suas. Uma delas é hoje a Capital, megametrópole contraditória; as outras, menores e dispersas em direção a oeste, compõem o chamado Interior, berço do Grupo. O Grupo recusa-se a contentar-se com o legado. Sem florestas e sem índios, e sem também a ilusão do mundo civilizado (privilégio da Capital), pouco nos restou. As cidades do interior nunca chegaram a participar das grandes correntes culturais e sociais da nova nação tropical. No entanto, as migalhas dessas correntes fizeram delas um mundo além de tropical, capial.1 Cidades cheias de gente, e não de cidadãos. Cidades cuja história é tão curta e tão copiada de outras histórias que ninguém parece ter participado dela. E como são parecidas, essas cidades... Em menos de meio século, o pouco que havia sido copiado dos europeus foi apagado para dar lugar ao que seria copiado dos Estados Unidos. Dentro da possibilidade tropical, transformaram-se em grandes centros urbano-industriais, espetadas por arranha-céus de um terço da altura dos originais. Cidades que se tornaram inacabados espectros. A condição capial parece denotar o sentimento de rejeição do habitante da cidade interiorana pela sua própria cidade, por histórias das quais não crê ter participado. O Grupo exige que o habitante aceite a cidade na qual vive, com sua história curta e copiada, como premissa básica para dela
se tornar cidadão. Ou que então se mude para a Capital. É pouco. O Grupo exige que o habitante se comprometa com a nova história da cidade, a ser construída com reflexão e com a busca do sentimento de lugar - das florestas e fazendas que aqui estavam, da topografia, dos cursos d'água, daquilo que foi construído e demolido, daquilo que foi feito e do que foi esquecido. Nem todas as histórias puderam ser copiadas e muitas delas foram autênticas, pois que emanaram do lugar. Que sejam resgatadas. Campinas, 25 de outubro de 1994 Telefones Urbando: Aline Biagi da Luz André Augusto Hauser Castilho esc.: 233-7170 res.: 972-8278 e 871-8091 FláviaBallerini 233-7170 Maria Silvia Franca Leme 233-7170 253-6771 Edilene Donadon 236-9166 231-8867 Renata Marangoni 236-9166 252-1994 Evandro Zigiatti 236-9166 res.: 254-6097 e 231-2511 Unicamp: 239-7650 ramais 24, 29 ou 30 Claudia Roque 251-0099 252-1994 Marcelo Bertolini 254-2642 251-3019 234-0059 Vanea Santos
1
Cipiit- segundo o glossário do Grupo, adjetivo que caracteriza o inuríonno que dissimula ares e maneiras da capital, sem notar que. na dissimulaçáo, (ica mais evidente sua rejeito por suas origens, e. na mesma proporção, seu fracasso em escondê-las.
na Outros Olhares Aos colaboradores
01 - Revisti Outros Olhares aceitará trabalhos inéditos de colaboradores, que tratem de temas relacionados às áreas de Ciências Humanas, Letras e Artes. 02 - Os originais não poderão exceder a 15 páginas digitadas, tamanho A-4 ou carta, 25 a 30 linhas de espaço duplo, com 60 a 70 bytes. Deverá ser enviada uma cópia em disquete (original digitado no Word em qualquer versão) e uma cópia em papel. 03 - Os trabalhos serão submetidos à Comissão Editorial, que poderá aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões para alterações. 04 - A Comissão Editorial não se compromete a devolver os originais não-publicados. 05 - A revista permite-se fazer pequenas alterações no texto. No caso de alterações substanciais, elas serão sugeridas ao autor, que fará a devida revisão. 06 - Os autores receberão 10 (dez) exemplares do número da revista em que seu artigo for publicado. 07 - A primeira página do original deverá conter; título do artigo, nome(s) completo(s) do(s) autor(es) e crédito(s) do(s) autor(es). 08 - Ilustrações: -fotografias devem ser nítidas, em papel brilhante, preto e branco, tamanho mínimo 9 x 14 cm, com legendas e assinalado o local das inclusões no texto pelo número de ordem; - quadros e tabelas devem ser acompanhados de títulos e cabeçalhos que permitam compreender o significado dos dados reunidos; -figuras devem ser apresentadas em papel branco, de preferência a nanquim, tamanho máximo 20 x 30 cm, com legendas e assinalado o local das inclusões no texto pelo número de ordem. Para reimpressão de fotografias, figuras, quadros e tabelas extraídas de outros textos, deverá ser indicada a fonte de referência. 09 - Notas de rodapé deverão ser indicadas no final de cada página correspondente. 10 - Referências bibliográficas deverão ser normalizadas de acordo com a NBR 6023. 11 - Endereço para envio de colaboração:
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Lançamentos do Centro de Memória
COLEÇÃO INSTRUMENTOS DE PESQUISA
Correspondência Passiva de Francisco Glicério Fernando Antonio Abrahão (org.) Pretende-se, neste segundo volume da Coleção, resgatar parte da trajetória do Movimento Republicano no Brasil, através da publicação de transcrições integrais de aproximadamente duzentos manuscritos - correspondência recebida - que compõem o arquivo do republicano e abolicionista Francisco Glicério de Cerqueira Leite. As cartas são de autoria de personagens ilustres, tais como: Rui Barbosa, Campos Salles, Prudente de Moraes, Bernardino de Campos, Quintino Bocaiúva, Benjamin Constant, Floriano Peixoto, Herculano de Freitas, Saldanha Marinho, Júlio de Mesquita, Américo Brasiliense, entre muitos outros. Estes documentos estão organizados e acessíveis aos interessados na Área de Arquivos Flistóricos do CMU.
Correspondência Passiva de Francisco Glicério Fernando Antonio Abrahão
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COLEÇÃO CAMPINIANA
"Ide por Todo Mundo": a Província de São Paulo como campo de missão presbiteriana 1869-1892 Marcus Albino Neste terceiro volume da Coleção, aborda-se uma das Maicus Albino principais obrigações a ser constantemente desempenhada pela igreja cristã que foi estabelecida pelo seu próprio fundador, qual seja: propagar sua mensagem e levar à frente a p obra por Ele iniciada. A partir da segunda metade do século XIX, protestantes americanos das mais diferentes confissões entendiam que, por ser o Brasil uma nação marcada pelo catolicismo romano, carecia da iniciativa deles em levar a sua versão da mensagem evangélica missionária. Baseados nesta tradição, os protestantes da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos resolvem iniciar um trabalho missionário no Brasil. Esta decisão surge com o fim da Guerra Civil Americana, quando grupos sulistas imigram para o Brasil. C CM1 Coube então ao rev. George Nash Morton a função de visitar o Brasil em 1869 e colher informações para o Comitê Executivo, sobre qual seria o local mais adequado. Campinas foi a cidade escolhida por ser possuidora de uma infra-estrutura mínima necessária aos americanos para a implantação de sua sede e por estar próxima a um dos maiores núcleos de imigração norte-americana. Rev. Morton juntamente com o rev. Edward Lane chegam à cidade em 1870 para o cumprimento de seu ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura.
RESGATE
O Centro de Memória, juntamente com a sua Área de Publicações, está reativando a revista Resgate, cujo n- 6, parcialmente financiado pela Fapesp, deverá ser lançado em setembro próximo, com periodicidade semestral. Revista interdisciplinar de cultura entre cujos objetivos está o de promover diálogo e debate com a sociedade, capazes de mediar o conhecimento acadêmico com a prática de vida que se desenrola, em termos de cultura, fora dos muros da universidade. Artigos & Ensaios A Abolição da Escravidão como Etapa Fundamental da Transformação Burguesa do Estado no Brasil Décio Saes Objetividade e Lirismo na Iconografia da Expedição Langsdorff José Maurício S. Aívarez Identidade, Cidadania e Democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil Kabengele Munanga Concepção de Sociedade na Obra de Lindolfo Collor Roberto A. 0. Santos Demandas Populares e Educação - aspectos sócio-culturais da cidade de Campinas na Primeira República Rosa Fátima de Souza Comunicações São Paulo S.A. Laymert Garcia dos Santos Poesia Viagem de Volta à Casa da Memória Carlos Rodrigues Brandão Debate Menocchio e Rivière: a palavra construída Giadys Sabina Ribeiro 0 Homem Genérico como Telos Imanente da História: o mito "religioso" de Marx José Crisóstomo de Souza Resenhas Vida e Ocaso de um Anarquista Eiiana Regina de Freitas Dutra Marcelo Piacentini Marcos Tognon Combates & Rituais A Infância Assistida Ethel Kosminsky Eleitores e Eleitos: os agentes do poder em Campinas, na segunda metade do século XIX Wanda Moreira Magalhães Urbanização e Sistema de Saúde na Região de Campinas Kieber Pinto Silva Caiçaras, Migrantes e Turistas: a trajetória da apropriação da natureza no litoral norte paulista Maria Tereza D. P. Luchiari Engenho e Arquitetura. Morfologia dos edifícios dos antigos engenhos de açúcar de Pernambuco Geraldo Gomes
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O CARNAVAL NOS FOLGUEDOS POPULARES BRASILEIROS MARLYSE MEYER CARNAVAL EM SÃO JOÃO DEL REI: QUANDO A TRISTEZA É l|pOSTA PARA COMPROMETER A FESTA IÊDA MARQUES BRITO ENTRAL DE CAMPINAS ANA CLÁUDIA FONSECA BREFE E CRISTINA MENEGUELLO :OS APOSENTADOS DAS OFICINAS DA COMPANHIA PAULISTA DE ESTRADA DE FERRO DE RIO CLARO - 1930 E 1 940 LILIANA BUENO DOS REIS GARCIA O NEGRO E O MERCADO DE TRABALHO NO INTERIOR PAULISTA LUCILA BANDEIRA BEATO IDIOSINCRASIA Y ARQUITECTURA EN MÉXICO CARLOS R. MARGAIN ARAÚJO A MULHER E A DÉCADA DE VINTE MÍRIAM LIFCHITZ MOREIRA LEITE V1T1MIZAÇÀO. CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ALBAZALUAR A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NOS ÚLTIMOS 20 ANOS: TENIAIIVA DE AVALIAÇÃO CRÍTICA CARLOS FICO E RONALD POLITO UMIf
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DORFF: O BOTÂNICO E MÉDICO AUSTRÍACO CARLOS ENGLER
PLÍNIO GUIMARÃES MORAES GIUSTIZIA E LIBERTA: MILITÂNCIA ANTIFASCISTA E CONFLITO POLÍTICO NA SÃO PAULO DOS ANOS 30 JOÃO FÁBIO BERTONHA
PROCESSO HUMANO - HISTORIA JUACENI MASTRÂNGELO ABREU DOS SANTOS
MARIA ALICE ROSA RIBEIRO
O PROJETO DE PESQUISA: O CONTEÚDO E SEUS ITENS CÉLIA M. MARINHO DE AZEVEDO GRUPO UR8ANOO - MANiPESTO