Resgate nº 35 - Dossiê História Econômica e Demografia Histórica (Parte 2)

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r e v i s t a

Resgate História Econômica Demografia Histórica Parte 2

COMUNICAÇÃO & PUBLICAÇÕES

Volume XXVI, n. 1 [35], jan./jun. 2018


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor: Marcelo Knobel COORDENADORIA DE CENTROS E NÚCLEOS (COCEN)

Coordenadora: Ana Carolina de Moura Delfim Maciel

CENTRO DE MEMÓRIA – UNICAMP

Diretora: Ana Maria Reis de Goes Monteiro Diretor Associado: Jefferson de Lima Picanço CONSELHO CIENTÍFICO - CMU

Ana Maria Reis de Goes Monteiro (Presidente) Jefferson de Lima Picanço (Diretor Adjunto) Josianne Francia Cerasoli (Assessora de Pesquisa) Ana Maria Galdini Raimundo Oda André Luiz Paulilo Antonio Carlos Galdino Carlos Alberto Cordovano Vieira Edivaldo Gois Junior Eliana Moreira Ema Elisabete Camillo Evandro Ziggiatti Monteiro Janaina Pamplona da Costa José Roberto Zan Juanito Ornelas de Avelar Maria Sílvia Duarte Hadler Ricardo Figueiredo Pirola Rosaelena Scarpeline


EDITORES Ana Maria Reis de Góes Monteiro Jefferson de Lima Picanço COMITÊ EDITORIAL Carmen Lucia Soares (FEF/Unicamp) Heloísa Helena Pimenta Rocha (FE/Unicamp) Iara Lis Schiavinatto (IA/Unicamp) Maria Stella Martins Bresciani (IFCH/Unicamp) CONSELHO EDITORIAL Ana Mauad (UFF) Anderson Araújo Oliveira (Université du Québec è Montreal, Canadá) Benito Bisso Schmidt (UFRGS) Joan Pagés (Universitat Autònomade Barcelona, Espanha) Josianne Frância Cerasoli (IFCH/Unicamp) Luciene Lehmkuhl (UFU) Márcia Ramos (Udesc) Maria Stella Bresciani (Unicamp) Miriam Paula Manini (UnB) Mônica Raisa Schpun (CRBC/EHESS, Paris, França) Regina Beatriz Guimarães (UFPE) Richard Cándida Smith (University of California, Berkeley, EUA) Roberto Elisalde (Universidad de Buenos Aires, Argentina) Valéria Lima (Unimep)

Editora Executiva Juliana Oshima Franco (revisão e normalização) Projeto e editoração gráfica Carlos Roberto Lamari Imagem da capa: “Humanidades XII”, da artista plástica Fúlvia Gonçalves (Linogravura, 1978, Série Humanidade, 59 cm x 42 cm). Acervo do Museu de Arte Contemporânea Olho Latino (Atibaia, SP).

Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura/ Universidade Estadual de Campinas, Centro de Memória. – Campinas, SP, v. 26, n. 1, jan./jun. (1990-).

Periodicidade semestral. e-ISSN 2178-3284 Editoria do Setor de Comunicação e Publicações do CMU. Temática do v. 26, n. 1 [35], 2018: História Econômica & Demografia Histórica

1.Cultura – Periódicos. 2. Memória – Periódicos. 3. Memória. 4. História Economica . 5. Demografia Histórica. I. Universidade Estadual de Campinas. Centro de Memória.


S U M Á R I O A P R E S E N T A Ç Ã O / E D I T O R I A . . . História Econômica e Demografia Histórica: um encontro marcado - Parte 2 Dra. Maria Alice Rosa Ribeiro e Dra. Maísa Faleiros da Cunha.............................................................................. 4-6 D O S S I Ê Viver e envelhecer: trajetórias de vida numa vila paulista (Campinas, 1774-1842) Paulo Eduardo Teixeira e Antonio Carlos dos Santos...........................................................................................7-30 Ser mãe numa vila colonial do ouro: vida (re)produtiva das mulheres da Paróquia de Antônio Dias de Ouro Preto, entre 1745 e 1804 Mario Marcos Sampaio Rodarte, Isabella Aparecida de Azevêdo Oliveira e Michel Cândido de Souza..................31-46 Muito além da alcova: a participação da mulher viúva na economia do Antigo Regime (Rio de Janeiro, c. 1763-1808) Cristiane Fernandes Lopes Veiga.......................................................................................................................47-66 Chólera Morbus no curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas: a epidemia relatada nos periódicos Mirian Cristina Siqueira de Cristo.....................................................................................................................67-80 Vendedores e compradores: o mercado de Santa Rita do Turvo, 1850 a 1888 Fernando Alves Costa..................................................................................................................................... 81-104 A evolução da carga tributária na Província de São Paulo, 1835-1889 Camilla Scacchetti e Luciana Suarez Lopes.................................................................................................... 105-136 A mortalidade em tempos de ventura e desventura. O Brás na virada do século XIX para o século XX Maria Sílvia Bassanezi..................................................................................................................................137-152 Imigração estrangeira, economia e mercado de trabalho na Amazônia brasileira entre o final do século XIX e o início do século XX Pedro Marcelo Staevie.................................................................................................................................. 153-172 N O T A S

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P E S Q U I S A

A presença de escravos carmelitas na Fazenda Capão Alto, no Paraná: questões historiográficas Josélia Maria Loyola de Oliveira Gomes......................................................................................................... 173-190 R E S E N H A Famílias do mundo ibérico: cotidiano, política e mudanças sociais na Argentina e na Espanha Janaína Helfestein....................................................................................................................................... 191-196 E N T R E V I S T A Um encontro entre História Econômica e Demografia Histórica: Iraci del Nero da Costa Maria Alice Rosa Ribeiro e Maísa Faleiros da Cunha...................................................................................... 197-222


História Econômica

Apresentação Demografia Histórica & Parte 2

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História Econômica e Demografia Histórica: um encontro marcado - Parte 2

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com imenso prazer que apresentamos a segunda parte do dossiê História Econômica e Demografia Histórica. Como foi dito na apresentação da primeira parte, publicada em dezembro de 2017, a grande demanda de artigos aprovados nos levou a organizar o dossiê em duas partes, num esforço para acolher a todos. A presente edição está composta por onze textos de historiadores, sociólogos, demógrafos e historiadores econômicos de diferentes universidades e instituições de pesquisa brasileiras, e nos trazem temas variados e novas abordagens feitas à luz das fontes primárias. Cabe reforçar que a nossa proposta de unir em um único dossiê duas áreas autônomas da História, tem o objetivo de potencializar a compreensão dos acontecimentos e das transformações sociais e econômicas que se passaram em espaços geográficos e em tempos determinados. Partimos do pressuposto de que o estudo da História Econômica e das transformações da vida material, ao longo do tempo, não pode prescindir do estudo da população, em seus diversos aspectos, em termos quantitativos e de sua composição etária, sexual, ocupacional e social. São os homens e mulheres que fazem a história e moldam a cultura material e imaterial da sociedade. E o fazem dentro de condições determinadas com que cada geração se defronta. Um sentido maior preside o dossiê História Econômica e Demografia Histórica: é o de reconhecer e prestar uma homenagem aos mestres que nos antecederam e que nos ensinaram o valor das fontes primárias para a construção da Demografia Histórica e da Histórica Econômica em nosso país. Para esses mestres, o escrever a história implica o esforço imenso de investigação e de reflexão historiográfica e comparativa. Na primeira parte do dossiê, homenageamos a professora Maria Luiza Marcílio, pioneira da Demografia Histórica entre nós. No dossiê que ora se apresenta, prestamos uma homenagem ao professor Iraci del Nero da Costa por seu pioneirismo nos estudos das populações mineiras coloniais e na construção das estruturas socioeconômicas, as quais traziam explicitamente as dimensões demográfica e econômica. Com seus trabalhos, o Prof. Iraci interpretou o comportamento da população e da economia colonial mineira, paulista e brasileira nos séculos XVIII e XIX. Na entrevista concedida às organizadoras do dossiê, o Prof. Iraci fala de seus trabalhos acadêmicos, de suas preocupações em compilar, difundir e interpretar dos dados estatísticos – recenseamentos da população, listas nominativas, registros paroquiais (batismo, casamento e óbito), e de sua interpretação, em parceria com o Prof. Julio Manuel Pires, da economia escravista do Brasil, por meio do conceito do capital escravista mercantil. De forma singela, fica o registro do nosso reconhecimento. O leitor encontrará no dossiê – parte 2 estudos circunscritos a temas pouco explorados, como a “velhice”, o “ser mãe” ou “viúva e tutora” em espaços coloniais; as doenças resultantes das sujeiras, da

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Parte 2

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Apresentação

falta de saneamento e das águas poluídas dos rios de abastecimento, que se traduziram nas epidemias de chólera morbus, na Baia da Guanabara, em 1855, e na persistente mortalidade dos pobres imigrantes no bairro do Brás da capital paulista. A análise do mercado de crédito regional em Santa Rita do Turvo, na zona da mata mineira, e da evolução dos tributos da Província de São Paulo foram objeto de dois trabalhos construídos com base nos inventários post mortem e as leis orçamentárias e os relatórios dos presidentes da província paulista, respectivamente, para o período imperial. Por fim, a imigração volta à tona, mas a análise privilegia a Amazônia brasileira, região ainda pouco estudada. O artigo de Paulo Eduardo Teixeira e Antonio Carlos dos Santos aponta as principais características sociodemográficas da população livre e idosa de Campinas - São Paulo, a partir das informações encontradas nas Listas Nominativas de Habitantes, nos Registros Paroquiais, nos Inventários e Testamentos, proporcionando uma gama de dados quantitativos e qualitativos que permitem entender o comportamento dos idosos dos séculos XVIII e XIX. O artigo de Mario Marcos Sampaio Rodarte, Isabella Aparecida de Azevêdo Oliveira e Michel Cândido de Souza traz uma análise do perfil de 1.400 mulheres em idade reprodutiva para o período de 1745 e 1804 e indica que a dinâmica econômica teve forte impacto no comportamento dos quatro perfis delineados: escravas africanas ou crioulas; mineiras e mulheres de outras partes da colônia; mães do fim do boom aurífero; e as primeiras mães de Ouro Preto. O corpus documental foi composto por registros paroquiais, listas nominativas e livro de tombos da freguesia de Antônio Dias, Ouro Preto - Minas Gerais. Cristiane Fernandes Lopes Veiga analisa a participação das mulheres viúvas que assumiram a tutoria dos herdeiros menores de seus maridos falecidos no período entre 1763 e 1808. Cabia a elas administrar patrimônios que incluíam terras, plantações e escravos. Mirian Cristina Siqueira de Cristo focaliza a epidemia da Chólera Morbus no curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas no ano de 1855, e como a doença foi retratada pelos periódicos. A autora chama a atenção para a importância dos relatos publicados nos periódicos da chegada e do avanço da epidemia e a descrição dos números de contaminados e de óbitos. Os inventários post mortem servem como principal suporte documental para o artigo de Fernando Alves Costa sobre a dinâmica do mercado regional de Santa Rita do Turvo-Minas Gerais, em especial, as dívidas ativas e passivas no período entre 1850 e 1888. O estudo aponta para a existência de um movimentado mercado na localidade, do qual participaram pelo menos seis em cada dez inventariados, sejam como credores, devedores ou nos dois papéis simultaneamente. A evolução da carga tributária na Província de São Paulo é objeto de estudo de Camilla Scacchetti e Luciana Suarez Lopes. Por meio da análise das Leis Orçamentárias e dos Relatórios de Presidente de Província, compreendendo os anos de 1835 a 1889, as autoras acompanham a evolução histórica da estrutura tributária na Província de São Paulo, a criação de novas formas de tributos no deResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 4-6, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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História Econômica

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correr do tempo, a evolução dos valores orçados e a concentração de expectativa de arrecadação em determinados tributos, levando em consideração aspectos históricos, econômicos e políticos existentes na região em meados do período imperial. Maria Silvia Bassanezi analisa as estatísticas de mortalidade referentes ao distrito do Brás, um bairro tipicamente de imigrantes e operários da cidade de São Paulo, nos anos finais do século XIX e primeiros anos do século XX. A autora reforça que o adensamento populacional provocado pelo movimento imigratório, pelas péssimas condições ambientais, pela carência de assistência à saúde e de serviços médicos, e pela dieta precária fizeram com que os moradores desse bairro convivessem com a alta morbidade e mortalidade, principalmente de crianças. Pedro Marcelo Staevie realiza um levantamento bibliográfico de trabalhos que focalizam os imigrantes estrangeiros (portugueses, espanhóis, italianos, ingleses, etc.) que aportaram nas principais cidades da Amazônia brasileira nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, destacando o papel fundamental dos imigrantes para a conformação do mercado de trabalho regional no período considerado. Duas novas seções foram incluídas no dossiê: uma resenha e uma nota de pesquisa. Essas inclusões mostram o esforço da publicação em acolher as contribuições de jovens pesquisadores. Josélia Maria Loyola de Oliveira Gomes em Notas de Pesquisa apresenta uma compilação de trabalhos historiográficos a respeito da presença e da trajetória de escravos carmelitas na Fazenda Capão Alto, em Castro, no Paraná. Janaína Helfestein redige a resenha do livro Nuevos tiempos para las familias, familias para los nuevos tiempos (...), organizado por Mónica Ghirardi e Antonio Irigoyen Lopez, e destaca que a obra reúne textos produzidos por pesquisadores argentinos e espanhóis dedicados à História da Família e à Demografia Histórica. Concluímos a apresentação com os nossos agradecimentos a todos e todas que contribuíram para a realização da segunda parte do dossiê: autores e autoras que compartilharam suas experiências, avanços e resultados de investigação; pareceristas convidados, pela generosa disponibilidade e seriedade para avaliarem os artigos; Francisco Antonio de Paolis e Marco Ribeiro, da Rádio e TV Unicamp, pelo apoio na produção da chamada em vídeo do dossiê; Rosaelena Scarpeline, da Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa, do Centro de Memória – Unicamp (CMU), pela ajuda prestada na busca de uma imagem para ilustrar a capa no acervo da biblioteca. Renovamos nosso imenso agradecimento à artista plástica Fúlvia Gonçalves por ceder a gravura em linóleo Humanidade XII (1978) para a nossa capa; à Profa. Dra. Ana Maria Reis de Goes Monteiro, diretora do CMU; ao Prof. Dr. Jefferson Picanço, diretor associado do CMU, e à equipe de editores da Resgate. Dra. Maria Alice Rosa Ribeiro Dra. Maísa Faleiros da Cunha Organizadoras

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Dossiê Parte 2

Viver e envelhecer: trajetórias de vida numa vila paulista (Campinas, 1774-1842). Live and aging: life trajectories in a village of São Paulo (Campinas, 1774-1842). Paulo Eduardo Teixeira Antonio Carlos dos Santos Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp - Campus Marília)

Resumo

Abstract

O objetivo desse ensaio é discutir alguns pontos para o avanço das pesquisas que tratam do papel do idoso no passado brasileiro. Para tanto, serão levantadas informações sobre pessoas que nasceram no final dos setecentos, sendo as mesmas acompanhadas por documentos de várias ordens, como inventários, testamentos, listas nominativas e registros paroquiais existentes para a Vila de Campinas, em São Paulo.

The aim of this essay is to discuss some points for the advancement of research that addresses the role of the elderly in the Brazilian past. Therefore, information was raised about people who were born in the late eighteenth century, accompanied by documents of various orders, such as inventories, wills, nominative lists and existing parish registers for Campinas village, in São Paulo.

Palavras-chave: Velhice; Sociedade; Gênero; Campinas; Pesquisa.

Keywords: Oldness; Society; Gender; Campinas; Research.

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I n t r o d u ç ã o “... não existe um único modo de ser velho e de viver a idade madura, fato também reconhecido pelos especialistas, que alertam para a interação entre o indivíduo e seu contexto, ambos em constante transformação”. Neusa M. de Gusmão (2001, p.116) .

A

partir das mudanças desencadeadas pelas alterações nos padrões demográficos das sociedades capitalistas europeias, que passaram a ocorrer com maior intensidade desde a revolução sexual dos anos de 1960 e implicaram no maior controle da natalidade,

bem como na melhoria dos padrões de saúde que afetaram, dentre tantos grupos, os idosos, os quais passaram gradativamente a terem uma expectativa de vida mais longa, notamos que o final do século XX viu emergir novas percepções sobre o envelhecimento das populações, ganhando corpo e espaço e uma atenção especial por parte dos governos e suas políticas públicas voltadas para esse segmento populacional. O estabelecimento, em 1999, do Ano Internacional do Idoso, bem como de uma data comemorativa ao dia internacional dos idosos pelas Nações Unidas1, marcaram as preocupações advindas com o envelhecimento demográfico, que está em um processo de aceleração em quase todos os países do globo, a fim de criar compromissos para o amadurecimento de atitudes e empreendimentos sociais, econômicos e culturais que visem dar destaque ao papel do idoso na sociedade. Para termos uma noção destas transformações, citamos o caso da Espanha, estudado por Francisco García González (2005), que ao final do século XVIII tinha uma esperança de vida ao nascer que não chegava aos 30 anos de idade, ao passo que, nos anos 1960, essa marca subiu para algo em torno de 50 anos, sendo que na primeira década do século XXI já superava os 75 anos. Com o alargamento da expectativa de vida e o processo de redução das taxas de natalidade e mortalidade, o resultado está sendo o aumento crescente e significativo dos grupos de idosos. 1 A primeira comemoração do Dia Internacional dos Idosos ocorreu em 1º de outubro de 1998.

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Por outro lado, após os anos de 1960 o Brasil vem demonstrando a mesma tendência observada nos países desenvolvidos, ou seja, que as taxas de crescimento populacional vêm declinando, embora as taxas de maior aumento populacional tenham sido observadas entre as pessoas com mais de 60 anos de idade, ou seja, a população idosa (CAMARANO, KANSO & MELLO, 2004, p. 26-27). Diante disto, o que está sendo posto é o aumento de uma parcela da população composta, de um lado, por pessoas que possuem grande autonomia e capacidade para contribuir para o desenvolvimento econômico e social, desempenhando papéis importantes na família e na sociedade, enquanto que, por outro lado, existem pessoas que não são capazes de desempenhar atividades básicas do cotidiano – muitas delas sem nenhum rendimento próprio –, tornando-se, nesses casos, dependentes do apoio de outros, sejam estes pessoas próximas, como familiares e amigos, ou até instituições de amparo à saúde física e mental, mantidas ou não pelos Estados. A velhice, no entanto, é um período da vida recoberto por muitos preconceitos e estereótipos vinculados às vulnerabilidades decorrentes do enfraquecimento físico e mental e da proximidade da morte. Tais ideias ainda são muito recorrentes em nossa sociedade, apesar de algumas mudanças significativas no Brasil, como a sanção do Estatuto do Idoso2, que procura promover a inclusão social desta parcela da população, exigindo que o Estado garanta seus direitos. Apesar disso, podemos dizer que, em suma, predominam concepções sobre os velhos como “doentes”, levando-os a serem tratados como incapacitados (NERI, 2001). Do ponto de vista histórico, podemos dizer que visões negativas acerca da velhice impediram uma análise mais detida sobre a população idosa no passado, e isto não somente no Brasil. Na introdução do livro A velhice, Simone de Beauvoir (1970), afirmou que, na maioria das vezes, “velho” e “pobre” eram sinônimos, criticando a condição negativa da velhice naquela época, que ainda perdura em nossa sociedade. Já Guita Grin Debert (1999, p. 45) assinala que a associação da velhice à pobreza ocorreu sobretudo entre 1945 e 1960, época em que houve a generalização do sistema de aposentadorias, colocando os idosos como alvo da assistência social. Evidência deste fato é a grande lacuna existente na produção de pesquisas que focalizam o idoso enquanto objeto central de estudo. No entanto, com a “crise do envelhecimento”, melhores condições de saúde bem como a ampliação da cobertura da Previdência Social em quase todo o mundo têm levado a uma mudança de percepção do que vem a ser a última etapa da vida. A visão de que esta representa um processo de perdas está sendo substituída pela consideração de que a última fase da vida é um momento propício para novas conquistas e busca de 2 No Brasil, o Estatuto do Idoso foi instituído pela Lei n.º 10.741, de 1º de outubro de 2003. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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satisfação pessoal. É a idade do “preenchimento”, de acordo com Laslett (1996). (CAMARANO & PASINATO, 2004, p. 8).

Essa mudança de perspectiva permite aceitar a velhice em termos de “potencialidad”, segundo nos afirma María Teresa Bazo (1992, p. 81) ao destacar a capacidade ou habilidade que permite aos idosos enfrentarem os acontecimentos da vida cotidiana. Potencialidade esta que vai além da concepção decadência/plenitude ou desgraça/gozo, para um modelo que avalia uma pessoa centenária como alguém que possui experiência e capacidade, e ainda pode dar uma contribuição importante para a sociedade. Assim, ao pensar a velhice nos dias atuais, os estudiosos da família começaram a repensar também o papel de idosos no passado, trazendo novas leituras e interpretações, colocando-os como atores sociais. Estas pesquisas que estão surgindo, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, nos instigam a pensar também a sociedade brasileira à luz destas novas questões e dos novos desafios metodológicos para o estudo da velhice, contrariando visões lineares e unidimensionais sobre o significado do tempo.

Conceito de idoso

Em nossos dias, um pai com a idade de 40 anos pode ser chamado de “velho” por seu filho de apenas 10 anos, e isso pode remeter a uma questão central: o que é ser “velho”? Para essa criança que acha seu pai “velho”, as implicações podem ser as mais variadas, como, por exemplo, o não brincar com seu filho, a forma de se vestir, ou ainda alguma característica associada à velhice, como a calvície acentuada ou os cabelos brancos. A idade, em si, não é necessariamente um fator apontado para classificar um sujeito de “velho”, mas aspectos que dizem respeito ao lazer, formas de comportamento social e mesmo “marcas” associadas à velhice masculina e feminina podem indicar que “não existe um único modo de ser velho”. Por essa razão, Diana Lozano-Poveda (2011, p. 92) afirma que não há uma única idade para a velhice, pois são diferentes a idade cronológica, a idade corporal e a idade social. Tal assertiva remete a uma concepção de velhice que a considera sob três dimensões: a cronológica, medida pelos anos de vida de uma pessoa; a corporal ou biológica, como é chamada por outros autores (OTERO, 2013) e que remete ao estado de saúde de um indivíduo; e, por último, a idade social, que se relaciona com a construção social e histórica da velhice em uma dada sociedade, por meio dos processos de produção e consumo impostos pela mesma.

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A idade, no entanto, tem sido um dos critérios mais utilizados para o estabelecimento da categoria de “idoso”, sobretudo porque ela se tornou um critério operacional para a definição estatística da velhice. No Brasil, quando da definição da Política Nacional do Idoso (Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994), e no Estatuto do Idoso em seu Artigo 1º, ficou explícito que a pessoa na faixa etária acima dos 60 anos é idosa. Esse princípio parte da pressuposição de que o envelhecimento é um processo biológico natural e que as capacidades físicas do indivíduo declinam com o passar do tempo, o que leva a uma associação direta entre idade cronológica e capacidade. Desse ponto de vista, a teoria da estratificação por idade, descrita por Maria Siqueira (2001, p. 96-97), sustenta aplicações como estas, pois permite agrupar indivíduos de uma dada sociedade por idade e classe social. Um dos aspectos positivos dessa teoria é o de mostrar que existem variações significativas entre pessoas idosas dependendo de sua “coorte etária”, sugerindo “a necessidade de maior ênfase na análise de fatores históricos e sociais do envelhecimento”, a qual pode avançar com a inclusão de outros elementos diferenciadores como a raça, gênero e classe social, explorando a heterogeneidade implícita no processo de envelhecimento. Por sua vez, dentre as várias consequências apontadas por Camarano e Pasinato (2004, p. 5) com relação ao uso da idade para a definição de idoso, estão as limitações impostas pela simples decisão de estabelecer idades-limite como um “poder prescritivo”, criando expectativas e delimitando papéis e tarefas, independente das condições de existência de cada um. Como exemplo, as autoras citam o caso das aposentadorias compulsórias presentes no Brasil e em vários países do mundo. No entanto, ao desagregar em outras características possíveis o grupo “idoso”, como sexo, estado conjugal, rendimentos, forma de inserção na família e outras, as autoras buscaram a heterogeneidade dessa categoria, quer em função das diferenciações na dinâmica demográfica, quer em função das condições socioeconômicas. Levando em consideração todas essas questões, que procuram ampliar a categoria de idoso, estaremos preocupados em discutir a vida dos velhos no passado brasileiro, a partir de um estudo de caso, no qual os sujeitos analisados serão as pessoas livres de Campinas, em especial durante o período que a mesma saiu da condição de Freguesia vinculada à jurisdição da Vila de Jundiaí, passando pelo período de sua emancipação, ocorrido em 1797, até o ano de 1842, quando então ela veio a ser elevada à condição de cidade. Assim, cabe a pergunta: qual a idade limite que utilizaremos nesse estudo para indicar os velhos? Isidro Dubert (2008, p. 88) afirma que, na Espanha, o Diccionario de Autoridades de 1726-1739 definia a velhice como a última etapa da vida, cujo extremo se chama decrepitude e começa aos sessenta anos, mas que uma ampla literatura médica do século XVIII e XIX entendia que ela poderia iniciar entre os 45 e 50 anos. Em um importante artigo de Peter Laslett (1995, p. 16) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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sobre a questão do envelhecimento, a idade de 60 anos é utilizada como parâmetro para indicar a mudança na expectativa de vida na Inglaterra entre o período de 1540-1990. Por sua vez, em artigo inédito sobre velhos escravos José Flávio Motta (2008) propõe uma discussão inicial muito importante: “Seria o caso de trabalharmos com esse mesmo recorte etário para o século dezenove?”, ou “seria o recorte etário dos 60 anos ou mais o mais adequado para identificar os ‘escravos da terceira idade’?”. Essa análise, que partiu de alguns documentos como o Primeiro Recenseamento Geral do Império, de 1872, e a Lei dos Sexagenários, sinalizou para a adoção da idade de 60 anos como início da velhice. Não obstante, os estudos sobre a longevidade dos escravos apontaram para outra direção. Assim, o autor afirmou que: entendemos que a idade de 60 anos é muito elevada para servir como limite inferior da categoria de “escravos idosos” com a qual trabalhamos. [...] Por fim, e mesmo correndo o risco de incorporar certa dose de arbitrariedade, as indicações selecionadas nortearam nossa opção pelo cômputo, como cativos idosos, daqueles com idades iguais ou superiores a 50 anos. Tal definição será utilizada, ademais, não apenas para a segunda metade do século XIX, mas para o Oitocentos como um todo (MOTTA, 2008, p. 5).

Por sua vez, a antropóloga Guita Debert (1999, p. 46), ao discutir a questão da homogeneidade e heterogeneidade na velhice, aponta para um artigo de Philippe Ariès (1983), no qual ele faz uma análise das mudanças ocorridas entre três gerações de pessoas, sendo que para as nascidas no século XIX a faixa etária correspondente à velhice seria iniciada, para as mulheres, entre 40 e 50 anos, e para os homens entre os 50 e 60 anos. Já Dora Celton (1993), em estudo sobre a população de Córdoba, dado a baixa expectativa de vida encontrada, cerca de 30 anos, considerou como população anciã aquele segmento etário entre 50 ou mais anos. Além disso, Hernán Otero (2013, p. 9) nos chama atenção para a finalidade dos levantamentos populacionais do século XIX, que em virtude do foco na questão tributária, davam maior atenção às pessoas com idade entre 15 e 50 anos, com um certo desdém pelas populações femininas e masculinas fora dessa faixa etária. No entanto, referindo-se ao primeiro censo argentino de 1869, o autor declara que: Em primeiro lugar, ratifica a definição de crianças como os indivíduos “de 1 a 14 anos inclusive” (Argentina, 1872: XXVIII), definição coerente com a empregada nos quadros estatísticos. Entretanto, mais interessante ainda, por sua novidade, foi a postulação dos 50 anos como limite final da idade adulta, umbral que, como temos visto, representava também uma continuação da tradição estatística colonial. (OTERO, 2013, p. 10, grifos nossos).

Considerando, portanto, as análises de Motta para a população escrava do Brasil no século XIX, as de Ariès para França do mesmo período, e os trabalhos de Celton e Otero, o conceito de idoso

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adotado neste ensaio e estabelecido a partir da faixa etária corresponderá a todos os indivíduos que foram identificados com 50 anos ou mais, devendo levar em consideração questões de gênero, de estado social ou classe e etinicidade, cujo objetivo é o de poder diferenciar os grupos de mulheres e homens dentro de uma mesma população, como a brasileira, por exemplo.

Fontes, objetivos e metodologia aplicada

O propósito deste trabalho consiste em analisar as principais características sócio demográficas da população livre e idosa de Campinas, a partir das informações encontradas nas Listas Nominativas de Habitantes, nos Registros Paroquiais, nos Inventários e Testamentos, proporcionando uma gama de dados quantitativos e qualitativos que permitirão entender o comportamento dos idosos dos séculos XVIII e XIX. Tendo em mente a preocupação em desvincular o conceito de “velho” como alguém totalmente dependente de outros, sendo inclusive uma carga econômica para sua família e para a sociedade, nos valeremos de algumas ideias de David S. Reher (1997), que propõe estudar o papel econômico dos idosos, bem como seu peso na população total, não vinculando uma idade limite entre a produtividade e a inatividade para todos os tempos. Ao chamar nossa atenção para distinguirmos o tipo de dependência requerida pelos velhos frente às crianças, assim como para reconhecermos a heterogeneidade da experiência de envelhecimento entre homens e mulheres, o autor propõe uma análise mais detida nas diferenças, como pode ser exemplificada na situação de viuvez, pois as mulheres tendiam à demorar mais tempo para contrair as segundas núpcias em relação aos seus parceiros do sexo masculino.

A população de Campinas

A partir da última década do século XVIII, Campinas passou a ter um crescimento populacional cada vez maior. No entanto, cabe frisar que, em grande medida, isto se deveu a diversos fatores como a reorganização da Capitania de São Paulo a partir de 1765, a expansão da lavoura canavieira e a consequente procura por terras de melhor qualidade para o cultivo da cana-deResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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-açúcar, atraindo pessoas de condição social livre, dentre as quais muitas instalaram engenhos para o fabrico do açúcar com o uso intensivo da mão de obra escrava africana, favorecendo com isso a entrada maciça de cativos na região. Tabela 1 – Distribuição da população total por condição social. Campinas: 1774, 1794, 1814 e 1829. Condição Social Ano 1774

Livres

Escravos

Total

Números

%

Números

%

Números

%

390

81,7

87

18,3

477

100

1794

1.373

73,4

498

26,6

1.871

100

1814

3.613

65,6

1.893

34,4

5.506

100

1829

3.662

43,3

4.799

56,7

8.461

100

Fonte: Listas Nominativas de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, Arquivo Edgard Leuenroth, Unicamp).

Como podemos notar por meio da Tabela 1, até 1814 a entrada de livres foi muito importante para o crescimento demográfico da vila campineira em termos absolutos. Por exemplo, dos 527 chefes de domicílio que declararam a naturalidade, apenas 67 eram nascidos em Campinas (TEIXEIRA, 2004, p. 114). Por outro lado, o aumento relativo da população cativa foi, paulatinamente, se tornando mais expressivo, a ponto desse grupo se tornar majoritário em 1829. Sobre este momento, Slenes (1998, p. 17) afirmou que “Açúcar e escravidão rapidamente tornaram-se praticamente “sinônimos” em Campinas e o crescimento da população cativa foi explosivo: em torno de 18% ao ano entre 1789 e 1801, e 5% ao ano entre 1801 e 1829”. Gráfico 1 – Pirâmide Etária da População Livre. Campinas: 1774.

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

Em 1774, conforme ilustra o Gráfico 1, havia em Campinas uma população predominantemente jovem, composta por casais com filhos menores e com alguns desníveis em determinadas faixas de idade, notadamente na faixa entre 20 e 29 anos, em que a razão de sexo foi de 60,5, o que

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demonstra com clareza a emigração de homens nessas idades. Por outro lado, na faixa seguinte, isto é, entre 30 e 39 anos, a razão de sexo foi de 117,6, com o predomínio dos homens, talvez por morte de mulheres nessa faixa de idade, o que poderia estar relacionado com os óbitos durante o parto. Já nas faixas caracterizadas pela velhice, encontramos 8,5% dos homens acima dos 50 anos, correspondendo a 33 pessoas, e 5,2% do total de mulheres, ou seja, apenas 20. Passados vinte anos, a configuração clássica de uma pirâmide de base larga que sinaliza para um forte crescimento vegetativo pode ser vista no Gráfico 2. As crianças com menos de 10 anos correspondiam a 35,8% da população total, filhos dos muitos casais que aparecem nas listas de habitantes, formando domicílios do tipo nuclear em sua grande maioria. Apesar de haver um maior número de nascidos do sexo masculino, esse predomínio não se manterá nas faixas seguintes, indicando que a mortalidade infantil entre os meninos deve ter sido maior que a das meninas. Aliás, nas faixas de 10-19 e de 20-29 anos, a presença de mulheres está bem marcada, indicando a chefia de muitos domicílios, como já assinalado em outros estudos (MARTINS, 1996; COSTA, 1997; TEIXEIRA, 2004). Essa tendência permaneceu durante as quatro primeiras décadas do século XIX. No entanto, cabe dizer que, a partir de 1794, se nota um maior desequilíbrio entre homens e mulheres na faixa de 10 a 19 anos. Enquanto observamos que a razão de sexo desse ano foi de 76, a de 1814 foi de 92,5 (Gráfico 3) e atingiu, em 1829, a marca mínima de 67,7 (Gráfico 4), demonstrando a ausência de jovens rapazes, o que pode apontar para processos migratórios para áreas de fronteiras, ou mesmo o temor do alistamento para as guerras no sul (PEREGALLI, 1986, pp. 63-72), conforme assinalado por Maria Luiza Marcílio (2000, p. 83) como fator para justificar uma razão de sexo tão baixa entre o ano de 1798 e 1836 em São Paulo. Para aqueles que passaram dos 50 anos de vida, houve uma ação inversa, com a redução do número de mulheres, elevando assim a razão de sexo para 127. Gráfico 2 - Pirâmide Etária da População Livre. Campinas: 1794.

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

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Em 1814, a população idosa ainda se manteve pequena em relação ao total da população, sendo que foram registradas apenas 102 mulheres com idades acima dos 50 anos, ou seja, apenas 3,4% do total, e 157 homens na mesma condição, isto é, 5,3% do total masculino. A presença de septuagenários e outros mais velhos foram recorrentes ao longo dos anos estudados, porém a maior parte dos idosos se enquadrava entre os 50 e 60 anos de idade, sendo que nesse grupo estava abrigada a maioria dos velhos, chegando a representar 72% em 1829. Com 90 anos de idade e residindo no centro da vila, estava Escolástica Maria3, viúva que vivia como agregada de seu filho, Jorge Antonio de Moraes, de 35 anos, ambos naturais de Juqueri. Nos bairros rurais da vila campineira, viviam Joaquim Alvez, de 92 anos, branco, solteiro e que colheu para o seu gasto e de seus agregados, Vicente, de 82 anos, homem negro e viúvo, que também vivia ao lado de Joaquim, de 29 anos, solteiro e pardo4. Gráfico 3 - Pirâmide Etária da População Livre.Campinas: 1814.

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

Por sua vez, Salvador, de 94 anos, era casado com Maria, de apenas 41, ambos pardos e agregados de Duarte Lopes, um senhor de 57 anos, também casado, que vivia com sua mulher Maria Francisca, de 62 anos, ambos brancos e donos de cinco escravos5. E dentre os mais idosos, encontramos o centenário Felis da Costa, um alfaiate pardo, chefe de domicílio e que se disse casado, embora a mulher não estivesse arrolada na lista nominativa. Viera provavelmente do Rio de Janeiro, e vivia com o agregado Francisco, de apenas 10 anos de idade, além dele, Felis, com 108 anos6.

3 Lista Nominativa de Habitantes, 1829, Cia 7, fogo 75 (Fundo Peter Eisenberg - AEL/Unicamp). 4 Lista Nominativa de Habitantes, 1829, Cia 4, fogo 63 (Fundo Peter Eisenberg - AEL/Unicamp). 5 Lista Nominativa de Habitantes, 1829, Cia 4, fogo 55 (Fundo Peter Eisenberg - AEL/Unicamp). 6 Lista Nominativa de Habitantes, 1829, Cia 1, fogo 88 (Fundo Peter Eisenberg - AEL/Unicamp).

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Gráfico 4 - Pirâmide Etária da População Livre. Campinas: 1829.

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

Avaliando a presença de homens e mulheres nas faixas de 0 a 14 anos entre o período de 1774 e 1829, notamos um equilíbrio entre os sexos, o que nos levou a descartar a hipótese de um crescimento diferenciado e a aceitar a possibilidade de emigração de homens da faixa etária dos adultos para outras localidades mais ao Oeste. Em 1794, a importância dos jovens cresceu significativamente, atingindo quase a metade (49,2%) da população cadastrada, mas declinando nos anos subsequentes de tal forma que, em 1814, as crianças represenGráfico 5 - Evolução dos Grupos Funcionais.* Campinas, 1774-1829. tavam 44,1% do total de habitantes, passando a 39,6% em 18297. Sublinhe-se que essa diminuição na proporção de crianças pode estar atrelada ao movimento migratório de saída de casais em busca de novas oportunidades na frente pioneira aberta mais a Oeste, mas não afetou negativamente a evolução populacional no que se refere Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). à geração de crianças, e, portanto, de * Os jovens foram classificados entre 0 e 14 anos, idade com que os hopessoas das novas gerações. Ao que mens já poderiam contrair matrimônio segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707. Para os adultos adotamos a parece, o movimento migratório de saidade de 15 aos 50 anos, por achar que, em virtude de uma baixa expecída de livres foi o responsável por mantativa de vida naquele tempo, o período de 35 anos seria relativamente viável para a idade ativa de uma pessoa. Finalmente os velhos foram ter o número da população estável até considerados acima de 50 anos, onde especialmente as mulheres acia década de 1830, não aumentando ma dessa idade já estariam na fase da menopausa e, portanto, não mais contribuindo para o aumento populacional. seus efetivos (Cf. TEIXEIRA, 2004, p. 99-102). Além disso, o predomínio de mulheres nessas faixas etárias pode estar relacionado ao número de mulheres chefes de domicílio, 7 Deve-se salientar que, para o ano de 1814, não tivemos informação da idade para 575 pessoas do total de 3.613 cadastradas na Lista Nominativa de Habitantes desse ano e isso, talvez, justifique uma queda nos percentuais de jovens.

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que era de aproximadamente 25% em 1829, como indica o Gráfico 4. Enfim, a partir da década de 1830, Campinas começou a passar por outro momento, que trouxe algumas mudanças que vieram a transformar a vila, como, por exemplo, o início da chegada de imigrantes estrangeiros, que pouco a pouco tomaram parte ativa nas atividades econômicas da cidade, seja no campo, enquanto lavradores meeiros dos cafezais que se multiplicaram, ou no comércio e indústria, que se expandiu, sobretudo, a partir de 1850. Tais fatores podem ter reforçado, ainda mais, o percentual de pessoas ativas entre a população campineira, que já era elevado em 1829, com uma participação de praticamente 50%, conforme apresentado pelo Gráfico 5. Um estudo para uma vila da ilha açoriana de São Jorge (MADEIRA, RODRIGUES & MATOS, 1998) apresentou uma tendência semelhante à encontrada para Campinas: elevado percentual de jovens e ativos, com uma parcela menor de velhos. Além do mais, o Gráfico 5 ilustra a participação do contingente de idoso ao longo dos anos estudados, dando-nos a ideia de ser uma população pequena, e como veremos, com o predomínio de homens, uma tendência muito diversa daquela que conhecemos em nossos dias.

Os idosos de Campinas Através de uma perspectiva demográfica, vamos passar a conhecer alguns aspectos relacionados à parcela da população idosa que viveu em Campinas a partir do ano de 1774. Sem dúvida, os atores que compuseram esse grupo foram muito diversos, e alguns deles, que nasceram e cresceram durante o processo de emancipação de Campinas, quando a mesma se tornou uma vila com destacada importância econômica e política, já haviam atingido a velhice. Para exemplificar, vamos citar a pessoa de Domingos, filho de Maria Barbosa do Rego e do tenente Domingos da Costa Machado, que foi batizado no dia 14 de julho de 1774, sendo seu padrinho o Capitão Raimundo da Silva Prado.8 Percorrendo a trajetória de Domingos percebemos que o mesmo seguiu a carreira militar: assim, este filho de Campinas, aos 25 anos de idade, já havia se tornado um alferes, possivelmente para orgulho de seu pai, pois Domingos era o único filho homem de seu pai, além de ser o caçula. No entanto, antes de ver seu filho tornar-se um tenente, Domingos da Costa Machado, o pai, veio a falecer no dia 2 de fevereiro de 1808. Em 1820, Domingos, o filho, foi elevado ao posto de capitão, permanecendo nessa condição até 1826, quando atingiu a posição de sargento mor. Finalmente, aos 60 anos de idade, Domingos da Costa Machado, o filho, atingiu o cargo máximo de major. A história familiar dos Machado nos remete a pelo menos dois pontos. O primeiro, a presença do 8 Registros Paroquiais de Batismos de Campinas, Livro 1, Folha 2, 14 jul. 1774. (Arquivo da Cúria Metropolitana de Campinas).

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casal adulto representando uma parcela significativa da população com idade para gerar, trabalhar e poder acumular um capital “material” e “simbólico”. O segundo está retratado pelo nascimento do filho, pois apesar do mesmo ter nascido e vivido mais de 60 anos, isso não o impede de representar a trajetória das crianças nascidas naquela época. Por estarem cercadas de condições que eram adversas ao bom desenvolvimento infantil, e que muitas vezes levavam à morte prematura de crianças – atestada claramente pelos elevados índices de mortalidade infantil –, pode-se entrever a possibilidade de muitas crianças terem chegado à terceira etapa da vida, ou seja, a velhice. A herança deixada por Domingos pai foi além do próprio nome dado a seu filho, concretizou-se também na escolha do padrinho de batismo, o Capitão Raimundo, que esteve presente em seu primeiro casamento com Dona Manoela de Camargo Penteado, em 1795.9 O velho tenente Domingos, antes de morrer, ainda teve a oportunidade de ver os netos Ignácio, Maria, Ana, Delfina e Querubina, todos frutos do matrimonio entre seu filho e Dona Manoela Camargo. O ciclo de vida familiar, como uma grande roda gigante, levava Domingos da Costa Machado a se recolher em boa idade com seus ancestrais, ao passo que o filho Domingos estava atingindo o topo desta grande roda da vida. Enfim, nas palavras de Valter Martins (1996, p. 164), “Esses exemplos são representativos, mas não são os únicos. [...] contribuem também para evidenciar que a acumulação e a melhoria das condições materiais de vida não era algo assim tão raro”, não só entre os agricultores que ele estudou, como também nos grupos sociais. Nas palavras de Bacellar (1997, p. 127): Toda família, no transcorrer de seu ciclo de vida, atua permanentemente no sentido de preservar e reproduzir seu status social. Cada ato ou decisão tomados são, conscientemente ou não, um passo no contínuo movimento de luta pela sobrevivência e pela perpetuação de sua descendência.

Nas próximas páginas vamos apresentar informações de caráter demográfico, portanto muito impessoal. No entanto, à medida que as análises nos permitirem, vamos procurar lançar algumas reflexões baseadas também em informações colhidas de documentos que nos aproximam desse lado pessoal da vida de cada indivíduo.

A propósito de alguns números

Desde a fundação da Freguesia de Campinas, em 1774, a presença de pessoas com mais de 50 9 Registros Paroquiais de Casamentos de Campinas, livro 1, 19/05/1795. (Arquivo da Cúria Metropolitana de Campinas). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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anos foi notada, e a idade média calculada chegou próximo dos 60 anos. No entanto, com o crescimento populacional, a participação dessa população decresceu um pouco proporcionalmente ao conjunto populacional, e nesse sentido houve também uma ligeira queda na média de idade, porém não muito significativa a ponto de suspeitarmos de algum fenômeno que pudesse reduzir drasticamente essa população. Assim, a Tabela 2 procurou dar uma ideia do tamanho da população de idosos durante o processo de crescimento da vila campineira. Embora tenha ocorrido um aumento do número de idosos ao longo do tempo, a proporção dos mesmos diante do aumento populacional não ultrapassou os 13,6% de 1774, e mesmo em 1829, em que 10,4% das pessoas eram velhas, e como já apontamos, muitas com mais de setenta anos, a média de idade não chegou aos 60 anos10. O indicador da Moda revelou a já assinalada preferência pelos números com terminações 0 e 5 (Cf. EISENBERG, 1989, p. 331; NOZOE & COSTA, 1991, p. 275), de tal forma que, em 1794, foram registradas 30 pessoas com a idade de 50 anos, que se elevou para 60 pessoas em 1814, e atingiu 93 casos em 1829, o que representou, neste último ano, quase 25% dos idosos. Tabela 2 - Peso da População Idosa e Idade Média. Campinas, 1774, 1794, 1814, 1829. ANO

População Total

População Idosa

% Idosos

Razão Sexo Idosos

Idade dos Idosos Média

Mediana

Moda

1774

390

53

13,6

165

59,1

58

52

1794

1.373

116

8,4

127

59,8

58

50

1814

3.613 *

261

8,6

154

57,7

57

50

1829

3.662**

379

10,4

134

58,3

56

50

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

* Na lista de 1814 não consta idade para 575 pessoas, e o cálculo da porcentagem de idosos considerou esse sub-registro, sendo válidos, portanto 3.038 habitantes. ** Na lista de 1829 não consta a idade para 17 pessoas, e da mesma forma o cálculo da porcentagem de idosos considerou o sub-registro, sendo válidos 3.645 habitantes.

Pensar a diferença de sexo e estado conjugal nos levou a compor quatro tabelas para conhecer como foi o comportamento dessa população nos anos de 1774, 1794, 1814 e 1829. Na Tabela 3, os dados de 1774 indicam que os 53 velhos que viviam em Campinas representavam as famílias fundadoras da Freguesia, daí a quantidade maior de homens casados, com 50 ou mais anos de idade, como ilustra a imagem do fundador de Campinas Francisco Barreto Leme que, nascido em Guaratinguetá, recebeu carta do Morgado de Mateus para realizar essa tarefa aos 65 anos de idade, acompanhado de sua mulher Dona Roza Maria, de 62 anos, juntamente com mais quatro filhos, sendo um destes Bernardo Guedes Barreto que, na ocasião, aos 23 anos de idade, já era casado com 10 Em relação ao ano de 1814, os dados da Lista Nominativa deixam um número expressivo de pessoas fora das possibilidades de análise em virtude da falta da idade. Para contornar isso, buscamos no Mapa Geral de Habitantes de Campinas essa informação, e o resultado foi o seguinte: a população total somou 3.671 habitantes, sendo considerados idosos 10,6%, ou seja, 390 pessoas. Tal resultado aproxima a proporção de idosos de 1814 à de 1829, indicada na Tabela 2, corrigindo, em parte, o efeito do sub-registro assinalado.

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Maria Antonia e com ela tivera dois filhos. Este mesmo Bernardo foi um dos signatários da petição para ereção da vila, e posteriormente foi eleito vereador para a Câmara de 1799 a 1804, segundo Jolumá Brito (1956, p. 132). Em 1815, Bernardo Guedes Barreto era um dos senhores de engenho de Campinas, contando com o trabalho de 32 escravos em sua propriedade, e mais 15 agregados, dos quais alguns eram donos de outros 12 escravos11. Além disso, em 1818, quando foram cadastradas as terras em Campinas pelo poder público, o mesmo possuía uma sesmaria no Taquaral equivalente a 450 alqueires, sendo que o número de seus escravos havia sido elevado para 39.12 Após a morte de Bernardo Guedes Barreto, a sesmaria foi repartida entre seus filhos, sendo que Vicente Guedes Barreto, que havia se casado com dona Matilde Maria de Souza, de Mogi-Mirim, tornou-se um dos pródigos herdeiros do pai. Deste consórcio nasceu José Guedes de Souza, em 1830, que veio a se tornar fazendeiro de café em Mogi-Mirim e Santa Rita do Passa-Quatro, proprietário de terras no Estado do Paraná, capitalista em São Paulo, e um dos fundadores da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, na qual, por alguns anos, foi membro da diretoria. Como Barão de Pirapitingui, título recebido em 7 de maio de 1887, Guedes de Souza por duas vezes hospedou em sua residência, em Mogi-Mirim, Sua Majestade Imperial Dom Pedro II13. Tabela 3 - Faixa etária dos habitantes idosos pelo estado conjugal e sexo. Campinas, 1774 Faixa Estaria

Casados

Viúvos

Solteiros

Homens

Mulheres

Homens

Mulheres

17

8

2

1

60-69

8

3

70-79

2

50-59

Indefinido

Mulheres

Homens

2

2

4

Mulheres

1

1

11

17 3

1 27

Total 32

1

80 + Total

Homens

1

3

6

0

2

3

1

Mulheres

Homens

53

Campinas, 1794 Faixa Estaria

Casados

Viúvos

Homens

Mulheres

Homens

Solteiros

Mulheres

Homens

Indefinido Mulheres

Total

50-59

29

14

1

3

1

2

9

59

60-69

12

9

1

2

1

3

2

30

70-79

7

1

1

4

1

5

19

24

3

10

80 +

4

Total

52

1 2

0

2

1

8

8

17

116

Campinas, 1814 Faixa Estaria

Casados Homens

Viúvos

Mulheres

Homens

Solteiros

Mulheres

50-59

90

43

3

60-69

43

12

4

Indefinido Homens

Mulheres

Total

Homens

Mulheres 1

6

15

158

2

1

5

15

82

11 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1814, Cia 2.ª, fogo 10 (Fundo Peter Eisenberg - AEL/Unicamp). 12 Inventário dos Bens Rústicos de Campinas, 1818 (Arquivo do Estado de São Paulo). 13 Decreto em 07/05/1887 (Cf. Fundo Jolumá Brito, Centro de Memória - Unicamp, Série Personagens. Dados biográficos. Barões diversos, p. 285). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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70-79

7

1

80 +

2

2

Total

142

58

2 0

7

2

2

13

Homens

4

14

1

5

35

259

Campinas, 1829 Faixa Estaria

Casados

Viúvos

Solteiros

Indefinido

Homens

Mulheres

Homens

Mulheres

Homens

Mulheres

107

47

9

34

10

15

60-69

47

14

12

28

6

3

70-79

12

3

1

10

2

1

1

19

1

50-59

80 +

5

1

3

6

1

Total

171

65

25

78

19

Total

Mulheres 222 110 30 16 0

378

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

Além de idosos casados, havia também viúvos, não muitos, como Mariana Barboza, de 72 anos, que vivia ao lado de seus 9 filhos, sendo dois deles casados. Suzana de Gusmão era outra viúva, de 65 anos, que vivia ao lado de apenas dois filhos, sendo um destes Maria, de 50 anos de idade e cega. Bárbara Correia, de 62 anos, era outra viúva, mas que vivia com seu filho João Correia do Prado, de apenas 24 anos14. A Tabela 3 também nos apresenta as informações para o ano de 1794, e nela podemos notar a importância dos casais de idosos, como em 1774. Há uma pequena presença de viúvos e muito ínfima de solteiros. Vale destacar que a maior parte dos idosos tinha entre 50 e 60 anos, não obstante encontramos alguns que superavam essa faixa de idade, como fora o caso de Antonio, que aos 90 anos era um dos agregados de Bernardo Guedes Barreto15. Quanto à significativa incidência de casos indefinidos, podemos atribuir que, para muitas pessoas, o estado conjugal não declarado esteve atrelado à condição social de agregado, como no caso de Maria, 53 anos, e Ana, 50 anos, ambas agregadas de Joaquim Oliveira16. Em relação ao ano de 1814, podemos dizer que a grande quantidade de casos indefinidos em relação ao estado conjugal, bem como ao sub-registro em relação à idade, mencionado anteriormente na Tabela 2, sem dúvida são os responsáveis por não identificarmos os viúvos e solteiros que viviam na vila de Campinas nessa época, como na situação de Tereza Machada, de 70 anos que cuidava de um menino de 12 anos, agregado a ela, mas cujos problemas relativos à conservação dos registros impedem a certeza quanto ao seu estado conjugal17. Não obstante, eram os casados o maior grupo de idosos, sobretudo até os 60 anos de idade, pois acima dessa faixa etária a morte por parte de um dos cônjuges se tornava imperiosa, como demonstrado pelos dados dos anos de 1814 e 1829 da Tabela 3, forçando muitos destes a vive-

14 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1774, Fogo 27, 37 e 2 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). 15 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1794, Fogo 31 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). 16 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1794, Fogo 12 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). 17 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1814, 5ª Cia, Fogo 31 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

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rem solitariamente por ocasião da morte de um dos cônjuges. Marcílio (1986, p. 199) assevera que o momento da morte de uma pessoa adulta, sobretudo quando esta ocupava posição de liderança no interior do domicílio, “criava rupturas e problemas para a sobrevivência do grupo doméstico. Ela poderia romper o equilíbrio da família, causar danos difíceis de serem contornados, levar à miséria ou ao desamparo os sobreviventes”. A compilação das informações para 1829, conforme a Tabela 3, é fruto das condições ideais para a exploração de um documento dessa natureza, e assim nos aproxima, com maior nitidez, da população de velhos existente naquele ano. Apesar de continuar a haver um predomínio de homens e mulheres casados/as, há um aumento significativo dos viúvos e solteiros. Em relação às mulheres viúvas e solteiras, podemos dizer que este aumento está intimamente vinculado à chefia feminina da família ou domicílio, e que o crescimento econômico da vila permitiu a sobrevivência de um grande número de mulheres nestas situações (TEIXEIRA, 2004). A viúva Clara Maria de Jesus, de 58 anos, e Ana Maria do Prado, de 60 anos, que viviam de suas agências, são exemplos de algumas dessas mulheres que, apesar da idade, eram as responsáveis por suas casas18. Tabela 4 - Faixa etária dos habitantes idosos pela cor e sexo. Campinas, 1814 Faixa Estaria

Brancos

Pardos

Negros

Mulheres

Homens

Mulheres

50-59

59

30

36

32

157

60-69

30

14

20

18

82

70-79

7

3

2

2

14

2

2

1

5

49

60

80 + Total

96

53

Homens

Mulheres

Total

Homens

0

0

258

Campinas, 1829 Faixa Estaria

Brancos

Pardos

Negros

Total

Homens

Mulheres

Homens

Mulheres

Homens

Mulheres

50-59

83

63

42

30

1

3

222

60-69

58

36

8

8

1

111

70-79

11

13

4

1

1

30

80 +

4

5

4

2

1

16

Total

156

117

58

41

3

4

379

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

Quanto à cor declarada nas Listas Nominativas, vamos encontrá-las apenas para os anos de 1814 e 1829, sendo na Tabela 4 expostos os dados que demonstram o predomínio dos que eram brancos. Muitos destes eram filhos daquela geração que fundou Campinas, como Domingos da Costa Machado e Bernardo Guedes Barreto, já citados, não obstante a presença de homens e mulheres 18 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1829, 1ª Cia, Fogo 35 e 47 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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classificados como pardos surja com uma expressiva quantidade. Embora a presença de negros possa ser constatada desde o princípio do povoamento de Campinas, em virtude da existência de africanos escravizados que trabalhavam para muitos senhores, o aparecimento de negros livres, sobretudo acima dos 50 anos, vai ocorrer pela primeira vez apenas no ano de 1829. Exemplo de casal idoso que vivia sem o auxílio aparente de filhos ou demais parentes é retratado por Ignacio Pereira da Silva, um agricultor, natural de Curitiba, que aos 88 anos era casado com Catarina Maria, de 57 anos, ambos pardos e vivendo da roça19. Roque de Miranda era outro pardo, nascido em São Roque, domiciliado, em 1829, em Campinas, onde vivia de seus jornais ao lado de sua mulher, a jovem Maria Luiza de apenas 22 anos, também parda20. Já Manoel Barbosa, um dos poucos negros livres e chefe de domicílio, vivia ao lado de sua mulher, Francisca de Brito, ela com 45 anos e natural de Atibaia. Manoel Barbosa, que nascera em Jundiaí, contava com 51 anos no ano de 1829, e vivia da renda de seu trabalho como jornaleiro21. Mas foi outro Manoel que nos chamou a atenção pela idade de 70 anos, o qual era negro, solteiro, e vivia na condição de agregado no engenho de Ana Baptista, viúva de 66 anos, que tocava seu engenho com 18 escravos, estando acompanhada por seu filho Joaquim, de 35 anos, casado com Ana Teolinda, de apenas 17.22 A possibilidade para fazermos conjecturas sobre a vida desses idosos são muitas, mas o retrato que nos é mostrado pela lista nominativa nos basta para percebermos o quanto era difícil para ex-cativos, especialmente os mais velhos, manterem sua sobrevivência. Apesar da modesta produção de 400 arrobas de açúcar do engenho de dona Ana Baptista, suas condições de envelhecimento foram impactadas pela sua condição social, que a colocava no topo da pirâmide social, em nítida oposição ao agregado Manoel. A caracterização dada ao sujeito agregado, por Eni de Mesquita (1977, p. 42), é “o fato de não possuírem nem uma pequena porção de terra ou casa própria, tendo, portanto, que se ajustar aos proprietários das áreas rurais ou urbanas, dentro dos mais diferentes tipos de relações”. Essa definição não omite a existência de pessoas agregadas em condições socioeconômicas diferentes, como as situações em que encontramos mães, irmãos, filhos, sobrinhos ou netos do casal-chefe na condição de agregados, mas simplesmente aponta para a maior parte dos casos, em que eram solteiros e viúvos, com idade bem avançada, ou ainda crianças. Como já vimos pela Tabela 1, a presença escrava foi aumentando na medida em que o século XIX foi avançando, e no ano de 1829 a população cativa superou a livre em números absolutos. Diante disso, qual teria sido a participação da população de idosos enquanto proprietários de escravos? Para responder a essa questão, estudamos as Listas Nominativas de 1794, 1814 e 19 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1814, 5ª Cia, Fogo 50 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). 20 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1829, 1ª Cia, Fogo 100 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). 21 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1829, 7ª Cia, Fogo 33 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). 22 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1829, 4ª Cia, Fogo 105 (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp).

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1829. O primeiro ponto a ser destacado é que o percentual de proprietários idosos sofreu uma variação de 35,7% em 1794, para 30,4% em 1814 e atingiu a marca de 42% em 1829. Outro aspecto para o qual chamamos a atenção do leitor é de que a maior concentração de escravos estava nas mãos de poucos senhores idosos, de modo que em 1794, estes eram responsáveis por 41% do total de escravos (498); em 1814, os velhos senhores eram proprietários de 37% da escravaria da Vila de Campinas (1.893) e, em 1829, eles possuíam 43% dos cativos, de um total de 4.799. Mais significativa ainda é a concentração da riqueza na forma de escravos, pois no ano de 1794 oito idosos eram donos de 148 cativos, o que correspondeu a 71,9% da posse escrava dentre os escravistas com mais de 50 anos. Em 1814, essa concentração se fez ainda maior, quando apenas 14 idosos detinham a posse de pouco mais de 81% dos cativos pertencentes ao grupo dos velhos, proporção que não parou de crescer; enquanto, em 1829, 48 senhores de escravos com mais de 50 anos possuíam 89% da escravaria desse seguimento social. Essa pequena fração de idosos correspondia a senhores de engenho, proprietários de mais de 10 escravos, alguns com várias dezenas de cativos, como no caso de dona Ana Maria Ferras, viúva de 53 anos, que em 1829 contava com o trabalho de 70 escravos, além de 13 agregados, produzindo 2.400 arrobas de açúcar por ano. Ou ainda como exemplifica a condição de Francisco de Paula Camargo, casado aos 55 anos, e que era um senhor de engenho que produzia 1.500 arrobas de açúcar com o emprego de 59 escravos23. Os resultados apresentados concordam com a assertiva de Peter Eisenberg (1989, p. 354), ao dizer que “Os chefes de fogo mais velhos nesses dois anos [1809-29] eram os donos de engenhos, seguidos pelos agricultores de alimentos e os prestadores de serviços”. Havia mulheres que se tornaram proprietárias de escravos, mas a maior parte delas era composta por viúvas. Isso é interessante de se notar a partir do momento que estudamos a posse de cativos pela faixa etária e sexo. Em relação aos homens, por exemplo, no ano de 1829 eram proprietários de escravos 89 pessoas, dos quais 49 (43%) tinham entre 50 e 59 anos de idade. Por sua vez, as mulheres que aparecem em maior número como senhoras de escravos estão entre 60 e 69 anos, e nesse mesmo ano de 1829 foram arroladas 15 mulheres nessa faixa etária, das 24 que teriam ao menos um escravo. Isso indica que muitas dessas mulheres eram provenientes de famílias abastadas, parte da elite local e que desfrutavam da herança, geralmente deixada por seus pais e/ou maridos, como bem demonstrou Carlos Bacellar (1997) ao estudar as famílias de elite do Oeste paulista. 23 Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1829, 6ª Cia, Fogo 81, e 5ª Cia, Fogo 104, respectivamente (Fundo Peter Eisenberg, AEL, Unicamp). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Por fim, outro aspecto a ser examinado é o estado matrimonial dos viúvos. A Tabela 5 indica que, de todos os casamentos realizados em Campinas ao longo de mais de 70 anos, apenas 3 tiveram como noivos e noivas pessoas enviuvadas. Sem dúvida, os casamentos eram preferencialmente realizados entre celibatários (90,5% dos casos), fato também atestado pelo estudo de Elvira Mari Kubo (1974, p. 83) para Curitiba, onde os casamentos entre celibatários realizados no decorrer do período de 1801-1850 corresponderam a 87,9% dos noivos, sendo 7,1% de “recasamentos” entre viúvos e noivas celibatárias. A viuvez para os homens era resolvida mais facilmente, pois dos casamentos em que havia ao menos uma pessoa viúva, 127 delas eram constituídas por homens nessa condição (8,2%). Não obstante, as mulheres enviuvadas também preferiam casar-se com homens solteiros. Tabela 5 - Estado matrimonial dos cônjuges por sexo. Campinas, 1774 – 1850. Mulheres Celibatária

Homens Celibatário

Viúvo

Total

1.416

127

1.543

Viúva

18

3

21

Total

1.434

130

1.564

Fonte: Registros Paroquiais de Casamentos de Campinas (Arquivo da Cúria Metropolitana de Campinas).

Assim, casar novamente era uma alternativa, mesmo para senhoras idosas como Dona Joanna Maria de Deos que, não se importando com sua avançada idade, casou-se com um homem 24 anos mais jovem, tornando-o um senhor de engenho. Vejamos o que ela disse em seu testamento: Declaro que me rezolvo a contrahir outra ves o estado de Matrimonio com Joze Correia de Camargo y sendo eu já de idade sesagenaria e havendo netos filhos dos meos filhos [...] pesoa que bem administrou o Engenho e lavoura [sic] Contratei com dito meo marido nesta consideração Recebi como administrador e feitor [...] sic com o qual salario e trabalho se tem acresentado muito aproveitado os bens do meu cazal nos quais ele dito meu marido não tem Comunicão algua Cujo contrato fis com elle antes do consorcio. Declaro que da minha terça de que tenho somente [sic] instituo por meu herdeiro dela ao dito meu marido Joze Correia de Camargo. [...] declaro que a mesma terça que dou ao dito meu marido já lhe doei antes de nosso consorcio e por isso agora confirmo a mesma doação. Sem que de tal doação exista outro titulo anterior ao casamento [...] (Testamento, 1838, 1º Of., Cx. 82, nº 1947, Tribunal de Justiça da Comarca de Campinas, Centro de Memória - Unicamp)24.

Enfim, a “compra” de um marido poderia ser a solução de alguns problemas para aquelas mulheres que haviam deixado de ser pretendentes naturais, em função da idade, por exemplo. De 24 Outras informações na Lista Nominativa de Habitantes, Ano 1829, 3.ª Cia, fogo 90. (Fundo Peter Eisenberg - AEL/Unicamp).

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acordo com Samara (1993, p.44), parece que fatores considerados relevantes para a escolha de um parceiro na época, como a riqueza e a origem, foram deixados de lado nesse caso, prevalecendo apenas o desejo da mulher. O inverso também acontecia com homens que, em idade avançada e viúvos, queriam se casar. Fato semelhante sucedeu a José Correa Marques, pai de cinco filhos, sendo o caçula de 20 anos. Segundo uma testemunha, o mesmo lhe dissera que, temendo “quebrar os preceitos de mandamento”, preferiu casar-se, e assim fez. Ana Cardoza, a mulher escolhida, era uma jovem “mestiça mizeravel”, como ela mesma se identificou. O casamento durou pouco mais de um ano, pois o velho veio a falecer, trazendo grandes transtornos para a jovem madrasta, pois os filhos herdeiros tentaram impedi-la de receber seu quinhão após a partilha dos bens, e para isso contrataram diversos advogados, sendo um deles o Dr. José Arouche de Toledo, da cidade de São Paulo. A principal alegação para impedir a partilha dos bens com a madrasta foi a seguinte: [...] Por que o Pay dos Embargantes quando se cazou com a Embargada ja se achava doente de hidropezia, e da mesma molestia morreo, e com a Embargada não teve ajuntamento carnal para poder comonicarlhe a metade de sua meação, que por Direito do Reino lhe tocava cazo se confirmase o matrimonio [...] Por que a mesma Embargada tanto reconhece esta asserção que muitas vezes insitou a hum dos Embargantes a que se cazase com ella, por que com o Pay dos Embargantes não tinha confirmado o matrimonio, [...] se acha, pois que em hum anno que viverão de portas adentro não tiverão filho sendo a Embargada mossa, e bem disposta. [...] Por que conforme as leis do Reino que para marido, e mulher serem meeiros, e comunicar os bens de hum ao outro não só precizão cazar-se em face de Igreja, mas tão bem terem ajuntamento carnal, e não havendo este como não houve não deve a Embargada levantar ameação que se lhe fes neste inventario [...] (Inventário, 1798, 1.º Of., Cx. 1, nº 14, p. 29-84, Tribunal de Justiça da Comarca de Campinas, Centro de Memória - Unicamp).

Após a alegação de impotência, prevista como um dos impedimentos ao matrimônio sacramentado pela Igreja (Cf. SILVA, 1998, p.266-267), o processo continuou, e à defesa de Ana Cardoza, seguiram as testemunhas de ambas as partes envolvidas. Os filhos insistiam no fato de que a madrasta era mulher robusta e sadia, e como não havia sido “prenhada” no casamento, possivelmente não houvera “cópula carnal”. A armação dos enteados não resistiu às provas, e Anna Cardoza levou o que era de direito para sua nova casa, pois, após o falecimento do marido, a jovem viúva casara-se com Manuel Fernandes. Lana Lage (1987, p. 22) comenta que, por ser o casamento “uma instituição básica para a transmissão do patrimônio”, era essencial que houvesse “igualdade social entre os noivos”. Essa igualdade de que trata a autora referia-se aos aspectos de raça, religião e posição social, eleResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 7-30, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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mentos fundamentais à manutenção das ordens sociais. Nos casos dos viúvos que mencionamos acima, a preocupação de se casar com gente de sua “iguala” foi desprezada, e a diferença de idade surgiu como o primeiro indicador desse fato.

Considerações finais

Pelo exposto, viver e envelhecer em Campinas são processos que puderam ser reconstituídos a partir de histórias de vida recolhidas dos vários documentos ainda existentes sobre aquele período, assim como através da história de pessoas que eram velhas quando chegaram à vila campineira, ou ainda daqueles que nasceram naquela terra, cresceram, casaram, tiveram filhos e netos, e finalmente morreram. No entanto, ao fazer um exame dentro de uma perspectiva demográfica, e transformando essas informações em elementos para uma análise da velhice no passado paulista, chegamos à conclusão que os homens tiveram mais anos de vida do que as mulheres depois dos 50 anos de idade, motivo pelo qual a razão de sexo durante o estudo foi mais elevada, indicando um predomínio do grupo de homens idosos, também presente como um fenômeno comum ao passado paulista, conforme atestado por Marcílio (2000, p. 82). Assim, se hoje as mulheres da terceira idade vivem mais e, por essa razão, tornaram-se numericamente superiores nas faixas etárias relativas à velhice, devemos investigar sobre as mudanças ocorridas nos processos demográficos que levaram a essa inversão. Finalmente, esperamos que este ensaio tenha contribuído com o propósito maior de expor as potencialidades de uma variada documentação tão rica e valiosa para os estudos sobre a velhice nos séculos passados.

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Ser mãe numa vila colonial do ouro: vida (re)produtiva das mulheres da Paróquia de Antônio Dias de Ouro Preto, entre 1745 e 1804* Being mother in a colonial gold village: the (re)productive life of a parish of Ouro Preto (Brazil), between 1745 and 1804 Mario Rodarte; Isabella Oliveira; Michel Cândido de Souza Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG)

Resumo:

Abstract:

Este artigo busca verificar, através de dados de 1.400 mães coletados em fontes do período de 1745 a 1804, da freguesia de Antônio Dias, pertencente à Ouro Preto, os perfis desse conjunto de mulheres em idade reprodutiva. A base de dados utilizada foi desenvolvida na tese de doutorado de Campos (2012) e é construída a partir da união de registros paroquiais, listas nominativas e livro de tombos – um corpus extremamente rico, que permite entender parte da história dessas mulheres. O método escolhido para análise é o Grade of Membership (GoM), através do qual foi possível inferir quatro perfis “puros” no conjunto de mulheres em estudo, denominados: escravas africanas ou crioulas; mineiras e mulheres de outras partes da colônia; mães do fim do boom aurífero; e primeiras mães de Ouro Preto. Os resultados apontam que a dinâmica econômica teve forte impacto nos comportamentos captados nos quatro perfis delineados.

This paper aims to verify, through data from 1,400 mothers from the period 1745 to 1804 of the parish of Antônio Dias (Ouro Preto), the standards caractheristics of this group of women in reproductive age. The database, developed by Campos (2012), relies on the union of different types of historical data, as parish registers, nominative lists and other sources - an extremely rich database, that allows to understand part of the history of these women. The method chosen to analyze this database is the Grid of Membership (GoM), that made possible to infer four “pure” profiles: African or Criollo slaves; Mineiras and other Brazilian women; mothers of the end of the gold boom; and first mothers of Ouro Preto. The results show that the economic dynamics have a strong impact on the behaviors captured in the four delimited profiles.

Palavras-chave: Registros paroquiais; Lista nominativa de 1804; Fecundidade; Minas Gerais.

Keywords: Parish registers; 1804’ nominative lists; Fertility; Minas Gerais, Brazil.

* Este estudo foi desenvolvido no Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica do Cedeplar/UFMG no âmbito da pesquisa “Travessia: O processo de modernização da Minas Gerais Oitocentista pelos dados do censo econômico e demográfico de 1862”, coordenado pelo Prof. Mario Rodarte e com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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I n t r o d u ç ã o

O

recorte temporal de estudo que ora se apresenta abarca os períodos de auge (até aproximadamente a década de 1770) e, depois, de crise da economia de extração aurífera na capitania de Minas Gerais. Repudiou-se aqui qualquer alusão à ideia do Ciclo

do Ouro, por ser esta considerada inapropriada pelas abordagens mais recentes constantes na historiografia econômica. Essa ideia antiga, porém sedutora, de que a economia colonial brasileira funcionava em ciclos, em que produtos primários se sucediam em importância no tempo, foi convenientemente suplantada já em 1942, com o trabalho seminal Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior (1992). Para o autor dessa obra, era relevante evidenciar o sentido da colonização, isto é, a função das colônias de gerar, permanentemente, excedentes econômicos para suas respectivas metrópoles, estando, portanto, muito relacionado à história da expansão do comércio europeu, iniciada ainda nos séculos XIV e XV1. Como bem destacou Souza (2008, p. 176), Fernando Novais (1993) iria colocar o sentido da colonização como sendo os múltiplos fenômenos que, na abordagem marxiana, formaram a acumulação primitiva de capital e que, portanto, se constituíram como componentes fundamentais da transição do capitalismo para a sua forma industrial, centrada na Inglaterra2. A percepção de que a colônia tinha um dinamismo mais independente da economia européia fomentou o desenvolvimento de outra leitura sobre as relações metrópole-colônia e, mais tarde, centro-periferia, esta denominada Arcaísmo como Projeto, e defendida em livro homônimo por Fragoso e Florentino (2001), publicado originalmente em 1993. Segundo essa vertente, a ausência de grandes capitalistas comerciais numa economia portuguesa dominada por fidalgos determinou o surgimento de uma elite mercantil colonial. Essa elite nativa retinha parte 1 A ideia de ruptura da dinâmica da economia feudal aparece ainda mais radicalizada em Arrighi (1996). Ele postula que esse período teria sido o “marco zero” do capitalismo, com o mercado euro-asiático organizado pelas cidades-estados de Gênova, Veneza, Milão e Florença. A ascensão do capitalismo não se daria, contudo, afrontando diretamente o feudalismo, mas, pelo contrário, alimentando-se dele. 2 O boom aurífero seria, ainda, um elemento mais importante para o desenvolvimento industrial inglês, uma vez que financiaria o déficit da balança comercial de Portugal com a Inglaterra, pelo que foi estabelecido no Tratado de Methuen.

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do excedente oriundo das atividades produtivas na colônia, sem, contudo, deixar de atender aos interesses da metrópole. A autonomia garantida pelo capital acumulado pela elite comercial no Brasil era moderada e insuficiente em desenvolver mercado interno de forma dinâmica, pois os investimentos eram esterilizantes, uma vez que não retornavam para a produção e destinavam-se, na verdade, à compra de títulos e imóveis que garantiam renda. Ademais, a acumulação desse capital baseava-se no escravismo e em formas de trabalho não assalariadas. O resultado da operação do capital escravista-mercantil defendido por Pires e Costa (2000), assim como por Souza (2008, p. 198) era uma sociedade extrema e permanentemente desigual, apesar de comportar mobilidades sociais ascendentes e descendentes3. Deve-se aqui analisar as trajetórias reprodutivas das mães residentes na Paróquia de Antônio Dias como espelhos, em grande medida, da estrutura produtiva da economia do ouro. O presente texto é segmentado em quatro seções, além dessa introdução. O item a seguir faz um retrospecto dos estudos anteriores sobre fecundidade no período colonial. A parte subsequente trata de descrever o caminho metodológico percorrido para chegar aos resultados, que são apresentados na terceira parte do trabalho. Seguem depois, no último item, as considerações finais.

Fecundidade no período colonial

Nesta seção, apresenta-se uma breve revisão da literatura sobre a fecundidade4 no período colonial para o Brasil, assim como as estimativas geradas por esses estudos. Os trabalhos utilizados apresentam uma análise heterogênea, em que se incorporam diferentes regiões. Porém, são estimativas interessantes e benéficas para uma análise comparativa, ressaltando o cuidado necessário de considerar as particularidades regionais que influenciaram na construção desses indicadores. Teruya (2000) entendeu que as bases teóricas dos estudos de família passam pelas matrizes conceituais da família patriarcal, tendo como um dos maiores expoentes Gilberto Freyre, cujos 3 Nas vilas do ouro, como dizia Holanda (1997), a extração aurífera vis-à-vis outras produções coloniais, tais como a do açúcar, permitia maiores oportunidades às pessoas de pequenas posses. A administração da extração pela Coroa foi favorável ao não fechamento da exploração do ouro aos fidalgos e elite colonial com vistas a manter elevada a produção de ouro. 4 Conforme Carvalho, Sawyer e Rodrigues (1998, p. 20) fecundidade é um termo que refere-se a relação de nascidos vivos e mulheres em idade reprodutiva (de 15 a 49 anos). Esta é uma função que retrata o potencial reprodutivo das mulheres. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 31-46, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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estudos apontam para a existência de uma família extensa e rural, que se remodela em uma família nuclear e urbana. A família patriarcal que Teruya destacou é uma representação da própria estrutura colonial da época. Como o governo português não conseguia estar presente em toda a extensão territorial, era a família e seu patriarca que tomavam as rédeas do poder local. Porém, Teruya não deixou de mencionar que o estudo da família havia passado por um período de revisionismo. Dentro dessa nova perspectiva, no século XVII um modelo familiar diferente do modelo patriarcal era encontrado em São Paulo e, em maior número, no Nordeste. Para o território que viria a se constituir como Sudeste, Teruya (2000) enfatizou que a economia mineradora, especialmente em Minas Gerais, fracionou as famílias, assim como na economia cafeeira, em que esse modelo também se consolidou. Nadalin (2003) reflete sobre o quanto a dinâmica malthusiana traduz a dinâmica demográfica do período colonial e os riscos ao se generalizar o comportamento de todas as regiões de uma colônia tão vasta territorialmente. O foco do autor é direcionado a população da atual região do Paraná que foi marcada pela economia pecuária e uma grande necessidade de construção de identidade própria nas palavras de Nadalin (2003, p. 228). Para a atual região de Curitiba, a análise de dados paroquiais do século XVIII apresentou famílias com uma média de oito filhos por casal para a população livre, mas Nadalin (2003) alerta que cabe a reflexão de até quanto a realidade demográfica da região paranaense explica a fecundidade brasileira na época. A população nessa região foi marcada por um intenso processo de mestiçagem especialmente com os indígenas e viu nos seus domicílios a dinâmica familiar mudar devido à conjuntura econômica. Nadalin (2003) destaca que a exploração dos diamantes e do ouro fez com que muitas mulheres fossem abandonadas por seus maridos, surgindo um número expressivo de domicílios chefiados por mulheres. Teixeira (2005) traz um estudo focado na região de Campinas e na população livre. Os resultados encontrados, para o ano de 1794, foram: uma natalidade de 53 por mil, atingindo 70 por mil, em 1814, e uma média de quatro filhos por mulher. Comparativamente, Teixeira cita outros estudos de regiões paulistas, como Ubatuba, que apresentaram resultados diferentes dos alcançados, sugerindo a existência de mais de um regime demográfico dentro da própria região de São Paulo. Marcílio (1986) indica, em estudo anterior, uma natalidade de 50 por mil para a região Centro-Sul brasileira no século XVIII, valores próximos ao encontrado por Teixeira (2005) em 1794. Sem calcular a natalidade, Freitas (1986), no mesmo período que Marcílio , estuda o caso de Jundiaí, mas focando na distribuição do número de filhos por domicílio: das 26 propriedades analisadas, 59,7% apresentavam de 1 a 3 filhos; 29,3% de 4 a 6 filhos; 10,5% de 7 a 9 filhos; e 0,5% mais de 9 filhos. Mira (1986) analisa os registros paroquiais no período de 1714-1910, em Nossa Senhora do Rosário de Enseada Brito, atual região de Santa Catarina, e os resultados encontrados são uma idade média ao casar para as mulheres de 24 anos, além de um número médio de filhos por família de 4 a 6, e uma natalidade de 35 por mil.

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Schwartz (1986) estuda a população escrava da Bahia, mas em seu artigo apresenta a maior compilação de taxas brutas de natalidade, já calculadas por outros autores para a época. O autor apresenta para várias regiões Taxas Brutas de Natalidade e Mortalidade, destacando as TBN’s de Pernambuco em 1775 (41 por mil), Espírito Santo em 1817 (44 por mil), e Minas Gerais em 1815 com 36 por mil para brancos, 41 por mil para pessoas de qualidade (cor) não branca livres, e 33 por mil para escravos. De maneira breve, buscou-se resgatar algumas contribuições de importantes autores para o entendimento da fecundidade no período colonial. Percebe-se uma ótima oportunidade de contribuição a este objeto de estudo, uma vez que o aumento de fontes permite análises mais precisas aliadas à métodos demográficos.

Metodologia Fontes e dados Os dados utilizados neste trabalho são resultado da tese de Campos (2012), que construiu uma base de dados longitudinal, que combina distribuição de mães e filhos por faixa etária quinquenal materna, no período entre 1745 e 1804. A base de dados foi construída através do diálogo com diversas fontes históricas. Conforme aponta Campos (2012, p. 63), foram 8.123 registros de óbitos, 7.779 registros de batismos, e 1.036 registros de casamentos oriundos de registros paroquiais da Freguesia de Antônio Dias, no período de 1715 a 1804. Além dos registros paroquiais, também foram utilizadas a Lista Nominativa da Freguesia de Antônio Dias, de 1804, que contava com 4.548 indivíduos em 971 fogos5, e o Livro de Tombos do período de cadastramento de 1808, que registrava 471 imóveis da freguesia sujeitos ao pagamento de foros. A construção da base de dados de Campos (2012) passou por diversas etapas, sendo o resultado de um trabalho minucioso. A primeira etapa consistiu no levantamento de cada informação proveniente das fontes em bases separadas: uma base de batismos, casamentos, óbitos; a Lista Nominativa de 1804; e o Livro de Tombos de 1808. A segunda etapa consistiu na padronização da grafia dos livros para viabilizar o cruzamento nominal das informações, sendo o nome de 5 Fogo é uma unidade patrimonial utilizada no passado, que mesclava unidade doméstica e produtiva. Como não há hoje uma correspondência para comparação, é impossível chamá-lo de domicílio. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 31-46, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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batismo e família a principal variável para conexão dos registros. Nesta etapa, também foram realizados procedimentos de ajuste da declaração de idade. Por fim, Campos elaborou uma ficha única, com o cruzamento de todas as informações, de forma a obter a trajetória parcial do ciclo de vida dessas mulheres identificadas6. A base final de Campos (2012) analisa a história de 1400 mães residentes na Freguesia de Antônio Dias com idade declarada, e que tiveram pelo menos um filho batizado de 1760 a 1804 – mães que batizaram filhos fora deste intervalo foram desconsideradas. Das 1400 mães selecionadas, 43,10% eram livres, 29,70% escravas, 27,10% forras, e 0,10% sem informação. No quesito qualidade7 (cor), a maioria das mães estava declarada como crioula ou parda (75,50%). Já em relação o status marital, 57,5% eram casadas, e 42,50% solteiras. Campos (2012) calculou a função de fecundidade dessas mães, conforme Gráfico 1 abaixo: Gráfico 1 - Taxas Específicas de Fecundidade (TEFs) por idade de mães residentes na Freguesia de Antônio Dias, no período de 1745 a 1804.

Fonte: Campos (2012, p. 212).

A função de fecundidade dessas mães tem formato rejuvenescido e com lenta queda para os grupos etários mais velhos, indicando falta de mecanismos de controle de fecundidade, pois quando os mesmos existem, há uma queda mais brusca na função à medida que a idade avança. Essas mães tiveram, no período em análise, 5.509 filhos. 6 Todos os procedimentos em detalhes estão descritos na tese de Campos (2012), Sem dados não há demografia, com destaque para o Capítulo 5 – Método de Construção do Banco de Dados. 7 O termo qualidade, conforme Paiva (2015), era uma das inúmeras categorias usadas para distinguir os indivíduos na sociedade. De forma simplória, utiliza-se o termo cor entre parênteses, mas é um termo que vai muito além do tom de pele e merece uma discussão aprofundada que, porém, não será viável neste trabalho dado o limite de espaço e escopo da discussão.

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A Tabela 1 mostra algumas relações estabelecidas através do banco de dados construído por Campos (2012), em que percebemos haver diferenciais de fecundidade por determinadas características, como qualidade (cor), condição e estado marital. O que propomos é analisar esse banco de dados sob um novo olhar, tentando identificar perfis de mães, assim como verificando aqueles que são perfis principais, com características mais marcantes, e perfis mistos. Para tal análise, o método de Grade of Membership (GoM) mostra-se adequado, uma vez que permite verificar a força dos perfis dentro de uma gama características. Tabela 1 - Taxas Específicas de Fecundidade por Faixas Etárias Qüinqüenais do de Mães Residentes de Freguesia do Antônio Dias, entre 1745 a 1804 (N=1400). Características/ Faixa Etária

15-19

20-24

25-29

30-34

35-39

40-44

45-49

TFT

Branca

0,51

1,08

1,36

1,45

1,00

0,63

0,07

6,10

Africana

1,09

1,30

1,20

0,75

0,75

0,54

0,30

5,30

Crioulas

0,79

1,08

1,17

1,08

0,85

0,43

0,14

5,53

Pardas

0,68

1,14

1,32

1,15

0,88

0,56

0,12

5,85

Qualidade (cor)

Condição

Estado Marital Total

Livre

0,66

1,09

1,34

1,27

0,89

0,60

0,16

6,01

Escrava

0,98

1,18

1,11

0,89

0,72

0,37

0,09

5,33

Forra

0,69

1,13

1,21

1,05

0,85

0,42

0,12

5,47

Solteira

0,78

1,05

1,05

0,77

0,67

0,35

0,12

4,79

Casada

0,74

1,23

1,45

1,42

1,00

0,60

0,13

6,57

0,77

1,13

1,24

1,09

0,83

0,47

0,13

5,65

Fonte: Campos (2012, p. 213)

O método Grade of Membership (GoM) A Teoria dos Sistemas Nebulosos é o ponto de partida para compreensão da metodologia utilizada neste trabalho. Segundo Harris (1999), o objetivo dessa abordagem é processar informações de natureza vaga e incerta, possibilitando a modelagem e o enquadramento dessas informações em conceitos específicos. Ou seja, comparando a lógica matemática clássica com a nebulosa, no primeiro caso o pertencimento de um determinado elemento a certo conjunto é absoluto, enquanto que, no sentido binário, ou pertence ou não pertence. Já na lógica nebulosa, ou dos conjuntos difusos (fuzzy sets), os limites de pertencimento a determinado conjunto não são estabelecidos com precisão, além do que um mesmo elemento pode pertencer, em graus diferentes, a vários conjuntos. O Grade of Membership (GoM) é um método de modelagem para dados categóricos, que permite o agrupamento dos indivíduos utilizando a mesma lógica dos conjuntos difusos. Essa forma de classificar os indivíduos parece ser mais adequada e aplicável ao conceito de formação domiciliar, em comparação aos métodos clássicos de agrupamento com formações pré-definidas.

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A aplicação do mÊtodo GoM requer, inicialmente, informaçþes de um conjunto l de variåveis respostas discretas, ou características da população analisada, com um número Lj de subcategorias dentro de cada variåvel. De forma equivalente, pode-se definir Yijl como a resposta do indivíduo i, na categoria l da variåvel j.

Cada indivíduo de anålise serå caracterizado por uma quantidade de parâmetros individuais estimados, que são escores de pertencimento, denotados por gik, e indicam o grau de perten-

cimento do i-Êsimo elemento ao k-Êsimo perfil. Um indivíduo possui tantos parâmetros gik

quantos forem os perfis formados. Tais escores variam num intervalo [0,1], sendo que o escore 0 (zero) indica não pertencimento ao perfil estremo k, enquanto o valor 1 (um) indica que o perfil possui todas as características do k-Êsimo perfil, considerando que, no final, a soma dos seus graus de pertencimento em todos perfis deve ser igual a 1. Quanto mais um indivíduo i se aproximar do k-Êsimo perfil extremo, maior o seu grau de pertencimento em relação ao mesmo e, consequentemente, menor em relação aos demais. Para gik impomos as seguintes condiçþes:

đ?‘”đ?‘–đ?‘˜ ≼ 0 đ??ž

ďż˝ đ?‘”đ?‘–đ?‘˜ = 1

đ?‘˜=1

(1)

(2)

JĂĄ a probabilidade de resposta do nĂ­vel l da j-ĂŠsima variĂĄvel no perfil k ĂŠ dada por (kjl). Essas

probabilidades constituem-se, assim, em parâmetros de grupo. Tais parâmetros fornecem a

magnitude com que a resposta l da variåvel j estå associada ao k-Êsimo perfil extremo, e tambÊm pode assumir valores entre 0 e 1. Para kjl impomos as seguintes condiçþes:

Îťđ?‘˜đ?‘—đ?‘™ ≼ 0

(3)

(4)

A denominação de um perfil Ê feita com base na razão entre Νkjl e a frequência marginal de cada

atributo ou característica da população. Se Νkjl para um dado perfil for superior à frequência marginal, isso significa que uma característica se apresenta associada em maior grau a tipos puros do perfil k.

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Finalmente, a definição do nĂşmero de perfis extremos pode ser baseada em critĂŠrios estatĂ­sticos ou conceituais. Neste estudo, procuramos adotar o critĂŠrio estatĂ­stico, com a justificativa de que, com base neste critĂŠrio, os agrupamentos poderiam emergir sem a preconcepção do pesquisador acerca de qual o grupamento ideal, eliminando-se, assim, qualquer viĂŠs na definição dos agrupamentos. Formalizando matematicamente, se partirmos das restriçþes postuladas acima (para gik e kjl), assumimos que a probabilidade de resposta l para a j-ĂŠsima variĂĄvel para o domicĂ­lio i, condicionada aos valores de gik, ĂŠ dada por: đ??ž

đ?‘ƒđ?‘&#x; đ?‘Œđ?‘–đ?‘—đ?‘™ = 1 = ďż˝ đ?‘”đ?‘–đ?‘˜ Îťđ?‘˜đ?‘—đ?‘™

(5)

đ?‘˜=1

Por fim, para obtermos (gik e kjl), maximizamos a seguinte função verossimilhança:

(6)

O mĂŠtodo de mĂĄxima verossimilhança, em poucas palavras, ĂŠ uma abordagem utilizada para estimarmos parâmetros desconhecidos de um modelo populacional limitado estĂĄtico. A abordagem busca encontrar os parâmetros que maximizem a função verossimilhança utilizada e que melhor representem os dados dispostos. Contudo, como afirmam Guedes et al (2010), por se tratar de um mĂŠtodo de maximização estatĂ­stico, o procedimento utilizado para solução do GoM envolve aproximaçþes e pontos de partida para estimação dos resultados. Ou seja, o algoritmo busca a convergĂŞncia dos resultados por meio de uma matriz de probabilidades iniciais. Logo, dependendo da matriz utilizada (que pode ser fornecida ou gerada aleatoriamente), os resultados podem oscilar conforme as repetiçþes do modelo, o que gera a preocupação de estarmos observando mĂĄximos locais, e nĂŁo globais, para solução do problema. Para contornarmos tais situaçþes de gargalo do mĂŠtodo de verossimilhança, o programa GoM 3.48 8 Utilizamos o programa GoM versĂŁo 3.4, desenvolvido por Peter Charpentier, da Escola de Medicina da Universidade de Yale, e adaptado para a plataforma Unix por Rafael Kelles Vieira Lage (Sun Microsystems). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 31-46, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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foi executado algumas vezes para verificarmos o nível de oscilação dos resultados, dando maior robustez ao trabalho e possibilitando a identificação mais próxima da existência (ou não) de um máximo global.

As trajetórias reprodutivas das mães

Foram introduzidos no modelo 27 variáveis que permitem delinear os perfis de trajetórias de vida reprodutiva das mães habitantes de Antônio Dias. Os resultados podem ser observados na Tabela 2 (Anexos). Segue a análise dos perfis puros.

Perfis extremos P1: Escravas africanas ou crioulas: As mulheres aqui incluídas eram solteiras em sua maioria. Quando casadas, seus maridos eram africanos. As informações ocupacionais disponíveis sugerem que eram escravas de ganho de fogos que desempenhavam várias atividades econômicas por terem os chefes listados em agências, quando estes não eram mineradores. As próprias escravas exerciam atividades de comércio. O início da vida reprodutiva era precoce, entre 15 e 19 anos. Algumas morriam cedo, antes dos 40 anos, às vezes com complicações do parto. Tinham elevada parturição jovem, tendo entre 4 a 6 filhos antes de completarem 30 anos. A partir daí, encerravam o período reprodutivo, de forma mais precoce que em outros perfis. Em 1748, nascia uma mulher na África que, traficada para o Brasil e indo residir nas lavras de Antônio Dias, viria a ser uma das mulheres que tinham total identificação com esse perfil. Cativa de Manoel Dias Guimarães, Tomásia Angola teve a experiência da maternidade logo aos 15 anos, sem se casar. Viveu pouco, vindo a morrer com apenas 24 anos, provavelmente em decorrência de complicações do parto do seu quinto filho. O caráter efêmero da vida dessas mulheres exploradas pela escravidão, em especial no auge da mineração, fez com que poucas sobrevivessem até o censo de 1804. Ana Banguela seria uma das poucas exceções, mas tendo apenas 74% de identificação com esse perfil de mãe. Tinha 35 anos quando foi listada na periferia de Antônio Dias, no fogo de Maria da Costa de Oliveira, uma parda de 48 anos (pelo seu registro de batismo, 57 anos), conforme consta em Mathias (1969, p. 135). Além das duas, esse fogo feminino tinha apenas mais três escravas crioulas entre 19 e 11 anos, provavelmente filhas de Ana Banguela. Como as demais mães desse perfil, sua fecundidade foi precoce. Pelos

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dados dos registros paroquiais, Ana Benguela, solteira, teria tido seis filhos, sendo o primeiro parto ainda quando ela tinha entre 15 e 19 anos, e o último quando tinha entre 30 e 34 anos. P2: Mães mineiras e de outras partes da colônia: Naturais de Antônio Dias e arredores, quando não vindas de outras freguesias de Minas ou de outras capitanias. Essas mães eram, sobretudo, pardas e casadas com homens também oriundos de Antônio Dias e outros lugares de Minas. Eram livres ou libertas na sua vida adulta. Supostamente essas mulheres pertenciam a fogos que produziam manufaturados, sendo elas mesmas também trabalhadoras em atividades manuais e mecânicas. Eram mais longevas que as escravas, em geral vivendo entre 35 e 60 anos. Não havia evidência de que morriam em decorrência dos partos. O início da vida reprodutiva era pouco mais tardia do que as escravas. Algumas começavam a ter filhos após os 20 anos. Contudo, tinham período de espaçamento entre filhos baixo, pela frequência de partos: geralmente até os 29 anos de idade já tinham de 3 a 6 filhos, chegando até a 10 filhos. Batizada em 1751 na própria paróquia de Antônio Dias, Maria Josefa da Conceição se enquadra nesse segundo perfil. Parda, casou-se aos 20 anos com o português Félix Dias Monteiro. Ela teve 11 filhos, sendo o primeiro antes do casamento. Quando morreu, em 1801, aos 50 anos, seu marido já havia morrido um ano atrás e o seu filho mais novo já contava com mais de 10 anos. Por residirem em região de lavra, é possível que o fogo do casal desempenhasse funções relativas à mineração. A parda Vicência de Araújo Silva era outra mãe identificada nesse perfil. Nascida escrava na Paróquia da Candelária, no Rio de Janeiro, no censo de 1804 ela aparece com 40 anos, já forra e separada do seu esposo Manuel da Silva Freitas, e chefiando um fogo, de sete pessoas, no centro de Antônio Dias (MATHIAS, 1969, p. 37). Vicência e suas outras três filhas mais velhas (de 25 a 13 anos) trabalhavam com costuras, enquanto a única agregada, Juliana, uma crioula de 60 anos, vivia de esmolas. Os outros dois filhos menores de 10 anos não aparecem com ocupações declaradas. Pelos dados dos registros paroquiais, Vicência teria tido, até os 40 anos, 12 filhos, sendo que apenas um havia nascido antes de ela completar 20 anos. P3: Mães do fim do boom aurífero (1752-1788): Elas eram nascidas em Ouro Preto, na sua maioria, o que sugere consolidação da população nativa do lugar. A prevalência de pardas entre as mães do fim do boom aurífero também sugere o processo de miscigenação inerente à formação da população brasileira, em geral, e as especificidades do afluxo populacional de várias origens para as áreas de mineração de Minas Gerais, em particular. A maior presença das mães desse perfil residia no núcleo central de Antônio Dias e, em especial, na sua periferia, o que reflete, talvez, as transformações daquela sociedade, que foi se deslocando das lavras para os demais espaços, com a diversificação das atividades econômicas. O papel que desempenhavam no fogo, bem Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 31-46, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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como as funções econômicas, tanto do fogo como da mãe, não são demarcados, o que sugere generalização desses aspectos. Sabe-se, contudo, tratar-se de mães livres na quase totalidade. Quando casadas, seu cônjuge originava-se da própria região de Ouro Preto e arredores. O primeiro parto era geralmente mais tardio que os dois perfis anteriores, dando-se a partir dos 18 anos, mas sendo frequente também entre os 25 e 29 anos. Além disso, tinham menor fecundidade, gerando, normalmente, apenas de um a dois filhos antes de chegar aos 30 anos, o que pode sugerir a influência da diminuição das perspectivas econômicas, com a crise da mineração, no desejo de ter filhos. A proximidade do tempo de vida dessas mães com o limite superior da pesquisa faz com que não se permita traçar a parte final da história de vida delas com muita precisão, pois poucas delas morreram antes de 1804. Uma dessas mulheres que estão listadas no censo de 1804 é Florência Pinto das Neves, que nasceu em Antônio Dias em 1771. Parda, aparece no censo casada com o também pardo Francisco Camilo de Mendonça. Quando o censo é feito, Florência teria 33 anos (embora tenha sido registrada com 30 anos), e o marido tinha idade próxima à dela (29 anos). Residiam, nessa época, na periferia de Antônio Dias, no distrito de Alto da Cruz. Provavelmente, a renda do fogo era obtida pela função militar do marido, membro do “2º regimento da Cavalaria de Mariana”, e do trabalho do único escravo africano que possuíam, Felipe Banguela, então com 36 anos. Com apenas cinco anos de casados, Florência e Francisco já teriam tido quatro filhos, segundo os registros de batismo. Todos após o casamento. Contudo, no censo há a declaração de apenas um filho, Francisco, de dois anos. Como nos outros casos, a razão para essa discrepância pode ser atribuída à mortalidade e ao sub-registro de crianças. P4: Primeiras mães de Ouro Preto (1715-1752): Este perfil não circunscreve apenas os primeiros nativos das recém-instituídas paróquias de Antônio Dias e dos arredores de Ouro Preto, por incluir algumas portuguesas e africanas. As primeiras mães de Ouro Preto residiam, sobretudo, nas áreas de lavras auríferas. Quando mães, na sua maioria eram livres ou já alforriadas. Nos fogos, ocupavam o lugar de agregadas ou, em especial, de esposas dos chefes que, via de regra, eram naturais da Colônia, ou mesmo vindos de Portugal. Mineração, comércio e artes manuais e mecânicas eram atividades centrais praticadas nesses fogos, quando não eram chefiados por funcionários públicos ou profissionais liberais. As fracas evidências sugerem que as mães pertencentes a esse perfil tinham vida econômica ativa, muitas vezes voltada para o comércio. Há evidências de que pudessem ter tido vida mais longa, se comparado aos outros perfis de mães, com muitas morrendo com 60 anos ou mais. Como se supõe, as mortes não estavam relacionadas aos partos. O primeiro parto inaugurava a vida reprodutiva em idade mais avançada, a partir dos 30 anos. Muitas tinham filhos até o final da sua fase fértil. Entretanto, elas chegavam ao final do período reprodutivo com poucos filhos, em geral, um número não superior a quatro.

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A branca Maria de S. José de Oliveira tem a trajetória de vida identificada com esse perfil. Ela tinha nascido em Marina, aproximadamente em 1730, com ambos os pais vindos de São Paulo. Aos 16 anos, casou-se com o comerciante português Antônio de Fontes Leal e com ele ficou até os seus 38 anos, quando se tornou viúva. A constituição do banco de dados permite apenas que se analise o comportamento reprodutivo dela a partir dos 30 anos. No censo de 1804, Maria de Oliveira, já com 74 anos (ou 68 declarados), aparece em fogo solitário, no centro de Antônio Dias, desacompanhada, portanto, de qualquer um dos quatro filhos que ela teve a partir dos 30 anos (MATHIAS, 1969, p. 30). O mais velho, se vivo, estaria então com idade próxima a 36 anos.

Representatividade dos perfis puros e mistos Um aspecto importante da análise de GoM diz respeito à possibilidade de se ter dimensão da quantidade de elementos (no caso, mães) enquadrados em cada um dos perfis. Empregando uma expressão booleana, em que as mães identificadas aos perfis puros teriam elevada identificação com os perfis extremos apresentados acima9, observou-se que os perfis puros representaram a metade das trajetórias de vida reprodutiva, como mostra a Tabela 2. Tabela 2 - Distribuição das mães segundo tipos puros e mistos – Paróquia de Antônio Dias – 1745-1804. Perfis puros e mistos de mães

Mães N.

%

1.400

100,0

699

49,9

P1: Escravas africanas ou crioulas

111

7,9

P2: Mães mineiras e de outras partes da colônia

124

8,9

P3: Mães do fim do boom aurífero (1752-1788)

256

18,3

P4: Primeiras mães de Ouro Preto (1715-1752)

208

14,9

Perfis mistos

426

30,4

Amorfos

275

19,6

Total de mães Perfis puros

Fonte: Elaborado por Campos (2012) a partir do Banco de Dados Demográficos da Paróquia de Antônio Dias.

As trajetórias reprodutivas de mães que conciliavam elevada pertinência de apenas dois perfis extremos, que são os chamados perfis mistos, respondiam por 30,4% dos casos10. Apenas 19,6% das mães tinham perfis pouco pautados pelos perfis extremos, de modo que conformariam o perfil amorfo. 9 Assumiu-se que, para a mãe pertencer ao perfil puro x, ela teria de ter, ao menos, 70% de identificação com os perfis extremos x, isto é, 70% de pertinência a x (gx > 0,70). Para uma discussão mais aprofundada sobre agrupamentos dos elementos, ver Guedes et al. (2016, p. 86). 10 Para definição dos perfis mistos, as mães teriam de ter, ao menos, 40% de ambos os perfis extremos predominantes. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 31-46, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Considerações finais

Como nos apontaram Fragoso e Florentino (2001) e Souza (2008), a economia colonial era um sistema gerador de desigualdade, o que, de forma iterativa, repercutia criando (e refletindo) diferentes condições de vida e padrões de comportamento. O presente trabalho buscou evidenciar a multiplicidade de condições reprodutivas para além do que já havia sido evidenciado pela autora da própria base de dados aqui utilizada (CAMPOS, 2012). Campos (2012, p. 214) havia apontado, no quesito qualidade (cor), a menor fecundidade das africanas e crioulas em contraposição às brancas e às pardas e, em relação à condição social, a menor fecundidade das mães escravas em relação às livres. Mostrou-se, agora, haver uma relação das mães oriundas da base da pirâmide social com uma entrada mais precoce na vida reprodutiva, o que, adicionado ao maior estado de pobreza e vulnerabilidade, poderia acarretar numa maior frequência de mortes por complicações no parto. Também é possível vislumbrar a mudança do comportamento reprodutivo à medida que a euforia com a maior extração aurífera vai cedendo espaço para a estagnação econômica. Segundo a perspectiva malthusiana, a diminuição de oportunidades econômicas pode gerar um adiamento do casamento (e correspondente diminuição da fecundidade) em algumas sociedades, o que foi denominado xeque preventivo ao crescimento demográfico. Embora o perfil das mães do fim do boom aurífero se relacione a uma fecundidade mais tardia (a partir de 18 anos), mais estudos precisam ser desenvolvidos para se ter uma avaliação mais precisa das razões desse comportamento.

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Muito além da alcova: a participação da mulher viúva na economia do Antigo Regime (Rio de Janeiro, c. 1763-1808) Beyond the alcove: widows participation in the economy of the Ancient Regime (Rio de Janeiro, c. 1763-1808) Cristiane Fernandes Lopes Veiga Universidade de São Paulo

Resumo

Abstract

O objetivo deste artigo é estudar a participação da mulher viúva na economia e sociedade da capitania do Rio de Janeiro durante os 45 anos que antecederam a chegada da família real ao Brasil. Para tanto nos dedicamos à análise dos inventários post-mortem e testamentos disponíveis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro nos Fundos Juízo de Órfãos e no Arquivo Ultramarino, especialmente os casos em que havia a necessidade de tutores para os órfãos menores de idade. Por essa documentação observamos que muitas viúvas foram encarregadas de gerir grandes patrimônios depois de feitas as partilhas. Elas se tornaram responsáveis pela manutenção tanto de si quanto dos órfãos até sua maioridade, casamento ou emancipação.

The main purpose of this study is to explore the widows’ participation in Rio de Janeiro captaincy’s economy and society during the last forty-five years before the Portuguese Royal Family arrival in Brazil. Therefore, we have dedicated to analyze postmortem inventories and wills available in National Archive of Rio de Janeiro, in the collections “Juízo de Órfãos e Ausentes”, “Juízo de For a” and “Casa de Suplicação”, as well as the documents available on the Overseas Historical Archive, especially cases which there was a need for underage orphans’ tutors. From this documentation we have found that many widows were in charge of managing large heritages after the shares were made. They became responsible for the maintenance of both themselves and orphans until their adulthood, marriage or emancipation.

Palavras-chave: Viúvas; Tutoria; Rio de Janeiro.

Keywords: Widows; Guardianship; Rio de Janeiro.

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I n t r o d u ç ã o

N

esse trabalho pretendemos iniciar um debate a respeito da participação das mulheres viúvas que assumiram a tutoria dos herdeiros menores de seus maridos falecidos no período entre a transferência do vice-reinado de Salvador para o Rio de Janeiro

até a chegada ao Brasil da família real. Para tanto, estudamos os inventários post-mortem à disposição no Arquivo Nacional, sobretudo a documentação do Juízo de Órfãos e Ausentes, Juízo de Fora e Casa de Suplicação, bem como as requisições de viúvas endereçadas ao Conselho Ultramarino. O que propomos aqui é examinarmos qual o papel da mulher na sociedade e economia coloniais, procurando entender como os tradicionais papéis de gênero foram sendo moldados e adaptados pelas necessidades cotidianas dessas viúvas, conferindo a essas mulheres poderes que elas procuravam manter apesar dos limites que lhes eram impostos pelo meio em que viviam. O Antigo Regime se caracterizava pela familiaridade de sua população com a morte, a fome, as guerras, a elevada taxa de mortalidade infantil e neonatal, as epidemias, as pestes e as doenças endêmicas (PELLEGRIN & WINN, 1998, p. 15). Conviver com o fim da vida cotidianamente só vai ser um fato estranho ao indivíduo a partir de meados século XIX (LIVI-BACCI , 1997, p. 118-20). Na colônia portuguesa do Atlântico a situação muitas vezes se agravava pela falta de assistência local e pela distância dos núcleos de povoamento. Uma série de mudanças estava em curso na América lusa durante o desenrolar do século XVIII. O ouro das Minas Gerais levou a coroa portuguesa a dedicar mais atenção à sua colônia, ao mesmo tempo em que o comércio do Oriente perdia vigor. Uma onda de migrantes da metrópole chegou ao Brasil à procura de riqueza ajudando a ocupar e construir o que seria o território brasileiro. A cana-de-açúcar e os engenhos ganhavam destaque nas capitanias ao sul da então capital do vice-reino, na cidade de Salvador. Uma economia de subsistência, baseada em produtos para o consumo, expandia-se e preenchia vazios deixados pela necessidade de gêneros como farinha, frutas, carne, feijão e milho. Nesse contexto, marcado por conflitos e disputas, viviam as mulheres viúvas.

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De acordo com as Ordenações Filipinas, as mulheres eram consideradas meeiras do patrimônio do casal e com a extinção do matrimônio por falecimento de um dos cônjuges, as viúvas se tornavam cabeça de casal e herdeiras de metade de tudo o que o casal construiu na constância do matrimônio (ORDENAÇÕES, 1870, p. 832). A tutela dos filhos também podia ser requerida por elas (ORDENAÇÕES, 1870, p. 994) ou instituída em favor da esposa pelo marido em testamento1. As viúvas nomeadas para serem tutoras de seus filhos, além da meação que lhes cabia quando o marido morria, segundo o que previa o matrimônio por carta de ametade2, ainda administravam as legítimas de seus filhos menores quando havia bens, o que muitas vezes colocava sob sua responsabilidade patrimônios inteiros dos casais. Sabemos que não era raro que familiares, sobretudo homens, ajudassem as viúvas a manter os legados, nos casos por nós estudados neste trabalho, no entanto, privilegiamos os inventários cujas viúvas e mães fossem administradoras e tutoras dos patrimônios e dos herdeiros até a entrega da herança ao órfão. Com base nessas considerações observamos que havia uma sobreposição de papéis nos casos em que as mães eram tutoras, pois além de mães, elas eram provedoras de seus filhos. As viúvas, que também eram mães tutoras, ultrapassavam as barreiras dos tradicionais papéis de gênero de mães e esposas 3, tornavam-se senhoras de escravos e de terras, negociantes ou lavradoras. As leis do Reino garantiam a elas essa possibilidade o que ainda lhes assegurava, frequentemente, uma fluidez nos limites entre os espaços públicos e domésticos no seu cotidiano. 1 É importante salientar que tanto os inventários quanto a documentação disponível do Conselho Ultramarino são fontes produzidas pelos representantes da coroa na América Portuguesa e na metrópole, com base em uma legislação que teve sua origem em um complexo jogo de negociações, de concessões e de idas e vindas que cooptavam tanto o monarca quanto seus representantes e seus vassalos. Dessa forma, para compreendermos a documentação e a legislação que as normatizava faz-se necessário entendermos como essas negociações aconteceram no âmbito do poder central e periférico. Para Silvia H. Lara (2000), “é preciso se analisar o ‘modo de produção’ das leis e das normas jurídicas da sociedade para se entender a legislação de um período. A vontade do soberano, expressa na lei, era resultado de um importante jogo político entre as diversas instâncias do governo real”. Os inventários post-mortem e a documentação do Conselho Ultramarino, portanto, devem obedecer a padrões e normas estabelecidos para que sejam válidos e aceitos, ou seja, necessitam se conformar ao conjunto da legislação que os rege. Dessa forma, os documentos por nós estudados entre 1763 e 1808 são tanto testemunhas do pensamento e das atitudes dos agentes de dominação coevos, quanto daqueles que o produziam na colônia. E ainda, são o resultado de constantes adaptações das necessidades que se colocavam no dia a dia dos súditos da coroa. 2 Também conhecido como casamento segundo as Leis do Reino, o casamento por carta de ametade era aquele em que, depois do falecimento do marido, os bens do casal eram divididos entre a esposa e os herdeiros. Nessa modalidade de matrimônio, o dote da esposa, quando houvesse, deveria retornar intacto para ela (ORDENAÇÕES, 1870, p. 832). 3 A preocupação de pesquisadores em delimitar conceitualmente as relações de gênero, determinadas em termos das relações de poder entre homens e mulheres, ganhou destaque com a necessidade das acadêmicas feministas em estruturar seu objeto de estudos, as mulheres, a partir da década de 1960. A produção de trabalhos sob a perspectiva de gênero tem demonstrado que há a necessidade, sobretudo, de se historicizar questões relativas aos papéis de homens e mulheres. Para tanto, é preciso se ter em mente que esses papéis são construídos com base em estruturas de poder e em culturas específicas. As pesquisas feitas nos últimos anos, com base nos pressupostos de gênero, realçam o fato de que deve-se levar em conta, ainda, que as relações de gênero se concretizam de forma diversa de acordo com o pertencimento das mulheres a classes e raças diferentes. Sob essa perspectiva se moldam os papéis de homens e mulheres, bem como conformam-se e diferenciam-se as esferas do público e do privado, tradicionalmente associados ao masculino e ao feminino. Para uma discussão a respeito de questões relativas aos estudos de gênero, ver Scott (1990), Piscitelli (2002) e Franco (2015). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Além dos muros

A transferência do vice-reinado da Bahia para o Rio de Janeiro veio consolidar uma situação previsível por volta de 1750. Desde então, a cidade do Rio de Janeiro já surgia como importante porto de importação e exportação do Império, constituindo-se como destacada praça mercantil da região Centro-Sul. Aliava-se a tal fato a necessidade de se empreender uma fiscalização mais efetiva do ouro das Minas. Os constantes conflitos nas capitanias do Sul (Rio Grande de São Pedro e Santa Catarina) e na Colônia do Sacramento exigiam maior proximidade das autoridades coloniais dessas áreas ameaçadas. Nessa mesma época, a maioria do aparelho administrativo já se achava instalado na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro4. Durante o século XVII, a capitania do Rio de Janeiro vinha ganhando proeminência no cenário do Império ultramarino português. Observa-se a multiplicação do número de engenhos que, em 1580, eram apenas três, passam a 40 em 1612, chegando a 60 fábricas em 1629 e, em 1639, somavam 110 (SAMPAIO, 2003, p. 65)5. Juntamente com a expansão açucareira, cresceu a presença de mercadores fluminenses no tráfico atlântico de cativos, o que demonstra a dinâmica dessa praça frente as demais da colônia (FLORENTINO, 1995). Ao mesmo tempo, a reconquista de Angola, com a forte presença da elite mercantil e política da capitania no processo6, comprovava a dinamização da economia fluminense (SAMPAIO, 2003). Os primeiros engenhos surgiram nas proximidades da área do povoamento inicial da cidade de São Sebastião. Com o tempo, eles foram se afastando, seguindo rumo ao interior, acompanhando a expansão agrícola e o consequente aumento da população (ABREU, 2010, p. 83). Durante o período entre a segunda metade do século XVII e o seguinte, houve o crescimento do setor da produção de alimentos (SAMPAIO, 2003, p. 115 e seguintes). Enquanto isso, as fábricas foram ganhando o espaço do recôncavo da Guanabara, até a Baixada Fluminense (SCHAEFFER & GEIGER, 1952) e a capitania de Paraíba do Sul (LAMEGO, 2007). Entretanto ao mesmo tempo, o mercado internacional sofria com as constantes oscilações no preço do açúcar e com as crises políticas e econômicas durante todo o período, cujas consequências sentia-se abater sobre a colônia. Durante o século XVII uma série de disputas entre nações contribuíram para uma nova conformação de forças no mundo e na colônia lusa. O conflito entre Espanha e Províncias Unidas 4 Nessa época, já estavam instalados na cidade do Rio de Janeiro o Tribunal da Relação (1751), a Mesa de Inspeção (1751) e a Intendência do Ouro (1751) (ALDEN, 1968, p. 45). 5 Abreu (2010, p. 81) contabiliza, em 1580, três engenhos, e 131 entre 1691-1700. 6 O próprio governador da capitania, Salvador Correa de Sá e Benevides, lutou para recuperar Angola dos holandeses.

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resultou na ocupação holandesa em Pernambuco e na Bahia (1630-1654) durante a união das coroas de Portugal e Espanha. Com a Restauração portuguesa, houve o aumento dos custos militares com os embates que se estenderam na Península Ibérica até 1668 e um sério déficit com a interrupção do comércio com as províncias espanholas. A tomada de Luanda pelos batavos dificultou a obtenção de mão de obra escrava. Por fim, a entrada das Antilhas no mercado do açúcar (1650) resultou na perda de mercado consumidor, na baixa dos preços e no aumento da competição para obter mão de obra escrava. Ao mesmo tempo, internamente, o crescimento da atividade mineradora teve consequências diversas. Durante a primeira metade do XVIII, o resultado foram crises de abastecimento e fome na capitania (SILVA, 1990), que logo deram início ao incremento do setor de alimentos para abastecer as minas. Em seguida, os conflitos entre paulistas e portugueses, com a vitória dos Emboabas sobre os paulistas, resultou na inserção de fluminenses no mercado das minas, colocando-os definitivamente como protagonistas do complexo atlântico português. Por fim, a construção do Caminho Novo reforçava a participação da capitania fluminense no comércio interno e externo (SAMPAIO, 2003, p. 80-99). Na segunda metade do século XVIII, aconteceu uma mudança política decisiva: a ascensão ao poder do Marquês de Pombal (FALCON, 1982). No setor econômico, os produtos coloniais sofriam com crises sazonais, provocando déficits elevados na balança comercial portuguesa. O volume de ouro extraído das minas diminui entre as décadas de 1760 e 1780. O açúcar sofria com baixas nos preços (1749-1776), os diamantes escasseavam e aumentava o valor dos escravos (ARRUDA, 1980). Diante de tal conjuntura, Sebastião José de Carvalho e Melo, como ministro de D. José, iniciou uma série de medidas para recuperar a economia portuguesa e aumentar a fiscalização sobre as possessões portuguesas no Atlântico7. Na colônia, o Marquês do Lavradio assumiu o vice-reinado. Simpatizante do movimento ilustrado, ele empreendeu uma série de medidas para diversificar a economia e desenvolver a agricultura, melhorar as defesas da colônia, bem como dinamizar a administração8. Os governos dos vice-reis posteriores ao do Marquês do Lavradio começaram com uma conjuntura econômica mais favorável, com tendência de alta nos preços do açúcar, apesar de ainda haver uma preocupação dos governantes da metrópole, sobretudo com D. Rodrigo de Souza Coutinho, 7 Entre elas podemos destacar a instalação da Mesa de Inspeção (1751), Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751), criação das Companhias de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755) e Pernambuco e Paraíba (1759), instalação do Colégio dos Nobres (1760), organização da Intendência Geral de Polícia do Rio de Janeiro (1766), criação de aulas régias, expulsão dos Jesuítas (1759), reforma da Universidade de Coimbra (1772). 8 Pelo relatório que o Marquês do Lavradio (1842) escreveu para entregar a seu sucessor, percebe-se a preocupação em se implantar novas culturas que aumentassem a arrecadação e diversificassem a economia, são elas: o cultivo da cochonilha, do cânhamo, do anil, do algodão, do fumo da Virginia e do arroz Carolina. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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em promover o desenvolvimento dos diversos setores agrícolas nos territórios de ultramar (DIAS, 1968, p. 112-3; MAXWELL, 1973). No final do século XVIII, o porto do Rio de Janeiro era o primeiro em importação e exportação de produtos e se destacava na redistribuição de mercadorias para outras capitanias. A sede do vice-reinado participava com 38,1% das importações e 34,2% das exportações, à frente da Bahia, cujos índices correspondem a 27,1% e 26,4% no mesmo período. Pernambuco ficava em terceiro lugar de participação absoluta (21% e 22,7%, respectivamente), seguido por Maranhão e Pará; em últimos lugares, Santos, Paraíba e Ceará (ARRUDA, 1980, p. 133). O início da década de 1790 foi um momento de crescimento da economia açucareira devido aos preços elevados, consequência da interrupção no fornecimento do produto pelo Haiti. Entretanto, entre 1799 e 1811, o preço do açúcar branco exportado pelo porto do Rio de Janeiro caiu a uma taxa anual de 5,7%, e suas receitas a uma taxa anual de 19,9% (FRAGOSO, 1992, p. 22). Alden (1984, p. 356) assinala que, entre 1769 e 1778, houve um crescimento de 235% na produção açucareira, quando o número de engenhos passou de 56 para 104, elevando-se também o número de escravos de 3.192 para 4.871.

Pela muita capacidade que ela tem... É nesse contexto que pretendemos analisar as tutelas dos herdeiros menores assumidas pelas viúvas nos inventários post-mortem. O Juiz de Órfãos era a autoridade responsável pelos inventários que envolvessem algum herdeiro órfão menor de vinte e cinco anos, fossem filhos, netos ou qualquer outro menor indicado como herdeiro do inventariado. Para cuidar dos interesses desses órfãos era nomeado um tutor, indicado em testamento ou sugerido pelo Escrivão dos Órfãos que deveria ser aprovado pelo Juiz de Órfãos. Os tutores podiam ser as mães, avós, parentes próximos ou pessoa idônea, de qualidade9 e com bens. Cabia ao tutor administrar com zelo os bens das crianças e era obrigado a prestar contas do que fazia com a herança quando solicitado. Ainda havia o curador geral dos Órfãos, cuja função era fiscalizar a partilha e as contas apresentadas pela inventariante, bem como a boa administração do legado. Em caso de má gestão, a legislação previa que o tutor fosse responsabilizado e mandava que se restituísse o prejuízo à 9 O conceito de qualidade, geralmente, está ligado à cor. Relaciona-se à ideia de que alguém tem qualidade, também, quando não se sujeita a trabalhos mecânicos. Sobre o conceito de qualidade ligada à cor, ver Paiva (2016, p. 57-81). Sobre a ideia de calidad na América Espanhola, consultar McCAA (1984, p. 477-501). Sobre a discussão do conceito de qualidade e cor nas Américas portuguesa e hispânica, ver Raminelli (2015, p. 207-239).

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legítima do menor. Qualquer ameaça aos bens dos herdeiros sob encargo do tutor ou o abandono do inventário pela viúva inventariante permitia o sequestro dos bens. A tutela dos menores podia ser testamentária, legítima ou dativa. Tanto mães quanto avós, dizia o Título 102, no Livro 4 das Ordenações, podiam ser tutoras desde que não se casassem novamente e renunciassem à Lei de Velleano10. Nos casos em que as mães não foram indicadas em testamento (tutoras testamentárias) ou não requisitavam a tutoria dos filhos, o código filipino previa que pessoas próximas aos menores fossem escolhidas, tais como familiares (tutores legítimos)11. Se nenhuma destas condições pudesse ser cumprida, fazia-se a nomeação de uma pessoa idônea, de qualidade e com bens para a tutela (tutoria dativa) (SILVA, 1789, p. 818)12. Na documentação consultada, entre os 113 tutores indicados para cuidar dos interesses dos filhos menores de inventariados, encontramos os seguintes números: em 37 casos as mães eram tutoras, em 19 não foi informado o parentesco, 13 eram tios , nove avôs, oito irmãos, oito cunhados, sete padrastos, quatro testamenteiros, em três não foi possível identificar o tutor, dois parentes, dois menores se emanciparam e não precisaram de tutor, um padrinho e um pelas condições dos autos não pudemos obter a informação, sendo classificado como incompleto (Gráfico 1). Nos casos em que as mães eram tutoras,

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Inventários (1763-1808) disponíveis nas coleções Juízo de Órfãos e Ausentes, Juízo de Fora e Casa da Suplicação, pertencentes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

22 delas foram indicadas em testamento pelos maridos, oito se identificaram como tutora e testamenteira - não sabemos qual a origem da tutoria -, cinco conseguiram a função por petição ao 10 “Do beneficio do Senatus consulto Velleano, introduzido em favor das mulheres que ficam por fiadoras de outrem. Por Direito é ordenado, havendo respeito à fraqueza do entender das mulheres, que não pudessem fiar, nem obrigar-se por outra pessoa alguma, e em caso que o fizessem, fossem relevadas da tal obrigação por um remédio chamado em Direito Velleano […]” (ORDENAÇÕES, 1870, p. 858). 11 As Ordenações Filipinas estipulavam que pessoas próximas ao menor fossem indicadas para tutor do mesmo (ORDENAÇÕES, 1870, p. 994 e seguintes). 12 Sobre a tutela de menores, ver também De Backer (2010) e Walker (2004). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Conselho Ultramarino (CU) e em dois casos não foi possível identificar (N/I) como obtiveram a tutela (Tabela 1). Essas mulheres administraram, majoritariamente, heranças com mais de 1:000$000 e menos de 100:000$000 (Gráfico 2). Comparando-se com os outros tutores, temos que, a maioria daqueles que não a mãe, foram indicados para cuidar de patrimônios maiores de 500$000 e menores de 10:0000$000 (Gráfico 3). Tabela 1 - Tutela (Mãe) Tipo

N

Petição ao CU

5

Indicação em testamento

22

Tutora e testamenteira

8

N/I

2

Total

37

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Inventários (1763-1808) disponíveis nas coleções Juízo de Órfãos e Ausentes, Juízo de Fora e Casa da Suplicação, pertencentes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Tabela 2 – Número de mães viúvas tutoras dos filhos e número de escravos por faixa de tamanho de plantel FTP

Viúvas

Escravos do casal

N

N

0

0

0

1-4

5

18

5-9

12

81

10-19

6

87

20-39

11

272

40 e +

2

312

N/I

1

-

Total

37

770

N/I: Não informado ou não identificado. Fonte: Elaborado pela autora a partir de Inventários (1763-1808) disponíveis nas coleções Juízo de Órfãos e Ausentes, Juízo de Fora e Casa da Suplicação, pertencentes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Ao assumir a tutoria a mãe passava a administrar os plantéis de escravos provenientes do antigo matrimônio, assim como todos os outros bens. Esses cativos pertenciam ao casal que, ao ser desfeito pela morte do marido, passavam para a autoridade da esposa sobrevivente até a decisão final do Juiz de Órfãos após a partilha. Ao examinarmos a Tabela 2, constatamos que a maioria das mulheres viúvas indicadas como tutoras de seus filhos provinham de casais que possuíam plantéis de escravos com mais de 5 e menos de 40 escravos. Pela mesma tabela vemos que houve uma concentração de escravos nas mãos de apenas duas viúvas. Se compararmos a Tabela 2 com os Gráficos 2 e 3 observamos que as mães tutoras administravam, proporcionalmente, patrimônios cujos montes-mores eram maiores do que aqueles em que outros parentes foram indicados para tutores, os quais se restringiam a faixas de riqueza menores de 10:000$000 e, consequentemente, plantéis de cativos menores.

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Fonte: Elaborado pela autora a partir de Inventários (1763-1808) disponíveis nas coleções Juízo de Órfãos e Ausentes, Juízo de Fora e Casa da Suplicação, pertencentes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Inventários (1763-1808) disponíveis nas coleções Juízo de Órfãos e Ausentes, Juízo de Fora e Casa da Suplicação, pertencentes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

A obtenção da tutoria estava condicionada ao cumprimento de algumas exigências legais, entre elas: não ter se casado novamente13, viver honestamente e ter capacidade para gerir os bens (ORDENAÇÕES, 1870, p. 998). Além de satisfazer essas condições, as mães deveriam apresen13 No Direito Romano, as mães podiam ser indicadas como tutoras, desde que não se casassem novamente (KUEFLER, 2007, p. 358). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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tar um instrumento de Justificação e prover uma fiança através de uma Provisão de Tutoria concedida pelo monarca14. Nos casos em que a viúva foi instituída em testamento pelo falecido este último podia isentá-la da fiança. A Provisão deveria ser dirigida ao titular do trono – rei, rainha ou príncipe regente – e seria analisada pelos ministros do Desembargo do Paço. No Juízo de Órfãos da cidade do Rio de Janeiro a anuência real deveria ser requisitada quando as legítimas excedessem o valor de 60$000. Entretanto, não encontramos esse documento em todos os inventários post-mortem apesar de ser uma condição para a obtenção da tutoria. Dona Joana Inácia da Luz [Ferreira], em 1796, a fim de obter a tutela da filha, seguiu a exigência processual: Diz D. Joana Inacia da Luz Ferreira da cidade do Rio de Janeiro que no testamento com que faleceu seu marido Mateus de Souza Lopes, nomeou a Suplicante para Tutora de sua filha D. Laureana de idade de quatro anos; porém como no Juízo de Órfãos daquela cidade todas as vezes que as legítimas excedem de 60$000, como a da Filha da mesma Suplicante, não se concede a administração delas ainda as Tutoras testamentárias sem Provisão de V. Mag., e pelo Documento junto tem a Suplicante justificação que se conserva no estado de Viúva honesta, e que tem toda a capacidade e bom discernimento para administrar a pessoa e bens de sua filha, que nenhuma outra pessoa educaria melhor que a Suplicante sua própria Mãe [...] (INVENTÁRIO, 1795a).15

No inventário do capitão José Ribeiro de Araújo, os próprios filhos asseveraram a boa capacidade de sua mãe tutora e testamenteira, Dona Joana Teresa do Espírito Santo, para administrar sua legítima. Em 1802, Antônio Alves Ribeiro, 22 anos, e João Alves Ribeiro, 17 anos, garantiam ao Juiz de Órfãos que “pelos mesmos foi visto e examinado o presente Inventário com as Declarações feitas pela Inventariante as quais aprovam e convém em tudo por conhecerem a boa administração que sua Mãe tem feito a seu benefício […]” (INVENTÁRIO, 1798a). Em outro processo, Dona Tereza Maria de Jesus ficou viúva de Antônio José Vieira Leitão, seu segundo marido, aos 24 de dezembro de 1803 (INVENTÁRIO, 1800)16. Era moradora na rua da Candelária Nova e estava muito doente quando remeteu a petição inicial ao Juízo de Órfãos. Do casamento ficaram os filhos Joaquim, de 18 meses, e Francisco, de dois meses. Em 26 de janeiro de 1804, José Pereira Duarte, avô materno, assinava o termo de tutor. Entretanto, os 14 Na França rural do século XVIII, a tutoria também podia ser entregue às mães, porém sua conduta deveria ser irrepreensível e ela deveria abdicar da tutela caso se casasse novamente. A tutela cessava quando os filhos completavam os 18 anos e as filhas 14. Segundo Brigitte Maillard (1999, p. 217), esse privilégio baseava-se na ideia de que o amor que a mãe devotava ao filho a colocava em posição favorável perante outros candidatos ao cargo. 15 O inventário de Mateus de Souza Lopes foi aberto em 11 de fevereiro de 1795 e existe um requerimento feito pela viúva ao Conselho Ultramarino em 1796 (REQUERIMENTO, 1796). 16 Quando casou com o inventariado, Dona Tereza Maria de Jesus já era viúva de Antônio de Ávila da Fonseca. Na listagem do Arquivo Nacional a data do processo está registrada como 1800, porém o auto de inventário vem registrado como 26 de janeiro de 1804. Não existe folha de capa dos autos. (INVENTÁRIO, 1800).

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filhos de Dona Tereza Maria de Jesus viviam em companhia da mãe. Quando, em 1805, a viúva retomou o inventário que havia ficado parado, ela deu início ao processo para a tutoria dos órfãos no Juízo de Órfãos do Rio de Janeiro apresentando uma Justificação pela qual pedia para ser tutora para, assim, administrar o principal de suas legítimas, dando o pai como fiador: […] ficando a suplicante [Teresa Maria de Jesus] dos bens e inventariante deles [sic] como cabeça do seu casal para poder na sua divisão e dar partilha aos Herdeiros e como aos ditos Menores filhos da Suplicante por esquecimento de seu marido não nomeara tutor testamentário e a Suplicante os está alimentando e criando na sua companhia e tem capacidade Juízo e sizo e discrição para bem reger e administrar as pessoas e bens dos ditos seus filhos como tutora destes e serem os menores mais bem tratados e educados obrigando-se a pô-los no ensino muito melhor que outro qualquer pelo amor materno como se mostra do instrumento de Justificação junto (REQUERIMENTO, 1806, grifo da autora).

O que parece se destacar na petição acima é o fato de a inventariante ter ficado com os filhos e cuidar deles não só por sua competência para a tarefa, mas por seu amor materno.17 Todas as testemunhas arroladas pela justificante confirmam as argumentações da justificante para requerer a tutoria. Uma delas foi Alexandre José Bento, de trinta e três anos, que também era credor do casal, vivia de negócios e morava na travessa da Candelária. Pelo seu depoimento sabemos que ele conhecia a justificante e confirma suas alegações: [...] disse que pelo pleno conhecimento que tem da Justificante, sabe pelo ver, que ela é viúva de dois Maridos, sendo o segundo Antônio José Vieira Leitão, que se conserva no Estado de Viuvez, com todo o crédito, honra e honestidade, que tem em sua companhia dois filhos menores a quem presta alimentos, e necessária educação e que é dotada de toda a capacidade e entendimento [...] (REQUERIMENTO, 1806).

Dona Teresa Maria relata, também, que o casal devia a credores do Porto e da Bahia, fazia negócios com comerciantes da cidade de Pernambuco, possuía oito moradas de casas térreas na rua do Senhor dos Passos e um sobrado na rua de São Joaquim. Também havia várias dívidas ativas e passivas que deveriam ser levadas ao monte (INVENTÁRIO, 1800, fl. 20v e seguintes), terras na freguesia de Inhomirim e quatro escravos. O monte-mor chegou a 10:439$404 – descontadas as dívidas e despesas, ficou para ser partilhado entre os herdeiros o valor de 4:950$749. Tal como fez Teresa Maria de Jesus em seu requerimento ao Conselho Ultramarino, apenas encontramos em três outros inventários referência ao amor da mãe como um fator que pudesse abonar as viúvas para serem tutoras dos filhos. Rosa Maria do Nascimento, Rosaura Maria da Conceição e Clara de Souza Paixão eram essas mães amorosas que pediam a tutela dos filhos. 17 Para uma discussão sobre a construção da figura materna ao longo da História, ver Badinter (1986) e Ariès (1975). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Nesses casos o valor da herança variava entre 954$950 e 8:572$852 e em apenas um deles foi o próprio marido falecido quem fez referência ao fato em seu testamento. João Caetano da Cunha, natural e batizado na freguesia de Ilha Graciosa, Bispado de Angra, em seu testamento indicava para tutores, em primeiro lugar, o capitão Antônio Luis Fernandes, que também era seu testamenteiro, e se esse não pudesse, sua esposa Rosa Maria do Nascimento: [...] nomeia para tutora das suas mesmas filhas a referida sua companheira Rosa Maria do Nascimento por conhecer da sua capacidade e maternal amor zelará os bens das mesmas nossas filhas, se é que isso possa ter lugar em direito (INVENTÁRIO, 1806b).

Pelas palavras do testador, ele não tinha certeza se a tutoria da mãe seria possível, porém não foi preciso mais esclarecimentos no caso, pois Rosa Maria do Nascimento não foi nomeada tutora, o testamenteiro assumiu a tutela das herdeiras. Logo depois a filha mais nova se emancipou e a outra estava casada. Francisco de Medeiros morreu em 28 de maio de 1808, deixando Rosaura Maria da Conceição viúva com duas filhas casadas, um filho maior de idade e Marcelino de 7 anos (INVENTÁRIO, 1808). O monte somava 954$950 e entre os bens estavam um sítio em Perteninga (freguesia de Itaipu) com laranjeiras, uma morada de casa muito danificada, mais de 200 pés de café, um bananal, cana plantada, cerca de espinhos, alguns animais, uma roda de ralar mandioca e forno de cobre, ferramentas e cinco escravos. A viúva não foi indicada pelo marido em testamento para ser tutora, mas em sua petição ao príncipe regente para pedir a tutoria do filho, ela argumentava que “n[ela] suplicante além de amor que lhe tem como mãe concorre toda a capacidade para o ser” (INVENTÁRIO, 1808). O príncipe regente, em Provisão Régia, assinada pelos ministros do Desembargo do Paço, concedeu à viúva a tutela em agosto de 1808 e, em dezembro do mesmo ano, Rosaura Maria da Conceição assinou o termo de tutora no Juízo de Órfãos. Sete anos depois, a mãe prestava contas de sua tutoria e pedia que seu fiador anterior fosse relaxado da fiança por estar velho e cansado, sendo indicado um novo. Pelo auto de perguntas feito pelo Juiz de Órfãos, a viúva esclareceu que o menor, Marcelino, continuava em sua companhia desde a morte do pai. Segundo ela, o filho estava sendo educado conforme suas possibilidades e aprendia os trabalhos da lavoura. A mãe também garantiu que os bens que foram adjudicados ao menor na partilha em 1809 – um escravo, um relógio de algibeira, toda a prata do casal e o dinheiro que a inventariante deveria lhe dar – continuavam em poder dela tutora. A prestação de contas de Rosaura Maria da Conceição confirma que ela, como muitas outras viúvas, tinha a capacidade esperada para criar os filhos e administrar os bens. Clara de Souza

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Paixão ao tempo do falecido marido já se mostrava uma mulher capaz de conduzir a si e à sua filha, pois em seu testamento de 11 de setembro de 1797, Bernardo José Alves a instituíra tutora da filha e sua testamenteira. Pelo documento ficamos sabendo que Clara e Bernardo tiveram a filha quando ainda não eram casados, mas logo depois oficializaram a união, tornando a filha legítima. Por ele sabemos também que ele era um reinol e irmão da Ordem Terceira de São Francisco. O testamenteiro confiava em sua mulher, pois abonava Clara de qualquer fiança que lhe fosse imposta para a tutoria (INVENTÁRIO, 1797). Também o capitão Manoel Francisco Peixoto, em seu testamento em 1800, reputava à sua mulher competência para a tutoria dos filhos do casal. Pelo documento ele relata que morava na rua da Lapa do Desterro e havia se casado com Dona Joana Rosa Matilde Trindade por carta de arras18. O marido tinha negócios em Lisboa e no Porto, de onde vinham as mercadorias para a loja de fazendas secas do casal. Quando Manoel Francisco Peixoto morreu, em 23 de julho de 1805, o testamento foi aberto e, por ele, o falecido nomeava sua esposa como tutora dos filhos legítimos Maria Tereza de Jesus de 10 anos, Joaquina Teodora do Carmo de 9 anos, Francisca Rosa de Jesus com 6 anos, Justina Tereza do Amor Divino de 4 anos, Albino Francisco Peixoto com 18 meses e Manoel, póstumo, de 5 meses, bem como do filho natural Anacleto Francisco Peixoto. O testamenteiro justificava a escolha da esposa “pela muita capacidade que ela tem para a dita tutoria e a há por abonada em qualquer quantia que seja [...]” (INVENTÁRIO, 1806a). A tutoria foi confirmada pelo príncipe regente aos 9 de novembro de 1805, entretanto, quatro anos depois ela já não aparece mais como tutora. É provável que entre a data do termo de tutor assinado por Dona Joana Rosa e a divisão dos bens em abril de 1809, a viúva tenha contraído segundas núpcias, pois ela foi destituída da tutoria nesse período e José Francisco Martins assinou novo termo de tutor. Em 1812, Dona Joana Rosa em vários documentos já aparecia como casada com Pedro Ursini (ou Ursim) Grimaldi. Foi o que vimos nos autos de sobrepartilha e em uma escritura de venda de duas moradas de casas térreas na rua do Sabão que fizeram Pedro Ursini Grimaldi e Dona Joana Rosa a José Antônio Vilela em 1812 (ESCRITURA DE VENDA, 1812, p. 7). O risco de deixar os órfãos desamparados exigiu que as autoridades do período estivessem atentas às pessoas indicadas para a função. A função de tutor – quando a mãe não a assumia não podia ser ocupada por qualquer pessoa. Nossa documentação evidencia o cuidado que se 18 No casamento por carta de arras ou contrato de dote ou arras, os bens deveriam ser divididos de acordo com o que estava estipulado no contrato de arras, que havia sido acordado previamente – não havia comunicação de bens entre o casal. Sobre esse assunto, ver Silva (1984, p. 97-100). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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tinha em garantir que a tutela fosse desempenhada por parentes ou por alguém que garantisse a manutenção da legítima dos herdeiros. No inventário de Vasco Francisco Coutinho, o tio dos menores Vicente de 6 anos, Francisco de 3 e Florêncio de 1 ano foi indicado pelo escrivão Paulo Nogueira Lopes para tutor por ser casado e estabelecido (INVENTÁRIO, 1802, fl. 11). Em janeiro de 1808 o Juiz de Órfãos confirmou a indicação e o tio assinou termo de tutor. Maria Teresa era viúva de Francisco Correia da Silva quando ela morreu, em 1795, deixando quatro filhos legítimos de seu falecido marido e mais três que teve no estado de viúva (INVENTÁRIO, 1795b)19. José da Silva assumiu o inventário e a tutoria dos menores, entretanto, o filho mais velho de Maria Teresa, Isidoro, de 15 anos, em uma petição ao Juiz de Órfãos contestava tanto a tutoria de José da Silva quanto a sua posição de inventariante. Nesta petição Isidoro explica porque o inventariante e tutor não poderia desempenhar as funções que lhe foram dadas: […] nomeando-se por tutor do suplicante e mais três órfãos que ficaram irmãos legítimos do suplicante a saber Genoveva, Leocadia e Delfino a um pardo por nome José da Silva Pereira sendo que este por modo nenhum pode ser tutor do suplicante e seus Irmãos por serem brancos e não só por este motivo mas por outros que por hora não declara por serem escandalosos aos próprios suplicantes também porque o mesmo pardo José da Silva não tem bens alguns com que assegurar a tutela [...] já por este respeito da Infer[ior] qualidade de tutor [o requerente Isidoro] se acha fora da casa na de um seu Tio José Cardoso de Moura por ter casado com uma Tia, irmã de sua mãe [...] sendo que o tutor sem reparar na diferença que vai do suplicante a ele o quer levar para sua companhia contra vontade própria assim o pratica com sua irmã Genoveva violentando-a a existir na Tijuca fora da companhia de seus parentes quando o seu destino é todo dirigido a vir para a casa de seu Tio João Gomes de Gouveia casado e que vive com muita honra por isso e porque quer todo o direito e lei quando não há tutor testamentário dativo deve ser o parente mais próximo e mais grato a seus parentes órfãos por isso quer o Suplicante que VMce. se sirva remover a Tutela por mão e poder do dito João Gomes por ser casado com sua Tia irmã de sua Mãe e ser homem branco com estabelecimento de armazém e escravos o qual sendo necessário reforçará a segurança com fiador de bens de raiz [...] (INVENTÁRIO, 1795b, fls. 6 e 6v)20.

O escrivão, diante de tal situação, endereçou um ofício ao Juiz de Órfãos em 8 de julho de 1795 esclarecendo sobre o parentesco do inventariante e tutor com os menores e por que ele teria assumido o inventário. Nele consta [...] que nenhum [parentesco] tem com os órfãos e que se fizera intruso inventariante para o fim de estar no sítio que pertence aos ditos órfãos, cujo sítio era pertencente ao Excelentíssimo Visconde de Asseca, e como o dito Inventariante não seja ou [sic] de boa conduta foi expulso do 19 Filhos legítimos: Isidoro, 15 anos; Delfino, 13 anos; Genoveva, 10 anos e Leocádia, 8 anos. Filhos naturais que teve no estado de viúva: Cândida, 6 anos; José, 1 ano e meio; e Maria, 9 meses. 20 Os grifos duplos são da autora e os grifos simples são do original.

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dito sítio pela administração [...] (INVENTÁRIO, 1795b, fl. 7v).

Quatro dias depois o curador de Órfãos, deu parecer favorável à petição de Isidoro, removendo a tutela “visto que ao suplicado [José da Silva] faltam todas as qualidades para ser tutor e não tem alguma; é pessoa muito pobre e deve ser removido da tutela [...]” (INVENTÁRIO, 1795b, fl. 8). Uma das qualidades a que o curador se refere, que faltava ao tutor, além de ser pobre, era o fato de que José da Silva era pardo e os tutelados brancos, como ressalta o menor Isidoro em sua petição, o que parecia ser muito grave para o rapaz. Ao insistir em destacar a inferior qualidade do tutor, o menor pretende salientar a diferença social entre ambas expressada na cor/ qualidade de cada um. Nesse caso, o suplicado não preenchia nenhuma condição para assumir o cargo que pretendia. Através do uso de artifícios escusos, José da Silva tentou, por meio da tutela e da condução do inventário da falecida, voltar ao local em que viveu e de onde foi expulso. Ele tinha visto naquele processo uma oportunidade para garantir a administração do sítio dos menores na Tijuca que, apesar de não ser dos mais valiosos, tinha uma casa de palha, dois escravos, benfeitorias que incluíam mais de seiscentos pés de café e arvoredos. Em outro processo, encontrar um tutor para a filha do alferes Maurício Pacheco Maciel exigiu certo cuidado (INVENTÁRIO, 1798b). O inventariado, que foi exposto na casa do médico José Pacheco de Vasconcelos e de Dona Rosa Maria Maciel na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, deixou Dona Bárbara de Araújo Barcelos viúva em fevereiro de 1798 carregando uma filha no ventre. Um ano e três meses depois da abertura do inventário, a viúva já estava casada com seu segundo marido, Manoel de Souza Dias, quando o escrivão dos órfãos procurava um tutor adequado para a menor. De acordo com o que relatou a autoridade do juízo, o avô era “desconcertado na capacidade” e o tio um perdulário que “tem estragado os seus teres” (INVENTÁRIO, 1798b, fl. 9v). A saída encontrada foi nomear o padrasto, que assinou termo de tutor aos 20 de julho de 1799. Algumas vezes, as mães reclamavam dos tutores instituídos aos filhos e pediam a tutela para si. Ana Luíza dos Serafins argumentava, em um requerimento ao Conselho Ultramarino de 1770, que o tio tutor de seu filho não estava cumprindo com sua função adequadamente. Ela disse ser viúva do Tenente Coronel Francisco Xavier Barreiros, e moradora na cidade do Rio de Janeiro, que por seu falecimento lhe ficou um filho de idade de cinco para seis anos chamado José Xavier Barreiros, a quem se nomeou por tutor um tio clérigo, que por lhe causar incômodo grave em tratar da boa educação do seu filho, estando em poder do dito tutor, e em separar-se a adminisResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 47-66, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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tração dos bens do casal, ficando sujeita a legítima respectiva à administração do tutor, pretende ser tutora do sobredito filho por concorrerem n[a] suplicante todos os requisitos necessários para tratar da boa educação e administração da legítima do dito seu filho [...] (REQUERIMENTO, 1770).

Através desse requerimento, a viúva demonstrava sua preocupação tanto com relação à formação quanto ao destino da herança do filho que corria perigo com a tutoria do tio. Por ele percebemos que as mães tutoras procuravam se mostrar como sendo as guardiãs mais adequadas para os filhos órfãos.

Considerações finais

Entendermos como as relações de poder moldaram as relações de gênero e como foram apropriadas pelas mulheres viúvas proprietárias no Brasil colonial, mas, sobretudo, como foram reordenadas a seu favor, permite-nos observar como essas mulheres criaram estratégias de sobrevivência, não apenas tangentes, mas perpendiculares, à sociedade tradicional na qual o senhor de escravo era uma das figuras de referência para esse período. Os inventários post-mortem nos indicam que as mães tutoras e testamenteiras foram agentes importantes na economia da América portuguesa. Cabia a elas administrar patrimônios que incluíam terras, plantações e escravos. O predomínio de viúvas na gerência de monte-mores superiores a 1:000$000, mas, sobretudo, entre as únicas responsáveis por patrimônios superiores a 100:000$000, e plantéis de escravos numerosos nos apresentam mulheres que, segundo seus maridos, tinham capacidade tanto para cuidar de si quanto dos seus herdeiros. Porém, elas deviam obedecer a normas específicas determinadas basicamente pelas Ordenações Filipinas e supervisionadas pelo Juízo de Órfãos. O Juízo de Órfãos e seus representantes regulavam e protegiam os herdeiros menores. Eles se preocupavam em garantir a manutenção das legítimas para não permitir que os órfãos ficassem desamparados quando chegasse o momento de resgatá-las. Como administradoras de propriedades e de escravos, as mães tutoras penetravam em ambientes os mais diversos, ultrapassando frequentemente os limites entre as esferas do público e do privado, para garantir a sua manutenção e a dos filhos. Pelo que vimos, podemos sugerir que a atuação das viúvas ia muito além das alcovas ou da organização da cozinha, mas, sobre-

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tudo, podemos ver respingos de melado de cana nas saias das senhoras ou traços de farinha na tez bronzeada de muitas mulheres dividindo diariamente os espaços públicos e privados com os homens na sociedade colonial.

Referências Abreviações utilizadas: (AHU-RJ): Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro (AN): Arquivo Nacional (cx.): caixa (doc.): documento (fl. e fls.): fólio e fólios (gal.): galeria (JOA AN/RJ): Juízo de Órfão e Ausentes, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (mç.): maço (proc.): processo

Fontes primárias consultadas: ESCRITURA DE VENDA. Escritura de venda de duas moradas de casas que fazem Pedro Ursini Grimator [Grimaldi] e sua mulher Dona Joana Rosa Matildes da Trindade, a José Antônio Vilela, que vive de negócio - térreas, sitas na rua do Sabão, partindo de um lado com Dona Ana de tal e do outro com quem de direito for, livres de foro, havidas por arrematação na praça dos Ausentes. Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara. AN, 1o. Ofício de Notas, 206, 27 de maio de 1812, p. 7. Disponível em: <http://mauricioabreu.com.br/escrituras/view.php?id=14084>. Acesso em: 15 mar. 2017. INVENTÁRIO. Joana Inacia da Luz e Mateus de Souza Lopes, proc. 9095, mç. 474, JOA AN/RJ, 1795a. INVENTÁRIO. Maria Teresa e José da Silva, proc. 9.147, mç. 475, gal. B, JOA AN/RJ, 1795b.

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Chólera Morbus no curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas (RJ): a epidemia relatada nos periódicos Cholera Morbus in the parsonage of Our Lady Immaculate Conception of Porto das Caixas (RJ): the epidemic reported in the periodicals Mirian Cristina Siqueira de Cristo Universidade Salgado de Oliveira

Resumo

Abstract

O presente artigo analisa a epidemia da Chólera Morbus no curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas no ano de 1855, e como a doença foi retratada nos periódicos do período. O curato de Nossa Senhora Conceição do Porto das Caixas (RJ) pertencia à então Vila de São João de Itaborahy e, no início do século XIX, quando ainda tinha a nomenclatura de Arraial de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas, já tinha sido atacada por outra mortífera onda de doenças, que ficaram conhecidas pelo nome de “febres do Macacu”. A epidemia da Chólera Morbus, que desembarcou nos portos da província do Rio de Janeiro, chegou na localidade através do transporte de gêneros e passageiros da corte para o interior do recôncavo da Guanabara, vitimando, em sua maioria, a população escrava do curato.

The present article analyzes the Chólera Morbus epidemy in the parsonage of Our Lady of the Immaculate Conception of Porto das Caixas, in 1855, and how the disease was portrayed in periodicals. This parsonage belonged to the so called São João de Itaborahy town, and in the early nineteenth century, when it still had the nomenclature of Camp of Our Lady of the Immaculate Conception of Porto das Caixas, it had already been attacked by another deadly wave of diseases, known as “Macacu’s fever. The Chólera Morbus epidemy, which landed in the ports of the province of Rio de Janeiro, arrived in the locality by the transportation of goods and passengers from the court to the interior of the Guanabara concave, victimizing mostly the slave population of the parsonage.

Palavras-chave: Chólera Morbus; Curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas; Periódicos.

Keywords: Chólera Morbus; Parsonage of Our Lady of the Immaculate Conception in Porto de Caixas; Periodicals.

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I n t r o d u ç ã o

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o andar pela precária estrada de paralelepípedos do 2ª Distrito de Porto das Caixas, na cidade de Itaboraí, Rio de Janeiro, moradores e eventuais visitantes, em sua maioria, desconhecem a riqueza e complexidade histórica ali envolvidas, a começar pela idade da

localidade, que existe há pelo menos 422 anos. Sempre lembrada como o local em que “o Cristo crucificado sangrou” – ponto, segundo os fiéis, de inúmeros milagres –, Porto das Caixas possuiu uma enorme importância econômica, social e política durante o século XIX, tanto para a província do Rio de Janeiro, quanto para o próprio Império. As casas simples da Avenida Nossa Senhora da Conceição, o pouco comércio, a usina de álcool de

As áreas com núcleos populacionais no entorno da Baía de Guanabara e seus portos fluviais, como o Porto das Caixas, foram essenciais para viabilizar o transporte da produção açucareira dos primeiros engenhos. O aproveitamento dos rios do recôncavo guanabarino favoreceu o desenvolvimento econômico da região, por ser uma forma rápida e barata de transporte da produção em direção ao porto do Rio de Janeiro (GEIGER & SANTOS, 1954, p. 4).

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mandioca abandonada e o riacho que corta o local não demonstram nem a sombra da opulência arquitetônica que outrora teve a região, que além de ter sido um dos primeiros locais a serem ocupados no processo de interiorização portuguesa após a expulsão dos franceses, foi considerado o terceiro porto fluvial em importância comercial para a província do Rio de Janeiro no século XIX, pertencente ao recôncavo da Baía de Guanabara (RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA, 1857, p. 69). As áreas com núcleos populacionais no entorno da Baía de Guanabara e seus portos fluviais, como o Porto das Caixas, foram essenciais para viabilizar o transporte da produção açucareira dos primeiros engenhos. O aproveitamento dos rios do recôncavo guanabarino favoreceu o desenvolvimento econômico da região, por ser uma forma rápida e barata de transporte da produção em direção ao porto do Rio de Janeiro (GEIGER & SANTOS, 1954, p. 4).

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Ailton Fernandes da Rosa Júnior (2014, p. 37-58) reafirmou a relevância dos cursos de água para o deslocamento, não somente da produção dos engenhos, mas também dos alimentos essenciais para o abastecimento da crescente cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (em especial a farinha de mandioca, arroz e feijão), e até das madeiras, fossem sob a forma de tábuas para a construção civil e naval, ou reduzidas à forma de lenha e carvão. Para este autor, os rios da região do recôncavo da Baía de Guanabara tiveram a função estratégica, pois através de suas águas circularam não apenas os produtos essenciais à vida citadina, mas também pessoas, hábitos, informações e tradições culturais. O arraial do Porto das Caixas foi extremamente beneficiado pelo comércio fluvial e continuou a crescer gradativamente durante o século XVII. Em meados desse século, o porto fluvial do arraial do Porto das Caixas já tinha 14 barcos para o transporte de mercadorias, embarcando quase todo o açúcar dos oitenta engenhos das regiões próximas (FORTE, 1937, p. 53). Daí a mudança do nome da localidade: o açúcar que chegava nos lombos das mulas em bruacas1 de couro, ficava armazenado em caixas ao longo do Rio da Aldeia, esperando o embarque nas faluas2 - assim a localidade ficou conhecida como Porto das Caixas (Cf. SATHLER, 2003, p. 50; PINTO, 1832, p. 504; ROSEDAHL, 1995, p. 58). Portos fluviais semelhantes ao do arraial do Porto das Caixas contribuíram para uma reorganização espacial do seu entorno, pois a vida e a dinâmica das povoações locais giravam em torno dessas estruturas comerciais. Além das igrejas, câmaras, delegacias, grandes fazendas, comércio e cemitérios se posicionaram ao redor dos portos que recebiam os produtos para o transporte até o Rio de Janeiro e, através dessa estruturação, nasceram as vilas de comércio. Segundo Rafael da Silva Oliveira (2007, p. 139), as chamadas vilas de comércio registraram um período de importante funcionalidade, sobretudo através da utilização de seus portos fluviais, atingindo status de cidade por conta do papel concentrador que exerciam. Apesar de nunca ter alcançado o título de vila ou cidade, o arraial do Porto das Caixas estruturou-se com o mesmo modus operandi. Nota-se, então, que o Porto das Caixas assumiu dois papéis: o do povoado de comércio e o do porto fluvial propriamente dito, como se pode observar na descrição de Manuel Aires de Casal (1976, p. 199): Um terço de légua a leste da paróquia de Tambi, e ainda no seu distrito está o arraial denominado Porto das Caixas, com Ermida de N. Senhora da Conceição, sobre a direita do Rio da Aldeia, um pouco abaixo da foz do da Varge, e um pouco mais doutro terço acima da sua confluência 1 Bruacas eram confeccionadas com couro de boi amaciado na água, ajustadas e cozidas dentro de uma caixa rude com tampa, deixando-a secar. Tornavam-se duras e resistentes, sendo utilizadas para o transporte de diversos gêneros, como açúcar, milho, café etc. 2 Embarcação pequena que navega a remos ou à vela. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 67-80, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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com o Macacu, que fica meia légua abaixo da do Caceribu. É o entreposto das produções do distrito de Taparocá, e das freguesias limítrofes; e onde se embarca mais açúcar do que em todos os outros portos do recôncavo.

Desde o começo da ocupação do recôncavo da Baía de Guanabara, o porto fluvial do arraial do Porto das Caixas teve a função de entreposto comercial, sendo caminho de trocas de produtos e de passagem de tropas que carregavam o açúcar das fazendas e engenhos próximos (NOGUEIRA, 2009, p. 21). Após o século XVII e o favorecimento da produção de gêneros alimentícios e da cana-de-açúcar, a região na qual estava inserido o arraial do Porto das Caixas e o seu porto fluvial favoreceu-se também do transporte da produção aurífera de Minas Gerais no século XVIII (ROSA JUNIOR, 2014, p. 35). Segundo Antônio Carlos Jucá de Sampaio (2016), as profundas transformações que a economia fluminense passou acabaram por se refletir nas características do grupo mercantil já existente, sobretudo em sua elite. Para Sampaio, de fato a passagem do século XVII para o XVIII viu essa elite mercantil constituir-se enquanto grupo social autônomo face à elite agrária. Esse fato não significou a separação total entre as duas elites, mas sim a criação de uma esfera tipicamente mercantil de atuação, que não existiu no território fluminense no século XVII. Mais do que isso, essas transformações caracterizaram esse novo grupo como a elite colonial setecentista, responsável direta pela própria reprodução da sociedade fluminense por meio do controle dos mecanismos de crédito e da oferta de mão de obra escrava. Milton Santos (2006, p. 136) mostrou que essas redes comerciais formadas pela elite mercantil e agrária se integraram e se desintegraram, destruíram velhos recortes espaciais e criaram novos, sendo marcadas por um caráter instável, móvel e inacabado, que corrobora com um aspecto importante na configuração das redes territoriais, como aconteceu com o arraial do Porto das Caixas. Rafael da Silva Oliveira (2007, p. 132) também relatou as mudanças da organização espacial como fruto do acúmulo do trabalho humano estruturado através dos tempos, numa relação dialética em que o espaço, em sua totalidade, sofreu mutações, pois a sociedade, estimulada por questões de ordem capital, cultural e emocional, se deslocou, se transformou, se construiu e se recriou. Apesar disso, o domínio da elite mercantil sobre as principais rotas de comércio está longe de ser uma originalidade do Rio de Janeiro setecentista. De fato, constitui uma característica estrutural das sociedades de Antigo Regime. Para Laura de Mello e Souza (2006, p. 67), o que houve em nossos trópicos, sem dúvida, foi uma expressão muito peculiar das sociedades do Antigo Regime europeu, que integraram, qualificaram e definiram não só as relações sociais como as comerciais, beneficiando o sistema colonial. Esses processos de organizações espaciais, rotas de comércio e relações comerciais

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influenciadas pelo Antigo Regime moldaram de forma específica a localidade do arraial do Porto das Caixas, sua população e arquitetura, que foram totalmente voltadas para as relações comerciais que ali ocorreram e pelos novos caminhos que surgiram, transformando-se e reconstruindo-se espacialmente: Já a região de Porto das Caixas consolidava-se como importante entreposto comercial. Em seu porto eram desembarcados, em caixas, além do açúcar, a produção agrícola transportada pelos muares. Trapiches e armazéns começaram a ser erguidos para armazenar essa produção até o embarque para o porto e para a cidade do Rio de Janeiro (ROCHA et al, 2011, p. 70).

Vale ressaltar a importância das tropas para a manutenção do mercado interno descrito. Para Pandiá Calógeras (1927, p. 12) e Satie Mizubuti (2001, p. 47), a figura do tropeiro, além de ter tido um sentido social (pois foi um facilitador da aproximação entre o mundo rural e urbano), também adquiriu uma grande importância na formação de novos núcleos populacionais, já que com suas tropas de muares transportavam mercadorias a longas distâncias, semeando “embriões de cidades” à beira das estradas e nos locais de pouso. Com a chegada da família real ao Brasil em 1808, essa movimentação de tropas comerciais com gêneros de primeiras necessidades, voltados para o consumo interno, consolidou-se, e novas rotas surgiram para suprir o abastecimento de gêneros alimentícios para a recém-chegada população do Rio de Janeiro. Para Maria Odília Leite da Silva Dias (2005, p. 12-15), a chegada da família real ao Brasil já significou por si só uma ruptura política interna, com significativas mudanças econômicas e políticas, principalmente no mercado carioca. Essas mudanças que ocorreram no mercado carioca a partir da concretização e do monopólio comercial acabaram por definir o Rio de Janeiro como polo drenador de vários produtos (LENHARO, 1979, p. 33), que chegavam ao porto principal através de inúmeros portos fluviais localizados ao entorno da Baía de Guanabara, em especial no seu recôncavo, onde estava localizado o Porto das Caixas. Segundo Dias (2005, p. 19-29), foi a vinda da corte portuguesa para o Brasil e a sua fixação no Rio de Janeiro que deu início ao processo de transformação da colônia em metrópole interiorizada, acentuando o predomínio da classe dos comerciantes. Apesar dessa consolidação comercial alcançada após a chegada da família real no Brasil, o arraial do Porto das Caixas, a partir de 1828, começou a atravessar sérios problemas epidêmicos, que resultaram em grandes mudanças políticas e administrativas. O arraial que pertencia à Vila Santo Antônio de Sá, primeiro núcleo urbano com status estabelecido na capitania do Rio de Janeiro (CABRAL, 2007, p. 136), era cortado pelo Rio Aldeia, um dos afluentes do Rio Macacu, ambos parte da baixada da Guanabara – uma planície extensa, espraiada em torno da

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Baía e drenada por pequenos rios que nela deságuam. Por ser uma planície, o declive é muito pequeno e, na época das chuvas, abundantes no clima tropical atlântico, o aumento de nível fluvial faz com que a água acumulada se espalhe pela planície. Como o solo é constituído por uma mistura de argila e areia, nas áreas mais argilosas o solo retém a umidade, formando extensas áreas de brejo, ou seja, de terrenos baixos e alagadiços cobertos por vegetação rasteira (MACHADO, 1998). Toda essa disposição geográfica, aliada ao desmatamento local devido à extração de madeira e ao abandono das plantações de cana-de-açúcar, favoreceram o assoreamento dos rios e a estagnação das águas nos pântanos, criando as condições perfeitas para o desenvolvimento de uma série de surtos de epidemias de caráter tifoide e bilioso. Esses surtos, que se iniciaram nos fins do ano de 1828, assolaram a região da Vila Santo Antônio de Sá, espalhando-se também para o resto da província (MARCÍLIO, 1993, p. 63). Conhecidas como “as febres do Macacu3” essas doenças invadiram os municípios vizinhos de Magé, Guapimirim, Porto Estrela, Pilar, Inhomirim, Iguaçu e Irajá. Na cidade do Rio de Janeiro as febres foram particularmente mortíferas. Tal número elevado de mortes provocou grandes mudanças na política de saúde do Império, inclusive na região onde estava localizada a povoação do Porto das Caixas. No ano de 1829, as febres do Macacu causaram na sede da Vila Santo Antônio de Sá e no arraial do Porto das Caixas tamanha desolação que as famílias mais abastadas fugiram da localidade, estabelecendo residência na Freguesia de São João de Itaborahy (também pertencente a Santo Antônio de Sá), um local um pouco menos afetado pelas febres: A Febre de Macacú, que a Commissão Medica para alli mandada pelo governo chamou de endemica, despovoou já essa miseravel Villa; e ora continua a fazer seus terríveis estragos no Porto das Caixas, Villa Nova, S. João de Itaborahy, &c.; e tal he a força com que acommette aos doentes, que (segundo diz huma carta que vi do Porto das Caixas) tem acontecido de estarem boas ao meio dia pessoas, que a noite já não existem. O único Cirurgião, que havia em Villa Nova, e Porto das Caixas acaba de ser também atacado e se acha por consequencia impossibilitado de ministrar soccorros aos inumeráveis doentes (A AURORA FLUMINENSE, 1829, p. 750).

Foi tão severa a situação da população local que correspondências de moradores ao periódico A Aurora Fluminense foram encontradas, ora informando os males causados pelas febres, ora pedindo providências ao governo para tal situação: Eu só tive por fito nessa correspondência, lembrar ao ministro do império que as providencias por ele dadas não tinhão sido suficientes; que as febres continuavão a fazer progressos ater3 Existem mais de uma centena de títulos antigos para designar um sistema de febres: febre perniciosa, febre biliosa, febre pútrida, febre exantemática, febre tifoide, febre amarela, febre intermitente, febre renitente etc.

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radores em Macacú, por acumulo de desgraça, houvesse então nesses lugares Cirurgiões, que aos doentes ministrassem os socorros indispensáveis [...] Mas em fim seja o que for; a minha correspondência de então teve (ao menos essa foi a minha intenção) o mesmo fim, que esta agora; isto he, chamar a atenção do ministro do império sobre os males, que continuão a sofrer os habitantes do Macacú, Villa Nova, Porto das Caixas (A AURORA FLUMINENSE, 1829, p. 810).

Segundo Maria Luiza Marcílio (1993, p. 53), depois do ano de 1830 até os primeiros anos do século XX, o número de óbitos superou o de nascimentos na província do Rio de Janeiro, motivado em grande parte pelas epidemias de febres, sendo a febre amarela responsável por mais de 4 mil mortes. Tal mortalidade ocasionou mudanças políticas e administrativas na região do Vale do Macacu, onde os surtos tiveram início. Em 15 de janeiro de 1833, devido à insalubridade da Vila Santo Antônio de Sá e por meio de um decreto Imperial, a Freguesia de São João de Itaborahy foi elevada à categoria de Vila de São João de Itaborahy, que passou a incorporar o arraial do Porto das Caixas. A criação da capela filial curada do arraial só ocorreu em 2 de maio de 1844, quando o arraial do Porto das Caixas também assumiu o título de curato de Nossa Senhora Imaculada Con-

A região do curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas, atacada no ano de 1828 pelas “Febres do Macacu”, viu-se novamente assolada por outra epidemia já na década de 1850, mais precisamente em 1855, quando chegaram à província do Rio de Janeiro os primeiros casos de Chólera Morbus.

ceição do Porto das Caixas, sob a cura do padre João Lourenço Filgueiras (JORNAL DO COMMERCIO, 1846, p. 3).

A chegada da Chólera Morbus no Porto das Caixas: A região do curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas, atacada no ano de 1828 pelas “Febres do Macacu”, viu-se novamente assolada por outra epidemia já na década de 1850, mais precisamente em 1855, quando chegaram à província do Rio de Janeiro os primeiros casos de Chólera Morbus. No início do ano de 1830, a epidemia de Chólera Morbus atingiu a Europa Ocidental, trazendo preocupações aos médicos brasileiros. Atendendo a um pedido da Câmara dos Deputados, os méResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 67-80, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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dicos da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro apresentaram alguns “conselhos às autoridades no caso de ameaça ou invasão do Chólera-Morbus” (PIMENTA, 2013, p. 1), como forma de preparação para a chegada da epidemia em nossos portos, fato que não tardou a acontecer. O primeiro caso da doença relatado oficialmente na província do Rio de Janeiro ocorreu em junho de 1855, quando um escravo pardo, de nome Maximiano, chegou da província do Ceará a bordo do vapor S. Salvador. Maximiano desembarcou e foi para a casa do seu senhor, ficando doente três dias depois, mais precisamente do dia 15 de junho daquele ano 1855. O escravo que compartilhou a cama com Maximiano logo também adoeceu, vindo a óbito após dez horas do início dos sintomas (REGO, 1873, p. 106). A partir de então, a epidemia se espalhou pela província, chegando rapidamente ao curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas, através dos barcos que vinham do porto do Rio de Janeiro: “Nas margens do Rio Macacú, em Villa Nova e no Porto das Caixas appareceo a chólera em setembro levado pelos barcos que diariamente communicavão com a corte” (RELATÓRIO ACERCA DA SAÚDE PÚBLICA, 1856). Em uma publicação do Correio Mercantil, e Instructivo, Político, Universal do dia 23 de setembro de 1855, três meses após o surgimento do primeiro caso de Chólera Morbus na província, foi relatado

A situação da epidemia de cólera no Porto das Caixas preocupou as autoridades, principalmente pelo grande fluxo de pessoas que passavam pela região, além do fator geográfico da localidade. Rodeada por pântanos e águas estagnadas, a região favoreceu um ambiente propício para a propagação da doença, juntamente com falta de saneamento básico e de condições higiênicas, sobretudo nas escravarias locais.

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que “um preto de uma lancha do Porto das Caixas, com os sintomas da chólera, chegou em Paquetá pedindo ajuda” (CORREIO MERCANTIL, 1855, p. 1). Seis dias depois, a situação do Porto das Caixas foi descrita como “moléstia reinante, com três casos fataes” (A CONSTITUIÇÃO, 1855, p. 4). A cólera foi considerada mortífera e bárbara, pois além de matar metade daqueles que contaminava, matava de forma cruel e em poucas horas (SANJAD, 2004, p. 588). E mesmo acostumada a conviver com o alto grau de mortalidade e inúmeras epidemias, a população entrou em desespero por conta da doença. No ano de 1855, enquanto o número de óbitos na província do Rio de Janeiro foi de 11.180, o número de nascimentos foi de 6.660 – diferença que se deve, principalmente, à cólera (MARCÍLIO, 1993, p. 53-54). A situação da epidemia de cólera no Porto das Caixas preocupou as autoridades, principalmente pelo grande fluxo de pessoas que passavam pela

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região, além do fator geográfico da localidade. Rodeada por pântanos e águas estagnadas, a região favoreceu um ambiente propício para a propagação da doença, juntamente com falta de saneamento básico e de condições higiênicas, sobretudo nas escravarias locais. Segundo Jorge Prata de Sousa (2006, p. 2), a questão da falta de condições higiênicas e sanitárias deve ser sintetizada em uma hipótese genérica, como fator determinante nos índices de mortalidade e, também, no perfil da morbidade. Assim, fica claro que a utilização das águas contaminadas e paradas da região e a falta de condições higiênicas favoreceram o desenvolvimento da epidemia de cólera local e estavam intimamente relacionadas com os números de óbitos pela doença. Mas não só isso. O grande fluxo de pessoas que transitavam pela região contribuiu para a propagação de casos de Chólera Morbus. As notícias publicadas nos periódicos sobre a epidemia de Chólera Morbus da região continuaram a crescer. No dia 5 de outubro de 1855, foi informada a morte de três negros marinheiros, que faziam viagens da corte para o Porto das Caixas (CORREIO MERCANTIL, 1855a, p. 1). Já no dia 9 de outubro, foi publicado o relato do Dr. Fortes, que noticiava dois falecimentos no local, e mais um escravo morto na fazenda Sampaio, que sucumbiu à doença em apenas quatro horas. Além desse escravo, mais quatro da mesma fazenda ficaram doentes, melhorando após alguns dias (CORREIO MERCANTIL, 1855b, p. 1). A fazenda Sampaio continuou tendo sua escravaria atacada, com nove mortos no dia 21 de outubro (CORREIO MERCANTIL, 1855c, p. 1). O relatório sobre o período de 19 de setembro a 26 de novembro de 1855, feito pelo vice-presidente da província, Visconde de Baependy, deixou explícita a preocupação com a situação da cólera na região do Porto das Caixas. Esse relatório informou quatro casos de coléricos no Porto, todos escravos da corte que faziam viagens para o local, dois dos quais fatais. Baependy nomeou uma comissão filial na localidade para controlar e ajudar os doentes, da qual fez parte o comendador Antônio José Rodrigues Torres, o irmão do Visconde de Itaborahy. Além disso, foi montada uma enfermaria na região, responsável pelos primeiros atendimentos, já que os doentes mais graves, quando possível, eram enviados para o hospital em Jurujuba. Nesse mesmo relatório, foi informado que a escravaria da fazenda Sampaio estava sendo atacada pela epidemia, com mais de vinte escravos adoentados e nove mortos (RELATÓRIO DO VICE-PRESIDENTE, 1855, p. 21-22). O relatório da enfermaria montada no Porto das Caixas, referente ao dia 16 de outubro de 1855, descreveu a entrada de dezoito doentes, dos quais dois faleceram, quatro tiveram alta e o restante ainda permanecia em tratamento. Desesperada com o aumento de casos, a população recorreu a promessas e rezas, a fim de salvar a localidade do avanço da doença. O próprio comendador Antônio José Rodrigues Torres fez uma promessa a Santo Antônio, pagando com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 67-80, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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missas, festas e rezando trezenas descalço, se a doença fosse eliminada da localidade (CORREIO MERCANTIL, 1855d?, p. 1). Ao analisar as informações oficiais e as notícias publicadas nos periódicos, percebe-se que a cólera no curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas atingiu principalmente os escravos, fato esse que também ocorreu em outras localidades da província do Rio de Janeiro. Em uma publicação do século XIX, o Dr. José Pereira Rego deixou bem clara a “preferência da doença” pelos escravos e pela população mais pobre: Esta epidemia atacou de preferencia os pretos, os homens de côr e as classes mais inferiores da sociedade [...]. As outras classes sociaes, sobretudo as mais elevadas quasi nada soffreram, porque poucas foram as victimas dadas entre ellas, e essas mesmas de ordinário só appareciam quando os affectados, ou desprezavam a moléstia em seu principio, ou commettiam grandes infracções dos preceitos hygienicos (REGO, 1873, p. 109).

A suposta preferência pelos escravos e pelos mais pobres se deve às condições de higiene em que viviam essas populações, que facilitavam o contágio e a disseminação da cólera. Para Kaori Kodama (2012, p. 62-64), a mortalidade mais intensa entre a população escrava e pobre em geral foi atribuída pelo pensamento médico dominante no Brasil aos costumes, à dieta e ao ambiente, conforme o modelo higienista então em voga. Segundo Kodama, esse pensamento fez com que o governo recomendasse que os escravos nas fazendas tivessem alimentação adequada, fossem bem agasalhados, não trabalhassem muito tempo em rios ou pântanos e que as senzalas não ficassem “em lugares baixos, sombrios e úmidos; como algumas atualmente se acham nestas más condições”. Além disso, suas moradas deveriam ser varridas, arejadas, deixando-se entrar sol, e os dejetos deveriam ser dispensados a certa distância. Apesar das recomendações, muitos senhores continuavam a propiciar um ambiente inóspito e facilitador de doenças aos seus escravos, em inúmeras vezes negando-se a relatar o número legítimo de ocorrências de doentes e mortos em suas escravarias, fato esse que contribui para a incerteza do número real de escravos atingidos pela cólera. Muitos escravos eram obrigados a trabalhar em condições insalubres, como pode-se ver na descrição das enchentes dos pântanos da região do Porto das Caixas: Há quinze dias as chuvas continuadas tem causado extraordinária enchente no Macacu. Os campos estão inundados, o aterro Tipotá está cinco palmos d’água acima do seu nível e os pobres escravos são obrigados a passar com as águas na altura do peito (CORREIO MERCANTIL, 1855e?, p. 1).

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Considerações finais

Não é de se estranhar o alto número de escravos atingidos na região da Baía de Guanabara pela cólera. Além do contato constante com os doentes da corte devido ao alto fluxo de pessoas que por lá passavam, os escravos também eram expostos a condições de higiene precárias e em contato com águas contaminadas. Apesar do elevado números de mortes, principalmente de escravos no Porto das Caixas, a epidemia foi regredindo no mês de novembro, sendo considerada quase extinta em dezembro de 1855, salvo de alguns casos benignos relatados (CORREIO MERCANTIL1855f?, p. 1). Mesmo assim, a comissão eleita reservou, no mesmo mês, a quantia de setecentos e cinquenta réis para o médico local, a fim de tratar de novos casos que surgissem (CORREIO DA TARDE, 1855, p.1). O importante porto fluvial do curato de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas foi vítima, no século XIX, de grandes epidemias que atingiram grande parte da sua população, dificultando a vida dos moradores da região e o comércio local. Primeiro com as febres do Macacu e depois com a Chólera Morbus, a região tinha como agravante para os surtos de doenças a predisposição geográfica, já que era cercada por pântanos e áreas alagadiças, que facilitavam a disseminação dessas doenças. Apesar de ter sua população atacada constantemente por surtos epidêmicos, a região continuou com o seu comércio em crescimento e seu prestígio político, sendo elevada à categoria de vila em 17 de outubro de 1856. Os periódicos tiveram a função importantíssima de relatar a chegada e o avanço da doença, com a descrição dos números de contaminados e dos óbitos. Apesar do alto índice de mortalidade, o pico da epidemia ocorreu somente no ano de 1855, em dezembro do mesmo ano a epidemia chegou ao fim na região. Após a análise dessas notícias, ficou claro que o Chólera Morbus chegou ao Porto das Caixas através dos escravos marinheiros, que trouxeram a doença da corte. Também ficou em evidência o alto número de escravos locais atingidos pela epidemia e a alta taxa de mortalidade desse grupo social em detrimento aos outros, principalmente pelas condições higiênicas em que eram obrigados a viver. Percebe-se, também, que a Fazenda Sampaio foi a que mais teve sua escravaria atingida, fato que pode ser esclarecido devido à proximidade dessa propriedade com as regiões pantanosas e de águas estagnadas do Vale do Macacu.

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Vendedores e compradores: o mercado de Santa Rita do Turvo, 1850 a 1888. Sellers and buyers: the market of Santa Rita do Turvo, 1850 to 1888. Fernando Antonio Alves da Costa Universidade de São Paulo

Resumo

Abstract

Amparado em dados extraídos de uma série de inventários post-mortem, em especial nas informações das dívidas ativas e passivas constantes nos documentos, analiso a dinâmica do mercado de Santa Rita do Turvo (MG) no período entre 1850 e 1888. Busco traçar o perfil dos indivíduos partícipes, bem como algumas das características centrais do cenário socioeconômico da localidade em tela. Perpassa o texto a compreensão de mercado enquanto espaço abstrato de trocas, por meio das quais os indivíduos supriam suas necessidades materiais e disponibilizavam suas produções excedentes para mercantilização. O estudo sugere que existiu um movimentado mercado na localidade, do qual participaram pelo menos seis em cada dez inventariados do período, seja como credores ou como devedores, ou nos dois papéis concomitantemente.

Based on data extracted from a long series of post-mortem inventories, especially on the information of the active and passive debts contained in the documents, I analyze the market dynamics of Santa Rita do Turvo, Minas Gerais, Brazil, in the period between 1850 and 1888. I seek to outline the profile of the individual participants, as well as some of the central features of the socio-economic scenario of the locality on display. The text permeates the understanding of the market as an abstract space of exchanges, through which individuals supplied their material needs and made available their surplus production for commodification. The study suggests that there was a busy market in the locality, in which at least six out of ten inventors of the period participated as creditors, as debtors, or in both roles concurrently.

Palavras chave: Inventários; Mercado; Credores; Devedores; Oitocentos.

Keywords: Inventories; Market; Creditors; Debtors; 19th century.

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I n t r o d u ç ã o

C

omparada com as áreas de mineração mais antigas, concentradas próximas ao centro da antiga província de Minas Gerais e que foram alvos da cobiça portuguesa desde o final do século XVII, a região de Santa Rita do Turvo foi explorada efetivamente em pe-

ríodo mais tardio. Alguns motivos foram decisivos para este “atraso”. Estava situada na Zona da Mata, em sua porção centro/norte, área habitada por grande contingente de povos indígenas, entre eles os temidos botocudos, muitos dos quais hostis à presença colonizadora. A dificuldade de transposição das densas matas e florestas, típicas da região, foi outro fator que serviu como empecilho para sua exploração. Somente uma motivação muito forte justificaria a incursão por tão tortuosos caminhos. Como não foi encontrado ouro em suas redondezas, tal necessidade não se configurou em um primeiro momento. Por fim, outro aspecto que dificultou e tornou mais tardia a ocupação da Zona da Mata Mineira foi a proibição, por parte da Coroa, do estabelecimento de unidades produtivas e de núcleos de povoamento. As autoridades portuguesas temiam os descaminhos que o ouro poderia tomar em seus inóspitos caminhos (REZENDE, 2007, p. 39-70)1. Infelizmente, os aspectos acima devem ter influenciado na ausência de representações cartográficas sobre a localidade em tela. Desconheço mapas contemporâneos que destaquem a região. O mercado de Santa Rita do Turvo na segunda metade do século XIX, percebido pelos sujeitos que nele atuaram, constitui-se o objeto de pesquisa precípuo deste texto2. Para tanto, anali1 Santa Rita do Turvo contava com uma capela desde os primórdios do Oitocentos, mais precisamente desde 1805. Porém, somente foi elevada à condição de freguesia no ano de 1832. Até que se tornasse vila, o que ocorreu somente no ano de 1871, e posteriormente cidade, no ano de 1876, pertencia administrativamente à jurisdição da Vila de Ubá (BARBOSA, 1995, p. 368). Durante a segunda metade do século XIX, foi marcada pela produção de gêneros variados, tais como açúcar e seus derivados, notadamente aguardente, milho, entre outros. No final do século, conheceu o avanço da cultura cafeeira. Entretanto, o cultivo da rubiácea não se desenvolveu no modelo para exportação, tendo alcançado patamares mais modestos. 2 A abordagem teve como pressuposto a diferença entre mercado enquanto esfera das trocas e de movimento de bens, e enquanto sistema regulador de estruturas econômicas mais amplas, expressa desde a economia política clássica até Braudel (1996). Importante recuperar a consagrada divisão braudeliana da economia em três níveis no interior das sociedades: civilização material (“uma zona espessa rente ao chão”, de autossuficiência e de troca de produtos e serviços em um raio muito curto), economia de mercado (zona de difícil observação por falta de documentação, “atividade elementar de base que se encontra por toda a parte e cujo volume é simplesmente fantástico”) e capitalismo (zona acima da economia de mercado e seria o nível reservado “aos comércios longínquos e aos jogos de créditos complicados”). O foco da análise proposta recai sobre o nível intermediário (BRAUDEL, 1996, p. 199-406).

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so as dívidas, tanto ativas quanto passivas, dos inventariados da localidade, acreditando que podem ser tomadas como indícios da participação que estes indivíduos tiveram no mencionado mercado. Dessa forma, revela-se o perfil predominante dos sujeitos partícipes, bem como algumas das características fulcrais desse mercado. Busco descortinar o perfil dos atores que protagonizavam as trocas, o nível de normatização do mercado, a representatividade das somas investidas nas transações em relação aos patrimônios inventariados, o grau de concentração social dos recursos envolvidos, entre outros aspectos. Importante sublinhar que o mercado é tomado enquanto espaço abstrato de trocas, por meio das quais os indivíduos supriam suas necessidades, tanto materiais quanto simbólicas, e disponibilizavam suas produções excedentes para mercantilização e seus serviços. Espaço no qual compravam e/ou vendiam, realizavam e/ou recebiam serviços, emprestavam e/ou pegavam emprestados recursos para satisfazerem as questões acima ou para engendrarem maiores possibilidades de ganhos. No caso tratado, esses aspectos eram resolvidos em um escopo regional3. Sobre o mercado analisado não incidiram tão somente questões estritamente econômicas. Elementos de cunho mais social e cultural, tais como relações de poder, pessoalidade e solidariedade, também operaram naquele espaço abstrato. Dito de outra maneira, ser credor ou vender para alguém, dever ou comprar para alguém, podiam ser também ações que não se encerravam somente em uma questão exclusivamente econômica4. Contudo, além do fato de que questões extra econômicas muito dificilmente se manifestam em fontes como as utilizadas neste estudo, o mercado da localidade contava com considerável nível de normatização e de racionalidade econômica. Assim sendo, impessoalidade e objetividade também tiveram papel importante nas transações efetivadas pelos indivíduos atuantes no mercado da localidade em tela, tornando possível uma aproximação por meio de fontes quantitativas, como são os inventários post-mortem aqui utilizados.

3 Dadas as características econômicas de Santa Rita do Turvo e região na segunda metade do século XIX, grosso modo marcadas pela produção e comercialização de gêneros variados voltados para abastecimento, os jogos das trocas efetivados pelos indivíduos atuantes eram encetados em escala regional, de mercado interno, diferentemente de regiões nas quais predominavam estruturas produtivas direcionadas para exportação, que engendravam maiores possibilidades de ganho e as conectavam com outros mercados. 4 Autores como Webber (1996), Polanyi (2000) e Thompson (2002) acentuaram a necessidade do entendimento de aspectos sociais, culturais e políticos para a compreensão mais acurada de manifestações que, em princípio, seriam mais propriamente econômicas. Neste sentido, todo sistema econômico, de forma mais ampla, e todo comportamento econômico, de modo mais particular, estariam suscetíveis a motivações não econômicas e permeados por elementos desta natureza. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Os sujeitos do mercado

De todo o conjunto de inventariados considerados, grande parte participou de atividades econômicas que os vinculavam ao mercado da localidade tratada, nos termos estabelecidos anteriormente, pelo menos a julgar pelos bens que possuíam quando faleceram. Tal assertiva lastreia-se nos processos dos inventariados que arrolaram dívidas ativas, passivas ou dos dois tipos, entre os bens constituintes de seus patrimônios. A presença deste tipo de registro entre as posses destes indivíduos indica que estavam negociando bens (comprando ou vendendo), comprometidos com práticas creditícias (emprestando ou tomando emprestado recursos), envolvidos em prestação de serviços (realizando ou recebendo) ou ainda investindo em ativos de ordem financeira no momento em que foram acometidos pela morte. Em qualquer uma dessas hipóteses, eram sujeitos ativos e partícipes do mercado de Santa Rita do Turvo no tempo em questão, sugerindo um espaço de trocas em movimento, mesmo dentro dos limites impostos pela natureza do quadro socioeconômico da localidade. No período entre 1850 e 1888, considerando todo o conjunto de inventariados, o percentual que possuía dívidas superou a maioria dos casos. Dos 288 inventários consultados, em 184 encontrei algum resquício de participação no mercado de Santa Rita do Turvo. Em outros termos, nada menos que 64% dos processos consultados deste período descreveram algum tipo de dívida (ativa e/ou passiva) entre os bens que foram arrolados. A Tabela 1 apresenta os dados sobre a presença de dívidas ativas e/ou passivas nos inventários do intervalo de tempo trabalhado. Os informes foram dispostos por faixas de riqueza e também para o conjunto dos processos. Indico o número absoluto e a participação relativa dos inventariados que possuíram somente dívidas ativas (A), dos que tiveram exclusivamente dívidas passivas (B), daqueles que detiveram os dois tipos de dívidas (A+B) e também dos que não possuíam bens desta natureza no momento que faleceram (C)5. 5 No decorrer da pesquisa, optei por converter os valores nominais de Réis para Libras Esterlinas. A adoção deste procedimento buscou minimizar os efeitos da desvalorização da moeda nacional ao longo do período tratado, dadas as instabilidades da economia brasileira no século XIX. Tanto as faixas de riqueza estabelecidas como os patrimônios dos inventariados foram convertidos, incluindo os valores das dívidas, ativas e passivas. Sabe-se, contudo, que este procedimento não elimina de todo o problema. Pode acarretar, por exemplo, a subestimação da inflação. Por sua vez, tornou as comparações de valores em diferentes períodos ao menos minimamente possíveis, uma vez que a Libra Esterlina foi uma moeda muito mais estável ao longo do período tratado. Fizemos a conversão da moeda nacional para Libra Esterlina utilizando como referenciais as taxas de câmbio apresentadas pelo IBGE na publicação Estatísticas Históricas do Brasil (1990). O documento oferece as taxas de câmbio anuais, calculadas por meio da divisão do valor auferido para o comércio em moeda nacional e o mesmo valor tomado em Libras Esterlinas. Até 1888, o período base para apuração se estendia de junho a julho. Com isso, em muitos casos, foi necessário aplicar taxas de câmbio distintas para inventariados que faleceram em um mesmo ano, dependendo do mês em que foi aberto o processo. A partir de 1888, as taxas são oferecidas com base no ano de janeiro a dezembro (IBGE, 1990, p. 368-369).

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Tabela 1 – Presença de dívidas ativas e/ou passivas nos inventários por faixas de riqueza, Santa Rita do Turvo (1850-1888). Faixas de riqueza

A

B

A+B

C

Total

%

%

%

%

%

Até £ 150

6

13,6

14

31,8

1

2,3

23

52,3

44

100

£ 151 a £ 500

24

21,2

21

18,6

11

9,8

57

50,4

113

100

£ 501 a £ 1000

10

17,5

15

26,3

16

28,1

16

28,1

57

100

£ 1001 a £ 2000

19

52,8

3

8,3

11

30,6

3

8,3

36

100

Acima de £ 2001

20

52,6

1

2,6

12

31,6

5

13,2

38

100

Todas as faixas

79

27,4

54

18,8

51

17,7

104

36,1

288

100

A: Inventários somente com dívidas ativas. B: Inventários somente com dívidas passivas. A+B: Inventariados com dívidas ativas e passivas. C: Inventariados sem dívidas ativas ou passivas. Fonte: 288 inventários post-mortem para o período 1850/1888. Arquivo do Fórum Artur Bernardes, Viçosa/MG. Daqui em diante utilizarei apenas AFAB.

Considerando todo o conjunto de inventariados do período entre 1850 e 1888, pode ser observado que uma parcela equivalente a 27,4% possuía somente dívidas ativas entre seus bens. Sendo assim, eram indivíduos que tinham somente somas a receber e que não estavam endividados quando faleceram. O percentual de indivíduos nesta situação aumentou em concomitância com os níveis de riqueza. Quanto mais elevado o estrato de patrimônio, maior a parcela de inventariados que eram somente credores, com exceção da passagem da segunda para a terceira faixa de riqueza. Nos dois segmentos com mais elevados patrimônios, pouco menos de 53% dos inventariados possuíram exclusivamente dívidas ativas, ao passo que o percentual correlato na menor faixa de riqueza equivaleu a 13,6%. Na Tabela 1 pode ser visualizada ainda a representatividade, dentro do conjunto dos processos, dos inventariados que possuíam somente dívidas passivas quando faleceram, ou seja, eram exclusivamente devedores – 18,8% dos casos. Do mesmo modo que, entre os inventários que detiveram somente dívidas ativas entre os bens descritos, também fica evidente uma relação entre riqueza e dívidas passivas. Contudo, em sentido contrário. Quanto maior o nível de fortuna, menor a parcela de inventariados que estava endividada no momento do falecimento. Em contrapartida, nos estratos menos aquinhoados uma fração maior de inventariados possuiu somente dívidas passivas. Na menor faixa de riqueza, o percentual de indivíduos nesta condição foi pouco inferior a 32%, ao passo que, entre os inventariados do maior agrupamento de fortuna, o percentual correlato foi de somente 2,6%. Com base nos aspectos acima, fica sugerido que, além de contarem com menores recursos, no momento da morte o endividamento era fenômeno mais disseminado entre os inventariados mais pobres. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Os dados dispostos na Tabela 1 atestam ainda que muitos inventariados de Santa Rita do Turvo no período de 1850 a 1888 possuíram tanto dívidas ativas quanto passivas, ou seja, ao mesmo tempo eram credores, também deviam a outros indivíduos quando faleceram. Pouco menos de 18% dos processos compulsados se enquadraram nesta situação. Assim como nos casos anteriores, manifesta-se a relação entre inventariados com dívidas ativas e passivas e riqueza. Quanto mais elevado o nível de fortuna, maior também o percentual de inventariados que, quando faleceram, eram tanto credores quanto devedores. Por fim, uma parcela equivalente a pouco mais de 36% dos inventariados cotejados não possuiu qualquer tipo de dívida, ativa ou passiva. A julgar pelos bens arrolados em seus processos, não participavam do mercado da localidade quando faleceram. Mesmo para esta parcela de indivíduos, fica evidente uma relação concomitante com a riqueza declarada. Nos segmentos de menores cabedais, parcelas maiores de indivíduos não possuíram dívidas, ao passo que o percentual correlato se reduziu nos estratos mais aquinhoados. Sendo assim, entre os mais ricos era maior a representatividade de inventariados com participação no mercado de Santa Rita do Turvo no período em tela. Excluindo, então, a última categoria (dos processos dos indivíduos que não possuíram qualquer tipo de dívida), praticamente 64% dos inventariados do período estavam de alguma forma conectados com o mercado da localidade, seja como credores, seja como devedores, ou ainda nas duas condições concomitantemente. Os dados levantados e expostos permitem uma aproximação do cenário econômico em tela, na medida em que os inventariados que possuíram dívidas ativas e/ou passivas podem ser entendidos como indivíduos que foram sujeitos partícipes do mercado de Santa Rita do Turvo na segunda metade do século XIX. Contudo, a abordagem proposta apresenta limitações, tornando o estudo do mercado da localidade fragmentário, precário, indiciário. Muito mais uma aproximação. Será que o contingente de inventariados que não tiveram dívidas de qualquer natureza arroladas em seus processos, e que inicialmente estariam “ausentes” do mercado da localidade, objeto precípuo deste texto, de fato não participaram dos jogos das trocas em Santa Rita do Turvo? Talvez não. Cabe esclarecer que a metodologia adotada trouxe consigo algumas limitações. Em primeiro lugar, evidentemente que os inventariados que não possuíram dívidas ativas e/ou passivas declaradas na documentação cotejada poderiam ter participado informalmente do mercado da localidade, estabelecendo operações de compras, vendas, serviços ou empréstimos informais, baseadas unicamente na palavra como garantia. Como estas negociações não deixaram evidências documentais nos inventários, não conseguimos recuperá-las. Em segundo lugar, a ausência de dívidas de qualquer natureza em um inventário não quer dizer, necessariamente, que o inventariado esteve ausente ou à margem por completo e permanentemente do mercado da localidade. Certamente que, ao longo de sua vida, ele pode ter feito transações que o conectaram com este espaço abstrato

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analisado. A ausência de dívidas em um inventário indica tão somente que em um momento específico (o da morte), o indivíduo nem devia e nem tinha a receber valores de outros sujeitos. Porém, nada garante que a condição de devedor e/ou credor não possa ter sido experimentada ao longo das vivências cotidianas em outros momentos da trajetória de vida destes indivíduos. No geral, esta última observação pode ser estendida para todos os aspectos analisados com base em inventários post-mortem, na medida em que apresentam um recorte específico e datado do patrimônio de uma pessoa, uma fotografia, e não a síntese de sua trajetória de vida. Por fim, em terceiro lugar, não são recuperadas as transações mercantis que foram quitadas à vista, com pagamento em espécie ou com trocas, por exemplo, um animal por determinada quantidade de algum gênero. A soma de todos os elementos sugeridos resulta em uma análise muito mais indiciária que definitiva, resultante da natureza dos dados coligidos nas fontes adotadas. Provavelmente a parcela dos inventariados que atuava no mercado de Santa Rita do Turvo, a recorrência dos contatos e o volume dos valores envolvidos devem estar subestimados, de modo a reforçar o argumento acerca do dinamismo e do movimento do mercado da localidade, mesmo sendo este voltado para atividades encetadas em escopo regional, no mercado interno. Não obstante os apontamentos acima, a análise das dívidas ativas e passivas constantes nos inventários post-mortem de Santa Rita do Turvo da segunda metade do Oitocentos se constitui em uma das formas de acessar o mercado local, tomado enquanto objeto de pesquisa e nos moldes enfocados neste estudo. Sendo assim, no tópico a seguir analiso as dívidas ativas, parte importante da riqueza inventariada na localidade. Posteriormente, o procedimento repete-se para o caso das dívidas passivas. Importante sinalizar que alguns processos compuseram a base de dados nos dois momentos, visto que, conforme mencionado acima, uma parcela de inventariados possuiu tanto dívidas ativas quanto passivas. Contudo, em cada um dos momentos enfocou-se os dados de um dos tipos de dívidas. Mesmo se caracterizando como uma localidade precipuamente voltada para produção e mercantilização em escala regional de gêneros variados, em especial milho, cana-de-açúcar e seus derivados e café (este último destacadamente no final do século XIX), seu mercado conheceu um nível de desenvolvimento que o manteve distante da atrofia ou do marasmo.

As dívidas ativas: os credores

As dívidas ativas representaram parte importante dos patrimônios inventariados em Santa Rita do Turvo na segunda metade do século XIX. Mais do que isso, a parcela alocada neste grupo de ativos conheceu um aumento relativo no correr do período estudado. No período entre 1850 e 1859, as dívidas ativas representaram pouco mais de 7% do total da riqueza declarada Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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pelos indivíduos da localidade em tela. No decênio seguinte, o percentual se retraiu um pouco e atingiu 6,7%. Contudo, a partir da década de 1870, a importância relativa das dívidas ativas na composição dos patrimônios estudados não parou de aumentar. Nesta década foi de 14%, e elevou-se para 16,6% entre 1880 e 1888. Grosso modo, as dívidas ativas eram os registros das somas que os inventariados tinham a receber no momento em que faleciam, ou seja, indícios de que o indivíduo era sujeito atuante no mercado, credor pela venda de gêneros, por práticas creditícias, por serviços prestados ou por investimentos financeiros, quando não em mais de uma destas atividades ou em todas ao mesmo tempo. Sendo assim, as dívidas ativas tinham origens e modalidades diversas, nem sempre explicitadas em minúcias nas descrições feitas na documentação compulsada, certamente fator limitante da análise. Contudo, duas informações básicas sempre foram arroladas, abrindo possibilidades analíticas: o nome do devedor e a quantia devida ao inventariado credor. Conforme mencionado anteriormente, outro ponto que impôs obstáculos para a análise do mercado da localidade foi o fato de que somente foram consideradas as dívidas por assim dizer formalizadas. Aquelas feitas com base somente na palavra e que não deixaram vestígios documentados ficaram de fora. Transações deste tipo muito provavelmente foram bastante recorrentes em sociedades como a que buscamos retratar, em especial para dívidas que envolviam baixos valores. Contudo, tornam-se muito difíceis de serem recuperadas pelos historiadores, dada a ausência de registros. A Tabela 2 apresenta o percentual de inventariados com dívidas ativas dentro de cada faixa de riqueza para todo o período entre 1850 e 1888. Tabela 2 - Representatividade dos inventariados com dívidas ativas dentro das faixas de riqueza e por períodos, Santa Rita do Turvo – 1850/1888 (%). Faixas de riqueza

1850/59

1860/69

1870/79

1880/88

(1)

(2)

(1)

(2)

(1)

(2)

(1)

(2)

Até £ 150

27,3

72,7

0,0

100

16,7

83,3

15,4

84,6

£ 151 a £ 500

33,3

66,7

37,5

62,5

23,9

76,1

39,5

60,5

£ 501 a £ 1000

58,3

41,7

60,0

40,0

46,2

53,8

28,6

71,4

£ 1001 a £ 2000

100

0,0

60,0

40,0

84,6

15,4

80,0

20,0

Acima de £ 2001

100

0,0

83,3

16,7

75,0

25,0

85,7

14,3

Todas as faixas

53,4

46,6

53,8

46,2

40,0

60,0

46,1

53,9

(1) Percentual de inventariados com dívidas ativas arroladas. (2) Percentual de inventariados sem dívidas ativas arroladas. Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288), foram considerados somente os dos indivíduos que possuíram dívidas ativas – 132 processos, constituindo 46% do total. (AFAB, 1850-1888).

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Os dados da tabela anterior evidenciaram claramente a já suspeitada relação entre nível de riqueza e alocação de recursos em dívidas ativas. Fica evidente que esta opção de investimento era majoritariamente acessível aos inventariados que dispunham de maiores cabedais. Com raras exceções, em todos os intervalos, quanto mais elevada a faixa de riqueza, maior o percentual de processos que arrolaram dívidas ativas entre os bens constituintes dos patrimônios declarados. Fica manifesta a relação entre posse de dívidas ativas em correspondência com a elevação do nível de riqueza. Os sujeitos inventariados mais ricos de Santa Rita do Turvo eram aqueles que mais frequentemente participavam do mercado da localidade na posição de credores, o que poderia se dar tanto por opção dos indivíduos, mas, principalmente, pelas maiores possibilidades de diversificação de investimentos advindas de maiores fortunas. Via de regra, aos mais pobres restava alocar seus menores recursos, majoritariamente, nas terras das quais extraíam os meios para subsistência, casas em que moravam e, quando possível, em cativos. Importante considerar também as dívidas ativas por meio dos valores empenhados neste grupo de ativos pelos inventariados no período em questão, e não somente pela simples presença nos processos. O Gráfico 1 apresenta a evolução da representatividade deste grupo de ativos no montante total da riqueza inventariada em Santa Rita do Turvo no transcorrer da segunda metade do século XIX. Os informes seguem tanto por faixas de patrimônio como também para o conjunto dos inventariados da localidade. Gráfico 1 – Representatividade do grupo de ativo dívidas ativas no total do patrimônio inventariado por faixas de riqueza, Santa Rita do Turvo - 1850/1888 (%).

Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288), foram considerados somente os dos indivíduos que possuíram dívidas ativas – 132 processos, constituindo 46% do total. (AFAB, 1850-1888).

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Os diferentes segmentos de riqueza apresentaram níveis diversos de alocação da riqueza em dívidas ativas. Via de regra, as duas faixas de menores cabedais tiveram as mais reduzidas parcelas de patrimônio investidas neste grupo de bens. Considerando estes dois estratos, a representatividade máxima foi de cerca de 8% na segunda faixa de riqueza, durante o período de 1880 a 1888. Por sua vez, o primeiro segmento de patrimônio jamais superou o patamar de 4% dos bens alocados em dívidas ativas. A situação foi diversa entre os inventariados mais aquinhoados. Embora nem sempre tenha sido o estrato com maior empenho relativo de bens em dívidas ativas, a maior faixa de riqueza se descolou consideravelmente dos demais grupos a partir do terceiro período. Entre 1880 e 1888, um percentual de pouco mais de 20% de todo o patrimônio da faixa de inventariados com mais de 2001 Libras Esterlinas estava investido em dívidas ativas. Dessa forma, em termos de participação no valor total das dívidas ativas e, portanto, dos indivíduos credores, os dados indicaram que o “movimento” do mercado de Santa Rita do Turvo era, majoritariamente, proporcionado pelos sujeitos possuidores de mais elevada riqueza, com tímida participação daqueles com menores cabedais, em especial após o intervalo 1870-1879, pelo menos a julgar pelos inventariados da localidade na segunda metade do século XIX. A concentração social das dívidas ativas, tanto por valores como por frequência, fica ainda mais latente quando consideramos a contribuição relativa de cada uma das faixas de riqueza para a composição do montante total dos recursos empenhados neste grupo de ativos. Na Tabela 3, apresento os dados agregados para todo o período entre 1850 e 1888, e também desagregados pelos intervalos constituintes deste recorte temporal mais amplo. Tabela 3 – Contribuição relativa das faixas de riqueza no montante total das dívidas ativas descritas nos inventários, Santa Rita do Turvo – 1850/1888 (%). Faixas de riqueza

1850/59

1860/69

1870/79

1880/88

1850/1888

Até £ 150

0,4

0,0

0,3

0,3

0,3

£ 151 a £ 500

8,5

3,0

4,1

6,1

5,3

£ 501 a £ 1000

17,1

13,3

11,4

2,5

8,0

£ 1001 a £ 2000

35,5

38,9

11,2

7,6

13,3

Acima de £ 2001

38,5

44,8

73,0

83,5

73,1

Todas as faixas

100

100

100

100

100

Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288) foram considerados somente os dos indivíduos que possuíram dívidas ativas, 132 processos. Constituem 46% do total. 132 inventários post-mortem para o período 1850/1888. AFAB.

Em todos os intervalos considerados, a menor faixa de riqueza teve participação irrisória no montante total das dívidas ativas, em momento algum superior a 0,4%. Contudo, em alguns períodos os inventariados deste segmento representaram uma parcela relevante dos proprietários de bens desta natureza. Entre 1850 e 1859, por exemplo, 10% dos processos com dívi-

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das ativas estavam aglutinados na menor faixa de fortuna. O estrato oposto de inventariados, com patrimônios maiores que 2001 Libras Esterlinas, foi aquele que, em todos os intervalos considerados, reteve a maior parcela relativa do montante total das dívidas ativas arroladas na documentação compulsada. Contudo, somente na década de 1860 constituiu o grupo mais representativo de inventariados possuidores de dívidas ativas. Nos períodos de 1870-1879 e de 1880-1888, a maior faixa de riqueza concentrou as mais elevadas parcelas do valor total das dívidas ativas de todo o recorte temporal observado: 73% e 83,5% respectivamente. Contudo, nestes mesmos intervalos este segmento representou somente 19,6% e 29,3% dentre os possuidores de bens desta natureza. De modo geral, no cenário socioeconômico de Santa Rita do Turvo na segunda metade do século XIX, investir recursos em dívidas ativas, uma das maneiras de contato com o mercado da localidade, era uma opção majoritariamente restrita aos indivíduos de maiores cabedais, a julgar pelos inventariados da localidade. Os recursos declarados nos processos consultados que estavam empenhados neste grupo de ativos estavam socialmente concentrados. A participação relativa dos menores estratos de riqueza foi bastante modesta, situação mantida e até mesmo acentuada no correr dos anos considerados. Casos como o de Francisco José Graia foram sintomáticos do quadro delineado. Inventariado no ano de 1882, possuiu um patrimônio que o colocava no menor segmento de riqueza. No momento em que faleceu era credor em único registro de dívida ativa. O valor que tinha a receber de João de Souza Lima era muito baixo, 2,65 libras esterlinas, equivalente a somente 3% do seu patrimônio total inventariado6. Conquanto fosse credor por um registro de dívida ativa, a soma transacionada era modestíssima. Por outro lado, casos como o encontrado no processo de D. Joaquina Maria dos Reis foram mais frequentes entre os indivíduos que alocaram recursos em dívidas ativas. Inventariada em 1883, integrava o maior estrato socioeconômico que estabelecemos. Foram descritos cinco registros de dívidas ativas em seu inventário, um por ações de uma fábrica de tecidos (Melo & Reis) e os demais por empréstimos realizados e ainda não recebidos quando faleceu. A soma dos valores alocados em dívidas ativas foi de 687,79 libras esterlinas, correspondente a 19% do seu patrimônio total7. Inventariados com o perfil de D. Joaquina se destacaram no tocante à alocação de recursos no grupo de ativos em questão. No processo de Vicente Rodrigues Valente, encontrei o maior valor absoluto declarado em dívidas ativas no período 1850-1859, equivalente a 487,79 libras esterlinas. Falecido no ano de 1858, suas posses o enquadraram na quarta maior faixa de patrimônio. O montante declarado em dívidas ativas correspondeu a 48,6% de todo o seu patrimônio e a 15% da soma declarada 6 Inventário de Francisco José Graia (AFAB, 1882). 7 Inventário de Joaquina Maria dos Reis (AFAB, 1883). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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em bens desta natureza pelos inventariados do primeiro período analisado. O restante da riqueza de Valente estava alocada em imóveis (35,7%), em animais (14%) e itens móveis (1,7%). O inventariado em questão não era proprietário de cativos quando faleceu e suas propriedades fundiárias não foram devidamente dimensionadas na documentação consultada. Toda sua dívida ativa era originada de dezessete registros por empréstimos feitos para quinze diferentes indivíduos, denotando assim que a atividade creditícia estava entre as principais desempenhadas pelo inventariado, talvez a mais importante8. No intervalo 1860-1869, o maior valor absoluto declarado em dívidas ativas foi arrolado no inventário de D. Brígida Moreira de Jesus. Embora tenha falecido no dia 4 de outubro de 1864, seu processo somente foi aberto cerca de dois anos depois. A soma do patrimônio declarado posiciona a inventariada no quarto maior segmento de riqueza. O total de suas dívidas ativas alcançou o valor de 738,57 libras esterlinas, sendo o grupo de ativos mais importante na composição de sua riqueza, em que foi empenhada pouco além da metade do montante arrolado (50,8%). Representou também cerca de 32% do valor de todas as dívidas ativas descritas nos processos da década de 1860. A inventariada era credora de cinquenta e três indivíduos (em cinquenta e quatro registros), por contas de rol. Como não foram mencionados estoques e/ou plantações em seu processo, não é possível apontar quais os prováveis gêneros cultivados nas unidades produtivas de D. Brígida que geraram excedentes e que foram negociados, dando origem às suas dívidas ativas. No inventário em questão, ainda foram arrolados outros sessenta e sete devedores (em setenta e um registros) por dívidas que não tiveram a modalidade descrita. O restante do patrimônio declarado no processo de D. Brígida estava alocado nos quatro cativos declarados (14%), em bens imóveis (30,1%), em animais (1,8%) e em itens móveis (3,3%)9. O inventariado José Luiz da Silva Viana, falecido em 1876, possuiu o maior valor absoluto alocado em dívidas ativas entre os inventariados de Santa Rita do Turvo no terceiro intervalo considerado. A soma dos valores alocados neste grupo de ativos alcançou 5.214,36 libras esterlinas. Foi a segunda fração mais substantiva de sua riqueza, equivalente a 26,9% do total e a 36,4% do montante total deste grupo de ativos no intervalo 1870-1879. O restante dos bens de Viana estava empenhado em imóveis (43,8%), em escravos (23,2%), no seu rebanho de animais (4,6%) e em itens móveis (1,5%). Especificamente em relação às dívidas ativas declaradas no processo em questão, eram majoritariamente registros por empréstimos realizados pelo inventariado, o que sugere a grande importância que as práticas creditícias tiveram entre as atividades que desenvolvia, além de sua grande capacidade de dispender recursos para serem emprestados. Nada menos que 172 indivíduos foram arrolados como seus devedores, em 183 8 Inventário de Vicente Rodrigues Valente (AFAB, 1858). 9 Inventário de Brígida Moreira de Jesus (AFAB, 1866).

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registros de empréstimos concedidos. Foram relacionados, ainda, sete registros por contas de rol e de livro, e outros seis registros de dívidas ativas sem indicação da origem. Viana era produtor de diversos gêneros como açúcar, arroz, feijão, milho, cana e café. Provavelmente, a comercialização da produção excedente destes itens explica a origem das dívidas por contas10. José de Deos Moreira e Castro foi o indivíduo de maior patrimônio que encontrei entre os inventariados de Santa Rita do Turvo na segunda metade dos Oitocentos. Consequentemente, integra o mais elevado nível de fortuna e deteve o maior valor absoluto em dívidas ativas no período 18801888. Era dono de grande escravaria, de extensas propriedades fundiárias e de muitos animais. Além disso, quando faleceu, em setembro de 1882, possuía o valor de 10.834,61 libras esterlinas empenhado em dívidas ativas, correspondente a uma fração de 48,7% de todo o seu patrimônio inventariado. As demais parcelas de sua riqueza estavam alocadas em propriedades imobiliárias (27%), em cativos (13,9%), em bens móveis (5,3%), em dinheiro (2,6%) e em seu rebanho de animais (2,5%). A maior parte dos registros de dívidas ativas descritas no inventário de Moreira e Castro era por empréstimos que tinha a receber quando faleceu. Foram descritos vinte registros, nos quais quatorze indivíduos eram seus devedores. Ainda era credor por uma conta corrente. Contudo, as dívidas ativas mais substantivas estavam empenhadas em ativos financeiros. O inventariado em questão era credor por duas escrituras públicas de hipotecas e possuía ainda noventa e cinco apólices da dívida pública do Estado. Estes últimos registros de ativos financeiros significavam nada menos que 93% do montante total das dívidas ativas de Moreira e Castro11.

As dívidas passivas: os devedores

Se no tópico anterior o foco centrou-se no estudo das dívidas ativas presentes nos inventários de Santa Rita do Turvo na segunda metade do Oitocentos, nesta parte do capítulo a abordagem recai sobre as dívidas passivas arroladas na documentação compulsada, aquelas que colocavam os inventariados na posição de devedores, ou seja, na outra ponta das relações mercantis. No entanto, também apontaram a participação dos indivíduos no mercado da localidade. No caso das dívidas ativas, descortinou-se a representatividade destas em relação aos patrimônios, tanto para o conjunto de inventariados como também por faixas de riqueza, e a disseminação desta forma de investimento entre os indivíduos considerados. Foi revelada 10 Inventário de José Luiz da Silva Viana (AFAB, 1876). 11 Inventário de José de Deos Moreira e Castro (AFAB, 1882). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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a relação deste grupo de ativos com os níveis de riqueza, o que permitiu apresentar o perfil socioeconômico dos inventariados que tiveram maior representatividade das dívidas ativas no montante total dos patrimônios declarados. De modo geral, nos registros das dívidas passivas inventariadas constavam somente o nome do credor e o valor devido. Para todo o período considerado, pouco menos de 20% dos registros trouxeram alguma informação além destas. Sendo assim, foi possível estabelecer somente apontamentos acerca do perfil socioeconômico dos indivíduos que tiveram dívidas passivas descritas em seus inventários, estudar o nível de comprometimento dos patrimônios totais em relação às somas devidas e a disseminação dos inventariados devedores em relação ao total. Por fim, abordo os valores médios das operações que resultaram em somas a serem pagas pelos inventariados contemplados. Via de regra, as dívidas passivas descritas nos processos consultados eram os registros dos valores que os falecidos tinham a pagar para outros indivíduos quando foram acometidos pela morte. Após a soma de todos os bens pertencentes ao inventariado, deveriam ser descontadas do monte mor para o pagamento dos credores. Somente após este procedimento era feita a partilha do restante dos bens entre os herdeiros do espólio. Este tipo de registro, assim como as dívidas ativas, revelou a participação dos indivíduos no mercado da localidade analisada. Muito provavelmente estavam comprando gêneros para pagamento a prazo, pagando por serviços prestados por terceiros, pegando recursos emprestados junto aos indivíduos que ofereciam crédito, entre outras tantas possibilidades que evidenciavam a integração destes devedores ao mercado. Infelizmente, as informações oferecidas na documentação cotejada não permitiram saber que tipo de operação gerou as somas devidas pelos inventariados. Ainda outro ponto importante. As dívidas passivas declaradas nos inventários tinham que ser, obrigatoriamente, acompanhadas por recibos, notas ou quaisquer outros meios comprobatórios. Quando este procedimento ocorria, os comprovantes eram anexados aos processos. De modo geral, eram bastante sucintos e, da mesma forma que os próprios registros das dívidas passivas, não traziam muitos detalhes, declarando somente o nome do credor e o valor devido. Caso não houvesse comprovação, as somas devidas pelo falecido não eram computadas nos cálculos finais dos inventários, não sendo, portanto, destinados recursos para a quitação das mesmas. Naquele tempo e naquela sociedade, cabia ao credor de uma dívida, assim que ficasse sabendo da morte de alguém que lhe devia e que estivesse sendo inventariado, apresentar a comprovação da mesma ao longo dos trâmites do processo. Somente assim seria ressarcido pelos valores correspondentes.

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No decorrer da leitura dos inventários cotejados, foi possível verificar inúmeras situações em que dívidas passivas declaradas não foram computadas no final do processo por não terem sido comprovadas ou, como se dizia à época, validadas, mesmo quando o próprio inventariante descrevia a dívida e, portanto, assumia dever para terceiros. Talvez muitas dessas dívidas passivas tenham sido honradas de modo informal, à margem dos trâmites oficiais descritos nos inventários. Contudo, não existem subsídios empíricos para embasamento esta impressão. Em última instância, optei por relevar tão somente as dívidas passivas que foram consideradas ao final dos processos, ou seja, aquelas que foram validadas com base em algum tipo de comprovação e cujos ressarcimentos junto aos seus credores foram previstos. Cerca de 70% dos registros de valores devidos estavam nesta condição e foram, portanto, considerados. Nem sempre os comprovantes foram encontrados anexados aos processos. Provavelmente muitos tenham se soltado dos processos e se perdido, visto que a preservação e a organização da documentação utilizada foram muito precárias, o que deteriorou muitos dos processos consultados, além, é claro, do efeito do tempo. De modo similar ao caso das dívidas ativas, foi possível acessar somente as dívidas passivas que foram formalmente registradas. Não conseguimos recuperar aquelas que tiveram como única garantia a palavra empenhada e que foram ajustadas à margem dos trâmites legais. Considerando as questões acima elencadas, a Tabela 4 apresenta os informes acerca da disseminação das dívidas passivas entre os inventariados de Santa Rita do Turvo na segunda metade do Oitocentos. Qual a representatividade dos processos que mencionaram dívidas passivas dentro do conjunto de inventariados contemplados e que, portanto, evidenciaram algum grau de endividamento? A tabela informa os percentuais para todo o período 1850-1888, subdividido em intervalos menores. Em comparação com as dívidas ativas, a frequência de inventários com dívidas passivas validadas foi consideravelmente inferior, 36% ante 46%.

Tabela 4 – Representatividade dos inventariados com dívidas passivas dentro das faixas de riqueza e por períodos, Santa Rita do Turvo – 1850/1888 (%). Faixas de riqueza

1850/59

1860/69

1870/79

1880/88

(1)

(2)

(1)

(2)

(1)

(2)

(1)

(2)

Até £ 150

36,4

63,6

50,0

50,0

27,8

72,2

38,5

61,5

£ 151 a £ 500

19,0

81,0

25,0

75,0

39,1

60,9

18,4

81,6

£ 501 a £ 1000

50,0

50,0

80,0

20,0

53,8

46,2

50,0

50,0

£ 1001 a £ 2000

25,0

75,0

20,0

80,0

46,2

53,8

50,0

50,0

Acima de £ 2001

50,0

50,0

33,3

66,7

33,3

66,7

28,6

71,4

Todas as faixas

32,8

67,2

38,5

61,5

40,9

59,1

31,5

68,5

(1) Percentual de inventariados com dívidas passivas arroladas. (2) Percentual de inventariados sem dívidas passivas arroladas. Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288), foram considerados somente os dos indivíduos que possuíram dívidas passivas: 104 processos, que constituem 36% do total. (AFAB, 1850-1888).

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Os informes de disseminação das dívidas passivas não evidenciaram tendências muito claras, não obstante terem sido tomados por faixas de fortuna. Porém, chamou atenção a representatividade dos inventariados com dívidas passivas no estrato intermediário, aqueles com patrimônios entre 501 e 1000 libras esterlinas. Em todos os recortes temporais estabelecidos, este foi o nível de riqueza que teve a maior participação relativa de inventariados devedores, com pico de 80% (1860-1869). Os processos dos menores segmentos de fortuna não foram os que tiveram maior representatividade relativa de inventariados endividados, como inicialmente poderia se supor, visto que contrair dívidas passivas poderia ser uma das possibilidades de enfrentamento de condições materiais mais duras e adversas. Talvez os menos aquinhoados não tenham recorrido a este tipo de estratégia porque não tinham o mesmo nível de acesso ao crédito e a mesma capacidade de endividamento em comparação com os outros segmentos. Por outro lado, por seus patrimônios mais consideráveis, aparentemente os inventariados dos níveis de maior fortuna, não tiveram a necessidade de recorrer tanto aos empréstimos, à compra de gêneros a prazo ou a qualquer outro recurso que originasse dívidas passivas. Sendo assim, os inventariados da faixa intermediária de patrimônio foram aqueles que, ao mesmo tempo, necessitaram e tiveram condições de contrair dívidas passivas. Talvez em função disso se explique a maior parcela de indivíduos deste segmento, dentre todas as faixas de riqueza, que estavam endividados. Seja como for, em todos os níveis de fortuna consideráveis parcelas de inventariados estavam comprometidos com dívidas passivas no momento em que faleceram. Sendo assim, o endividamento na sociedade tratada não era exclusividade de nenhum segmento de riqueza em específico, não obstante o destacamento da representatividade de inventariados com dívidas passivas no terceiro estrato de fortuna. Pegar recursos emprestados, adquirir gêneros com previsão de pagamento a prazo, pagamento para terceiros por serviços prestados, entre outras possibilidades, foram procedimentos comuns na sociedade de Santa Rita do Turvo na segunda metade do Oitocentos, utilizados pelos inventariados de todas as faixas de riqueza. Foram estratégias indicativas da conexão destes indivíduos com o movimento do mercado da localidade, tanto quanto a posse de dívidas ativas. Além de considerar a simples presença dos registros de dívidas passivas validadas nos inventários cotejados, é importante avançar no estudo da questão do endividamento com a consideração dos valores comprometidos com dívidas desta natureza declarados nos inventários de Santa Rita do Turvo no período tratado. O Gráfico 2 indica a representatividade das somas devidas em relação aos patrimônios totais declarados nos processos.

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Gráfico 2 – Representatividade das dívidas passivas em relação ao total do patrimônio inventariado por faixas de riqueza, Santa Rita do Turvo - 1850/1888 (%).

Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288), foram considerados somente os dos indivíduos que possuíram dívidas passivas – 104 processos, que constituem 36% do total. (AFAB, 1850-1888).

Considerando todo o conjunto de inventariados, o nível de comprometimento dos patrimônios declarados com dívidas passivas não foi muito elevado, ressaltando-se novamente tratar-se somente do endividamento formalizado e comprovado. Na década de 1860, atingiu o percentual mais considerável, equivalente a pouco menos de 9% da riqueza total declarada na documentação para este intervalo. Nos demais períodos, esta representatividade variou pouco, entre 2% e 4%. Sendo assim, não obstante as dívidas passivas constarem em aproximadamente um terço dos inventários de Santa Rita do Turvo no intervalo 1850-1888, em termos de comprometimento da riqueza declarada, o endividamento dos indivíduos considerados não comprometeu grande parte dos patrimônios totais arrolados, talvez porque a reprodução da economia da localidade, dada sua natureza de abastecimento regional e de produção de gêneros variados, provavelmente não dependeu de grandes aportes de recursos. No entanto, a observação dos dados por faixas de riqueza permite visualizar importantes questões. A faixa formada pelos inventariados com menores cabedais destacou-se das demais, precipuamente nos períodos 1870-1879 e 1880-1888. Neste último recorte, inclusive, uma parcela de quase 20% dos recursos totais declarados nos processos deste segmento estava comprometida com o pagamento de credores. Em três dos cinco períodos analisados, a menor faixa de cabedais atingiu o maior percentual relativo de dívidas passivas em relação ao total dos patrimônios declarados. Desta forma, além de disporem de menos recursos, os inventariados mais pobres ainda tiveram maior necessidade de se endividarem na sociedade tratada, mesmo não sendo o estrato com maior percentual de endividados. Este quadro evidencia o quão penosas Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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e difíceis devem ter sido as experiências de vida dos indivíduos em questão. Os seus parcos recursos ainda tinham que ser utilizados para a quitação de dívidas assumidas pelos falecidos ainda em vida para, somente em um segundo momento, serem repartidos entre os herdeiros. Nesta situação, pouco devia restar dos espólios. No extremo oposto, exceção feita ao peculiar período 1860-1869, os inventariados agrupados na maior faixa de riqueza comprometeram parcelas menores de seus patrimônios com dívidas passivas. Na década de 1850, foi o estrato de fortuna com o segundo menor comprometimento relativo da riqueza em somas a serem pagas, com percentual pouco acima de 2%. A partir da década de 1870, o maior segmento de riqueza se destacou como o agrupamento de inventariados com a menor fração de recursos comprometida em dívidas passivas, com percentual sempre inferior a 2%. Sendo assim, além de gozarem de condições materiais privilegiadas dentro da sociedade tratada, os indivíduos mais ricos se endividaram proporcionalmente menos que os demais níveis de fortuna, pelo menos a julgar pelos bens descritos em seus inventários. Outra questão importante em relação ao endividamento na sociedade tratada foi a contribuição relativa das faixas de riqueza no montante total das dívidas passivas descritas nos processos analisados. A Tabela 5 evidencia os informes para todo o período 1850-1888 e também desagregados por intervalos menores. Tabela 5 – Contribuição relativa das faixas de riqueza no montante total das dívidas passivas descritas nos inventários, Santa Rita do Turvo – 1850/1888 (%). Faixas de riqueza

1850/59

1860/69

1870/79

1880/88

1850/1888

Até £ 150

4,6

0,7

5,8

10,2

5,2

£ 151 a £ 500

23,0

0,8

23,3

21,2

16,9

£ 501 a £ 1000

24,4

14,8

31,4

46,0

29,3

£ 1001 a £ 2000

7,7

3,6

23,6

17,1

15,4

Acima de £ 2001

40,3

80,1

15,8

5,4

33,2

Todas as faixas

100

100

100

100

100

Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288), consideramos somente os dos indivíduos que possuíram dívidas passivas, 104 processos, que constituem 36% do total. (AFAB, 1850-1888).

Os dados da tabela anterior não trazem uma tendência clara para todo o período considerado. Nas duas primeiras décadas abordadas, a maior faixa de riqueza contribuiu com a parte mais substantiva do valor total das dívidas passivas inventariadas, 40,3% em 1850-1859, e 80,1% em 1860-1869. Nos demais intervalos, foi o nível intermediário de fortuna, entre 501 a 1000 libras esterlinas, que reteve a maior parcela relativa do montante total de dívidas passivas. Porém, exceção feita para o intervalo 1880-1888, a faixa de riqueza com menos recursos teve a menor contribuição relativa no valor total declarado com endividamento, não obstante ter

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sido também o segmento com o maior comprometimento relativo dos patrimônios totais com dívidas passivas, conforme vimos anteriormente. Como a capacidade de endividamento destes indivíduos certamente foi limitada, as transações nas quais pegavam recursos emprestados envolveram valores mais modestos. Nesse sentido, sua contribuição no valor total das dívidas passivas foi a menor entre todos os agrupamentos de fortuna. Em contrapartida, tomados os dados para todo o período 1850-1888, a maior faixa de riqueza contribuiu com a parcela mais robusta, praticamente um terço do valor total, das dívidas passivas arroladas na documentação compulsada, ainda que tenha sido o segmento de fortuna com menor comprometimento relativo da riqueza inventariada com valores a serem pagos. Finalizo a análise das dívidas passivas descritas nos inventários de Santa Rita do Turvo na segunda metade do Oitocentos com o estudo dos valores médios envolvidos nas transações em que os inventariados considerados ocuparam a posição de devedores. A Tabela 6 indica os valores médios das dívidas passivas inventariadas para o período 1850-1888, tanto para o conjunto dos inventariados como também por faixas de riqueza. Tabela 6 – Valores médios das dívidas passivas inventariadas por faixas de riqueza, Santa Rita do Turvo– 1850/1888.* Faixas de riqueza

1850/88

Nº registros

Até £ 150

15,46

35

£ 151 a £ 500

21,30

82

£ 501 a £ 1000

22,93

132

£ 1001 a £ 2000

31,10

51

Acima de £ 2001

76,24

45

Todas as faixas

29,45

345

*Valores expressos em libras esterlinas. Consideramos os valores por registros e não pelo montante total das dívidas passivas por inventário. Na maioria dos casos em um mesmo processo foram arrolados mais de um registro. Fonte: Do conjunto de inventários para o período (288) considerei somente os dos indivíduos que possuíram dívidas ativas, 104 processos, que constituem 36% do total, arrolando a soma de 345 registros de dívidas passivas. (AFAB, 1850-1888).

Um primeiro aspecto notado foi o maior valor das dívidas passivas por registro em comparação com os valores auferidos no caso das dívidas ativas, constatação válida para todas as faixas de riqueza. Considerando todo o conjunto de inventariados, o valor médio por registro de dívida ativa atingiu cerca de 64% do valor médio envolvido nas transações que geraram dívidas passivas para os indivíduos analisados. Embora os casos em que os inventariados foram credores tenham sido mais disseminados e as dívidas ativas tenham representado parte mais substancial dos patrimônios declarados, os dados evidenciaram que as dívidas passivas envolviam maiores somas por operação no mercado da localidade. Além disso, houve uma correspondência evidente entre elevação da faixa de riqueza e valor médio transacionado por registro de dívidas passiva, tal como também observados para o caso das dívidas ativas. Conforme sugerido Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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anteriormente, as dívidas passivas dos mais ricos envolviam valores maiores, não obstante os inventariados das menores faixas serem relativamente mais endividados, com maior comprometimento de seus patrimônios. Em suma, um terço dos inventariados de Santa Rita do Turvo na segunda metade do século XIX conheceu algum grau de endividamento, visto que possuía ao menos um registro de valores devidos para terceiros quando faleceu. Todavia, possuir dívidas passivas no momento da morte não foi exclusividade de algum segmento de riqueza, já que a disseminação destes registros foi constatada em todos os estratos socioeconômicos tratados. Todavia, em termos relativos, os inventariados com menores patrimônios comprometeram parcela maior de seus recursos com o pagamento de credores. Dento do montante total das dívidas passivas declaradas, a menor faixa de riqueza deteve a menor fração do valor total declarado nos processos consultados. Por fim, houve uma correspondência evidente entre elevação dos valores envolvidos nos registros de dívidas passivas em consonância com os estratos de riqueza. O maior devedor, em termos de valores, identificado no período 1850-1888 foi o inventariado Joaquim de Oliveira Ribeiro, cujo patrimônio estava incluído na quarta maior faixa de riqueza, entre 1001 e 2000 libras esterlinas. Quando faleceu devia para outros indivíduos, por onze registros de dívidas passivas, o valor total de 290,33 libras esterlinas, equivalente a uma fração de 24% de seu patrimônio declarado. Contudo, não foi somente na posição de devedor que Ribeiro participou do mercado da localidade. Era credor em quatro registros de dívidas ativas por empréstimos concedidos e em sessenta e sete por contas de rol. Somadas, as dívidas nas quais era credor representaram um quarto de todo o seu patrimônio inventariado12. Todavia, considerando a quantidade de registros por valores devidos, o processo de Luís Francisco de Azevedo descreveu o maior número. Quando faleceu, Azevedo era devedor em dezoito registros de dívidas passivas que, somados, atingiram o montante de 140,85 libras esterlinas e comprometeram um quinto do valor total de seus bens inventariados. A participação do indivíduo em questão no mercado da localidade na posição de credor foi bem mais modesta. Foi descrito em seu processo somente um único registro de dívida ativa, que representou menos de 2% do seu patrimônio13. Concomitantemente com os maiores devedores entre os inventariados da localidade estudada no intervalo 1850-1888, viveram também indivíduos que se endividaram menos, tanto em termos de valores quanto de quantidade de dívidas passivas. No inventário do casal Luiz Pinto de Freixo e D. Cândida de São José, encontrei um único registro de valores devidos para terceiros. O 12 Inventário de Joaquim de Oliveira Ribeiro (AFAB, 1875). 13 Inventário de Luiz Francisco de Azevedo (AFAB, 1869).

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único credor do casal era José Batista Pereira. A dívida em questão era de 2,68 libras esterlinas, quantia que comprometia tão somente pouco mais de 1% do patrimônio total declarado no inventário do casal, englobado na terceira faixa de riqueza14. No processo de D. Guilhermina Rosa de Jesus, componente do segmento de menores cabedais, também foi arrolado apenas um registro de dívida passiva. Quando faleceu, era devedora de Cristiano Eugênio Dias de Carvalho, com a quantia de 1,40 libra esterlina, equivalente a pouco mais de 1% do montante total dos seus bens inventariados15. Nos dois últimos casos mencionados, encontrei os menores valores de dívidas passivas por inventário. No entanto, identifiquei diversos processos que evidenciaram indivíduos endividados de forma interAo longo da segunda mediária, longe dos extremos acima tratados. No metade do século XIX, momento de seu falecimento, Joaquim de Freitas Ferexistiu um movimentado reira tinha dívidas a honrar. Foram declarados em seu inventário quatro registros de dívidas passivas, cuja mercado, entendido soma atingiu o valor de 78,20 libras esterlinas, equivaenquanto espaço abstrato lente a aproximadamente 7% do total dos bens arrode trocas, no cenário lados em seu processo. Tendo em vista o montante de socioeconômico de Santa suas posses, Ferreira estava inserido na quarta maior faixa de riqueza e também participava do mercado Rita do Turvo. De uma da localidade como credor. Em seu inventário foram forma ou de outra, pelo descritos três registros de dívidas ativas. Contudo, remenos seis em cada dez presentaram tão somente 2% da soma total de seus bens16. Caso similar foi encontrado no inventário de D. inventariados do período Carlota Cândida da Encarnação, com patrimônio insetratado mantinham rido na terceira faixa de riqueza. Quando faleceu estarelações com este mercado va endividada por cinco registros de dívidas passivas, quando faleceram, ou que totalizaram 58,15 libras esterlinas, valor que comprometera 9% do seu patrimônio total. Não possuía como credores ou como 17 dívidas ativas . Para devedores com o perfil dos dois devedores, quando últimos casos tratados, o comprometimento de recurnão nos dois papéis sos em dívidas passivas não foi insignificante. Todavia, concomitantemente. também não atingiu a relevância observada nos casos dos inventariados com maior nível de endividamento, tanto em relação aos valores envolvidos e a quantidade de dívidas passivas, quanto no tocante à proporção que comprometeram em relação aos patrimônios totais declarados. 14 Inventário de Luiz Pinto Freixo e de Cândida de São José (AFAB , 1873). 15 Inventário de Guilhermina Rosa de Jesus (AFAB, 1887). 16 Inventário de Joaquim de Freitas Ferreira (AFAB, 1870). 17 Inventario de Carlota Cândida da Encarnação (AFAB, 1885). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Considerações finais

Ao longo da segunda metade do século XIX, existiu um movimentado mercado, entendido enquanto espaço abstrato de trocas, no cenário socioeconômico de Santa Rita do Turvo. De uma forma ou de outra, pelo menos seis em cada dez inventariados do período tratado mantinham relações com este mercado quando faleceram, ou como credores ou como devedores, quando não nos dois papéis concomitantemente. Isto mesmo sem considerar aqueles que participaram do mercado em questão de modo informal, não deixando vestígios, e os que possuíram dívidas ativas e/ou passivas em algum momento de suas vidas, mas que, quando faleceram, não deviam para ninguém e nem tinham nada a receber de terceiros. No geral, os registros de dívidas ativas foram mais frequentes nos processos consultados em comparação com os que descreveram dívidas passivas. Exceção feita para os inventariados da menor faixa de riqueza, as dívidas ativas foram disseminadas por todos os demais estratos de patrimônio considerados. Contudo, no segmento constituído pelos mais ricos, existiu uma maior porcentagem relativa de inventariados que participaram do mercado da localidade na posição de credores. Os investimentos alocados em dívidas ativas empenharam parte considerável da riqueza declarada nos inventários de Santa Rita do Turvo no período tratado, principalmente no estrato de maiores cabedais, mais um aspecto que indicou relação entre riqueza e acesso a este tipo de ativos. Até o fim do escravismo no Brasil, a fração das dívidas ativas no total da riqueza inventariada somente ficou atrás dos grupos de ativos escravos e imóveis. De todo o valor declarado em dívidas ativas, a contribuição mais substantiva foi dada pela maior faixa de riqueza: algo em torno de 73% da riqueza entre 1850 e 1888 estava em poder do mais elevado estrato de patrimônio. Embora menos disseminadas entre os inventariados de Santa Rita do Turvo no período tratado, as dívidas passivas foram descritas em um terço dos inventários consultados. O endividamento naquela sociedade não foi exclusividade dos grupos que dispunham de menos recursos. Foram frequentes registros de valores devidos para terceiros nos processos de todos os segmentos de fortuna. Todavia, o comprometimento relativo dos patrimônios dos inventariados das menores faixas de riqueza com as dívidas passivas foi, em geral, maior em comparação com os indivíduos que dispunham de maiores recursos. Em termos de valores médios por ope-

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ração, os registros de dívidas passivas envolveram somas maiores que as dívidas ativas descritas na documentação consultada. Também aumentaram de acordo com o nível de riqueza do inventariado envolvido. Com base em todos os elementos levantados e analisados neste texto, pode-se sustentar que existiu um movimentado mercado em Santa Rita do Turvo na segunda metade do Oitocentos, mesmo considerando os limites e a natureza do cenário socioeconômico típico da localidade, uma economia de abastecimento de um mercado interno de alcance regional. Participou deste mercado, de modo formal, a maior parte dos inventariados analisados, praticamente 60% dos casos, seja como credores ou como devedores. Venderam os excedentes produzidos, compraram os gêneros que lhes eram necessários, pagaram e receberam

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Com base em todos os elementos levantados e analisados neste texto, pode-se sustentar que existiu um movimentado mercado em Santa Rita do Turvo na segunda metade do Oitocentos, mesmo considerando os limites e a natureza do cenário socioeconômico típico da localidade, uma economia de abastecimento de um mercado interno de alcance regional.

por serviços, emprestaram e pegaram emprestados recursos, tudo em escala regional. Dessa forma, o mercado da localidade funcionava em uma dinâmica própria em que a maior parte das operações, fossem de venda, de compra ou de práticas creditícias, funcionavam dentro de limites regionais e independentemente de conexões com outras áreas mais desenvolvidas do ponto de vista socioeconômico.

Referências Fontes primárias consultadas: AFAB - Arquivo do Fórum Artur Bernardes, Viçosa (Minas Gerais)18. INV - Inventário de Vicente Rodrigues Valente – 1858. INV - Inventário de Brígida Moreira de Jesus – 1866. 18 A lista completa com todos os inventários que foram utilizados no estudo segue em anexo. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 81-104, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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INV - Inventário de Luiz Francisco de Azevedo – 1869. INV - Inventário de Joaquim de Freitas Ferreira – 1870. INV - Inventário de Luiz Pinto Freixo e de Cândida de São José – 1873. INV - Inventário de Joaquim de Oliveira Ribeiro – 1875. INV - Inventário de José Luiz da Silva Viana – 1876. INV - Inventário de Francisco José Graia – 1882. INV - Inventário de José de Deos Moreira e Castro – 1882. INV - Inventário de Joaquina Maria dos Reis – 1883. INV - Inventario de Carlota Cândida da Encarnação – 1885. INV - Inventário de Guilhermina Rosa de Jesus – 1887.

Outras fontes bibliográficas: ALMICO, Rita de Cássia da Silva. Dívida e obrigação: as relações de crédito em Minas Gerais, séculos XIX e XX. 294 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2009. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico e geográfico de Minas Gerais.Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: O jogo das trocas. Trad. Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. v. 2. IBGE. Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. PANIAGO, Maria do Carmo Tafuri. Viçosa – mudanças sócio culturais: evolução histórica e tendências. Viçosa/MG: Imprensa Universitária, 1990. POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As origens de nossa época. Rio de Janeiro:Campus, 2000. REZENDE, Irene Nogueira de. Negócios e participação política: Fazendeiros da Zona da Mata de Minas Gerais (1821-1841). 2007. 254 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007. SANTOS, Raphael Freitas. “Devo que pagarei”: sociedade, mercado e práticas creditícias na comarca do Rio das Velhas – 1713-1773. 196 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2005. THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1996.

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A evolução da carga tributária na Província de São Paulo, 1835-1889. The evolution of the tax burden in the Province of São Paulo, 1835-1889. Camila Scacchetti Luciana Suarez Lopes Universidade de São Paulo

Resumo

Abstract

Através da análise documental das Leis Orçamentárias e dos Relatórios de Presidente de Província, compreendendo os anos de 1835 a 1889, este trabalho busca demonstrar a evolução histórica da estrutura tributária na Província de São Paulo, levando em consideração aspectos históricos, econômicos e políticos existentes na região em meados do período imperial. A evolução das novas formas de tributos que foram criadas no decorrer do tempo envolve a elevação dos valores orçados e a concentração de expectativa de arrecadação em determinados tributos.

Through the documentary analysis of the Budget Laws and the Reports of the President of the Province, covering the years 1835 to 1889, this work seeks to demonstrate the historical evolution of the tax structure in the Province of São Paulo, taking into account the historical, economic and political aspects of the region in the middle of the imperial period. The evolution of the new forms of taxes that have been created over time involves the increase of budgeted amounts and the concentration of expectation of collection in certain taxes.

Palavras-chave: Finanças públicas; Província de São Paulo; Brasil Império.

Keywords: Public finances; São Paulo Province; Brazil Empire.

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I n t r o d u ç ã o

E

ntender a dinâmica tributária na Província de São Paulo no período imperial constitui elemento fundamental para compreendermos a atual carga tributária do Estado de São Paulo. Com base na análise de fontes documentais primárias, o presente artigo busca identificar a composição da receita tributária paulista e sua evolução durante todo o período, a partir da constituição da Assembleia Legislativa Provincial. Para isso, temos como principal fonte de dados as Leis Orçamentárias provinciais paulistas e os Relatórios de Presidentes de Província. Nas Leis Orçamentárias, publicadas regularmente pela Assembleia, podemos encontrar as expectativas de receita e despesa para cada ano fiscal, assim como o registro das receitas e despesas especiais, tais como aquelas relacionadas às estradas e caminhos. Já nos Relatórios de Presidente de Província, o cotidiano descrito nos permite a compreensão das dificuldades, anseios, déficits e superávits provinciais, tornando mais concreta uma realidade que, para nós, é muitas vezes tão distante e abstrata. Desta forma, constituem objetivos do presente artigo analisar o comportamento da expectativa de arrecadação tributária na Província de São Paulo entre 1835 e 1889, identificando suas principais fontes de renda orçadas, assim como sua evolução ao longo dos anos1. Sendo assim, compõem este artigo, além da introdução, outras quatro seções. A primeira dedica-se à discussão, ainda que breve, do contexto econômico da Província de São Paulo nos momentos iniciais do período estudado. A segunda seção dedica-se à análise e acompanhamento das leis orçamentárias paulistas até o final do período imperial. A fim de complementar as análises feitas na segunda seção, a terceira parte do texto utiliza como fonte de dados os Relatórios de Presidente de Província. Ao final, algumas considerações encerram a discussão. A Província de São Paulo, c. 1835 Em 12 de agosto de 1834, entrava em vigor a lei de número dezesseis, mais conhecida como Ato Adicional. Elaborado com o intuito de ceder um pouco de controle aos defensores do fe1 A pesquisa em questão encontra-se em andamento, sendo apresentado neste artigo o resultado acerca das informações extraídas das leis orçamentárias paulistas. Em trabalhos futuros, por intermédio da análise dos balanços provinciais e das prestações de contas, será possível averiguar se os valores orçados se confirmaram.

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deralismo, o Ato teve como uma de suas alterações mais substanciais a criação de órgãos legislativos regionais, as Assembleias Legislativas Provinciais2. Dentre as várias atribuições das Assembleias, estava o controle e elaboração das contas, balanços e orçamentos provinciais, além da criação dos impostos necessários ao seu financiamento3. Logo no ano seguinte, outra lei também de número dezesseis foi promulgada pelo então presidente provincial Rafael Tobias de Aguiar. O teor da lei era simples. Fruto de um projeto elaborado pelos primeiros congressistas paulistas, previa a elaboração de um minucioso levantamento estatístico, cujo financiamento seria feito por meio de uma verba de 600$000 aprovada por lei posterior (SYLOS, 1978, p. IX). O encarregado seria o marechal Daniel Pedro Müller, e até hoje o resultado deste levantamento constitui referência seminal para aqueles dedicados ao estudo da economia paulista oitocentista4. O relato de Müller não deixa dúvidas de que a Província de São Paulo, durante a primeira metade do século XIX, constituía um verdadeiro mosaico de contextos econômicos e sociais. Em algumas partes de seu território, a cultura cafeeira avançava, trazendo consigo a promessa do desenvolvimento econômico; em outras, a tradicional cultura da cana-de-açúcar absorvia grande parte dos recursos; e em todas, com maior ou menor intensidade, havia a lavoura dedicada à produção de gêneros de subsistência, assim como a criação de gado e pequenos animais. Essa diversidade de atividades colocava as freguesias, vilas e cidades até então existentes em diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Ainda segundo o marechal, no momento de seu levantamento a Província contava com 326.902 habitantes, distribuídos por 46 vilas. Desses, 73,4% eram livres e 26,6% cativos5. Como foi mencionado anteriormente, era grande a importância da chamada indústria agrícola. Conforme a Tabela 1, dentre os produtos mais comuns, destacam-se o arroz, o café, o feijão, a aguardente e o milho. Ao lado destes, outros 22 gêneros ou produtos foram localizados, dentre 2 Logo após a Independência, o país passa por um longo período de discussões em torno da conformação de seu

novo arcabouço institucional. Como resultados, podemos citar a conturbada promulgação da Constituição em 1824, e a elaboração do Ato Adicional, já no período das Regências. Não constitui objetivo do presente artigo analisar as várias interpretações da historiografia acerca desse período, mas como referências introdutórias sobre o tema, ver Miriam Dolhnikoff (2005; 2003) e Ivo Coser (2008). 3 Ademais, ainda considerando o tema das finanças públicas, competia às Assembleias controlar as finanças municipais, de modo a terem se tornado as Câmaras Locais órgãos de caráter meramente administrativo. Sobre essa questão, afirmou Montoro (1974, p. 12), “portanto, bastante claro que, ao atender aos ideais de autonomia das Províncias, ideia central do movimento federalista, o Ato Adicional impediu o desenvolvimento da autonomia municipal”. 4 Todavia, há que se ressaltar que o minucioso trabalho não ficou livre de alguns erros e incorreções, principalmente nas estimativas agregadas, fruto da consolidação das várias listas nominativas utilizadas como subsídio para a publicação de 1838. Sobre essas incorreções, ver o texto de Francisco Vidal Luna (2002). 5 Os números foram calculados considerando-se como livres todos os indivíduos classificados por Müller (1978, p. 169) como índios. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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os quais podemos citar o toucinho, a erva-mate e a batata, além de alguns produtos manufaturados, tais como os tecidos de algodão, as telhas de barro, a rapadura, o carvão e a marmelada. Segundo os relatos, as técnicas de cultivo e produção eram simples, baseando-se na constante destruição de matas e nas queimadas como forma de limpar os terrenos. A utilização de arados era pouco comum, sendo encontrado apenas em algumas vilas açucareiras. Nesta Província pouco se trabalha com os animais, para prontificação das terras; apenas começa o uso do arado em algumas chácaras e engenhos de açúcar; tudo é feito à força de braços de homens com foice, machado e enxada (MÜLLER, 1878, p. 29).

Sobre as finanças paulistas, dada a recente criação da Assembleia Legislativa, o marechal limitou-se a apresentar os números referentes ao ano financeiro 1835-1836, além de descrever quais eram os impostos arrecadados pelas repartições provinciais e de que forma era feito o recolhimento6. Tabela 1 - Produção Total da Província de São Paulo, 1836.7 Produto

Quantidade

Produto

Café

588.136

arrobas

Rapaduras

Açúcar

563.108

arrobas

Pano de algodão

46.728

canadas

Chá

341.220

alqueires

Telhas

79.765

alqueires

Marmelada

Feijão

237.116

alqueires

Batatas

Milho

3.870.020

alqueires

Farinha de milho

666

medidas

Trigo

11.773

arrobas

Cabras

9.282

arrobas

Erva Mate

Aguardente Arroz Farinha de mandioca

Azeite de amendoim Fumo Algodão em rama Cal

Quantidade 46.300 unidades 600 varas 1.970 libras 92.000 unidades 30 arrobas 92 alqueires 2.451 alqueires 26 alqueires 10 unidades 485.881 arrobas

1.232,5

moios

Vigas

1.623 unidades

Taboados

2.087

dúzias

Embé

2.480 unidades

Peixe seco

4.060

arrobas

Canoas

100 unidades

Porcos

69.158

unidades

Chapéus

310 unidades

Gado cavalar

11.400

unidades

Esteiras

198

dúzias

2.268

unidades

Embaúva

40

arrobas

35.573

unidades

Carvão

70

medidas

unidades

Ripas

Gado muar Gado vaccum Gado lanígero Toucinho

5.799 12.990

arrobas

110 Valor total

dúzias

4.766:918$493

Fonte: Müller (1978, p. 129).

6 Além dos impostos provinciais, Müller (1978, p. 209-213) apresenta também os impostos gerais que eram arrecadados na Província. Contudo, optamos por não os apresentar, considerando serem os impostos provinciais nosso objetivo primordial. Sobre os impostos gerais recolhidos pelos cofres provinciais, consultar a mencionada obra de Müller, em especial a Tabela 9. 7 Sobre as unidades de medida utilizadas no Brasil dos séculos XVIII e XIX, ver os textos de Iraci del Nero da Costa (1994) e Francisco Vidal Luna e Herbert Klein (2001).

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Segundo o registro de Müller eram recolhidos pelas autoridades da província um total de dezesseis impostos provinciais; além de mais quatro pertencentes à renda geral do Império8, de forma a fazer parte da receita provincial paulista as seguintes imposições9:

• •

• •

Novos e velhos direitos: instituído em 1832, era recolhido sobre as Provisões, Diplomas e Papéis Forenses, sendo isentos de tal cobrança os funcionários das Tesourarias, Alfândegas, Mesas de Rendas, professores públicos, professores de cursos jurídicos, juízes de direito e juízes municipais, além dos empregados militares e da Marinha. Cobrado pelos Coletores. Novos impostos: criado como forma de financiar a reconstrução da alfândega de Lisboa depois do terremoto de 1755, acabou sendo utilizado para pagamento de oficiais de 2a. linha e posteriormente para obras públicas. Era proveniente de várias cobranças: imposição de 6$400 réis aos armazéns da cidade e vilas de serra acima, dos gêneros miúdos que passam no Cubatão para a vila de Santos; cobrança de 4$000 das tabernas da mesma vila; cobrança de $320 por uma besta, $200 por um cavalo e $100 por uma cabeça de gado vacum que passam no registro de Sorocaba. Cobrado por coletores. Subsídio literário: estabelecido em 1772 em benefício da instrução pública. Cobrança de $820 de toda e qualquer rês morta e comercializada. Cobrado por coletores. Carne verde: imposição instituída em 1809 e modificada em 1835, previa a cobrança de 1$600 de toda rês morta e comercializada. Cobrada por coletores.

• Dízimos: cobrança sobre os gêneros exportados para fora da província, sendo a alíquota de 10%

aplicada sobre os gêneros agrícolas e a de 5% aplicada sobre os gêneros manufaturados; com exceção dos dízimos sobre açúcar, café, algodão, tabaco e fumo, além do gado vacum e cavalar, quando estes fossem exportados para fora do Império. Cobrados nas alfândegas em Santos e Paranaguá, e por coletores nas demais partes da província.

• • •

Décima dos prédios urbanos: cobrado desde 1808/1809 nas vilas com cem casas ou mais. Cobrada por coletores. Décima dos legados e heranças: cobrança imposta em 1809; consistia em cobrar 10% do valor dos bens deixados a herdeiros que não fossem ascendentes ou descendentes e da quinta parte de toda a herança abintestada sendo parente até segundo grau. Cobrada por coletores. Direitos do Rio Negro: cobrança instituída em 1747, consistindo em pagar 2$500 por cada burro ou besta; 2$000 por cada cavalo e $960 réis por cada égua que se criam além dos limites da província até o Registro. Cobrado pelos coletores.

8 Os impostos pertencentes à renda geral eram aqueles registrados sob as rubricas alfândegas, chancelaria, selo, e correio (MÜLLER, 1978, p. 212-213). 9 Os levantamentos de Müller representam um importante ponto de partida para a pesquisa ora proposta e o entendimento das questões tributárias na Província de São Paulo no início do século XIX. Em boa medida, esses apontamentos reproduzem o conteúdo das primeiras leis orçamentárias da província, conteúdo esse que, com o passar dos anos, foi sofrendo algumas modificações que serão discutidas no decorrer deste artigo. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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• • • •

20% da aguardente de consumo: cobrança instituída em 1835, sobre o consumo de qualquer aguardente – nacional ou estrangeira. Cobrado pelos coletores. Meia sisa dos escravos ladinos: pagamento de 5% do preço de venda do escravo. Quando a negociação envolvia a troca de um escravo por outro, a cobrança recaía apenas sobre os valores em espécie que porventura fizessem parte da negociação. Cobrado pelos coletores. Foros e arrendamentos: pagamento de algum foro, ou aluguel dos bens de raiz pertencentes à Fazenda Pública. Cobrado pelos coletores. Emolumentos da secretaria: cobrança de 1$920 réis do registro das patentes de confirmação e decretos, além de $960 réis do registro das provisões e portarias das secretarias de estado, e mesmo valor de quaisquer certidões. Cobrados nas competentes repartições.

• Tipografia: cobrança pelas folhas remetidas às Câmaras e pela impressão de obras de particulares. Cobrada pelos administradores.

• • •

Despachos de embarcações: taxas que pagam os passaportes das embarcações, tanto nacionais como estrangeiras. Cobrados pela Secretaria do Governo. Prisão com trabalho: produto do trabalho ou de produtos produzidos pelos presos. Cobrança feita com base nos registros do Administrador. Contribuição para Guarapuava: criada em 1809 para custear as despesas com a expedição e conquista dos campos de Guarapuava. Arrecadada por meio de taxas diversas sobre animais: $875 por cada muar arreado desde Curitiba até Sorocaba; $750 por cada cavalo e $240 por cada cabeça de gado vacum. Se criadas no Sul, Serra de Vacaria, e Lages, era cobrado $160 por cada besta e $220 por cada cavalo. Cobrada pelo coletor da vila de Sorocaba.

A arrecadação dessas rendas era feita por meio dos Coletores, Administradores, Juízes, Tesouraria, Alfândegas e mesas de diversas rendas, que enviavam ao Tesouro o montante líquido das quantias arrecadadas. Além da descrição das diversas rendas arrecadadas pela Província, Müller também apresenta o Resumo do Balanço da Receita e Despeza da Província no Último Anno Financeiro10. Nele, aparecem as mencionadas fontes de renda, assim como os montantes arrecadados e dispendidos no exercício financeiro correspondente ao período de 1º de julho de 1835 a 30 de junho de 1836. Como podemos observar na Tabela 2, porcentagem considerável da receita provincial advinha da cobrança pela passagem de animais do Rio Negro, dos dízimos e das receitas eventuais. Essas três rubricas foram responsáveis por mais da metade do total arrecadado. 10 Optamos, sempre que possível, por manter a ortografia de época tanto nas citações ao longo do texto como na elaboração das tabelas, cujo conteúdo busca reproduzir as informações constantes das Leis Orçamentárias.

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Tabela 2 – Resumo do Balanço da Receita Provincial. São Paulo, 1835-1836. Receita

Valor

%

31:351$648

10,7%

9:331$440

3,2%

Novo imposto e dos animais em Sorocaba

22:074$216

7,5%

Décima dos prédios urbanos

19:053$703

6,5%

778$354

0,3%

Carne verde e subsídio literário

19:170$442

6,5%

Meia sisa dos escravos

16:475$977

5,6%

Décima dos legados

28:010$910

9,6%

1:251$066

0,4%

154$120

0,1%

Dízimos 20% da aguardente

Foros e arrendamentos

Novos e velhos direitos Emolumentos da secretaria Despachos de embarcações

551$990

0,2%

9:595$140

3,3%

81:869$950

28,0%

Multas a mestres de barcos

1:816$282

0,6%

Passagens e rios

7:476$635

2,6%

Contribuição de Guarapuava Animais do Rio Negro

Selo

212$856

0,1%

1:926$921

0,7%

40$000

0,0%

Tipografia

690$250

0,2%

Casa de prisão com trabalho

225$699

0,1%

Imposto para o Banco Casas de leilão

Aldeamento de Guarapuava Receita eventual Dita não classificada Total

249$960

0,1%

38:898$731

13,3%

1:495$069

0,5%

292:701$359

100,0%

Fonte: Müller (1978, p. 215).11

As chamadas receitas eventuais aparecem aqui com a seguinte observação de Müller (1978, p. 215): “lei provincial de 11 d’Abril de 1835”. O mencionado dispositivo legal é a Lei nº 17, que “Marca a receita e fixa a despesa provincial para o ano financeiro de 1º de julho de 1835 ao último de junho de 1836”, e foi a primeira lei orçamentária aprovada pela Assembleia Legislativa, registrando em primeira mão as fontes de renda pertencentes à Província. Todavia, nela não aparece a rubrica receitas eventuais, o que nos leva a crer serem as tais receitas eventuais provenientes de arrecadações extintas ou que não haviam sido incorporadas na lei orçamentária de 1835, daí seu valor elevado. Dessa forma, e partindo desse panorama geral de 1836 descrito por Müller, busca-se, no presente artigo, acompanhar a evolução dos orçamentos da província paulista no período 1835-1889.

11 Segundo Müller (1978, p. 215), na receita estavam incluídas as cobranças dos dois últimos anos, de 1833 a 1834. Na rubrica passagens dos rios estavam incluídas as dívidas atrasadas, já abolidas na data da publicação pela lei provincial de março de 1836; a rubrica imposto para o Banco era referente a atrasados de exercícios anteriores; e a receita eventual era proveniente da lei de 11 de abril de 1835. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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O que dizem as Leis Orçamentárias O progresso da receita orçada no decorrer do XIX A documentação histórica disponibilizada no sítio da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) constitui a principal fonte de dados para a análise, compreensão e discussão de como se dava, no período imperial, a elaboração do orçamento da província paulista. Através do estudo das leis orçamentárias é possível observar as alterações que ocorreram ao longo do tempo, o comportamento da expectativa de arrecadação, a criação de novos impostos e a extinção de outros. Contudo, antes de iniciarmos a análise das já mencionadas leis orçamentárias, algumas importantes considerações de caráter metodológico devem ser feitas. Buscando acompanhar a evolução da estrutura tributária da Província de São Paulo durante o Império, apresentamos na Tabela 3 uma síntese da receita orçada para todo o período em análise. Algumas lacunas foram inevitáveis, dada a não localização, até o presente momento, das respectivas leis orçamentárias12. Análises mais detalhadas das leis orçamentárias também foram elaboradas, mas para isso foram selecionados alguns anos, distribuídos ao longo de todo o período. A seleção desses anos obedeceu a alguns critérios. Em primeiro lugar, selecionamos a primeira e a última lei orçamentária promulgada pela Assembleia Legislativa no Império. Em seguida, selecionados leis intermediárias distribuídas ao longo deste intervalo, referentes ao ano inicial de cada década, o que resultou nas leis orçamentárias dos anos de 1840, 1850, 1860, 1870 e 1880. A única exceção foi para o ano de 1860, pois dada a ausência de lei orçamentária para este ano, foi selecionada a lei orçamentária do ano seguinte, 1861. Ademais, torna-se pertinente esclarecer que, em todos os orçamentos considerados, o ano fiscal inicia em 1º de julho e finda em 30 de junho do ano subsequente. Dessa forma, o orçamento para 1840 corresponde ao ano fiscal de 1º de julho de 1840 a 30 de junho de 1841; o de 1850 corresponde a 1º de julho de 1850 a 30 de junho de 1851; a lei orçamentária de 1861 abrange 1º de julho de 1861 a 30 de junho de 1862, e assim sucessivamente até 1889, que engloba 1º de julho de 1889 a 30 de junho de 1890. Outra questão de caráter metodológico a ser mencionada refere-se ao fato de que, em alguns momentos do texto, apresentamos a representatividade calculada de algum tributo na receita total. Nesses casos, o cálculo foi feito excluindo-se da receita total os valores arreca12 A pesquisa desenvolvida encontra-se em andamento. No decorrer das próximas etapas tais lacunas podem vir a ser preenchidas, podendo ser as informações faltantes incluídas em trabalho futuro.

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dados com as estradas e barreiras, por entendermos essas rendas como sendo de aplicação especial, pois necessariamente deveriam ser revertidas em obras e melhoramentos no primitivo sistema viário da província. Dessa forma, como já mencionado anteriormente, a Tabela 3 traz uma síntese do valor total das receitas orçadas, cujos dados nos permitem verificar que houve uma significativa elevação em termos do total orçado pela província, o que certamente está vinculado ao próprio desenvolvimento econômico paulista observado no período. Os valores são apresentados também em libras esterlinas, estando sua evolução apresentada no Gráfico 113. Tabela 3 – Evolução da receita provincial orçada. São Paulo, 1835-1889. Ano

Receita Orçada

Receita orçada

Variação % em relação ao período anterior

(valores nominais)

(valores em libras esterlinas)

(em libras esterlinas)

1835

243.700.000

39.846

-

1836

244.840.000

39.218

-1,58%

1839

340.423.062

44.834

14,32%

1840

365.684.000

47.246

5,38%

1844

405.560.000

42.583

-9,87%

1845

430.460.000

45.629

7,15%

1850

486.450.000

58.278

27,72%

1853

691.705.000

82.101

40,88%

1854

547.600.000

63.029

-23,23%

1857

1.057.900.000

117.206

85,96%

1861

1.116.513.590

118.905

1,45%

1862

1.329.002.300

145.644

22,49%

1864

1.314.862.400

146.650

0,69%

1866

1.199.887.000

120.483

-17,84%

1868

1.287.400.000

89.490

-25,72%

1870

2.430.000.000

224.356

150,71%

1871

1.500.000.000

150.150

-33,08%

1874

2.706.772.665

290.707

93,61%

1876

2.433.052.000

258.149

-11,20%

1879

3.042.432.734

271.670

5,24%

1880

3.732.371.176

346.553

27,56%

1883

3.743.460.621

336.158

-3,00%

1884

3.263.000.000

281.269

-16,33%

1887

4.112.500.000

384.490

36,70%

1889

5.061.120.000

557.699

45,05%

Fonte: Leis orçamentárias paulistas (1835-1889).

13 Tal procedimento é necessário pois, no período 1835-1889, houve considerável variação do poder aquisitivo da moeda nacional, em especial durante a Guerra do Paraguai e durante o socorro às vítimas da seca de 1878. Nessas ocasiões, a política monetária expansionista financiou os déficits do governo, fazendo crescer os níveis de inflação e alterando o poder aquisitivo externo da moeda nacional. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Gráfico 1 – Evolução da receita provincial orçada. São Paulo, 1835-1889 (valores em libras esterlinas)14.

Fonte: Leis orçamentárias paulistas.

O crescimento no anseio arrecadatório é evidente, ainda que existam variações significativas em alguns anos. Como exemplo, podemos destacar o ano de 1854, cuja receita orçada foi significativamente menor do que a do ano anterior, devido ao fato de a expectativa de arrecadação com as taxas de barreira ser menor, decorrente da diminuição do número de postos de cobrança, de doze para nove15. Outro exemplo é o ano de 1871, em que a queda na expectativa da receita deveu-se à diminuição no provisionamento dos direitos de saída16. Em boa medida, essa evolução constitui consequência natural do desenvolvimento econômico da província paulista nesse momento. A produção açucareira e, depois, a cultura cafeeira, desenvolveram-se rapidamente, em especial através do chamado complexo cafeeiro, característico da segunda metade do século. Observando os valores em libras esterlinas, a receita paulista passa de £ 39.846 – valor orçado em 1835 – para £ 557.699 – valor orçado em 1889. Em termos percentuais, isso significa um aumento de quase 1.300%. Tal resultado, muito expressivo, merece nossa atenção. Dessa forma, a fim de melhor entendermos esse comportamento, faz-se necessária uma análise detalhada das principais fontes de renda da província paulista de então. 14 Optamos por utilizar a taxa de câmbio presente em Nozoe et al (2004), em que é indicada a série de taxa de câmbio implícita na praça do Rio de Janeiro, publicada no terceiro volume da série de estatísticas retrospectivas do IBGE.. 15 Através das comparações entres as leis orçamentárias de 1853 e 1854, e da análise dos Relatórios de Presidente de Província, é possível observar que deixam de constar, na lei orçamentária de 1854, as barreiras do Rio do Pinto, Itoupava, Gracioza e Itararé. Na verdade, tais barreiras não foram desativadas, mas sim transferidas para a província do Paraná. Como forma de amenizar o desfalque sofrido pelas finanças paulistas criou-se, na lei orçamentária de 1854, a barreira de Itapetininga, localizada geograficamente próxima à barreira de Itararé. 16 Entre os anos de 1870 e 1871, França e Prússia entraram em guerra. Tal conflito foi sentido nas exportações brasileiras, em especial as da Província de São Paulo. A queda nas exportações prejudicou a arrecadação dos direitos de saída, promovendo a piora na expectativa de receita. Tais declarações são encontradas no Relatório de Presidente de Província (1870, p. 19).

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As Leis Orçamentárias Conforme a Tabela 4, é possível observar que 28% da receita orçada concentra-se na expectativa de arrecadação nas estradas e 72% nas diversas formas de tributos. Dentre os tributos, os dois mais expressivos são os dízimos (com a nomenclatura direitos de saída nas leis orçamentárias posteriores) e cobrança sobre a passagem dos animais no registro do Rio Negro. O primeiro contribui com pouco mais de 14% da soma das receitas (desconsiderando as receitas provenientes das estradas), enquanto o segundo colabora com quase 38%. Portanto, 52% da expectativa de arrecadação de receitas estava concentrada em somente dois tributos (novamente desconsiderando as receitas das estradas), e os 48% restantes distribuídos em treze fontes de arrecadação. Tabela 4 - Lei Orçamentária de 1835 - Ano financeiro de 1º de julho de 1835 a 30 de junho de 1836. Receitas 1º - Importância dos Dízimos 2º - Dita da imposição de 20 por cento no consumo das agoas-ardentes de produção brasileira

25.000$000 5.400$000

3º - Dita do novo imposto, ou subsídio voluntário

19.600$000

4º - Dita da Decima dos prédios urbanos

13.400$000

5º - Dita de foros, e arrendamentos de propios nacionaes 6º - Dita do imposto de 1$600 rs por cada rez que se corta, na forma da lei provincial respectiva, e do de 320rs de subsídio literário

600$000 14.000$000

7º - Dita da meia siza da venda de quaisquer escravos

9.000$000

8º - Dita da decima dos legados, e heranças

5.400$000

9º - Dita dos novos e velhos direitos dos títulos expedidos pelas autoridades provinciais, inclusive a taxa que por este título pagão as fianças criminais, a qual fica substituída pela taxa de 2 por cento da avaliação dellas

2.000$000

10º - Dita de emolumentos do Secretário do Governo 11º - Dita dos despachos das embarcações 12º - Dita da contribuição para Guarapuava 13º - Dita dos animaes no Registro do Rio Negro 14º - Dita do produto das multas sobre o Mestre de barcos 15º - Dita das passagens de rios Somma

100$000 400$00 5.000$000 66.000$000 400$00 9.200$00 175.500$000

Rendas das Estradas 1º - Importância da contribuição da estrada de Santos 2º - Dita da de Parahibuna a Caraguatatuba 3º - Dita da de Coritiba para Morretes, e Antonina 4º - Dita da de S. José dos Pinhais para Morretes, afora os saldos e dívidas ativas dessa caixa, inclusive pela taxa sobre o gado, que tem descido 5º - Dita da do Registro do Banco de Area e outras quaisquer barreiras, que se estabeleça na estrada do Rio

36.000$000 500$000 4.000$000 2.000$000 12.000$000

6º - Dita do empréstimo autorizado para a estrada do Bananal

4.000$000

7º - Dita do dito para a de Arêas

2.000$000

8º - Dita do dito para a de S. Luiz

2.000$000

9º - Dita do dito para a de Parahibuna

2.000$000

10º - Dita do dito para a de S. Sebastião

2.000$000

11º - Dita do dito para a de Potunã

700$000

12º - Dita do dito para a de S. José dos Pinhaes

1.000$000

Somma

68.200$00

Somma Total

243.700$000

Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 17, de 11 de abril de 1835. Província de São Paulo (1835).

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Se considerarmos a soma total da receita orçada, os dízimos e os direitos de passagem dos animais no registro do Rio Negro respondem por aproximadamente 37% das fontes de receita da Província. Faz-se importante registrar que na Lei Orçamentária de 1835 foram arroladas quinze fontes de renda, adicionando-se a essas as diversas rendas provenientes das estradas. Tabela 5 - Lei Orçamentária de 1840 - Ano financeiro de 1º de julho de 1840 a 30 de junho de 1841. Receitas 1º - Direitos de sahida da Província denominados dízimos

100.000$00

2º - Imposto sobre as aguas ardentes nacionais e estrangeiras

16.000$000

3º - Dito sobre os armazéns, tabernas e botequins de serra acima

10.000$000

4º - Novo imposto sobre os animais em Sorocaba 5º - Contribuição para Guarapuava

8.000$00 6.200$000

6º - Imposto de 1$600 rs das rezes que se cortam e 320 rs de subsídio literário

15.000$000

7º - Meia siza da venda de escravos

15.000$000

8º - Décima dos legados e heranças

8.000$000

9º - Novos e velhos direitos provinciais 10º - Direitos do animais que passam pelo Rio Negro

2.000$000 80.738$000

11º - Emolumentos do lugar de secretário do Governo

150$000

12º - Despacho das embarcações

400$000

13º - Imosto sobre as casas de leilão e modas 14º - Cobrança da metade da dívida ativa provincial anterior ao 1º de julho de 1836, e toda dívida ativa dessa data em diante 15º - Typographia provincial 16º - Juros das apolices compradas por conta do cofre provincial vencidos no corrente ano 17º - Renda eventual, multa sobre os contribuintes morosos e premio dos depositos públicos Somma

200$000 24.800$000 160$000 4.000$000 200$00 290.848$000

Rendas das Estradas 1º - Barreira de Santos

46.000$000

2º - Dita de Ubatuba

5.000$000

3º - Dita de Caraguatatuba

1.600$000

4º - Dita de S. Sebastião

100$000

5º - Dita da Campina em Coritiba

7.000$000

6º - Dita do Arraial de S. José dos Pinhaes

3.200$000

7º - Dita do Banco de Arêa

4.500$000

8º - Dita do Taboão de Cunha

2.000$000

9º - Dita do Rio do Braço

700$000

10º - Dita do Ribeirão da Serra

400$000

11º - Dita do Rio da Onça

400$000

12º - Dita da Serra do Carioca

400$000

13º - Dita do Ariró

400$000

14º - Dita das Minhocas

3.000$000

15º - Dita das demais barreiras não especificadas Somma

100$00 74.800$000

Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 17, de 26 de março de 1840. Província de São Paulo (1840).

Como mostra a Tabela 5, se comparada à Lei Orçamentária de 1835, e considerando-se os valores em libras esterlinas, o total da receita orçada para o ano de 1840-1841 cresceu 18,57%. Contudo, em valores nominais, a participação das receitas provenientes das estradas caiu se

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comparada ao período anterior, passando de 28% para 20% do total orçado, ainda que seu valor, também nominal, tenha aumentado, passando de 68:200$000 para 74:800$000. Dentre os 80% restantes, os direitos de saída e o direito dos animais que passam pelo Rio Negro continuam a constituir as principais fontes da receita orçada. Entretanto, o primeiro passou de uma participação de pouco mais de 14% no período inicial, para um peso aproximado de 35% neste momento (de 25:000$000 para 100:000$000). Já o segundo contribuiu, em 1840, com 28% do orçado, sendo que, em 1835, representava 37%. Desta forma, é possível constatar que, no período de meia década, os direitos de saída passam a ter maior importância dentre as fontes de arrecadação, tomando o lugar de vanguarda que antes era atribuído aos direitos de passagem de animais pelo Rio Negro. A soma dos direitos de saída e dos direitos de passagem de animais no Rio Negro totalizam, em 1840, 62% da expectativa da arrecadação (desconsiderando as receitas das estradas). Em 1835 tal montante correspondia a 52%. A crescente participação que os direitos de saída passam a assumir a partir desta lei orçamentária, e que será mantida e elevada nas leis posteriores, é resultado da importância que o café, paulatinamente, adquire na economia paulista. Ademais, ainda com relação aos impostos listados na Lei Orçamentária de 1840, o novo imposto sobre os animais em Sorocaba representa, na verdade, apenas uma alteração de nomenclatura. Trata-se do novo imposto ou subsídio voluntário arrolado na Lei Orçamentária de 1835. O objetivo, quando da criação deste imposto, era oferecer auxílio financeiro para a reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755. Contudo, extirpado o prazo de 10 anos originalmente instituído, as rendas provenientes deste imposto eram destinadas para outros fins. Ao retirar-se da análise as receitas orçadas provenientes da cobrança da dívida ativa (24:800$00), typographia (160$000), juros das apólices (4:000$000) e multas (200$000), chegamos a um provisionamento total de 336:524$000, que corresponde a uma elevação de 38% da carga tributária e direitos de passagens nas estradas em relação a 1835. Como visto anteriormente, com o passar dos anos a receita orçamentária paulista continua a apresentar tendência crescente. A análise comparativa entre os valores, em libra esterlina, referentes às leis orçamentárias de 1840 a 1850, mostra que houve um crescimento de 23,35%. Analisando de maneira mais detalhista, os valores nominais de cada uma das fontes de renda são apresentados na Tabela 6. A receita orçada oriunda das rendas das estradas tem sua participação aumentada, passando a responder por 25% da receita total. O somatório das demais receitas passa, então, a representar 75% da soma total. Em 1840, tal provisionamento em termos nominais era de 290:848$000 e, em 1850,

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saltou para 364:950$000, uma elevação de 25%. Ao subtrairmos os provisionamentos com a dívida ativa (12:000$000), typographia (150$000) e juros das apólices (10:500$000), obtemos uma expectativa de arrecadação de 342:300$000, ou seja, 17% superior em relação a 1840. Direitos de saída e direitos dos animais nos registros do Rio Negro, e agora também Guarapuava, permaneceram como as principais fontes de receita provincial, representando 63% do total orçado. No entanto, em 1850 ocorreu uma leve queda na expectativa de arrecadação nos direitos de registros dos animais: o valor foi orçado em 80:000$000. O mesmo não pode ser afirmado com relação aos direitos de saída: este saltou de 100:000$000, em 1840, para 150:000$000 em 1850 – um acréscimo de 50% na comparação entre os dois períodos e uma participação, em 1850, de 41% diante das receitas. Tabela 6 - Lei orçamentária de 1850 - Ano financeiro de 1º de julho de 1850 a 30 de junho de 1851. Receitas 1º - Direitos de sahida sobre os gêneros da Província 2º - Novos e velhos direitos provinciais 3º - Décima de legados e heranças 4º - Décima urbana dos prédios dos conventos de frades 5º - Direitos dos animais nos registros do Rio Negro e Guarapuava

150.000$000 1.000$000 30.000$000 700$000 80.000$000

6º - Novo imposto dos animais em Sorocaba

9.000$000

7º - Contribuição para Guarapuava

7.000$000

8º - Emolumentos da secretaria do Governo

600$000

9º - Despachos de embarcações

900$000

10º - Imposto sobre casas de leilão e modas 11º - Cobrança da dívida ativa provincial 12º - Typographia do Governo

100$000 12.000$00 150$000

13º - Imposto de 1$600 sobre as rezes, e 320 de subsídio literário

23.000$000

14º - Imposto sobre as agua ardentes nacional e estrangeira

18.000$000

15º - Receita eventual

4.000$000

16º - Juros das apolices da dívida pública 17º - Meia sisa de escravos

10.500$000 18.000$000

Somma

364.950$000

Rendas das Estradas 1º - Barreira do Cubatão de Santos

54.000$000

2º - Dita de Ubatuba

14.000$000

3º - Dita de Caraguatatuba 4º - Dita do Rio do Pinto

5.000$000 6.000$000

5º - Dito do Itoupava

10.000$000

6º - Ditas do Banco d´Arêa e Figueira

18.000$000

7º - Dita do Taboão de Cunha

5.000$000

8º - Dita do Rio do Braço e Ariró

5.000$000

9º - Ditas do Ribeirão da Serra e Mambucaba

1.000$000

10º - Dita do Ribeirão da Onça

3.500$000

Somma

121.500$000

Somma Total

486.450$000

Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 24, de 02 de julho de 1850. Província de São Paulo (1850).

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Neste momento, cabe a reflexão acerca dos direitos de saída. No período de 15 anos esse imposto saltou, em termos nominais, de 25:000$000 para 150:000$000, uma elevação de 500%. Em 1835, o mesmo imposto representava 14% dos provisionamentos em arrecadação. Já no ano de 1850, os anseios em relação a essa receita representavam 41% do orçamento. Em síntese, no período de uma década e meia apenas um imposto passou a representar quase a metade do orçamento das receitas (voltando a desconsiderar as rendas das estradas). Não obstante, “a partir de 1846-1847, a exportação do açúcar tende a diminuir e a do café a aumentar. [...]. Depois de 1850-1851, temos uma exportação do café sempre maior que a do açúcar” (PETRONE, 1968, p. 162). Este fato econômico auxilia no entendimento sobre a crescente importância dos direitos de saída para as receitas provinciais. E mais, considerando outros importantes tributos (a saber: a meia sisa de escravos, os impostos sobre as aguardentes nacionais e estrangeiras, o imposto de 1$600 sobre as rezes e 320 de subsídio literário e a décima de legados e heranças), é possível constatar que, embora eles não possuam uma representatividade tão elevada diante da totalidade, houve uma substancial elevação no período de 15 anos. Em valores nominais, a décima sobre legados e heranças aumentou 455% no período, passando de 5:400$000 em 1835, para 30:000$000 em 1850. Já o imposto sobre a aguardente, que inicialmente era cobrado somente sobre a produção, saltou de 5:400$000 para 18:000$000, ou seja, consideráveis 233%. A meia sisa de escravos, cuja arrecadação era estimada em 9:000$000 em 1835, foi estimada em 18:000$000 em 1850, elevação de 100%. Já a expectativa de arrecadação de 1$600 sobre as rezes e 320 de subsídio literário partiu de 14:000$000 em 1835, para 23:000$000 em 1850, um acréscimo de 64%. 1. Dessa forma, de acordo com a lei orçamentária de 1850 temos, em grau de relevância: 2. Direitos de saída: 41% da expectativa de arrecadação; 3. Direitos dos animais nos registros de Rio Negro e Guarapuava: 22% da expectativa de arrecadação; 4. Décima de legados e heranças: 08% da expectativa de arrecadação; 5. 1$600 sobre as rezes e 320 de subsídio literário: 06% da expectativa de arrecadação; 6. Imposto sobre a aguardente: 05% da expectativa de arrecadação; 7. Imposto sobre a meia sisa de escravos: 05% da expectativa de arrecadação.

Conforme o Gráfico 1, a partir desse orçamento a tendência de elevação na receita orçada – calculada em libras esterlinas – acentua-se. Se nos períodos anteriores, 1835-1840 e 1840-1850, a elevação havia sido de 18,57% e 23,35%, no período 1850-1861 ocorre um aumento da ordem de 104,03%. Se analisarmos somente os valores nominais, essa elevação alcança os 130%. E, ainda considerando os valores nominais, por mais que se exclua do orçamento a arrecadação com a dívida ativa, com valor em torno de 126:235$402, ainda se observa uma elevação de 104% com relação aos números de 1850. Mais adiante, na análise dos Relatórios de Presidente de Província, será possível discutir as razões para tal incremento. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Seguindo nossas análises, consideraremos agora a Lei Orçamentária de 1861. Com base na Tabela 7, podemos observar que as rendas das estradas permanecem com a mesma representatividade que possuíam no orçamento anterior, respondendo por 26% do total orçado. Quanto às estimativas de receitas, o direito de saída continua sendo a principal fonte de arrecadação, agora representando 48% das previsões. Contudo, é imprescindível salientar que, se em 1850 esperava-se arrecadar 150:000$000 com essa fonte de recursos, a lei orçamentária de 1861 prevê uma arrecadação da ordem de 400:000$000, ou seja, um acréscimo de 167% com relação ao período anterior, e de 1.500% se comparado com o valor orçado em 1835. Tabela 7 - Lei orçamentária de 1861 - Ano financeiro de 1º de julho de 1861 a 30 de junho de 1862. Receitas 1º - Direitos de sahida

400.000$000

2º - Meia sisa de escravos 3º - Novos e velhos direitos 4º - Decima de legados e heranças

61.549$093 2.537$672 147.000$000

5º - Ditas de casas de conventos de frades

1.569$194

6º - Novo imposto de animais de Sorocaba

16.237$460

7º - Despachos de embarcações

570$446

8º - Imposto sobre casas de leilão e modas

178$140

9º - Dito sobre seges, e mais vehiculos de condução

531$000

10º - Cobrança da dívida ativa 11º - Imposto de 20$000 sobre escravos que sahirem da Província por mar

126.235$402 2.150$000

12º - Rendimento da ponte de embarque

12.623$589

13º - Dito da casa de correção

11.638$980

14º - Eventual inclusive o pagamento de letras a vencer

38.330$703

15º - Emolumentos

5.061$911

Somma

826.213$590

Rendas das Estradas 1º - Barreira do Cubatão de Santos 2º - Dita de Caraguatatuba 3º - Dita de Itapetininga 4º - Dita da Figueira

95.000$000 7.500$000 130.000$000 11.000$000

5º - Dita de Camandocaia 6º - Dita de Ponte Alta

4.000$000 800$000

7º - Dita de Ubatuba

20.000$000

8º - Dita do Taboão de Cunha

6.000$000

9º - Dita do Ribeirão da Serra

2.000$000

10º - Dita do Ribeirão da Onça

3.000$000

11º - Dita do Ariró

4.000$000

12º - Dita do Rio do Braço

3.000$000

13º - Dita do Banco de Arêas Soma

4.000$000 290.300$000

Soma Total

1.116.513$590 Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 16, de 03 de agosto de 1861. Província de São Paulo (1861).

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Outras duas importantes fontes de renda para a Província são a décima de legados e heranças (147:000$000) e a meia sisa de escravos (61:549$093). O somatório desses dois impostos e mais o direito de saída representa 73% da expectativa de receita. Em 1850, havia a concentração de 87% de tal anseio arrecadatório em seis fontes de tributos. No orçamento de 1861, a esperança de arrecadação de 73% das receitas está concentrada em apenas três tributos. Ainda que pouco representativos na receita total orçada, é curioso notar a criação de dois tributos que até então não haviam sido mencionados: o imposto sobre seges e demais veículos de condução, pertencente à Receita Geral e transferido para as Províncias em 1851; e o imposto de 20$000 sobre escravos que saíam da província por mar. Criado em 1853, possuía características de imposto de exportação, pois tributavam-se os escravos que eram vendidos para outras Províncias do Império. Antes de adentrarmos na próxima lei orçamentária, cabe a observação acerca da extinção dos direitos dos animais nos registros do Rio Negro e Guarapuava. Este imposto representou umas das mais importantes fontes de renda da província paulista. Contudo, no ano de 1851 foi transferido para a Província do Paraná, causando um considerável impacto nas finanças de São Paulo. Retomando a consideração sobre as leis orçamentárias, no orçamento para 1870 é possível observar que, se comparado à Lei Orçamentária de 1861, o valor estimado da receita, em libras esterlinas, deu novo salto, passando de £ 118.905 para £ 224.356, uma elevação de 88,69%. Todavia, as taxas de barreiras têm sua participação reduzida, respondendo por apenas 15% da receita total. Tais observações são complementadas pelos dados da Tabela 8. Tabela 8 - Lei orçamentária de 1870 - Ano financeiro de 1º de julho de 1870 a 30 de junho de 1871. Receitas 1º - Direitos de sahidas dos generos da Província

1.720.000$000

2º - Meia siza de escravos

170.000$000

3º - Decima de legados e heranças

80.000$000

4º - Decimas de casas de Conventos

2.000$000

5º - Novo imposto de animais em Sorocaba

17.000$000

6º - Despacho de embarcações

1.500$000

7º - Imposto sobre casas de modas e leilões

800$000

8º - Imposto sobre seges e mais vehiculos

1.200$000

9º - Cobrança da dívida ativa

5.000$000

10º - Imposto sobre escravos sahidos por mar

2.000$000

11º - Rendimento da ponte de embarque

40.000$000

12º - Rendimento da Casa de Correção

10.000$000

13º - Emolumentos

10.000$000

14º - Imposto de escravo que não pagarão meia siza

500$000

15º - Imposto sobre escravos de Conventos

500$000

16º - Indenização e multas

4.500$000

17º - Eventual

5.000$000

18º - Taxa das Barreiras

360.000$000

Somma

2.430.000$000

Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 93, de 21 de abril de 1870. Província de São Paulo (1870).

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Importante mencionar que a principal fonte de renda da Província neste período continua sendo os direitos de saída, assim como constatar que, novamente, a expectativa de arrecadação com tal tributo sofreu forte elevação se comparada à do período anterior. Considerando-se os valores nominais relativos ao orçamento de 1870, os direitos de saída (1.720:000$000) representaram consideráveis 83% da estimativa de receita. Mais uma vez, se compararmos a evolução deste imposto desde o início do período, em 1835, veremos uma elevação de 6.780% em 35 anos. Se comparado ao valor informado na Lei Orçamentária de 1861, também houve um aumento substancial, na ordem de 330%. A explicação para, em 1870, os direitos de saída terem representado uma expectativa de arrecadação de 83% da receita orçada (excluindo-se as barreiras das estradas) é proveniente do bom momento que o café ofereceu aos cofres provinciais paulistas. Prosseguindo nossa análise e considerando os dados apresentados na Tabela 9, na Lei Orçamentária de 1880 é possível constatar que a receita orçada para aquele ano alcançou o valor de 3.732:371$176 réis, uma elevação de 54% em relação ao orçamento para 1870. Se considerarmos os valores em libras esterlinas, o aumento alcança porcentagem semelhante, 54,47%. Tabela 9 - Lei orçamentária de 1880 - Ano financeiro de 1º de julho de 1880 a 30 de junho de 1881. Receitas 1º - Direitos de sahida

1.700.000$000

2º - Meia siza de escravos

200.000$000

3º - Decima de legados e heranças

236.082$537

4º - Decima de uso frutos

47.216$500

5º - Decima de casa de Conventos

3.248$264

6º - Novo imposto de animais

5.671$853

7º - Despacho de embarcações

3.853$050

8º - Rendimento da ponte de embarque

69.925$338

9º - Rendimento da penitenciária

13.611$248

10º - Emolumentos

20.000$000

11º - Indenizações e multas

65.161$944

12º - Eventuais 13º - Taxa das Barreiras

5.365$319 98.609$000

14º - Imposto de transito

800.000$000

15º - Dito adicional

350.000$000

16º - Dito sobre companhias equestres 17º - Dito sobre casas de leilão e modas 18º - Dito sobre seges e outros vehiculos 19º - Dito sobre capitalistas 20º - Dito sobre loterias

2.080$000 983$050 3.345$973 12.000$000 6.000$000

21º - Dito predial

40.000$000

22º - Cobrança da dívida ativa

20.000$000

23º - Auxílio do Governo Geral

30.000$000

Somma

3.732.371$1761*

* Valor replicado da lei orçamentária, o somatório não é exatamente igual por dificuldade em transcrever o arquivo. Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 156, de 20 de abril de 1880. Província de São Paulo (1880).

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Pela primeira vez na análise histórica do período em estudo, a expectativa de arrecadação com os direitos de saída não aumentou; ao contrário, houve uma leve queda. Como já referenciado no início do artigo, as exportações foram prejudicadas entre os anos de 1870 e 1871 devido à Guerra Franco-Prussiana, impactando a arrecadação com os direitos de saída. Ademais, no ano financeiro de 1870 os direitos de saída representavam 83% da expectativa de arrecadação, sendo plausível que os legisladores tenham efetuado ajustes no decorrer da década a fim de evitar tamanha concentração em uma única fonte de receita. Ao analisar com mais atenção a Lei Orçamentária de 1880, observamos a criação de novos tributos, além da elevação da perspectiva de arrecadação em outros já existentes.

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As barreiras de estradas vão perdendo a importância que possuíam para as finanças públicas por conta da queda no trânsito de pessoas, muares e mercadorias através das estradas. Tal queda é explicada pela ascensão que as ferrovias passam a adquirir nos caminhos de São Paulo. Além disso, não podemos deixar de destacar a relevância que as estradas de ferro possuem para o escoamento do café até os portos, facilitando o transporte e a comercialização deste produto de destaque na pauta de exportações paulista.

Dentre essas novidades, destacamos o Imposto de Trânsito, criado em 1872, com uma estimativa de arrecadação de 800:000$000 réis em 1880. Este imposto ganhou importância nas receitas públicas por ter como base de incidência o transporte de mercadorias através das malhas ferroviárias e a compra de passagens. Desta forma, é possível verificar a transformação econômico-social ocorrida na província no tocante aos meios de locomoção. As barreiras de estradas vão perdendo a importância que possuíam para as finanças públicas por conta da queda no trânsito de pessoas, muares e mercadorias através das estradas. Tal queda é explicada pela ascensão que as ferrovias passam a adquirir nos caminhos de São Paulo. Além disso, não podemos deixar de destacar a relevância que as estradas de ferro possuem para o escoamento do café até os portos, facilitando o transporte e a comercialização deste produto de destaque na pauta de exportações paulista. Na sequência, é possível constatar o Imposto Adicional, orçado em 350:000$000 réis. O imposto adicional foi criado em 1865 e extinto em 1866, reaparecendo em 1877 e permanecendo até 1891. Em sua primeira referência, em 1865, era de 2% sobre a totalidade líquida das heranças sem testamento, heranças testamentárias, legados e doações “causa mortis”. Em 1877, passou a recair no valor dos impostos e taxas cobrados sobre todos os objetos tributados que não fossem Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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expressamente isentados em lei, numa proporção de 20%. A lei nº 86-A, de 25 de junho de 1881, manteve essa taxa de 20%, reduzindo, porém, a 10% aquela sobre os direitos de saída do café. (TESSITORE, 1995, p. 168).

O somatório destes dois tributos alcança 1.150:000$000 réis, perfazendo 32% do total da receita orçada. E mais, ainda que representem valores menores, há que se mencionar a criação de alguns novos tributos e rendimentos, tais como: Décima de usufrutos; Rendimento da Penitenciária; Imposto sobre companhias equestres; Imposto sobre capitalistas; Imposto sobre loterias; Imposto Predial; além do Auxílio do Governo Geral. Estes impostos demonstram que, mesmo timidamente, as atividades econômicas, sociais e urbanas passam a adquirir certa relevância na arrecadação pública. É possível observar o início de um movimento que vai ganhando importância no desenvolvimento econômico paulista: o dinamismo dos centros urbanos da província. E por fim, chegamos ao estudo do último orçamento do período. Com base nas informações apresentadas na Tabela 10, observamos que, se comparada à lei orçamentária anterior, houve um reajuste, em valores nominais, da receita orçada da ordem de quase 36%. Se considerados os valores em libras esterlinas, essa porcentagem alcança os 60,93%. A razão para esse discrepante comportamento reside na valorização cambial sofrida pelo mil-réis frente à libra esterlina durante a década de 1880, sendo objetivo do Império a volta da paridade ideal estabelecida por lei no final da década de 1840, equivalente a uma taxa de câmbio de 26 pence/por mil-réis. Em relação aos anos anteriores, as taxas das barreiras perdem de forma significativa sua expressividade, correspondendo, na Lei Orçamentária de 1880, a aproximadamente 1% da receita orçada. E mais, as principais fontes de arrecadação estão agora concentradas em cinco tributos: 1. Direitos de saída: 45% da estimativa de arrecadação; 2. Imposto de transporte ou de trânsito: 26% da estimativa de arrecadação; 3. Taxa Adicional: 08% da estimativa de arrecadação; 4. Imposto Predial: 07% da estimativa de arrecadação; 5. Décima de Legados e Heranças: 04% da estimativa de arrecadação.

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Tabela 10 - Lei orçamentária de 1889 - Ano financeiro de 1º de julho de 1889 a 30 de junho de 1890. Receitas 1º - Direitos de sahida

2.300.000$000

2º - Taxa da ponte de embarque em Santos

108.300$000

3º - Despacho de embarcações

13.200$000

4º - Decima de legados e heranças

215.750$000

5º - Decima de uso-fruto

15.000$000

6º - Imposto de animais em Itarare e Sorocaba

31.280$000

7º - Taxa das barreiras

16.000$000

8º - Imposto de transporte ou de transito

1.300.000$000

9º - Dito sobre casas de leilão

3.220$000

10º - Dito sobre casas de modas

1.600$000

11º - Dito sobre seges e outros vehiculos

4.570$000

12º - Dito sobre capitalistas

15.000$000

13º - Dito sobre vendedores de bilhetes de loterias estranhas às da Província

5.200$000

14º - Dito Predial

350.000$000

15º - Dito sobre companhias equestres

6.000$000

16º - Emolumentos

16.200$000

17º - Novos direitos por diversas mercês

19.000$000

18º - Cobrança da dívida ativa

70.000$000

19º - Taxa adicional

400.000$000

20º - Indenizações

58.200$000

21º - Receita eventual, compreendendo as multas por infração de lei ou regulamento, e os dividendos das ações da companhia Ituana

101.200$000

22º - Selo das patentes de oficiais da guarda nacional, arrecadado pela Fazenda Geral

-

23º - Rendimento dos estabelecimentos provinciais

11.400$000

Somma

5.061.120$000

Fonte: Tabela elaborada de acordo com a Lei nº 107, de 09 de abril de 1889. Província de São Paulo (1889).

Outro ponto importante a ser ressaltado é a elevação na participação relativa dos direitos de saída no cômputo da receita orçada. Conforme mostra a Tabela 11, no início do período estudado, especificamente na primeira lei orçamentária considerada, os direitos de saída respondiam por 14% do total orçado (desconsiderando as barreiras). Essa porcentagem apresenta uma clara tendência de crescimento, chegando a responder por 83% do total orçado no ano de 1870. Tabela 11 – Participação dos direitos de saída na receita orçada. São Paulo, 1835-1889 Ano

Participação na receita orçada

1835

14%

1840

35%

1850

41%

1861

48%

1870

83%

1880

46%

1889

45% Fonte: Leis orçamentárias paulistas.

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Dessa forma, analisamos a evolução das leis orçamentárias provinciais paulistas ao longo do período 1835-1889. A seguir, a fim de complementar as análises, serão considerados os Relatórios de Presidente de Província.

O que dizem os Relatórios de Presidente de Província Os relatórios elaborados pelo Presidente de Província no início de cada ano representam importante fonte de estudos para a compreensão das finanças da Província, pois é através de tais documentos que se torna possível averiguar se as receitas orçadas eram Por meio das alterações de fato arrecadadas, bem como constatar se tais receitas eram suficientes ou não para cobrir os gastos necessários. das bases de incidência,

e crescimento ou queda da representatividade que cada tributo passa a ter no decorrer do século XIX, é possível observar o dinamismo pelo qual passou a economia paulista no período imperial. Em suma, as transformações econômicas e sociais ocorridas na Província são claramente exemplificadas nas formas de arrecadação tributária.

Em linhas gerais, é possível afirmar que raramente o orçamento correspondia exatamente ao realizado; em alguns momentos a receita orçada era superior à realizada e, em outros momentos, era inferior. A mesma conclusão pode ser feita com relação às despesas. Contudo, antes de entrarmos na análise do conteúdo específico dos relatórios, se faz necessária, ainda que de maneira breve, a análise do contexto econômico e social da Província de São Paulo nesse momento, retomando a discussão sobre o desenvolvimento paulista na primeira metade do século XIX.

Por meio das alterações das bases de incidência, e crescimento ou queda da representatividade que cada tributo passa a ter no decorrer do século XIX, é possível observar o dinamismo pelo qual passou a economia paulista no período imperial. Em suma, as transformações econômicas e sociais ocorridas na Província são claramente exemplificadas nas formas de arrecadação tributária. Dessa forma, por meio das leis orçamentárias torna-se possível verificar que, se no início as rendas das estradas/taxa das barreiras estavam entre as mais vultosas fontes de expectativa de arrecadação para os cofres públicos paulistas, no final do período, com o desenvolvimento das estradas de ferro, sua participação torna-se bem menos representativa. A importância inicial dessa tributação reside, em boa medida, no fato de as estradas paulistas representarem, desde meados do século XVII, um importante caminho de passagens de muares e carros de boi carregados de mercadorias, bem como comerciantes que transitavam entre tais caminhos. São Paulo possuía uma localização privilegiada no sentido de simbolizar um ponto

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de ligação entre o norte e o sul do país, assim como passagem obrigatória para aqueles que necessitassem se locomover à região das Minas Gerais através do “caminho velho”. Ademais, internamente tais estradas também possuíam expressiva importância no tocante à locomoção da produção açucareira paulista e seu escoamento através dos portos. Com o decorrer das décadas e o advento das estradas de ferro, as taxas de barreira foram perdendo representatividade dentre as fontes arrecadatórias. Na Lei Orçamentária de 1889, as rendas das estradas perfaziam aproximadamente 1% da estimativa de receita. A queda tão abrupta desse tributo no orçamento pode ser explicada pela pouca relevância, como foi mencionado anteriormente, que os caminhos das estradas passaram a ter com o advento das ferrovias. Sendo assim, como reflexo podemos observar a criação, em 1872, do imposto de trânsito, cuja base de incidência era o “despacho dos gêneros e da venda das passagens nas Estradas de Ferro, antes do embarque” (TESSITORE, 1995, p. 231). Na Lei Orçamentária de 1880, a expectativa de arrecadação com o imposto de trânsito representou aproximadamente 26% da renda orçada. Desta forma, verifica-se o importante papel que as estradas de ferro vão adquirindo na economia paulista, não só como meio de transporte, mas também como fonte de arrecadação. Outro ponto que merece destaque na evolução acompanhada é o aumento da importância dos direitos de saída para a arrecadação pública provincial. Por meio das leis orçamentárias analisadas, foi possível observar que o antigo dízimo possuía uma representatividade calculada no orçamento de 1835 de 14%, passando a representar, no orçamento de 1889, 45%. Em média, calculou-se que os direitos de saída representavam 44,5% das receitas orçadas ao longo de todo o período. Esta tendência crescente está intimamente relacionada com a expansão cafeeira na economia paulista e o papel de destaque que este produto passou a adquirir nas exportações da província a partir de meados de 1850. Todavia, faz-se importante esclarecer que os direitos de saída também incidiam sobre o açúcar e demais gêneros agrícolas e manufaturados. No entanto, foi a exportação do café que favoreceu o crescimento arrecadatório deste tributo. Voltando aos relatórios, notamos que seus conteúdos, em alguns anos, enaltecem e comemoram o fato de a Província de São Paulo encerrar o ano fiscal com superávit. Contudo, tantos outros lamentam a situação calamitosa na qual as finanças se encontram, não sendo a receita arrecadada capaz de sanar todos os gastos que se fizeram necessários. Havia também, como há de se constatar, a dificuldade em arrecadar os impostos devidos: “É cada vez maior o extravio do imposto da meia siza da venda de escravos, pois que a administração não tem um meio direto nem indireto de obstar a defraudação que dele se faz, na maior parte da Província. Hoje só paga este imposto quem quer [...].” (ALVIM, 1842, p. 20). Ainda no relatório do ano de 1842, o Presidente de Província relata a importância de se criar noResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 105-136, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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vas formas de tributos diante das dificuldades em se arrecadar algumas receitas orçadas por conta de fatores exógenos à capacidade de se efetuar a referida cobrança: [...] a falta que necessariamente vão sentir os cofres provinciais pela infalível diminuição da venda proveniente do imposto do Rio Negro [...], cumpre portanto que se trate, quanto antes, de criar uma renda que se possa, se não substituir ao menos diminuir alguma coisa a falta que aquela há de fazer [...]. Considerações muito poderosas obrigarão o Governo Imperial a mandar interceptar o comércio com a Província do Rio Grande do Sul. (ALVIM, 1842, p. 21).

Diante do exposto, o então Presidente de Província apela aos parlamentares “que se adotem as medidas que vossa sabedoria e patriotismo vos indicar melhor, pois de acordo com o orçamento haverá déficit”. (ALVIM, 1842, p. 22). Tantos outros Presidentes, em anos subsequentes, relatam das necessidades de rendas extras a serem destinadas aos consertos de pontes e estragos com as chuvas, por exemplo, bem como da dificuldade em se cobrar a dívida ativa provincial. Tratam, ainda, dos conflitos existentes entre Municípios e Província, ao afirmar que “as localidades querem tudo, mas não querem contribuir para nada”. (MOTA, 1851, p. 10). Contudo, é o Relatório de Presidente de Província do ano de 1852 que traz maior clareza acerca das receitas e despesas orçadas e realizadas, cujas informações aparecem sumarizadas no Quadro 1. Quadro 1 – Resumo da Receita e Despesa comum da Província. São Paulo, 1848-1852. 1848 a 1849 Receita

Despesa

Orçada

386:160$000

429:586$000

Efetiva

316:615$000

333:640$000

1849 a 1850 Receita

Despesa

Orçada

290:150$000

365:783$000

Efetiva

221:425$000

344:516$000

1850 a 1851 Receita

Despesa

Orçada

364:950$000

428:356$000

Efetiva

378:621$000

390:434$000

1851 a 1852 Receita

Despesa

Orçada

285:550$000

337:937$000

Efetiva

170:837$680

146:365$000

Fonte: Quadro elaborado de acordo com informações disponíveis em Araujo (1852, p. 71).17

Infelizmente, os demais relatórios não apresentam essa riqueza de detalhes, todavia, através dessas informações torna-se possível averiguar que raramente os valores orçados eram con17 Os valores apresentados não levam em consideração as receitas e despesas das Barreiras orçadas e realizadas.

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cretizados. Também é possível constatar que mesmo sendo a arrecadação efetiva, em alguns casos, superior à orçada, ainda assim as finanças provinciais apresentavam déficit, como relata o Presidente de Província: Há de haver um déficit e já o havia em anos anteriores, como consta das leis respectivas, cuja despesa orçada é maior que a receita orçada [...]. O remédio me parece que não pode ser outro senão, como a Tesouraria indica, restabelecer a receita pública como era antes: é danoso e impopular criar ou elevar impostos sem necessidade averiguada e evidente, mas é também temeridade abolir ou reduzir impostos a que o povo já está habituado, que são absolutamente indispensáveis, dos quais não se pode prescindir sem menoscabo das necessidades públicas, sem embaraço da administração [...]. (ARAUJO, 1852, p. 73).

O relatório de Presidente de Província do ano de 1860 também se preocupa em retratar o déficit do ano de 1858 a 1859, cita o mau estado das finanças, a necessidade em se arrecadar quantias que estavam em poder de alguns coletores, bem como a urgência na criação de novos impostos. O resultado já foi apresentado acima: a elevação de quase 130%, em termos nominais, da receita orçada entre as Leis Orçamentárias de 1850 e 1861. Relatórios dos anos seguintes apresentam poucas alterações com relação aos informes relatados, ora reclamando dos déficits e defendendo a necessidade da criação de novos tributos, ora comemorando o estado lisonjeiro das finanças provinciais. Contudo, são esses relatórios que trazem esclarecimentos acerca da realidade enfrentada pela Província, sobretudo no que se refere à discrepância existente entre valores orçados e efetivamente arrecadados. Através da análise das leis orçamentárias foi possível constatar que a evolução do provisionamento da receita sofreu uma elevação na ordem de aproximadamente 1.300% entre 1835 e 1889, havendo, em alguns anos dentre os períodos estudados, crescimentos consideráveis. Tais valores, já mencionados anteriormente, encontram-se reproduzidos a seguir, na Tabela 12. Tabela 12 - Evolução da receita provincial. São Paulo, anos selecionados. Receita Orçada

Receita Orçada

Variação % em relação ao período anterior

(valores nominais)

(valores em libras esterlinas)

(em libras esterlinas)

1835

243.700.000

39.846

-

1840

365.684.000

47.246

18,57%

Ano

1850

486.450.000

58.278

23,35%

1861

1.116.513.590

118.905

104,03%

1870

2.430.000.000

224.356

88,69%

1880

3.732.371.176

346.553

54,47%

1889

5.061.120.000

557.699

60,93%

Fonte: Leis orçamentárias paulistas.

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Entretanto, com o objetivo de analisar como se deu a evolução per capita da carga tributária orçada (em libras esterlinas) na Província paulista, coletamos alguns dados relativos à população livre de São Paulo. Dessa forma, foi elaborada a Tabela 13, cujo conteúdo nos permite concluir que a tributação per capita da província dobrou entre o início e o final do período estudado, passando de uma razão de 20% de uma libra esterlina, para 40%. Importante ressaltar que o relevante crescimento populacional observado no período se deveu, sobretudo, à imigração promovida e em muitos momentos financiada pela atividade cafeeira. Tal fluxo populacional iniciou-se timidamente na década de 1850, com o fim do tráfico negreiro, tomando maior volume a partir da década de 1870, em especial após a Lei do Ventre Livre. Tabela 13 – Carga Tributária Per Capita (libras esterlinas). São Paulo, 1835-188918 Ano

Receita Orçada (valores em libras esterlinas)

População Livre

Carga Tributária Per Capita (%)

1836

39.218

200.129

0,20

-

1854

63.029

301.541

0,21

5%

1871

150.150

680.742

0,22

4,76%

1887

384.490

1.102.467

0,35

59,09%

1889

557.514

1.384.753

0,40

14,29%

Variação (%) entre os Períodos

Fonte: Leis orçamentárias paulistas e Bassanezi (1998).

Ou seja, o café foi o grande responsável tanto pelo crescimento da arrecadação paulista no período, por meio do recebimento dos chamados direitos de saída, como por incentivar o crescimento populacional, principalmente por meio da imigração, e até mesmo por promover modificações na infraestrutura de transportes da Província e fomentar seu mercado interno. Considerações finais Com base nas informações levantadas e nas análises desenvolvidas, foi possível constatar que a Província de São Paulo, no período entre os anos de 1835 e 1889, passou por importantes transformações sob o ponto de vista tributário, transformações estas provenientes da profunda modificação econômica e social verificadas na Província durante todo o período imperial. 18 Elaboração própria de acordo com dados coletados nas Leis Orçamentárias paulistas e “Estatísticas Históricas –

São Paulo do Passado/Dados Demográficos, 1836-1920”, (BASSANEZI, 1998). O cruzamento de dados entre as duas fontes trata-se de uma estimativa, pois o ano financeiro ia de 1º de julho do ano em questão a 30 de junho do ano subsequente. A única exceção é para o ano de 1887, quando foram utilizados os dados da lei orçamentária do ano financeiro de 1º de julho de 1887 a 30 de junho de 1888 e os dados da população de 1886. Tal metodologia foi necessária por não haver disponibilidade de informações populacionais para o ano de 1887, muito menos os valores da receita orçada para o ano de 1886. Levou-se em consideração somente a população livre, não havendo neste caso a distinção entre sexo e idade.

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Alguns impostos existentes nas primeiras leis orçamentárias, como direitos dos animais nos registros do Rio Novo, deixaram de incidir nas últimas leis orçamentárias, devido ao fato de serem transferidos para a Província do Paraná em 1851. Interessante notar que na primeira Lei Orçamentária, de 1835, tal tributo era o mais representativo na base de arrecadação. Já outros tributos relacionados nas últimas leis orçamentárias foram criados no decorrer das décadas, não havendo nenhuma menção a eles no período inicial, como é o caso do imposto de transporte ou de trânsito, cuja cobrança recaía no transporte de mercadorias sobre as malhas ferroviárias e compras de passagens, segunda arrecadação mais expressiva da Lei Orçamentária de 1889. Contudo, constatação interessante a ser feita refere-se ao comportamento da rubrica direitos de saída no decorrer do período. Na Lei Orçamentária de 1835, o dito tributo representava somente 14% da expectativa de arrecadação da Província. Já na Lei Orçamentária de 1870, essa única fonte de arrecadação alcançou consideráveis 83% de representatividade, sendo calculada sua participação média na receita orçada da Província em 44,5%. Em boa medida, esse crescimento reflete a importância crescente da economia cafeeira no território paulista. Não obstante, por mais que novos tributos fossem criados e que outros fossem extintos no decorrer do período imperial, desde 1840 os tais direitos de saída tornaram-se a principal fonte da renda provincial. E mais, sempre que geadas ou outras intempéries comprometessem as lavouras de café ou de açúcar – os produtos exportados de maior valor para a província –, ou que fatores externos à Província e até mesmo ao país interferissem no cenário político, tais como guerras ou crises econômicas, principalmente na Europa ou nos Estados Unidos, nossos principais compradores, a arrecadação dos direitos de saída era impactada, prejudicando assim as finanças provinciais. A narrativa de tais dificuldades é corroborada pelos Relatórios elaborados pelos Presidentes de Província, importante registro documental que nos possibilita compreender um pouco da dinâmica e do cotidiano da Província de São Paulo no período imperial, dinâmica essa ressaltada aqui sob a ótica das finanças públicas. Ademais, com base nas análises efetuadas, foi possível concluir que, infelizmente, quase nada mudou em relação ao Brasil dos períodos colonial e imperial, no qual sempre que os cofres públicos passavam por dificuldades, a saída encontrada e mais rapidamente implementada era o aumento da carga tributária.

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A mortalidade em tempos de ventura e desventura: o Brás na virada do século XIX para o século XX* Mortality in times of fortune and misfortune: Brás neighborhood at the turn of the nineteenth century to the twentieth century Maria Silvia Bassanezi Universidade Estadual de Campinas

Resumo

Abstract

Este estudo analisa a mortalidade – suas características e condicionantes – no distrito do Brás, um bairro tipicamente de imigrantes e operários da cidade de São Paulo, nos anos finais do século XIX e primeiros anos do século XX. A partir das estatísticas de óbitos produzidas e publicadas pela Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo, pode-se verificar que, naquele momento, a população desse bairro vivenciou um padrão de mortalidade característico de sociedade em pré-transição demográfica – alta mortalidade geral e alta mortalidade infantil – impactado pelo movimento imigratório, pelo ambiente, pelas condições de vida e trabalho e pela precariedade das políticas públicas de saúde.

This study analyzes the mortality – its characteristics and determinants – in the district of Brás, a typical immigrant and worker neighborhood in the city of São Paulo (Brazil), in the late nineteenth century and the early twentieth century. Based on the death statistics produced and published by the Bureau of Statistics and Archives of the State of São Paulo, this study shows that Brás experienced a mortality pattern characteristic of a society in demographic pre-transition – high overall mortality, mainly high child mortality – impacted by the immigration flow, the environment, the living and working conditions and the precariousness of public health policies.

Palavras-chave: Mortalidade; Imigração; Brás; São Paulo.

Keywords: Mortality; Immigration; Brás; São Paulo.

*Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no XI Congreso Asociación de Demografioa Histórica, em Cádiz (Espanha), realizado entre 21 e 24 de junho de 2016, como comunicação oral sob o título “A mortalidade entre as gentes pobres na terra hospedeira”. Para este dossiê, o texto foi ampliado e revisto.

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I n t r o d u ç ã o

A

partir de meados dos anos 1880 até final dos anos 1920 – período que se convencionou chamar de migração de massa – o Brasil investiu em uma vigorosa política imigratória que atraiu para o estado de São Paulo cerca de dois milhões e duzentos mil estrangeiros, oriundos majoritariamente da Europa Mediterrânea1. Embora essa política privilegiasse a imigração familiar de europeus para o trabalho na lavoura do café, que se expandia a passos largos pelo interior paulista, muitos imigrantes se fixaram nas cidades, buscando outras oportunidades de vida e trabalho e contribuindo para intensificar o processo de urbanização, desenvolvimento econômico e crescimento populacional das mesmas. Nesse contexto, a cidade de São Paulo, capital do estado de São Paulo, foi o grande polo de atração de uma parcela importante dos imigrantes subsidiados2 e espontâneos, que ocuparam os mais diversos espaços desta cidade. No seu conjunto, eram tanto imigrantes recém-chegados a São Paulo – vários deles chamados por familiares e conterrâneos já residentes em terras brasileiras – como imigrantes que se dirigiram primeiramente às fazendas de café ou aos núcleos urbanos do interior do estado e acabaram se estabelecendo na capital paulista. A multidão tomou conta da cidade de São Paulo somente com a entrada em massa de imigrantes, fenômeno que se agravou ainda mais na segunda metade da década de noventa do século XIX, quando os imigrantes abandonaram as fazendas de café e vieram para as áreas urbanas, principalmente para a capital. [...] A crise cafeeira e a redução da imigração subsidiada, proibida pelo Decreto Prinetti, redirecionaram o fluxo de trabalhadores para a Capital que se viu frente a uma crescente população, à criação de novos bairros e à instalação de fábricas e casas comerciais (RIBEIRO, 1991, p. 106).

Os levantamentos populacionais realizados no Brasil e no estado de São Paulo no período de migração de massa, e que trazem o volume dos estrangeiros3, dão uma ideia do ritmo e da 1 Cerca de um milhão e setenta mil imigrantes chegaram ao estado de São Paulo entre 1885 e 1904, dos quais 63,2% eram italianos, 10,3% espanhóis, 8,9% portugueses e os demais eram imigrantes oriundos principalmente de outros países europeus (LEVY, 1974). 2 Entre 1890 e 1902, os imigrantes subsidiados no estado de São Paulo lideravam com 78% das entradas. 3 Os levantamentos de população arrolam os estrangeiros residentes no Brasil no momento de sua realização, sem distinguir o imigrante do não imigrante. No entanto, a história mostra que a população estrangeira, na sua quase totalidade, confunde-se com a população imigrante na época.

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dimensão do fenômeno imigratório na cidade de São Paulo, de seus efeitos diretos e indiretos sobre o volume e sobre a dinâmica populacional local. Em 1886, a população da cidade era de 47.697 habitantes; quatro anos depois (1890), esta já somava 64.934 moradores, dos quais pouco mais de um quarto eram estrangeiros (25,8%). Logo em seguida (1893), os estrangeiros na cidade passaram a responder por mais da metade da população local (54,6%) – proporção que, provavelmente, foi maior nos anos finais do século XIX4, uma vez que o movimento imigratório foi mais intenso na década de 1890, com um máximo de entradas em 1895, elevando a população da cidade para cerca de 240 mil habitantes em 1900. Em 1920 e, depois, em 1934, quando a entrada de imigrantes internacionais havia enfraquecido e os filhos brasileiros de imigrantes ampliavam o segmento brasileiro5, as pessoas nascidas no exterior ainda tinham um peso importante na população da cidade (205.245 pessoas em 1920 e 287.690 em 1934, respectivamente 35,4% e 27,8% da população total). Entre os diversos espaços ocupados pelos imigrantes na cidade de São Paulo encontrava-se o bairro ou distrito do Brás, espaço privilegiado por este trabalho. Conhecido como um bairro tipicamente de imigrantes e de operários, o Brás vivenciou intensamente a mortalidade das “venturas e desventuras” na virada do século XIX para o século XX, como mostram as estatísticas de óbitos ali ocorridos entre 1895 e 1904. Essas estatísticas foram produzidas e publicadas pela Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo em Relatórios e Anuários, que sistematizam também as informações sobre nascimentos e casamentos do registro civil e tinham como objetivo subsidiar as políticas públicas, entre elas as de imigração e saúde. Essas estatísticas, no entanto, devem ser vistas com certa cautela, pois apresentam algumas lacunas, erros de agregação e embutem sub-registro dos eventos vitais. Também não seguem a mesma forma de apresentação no decorrer do tempo e nem sempre dispõem de cruzamentos de informações que seriam importantes à análise da dinâmica demográfica. Contudo, se elas não podem dar conta de toda a realidade, elas trazem pistas e assinalam tendências que permitem saber um pouco mais sobre a dinâmica demográfica, na virada do século XIX para o século XX, período que sofre, inclusive, a carência de censos6 e, no caso específico deste trabalho, da mortalidade entre gentes imigrantes e pobres do Brás. 4 As informações publicadas do recenseamento de 1900 não trazem a população segundo a nacionalidade. Contudo, as estatísticas de entrada de imigrantes mostram que, na década de 1890, chegaram ao estado de São Paulo 734.985 imigrantes (LEVY, 1974). 5 Os filhos de estrangeiros nascidos no Brasil eram considerados brasileiros segundo normas da época, a não ser que se declarassem em contrário, o que raramente acontecia. 6 Para o período de imigração de massa, somente os censos nacionais de 1890 e 1920, o levantamento populacional da Província de São Paulo de 1886 e o Recenseamento do Município da Capital, em 30 de setembro de 1893, dispõem de algumas informações sobre a população do Brás. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 137-152, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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A partir principalmente dessas fontes, mas também dos relatórios da Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas – que trazem estatísticas dos imigrantes encaminhados para a enfermaria da Hospedaria de Imigrantes e dos óbitos ali ocorridos – e de outras de caráter quantitativo e qualitativo, este trabalho busca verificar o impacto do movimento imigratório, das condições de vida, do ambiente e das políticas públicas de saúde sobre a mortalidade vivenciada no bairro do Brás naquela virada de século.

O Brás imigrante e operário

Situado na região centro-leste da cidade de São Paulo, o Brás – cuja origem remonta à segunda metade do século XVIII – somente nas últimas décadas do século XIX começou a passar por um processo de urbanização e crescimento populacional intenso. Nessa época, foram instaladas em seu território: estações ferroviárias, ligando o bairro diretamente ao porto de Santos, ao Rio de Janeiro e ao interior do estado; Hospedaria de Imigrantes, construída para abrigar os imigrantes recém-chegados – dos quais muitos acabaram por se fixar nesse bairro; oficinas e fábricas, graças ao baixo custo de terrenos e à oferta de mão de obra; além de um pequeno comércio para atender a população local em crescimento (RIBEIRO, 1991). Em 1886, a população do Brás somava 5.998 pessoas (9,6% da população da capital); sete anos depois (1893), já contabiliza 32.387 indivíduos (25% da população da capital), dos quais 62,6% eram estrangeiros. Do conjunto de estrangeiros, a imensa maioria era oriunda da Itália (60,7%), uma parcela razoável de Portugal (24,4%), outra da Espanha (11,3%) e o restante de países diversos. Para a virada do século XIX para o século XX, não se tem informações confiáveis sobre a população local. Contudo, pode-se deduzir que, nesse momento, ela era bem maior e que os italianos predominavam em muito a comunidade imigrante, dando ao Brás uma feição de bairro italiano por excelência. De fato, nos anos 1890, o movimento migratório em direção ao Brasil esteve em seu auge e os italianos representavam a maior parcela das entradas de imigrantes. O recenseamento de 1920 traz para o distrito do Brás uma população de 67.074 habitantes, dos quais ainda 43% eram estrangeiros. A queda no ritmo de crescimento populacional do Brás no período deveu-se, sobretudo, a perdas territoriais em função da criação de novos distritos na capital paulista. O declínio da proporção de imigrantes estrangeiros na população ocorreu

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em virtude dos efeitos indiretos da imigração, ou seja, dos muitos filhos que os imigrantes geraram no local, considerados brasileiros – no conjunto dos anos aqui analisados, 87,6% das crianças nascidas no Brás eram filhas de pai estrangeiro e 85,8% delas nascidas de mãe estrangeira. O perfil da população imigrante favorecia os níveis de natalidade, pois, em sua maioria, os imigrantes se encontravam em idade produtiva e reprodutiva. Eles somavam mais homens que mulheres e uma parcela bastante significativa deles fazia parte de unidades familiares. Os imigrantes, desprovidos de recursos financeiros e majoritariamente pobres – no Brás e em outros espaços da capital paulista –, além de enfrentarem condições ambientais e culturais distintas da terra natal, eram obrigados a viver em condições muito precárias em termos de moradia e trabalho, sem higiene, sem saneamento básico, sem assistência à saúde, sem uma alimentação saudável. Os aluguéis das casas eram caros e consumiam boa parte da renda familiar. Para muitos era impensável viver em casas que não fossem os cortiços. Como descreve Trento (1989, p. 138): Os cômodos úmidos, enlameados, sujos, com paredes e tetos pretos de fumaça, que abrigavam famílias inteiras [...]. Faltava ar, luz, espaço, esgoto e higiene. O quintal em comum, às vezes, transformava-se num charco, mais frequentemente num depósito de lixo, onde as crianças passavam o dia brincando e as mulheres lavando roupa, junto a uma única latrina quase sempre em estado lastimável.

O local de trabalho não diferia em termos de salubridade. As ruas, por sua vez, não eram calçadas, estavam sempre cobertas de lama. O lixo se acumulava e gerava mau cheiro, proliferando os insetos e ratos. O abastecimento de água era insuficiente e a rede de esgoto precária. Tal contexto favorecia a ocorrência e proliferação de epidemias e de outras doenças – desconhecidas do sistema imunológico dos imigrantes e/ou trazidas pelos próprios da Europa. A precariedade com que viviam os trabalhadores imigrantes pobres e seus descendentes foi objeto de muitas denúncias na imprensa, que criticava com frequência a administração da capital pelo descaso e abandono com que tratava os bairros distantes do centro da cidade e onde eles se aglomeravam. As autoridades, por sua vez, reconheciam os problemas de saúde pública nesses locais, como atestam muitos dos relatórios que produziram na época. Promulgaram leis, criaram uma série de órgãos7, como o Serviço Sanitário, por exemplo, mas medidas efetivas para combater a morbimortalidade foram ineficientes ou inexistentes por muitos anos (RIBEIRO, 1991; TELAROLLI JR., 1996). 7 Ver Ribeiro (1991). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 137-152, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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A alimentação também não merecia maiores cuidados. As crianças eram as mais prejudicadas: a elas eram servidos alimentos impróprios e nocivos à sua idade. Mães, inclusive, eram levadas “a alimentar artificialmente seus filhos afim de mediante retribuição pecuniária, amamentar os [filhos] dos mais abastados” (REPARTIÇÃO, 1903, p.118).

A mortalidade entre as gentes do Brás

Na virada do século XIX para o século XX, a população da cidade de São Paulo se encontrava em uma fase pré-transição demográfica: os níveis de mortalidade geral, de mortalidade infantil e de natalidade eram altos, e traziam embutidos os reflexos da entrada massiva de imigrantes8. As epidemias assolavam a cidade, provocando muitas mortes juntamente com as doenças do aparelho digestivo, do aparelho respiratório e a tuberculose. As variações bruscas de temperatura que ocorriam na cidade contribuíam para ampliar os casos de mortalidade por doenças respiratórias. Por outro lado, as condições climáticas impediam que a febre amarela provocasse muitos óbitos, ao contrário do que ocorria na cidade portuária de Santos, no município de Campinas e em outras das regiões cafeeiras do estado de São Paulo, onde epidemias de febre amarela dizimaram uma parcela razoável da população (BASSANEZI, 2014; MORAES, 2014). Se a situação da cidade de São Paulo era tal, a do Brás, seu bairro mais populoso e onde se encontrava a Hospedaria de Imigrantes, era pior. Enfermidades e mortes rondavam imigrantes recém-chegados alojados nessa hospedaria, onde tinham o direito a permanecer por até oito dias. Fragilizados por uma longa e extenuante viagem, muitos chegavam ali enfermos ou ali contraiam alguma doença. Eles eram atendidos e triados na enfermaria, que encaminhava aqueles com doenças contagiosas (crupe, febre tifoide, febre amarela, varíola) para o Hospital de Isolamento; os portadores de moléstias crônicas ou de tratamento demorado (tuberculose, enfermidade do aparelho circulatório) iam para a Santa Casa de Misericórdia; enquanto as parturientes com risco de vida, eram encaminhadas para Maternidade, e os que apresentavam quadro de demência, para o Hospital dos Alienados (SECRETARIA DOS NEGÓCIOS, 18981904). No conjunto dos anos de 1898 a 1904 – para os quais se tem informações mais completas dentre os 10 anos privilegiados para a análise – dos 2.370 pacientes atendidos na enfermaria da 8 Durante a década de 1890, a taxa bruta de natalidade alcançou a cifra de 40‰, compensando a também alta taxa bruta de mortalidade de 28‰ (BASSANEZI, 2014).

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hospedaria, 69,5% receberam alta, 17,2% foram encaminhados para hospitais e 10,9% faleceram ali mesmo. Os que foram a óbito eram predominantemente crianças (cerca de 90%) que não tiveram a mínima chance de experimentar o viver na terra hospedeira. Faleciam vítimas de moléstias do aparelho digestivo (principalmente enterite e enterocolite), de moléstias do aparelho respiratório (pneumonia, broncopneumonia, bronquite), de sarampão (Tabelas 1, 2 e 3). Tabela 1 – Imigrantes atendidos na enfermaria da Hospedaria de Imigrantes (São Paulo – 1898-1904)9. Ano

Entrados na enfermaria

Receberam alta

Encaminhados para hospitais

Faleceram na enfermaria

Permaneceram em tratamento

1898

162

124

10

26

2

1899

355

288

23

37

7

1900

115

69

17

28

1

1901

848

624

83

94

47

1902

566

451

61

54

1903

92

5

83

4

1904

232

86

130

16

Total

2370

1647

407

259

57

Fonte: Secretaria dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas. Relatórios 1898-1904.

Tabela 2 – Óbitos ocorridos na enfermaria da Hospedaria de Imigrantes por grupo etário. (São Paulo – 1898-1904)10. Ano

Menores de 12 anos

Maiores de 12 anos

Total

% de óbitos de menores de 12 anos de idade

1898

23

3

26

88,5

1900

26

2

28

92,9

1901

90

4

94

95,7

1902

51

3

54

94,4

1903

2

2

4

50,0

1904

15

1

16

93,8

Total

193

29

222

86,9

Fonte: Secretaria dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas. Relatórios 1898-1904.

Tabela 3 – Óbitos ocorridos na enfermaria da Hospedaria de Imigrantes por causa morte. (São Paulo – 1898-1904)11. Causa de morte

% de óbitos

Moléstias do aparelho digestivo

24,0

Moléstias do aparelho respiratório

16,3

Sarampão

12,9

Mal definida (“morte súbita”)

13,7

Outras moléstias

33,1

Total

100,0

Fonte: Secretaria dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas. Relatórios 1898-1904.

9 No ano de 1901 houve um aumento sensível de entrada de imigrantes devido à piora das condições dos camponeses na Itália, à restrição à imigração na República Argentina e ao aumento da imigração espontânea (SECRETARIA DOS NEGÓCIOS, 1901). A queda do movimento imigratório, no ano de 1903, reflete a proibição da imigração subsidiada ao Brasil por parte da Itália em 1902. 10 Não há informação por grupo etário para o ano de 1899. 11 Não há informação por causa de morte para o ano de 1898. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 137-152, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Se a busca por uma vida melhor foi interrompida para uma parcela dos imigrantes nos primeiros dias de Brasil, muitos daqueles que se estabeleceram no Brás e seus filhos brasileiros não tiveram melhor sorte: 12.762 deles foram vítimas de enfermidades que os levaram a óbito, entre 1895 e 1904. A ausência de informações censitárias impede a elaboração de cálculos das taxas brutas de mortalidade. Contudo, as taxas de mortalidade infantil12 passíveis de serem calculadas com as informações disponíveis, assim como o cálculo das proporções de óbitos por idade, deixam entrever a situação calamitosa da mortalidade no Brás, na virada do século XIX para o século XX. A taxa média de mortalidade infantil no Brás entre 1896 e 190413 alcançou a cifra de 246,6‰, maior que na cidade de São Paulo como um todo (226,6‰) e nas regiões cafeeiras que receberam um volume grande de imigrantes e que sofreram com surtos de febre amarela, como é o caso de Campinas e de Ribeirão Preto: 193,7‰ e 185,4‰ em média, respectivamente (Tabela 4). Nesses municípios, as taxas de mortalidade infantil, embora altas, eram menores que as do Brás e da capital como um todo, muito provavelmente porque a alimentação nesses locais era melhor que na capital14 e, embora as moradias fossem muitas vezes precárias e o trabalho árduo, a aglomeração de pessoas era bem menor nas fazendas de café e nos núcleos urbanos do interior. A mortalidade infantil no Brás superou, inclusive, a média da vivenciada pelo continente europeu em meados do século XVIII (200‰), como apontada por Livi-Bacci (1999). No ano de 1898, quando a cidade de São Paulo foi atingida por uma epidemia de varíola, a taxa de mortalidade infantil subiu para 260,4‰ e a do Brás atingiu 280,3‰. Os casos de varíola no Brás, nesse ano, corresponderam a 13,6% dos óbitos da capital e destes 60% ceifaram a vida de crianças entre 0 e 5 anos de idade15. Tabela 4 – Taxas de mortalidade infantil (1896-1904). Ano

Brás

Cidade de São Paulo

Campinas

Ribeirão Preto

1896

266,4

250,5

297,7

224,2

1897

243,8

231,1

224,8

182,7

1898

280,3

260,4

203,3

172,6

1899

200,1

162,7

183,6

166,2

1900

213,4

206,9

182,2

189,0

1901

273,9

234,4

188,1

197,2

1902

246,2

238,2

177,1

221,0

1903

249,6

220,4

141,3

164,1

1904

245,6

229,8

145,6

151,3

Média

246,6

226,0

193,7

185,4

Fonte: Repartição de Estatistica e do Archivo do Estado de São Paulo (1896-1907).

12 Número de óbitos de menores de um ano de idade por mil nascidos vivos, em determinado espaço geográfico e determinado período de tempo. 13 Para 1895, faltam informações necessárias para o devido cálculo. 14 Nas fazendas cafeeiras, a família imigrante podia contar com uma parcela de terra para o cultivo de milho, feijão e arroz, uma pequena horta e criação de animais de pequeno porte para sua subsistência. 15 Os grupos etários neste trabalho seguem a forma com que aparecem no documento original.

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Se muitíssimas crianças não sobreviveram ao primeiro ano de vida, outras não chegaram a completar mais que cinco anos de idade. As estatísticas mostram que crianças de 0 a 5 anos de idade responderam por 75% dos óbitos ocorridos no Brás no período (Tabela 5) – uma proporção muito maior do que a observada para o conjunto da cidade de São Paulo para as décadas de 1890 e de 1900 (55%) e para Campinas, entre 1890 e 1900 (47%), época em que este município passou por vários surtos de febre amarela que dizimaram muitas vidas infantis entre 0 e 4 anos de idade (BASSANEZI, 2014; MORAES, 2014). Tabela 5 – Mortalidade por grupo de idade. Idade

1895

1896

1897

1898

1899

1900

1901

1902

1903

1904

Total

0a5

81,9

75,1

76,5

75,9

74,1

72,9

78,1

72,6

72,5

74,0

75,6

6 a 10

2,2

3,6

3,2

2,1

2,9

1,9

3,1

2,5

0,7

1,8

2,5

11 a 15

0,9

1,4

0,8

0,7

0,8

1,1

1,3

0,7

1,0

1,0

1,0

16 a 20

1,6

1,5

2,3

1,0

1,1

1,9

1,0

0,9

1,2

2,3

1,5

21 a 30

2,8

4,4

3,9

4,9

4,2

4,5

2,9

4,2

5,0

3,7

4,0

31 a 40

3,1

3,8

4,7

5,0

4,3

3,9

3,9

4,7

5,7

4,7

4,3

41 a 50

2,8

3,3

3,1

3,5

4,1

4,6

3,7

3,8

3,3

3,1

3,4

51 a 60

1,8

2,3

2,3

3,0

3,7

4,7

2,8

3,4

4,6

3,5

3,1

61 a 70

1,6

2,1

1,1

1,8

1,8

2,9

1,6

2,6

2,7

2,3

2,0

71 a 80

0,6

1,0

1,0

1,4

1,1

1,1

1,4

1,8

1,7

1,4

1,2

80 a 100

0,3

0,5

0,0

0,4

0,8

0,6

0,3

0,8

0,7

1,3

0,5

>100

0,0

0,1

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

ignorado

0,5

0,9

1,0

0,3

1,1

0,0

0,0

2,0

0,9

1,1

0,8

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Fonte: Repartição de Estatistica e do Archivo do Estado de São Paulo (1896-1907).

No ano de 1895, o de maior entrada de imigrantes no estado de São Paulo, os óbitos de crianças dessa faixa etária no Brás chegaram a mais de 80% no conjunto de óbitos registrados (Tabela 4). Se à boca pequena o povo dizia que “S. Paulo não é uma cidade para creanças e nem velhos” (DIRECTORIA DO SERVIÇO SANITARIO, 1905, p. 25), o Brás muito menos ainda. Essas crianças eram vítimas, principalmente, de moléstias do aparelho digestivo (gastroenterites, enterites e enterocolite), responsáveis por cerca de 1/3 dos óbitos, causados normalmente por ingestão de alimentos e água contaminados, característicos das épocas quentes, e por vários outros alimentos inadequados servidos às crianças (Tabela 6). Em ordem decrescente de grandeza vinham, em seguida, as moléstias do aparelho respiratório (bronquites, broncopneumonia e pneumonia), próprias de épocas de clima mais frio, que junto às anteriores ceifaram a vida de mais da metade das crianças nessas idades. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 137-152, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Tabela 6 – Causa de morte de 0 a 5 anos de idade.Brás 1895-1904. Causa de morte

%

Moléstias especiais dos recém-nascidos

7,9

Mortes violentas

0,9

Moléstias infecciosas e epidêmicas

8,1

Moléstias generalizadas

1,8

Moléstias do sistema nervoso

8,9

Moléstias do aparelho circulatório

1,0

Moléstias do aparelho respiratório

23,2

Moléstias do aparelho digestivo e anexos

34,5

Moléstias do aparelho genito-urinário

0,6

Moléstias da pele e do tecido celular

0,3

Moléstias mal determinadas

11,8

Sem declaração de moléstia

1,1

Total

100,0

Fonte: Repartição de Estatistica e do Archivo do Estado de São Paulo (1896-1907).

Em menor escala, as crianças morriam das doenças do sistema nervoso (meningite e convulsões) e das moléstias infecciosas (febre tifoide e sarampão). Doenças especiais dos recém-nascidos igualmente tiravam a vida de bebês em poucos minutos, horas ou dias após seu nascimento. No seu conjunto, poucas crianças foram a óbito por morte violenta, mas vale chamar a atenção para o dado de que essas mortes eram provocadas por queimaduras, demonstrando que a ausência de cuidados às crianças não se restringia apenas à má alimentação (Tabela 6). Paralelamente ao número elevado de crianças que perdiam a vida, soma-se um volume alto de seres gerados, que não chegaram a ver a luz do dia, pois nasceram mortos (1.200 no período analisado). Separando os óbitos de crianças de 0 a 5 anos por nacionalidade, e extraídos o número dos falecidos por “moléstias especiais dos recém-nascidos”, observam-se algumas poucas diferenças na proporção das causas de morte entre as crianças nascidas no Brasil e as nascidas no exterior. Os números indicam que os estrangeiros apresentavam porcentagens de óbito um pouco mais elevadas que os brasileiros quanto às moléstias infecciosas e epidêmicas, as generalizadas, e as do aparelho respiratório e digestivo, e e porcentagens menores nas demais causas, principalmente no que tange às moléstias do sistema nervoso, predominantemente as convulsões e meningites (Tabela 7). As crianças imigrantes, além de enfrentarem uma longa e penosa viagem que as debilitavam, confrontavam em terras paulistanas condições ambientais distintas da terra natal. Fragilizadas, elas sentiam a mudança de clima, a falta de resistência a determinadas doenças, as duras

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condições de vida encontradas no bairro, o que aumentava as chances de irem a óbito. Tal fato, porém, não significa que as nascidas no Brasil também estivessem isentas de falecerem em proporções altas das mesmas moléstias que mais ceifavam as estrangeiras (Tabela 7). Tabela 7 – Óbitos de crianças de 0 a 5 anos de idade segundo a nacionalidade. Brás 1895-1904. Causa de morte

Brasileira (%)

Estrangeira (%)

Mortes violentas

1,1

0,8

Moléstias infecciosas e epidêmicas

8,3

9,4

Moléstias generalizadas e diásteses

1,0

2,8

Moléstias do sistema nervoso e órgãos da sensibilidade

11,1

8,1

Moléstias do aparelho circulatório

0,7

1,5

Moléstias do aparelho respiratório

24,9

25,5

Moléstias do aparelho digestivo e anexos

36,8

38,1

Moléstias do aparelho genito-urinário

0,9

0,4

Moléstias da pele e do tecido celular

0,4

0,3

Moléstias dos órgãos da locomoção

0,0

0,0

Moléstias mal determinadas

13,2

12,3

Sem declaração de moléstia

1,5

0,8

100,0

100,0

Total

Fonte: Repartição de Estatistica e do Archivo do Estado de São Paulo (1896-1907).

A alta mortalidade de crianças no Brás era justificada “pela densidade de sua população, em geral constituída de gente pobre, mal alojada, mal alimentada, pouco instruída e refratária a preceitos de higiene”, e pela ignorância das mães quanto aos princípios de profilaxia (DIRECTORIA DO SERVIÇO SANITARIO, 1903, p. 112-113). Os anos foram passando e essa situação parece não ter se modificado, pois na terceira década do século XX as autoridades sanitárias ainda continuavam apontando como base para os altos índices de mortalidade infantil a má alimentação das crianças, o trabalho da mãe fora do lar, a insalubridade da habitação, a gestação mal conduzida, doenças hereditárias, incompetência das parteiras, ignorando a falta de participação do poder público: “Esses óbitos são devidos, sem dúvida, em grande parte, á incúria das mães e á falta absoluta das rudimentares noções de hygiene-infantil, noções estas, que necessitam ser administradas á população baixa onde esses falecimentos se contam em maior número” (SERVIÇO SANITÁRIO, 1924, p. 98). De modo geral, em todas as faixas etárias morriam mais homens que mulheres (55% em média), porque eles eram maioria na população local e porque os homens jovens e adultos “em idade produtiva era o grupo de maior mobilidade dentro da população em decorrência de suas atribuições no processo de trabalho e na organização familiar” (TELAROLLI JR., 2003, p. 30), ou seja, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 137-152, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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eles circulavam pelos locais mais movimentados e, portanto, estavam mais expostos às doenças transmissíveis que levavam ao óbito. As mulheres, por sua vez, além de enfrentarem as mesmas enfermidades que atacavam os homens em grandes proporções, eram ainda vítimas das moléstias que conduziam à mortalidade materna, principalmente aquelas entre 15 e 30 anos. Tabela 8 – Causa de morte de maiores de 5 anos idade. Brás 1895-190416. Causa de morte

%

Marasmo senil

2,4

Mortes violentas

2,8

Moléstias infecciosas e epidêmicas

20,9

Moléstias generalizadas

4,7

Moléstias do sistema nervoso

8,3

Moléstias do aparelho circulatório

18,6

Moléstias do aparelho respiratório

14,5

Moléstias do aparelho digestivo e anexos

14,2

Moléstias do aparelho genito-urinário

3,4

Moléstias da pele e do tecido celular

0,9

Moléstias dos órgãos da locomoção

0,4

Moléstias mal determinadas

5,3

Sem declaração de moléstia

3,7

Total

100,0

Fonte: Repartição de Estatistica e do Archivo do Estado de São Paulo (1896-1907).

Entre os óbitos de pessoas maiores de cinco anos (Tabela 8), predominavam os provocados por moléstias infecciosas e epidêmicas (20,9%) e, entre estes, a tuberculose respondia por quase 3/4 dos mesmos. Os restantes deviam-se à febre tifoide, à malária e, em menor escala, à varíola. Em seguida, vinham as moléstias do aparelho circulatório (principalmente as afecções orgânicas do coração), do aparelho respiratório (com predomínio da pneumonia), do aparelho digestivo (preponderando as gastroenterite e enterite) e, em menor escala, outras que também ceifavam a vida de muitos adultos, homens e mulheres. Como era de se esperar, a sazonalidade dos óbitos no Brás no decorrer do ano seguia tendência semelhante à observada na cidade de São Paulo. O final da primavera e os meses de verão, com temperaturas altas, concentravam a maior parte das mortes, sobretudo os meses de dezembro e janeiro. O clima quente contribuía para a proliferação de micróbios causadores de doenças do aparelho digestivo, a principal causa dos óbitos das crianças. No mês de fevereiro – por ser mais curto e de certa forma por seguir o pico dos óbitos dos meses que o precediam – e nos meses de inverno e início da primavera, o volume de mortes diminuía um pouco. No outono e 16 Nesta tabela não estão computados os dados para os anos de 1896 e 1897.

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inverno eram as enfermidades do aparelho respiratório e circulatório que faziam mais vítimas, levando a óbito aqueles mais debilitados (Gráfico 1). Se as alterações de temperatura elevavam a incidência da tuberculose e de outras enfermidades do aparelho respiratório, como bronquite, broncopneumonia e pneumonia, a péssima qualidade da água, a precariedade da rede de esgoto, o acúmulo do lixo, e a proliferação de moscas e ratos disseminavam a malária e a febre tifoide na população local. A isso se somava a ausência de assistência à saúde, contribuindo para manter alta a morbidade e a mortalidade dos homens e mulheres, crianças e adultos do Brás. No Brás, as melhorias quanto à saúde vieram muito lentamente com o passar do tempo. Obras de saneamento, vigilância e fiscalização sanitária, imunização, e controle de vetores contribuíram para o declínio da incidência de óbitos, principalmente os causados pela febre tifoide, pela malária e pela varíola. No caso da varíola, as campanhas de vacinação, de medidas de desinfecção e isolamento foram intensas no início do século XX; mesmo assim, ela voltou a ocorrer de forma epidêmica em 1912; já a febre tifoide reapareceu no Brás no início dos anos 1910, período em que este local passava por uma deterioração muito grande (BASSANEZI, 2014). Gráfico 1 – Sazonalidade dos óbitos. Brás 1895-1904.

Fonte: Repartição de Estatistica e do Archivo do Estado de São Paulo (1896-1907).

A mortalidade infantil e os óbitos por tuberculose, por sua vez, mantiveram-se altos por mais tempo, dada à tênue ação oficial específica na redução de ambas. A alta mortalidade de crianças surtiu pouco impacto na adoção de políticas de saúde. As autoridades governamentais se empenharam mais em controlar as epidemias e doenças que pudessem prejudicar a política imigratória e a cafeicultura (RIBEIRO, 1991; TELAROLLI JR., 1996).

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Considerações finais

O olhar sobre as estatísticas de mortalidade da Hospedaria de Imigrantes e, sobretudo, as relativas ao bairro do Brás, nos dez anos que vão de 1895 a 1904, ainda que um tanto nebuloso, revela, de um lado, que a viagem fatigante, a aglomeração e a alimentação precária nos navios e nos trens que transportavam os imigrantes a São Paulo, juntamente com a aglomeração na própria Hospedaria de Imigrantes, debilitavam muito a saúde do imigrante, levando muitos a óbito. Por outro lado, a vivência de pobreza e miséria no bairro paulistano do Brás, enfrentada pelos imigrantes e seus descendentes, provocou uma mortalidade bastante elevada, semelhante a que foi vivenciada na Europa um século antes, e maior que a enfrentada pela cidade de São Paulo como um todo e regiões cafeeiras do interior paulista, onde os imigrantes também eram muito numerosos. Em outros termos, o adensamento populacional provocado pelo movimento imigratório, pelas condições ambientais ruins, pela carência de assistência à saúde e de serviços médicos, e pela dieta precária fizeram com que os moradores desse bairro convivessem, naquele momento, com a alta morbidade e mortalidade, principalmente de crianças. O Brás, um bairro que se urbanizava a passos largos, onde fábricas e oficinas eram instaladas e o comércio expandia-se, vivia, na época, um padrão de mortalidade que os demógrafos denominam de pré-transicional. Um padrão de mortalidade muito elevado, nada condizente a uma capital que tinha muito orgulho de seu desenvolvimento urbano, econômico e sociocultural, para o qual os muitos imigrantes deram sua saúde e suas vidas, mas do qual poucos puderam usufruir.

Referências BASSANEZI, M. S. C. B. Nascimento, vida e morte na fazenda: alguns aspectos do cotidiano do imigrante italiano e de seus descendentes. In: DE BONI, L. A. (Org.). A presença italiana no Brasil. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia; Torino: Fondazione Giovanni Agnelli, 1990. p. 337-356. ______. Imigração e mortalidade na terra da garoa. São Paulo, final do século XIX e primeiras décadas do século XX, XIX. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 19, 2014, São Pedro. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2014. DIRECTORIA do Serviço Sanitário. Annuário Estatístico da Secção de Demographia, 1902. São Paulo: Typographia do Diário Official, 1903.

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Imigração estrangeira, economia e mercado de trabalho na Amazônia brasileira entre o final do século XIX e início do século XX Foreign immigration, economy and labor market in the Brazilian Amazon between the end of the nineteenth century and the beginning of the twentieth century Pedro Marcelo Staevie Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)

Resumo

Abstract

O presente artigo busca demonstrar a importância da imigração estrangeira na formação social e econômica da Amazônia brasileira, sobretudo no tocante à sua relevância na conformação de um mercado de trabalho regional. Seja no lado da oferta, seja pelo lado da demanda, os imigrantes estrangeiros tiveram um papel fundamental neste mercado durante as últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX.

The present article seeks to demonstrate the importance of foreign immigration in the social and economic formation of the Brazilian Amazon, especially in relation to its relevance in the formation of a regional labor market. Whether on the supply side or on the demand side, foreign immigrants played a key role in this market during the last decades of the nineteenth century and the first decades of the twentieth century.

Palavras-chave: Amazônia; Imigração; Estrangeiros; Mercado de trabalho.

Keywords: Amazon; Immigration; Foreigners; Labor market.

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I n t r o d u ç ã o

C

onforme Emmi (2009), um retrato da imigração internacional histórica na Amazônia pode ser encontrado nos dados sobre o movimento imigratório no porto de Belém no início do século XX. Estes dados, compilados por Emmi (2013), aparecem no Anuário

Estatístico do Brasil. De acordo com esta fonte, entre 1908 e 1910 entraram pelo porto de Belém aproximadamente 13,5 mil estrangeiros, das mais diversas nacionalidades. Destacam-se os portugueses (48,67%), os espanhóis (15,98%), os ingleses (7,18%), os turcos-árabes (4,69%) e os italianos (4,15%). Já Daou (2000) afirma que, pelo porto de Belém, somente em 1907 mais de 36 mil pessoas entraram no estado, das quais cerca de 11.600 permaneceram na capital, absorvidas pelas atividades comerciais e industriais. Boa parte destas pessoas era oriunda de outros países. Muito provavelmente esse grande afluxo de estrangeiros para a Amazônia está atrelado ao crescimento econômico da região, calcado na economia da borracha. Nesse período, a Amazônia vive o boom da atividade gomífera e esta leva a desdobramentos econômicos e sociais importantes, tais como a expansão comercial, fabril e de serviços, além de um processo de intensa expansão urbana das principais cidades da região. Já em 1842, a borracha figurava como o terceiro produto no total das exportações brasileiras, chegando ao topo da lista nos anos de 1847 e 1860, o que levou a uma exaltação sobre o ouro branco da Amazônia, e contribuiu para a expansão das imigrações em direção à região (estrangeiros e brasileiros). Entretanto, a riqueza da borracha concentrava-se nas mãos de poucos, como os seringalistas (donos dos seringais). Estes, segundo Santos (2004, p. 35-36), “se juntavam aos estrangeiros ingleses, franceses, alemães, portugueses e outros a quem geralmente confiavam a administração dos seus negócios”. A título de exemplo da riqueza gerada em Manaus durante o período do ciclo da borracha, a primeira casa bancária do estado do Amazonas fundada naquela época foi uma filial da London Bank for South America, quando ainda não existia nenhuma agência bancária de qualquer banco nacional na cidade. Nessa época, a empresa Booth Line, com seus transatlânticos, fazia linhas regulares entre o porto de Manaus e o de Liverpool. Segundo Martins e Sochaczewski

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(2014), Manaus, inclusive, torna-se lugar de destino para turistas estrangeiros. Conforme as autoras, em 1914é lançado o livro Brazil and Brazilians, do inglês George James Bruce, no qual este autor, ao fazer referências às cidades brasileiras que deveriam ser visitadas por turistas estrangeiros, cita a capital amazonense. Já Belém, ao final de 1894 era cortada por amplas avenidas e grandes estradas direcionadas aos novos bairros da cidade. Praças ajardinadas, edifícios da administração pública, novas escolas e hospitais constituíam a paisagem urbana nesta cidade de ampla expansão urbana, proporcionada pelos impostos advindos das exportações e das importações. Completavam o conjunto urbano da capital paraense diversos estabelecimentos industriais, casas bancárias e firmas seguradoras, além de companhias de serviços públicos como telégrafos, telefonia, linha de bonde e estradas de ferro. Na estação das docas de Belém, duas companhias inglesas ofereciam, a cada dez dias, viagens para Lisboa, Liverpool, Antuérpia, Nova Iorque, Havre (DAOU, 2000). Entre Belém e Gênova (e também o sentido inverso), a viagem se dava através do vapor Colombo, da empresa Ligure Brasiliana (GONÇALVES, 2012). O embelezamento das duas capitais (Manaus e Belém) resultava de alterações urbanísticas e arquitetônicas estimuladas por legislações que buscavam modernizar os espaços públicos e dotar as construções de certas características estilísticas, “imprimindo, na fachada dos prédios, elegância estética, graciosidade e uma racionalidade condizente com as necessidades de ventilação e higiene exigidas pelo clima”. Para essas transformações, novos materiais de construção chegavam de vários países da Europa, como Itália, França e Portugal, “de onde vinham também muitos dos profissionais que cuidaram de executar as alterações de estilo” (DAOU, 2000, p. 32). Grande parte deles permaneceu definitivamente naquelas cidades após a finalização das obras encomendadas. O período da belle époque amazônica (1880-1910), expressa na transformação urbana modernizante de suas principais capitais, surge em decorrência das expectativas das elites paraense e amazonense entrelaçadas aos interesses de europeus e norte-americanos, visando garantir amplo acesso à borracha e a viabilização do escoamento de estoques de bens industriais (DAOU, 2000). Nesse momento, as elites do Pará e do Amazonas são favorecidas pela crescente utilização da borracha na indústria automobilística. Esta elite acaba por ganhar visibilidade nacional e internacional, auxiliando nos processos de financiamento de obras modernizantes nas duas capitais. Alguns novos bairros foram criados para receber a população imigrante estrangeira. Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de Daou (2000, p. 37), escrevendo sobre Manaus: Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Muitos dos que foram para o Amazonas na década final do século XIX e no início do XX [...] passaram a viver nos novos bairros, nos quais as ruas seguiam o traçado geométrico previsto na carta, livre da tirania dos igarapés e de aspecto mais salubre que o antigo centro. Mesmo a construção das casas refletia um estilo de vida distinto, com uma nítida separação entre os locais de moradia e os de trabalho, valorizando-se as residências situadas em amplos terrenos ou chácaras. No estilo das casas e na disposição dos jardins e pomares, expressava-se a diversidade das origens dos que ali passaram a viver: ingleses, americanos, libaneses e, também, exportadores de borracha, médicos brasileiros.

E segue: A regularidade ou o ponto em comum entre todos esses recém chegados advinha tanto de sua posição de estrangeiros quanto de seu comportamento mais marcadamente individualista, o que se expressava nos modelos familiares e nas trajetórias dos filhos, comparativamente ao que predominava entre as famílias já estabelecidas. Formava-se um conjunto ruidoso e cosmopolita (DAOU, 2000, p. 37).

Ainda no tocante a Manaus, a autora aponta a criação de vários clubes sociais por parte dos estrangeiros: o Bosque Clube dos Ingleses, o Rudder Clube dos alemães e os clubes portugueses. Também em Manaus e Belém são criados clubes libaneses, e em Belém existiu, naquele momento, uma arena de touradas espanholas, onde se encontra hoje a praça Batista Campos, região central da cidade. Por outro lado, algumas produções científicas abordam este período tendo como centralidade o trabalho na análise histórica da época – é o caso da dissertação de mestrado de Maria Luiza Ugarte Pinheiro (1996), A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus (18991925). Além de outros aspectos, como as condições laborais dos estivadores manauaras, a autora aborda a organização política da categoria, resgatando seu processo de organização, que contou com a participação de trabalhadores imigrantes estrangeiros, “as greves e suas dinâmicas, as relações entre lideranças e categorias e outros aspectos” (TELES, 2012, p. 24). Já a dissertação de mestrado de Luciano Everton Costa Teles (2012), A vida operária em Manaus:imprensa e mundos do trabalho (1920), teve como objetivo central compreender o universo do trabalho e, em especial, a organização e luta operária em Manaus, no início da década de 1920, a partir das páginas do jornal Vida Operária, importante jornal que circulou naquele ano na capital amazonense. O autor procurou, através deste periódico, “identificar as dimensões (tamanho, composição, características) do universo do trabalho e dos trabalhadores ur-

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banos de Manaus, mapeando ainda as demandas e denúncias acerca das condições de vida e trabalho” (TELES, 2012, p. 25). Buscou, ainda, analisar a atuação do jornal Vida Operária na organização, conscientização e luta dos trabalhadores de Manaus, identificando, por seu intermédio, “os dilemas organizacionais, as disputas internas, as influências de correntes teóricas no interior do movimento político dos trabalhadores amazonenses” (TELES, 2012, p. 25).

Os imigrantes estrangeiros na economia amazônica

Os imigrantes estrangeiros distribuíam-se em diversas atividades econômicas. Os ingleses se destacaram na construção de portos, produção de energia, telefonia, telegrafia, saneamento básico, no comércio e no setor de concessão de crédito, onde tinham a concorrência dos norte-americanos e dos franceses. Judeus, africanos do norte e espanhóis se voltaram principalmente para as atividades de escritório e contabilidade. Já os portugueses se encontravam em maior número nas atividades comerciais. Segundo Emmi (2009, p. 265), “os estrangeiros de modo geral deram significativa contribuição na organização dos serviços [...], numa região que dava os primeiros passos na esfera do capital mercantil”. Santos (1980), analisando dados de recenseamentos, aponta uma reduzida presença de estrangeiros na Amazônia brasileira entre 1872 e 1900, tendo inclusive notado uma acentuada queda em números absolutos no período. Somente entre 1900 e 1920 é que a imigração estrangeira se tornou mais expressiva em números absolutos e em proporção ao total da população. Tabela 1 – Número de estrangeiros residentes na Amazônia (1872-1920). Anos

Número de estrangeiros

% sobre a população total

1872

8.728

2,6

1890

7.316

1,5

1900

7.709

1,1

1920

39.723

2,9

Fonte: Santos (1980).

Santos (1980) afirma ainda poder haver um equívoco quanto ao número de estrangeiros em 1920 por erros no recenseamento, mas destaca que, entre 1908 e 1911, entraram no porto de Belém 19,5 mil imigrantes estrangeiros, especialmente das nacionalidades mencionadas na tabela abaixo: Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Tabela 2 – Imigração estrangeira no quadriênio 1908-1911. Nacionalidade

Imigrantes

%

Portugueses

9.008

46,3

Espanhóis

2.809

14,4

Ingleses

1.294

6,6

Turco-árabes

974

5,0

Franceses e alemães

907

4,7

Italianos

830

4,3

Norte-americanos

564

2,9

Outros

3.081

15,8

Total

19.467

100,0

Fonte: Santos (1980).

Antes mesmo do ciclo da borracha, a região já contava com um importante contingente de imigrantes de outros países distantes. Fugindo das perseguições, discriminações e até mesmo da fome, judeus sefaraditas marroquinos, por exemplo, assim como outros grupos étnicos aportaram na Amazônia a partir da segunda década do século XIX. A maioria destes imigrantes eram procedentes de Tânger, Fez, Rabat, Sale, Tetuan e Marrakesh (SOUZA, 2009). Segundo o Centro de Memória da Amazônia (CMA, 2011) Belém é considerada a capital brasileira com maior concentração de judeus marroquinos de tradição sefaradim. Em 1808, o príncipe regente D. João VI abriu os portos do Brasil às potências estrangeiras (a chamada abertura dos portos às nações amigas), fato que admitia o ingresso de pessoas de religião não católica no país. Em 1810, o tratado de comércio e navegação assinado com a Inglaterra, registrava expressamente em seu artigo 12 que estrangeiros residentes nas possessões portuguesas não seriam perseguidos ou molestados (CMA, 2011). Esse conjunto de leis, apesar de importante, não explica, de todo, o interesse de judeus marroquinos pela região. Nas últimas décadas do século XIX foram lançados em vários países anúncios buscando atingir trabalhadores e investidores para a Amazônia brasileira. No imaginário dos estrangeiros, as representações da Amazônia oscilavam entre um ambiente hostil e inseguro, e o El dorado, abundante em oportunidades de enriquecimento (CMA, 2011). Assim como outros grupos de imigrantes, os judeus sefaradim também contavam com outra fonte de informação e estímulo – a rede de parentescos e até mesmo de amizades que se formava em Belém e Manaus. Conforme aponta texto do CMA (2011) muitas cartas foram trocadas entre os que emigraram e os que permaneceram. Nestas correspondências, as notícias de enriquecimento e prosperidade encorajavam jovens judeus a se aventurar pelas cidades da Amazônia, principalmente nos grandes centros de Manaus e Belém. Mas não apenas nas

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capitais. Em Santarém (PA) também se verificou a chegada de judeus sefaradim, muitos deles exercendo atividades comerciais na cidade, importante entreposto entre as duas grandes capitais da borracha. Ainda segundo texto do Centro de Memória da Amazônia, no início do século XX, já estabelecido, esse grupo de imigrantes se preocupou em consolidar a comunidade regional e nacionalmente. Já os sírio-libaneses chegaram com mais intensidade entre o final do século XIX e início do século XX, no auge da exploração amazônica da borracha. Segundo Knowlton (1961), entre o final do século XIX e o início da Primeira Guerra Mundial, a imigração síria e libanesa no país cresceu, registrando 11.101 entradas apenas em 1913. Segundo o mesmo autor, este movimento intensificou-se na década de 1920, com cerca de 5 mil entradas anuais. Os principais portos de entrada desses imigrantes eram Rio de Janeiro, Santos e Recife. O porto de Belém era a principal porta de entrada dos sírios e libaneses que se direcionavam para os estados da Amazônia (ZAIDAN, 2001). Ainda que não na mesma magnitude de estados do sul e sudeste, estes imigrantes foram importantes na composição demográfica dos estados amazônicos. Em 1920, somados os três maiores receptores amazônicos destes imigrantes (Pará, Amazonas e Acre), o censo aponta aproximadamente 3 mil indivíduos. Analisando os Censos Demográficos de 1920 e 1940, Emmi (2013) aponta que Pará, Mato Grosso, Amazonas e Acre encontravam-se entre os 12 estados com maior número de sírios e libaneses residentes em seus territórios. Em 1920, o Pará abrigava 1.460 destes imigrantes, ocupando a sétima posição geral; o Mato Grosso, 1.232; o Amazonas, 811; e o Acre, 627. Zaidan (2001, p. 64), mostra que a propaganda sobre a Amazônia brasileira era intensa nos portos de emigração: Era bastante divulgado nos portos marítimos, que o Estado do Pará e a Região Amazônica eram prósperos e ricos devido à época do ciclo da borracha. Em Beirute já informavam que o Pará exportava cacau, castanha, tabaco, borracha, etc., mais que a exportação da Bolívia, Guatemala, Peru, Paraguai e até o México. A propaganda que faziam era a de que o Pará aumentava sua população por ano em 20.000 habitantes.

Entre as profissões destes imigrantes, destaca-se a de comerciante/negociante – cerca de 85% dos passageiros (EMMI, 2013). Mas outras profissões aparecem nos relatórios: vendedor ambulante, industrial, ourives, alfaiate, caldeireiro, jornaleiro, seringueiro, agricultor, jornalista, clérigo e cozinheiro. Para a autora, cabe destacar a intensa mobilidade destes imigrantes sírio-libaneses (comerciantes), que se deslocavam dentro da própria região ou mesmo para portos do Nordeste e do Sudeste.

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Francisco (2016), analisando dados do Arquivo Nacional sobre pedidos de naturalização de sírios e libaneses no Brasil nas primeiras décadas do século XX, nos dá alguns exemplos desses processos de imigrantes residentes na Amazônia brasileira, em estados como Pará e Acre. Nessa análise, o autor apresenta algumas características dos imigrantes, como demonstramos abaixo. Nascido em Jounich, no Líbano, em 1879, Alexandre Nain Auad pede naturalização em 1925. É identificado através da tatuagem de uma cruz no dorso da mão esquerda. Dentista, estabelecido em Belém, casou em 1909 com Zaia Auad, filha de Elias Najun e Joana Maron. Foi testemunha do casamento Jamil Salim (FRANCISCO, 2016). Chegado ao Brasil em 1913, aos 9 anos de idade, Jaber Calil Nadaf, comerciante em Manaus, solicitou a naturalização aos 35. Dono de imóveis na cidade, casado e com depoimento de três pessoas idôneas, teve seu pedido deferido em maio de 1942 pelo interventor federal no Amazonas. Já Domingos Assmar solicitou nacionalização em Rio Branco (AC), em 1939. Consta que chegou no navio alemão Amazônia pelo porto de Belém em 17 de outubro de 1901 (FRANCISCO, 2016). Muitos dos imigrantes sírio-libaneses foram pioneiros como industriais, caso da Indústria de Pneumáticos do Pará, dos irmãos Bitar, de origem libanesa, fundada em 1897. Outro importante empreendimento era o Curtume Americano, do libanês Jorge Homci. A fábrica possuía 100 operários e exportava seus produtos a outros estados e ao exterior. As empresas criadas por libaneses eram de diferentes setores, como perfumaria, pneus e borracha, tinturas para cabelos, sabão, alimentos, ferragens, velas, papel e celulose, móveis, etc. Destacam-se ainda as empresas de beneficiamento de castanha, inclusive no interior. Atuavam ainda como trabalhadores no comércio e na indústria nascente, apoiados por uma já existente rede social que os ajudou na inserção no mercado de trabalho urbano local. Também muitos atuavam como jornalistas, advogados, economistas, administradores de empresas, engenheiros, dentistas, médicos, professores, escritores e músicos. Quanto aos italianos, segundo Emmi (2013) a motivação principal para o deslocamento em direção à Amazônia foi a busca pelas riquezas decorrentes da exploração da borracha. De acordo com o texto retirado do site do CMA (2011) um grupo significativo entre os italianos era formado por religiosos que vinham por determinação de suas respectivas congregações, tendo esses imigrantes deixado suas marcas em estabelecimentos de ensino e hospitais. Outro grupo importante era composto por arquitetos, pintores, músicos e demais artistas.

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Embora o número de imigrantes que se dirigiram para a Amazônia seja menos expressivo se comparado com os que foram para o Sul e Sudeste do Brasil, evidências empíricas permitem agrupar os imigrantes italianos em dois grandes segmentos: os que foram para as colônias agrícolas, através de imigração subsidiada, e os que se dirigiram para as cidades de forma espontânea. A imigração dos dois segmentos ocorreu simultaneamente, entretanto, diferenciadas quanto às razões norteadoras do movimento migratório, à composição social, à origem regional e às áreas de destino dentro da Amazônia. Os imigrantes que se dirigiram para as colônias agrícolas no Pará eram formados por grupos familiares de agricultores que, em 1899, em navios da companhia La Ligure Brasiliana, deixaram a Itália para povoar as colônias agrícolas de Anita Garibaldi e Ianetama, localizadas respectivamente às margens da estrada de ferro Belém-Bragança, no atual município de Castanhal, e na colônia modelo de Outeiro, no distrito de Icoaraci, em Belém. Para a colônia Anita Garibaldi, dirigiram-se imigrantes do Vêneto, Lombardia, Piemonte e Emilia Romagna. Para Ianetama, foram italianos do Vêneto, da Campania e da Sicília. Já Para Outeiro, foram colonos do Vêneto. As colônias agrícolas com estrangeiros eram iniciativa do governo da província do Pará, preocupado com a falta de mão de obra para a produção alimentícia, haja vista o grande deslocamento de pessoas das áreas rurais em direção aos seringais para a exploração da borracha (EMMI, 2013). A procedência regional dos italianos que foram para as cidades amazônicas era bastante diversificada. Algumas famílias tinham origem na Itália setentrional, das regiões do Vêneto, Lombardia, Emilia Romagna, Piemonte e Ligúria, ou da Itália central, região do Lazio e da Toscana, e ainda da Sicília. Entretanto, a maioria dos imigrantes (aproximadamente 90%) era oriunda da Itália meridional, principalmente das regiões da Calábria, Basilicata e Campânia, tendo constituído um grupo mais numeroso do que o da colonização dirigida para as colônias agrícolas, assim como com maior continuidade (EMMI, 2013). A origem da maioria dos imigrantes italianos que foram para Amazônia difere do grupo que se dirigiu para o sul do país, oriundos principalmente de regiões do Vêneto e Lombardia. Os italianos se dirigiram principalmente às cidades, fixando-se em Belém, Manaus e em alguns municípios localizados ao longo do rio Amazonas e de seus principais afluentes, por onde circulava o capital mercantil decorrente da economia gomífera. Demasi (2015), além dos residentes em Manaus, elenca famílias italianas que se fixaram em municípios do interior do Amazonas, como Maués (muitos deles produtores, industriais e comerciantes de guaraná), Parintins, Uaupés, Urucurituba e Itacoatiara. Na capital amazonense, Demasi (2015) mostra Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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uma extensa diversidade laboral entre os imigrantes italianos: desde empresários de diversos setores econômicos (dando continuidade aos seus negócios no país de origem), profissionais dos ramos de sapataria, alfaiataria, ourivesaria, funilaria, marmoraria, mercearia, bares, bazares, barbearia, até profissionais liberais como arquitetos, engenheiros, médicos e advogados, e ainda maestros, músicos, pintores, atores e escritores e outros artistas. Assim, percebe-se que os italianos inseriram-se em diferentes setores da economia, proporcionado pelo crescimento urbano que proporcionava condições favoráveis e criava um mercado de atividades de prestação de serviços que acabou atraindo boa parte dos imigrantes que chegavam às cidades (EMMI, 2009). Ainda conforme o Centro de Memória da Amazônia (2011) os imigrantes italianos também tiveram importante participação nos primórdios da indústria paraense, a partir da criação das empresas beneficiadoras de sementes oleaginosas Victoria e Conceição, instituídas na década de 1920”. Vale destacar que muitos dos anúncios dos estabelecimentos comerciais e industriais de propriedade de imigrantes italianos eram redigidos no idioma de origem pátria. O anúncio abaixo, retirado de Demasi (2015, p. 149), é um bom exemplo desta prática: Lattoneria italiana di Francesco Celani. Avenida Eduardo Ribeiro, 57 – Manaos. Questa Ditta, stabilita sin dal 1910, é tra quelle che godono di maggior considerazione in Manaos e di maggior favore fra Il pubblico cittadino. Ottimamente montata, essa si occupa di qualsiasi lavoro attiente al su ramo. Il suo proprietario, signor Francesco Celani, venne in Brasile nel 1900, dal ridente paese di Castelluccio Inferiore, ov’era nato nel 1890. Durante questi 32 anni il signor Celani fu piú volte a visitare la Patria1.

Este anúncio é, como dito, bom exemplo da prática dos comerciantes italianos fazerem a propaganda de seus estabelecimentos na língua materna, o que evidencia seu foco na formação da clientela junto à comunidade de imigrantes italianos, então composta por cerca de 2 mil pessoas apenas em Manaus, e igual número em Belém (CENNI, 2003). Em suma, o número de imigrantes italianos que se dirigiram para a Amazônia não é desprezível: eles foram importantes no mercado de trabalho urbano nas principais cidades da região, em particular em Belém e Manaus. Tanto no lado da oferta, como da demanda, os italianos tiveram participação importante na formação de um mercado de trabalho na Amazônia brasileira no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. 1 Lattoneria italiana de Francesco Celani. Avenida Eduardo Ribeiro, 57 - Manaos. (Tradução livro do autor). Esta empresa, criada desde 1910, está entre as que gozam de maior prestígio em Manaos e maior favor entre os cidadãos. Otimamente montada, cuida de qualquer trabalho que seja relevante para o ramo. Seu dono, o Sr. Francesco Celani, chegou ao Brasil em 1900, da encantadora vila de Castelluccio Inferiore, onde nasceu em 1890. Durante esses 32 anos, o Sr. Celani visitava repetidamente o país.

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No tocante aos movimentos operários, Emmi (2009) aponta que estes imigrantes, muitos deles com inspiração anarquista, cumpriram um importante papel, embora este tipo de estudo mereça maior destaque, ainda carente de maiores aprofundamentos. Outros imigrantes importantes na formação do mercado de trabalho urbano amazônico no período considerado foram os portugueses e os espanhóis, analisados a seguir.

Imigrantes ibéricos na formação do mercado de trabalho na Amazônia Os espanhóis no Pará O censo de 1872 apontava a existência de 158 espanhóis vivendo no Pará, atrás apenas dos portugueses (4.463) e franceses (210). Em número menor que no Pará, encontravam-se ainda, no Amazonas, 35 imigrantes espanhóis, correspondendo à terceira maior colônia de imigrantes estrangeiros no estado, suplantada pelos portugueses (689) e ingleses (56). Conforme aponta Emmi (2013), em 1894 o vice-cônsul da Espanha em Belém apresentou informações que mostravam a existência de 600 espanhóis residindo na cidade, em sua maioria oriunda da Galícia. A partir de então, houve um aumento significativo na entrada de espanhóis no Pará, principalmente para as colônias agrícolas criadas na região bragantina. Estas colônias eram tentativas do governo do Pará em resolver o problema da falta de mão de obra para a produção de alimentos, haja vista que uma importante parcela de pequenos produtores agrícolas se deslocou para os seringais em busca do tão almejado ouro branco. Em 1896, uma lei paraense autorizou o então governador Lauro Sodré a promover a entrada de 100 mil imigrantes do exterior até o ano de 1906. Para Santos (1980), a concorrência do sul acabou prejudicando o alcance desta meta. Entre 1896 e 1900, apenas 13.299 estrangeiros (dos 50 mil esperados) aportaram no Pará, quase todos portugueses e espanhóis. Desses, somente 9.616 teriam idades entre 12 e 45 anos, considerados mais aptos para exercer trabalho. E ainda, 5.407 pareciam não ter nenhum tipo de qualificação, pois em seus registros constava sem profissão declarada (SANTOS, 1980, p. 92). O seguinte trecho do relatório do governador Lauro Sodré, de 01 de fevereiro de 1897, demonstra a política de atração de imigrantes estrangeiros para as colônias agrícolas paraenses por parte do governo do estado: Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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Aos 15 de agosto e aos 15 de novembro de 1895 firmaram-se, na repartição de obras publicas, os primeiros contractos, com cidadãos Fancisco Cepeda, Emilio A.C. Martins e William Brice, para a introdução de 35.000 immigrantes de várias nacionalidades europeias e das Antilhas, e a 21 de Agosto de 1895 foi contractado com o cidadão Julio Benavides representante da companhia oriental de immigração e commercio, a introducçao de 3.000 japonezes (SMITH JÚNIOR & GARVÃO, 2015, p. 175).

O governo do Pará estabeleceu como agentes da introdução de imigrantes no estado Francisco Cepeda, Heliodoro Jaramillo e Emílio Martins, determinando que os contratantes ficassem obrigados a custear a propaganda nos países de potenciais imigrantes. Nessa linha, em 1895 foi editado, em Barcelona, um livro intitulado El Pará, visando atrair espanhóis para o estado. Em 1896, foram introduzidos 3.168 imigrantes espanhóis, dos quais 1.777 partiram para os núcleos agrícolas e 1.368 ficaram na capital. Grande parte dos espanhóis seguiu para os núcleos coloniais de Monte Alegre e Bragança, e outros se empregaram em estabelecimentos industriais da capital e do interior, ou como criados em casas de famílias (CMA, 2011). Os principais núcleos coloniais de imigração espanhola foram os de Benjamim Constant, Ferreira Pena, Jambu-Açu, Marapanim, Santa Rosa e Monte Alegre. Na região do Salgado, no nordeste paraense, muitos imigrantes espanhóis saíram de seus núcleos de destino e foram para outras terras, se instalando em áreas próximas aos núcleos, dando origem a vilarejos como Simão e Mocajuba, às margens do rio Caeté, formados a partir de uma reemigração de algumas famílias de espanhóis e nordestinos no final do século XIX (CMA, 2011). Muitas famílias espanholas que chegaram ao núcleo de Benjamin Constant não resistiram às adversidades encontradas na região e, decepcionadas com as falsas promessas do governo paraense, decidiram retornar à Espanha. Outros migraram para as cidades mais desenvolvidas e mais próximas do núcleo de Benjamim Constant, como Bragança e outros tantos migraram para Belém. Os imigrantes exerceram suas atividades não apenas na agricultura, mas também no comércio de manufaturas, nos transportes de alimentos, e nas usinas de beneficiamento. No tocante aos problemas enfrentados pelos colonos e o consequente esvaziamento das colônias, Martínez (2005, p. 5) afirma que Otros testimonios reflejaban lo difícil que resultaba la vida cotidiana en los primeros meses, sobre todo si no se podía contar con los suministros alimenticios que proporcionaba la administración. En realidad una de las críticas que podemos hacer es que las autoridades no disponían de recursos suficientes para llevar adelante la empresa, mientras que los encargados de la recluta sólo perseguían reunir el número suficiente de candidatos, sin tener en cuenta su capacitación;

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por último; los colonos fueron incapaces de aunar sus esfuerzos para superar las primeras dificultades2.

Alguns dados mostram números referentes à entrada de espanhóis no Pará. Segundo Sarges (2010), o relatório do secretário Manuel Baena, de 1897, apresenta ao governo do Pará a informação de que, no ano anterior, havia sido registrada a entrada de 3.145 imigrantes espanhóis em terras paraenses, sendo que 1.777 se direcionaram aos principais núcleos do estado, como Jambu-Açu, Monte Alegre e Benjamin Constant. O restante (1.368) acabou se instalando na capital paraense (SMITH JÚNIOR & GARVÃO, 2015). Em 1900, o censo das colônias agrícolas apontou a existência de 3.283 imigrantes espanhóis residindo em 10 colônias agrícolas do estado do Pará. Entretanto, apenas dois anos depois, em 1902, é desativado o programa de colônias agrícolas com imigrantes estrangeiros no Pará, levando a um deslocamento destes para as principais cidades da região, em particular para Belém. Lá, juntam-se às levas de imigrantes que haviam chegado de forma espontânea na cidade. Mesmo com o fim do programa de colônias agrícolas com imigrantes estrangeiros em 1902, o movimento imigratório para o Pará continuou, de onde se infere que os imigrantes estrangeiros passaram a se dirigir às cidades. O anuário estatístico do Brasil mostra que cerca de 13.500 estrangeiros de diversas nacionalidades entraram pelo porto de Belém entre 1910 e 1912, a maioria oriunda de Portugal (48,67%) e da Espanha (15,98%). No período, entraram pelo porto de Belém 2.139 espanhóis, perfazendo uma média anual de 713 entradas. Em publicação de 1916, o inspetor espanhol de emigração, Leopoldo D’Ouzeville (1916), relatou que a maioria dos imigrantes espanhóis era originária da Galícia, particularmente de Orense. As principais atividades econômicas exercidas pelos homens eram a de sapateiro e afiador de ferramentas, enquanto as mulheres costumavam ser lavadeiras, passadeiras ou empregadas domésticas. As mulheres, na sua quase totalidade, declararam como ocupação os serviços domésticos ou prendas do lar, sendo contabilizadas apenas três exceções: duas mulheres que se declararam modistas, e uma professora, o que, segundo Emmi (2013, p. 88) seria “compatível com o lugar ocupado pela mulher na sociedade da época”. 2 Outros testemunhos refletiram o quão difícil foi a vida diária nos primeiros meses, especialmente quando não se podia contar com os suprimentos alimentares distribuídos pela administração. Na verdade, uma das críticas que podemos fazer é que as autoridades não dispunham de recursos suficientes para realizar a empresa, enquanto os responsáveis pelo recrutamento estavam apenas tentando reunir um número suficiente de imigrantes, sem levar em consideração a capacitação profissional dos mesmos; por fim, os colonos não conseguiram juntar seus esforços para superar as primeiras dificuldades. (Tradução livro do autor) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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No tocante aos homens, Emmi (2013, p. 88), afirma que As profissões declaradas com mais freqüência foram comerciante, artista, jornaleiro e sapateiro, seguidas de outras profissões de menor freqüência: alfaiate, açougueiro, carpinteiro, cozinheiro, carroceiro, chofer, estivador, jardineiro, mecânico, marítimo, maquinista, vendedor ambulante, entre outras. Entre os nubentes estão relacionados um advogado, um dentista, um professor, um enfermeiro, um guarda-livros, três industriais, que diferem do perfil do nível de instrução comumente associado ao imigrante espanhol.

No que diz respeito às condições de vida e laborais dos espanhóis residentes no Pará, Martínez (2005, p. 8) faz referência a um informe enviado em 1901 pelo vice-cônsul ao Encarregado de Negócios da Espanha no Brasil, nos seguintes termos: La pobreza en que han quedado reducidos la mayoría de los miembros de esta colonia por la enorme crisis que afectó a todas las clases sociales de esta región, [...] cerca de tres mil españoles quedan todavía en este estado, de los nueve o diez mil venidos en la emigración, que son otros tantos pobres que en estado lastimoso necesitan a todo momento, que este Viceconsulado les oiga, les ayude y les sirva gratuitamente en sus pedidos y reclamaciones3

Embora vivendo em condições materiais precárias, trabalhando nos mais diversificados serviços, esses sujeitos não deixaram de preservar seus costumes e tradições, como as touradas que ocorriam todos os domingos no Colyseu Paraense, situado na praça Batista Campos, região central da cidade, reforçando os laços de identidade com a pátria de origem (CMA, 2011).

Espanhóis no Amazonas Não existem indicativos de uma política de agenciamento de imigrantes estrangeiros para colônias agrícolas no Amazonas como ocorrera no Pará entre 1896 e 1902, ano de interrupção da referida política. Para o Amazonas, a imigração espanhola foi tipicamente urbana, em particular para Manaus. Segundo Silva (2010), em 1900 havia aproximadamente 3 mil espanhóis residindo na capital amazonense. Samuel Benchimol (2008, apud EMMI, 2013 p. 89), utilizando dados da Revista da Associação Comercial do Amazonas, informa que entre os recebedores e aviadores da borracha em Manaus, havia cinco firmas em que os proprietários eram de origem espanhola: Suarez, Hermanos & Cia.; J.C.C. Araña & Hermanos; M.M. Cobracho e Cia.; R. Suarez & Cia.; e C.C.M. Asensi e Cia. (EMMI, 2013). Ainda segundo Emmi (2013), após o declínio da borracha, muitos espanhóis que haviam se estabelecido 3 Tradução livre: A pobreza a que foi reduzida a maioria dos membros desta colônia pela enorme crise que afetou todas as classes sociais desta região, [...] quase três mil espanhóis ainda estão neste estado, dos nove ou dez mil vindos na emigração, que são tantos pobres que no estado lamentável em que se encontram precisam a todo o momento, que este vice-consulado os ouça, os ajude e os sirva livremente em seus pedidos e reivindicações.

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em cidades do interior do Amazonas acabam se transferindo para a capital, localizando os seus estabelecimentos comerciais nas áreas de panificação, livraria, sapataria, funilaria, ourivesaria, ou ocupando-se no setor de serviços. Ao descrever a trajetória de alguns irmãos espanhóis, a autora mostra a diversidade laboral exercida por estes imigrantes em terras manauaras: Segundo Nóvoa Silva (2010), os irmãos Modesto, Urbano, David e Elias Nóvoa eram originários de Castro de Esquadro, Orense, região da Galícia. Ao chegarem em Manaus, no início do século XX, os dois primeiros, após passarem pelas dificuldades comuns aos imigrantes, trabalharam como enfermeiros no Hospital Colônia de Alienados Eduardo Ribeiro, hoje Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. O imigrante Urbano Nóvoa chegou a ocupar o cargo de diretor desse hospital por várias décadas. Elias Nóvoa começou trabalhando como padeiro, depois trabalhou em olaria na produção de telhas e tijolos. Posteriormente, em 1946, os irmãos David e Elias Nóvoa compraram a cerâmica Marajó, inaugurando o ingresso da família Nóvoa na produção de cerâmica para construções, ramo que teve continuidade através dos descendentes (EMMI, 2013, p. 89).

A tabela 3 mostra o número de imigrantes espanhóis registrados no Vice-Consulado da Espanha em Manaus, por ano de chegada do imigrante, no período entre 1899 e 1910. Tabela 3 – Imigrantes registrados no Vice-Consulado da Espanha em Manaus por ano de chegada. Nome

Ano

Francisco Gordon Cuquejo

1899

Francisco Martinez Fagundes

1901

Manoel Maria Salgado

1904

Modesto Nóvoa Alvarez

1906

Luís Esteves Fernandez

1907

Ramon Mangana Ribas

1910

Delmiro Figueredo Lopes

1910

José Prieto Rodrigues

1910

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Emmi (2013, p. 90).

Em Manaus havia três associações: a Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos; a Sociedade Espanhola Recreativa e de Beneficência e o Centro Espanhol. O vice-cônsul da Espanha na cidade, David Nóvoa Alvarez e Ramon Mangana, ambos de nacionalidade espanhola, fundaram ainda a Sociedade Beneficente Mútua repatriadora, “com o objetivo de custear as despesas dos espanhóis que não tendo recursos, desejassem voltar à Pátria”. (EMMI, 2013, p. 93-94).

Os portugueses No período do auge da atividade gomífera, diversas firmas comerciais portuguesas se estabeleceram na Amazônia, em particular em Manaus e em Belém, “suprindo de mercadorias à base do sistema de aviamento, ou seja, dando crédito pessoal em troca de produtos extrativos Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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destinados à exportação” (ARAGÓN, 2013, p. 226). Mas, neste período, houve ainda uma imigração de portugueses pobres envolvidos em pequenos serviços ou empregados em pequenos comércios. Em 1920, o Pará figurava em quarto lugar (excluindo o Distrito Federal), e o Amazonas o sexto lugar entre os estados receptores de portugueses, com 14.211 e 7.615 imigrantes respectivamente. Ainda antes, em 1872 (Censo Demográfico), verifica-se a presença de 4.423 portugueses no Pará (71,3% do total de 6.259 estrangeiros no estado), enquanto no Amazonas havia 689, perfazendo 31,33% do total de imigrantes estrangeiros no estado. Segundo Fontes (2009), a imigração portuguesa caracteriza-se como masculina e individual (solteira). Entretanto, registraram-se também, na Amazônia, experiências subsidiadas de imigração rural no período imperial e no início do período republicano: “existem registros de uma imigração subsidiada de portugueses direcionada às colônias agrícolas, embora em número pouco significativo” (EMMI, 2013, p. 39). Segundo Fontes (2009), a maior parcela de imigrantes portugueses se dirigiu para as cidades, notadamente Belém e Manaus. Entretanto, registrou-se a ocorrência destes imigrantes em cidades como Santarém, Barcelos e Macapá. Quanto à origem dos imigrantes, destacam-se as províncias do Douro, Minho, Beira Alta, Estremadura, Beira Baixa (FONTES, 2009). A maioria dos imigrantes partiu de Lisboa, Leixões e Porto. Para a autora, a atração da mão de obra portuguesa se dava diretamente no país de origem, através, sobretudo, de engajadores, personagens que atuavam “entre o imigrante e as companhias ou entidades ligadas diretamente ao recrutamento de mão-de-obra” (FONTES, 2009, p. 290). No que tange à profissão, encontravam-se caixeiros, comerciantes, marítimos, carpinteiros, pedreiros, alfaiates, padeiros, trabalhadores avulsos, dentre outras. Muitos portugueses eram proprietários de estabelecimentos comerciais e industriais, onde empregavam muitos conterrâneos. Percebe-se, assim, a presença dos portugueses nos lados da oferta e da demanda de trabalho na Amazônia, ajudando a conformar um mercado de trabalho urbano na região. Edilza Fontes (2009, p. 295), analisando a imigração portuguesa para Belém entre 1844 e 1914, afirma que a quantidade de portugueses que sabiam ler e escrever era bem superior ao número de analfabetos, o que indicaria que “os portugueses que vieram para o Pará, provavelmente representavam uma mão de obra urbana”. Aponta ainda que a maioria dos imigrantes fazia o movimento imigratório sozinho, “demonstrando sua aptidão com um trabalho urbano sem vínculo com a terra”. (FONTES, 2009, p. 295). Enumera os trabalhadores do comércio, os caixei-

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ros e os marítimos como os mais representativos numericamente nas profissões de prestação de serviço exercidas por portugueses entre 1884 e 1914. Fontes (2009) destaca também o papel dos portugueses no movimento operário belenense ao final do século XIX e início do século XX, ajudando a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores na capital paraense. Segundo a autora, os estatutos sindicais “parecem reafirmar os ensinamentos revolucionários que defendiam a participação dos anarquistas nos sindicatos e que estes deveriam ser um instrumento para a libertação operária”, sendo possível notar “a relação estreita com os ensinamentos anarquistas na forma de organizar os sindicatos e as greves, de prepararem a ação direta, como princípio norteador dos estatutos dos sindicatos” (FONTES, 2009, p. 315). Já Teles (2016) destaca a importância dos imigrantes no movimento operário anarquista na Amazônia. O autor procura demonstrar a construção de uma rede regional anarquista, através do jornal A Lucta Social (1914), editado em Manaus, e dos militantes que estavam por trás do periódico, particularmente o português Tércio Miranda (responsável direto pela folha). Analisa também o português Antônio Costa Carvalho, residente em Belém e proprietário de uma quitanda. Era um militante anarquista, propagador e formador no interior do movimento operário na capital paraense, sendo uma das principais lideranças das greves ocorridas na cidade nos anos de 1913 e 1914. Segundo Teles (2016, p. 13), “a sua quitanda se caracterizava como um espaço de convivência onde os trabalhadores discutiam seus problemas, podendo até mesmo se converterem ao anarquismo”. As análises destes dois últimos autores são importantes no sentido de trazerem luz aos estudos gerais sobre a economia urbana amazônica no período considerado (final do século XIX/início do século XX) e, particularmente, acerca do movimento operário da região, com destaque ao papel dos imigrantes estrangeiros (no caso, portugueses) neste movimento.

Considerações finais

Ainda que não nas mesmas proporções de outras regiões do país, como o centro-sul, a Amazônia brasileira recebeu uma importante leva de imigrantes estrangeiros que se direcionou para os campos e cidades, ajudando a conformar um mercado de trabalho, sobretudo urbano, na região. Para o campo, destacam-se os espanhóis, principalmente através da política de criação de colônias agrícolas na zona bragantina paraense; e os japoneses (não abordados neste ensaio), Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 153-172, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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para diversas áreas rurais, tanto do Amazonas, como do Pará. Também estes (em pequeno número, é verdade) foram direcionados para os atuais estados de Rondônia e Roraima. Mas também se dirigiram para as áreas rurais portugueses, italianos, franceses, dentre outros. Já para as cidades, dirigiram-se portugueses, espanhóis, sírio-libaneses, italianos, alemães, ingleses e imigrantes de outras nacionalidades. Nelas, além de proprietários de estabelecimentos comerciais e industriais, exerciam diversas atividades liberais, atuando como médicos, advogados, dentistas, economistas, administradores de empresas, engenheiros, arquitetos etc. Também estavam presentes nas artes, como escritores, músicos, maestros, pintores, atores. Exerciam ainda a profissão de padeiros, pedreiros, montadores de móveis, caixeiros, carpinteiros, alfaiates, marítimos, açougueiros, estivadores etc. Assim, grande parte dos imigrantes era de trabalhadores empregados em estabelecimentos de compatriotas (ou de outros estrangeiros) e também de brasileiros, formando o lado da oferta de trabalho no mercado urbano regional. Em suma, os imigrantes estrangeiros que aportaram nas principais cidades da Amazônia brasileira nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX foram fundamentais para a conformação do mercado de trabalho regional no período considerado. Mesmo sabendo da controvérsia a respeito da formação ou não de um mercado de trabalho urbano fora do eixo Rio – São Paulo neste período4, afirmamos que na Amazônia brasileira se constituiu sim este mercado, fortemente amparado na participação (dos lados da oferta e da demanda de trabalho) dos imigrantes estrangeiros que para lá se dirigiram. Concordamos com Fontes (2009) quando afirma que pensar a formação do mercado de trabalho é ter em mente que o mesmo resulta de diversidades múltiplas, inclusive do ponto de vista das nacionalidades dos agentes sociais que ajudam (e ajudaram) na conformação deste mercado. No caso da Amazônia brasileira, como em outras regiões do país, é mister compreender que os estrangeiros foram fundamentais na estruturação do mercado de trabalho urbano, seja no âmbito da oferta, como na demanda por trabalho. Mais uma vez recorremos a Fontes (2009, p. 281), quando afirma a necessidade de “entender a conjuntura da efervescência da sociedade amazônica no período áureo da economia da borracha do ponto de vista da formação de um mercado de trabalho urbano”. Ao citar o caso de Belém (que podemos estender a Manaus, por exemplo), a referida autora nos brinda com a seguinte afirmação: “uma cidade onde os bancos, as casas aviadoras e as empresas vinculadas à prestação de serviços urbanos exigiram um mercado de trabalho que se formou dialogando com trabalhadores vindos de diversas partes do mundo” (FONTES, 2009, p. 281). Por fim, buscamos destacar a importância dos trabalhadores imigrantes estrangeiros nos mo4 Sobre essa controvérsia, sugerimos a leitura de Lima e Oliveira [1980?] e Barbosa (2008).

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vimentos operários no início do século XX, nas principais cidades da Amazônia no período em questão. Fontes indicam a participação de portugueses, espanhóis e italianos nestes movimentos, inclusive na divulgação do ideário anarquista, a partir de periódicos que circularam nas capitais amazonense e paraense à época.

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A presença de escravos carmelitas na Fazenda Capão Alto, no Paraná: questões historiográficas The presence of Carmelites slaves in Capão Alto farm, Paraná: historiographical questions Josélia Maria Loyola de Oliveira Gomes Universidade Estadual de Ponta Grossa

Resumo

Abstract

O artigo tem como objetivo coligir questões da historiografia regional relacionadas aos escravos carmelitas da Fazenda Capão Alto (PR), apontar ações cooperativas entre os escravos carmelitas de Castro (PR), contextualizar o arrendamento e a posterior venda dos cativos para o interior de São Paulo e indicar as comunidades de remanescentes de quilombos (CRQs) na região de Castro (PR). O referencial direcionou-se para artigos, dissertações, teses e livros que se valeram de documentos compostos por listas nominativas de habitantes, registros de batismos e casamentos, processos judiciais e cartoriais, jornais e correspondências oficiais. Os escravos carmelitas administraram a Fazenda Capão Alto entre 1770 e 1867. O arrendamento dos escravos, em 1864, causou revolta e resistência. A saída definitiva dos cativos para o interior de São Paulo foi dividida em dois grupos, provavelmente em 1867. No primeiro grupo, 50 escravos foram levados para trabalhar na construção da ferrovia que ligava a cidade de Jundiaí a Campinas. No segundo grupo, foram comercializados 186 escravos da Fazenda Capão Alto ao comendador Francisco Teixeira Vilela, de Campinas (SP). Das comunidades de remanescentes de quilombos (CRQs), na região de Castro (PR), três apresentam descendência de escravos fugidos da Fazenda Capão Alto.

This article has the aim to collect inquiries from the regional historiography interconnected to the Carmelite slaves from Fazenda Capão Alto (PR), to point out cooperative actions among Carmelite slaves in Castro (PR), to contextualize the leasing and future sale of the captives to São Paulo countryside and to indicate the communities of remaining slaves of quilombos - the so-called slave campsites - in Castro (PR) region. This study has directed to articles, essays, theses, and books which took advantage of documents including list of names of the inhabitants, baptisms and weddings recordings, judicial and notarial processes, official mail and newspapers. The Carmelites slaves managed Fazenda Capão Alto from 1770 to 1867. The slaves leasing, in 1864, caused uprising and resistance. The definitive exit of the captives towards São Paulo countryside has been divided in two groups, most likely in 1867. In the first group, fifty slaves were taken to work in a new railway which would connect Jundiaí to Campinas, both in the state of São Paulo. In the second group, 186 slaves from Fazenda Capão Alto were sold to commendator Francisco Teixeira Vilela from Campinas (SP). From the communities of remaining slaves of quilombos - the so-called slave campsites - in Castro (PR) region, three of them present descent of runaway slaves of Fazenda Capão Alto.

Palavras-chave: Escravidão; Escravos carmelitas; Fazenda Capão Alto (PR); Fazendas Históricas; Comunidades de Remanescentes de Quilombos.

Keywords: Slavery; Carmelite slaves; Fazenda Capão Alto (PR); Historical Farms Communities of remaining slaves of quilombos.

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& DOI: 10.20396/resgate.v26i1.8649585 DOI: http://dx.doi.org/10.20396/resgate.v24i1.8647082

I n t r o d u ç ã o

A

s notas de pesquisa aqui apresentadas foram extraídas do relatório do projeto cultural Arqueologia e historiografia da Fazenda Capão Alto, um processo de extroversão, aprovado pelo Ministério da Cultura, através da Lei Rouanet, e com execução entre 2014 e 2016. Elaborado

pelo Núcleo de Mídia e Conhecimento (NMC), de Curitiba (PR), em parceria com o proprietário da fazenda, Koob Petter, tal projeto teve entre seus objetivos específicos dois aspectos que se destacaram. Primeiramente, a implementação de um projeto preliminar, arqueológico e histórico, que antecedeu as atividades executivas de arqueologia, de restauração para ampliação do conhecimento sobre o bem cultural em questão. Em segundo lugar, a execução de um plano de comunicação com 1

ênfase na educação patrimonial e na difusão dos serviços disponíveis na Fazenda Capão Alto . A Fazenda Capão Alto está ligada à presença dos carmelitas e escravos, ao tropeirismo e aos estudos de experimentação agropecuária, em especial a partir da década de 1980. Atualmente, suas principais atividades se direcionam às atividades de dimensão didático-pedagógica, como a visitação à casa-sede e seu entorno, com área de campos e mata nativa, ou as exposições culturais e arqueológicas ali organizadas. Desde 2001, a Fazenda Capão Alto transformou-se em espaço aberto à visitação dada sua relevância turística regional. Seus proprietários planejam nova restauração da casa-sede e de seu entorno, elaboração de um plano interpretativo de visitação e de comunicação para o espaço cultural, e execução de melhoramentos na infraestrutura para o compartilhamento ao público visitante.

A presença de escravos carmelitas na Fazenda Capão Alto Entre as primeiras referências do período colonial que remetem à região dos Campos Gerais, no estado do Paraná, e especificamente à área relativa da Fazenda Capão Alto, se menciona 1 A Fazenda Capão Alto foi tombada em 26 de novembro de 1983, conforme inscrição no Livro Tombo II, nº. 80, processo nº. 82/81, da Secretaria de Estado da Cultura/Coordenadoria do Patrimônio Cultural do Paraná. Apesar disso, ainda busca apoio para seu reconhecimento em âmbito nacional.

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a concessão da sesmaria na paragem do Iapó para Pedro Taques de Almeida e familiares, em 1704. No ano de 1751, a Fazenda Capão Alto foi comprada de José Goes de Moraes pelo Frei João de Santa Izabel, seguida de posse judicial ao procurador da Ordem Carmelita de São Paulo. Posteriormente, o crescimento da futura vila de Castro e a reforma da Ordem Carmelita de 2

1785-1800 contribuíram para que os freis carmelitas se retirassem para São Paulo ou Rio de Janeiro. Antes mesmo disso, a partir de 1770, a Fazenda Capão Alto passou a ser administrada por seus escravos (ROSAS, 1972, p. 19 e p. 64) (PARANÁ, 1985, p. 26), que até 1864 constituíram uma comunidade independente. Em 1785, com a reforma carmelita, o convento do Rio de Janeiro, sede da Província do Carmo e casa capitular, pediu aos seus conventos que realizassem inventários de seus bens. À Província do Carmo do Rio de Janeiro pertenciam os conventos do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Angra dos Reis, Mogi das Cruzes, Vitória, além dos hospícios de Itu e Lisboa. O convento do Carmo de São Paulo possuía seis fazendas e 18 moradas de casas (SILVA, 2013, p. 147). Quanto às Fazendas Capão Alto e Fundão, consta um pedido encaminhado do Governador da Capitania ao Ouvidor de Paranaguá, em 15 de julho de 1785, sobre a demora da execução da ordem encaminhada em março, e sobre a necessidade de brevidade para incorporar os ditos inventários, devendo ficar como depositários os administradores da fazenda (OFÍCIO, 1961, p. 165). Infelizmente, nos arquivos pesquisados, não se constatou resposta ou outra ação quanto ao pedido formulado. Mesmo longe, os carmelitas observaram alguns cuidados com a Fazenda Capão Alto e seus bens. Um exemplo a citar é o requerimento, registrado como auto de violência, do Convento do Carmo de São Paulo ao Ouvidor de Paranaguá, em 1º de março de 1789, consultado em cópia de sua forma original e manuscrita, juntamente com um mapa, quanto à delimitação das servidões. No requerimento, constava a descrição da servidão dada a dois vizinhos de fundos da Fazenda Capão Alto, para que passassem pelo caminho do Maracanã que atravessava a fazenda, a oeste. A queixa se remete aos vizinhos que, não contentes com a servidão recebida, abriram nova servidão imprópria, cortando ao meio a Fazenda Capão Alto, local em que os religiosos possuíam parte de sua criação, especialmente potreiros, deixando cercas devassas, e ocasionando extravios de animais pelos campos abertos. O convento menciona, nesse requerimen2 A partir de 1780, a Coroa demonstrou pouca tolerância com as ordens religiosas, dadas as desordens e comportamentos considerados abusivos. De 1785 a 1800, houve a reforma da Província Carmelita Fluminense. Em meados do século XIX, as ordens religiosas brasileiras sofreram impactos da política antimonástica do governo, ocasionados pela presença do ultramontanismo e reforma do clero. A partir do Aviso Circular de 1855 do Ministério da Justiça, ficou proibido aos conventos das ordens religiosas a aceitação de novos noviços, até que fossem resolvidas pendências com a Santa Fé. De 1865 até 1899, a Ordem do Carmo esteve por determinação do governo imperial subjugada ao Regime de Visitadores Apostólicos. Foi um período no qual a Igreja católica brasileira passou por uma reorientação (WERNET, 1997, p. 127). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n.1 [35], p. 173-190, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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to, que tentou obviar seus prejuízos, contentando-se a reformar cercas para aviventar os vassalos. Em geral, o requerimento visava embaraçar os prejuízos, de modo a sujeitar os vizinhos a trilhar pelas antigas servidões. Junto ao referido requerimento, consta certidão do Corregedor de Paranaguá ao Juiz Ordinário da Vila de Castro para atender ao pedido e fazer cessar a violência respectiva apresentada (AUTO DE VIOLÊNCIA, 1798, p. 1-3). O Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de S. Paulo em 1836, organizado por Daniel Pedro Müller (publicado em 1838), apontou para a Vila de Castro (PR) uma população de 6.190 habitantes, sendo 4.503 livres e 1.687 escravos. A população era de 3.172 homens e 3.018 mulheres. Os grupos por idade entre 20 e 39 anos compreendiam um número de 1.138 para a população livre e de 680 para a população escrava. Quanto à instrução, o número de pessoas que sabiam ler e escrever era de 202. Na produção econômica, em geral a população se dedicava à criação de gado de toda a espécie, plantava arroz, milho, feijão e alguma cana de açúcar e preparava farinha de mandioca e erva-mate (BASSANEZI, 1998, p. 166-174 e p. 214). Para a elaboração das listas nominativas, o território correspondente à Vila de Castro esteve distribuído, inicialmente, em três Companhias de Ordenanças e, a partir de 1818, em seis Companhias (PINTO, 1992, p. 8). Nas Companhias de Ordenanças da Vila de Castro foram distribuídos os bairros. Alguns apresentaram rápido desenvolvimento devido às atividades de criação, invernagem e comercialização de gado que, ao lado da necessidade da prestação de outros serviços, atuaram como pólo de atração de migrantes (PINTO, 1992, p. 82). Dentro da perspectiva da historiografia demográfica, a tese de Pinto (1992) privilegiou olhares para o estudo da Vila de Castro de 1801 a 1830. Em uma das tabelas apresentada pela autora (PINTO, 1992, p. 96), constatou-se que a população de Castro, em 1800, era de 3.400 livres e 947 escravos; em 1806, 3.712 livres e 1.001 escravos; em 1811, 3.764 livres e 1.035 escravos; em 1822, 3.387 livres e 989 escravos; em 1828, 4.520 livres e 1.534 escravos; em 1830, 4.389 livres e 1.469 escravos. Em contrapartida, em 1825, quanto aos aspectos de produção, os estudos de Gutiérrez (2004, p. 110), no arrolamento das listas nominativas, apontaram um rebanho total para a Vila de Castro com 29.863 cabeças, incluindo gado vacum, cavalar, muar e lanígero. Em termos de produção pecuária, a base central era para o gado vacum; em segundo, o cavalar; em terceiro, o lanígero, e quanto ao muar, apenas dois fazendeiros investiram em 140 cabeças. Nas listas nominativas de habitantes de Castro, no período de 1801 a 1830 constavam, segundo tese de Pinto (1992), quatro fazendas pertencentes à Ordem de Nossa Senhora do Carmo: Capão Alto, Cunhaporanga, Vassoural e Fundão. As fazendas de propriedade dos religiosos estavam incluídas na categoria de domicílios indeterminados, pois não se especificava quem as administrava. Em 1801, a Fazenda do Capão Alto, a mais importante, era habitada por 56 escravos e 18 agregados. Em

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1830, o número de escravos passou para 118, não apenas como reflexo da fecundidade, mas de uma possível transferência de escravos vindos da Cunhaporanga. De 1801 a 1830, na Fazenda Capão Alto o número médio foi de 81 escravos e de 17 agregados. Como apontou Pinto (1992), os agregados se constituíram numa camada social flutuante de pessoas livres, que mantiveram junto aos fogos (domicílios) variadas formas de relações, seja por prestação de serviços ou grau de parentesco. Em raras exceções, na documentação referente à Vila de Castro, foram declaradas essas formas de relação. Normalmente, os agregados apresentavam laços de parentesco com os dos fogos ou eram crianças expostas. Numa rápida análise das listas nominativas, observou-se que as fazendas carmelitas estavam localizadas na 1ª Companhia de Ordenança da Vila de Castro, no bairro de Santa Cruz, e que apresentavam flutuações quanto ao número de identificação do domicílio/fogo. Em 1801, as Fazendas Capão Alto e Cunhaporanga estavam no fogo nº. 221 e a Fazenda Fundão no n.º 235. Em 1803, a Fazenda Capão Alto foi identificada como fogo n.º 201, a Fazenda Cunhaporanga no n.º 202. Em 1804, a Fazenda Capão Alto estava no fogo n.º 222 e a Fazenda Cunhaporanga no n.º 223 (LISTAS NOMINATIVAS, 1801-1830). Diferentemente, quanto ao número de propriedades, os estudos de Gutiérrez (2004), referentes às listas nominativas de 1825, indicam que a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo tinha três fazendas: Capão Alto, Fundão e Cunhaporanga, com um total de 98 escravos, constituindo o maior contingente particular de cativos do Paraná. Na Fazenda Capão Alto, o número de cativos era 68. Quanto à quantidade de animais, as fazendas carmelitas possuíam 2.120 cabeças de gado vacum. As fazendas foram administradas pelo capelão ou administradores cativos. Para o estudo referente a 1825, Gutiérrez (2004) utilizou o cruzamento de dados de listas nominativas com o inventário dos bens rústicos de 1818, um cadastro de terras, para a obtenção de informações quanto à dimensão das áreas. O autor destaca que as fazendas carmelitas da Vila de Castro se dedicavam à pecuária e tinham as respectivas áreas: Capão Alto com 16.335 hectares, Fundão com 9.801 hectares e Cunhaporanga com 3.267 hectares. A extensão das três não era das maiores da região e o número de escravos se repartia basicamente entre a primeira e a última fazenda. A Fazenda do Fundão era dedicada às invernadas de tropas em trânsito, que se dirigiam a Sorocaba, oriundas do Rio Grande do Sul. Em 1825, consta que a Fazenda do Fundão não tinha gado próprio nem produção agrícola, sendo administrada por sete escravos. Foi considerada a única fazenda de Castro e Ponta Grossa reservada a esse uso exclusivo, que se ampliou após 1870, quando a criação paranaense perdeu em importância e rentabilidade para o aluguel de pastos e a engorda do gado sulino (GUTIÉRREZ, 2004). Desse universo referente aos habitantes da Fazenda Capão Alto, a pesquisa de Mello (2004) vem somar pontos interessantes ao privilegiar as listas nominativas dos anos de 1824, 1829 e 1835, conResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n.1 [35], p. 173-190, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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frontando-as com dados retirados de transcrições dos Assentos de Casamentos (1793-1824) e dos Registros de Batismo (1801-1817) referentes à população cativa de Castro. Entre suas argumentações, Mello (2004, p. 120-125) apontou que o absenteísmo dos proprietários carmelitas permitiu aos escravos da Fazenda Capão Alto possibilidades para que se organizassem “mais à sua maneira”, formando famílias e estabelecendo normas de convivência. Talvez por esse motivo não ousassem sair das terras, já que as possíveis punições às desobediências das normas preestabelecidas eram menos rígidas. Outro fator possível foram as uniões duradouras estabelecidas e a multiplicação de rebentos (filhos). Os escravos se casaram e mantiveram famílias. A consolidação de famílias pode ter contribuído tanto para atenuar as diferenças como para proporcionar inserção na comunidade. Possivelmente as uniões conjugais tiveram alguma característica peculiar frente àquelas em que os cativos estavam sob os olhares de seus senhores. Na Fazenda Capão Alto, os trabalhos eram executados pelos próprios escravos, anteriormente instruídos e disciplinados pelos carmelitas. Eram administrados por um cativo escolhido. Ser o escolhido concedia certa posição de destaque na hierarquia social interna. Provavelmente, para o escolhido cativo, manter essa posição não tenha sido uma tarefa das mais simples. Mesmo diante das incertezas das fontes transcritas das fichas de batismo, Mello (2004) identificou e confrontou os dados com segurança em apenas 10 casais reconhecidos nas Listas Nominativas de 1824, relativos aos cativos da Vila de Castro. Para ilustrar as condições estáveis familiares entre os cativos da Fazenda Capão Alto, a pesquisadora cita o exemplo do casal de escravos Manoel e Matildes, que, em 1824, foi responsável por zelar 67 escravos. Das Listas Nominativas de 1829, Mello (2004) constatou que os cativos da Fazenda Capão Alto foram administrados pelo escravo-capataz Pedro, de 40 anos, casado com a negra Felizarda, ambos responsáveis por 119 cativos. Dentre esses, 53 estavam ligados por laços de parentesco. Os cativos estavam distribuídos em 10 casais, acompanhados ou não por filhos, 3 mães solteiras, 14 viúvos e viúvas, muitas vezes rodeados por seus filhos adultos. Dos censos ou Listas Nominativas de 1835, Mello (2004) afirmou que a Fazenda Capão Alto abrigava 99 escravos, constituindo-se na maior escravaria absenteísta da Vila de Castro. Nas terras da fazenda, os escravos foram disciplinados para o trabalho e pela religião dos frades carmelitas e tinham grande devoção à Nossa Senhora do Carmo - a Sinhara. Desde a saída dos carmelitas, o “administrador” era eleito semanalmente entre os escravos para supervisionar os trabalhos. Ao eleito cabia interpretar as orientações da Sinhara. Vendiam o que fosse possível na Vila de Castro para garantir o sustento da fazenda (PARANÁ, 1985, p. 27; GAZETA, 1886, p. 1). Quanto ao cotidiano da Fazenda Capão Alto, a tese de Molina (2006) assinalou que a documentação interna da Ordem do Carmo e os relatórios não evidenciaram detalhes sobre as vivências em razão da fragmentação das fontes produzidas no contexto de restrição legislativa imperial aos car-

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melitas e o subsequente colapso na administração . Como segundo aspecto sobre o cotidiano dos escravos, Molina (2006) ainda destacou que o grau de autonomia escrava era decorrente do fato de os frades estarem distantes e ocupados em rebater os constantes ataques do governo e da Província 4 Carmelita sobre seus patrimônios . Das pesquisas em registros paroquiais, o estudo de Oliveira (2013) apontou que, na década de 1840, o capataz Pedro era o responsável por fiscalizar as atividades na Fazenda Capão Alto. Entre os anos de 1796 e 1863, foram registrados 34 casamentos. Dos anos de 1799 a 1857, foram batizadas 171 crianças. Os cativos estabeleceram laços de compadrio que se estenderam para fora dos limites da Fazenda Capão Alto, com escravos das outras fazendas pertencentes à Ordem Carmelita, Cunhaporanga e Vassoural. Entre suas argumentações, Oliveira (2013) mencionou que na fazenda Capão Alto viviam agregados, pessoas libertas e livres. Como exemplo, citou que, em fevereiro de 1805, recebeu os santos óleos “o forro Constantino, filho dos libertos Nicomedy e sua mulher Antonia, tendo como padrinhos Francisco Duarte e sua mulher Bibiana Rodrigues, todos forros e agregados da fazenda do Capão Alto” (OLIVEIRA, 2013, p. 161-162). Até 1860, a comunidade de cativos permaneceu sossegada em seu cotidiano na Fazenda Capão Alto, integrada nesse período por 125 homens e 111 mulheres. Mais de 50% dos escravos tinham idades de 0 a 14 anos. 3 Para sua pesquisa, Molina (2006) coletou dados em inúmeros arquivos brasileiros. Entre suas considerações, comentou que, durante o século XIX, a documentação produzida nos conventos carmelitas era remetida para a casa principal da Corte e, no século XX, com a chegada dos frades estrangeiros, ingleses e holandeses, ocorreu a centralização dos registros no Convento do Rio de Janeiro. Na década de 1950, em virtude de um incêndio grande parte da documentação foi perdida. Parte do que restou foi cedida ao Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro (RJ), e outra encaminhada ao Arquivo Particular do Carmo (APCBH), no convento do Carmo, em Belo Horizonte (MG). Em complementação, os estudos de Pedras (2000) no Arquivo Particular do Carmo em Belo Horizonte indicaram a existência de fontes primárias ainda pouco exploradas. Somente a partir da década de 1970 o governo da Ordem Carmelita se preocupou com a conservação dos diversos arquivos dos conventos brasileiros e buscou a centralização de suas fontes informativas. 4 Na Ordem do Carmo de São Paulo, no século XVIII, viviam à época quatorze religiosos e um leigo. O número de escravos chegou a 431. Os carmelitas foram proprietários de fazendas em Castro (Capão Alto), Sorocamirim, Biacica, Caguaçu e outras nas terras de Santos, Moji das Cruzes e Itu. No século XIX, em 1836, o Convento do Carmo de São Paulo, conforme estudo de Daniel Pedro Müller (apud BRUNO, 1953, p. 767; ARROYO, 1966, p. 67) era habitado por dois religiosos apesar possuía trinta e uma casas de aluguel, seis estabelecimentos de agricultura, uma fazenda para criação e mais de cento e trinta escravos; de onde proviam seus rendimentos. Desde 1760, inúmeros instrumentos legislativos visavam a subjugação e enquadramento da Igreja aos desígnios do Estado. A partir de 1770, surgiram as “preocupações pombalinas voltadas não só em relação aos bens da igreja quanto ao endividamento dos conventos e mosteiros, as consequências materiais e morais a isso atribuídas” (SILVA, 2013, p. 145). O clero passou a ser visado pelo governo. No decênio seguinte, o governo do Estado do Brasil, com o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, demonstrou pouca tolerância com as ordens religiosas, dadas as desordens e os comportamentos considerados abusivos por parte dos religiosos da capitania. Interviu entre os franciscanos da Imaculada Conceição em 1780 e entre os capuchinhos italianos em 1781 (SILVA, 2013, p. 145-152). Em novembro de 1783, sobre as mazelas dos carmelitas fluminenses, o vice-rei apresentou extensa queixa contra os religiosos à corte, comunicando um quadro de déficit financeiro entre 1771 e 1783, além de uma generalizada quebra do voto de pobreza. Em 1784, D. Maria I nomeou D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco como visitador e reformador apostólico da Província Carmelita fluminense “com amplos poderes”. O reformador assumiu a gerência do patrimônio da província carmelita de 1785 a 1800. A linha-mestra foi severa e visava a reintrodução da mendicância entre os frades, uma ação incidente para a racionalização quanto ao uso das propriedades para a quitação das dívidas. No primeiro aspecto, as medidas abrangeram a venda e o arrendamento de propriedades. Ao final dessa política de austeridade, o presidente provincial relatou que, exceto a casa capitular, a do Rio de Janeiro, as outras casas encontravam-se desempenhadas. Os conventos de São Paulo, Santos e o hospício de Itu teriam recebido acréscimos em suas propriedades (SILVA, 2013, p. 152-156). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n.1 [35], p. 173-190, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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Como situou Molina (2006), duas questões de âmbito nacional se inseriam nesse momento: o problema da carência de mão de obra pós 1850 e a legislação repressiva às ordens religiosas. Dadas as circunstâncias políticas apresentadas na Província Carmelita Fluminense, decorrentes do fato de o governo imperial pretender gerir os bens dos conventos, os carmelitas da Ordem do Carmo de São Paulo se anteciparam e arrendaram a Fazenda Capão Alto. No período anterior à determinação do governo imperial em subjugar a Ordem do Carmo ao Regime de Visitadores Apostólicos (1865-1889), a Fazenda Capão Alto foi visitada pelo procurador do Convento do Carmo da Corte, provavelmente em razão da própria conjuntura da Província Carmelita em 1860, para verificar como se encontravam seus bens e escravos. Para esse momento, observou-se em uma correspondência, de 21 de abril de 1860, do Chefe de Polícia da Província do Paraná, Sebastião Gonçalves da Silva, ao Delegado de Castro (PR), na qual informou que [...] nessa data está se dirigindo a essa localidade o Reverendíssimo Frei Manoel da Natividade Azevedo - Procurador do Convento do Carmo da Corte para examinar o estado da fazenda pertencente aquele convento e recomendo-lhe que auxilie em todas as justas requisições de modo a não encontrar dificuldades (SILVA, 1860).

No Convento do Carmo de São Paulo, em 1864, viviam apenas dois frades, Prior Fr. Vicente Ferreira Alves do Rosário e Frei José de Santa Bárbara, que se responsabilizavam pelo patrimônio do convento (MOLINA, 2006). Para o contexto de 1865 a 1869, Molina (2006, p. 109) observou que a Província Carmelita Fluminense vendeu oito propriedades rurais. Dos contratos, ao menos três foram realizados sem a licença do governo imperial e firmados após o reinício do Regime de Visitadores Apostólicos: um em 1865, três em 1866, dois em 1867 e dois em 1869. Entre esses, constava o contrato referente à Fazenda Capão Alto, de 1864, considerado lesivo à Ordem do Carmo. A empresa de Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião foi obrigada a desistir da transação e, através de uma composição, adquiriu 240 escravos da propriedade. Contudo, a Fazenda Capão Alto foi vendida, em 1866, a Bonifácio José Baptista por 30 contos de réis. Do contrato de maio de 1864, Pena (1999) apontou que os carmelitas arrendaram a Fazenda Capão Alto com 241 escravos à firma paulista Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião. O preço por ano contratado seria de oito contos de réis, mas receberam o adiantamento referente a três anos, 24 contos de réis. A firma de Bernardo Gavião tratou de providenciar a rápida transferência dos escravos para São Paulo. Na Fazenda Capão Alto, o sócio da firma, Camillo Gavião, encarregado

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pela transferência dos cativos, prevendo as dificuldades, tratou de mimá-los com roupas e outros donativos. Os escravos se recusavam a sair de suas terras. A situação virou caso de polícia. Após buscas, o delegado de polícia constatou armas escondidas nas senzalas. Os escravos estavam dispostos a reagir, demonstraram astúcia na resistência e em suas argumentações. Por fim, a rebelião não aconteceu e foi controlada pelas forças policiais (PENA, 1999, p. 243-244). Para o entendimento desse drama entre escravos e arrendatário, Pena (1999) buscou em suas pesquisas as correspondências oficiais entre o Chefe da Polícia e o Presidente da Província, de abril a setembro de 1864, o relatório da Delegacia de Polícia de 1865, e o artigo publicado na Gazeta Paranaense, de 1886, anteriormente citado. Em outra publicação, Pena (2003) referiu-se à firma paulista como Casa Comercial e Bancária de Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião, como a responsável pelo episódio de arrendamento dos escravos da Fazenda Capão Alto. Nesse contexto, insere-se uma correspondência entre o Chefe de Polícia da Província do Paraná, Manoel da Silva Mafra, enviada ao Presidente da Província, Dr. José Joaquim do Carmo, em 14 de maio de 1864, na qual afirmou que, mesmo não sendo apresentadas em forma de escritura, algumas das cláusulas estabelecidas sobre o arrendamento dos escravos só obteve por conhecimento verbal e por parte de pessoas que o leram, que sem garantir a exatidão, considerava legalmente feito: [...] o arrendamento da fazenda Capão Alto com 241 escravos de 45 anos para menos, pela quantia de oito contos de reis anuais, por espaço de 20 anos, recebendo os carmelitas a importância de 3 anos mais ou menos adiantadas. A entrega da fazenda e escravos no prazo de dois meses, pagando a multa de três contos de reis por cada mês de retardamento. Pagarem os carmelitas a multa de um por cento ao mês do valor de cada escravo que fugir ou morrer depois da entrega, apresentada a certidão de fuga ou óbito. Os escravos só poderão ser empregados nessa e na Província de São Paulo. É lícito aos arrendatários sem pena alguma, rescindir o contrato, não tendo, porém, igual direito o Convento, sem pagar a multa de 50 contos de réis, restituindo as quantias recebidas e o prêmio de 1% ao mês. Retirar o Convento, no prazo de um ano, da fazenda toda criação de escravos não compreendidas no contrato sob pena de ficar pertencendo ao arrendatário. Terem os arrendatários a preferência na compra da fazenda e escravos, obrigando-se a obter a licença do governo imperial e devendo a compra ser feita pelas avaliações existentes ou mesmo por novas se isso convir aos arrendatários (MAFRA, 1864).

Do episódio do arrendamento envolvendo os escravos da Fazenda Capão Alto, constam outras correspondências oficiais que permitem verificar as relações sociais conflituosas. Da documentação sob custódia do Arquivo Público do Paraná, foi publicado como instrumento de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n.1 [35], p. 173-190, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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pesquisa o Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos, em 2005 (ARQUIVO PÚBLICO DO PARANÁ, 2005). Nesse Catálogo seletivo de documentos são mencionadas informações gerais para cada verbete/ documento, como as convenções adotadas em sua descrição: código de referência, autoria, destinatário, referência e descrição sucinta do teor do documento, localidade, data, a notação do documento para sua localização e o estado de conservação. No Quadro 1, os verbetes mencionados referem-se diretamente ao episódio da revolta dos escravos na Fazenda Capão Alto, com descrição para cada item documental. Os temas missivistas dos itens documentais são referentes ao contrato de arrendamento; à escolta de escravos presos às cadeias de Castro e Curitiba, e escoltas de praças para a condução de escravos a Antonina; ao pedido de isenção de impostos solicitado por Bernardo Gavião & Ribeiro Gavião; e à cobrança de impostos referentes à saída dos escravos da Província do Paraná. Tais fontes permitem estudar as representações e as formas de conflito desse contexto. Quadro 1 - Documentação do Arquivo Público do Paraná, relativa ao arredamento dos escravos da Fazenda Capão Alto. Número Verbete

Código de referência/ Data

Descrição sucinta

256

AP 0188 p. 65, 11 de julho de 1864

Do Delegado de Polícia, Ernesto Francisco de Lima Santos, ao Presidente da Província do Paraná. Solicitação da escolta de seis praças e um inferior para conduzir os escravos arrendados de Curitiba à Antonina.

257

AP 0188 p. 64, 13 de julho de 1864

Do Delegado de Polícia, Ernesto Francisco de Lima Santos, ao Presidente da Província do Paraná. Informa que oficiou ao Comendador Manoel Antonio Guimarães - procurador que recebesse os escravos presos na Cadeia evitando, que fosse necessária a escolta com seis praças e um inferior.

261

AP 0190 p. 243-245, de 20 e 21 de setembro de 1864

Do Inspetor da Tesouraria e Procuradoria Fiscal da Província do Paraná ao Vice-Presidente da Província do Paraná. Pedido contrário da Procuradoria Fiscal à isenção do imposto por escravos saídos da Província do Paraná aos senhores Bernardo Gavião & Ribeiro Gavião.

275

AP 0219 p. 99, de 20 de dezembro de 1865

Do Juiz de Direito Substituto, Francisco Xavier da Silva, ao Presidente da Província do Paraná. Contrato de arrendamento dos escravos da Fazenda Capão Alto por Bernardo Gavião & Ribeiro, informando que levariam somente os escravos aptos a prestar serviços e deixariam na fazenda apenas os inválidos, juntamente com pedido de isenção de impostos.

284

AP 0251 p. 225, de 17 de janeiro de 1867

Do Chefe de Polícia da Província do Paraná ao Presidente da Província do Paraná. Resposta à Portaria que pede auxílio para mandar 23 escravos comprados por Bernardo Gavião & Ribeiro Gavião da Ordem dos Carmelitas para a Província de São Paulo.

285

AP 0253 p. 08-11, de 18/21 de janeiro de 1867

Do Inspetor da Tesouraria da Província do Paraná ao Presidente da Província do Paraná. Sobre os impostos devidos por Bernardo Gavião & Ribeiro Gavião à Fazenda da Província do Paraná.

362

AP 0285 p. 175-176, de 27 de agosto de 1868

Do Inspetor da Tesouraria da Província do Paraná ao Vice-Presidente da Província do Paraná. Cópia da carta do encarregado da Fazenda da Província, João Mendes de Almeida, para cobrar impostos sobre a saída de escravos contra a Casa Bernardo Gavião & Ribeiro Gavião.

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Arquivo Público do Paraná (2005).

No movimento de revolta na Fazenda Capão Alto foram apontados 11 escravos líderes e presos nas cadeias de Castro e Curitiba (PARANÁ, 1985). Nesse momento da revolta, alguns escravos se dispersaram e fundaram quilombos nas proximidades de Castro. Em 1864, apesar dos esforços do poder público de Castro e Curitiba em tentar solucionar e apoiar os comerciantes paulistas, ficou constatada a burla aos cofres provinciais, com o não pa-

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gamento de impostos de saídas dos escravos no valor de, aproximadamente, 11 contos e oitocentos mil réis (PENA, 1999, p. 324). A saída da comunidade de cativos da Fazenda Capão Alto ao interior de São Paulo foi dividida em dois grupos, provavelmente em 1867. No primeiro grupo, 50

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Notas de Pesquisa

A saída da comunidade de cativos da Fazenda Capão Alto ao interior de São Paulo foi dividida em dois grupos, provavelmente em 1867.

escravos foram levados para trabalhar na construção da ferrovia que ligava as cidades paulistas de Jundiaí à Campinas, obra financiada pela própria firma Bernardo Gavião & Gavião. O segundo grupo, com 186 escravos, foi vendido ao comendador Francisco Teixeira Vilela, de Campinas (OLIVEIRA, 2013, p. 149 e p. 164-165). A pesquisa de Oliveira (2013) privilegiou a investigação da experiência de escravos comercializados para Campinas (SP) no período de 1850-1888, na qual constam os cativos da Fazenda Capão Alto. Para atingir seus objetivos, concentrou esforços na micro-história de três comunidades escravas, utilizando o método de ligação nominativa de fontes para seguir pessoas no tempo e entre séries documentais diferentes. Os cativos da Fazenda Capão Alto se constituíram no terceiro bloco de seus estudos com a venda para Francisco Teixeira Vilela. Num segundo momento, para esse grupo o enfoque historiográfico da autora foi para os laços de compadrio estabelecidos numa rede solidária e para as alforrias. Entre outros aspectos, Oliveira (2013) comentou que, só em 1868, consta o registro de comercialização dos 186 escravos da Fazenda Capão Alto ao comendador Francisco Teixeira Vilela. A autora destacou que, possivelmente, a adaptação dos escravos não tenha sido fácil diante do trauma do desenraizamento e da violência do comércio interno. Antes mesmo de chegarem a Campinas (SP), o grupo sofreu novas separações. A maioria passou a residir na Fazenda Santa Maria, outros foram para as fazendas do Morro Alto e da Invernada. No geral, os cativos tiveram que se adaptar a uma nova rotina de trabalho e vivências, se integrar a outras comunidades já estabelecidas. Após seis anos da vinda deles à Fazenda Santa Maria, dois escravos, Amancio e Ladislao, fugiram. Em 1873, quando da morte do comendador Vilela, a comunidade de escravos procedentes da Fazenda Capão Alto era de 123 cativos. Eram 54 mulheres, sendo 39 solteiras e 15 que eram ou já haviam sido casadas. O número de homens era de 69 e, desses, apenas nove eram casados ou viúvos. Muitos dos casais viveram em união consensual (OLIVEIRA, 2013, p. 158, p. 166-167 e p. 174). Numa outra ênfase, estudos de Ribeiro (2012) comparam as formas de riqueza e financiamentos das atividades produtivas de Campinas entre 1850-1873, utilizando fontes documentais do poder judiciário e cartorial, recenseamentos populacionais e almanaques. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n.1 [35], p. 173-190, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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Ribeiro (2012, p. 16) faz indagações sobre a firma Gavião, Ribeiro & Gavião. Primeiramente, de quais recursos se utilizaram para transferir ou vender os escravos da Fazenda Capão Alto para Francisco Teixeira Vilela. A autora apontou que, em 1860, a Casa Bancária de Bernardo Avelino Gavião Peixoto era considerada a maior em poder de influência junto à Corte imperial. Ao final dessa argumentação, a autora problematizou com a pergunta: “Ao que tudo indica eram a mesma firma ou Bernardo Gavião atuava na Casa Bancária e na firma Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião?”. Para esse contexto, observou-se que a Companhia Paulista de Estrada de Ferro Jundiaí a Campinas foi inaugurada em 1868, e o desembargador Bernardo Avelino Gavião Peixoto integrava a diretoria provisória (MOLINA, 2006). Quando chegaram os escravos da Fazenda Capão Alto, em 1868, Francisco Teixeira Vilela recolheu 5 o imposto de meia sisa e pagou a quantia devida à Coletoria de Rendas de Campinas a importância de trinta mil réis por escravo, totalizados em cinco contos quinhentos e oitenta mil réis (RIBEIRO, 2012, p. 16). O estudo de Oliveira (2013) registrou a composição das faixas etárias dos escravos comprados da Fazenda Capão Alto por Francisco Teixeira Vilela. O Quadro 2 demonstra que a composição mais expressiva em número e idade foi a da faixa etária de 0 a 14, com um total de 87, dos quais 46 homens e 41 mulheres. A de menor composição foi a faixa etária acima dos 45 anos, com um total de 28 escravos, sendo 10 homens e 18 mulheres. Quadro 2 – Faixa etária dos escravos da fazenda Capão Alto comprados por Francisco Teixeira Vilela. Faixa Etária

Homem

Mulher

0-4

10

15

5-9

19

09

10-14

17

17

15-19

05

06

20-24

11

03

25-29

03

06

30-34

06

10

35-39

01

04

40-44

05

11

45-49

02

08

50-54

06

08

55 ou + mais

02

02

Total

87

99

Total

87

34

37

28 186

Fonte: Coletoria de Rendas de Campinas, Livro 43 (Centro de Memória - Unicamp apud OLIVEIRA, 2013, p. 166).

5 A sisa era o imposto cobrado, para a saída ou entrada, sobre qualquer transação de compra e venda, inclusive de escravos. O valor era de 5% referente ao valor total da mercadoria (ARQUIVO PÚBLICO DO PARANÁ, 2005, p. 18).

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Parte 2

&

Notas de Pesquisa

Na Fazenda Santa Maria de Francisco Teixeira Vilela, 10 dos escravos vindos da Capão Alto ocuparam ofícios especializados. Foram seis mulheres dedicadas ao serviço doméstico e ao trabalho de cozinheira, e quatro homens que trabalharam como tropeiro, carpinteiro e em serviços fora da fazenda (OLIVEIRA, 2013, p. 174). Para os escravos da Fazenda Santa Maria, Francisco Teixeira Vilela propiciou o ensino de música, com professor contratado, e ainda manteve um contrato anual com médico e clínica para prestar assistência aos escravos (RIBEIRO, 2012, p. 17). Nessa fazenda é que se concentrou o maior número de escravos vindos da Fazenda Capão Alto. Para o inusitado aspecto musical entre os escravos, Oliveira (2013) registrou a formação de uma banda musical entre os cativos de Vilela, dirigidos pelo maestro Sabino Antonio da Silva, vindo do Rio de Janeiro. A banda dos ”escravos-músicos” apresentou-se algumas vezes em Campinas (SP). Para a inauguração do trecho da estação de estrada de ferro da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, os músicos se apresentaram por duas vezes, na cerimônia oficial e na reunião de convidados, conforme relatado no Almanak de Campinas de 1873, sob o título Música de Pretos. Curiosamente, nessa estrada de ferro, no sentido inverso, se concentrou o primeiro grupo de escravos vindos da Fazenda Capão Alto (RIBEIRO, 2012). Para a inauguração da estação, a banda executou a peça musical A estrada de ferro, composição do maestro Santana Gomes, irmão do compositor Antonio Carlos Gomes (RIBEIRO, 2015, p. 552). Posteriormente, quando da morte e abertura do inventário de Francisco Teixeira Vilela, foi constatado que as dívidas, os créditos hipotecários e comerciais eram superiores ao seu acervo patrimonial. Da composição do inventário post-mortem, constou a concentração de sua riqueza em escravos: 452 cativos, mais 13 ingênuos em plantações de café, incluindo terras e benfeitorias. No encerramento do acervo hereditário pro-indiviso de Francisco Teixeira Vilela, em 1892, a Fazenda Santa Maria foi vendida para a Companhia Rural do Brasil (RIBEIRO, 2012, p. 16-21).

Quilombos e Comunidades de Remanescentes de Quilombos (CRQs)

Por vezes, na historiografia tradicional paranaense observou-se a apropriação descontextualizada do termo “quilombo da Capão Alto” referindo-se aos escravos da Fazenda Capão Alto, seja por sua vivência libertária em comunidade ou pelo momento da revolta de 1864. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n.1 [35], p. 173-190, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284

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Diante do descortinamento das Comunidades de Remanescentes de Quilombos (CRQs), concomitante ao processo de inclusão sociocultural e de inclusão do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas brasileiras, é significativo fazer uma leitura crítica quando da utilização dos termos quilombo e Comunidades de Remanescentes de Quilombos (CRQs). O termo quilombo utilizado no Brasil remete à ideia de uma comunidade de escravos fugidos, da etimologia quimbundo como aldeia, ao local que viviam os calhambolas, da legislação colonial como foco de resistência, de escravos fugidos e isolados. Na história, o termo é redimensionado e ultrapassa o binômio fuga-resistência para considerar as variadas situações da ocupação territorial no contexto atual. A noção de quilombo não é restrita às fugas ou refúgios e, sim, à formação dos grupos familiares. As diversas trajetórias dessas comunidades trazem suas particularidades regionais e seu contexto histórico. Hoje, os descendentes desses grupos demandam por seu reconhecimento, direito às terras e ressignificação de seus valores culturais e simbólicos (CARVALHO & LIMA, 2013). Nos preceitos inscritos na Constituição de 1988, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (ADCT), os Artigos nº 68, 215 e 216, respectivamente, instituem o reconhecimento das propriedades de remanescentes das comunidades de quilombos; proteção e valorização das manifestações culturais populares na dimensão das diversidades étnicas e regionais; e constituição enquanto patrimônio cultural brasileiro a se preservar como bens materiais e/ou imateriais. A Lei nº 10.678/2003 trata da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no âmbito da qual, posteriormente, formou-se o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), para traçar as diretrizes gerais ao Programa Nacional de Quilombos. Esses são alguns dos aspectos das conquistas enquanto políticas públicas voltadas ao reconhecimento social dessas comunidades. Para um conceito antropológico, geográfico e histórico, esses preceitos constitucionais das Comunidades de Remanescentes de Quilombos (CRQs) se dilatam para questões voltadas à expressão de sua territorialidade e identidade étnica, ao reconhecimento de seus direitos sociais e à preservação de bens de natureza material e imaterial. As CRQs estão em áreas que trazem as marcas da história da resistência negra à escravidão brasileira e são certificadas pela Fundação Cultural de Palmares. As comunidades são caracterizadas por suas especificidades culturais com ancestralidade negra e por praticarem uma agricultura fundamentada nas formas tradicionais de manejo e uso comum da terra, com formas de cooperação entre as famílias.

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Parte 2

Na região de Castro (Paraná), na microrregião de Ponta Grossa, segundo o Grupo de Trabalho Clóvis de Moura (2015) e ITCG (2008), estão as comunidades certificadas, as CRQs, da Serra do Apon, Mamãs, Limitão, com descendentes de escravos fugidos das Fazendas Capão Alto, e a CRQ do Tronco, com descendentes de escravos fugidos da Fazenda Cunhaporanga.

&

Notas de Pesquisa

As comunidades certificadas, as CRQs, da Serra do Apon, Mamãs, Limitão, com descendentes de escravos fugidos das Fazendas Capão Alto, e a CRQ do Tronco, com descendentes de escravos fugidos da Fazenda Cunhaporanga.

De maneira concisa constatou-se, conforme disposto no levantamento dos dados do ITCG (2008), que a CRQ da Serra do Apon foi dividida em quatro núcleos: Paiol do Meio, Faxinal do São João, Santa Quitéria e Lagoa dos Alves, com 31 famílias e 103 habitantes. A CRQ de Mamãs apresentava os núcleos certificados como município de Castro, com dois na fronteira do município de Cerro Azul: Imbuial, Água Morna (Castro), Pinhal Grande (Castro/Cerro Azul), Ribeirão do Meio (Castro/Cerro Azul), com 25 famílias e 96 habitantes. A CRQ do Limitão não apresentou núcleos e era integrada por 26 famílias e 95 habitantes. As Comunidades de Remanescentes de Quilombos (CRQs) da região de Castro, com seus descendentes de escravos da Fazenda Capão Alto e Cunhaporanga, sugerem novas pesquisas direcionadas à história, às memórias dos mais idosos com traços das recordações passadas por seus antecessores e das vivências no ambiente revisitado das fazendas.

Referências Fontes primárias: AUTO DE VIOLÊNCIA sobre os vizinhos moradores de fundos para retomarem a servidão do Maracanã. 01/03/1798. Cópia do Arquivo do Estado de São Paulo. Ordem B0317 D1. Acervo Documental Prof.ª Elizabete Alves Pinto. Caixa 2. Doc. 1. Centro de Documentação e Pesquisa em História. Universidade Estadual de Ponta Grossa. GAZETA PARANAENSE. Publicação diária nº. 218. Os escravos do Capão Alto. Curitiba, 30 de setembro de 1886. Biblioteca Nacional Digital. Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/242896/ per242896_1886_00218.pdf>. Acesso em: ago. 2015. INSCRIÇÃO LIVRO TOMBO II Nº. 80, PROCESSO Nº. 82/81, DE 26 DE NOVEMBRO DE 1983. Registro do tombamento estadual da Fazenda Capão Alto, de Castro (PR). Secretaria de Estado da Cultura. Coordenadoria do Patrimônio Cultural. Curitiba (PR).

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LISTAS NOMINATIVAS 1801-1830 DA VILA DE CASTRO (PR). Cópia xerografada do Arquivo do Estado de São Paulo. Acervo Documental Prof.ª Elizabete Alves Pinto. Centro de Documentação e Pesquisa em História. Universidade Estadual de Ponta Grossa. MAFRA, Manoel da Silva [Chefe de Polícia da Província do Paraná]. Carta/ofício a José Joaquim do Carmo [Presidente de Província do Paraná]. Livro de correspondência de autoridades. Cidade, 14 de maio de 1864. [AEPR - Códice 0537. p. 71 a 75]. Transcrição do manuscrito. Pasta Fazenda Capão Alto. Museu do Tropeiro, Castro (PR). MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de S. Paulo em 1836. São Paulo: Typographia de Costa Silveira, 1838. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Universidade de São Paulo. Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7101>. Acesso em: mar. 2018. OFICIO PARA O DR. FRANCISCO LEANDRO DE TOLEDO RENDON, OUVIDOR DE PARNAGUÁ. 15/07/1785. Publicação oficial de Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. Ofícios do General Francisco da Cunha Menezes (Governador da Capitania). 1782-1786. São Paulo: Departamento de Arquivo do Estado de São Paulo/Secretaria de Educação, 1961. v. 85. Biblioteca Digital da Universidade Estadual Paulista. Disponível em: <http://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/59/ browse?type=title>. Acesso em: jan. 2015. SILVA, Sebastião Gonçalves da - Chefe de Polícia da Província do Paraná ao Delegado de Castro. Ofício. Livro de correspondências enviadas a autoridades. 21 de abril de 1860. p. 46. Transcrição do manuscrito. Pasta Fazenda Capão Alto. Museu do Tropeiro, Castro (PR).

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&

Notas de Pesquisa

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Resenha

Famílias do mundo ibérico: cotidiano, política e mudanças sociais na Argentina e na Espanha Janaína Helfenstein Universidade Estadual Paulista (Unesp Franca)

GHIRARDI, Mónica; LOPEZ, Antonio Irigoyen. Nuevos tiempos para las familias, familias para los nuevos tiempos. De las sociedades tradicionales a las sociedades burguesas: perspectivas comparadas entre Argentina y España. Córdoba: Boulevard, 2016. 268 p.

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Resenha

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Lançado em agosto de 2016 em Córdoba, Argentina, durante o II Congreso Internacional de Familias y Redes Sociales, o livro Nuevos tiempos para las familias, familias para los nuevos tempos. De las sociedades tradicionales a las sociedades burguesas: perspectivas comparadas entre Argentina y España, organizado pelos professores Mónica Ghirardi e Antonio Irigoyen Lopez, reúne uma série de textos produzidos por pesquisadores argentinos e espanhóis dedicados aos estudos relacionados à História da Família e à Demografia Histórica.

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nha, centrando sua análise na identificação das particularidades dos processos de mudança social ocorridas nessas duas localidades.

Antonio Irigoyen Lopez é professor de História Moderna na Universidad de Murcia, na Espanha, especializado em História Social da Igreja e do Clero na monarquia hispânica durante os séculos XVI a XVIII. Suas pesquisas se concentram na cerimônia matrimonial e sua regulação eclesiástica, como também no batismo e nas relações de compadrio.

Para os autores, a partir da investigação das mudanças na estrutura familiar, nos comportamentos e nas expectativas de seus componentes, é possível avançar nos conhecimentos que temos a respeito das mudanças sociais. Ainda na introdução, os organizadores enfatizam que é fundamental interrogar-se sobre o desenvolvimento do individualismo tendo em mente que este é um processo de afirmação pessoal, mas que caminha paralelamente às mudanças que ocorrem na família, pensada como instituição social. Assim, a História da vida cotidiana ocupa-se das condições de vida dos seres humanos a partir da coletividade, mas sem deixar de pensar nas particularidades e singularidades dos indivíduos. Devemos, portanto, concentrar-nos no componente duplo que existe nesse âmbito, o individual versus o coletivo, ou nos vínculos sociais versus laços pessoais, e para que possamos detectar as mudanças que ocorrem nesses universos e os fenômenos que os levam a acontecer “existe um lugar privilegiado que exerce as vezes de laboratório: a família” (p. 9, tradução livre).

A obra em questão está estruturada em um texto introdutório, produzido pelos organizadores, e mais cinco capítulos, todos pautados por uma análise comparativa entre Espanha e Argentina, e produzidos em pares, sendo um autor de cada nacionalidade. O livro adota como perspectiva a história comparada, buscando encontrar e identificar similitudes e contrastes na vida cotidiana das famílias do mundo ibérico, com ênfase em Córdoba, na Argentina, e Múrcia, na Espa-

A obra possui cinco capítulos que abrangem desde os comportamentos e dinâmicas familiares até as mudanças ocorridas com os indivíduos no interior das famílias. O primeiro capítulo, intitulado Familia y poder político en las periferias de la Monarquía Hispánica (Reino de Murcia y Córdoba del Tucumán en tiempos de los Austrias), de autoria de Francisco Izquierdo e Federico Sartori, se concentra no século XVII e tem como objetivo apresentar os comportamentos e as dinâmicas

Mónica Ghirardi é professora titular no Centro de Estudos Avançados da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de Córdoba. É especialista em História do Casamento e da Família, sexualidade, gênero, miscigenação e escravidão, sendo esses aspectos analisados na obra pela perspectiva sociocultural e demográfica.

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familiares de duas famílias da elite de dois territórios distintos e geograficamente distantes, mas que, de acordo com os autores, estão vinculados por uma mesma condição periférica: no caso de Córdoba del Tucumán, uma localidade pertencente a um virreinato1 da Espanha no Continente Americano, e no caso de Múrcia, um reino peninsular espanhol. Neste primeiro capítulo, os autores demonstram como os estudos das famílias de elite são importantes para a compreensão das características das sociedades de Antigo Regime e, ao colocarem Família e Poder Político como elementos de um “binômio necessário”, deixam claro como as relações familiares nesse período ultrapassam os limites do privado e do domiciliar para se firmarem no âmbito das estratégias políticas. O segundo capítulo, de Juan Francisco López e María del Carmen Ferreyra, Matrimonio y dispensas matrimoniales en Iberoamérica. Estudio comparado en las provincias de Córdoba y Murcia, diz respeito ao casamento realizado entre parentes, que em teoria era proibido pela Igreja Católica. No entanto, havia uma forma de validação desta união através das dispensas matrimoniais. Os autores se dedicaram em demonstrar como os casamentos consanguíneos poderiam ser meios de estabelecer alianças sociais e políticas nos territórios espanhóis, assim como na Europa e na América. Todavia, com uma diferença bastante notável: a prática nos territórios hispânicos era muito desigual da encontrada nos territórios americanos. Enquanto na Europa o processo era mais complexo, nas Américas era obtido de forma muito mais simples, em 1 Os virreinatos eram entidades territoriais estabelecidas pela coroa Espanhola em suas colônias na América. Córdoba del Tucunmán pertencia ao Virreinato del Perú.

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Resenha

virtude da distância e lentidão de envio da documentação para Roma. Indumentaria masculina en transición. Un análisis comparativo entre Madrid-Murcia (España) y Córdoba (Argentina), siglos XVIII-XIX, de Cecilia Moreyna e Arianna Giorgi, é o terceiro capítulo da obra e teve por objetivo observar, analisar e interpretar a vestimenta elitista como um elemento que marca a transição de uma sociedade tradicional de Antigo Regime para uma sociedade moderna. As autoras verificaram que, nesse período, os trajes utilizados pelos homens de elite hispânica passaram a ter uma função para além da usual: não somente de cobrir os corpos, como também de distinção social, sobretudo no território Ibero-americano. O quarto capítulo do livro, Los discursos sobre la família católica en la prensa religiosa de inicios del siglo XX, de Francisco Sánchez e Sara Moyano, se dedica a responder questões como: “Qual espaço a família ocupou nos meios de imprensa religiosa do início do século XX?”; “O que a Igreja Católica dizia a respeito da família?”; ou ainda, “O discurso da imprensa católica era semelhante nos territórios distantes de Murcia e Córdoba?”. Segundo as autoras, o discurso era semelhante e estava pautado em demonstrar que a família era a pedra fundamental para a sustentação de um modelo social em que a Igreja determinava os comportamentos. Portanto, as mudanças sociais que afetavam esse modelo eram consideradas como uma ameaça à sociedade católica. O quinto e último capítulo foi escrito pelos organizadores da obra e se intitula De la família del linaje a la família de los individuos. Unidad y diversidad de los procesos de cambio histórico a ambos lados del Atlántico. Este capítulo

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teve por objetivo apresentar as transformações da instituição familiar nos territórios da monarquia hispânica, buscando, a partir de uma análise comparativa de Espanha e Argentina, as similaridades nos processos de transição e mudanças sociais a partir do casamento e das relações de parentesco entre esses dois territórios. Como se pode verificar a partir desse pequeno resumo dos capítulos, a obra em questão apresenta relevantes temáticas do campo de estudos da História da Família. Todavia, o tema que teve mais destaque nesse livro foi o das estratégias familiares, mais precisamente, as estratégias, arranjos e redes que as famílias da elite ibérica estruturavam e tramavam com a finalidade de ascensão social e manutenção do poder adquirido. A família, como poderemos ver a seguir, é ao mesmo tempo meio de se obter prestígio e também palco das alianças necessárias para se alcançar tal prestígio. Para tanto, na maioria das vezes o matrimônio é o principal mecanismo para transformar em efetivo e indissolúvel o vínculo de união entre famílias. “Tais uniões contribuiriam para definir um ninho de relações com famílias bem acomodadas [...], o que garantia um mínimo de espaço de poder suficiente para tecer alianças e ter acesso a novas redes fundamentais para reforçar sua posição política” (p. 33-34, tradução livre). Muito mais que um sacramento divino, o ato de casar-se era também político, estratégico e extremamente avaliado. Assim sendo, até mesmo os casamentos realizados com os membros da própria família eram mais corriqueiros do que pensamos. Essa questão das estratégias familiares e das

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alianças políticas tecidas através dos arranjos matrimoniais foi bem exemplificada a partir da leitura dos capítulos 1 e 2 do livro. Izquierdo e Sartori, no primeiro capítulo, demonstram a partir de suas pesquisas que, mesmo em territórios distintos, e até em universos políticos um pouco diferentes – como Múrcia, localizada na Espanha, e Córdoba del Tucumán, localizada na Argentina, metrópole e colônia –, as estratégias para se conseguir prestígio não eram tão diferenciadas. Los Macanaz, a família murciana apresentada, era uma família mediana, sem muitos patrimônios – segundo os autores – mas que tinha como objetivo conseguir cargos de prestígio junto ao conselho local, pois esta seria uma maneira mais efetiva de se enraizar na região. Para esta família “a maior parte das núpcias estarão orientadas a reforçar suas expectativas de acesso e consolidação no reduzido colégio político da localidade, forjando para si uma rede de famílias próximas de relativo peso e tradição política” (p.32, tradução livre). Los Macanaz objetivavam então, através do casamento de seus filhos e filhas, manter relações com famílias importantes no cenário político local, ampliando sua base de parentesco ao se inserir em novos grupos familiares que pudessem apoiar e, sobretudo, reforçar suas aspirações. Por outro lado, Los de Cámara, de Córdoba, na Argentina, iniciaram sua linhagem em uma recém-fundada cidade no território espanhol nas Américas. Assim, para eles era fundamental consolidar a família a partir da posse da terra, posse de escravos e dos acessos aos cargos do governo e, com isso, se inserir na sociedade criolla. Córdoba está localizada em uma região geográfica estratégica, o que fazia da cidade um ponto de comunicação de todo o território. Além disso,

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possuía um bom desenvolvimento agrícola e pecuário (gado bovino e muar) e, sobretudo, indígenas que trabalhavam sob o regime de encomenda, o que permitiu o rápido fortalecimento econômico da região. Segundo os autores, as elites dessa região seriam um grupo reduzido de famílias feudatárias formadas pelos primeiros “conquistadores” que controlavam os distintos cargos de justiça, governo e comércio locais. A estreita vinculação de ambas famílias com a gestão do poder político, chave de suas aspirações, faz deste o fio condutor a partir do qual podemos seguir a evolução principal das duas trajetórias. Tanto na periferia de Castilha como na do virreinato do Peru, o político se constitui em um elemento de jogo de poder e promoção social que chamará a atenção de boa parte das elites e famílias das oligarquias urbanas (p. 66, tradução livre).

Outro aspecto muito bem apresentado no livro diz respeito às dispensas matrimoniais que eram solicitadas à igreja para a realização de casamentos consanguíneos, e como essa prática poderia também ser utilizada como forma de estratégia familiar. Os autores do segundo capítulo, Juan Francisco López e María del Carmen Ferreyra discutem que, na realidade, essa não era uma conduta aceita pela Igreja Católica, já que existiam vários impedimentos e, inclusive, graus de parentesco (sanguíneo e espiritual) que deveriam ser respeitados para que um casamento ocorresse entre membros de uma mesma família. Ainda assim, esse tipo de união era realizada. Os autores pesquisaram as recorrências de pedidos de dispensas matrimoniais em Múr-

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Resenha

cia e Córdoba durante o século XVIII e verificaram as principais características desses pedidos, tanto no Reino como na Colônia. De acordo com eles, no que se refere ao parentesco propriamente dito, as realidades matrimoniais de Múrcia e Córdoba apresentavam traços bem diferenciados. Em Córdoba, a consanguinidade poderia ser considerada como um pilar da hierarquia social existente, através da qual um dos principais objetivos era o de manter uma endogamia racial. Às famílias criollas interessava manter uma “pureza de sangue”, possível somente através do parentesco. Já para o caso de Múrcia, é possível verificar uma realidade mais heterogênea, em que há uma infinidade de alianças e um espaço matrimonial mais amplo. Assim, não havia uma limitação social a partir da etnia, por exemplo, e os casos de casamentos consanguíneos obedeciam a outros parâmetros, relacionados, sobretudo, ao fortalecimento das famílias e aos processos de mobilidade social. Outro fator interessante de se mencionar diz respeito aos graus de consanguinidade mais recorrentes nas relações cujas dispensas foram solicitadas. Em Córdoba, geralmente os noivos possuíam graus um pouco mais distantes, terceiro e quarto graus de parentesco. Em contrapartida, em Múrcia, foi possível observar casos de parentesco mais próximos, como primeiro e segundo graus, como, por exemplo, o casamento de um tio com uma sobrinha. É possível que essa diferenciação se dê, sobretudo, pelos valores que deveriam ser pagos para se obter a dispensa, que eram mais altos quando se tratava de parentescos mais estreitos. De acordo com os autores, na amostra argentina não houve casos desse tipo, pois “sua localização geográfica não permite burlar a norma. Isso acontece em

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outros territórios americanos, quando se pretende obter dispensa, mas os obstáculos impostos pela Diocese e os altos preços das mesmas, obrigam uma emigração matrimonial” (p. 104, tradução livre). O livro aqui apresentado nos mostra, a partir de experiencias de pesquisas realizadas em dois países, exemplos e caminhos metodológicos para se trabalhar com História da Família, enfatizando que o papel das famí-

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lias ultrapassava a vida privada e invadia a esfera pública, onde as estratégias familiares influenciavam a vida social e política da região estudada. Uma vez que a obra se coloca como tentativa de avanço nos estudos sobre a família, podemos afirmar que tal propósito foi atingido, pois a partir dessa leitura será possível fomentar novas pesquisas que contemplem a perspectiva da História da Família, da Demografia Histórica e até mesmo da História Comparada.

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Entrevista

Um encontro entre História Econômica e Demografia Histórica: Iraci del Nero da Costa Entrevistadoras:

Maria Alice Rosa Ribeiro Unesp Araraquara Centro de Memória - Unicamp (CMU)

Maísa Faleiros da Cunha Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo/Unicamp)

I

raci del Nero da Costa nasceu em São Paulo em 21 de junho de 1942. Filho de Moacyr Chagas da Costa e Edna del Nero

da Costa. Uma de suas lembranças são as lições de matemática dadas por seu pai, engenheiro, e que julga terem influenciado seu gosto pelo estudo de questões econômicas e estatísticas. Iraci bacharelou-se em Ciências Econômicas pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) em 1972. Em 1973, ingressou como docente auxiliar na área de História Econômica na mesma faculdade, onde recebeu o título de mestre em Economia com a dissertação Vila Rica: População (1719-1826), defendida em 1977. Seguiu o curso de doutorado em Economia ainda na FEA-USP, fa-

Principais livros publicados pelo entrevistado: Vila Rica: população (1719-1826). São Paulo, Ensaios Econômicos 01, IPE/FIPE, USP, 1979). Populações Mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos mineiros no alvorecer do século XIX. São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas FIPE/USP, 1981. Arraia-miúda: um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil. São Paulo, MGSP Editores, 1992. Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo, IPE/USP, 1986 (org.). Em co-autoria: Minas Colonial: economia e sociedade. São Paulo, SP: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas: Liv. Pioneira Ed., 1982. Escravismo em São Paulo e Minas Gerais. São Paulo: EDUSP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. O Capital Escravista-Mercantil e a escravidão nas Américas. São Paulo: Educ: Fapesp, 2010.

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zendo jus ao título em 1981, com a defesa

estatísticos de ordem diversificada, recense-

da tese Populações mineiras: sobre a estrutura

amentos da população, listas nominativas,

populacional de alguns núcleos mineiros no alvo-

registros paroquiais (batismo, casamento

recer do século XIX. Tornou-se professor livre-

e óbito). Interpretou o comportamento da

-docente na FEA em 1990, com a tese Arraia-

população e da economia colonial mineira,

-miúda: um estudo sobre os não-proprietários

paulista e brasileira nos séculos XVIII e XIX.

de escravos no Brasil. Está aposentado desde

Também discutiu as interpretações da eco-

setembro de 1997.

nomia colonial brasileira à luz da concepção

Iraci se dedicou à carreira acadêmica e ao desenvolvimento de estudos de Demografia Histórica e História Econômica do Brasil. Sua atividade docente, tanto na graduação como

marxista. Com Julio Manuel Pires, formulou uma interpretação da economia colonial do Novo Mundo com base no conceito capital escravista-mercantil.

na pós-graduação, sempre esteve vinculada

Nesta entrevista por e-mail realizada com o

às disciplinas de História Econômica Geral,

Prof. Iraci, procuramos contemplar a forma-

Formação Econômica e Social do Brasil, De-

ção universitária, seus trabalhos de pesquisa

mografia Histórica e História Demográfica

em História Econômica e Demografia Histó-

do Brasil. No plano teórico, preocupou-se

rica, assim como a interpretação formulada

com a compreensão da formação econômica

pelo entrevistado, em coautoria com Julio

do Brasil sob a ótica do pensamento marxis-

Manuel Pires, sobre a economia colonial bra-

ta; na pesquisa documental, preocupou-se

sileira à luz das críticas à historiografia do

em compilar, difundir e interpretar dados

passado colonial, capitalismo e escravidão.

****

O senhor nasceu na cidade de São Paulo, onde cursou as primeiras letras e o secundário? Cursei no secundário o Científico no Colégio de Aplicação (extinto pela ditadura), que recebia professores da USP, e onde fui aluno da Profa. Emília Viotti da Costa, que muito nos influenciou. No intervalo entre as aulas, nós a cercávamos e fazíamos muitas perguntas sobre história moderna e, sobretudo, sobre os países socialistas colocados na órbita (maldosa, é verdade) da URSS. Certamente devemos muito a ela quanto à nossa formação em história e “em esquerda”.

Como o golpe militar de 1964 afetou sua formação educacional? Quando aconteceu o golpe militar, devo alertar que ainda não estava na FEA. Na verdade, possuído pelo desejo revolucionário, abandonei os estudos colegiais, filiei-me ao Partido Comunista

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Entrevista

Brasileiro, do qual cheguei à condição de dirigente. Depois do golpe, voltei aos estudos, pois já nos primeiros dias de abril de 1964 fui intimado pela Polícia Política e me vi em face das alternativas: seguir para a clandestinidade ou comportar-me “bem”. Escolhi a segunda possibilidade.

Em 1991, o acervo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS/SP) foi recolhido ao Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Em 1994, o Arquivo Público concedeu acesso integral a documentos do acervo. Iraci pôde, então, conhecer o conteúdo do registro feito por agentes da Polícia Política da Ditadura Militar. A ficha, datada de 07/05/1974, transcreve informações da Ordem Política do período de 1961 e 1963, anterior à Ditadura. Chama atenção que, na ficha SN 4900, Iraci é nomeado, como sendo do sexo feminino “filha”, provavelmente erro de datilografia, pois, em seguida consta como o “epigrafado”. Entretanto, o agente da Polícia Política volta a nomear como “detida, qualificada e indiciada em Inquerito...”. Registra participação em pichações, reunião do Partido Socialista Brasileiro, prisão em 1961 e a vigilância da correspondência recebida em 1963. (Acervo pessoal de Iraci del Nero da Costa).

O senhor ingressou no curso de Ciências Econômicas na FEA em 1969, após o Ato Institucional n. 5, o AI-5, no momento em que Emilia Viotti da Costa, Paula Beiguelman, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e outros professores foram aposentados compulsoriamente. Como esses acontecimentos influenciaram o ambiente acadêmico? Um episódio a registrar é que a professora Alice Canabrava interferiu junto aos representantes da Ditadura que atuavam na USP a fim de que eu recebesse meus honorários, pois eles não os autorizaram por sete meses; depois de me perguntar se eu realmente não estava vinculado ao Partido ou a algum movimento de esquerda, ela dirigiu-se aos interventores militares e garantiu que eu passasse a receber normalmente, inclusive com o pagamento dos atrasados.

Quais leituras e autores influenciaram sua formação na graduação? Hegel e Marx são os principais. Devo muito aos clássicos de nossa história, com Camões à frente e os historiadores de Portugal (Vitorino de Magalhães Godinho, um guia inesquecível) e do Brasil (chefiados por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Celso Furtado), aos quais se reportam meus conhecimentos. Enfim, aponto aqui tão somente os autores que mais me impulResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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História Econômica

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sionaram a debruçar-me sobre a História e a História Econômica. Eles me levaram a Heródoto e a Tucídides, mas também me conduziram às dezenas e dezenas de colegas que deixaram suas contribuições em centenas de revistas e de livros.

E em Demografia Histórica, quais autores influenciaram sua formação? Na área da Demografia Histórica não posso esquecer os clássicos como Michel Fleury, Louis Henry, Alfred Sauvy e Pierre Goubert ao lado de quem se põem, em minha formação, as professoras Alice Piffer Canabrava e Maria Luiza Marcílio.

Em 1973, o senhor ingressou no curso de mestrado. Como definiu o tema da sua dissertação em Economia? Eu desejava, no mestrado (final da década de 1960), dedicar-me à política agrária dos distintos períodos governamentais de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1950-1954). Não obstante, minha orientadora, Profa. Alice Piffer Canabrava, não aceitou nenhum de meus projetos, pois afirmava e reafirmava que eu deveria me dedicar à Demografia Histórica, então cercada pelo imenso prestígio que lhe emprestou a tese de doutorado da Profa. Maria Luiza Marcílio. Na época, os orientadores não sugeriam, ordenavam. Dizia minha orientadora, “escrever sobre Getúlio significa elaborar mais um livro sobre um político largamente estudado, dedicar-se à demografia histórica representa colocar seu nome no plano internacional”. Depois de resistir por sete meses – anote-se que na época só se passava a receber o salário de professor da USP depois de aceita a dissertação pelo (a) orientador (a) –, verguei-me à vontade majestática e absolutamente correta da Profa. Alice.

Como foi seu ingresso como professor da área de História Econômica na FEA-USP em 1973? Na FEA, fui aluno da Profa. Alice na graduação. Certamente levada por minha aplicação, ela convidou-me para integrar o corpo de professores de História da FEA; também fui convidado para ministrar o curso de Matemática e Estatística, matérias nas quais também fui bom aluno em decorrência, basicamente, das aulas que recebia todo sábado, ministradas por meu pai, Moacyr Chagas da Costa, que era engenheiro e me transmitiu o amor pelos cálculos. Como a Profa. Alice já havia me convidado, comuniquei ao Prof. da outra área que já havia sido convidado pela Profa. Alice. Assim, dada sua força absoluta, no último dia das inscrições apresentei-me como candidato na área por ela comandada. Só o fiz para obedecê-la, pois achava que ser professor da USP era algo que estava muito acima de minhas parcas capacidades.

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Uma vez definido o campo da Demografia Histórica, por que da escolha do tema sobre a economia colonial de Minas? Meu primeiro objetivo foi Goiás Velho, onde residia Frei Simão Dorvi, que mantinha um arquivo com os assentos ou registros de paróquias de uma área que se estendia até os estados do Norte e do Nordeste. Infelizmente, o arquivo de Frei Simão não era utilizável para meus fins, pois a ordenação que fazia da documentação era por ordem alfabética, sem uma separação em termos paroquiais, enfim, centenas de paróquias juntadas num imenso arquivo único. Dirigi-me, então, a Ouro Preto. Minha primeira visita foi a uma paróquia que havia sofrido fazia pouco tempo um roubo espetacular, que muito perturbara seu pároco, o qual, simplesmente, negou-me acesso aos livros, afirmando que “paulistas só vêm aqui para roubar”. Desesperado, dirigi-me diretamente ao Arcebispo de Mariana, D. Oscar de Oliveira, doutor por Milão com a tese sobre os Dízimos Eclesiásticos no Brasil, historiador e homem excepcional. D. Oscar imediatamente entendeu meus propósitos, apresentou-me ao então padre responsável pela Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, D. Francisco Barroso. A ambos devo minha entrada na Demografia Histórica. Trabalhava no porão da Casa Paroquial e, quando necessário, levava os livros para Mariana, pois apenas na sede da Arquidiocese de Mariana havia uma máquina de xerox, então inexistente em Ouro Preto. Devo a eles e ao carinho recebido em Ouro Preto, Mariana e, posteriormente, de meus colegas de Belo Horizonte, meu apego a Minas Gerais e o respeito e a amizade que cultivo por muitos de seus filhos.

Como o senhor avalia seu estudo sobre Vila Rica, seu primeiro trabalho de cunho acadêmico, sua dissertação de mestrado orientada pela Profa. Alice Piffer Canabrava? Nosso trabalho, publicado em 1979, foi fruto de uma intensa e profunda pesquisa realizada entre 1972 e 1977, que mostrou as linhas demográficas mais gerais, mais evidentes de uma sociedade de vivência tumultuada pelo afluxo e evulsão de levas humanas, impelidas pelo fascínio dos achados auríferos e presas da nostalgia quando do esgotamento dos depósitos mais facilmente exploráveis. Sociedades que, somente ao raiar do século XIX, estariam a encontrar outra dinâmica – a do curso mais calmo, que parece coadunar-se com a sedentariedade dos grupos humanos dedicados às fainas da atividade agrícola. Nos anos de 1970, o estado da arte da Demografia Histórica brasileira ainda era tateante; a este respeito, lembre-se ser nosso trabalho, ao que nos consta, o primeiro relativo à área mineira. Nossa ambição maior era interpretar o fenômeno demográfico da segunda década do século XVIII ao primeiro quartel da décima nona centúria, com respeito à área das Minas Gerais – o surto mineratório, seu auge e decadência –, captando as repercussões sociais e econômicas do reflorescimento agrícola na Colônia, cujas raízes assentaram-se no último quartel do século XVIII. Compreender, igualmente,

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a concentração populacional ocorrida nos três primeiros quartos do século XVIII, período no qual se formou o estoque de população que, em segundo momento, também englobado pelo estudo vertente, dirigiu-se para outras áreas do território brasileiro. Definimos como objeto de análise o fluxo e refluxo populacional, vale dizer, a concentração de grande contingente humano – oriundo dos diversos quadrantes do Brasil, da metrópole e demais dependências coloniais – em pequeno espaço territorial e sua subsecutiva diáspora. Esses movimentos foram condicionados, de um lado, pela ascensão e recesso da atividade aurífera e, de outro, pelas atividades econômicas subsequentes à decadência da mineração.

Iraci del Nero da Costa com sua orientadora Profª. Alice Piffer Canabrava, na defesa da dissertação de mestrado em 1977. Acervo Pessoal de Iraci del Nero da Costa.

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Entrevista

Quais foram as fontes documentais para o desenvolvimento do estudo Vila Rica: População (1719-1826)? Nossas fontes primárias constam essencialmente dos assentos de batismos, óbitos e casamentos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias, uma das duas existentes, no período colonial, em Vila Rica, hoje Ouro Preto. Os dados primários referentes ao assento paroquial receberam tratamento derivado da metodologia desenvolvida, na França, principalmente por Michel Fleury, Louis Henry e Pierre Goubert. Os procedimentos instituídos por esses autores foram adaptados às circunstâncias específicas em que se estruturou a população brasileira. Ressalta-se a existência, no Brasil, de segmentos populacionais distintos daqueles observados na Europa – a massa de escravos, os forros e os demais livres revelaram comportamentos particulares, formando corpos populacionais autônomos em relação a vários parâmetros demográficos e, ao mesmo tempo, apresentaram respostas diversas quanto às flutuações da atividade econômica, tanto no curto como no longo prazo. Também nos servimos dos dados empíricos revelados por Herculano Gomes Mathias relativos ao levantamento populacional efetuado em Minas Gerais no ano de 1804. Com base nesse levantamento, foi possível analisar a estrutura populacional de Vila Rica segundo sexo, idade, estado conjugal e posição social (livres, escravos, forros, agregados); e ainda explorar a estrutura ocupacional, por meio dos dados referentes às profissões e às atividades produtivas por setores econômicos (primário, secundário e terciário).

Como o senhor vê a importância da economia da mineração para a formação da sociedade brasileira? Dificilmente poder-se-ia superestimar a importância do período mineratório na formação socioeconômica do Brasil. A atividade aurífera levou à ocupação do interior brasileiro; os limites teóricos fixados em Tordesilhas foram largamente ultrapassados. As áreas de ocorrência do ouro, afastadas do litoral e de baixa densidade populacional, passaram a exercer tamanha atração sobre o espírito dos reinóis e colonos que, em pouco mais de noventa anos, a população viu-se decuplicada, concentrando-se no centro-sul – área que apresentava, anteriormente, baixíssima densidade demográfica – cerca de cinquenta por cento do contingente humano da Colônia. A interligação das áreas já ocupadas pelo colonizador europeu aparecia como primeiro elemento de integração econômica e social, ao mesmo tempo esboçava-se o mercado consumidor interno e intensificava-se o processo de urbanização. Paralelamente, ocorriam mudanças significativas na administração colonial, maior vigor e fortalecimento do Estado faziam-se necessários para controlar a economia, a cada passo mais complexa, e enquadrar uma população a crescer aceleradamente. Durante ¾ de século, a mineração ocupou a maior parte das

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atenções do Brasil e desenvolveu-se à custa da decadência das demais atividades. O fluxo de população para as minas é considerável desde o início do século XVIII; um rush de proporções gigantescas, que relativamente às condições da Colônia, foi mais acentuado e violento que o famoso rush californiano do século XIX.

A decadência foi também sentida como uma possibilidade de abrir novas explorações agrícolas para o abastecimento interno, principalmente, quando da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808? Sim. Depois de três décadas de intensa produção aurífera, em meados do século XVIII, as minas começaram a exaurir-se. O produto das jazidas vê-se reduzido, a Coroa, por seu lado, nega-se a reformular a estrutura e carga de tributos. Nas minas, exploravam-se os depósitos superficiais rapidamente esgotáveis. As reservas de aluvião extinguem-se com brevidade; nos morros chegava-se à rocha dura. Para trabalhos subterrâneos, faltavam capitais e, sobretudo, técnicas. No último quartel do século XVIII a decadência generaliza-se. Os mineiros passaram a procurar as poucas áreas de terra fértil na região das minas, ou dirigiram-se para o leste – zona da mata, de terras mais ricas –, para as áreas de plantio do sul ou demandaram os campos criatórios situados a oeste. Superava-se uma fase da vida econômica colonial, as atenções voltavam-se, redobradamente, para a atividade agrícola.

Quais os marcos mais significativos explorados no seu estudo e que merecem ser ressaltados, tendo em conta o “estado da arte” da historiografia e do conhecimento sobre a sociedade mineira à época em que o senhor desenvolveu seu estudo nos anos de 1970? Um primeiro marco é o caráter da ocupação e do povoamento de Vila Rica, que foram condicionados pela forma de recolhimento dos minerais e pelo meio físico envolvente. Não parece ter havido um plano empresarial definido e definitivo. O colonizador, simplesmente, curvou-se ao ambiente geográfico, adaptou-se mais ou menos passivamente, parecendo-nos antes dominado que dominador criativo; o próprio desalinho do traçado de Vila Rica parece comprovar essa nossa presunção. Nossa análise revelou uma sociedade altamente estratificada, embora com maior flexibilidade, vale dizer, maior mobilidade de transitar para um estrato social mais elevado do que em outras áreas econômicas da Colônia. Pudemos identificar, em termos de parâmetros demográficos, três segmentos populacionais básicos, aliás, comuns ao Brasil: livres, forros e cativos. Os livres, em geral, e os brancos, em particular, como esperado, compunham a camada privilegiada da população. A pobreza, presente em larga escala, abatia-se, principalmente, sobre forros, excluídos aqui, evidentemente, os escravos, para os quais o destino reservara as maiores dores – ceifados, na lida árdua em que se os empregava, segundo a taxa de mortalidade que, se válida para a espécie, a anularia da face do planeta. Na decadência da mineração, a

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pobreza mostrava-se mais pungente no aumento do número de crianças expostas – rejeitadas –, as quais eram as mais sujeitas à morte prematura. Marcaram a sociedade o predomínio de filhos naturais, as mães solteiras e, ao mesmo tempo, as uniões matrimoniais sacramentadas pela Igreja, que propiciaram, ainda que perfunctoriamente, relativa mobilidade social: lembramos, a este respeito, os consórcios entre brancos e forras (pretas ou mulatas), e os casamentos de libertos com cativos.

Na segunda parte do seu trabalho o senhor explora os aspectos econômicos. O que marcou Vila Rica de acordo com os dados do recenseamento populacional de 1804? No recenseamento de 1804, o caráter citadino de Vila Rica foi exposto prodigamente. A urbanização era um fenômeno novo na Colônia. A população concentrava-se nos povoados que se organizavam junto às catas e dependiam do abastecimento de produtos de subsistência vindos de outras áreas, assim constituía-se um rigoroso mercado urbano. Por outro lado, na Vila havia a presença altamente significativa das atividades vinculadas ao setor secundário (sapateiros, faiscadores, alfaiates, costureiras, carpinteiros, latoeiros, ferreiros, pedreiros, seleiros, serralheiros, relojoeiros etc.) e terciário (quitandeiras, barbeiros, cozinheiros, jornaleiros, lavadeiras, autoridades eclesiásticas, militares e administrativas, negociantes de secos e molhados, músicos, parteiras, profissionais liberais, transportes, caixeiras, criadas etc.). É na urbe onde se verifica o grande peso relativo e o amplo espectro coberto pelas ocupações artesanais. Revelou-se em Vila Rica um horizonte social, econômico e cultural mais ancho do que nas demais economias da Colônia. Em 1804, a massa de escravos em Vila Rica era de 31,39% da população – estes cativos suportavam o peso maior das atividades econômicas da urbe. O espaço urbano também era espaço da miséria, vale dizer: 77% das pessoas identificadas como mendigos, pobres ou a viver de esmolas compunham-se de mulheres. O contingente de despossuídos era formado por indivíduos com mais de 50 anos, mulheres em idade avançada, pretos e pardos e solteiros.

Qual a contribuição de seu trabalho no que diz respeito à origem dos escravos africanos e à distribuição da massa escrava no território brasileiro? Meu estudo, ao tratar do controverso tema da origem dos escravos africanos, revelou que, na ascensão e no auge da mineração, predominavam os africanos do grupo étnico e/ou linguístico dos Sudaneses (Mina, Nagô, Fom, Xambá) sobre o dos Bantos (Angola, Banguela, Rebolo, Cassange, Cambunda, Congo etc.). No século estudado (1719-1818) registrou-se, nos assentos de óbitos, a predominância, por margem razoável, dos Sudaneses (55,31%) contra os Bantos (44,69%). Entretanto, quando veio a crise da mineração, a relação inverteu-se – os Bantos passaram a predominar. Os Sudaneses eram os preferidos pelos mineradores por seu conhecimenResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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to de mineração e metalurgia, ao passo que os Bantos eram vendidos a preços mais baixos, por não terem conhecimentos específicos. No descenso minerador, o preço mais baixo dos Bantos e não mais a expertise dos Sudaneses pesou na decisão da compra de escravos africanos.

O que os dados de batismo de adultos revelaram sobre a origem dos escravos africanos? O batismo de adultos escravos tem estreita relação com a atividade mineratória, vale dizer, o número de batismos cresce com a expansão da exploração: entre 1759 e 1763, 461 cativos receberam o sacramento do batismo, e na recessão entre 1809 e 1819, somente 38 escravos adultos foram batizados. Os dados evidenciam a preferência por trabalhadores homens na mineração – a razão de sexo era de 218 batismos de escravos adultos homens para 100 escravas adultas; além disso, os dados também mostravam que os Sudaneses eram o principal grupo étnico e/ ou linguístico demandado pelos mineradores. Por fim, os movimentos sazonais de batismo parecem refletir a periodicidade com que aportavam, no Brasil, os negreiros oriundos da África. Em fevereiro, maio, junho e julho verificava-se um número relativamente elevado de batismos, enquanto em março observa-se a quantidade mínima. Cabe uma ressalva: o batismo de escravos adultos não representava a totalidade de cativos que entraram em Vila Rica, pois se batizavam apenas aqueles que não foram batizados antes de embarcar para o Brasil. A este respeito, é bom lembrar a ordem régia de 29 de novembro de 1719, do seguinte teor: “Havendo casos em que o cabido e o bispo de Angola possam não ter batizado os negros, antes de embarcarem, como lhes é muito recomendado e prescrito, mando que o arcebispo da Bahia e os bispos de Pernambuco e do Rio de Janeiro hajam de suprir esta diligência, fazendo batizar os que aportarem nos navios, e sem demora para não morrerem em falta deste sacramento; e que os párocos examinem, se os moradores de suas paróquias os têm por batizar, fazendo listas e remetendo-as aos ouvidores para castigarem os senhores na forma da Ordenação L. 5. Tit. 99” (COSTA, 1979, p.67). Logo, em Vila Rica, recebiam o sacramento religioso os escravos que não foram batizados na África ou em algum porto do tráfico negreiro no Brasil.

Seu trabalho abriu uma vereda de estudos sobre a sociedade e a economia mineiras que passaram a explorar novas fontes documentais até então pouco trabalhadas? Sim, acreditamos que nosso trabalho evidenciou a urgência de estudos referentes à própria sociedade mineira e às demais economias vigentes no período colonial brasileiro. O confronto entre os resultados de nossa pesquisa e os estudos que se seguiram sobre a época do ouro e dos diamantes abriu a possibilidade de se conhecer melhor a economia e a sociedade mineiras. Por outro lado, o conhecimento das populações das várias economias do Brasil

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...o conceito “estrutura populacional” foi definido em termos demográfico-econômicos, vale dizer, as variáveis com as quais trabalhei trazem explícita e simultaneamente duas dimensões inter-relacionadas e não dissociáveis: a demográfica e a econômica.

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colônia forneceu embasamento empírico para se pensar na originalidade da formação populacional pátria.

Sobre seu trabalho de doutoramento, Populações mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos mineiros no alvorecer do século XIX, o senhor tomou a metodologia do estudo de Vila Rica e ampliou o universo de análise para nove localidades mineiras no início do oitocentos. Como você escolheu os núcleos populacionais para empreender a análise comparativa com Vila Rica? No estudo “Populações mineiras...” a questão que me norteou foi verificar em que medida a estrutura populacional de Vila Rica revelou-se singular, condicionada pela especificidade político-econômica. Ou repetiu-se a estrutura populacional em outros núcleos das Gerais? Na escolha dos núcleos, orientou-me a homogeneidade das informações contidas nos censos efetuados ao fim do século XVIII e início do XIX; assim como a relevância dos distintos centros como núcleos formados com base na atividade mineradora e com um grau relativo de urbanização. Uma observação importante é que, no âmbito do estudo, o conceito “estrutura populacional” foi definido em termos demográfico-econômicos, vale dizer, as variáveis com as quais trabalhei trazem explícita e simultaneamente duas dimensões inter-relacionadas e não dissociáveis: a demográfica e a econômica. Os núcleos escolhidos vinculavam-se à jurisdição eclesiástica do bispado de Mariana e pertenciam a três diferentes comarcas: Comarca de Vila Rica: Vila Rica, Mariana, Passagem, São Caetano, Furquim, Gama, Capela do Barreto e Sertão do Abre Campo; Comarca do Rio das Velhas, Santa Luzia, e Comarca do Rio das Mortes, Nossa Senhora dos Remédios. Ao todo, foram 10 localidades mineiras ligadas à atividade mineradora que formaram a base do estudo da estrutura populacional.

Qual a conclusão básica do confronto das estruturas populacionais dessas localidades e a de Vila Rica? A análise comparativa possibilitou assentar duas conclusões gerais básicas que substanciam a essência do meu estudo. A primeira foi a formulação de uma tipologia de quatro estruturas populacionais nomeadas e especificadas, a saber: Urbana, Rural-mineradora, Intermediária e Rural de autoconsumo. Embora tenha emprestado caráter provisório, elas exprimem as condições efetivamente reinantes em 1804 nas localidades consideradas neste trabalho. A outra inferência assevera a existência de uma estrutura populacional semelhante à de Vila Rica, tanto em Mariana, como em Passagem.

A principal fonte de informações foi o Recenseamento na Capitania de Minas Gerais 1804. O senhor organizou metodologicamente a análise dos dados quantitativos e qualitativos segundo Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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três tópicos: estrutura populacional, estrutura de família e domicílio e profissões e atividades produtivas. O que quis retratar em cada um desses tópicos? No primeiro tópico, a estrutura populacional, eu reuni os dados quantitativos referentes à população nas três condições sociais básicas da sociedade colonial – livres, forros e escravos. Entre os livres fiz a distinção da categoria social agregados. Com base nos dados sobre sexo, razão de masculinidade, idades e estado conjugal, caracterizei a estrutura populacional naquele momento. Vila Rica, em 1804, tinha 68,61% da população de livres e forros, e 31,39% de escravos e quartados (cativos que estavam em via de receber liberdade). Entre os livres, predominavam as mulheres, resultando uma razão de masculinidade de 88, vale dizer, havia 88 homens para cada grupo de 100 mulheres; o inverso ocorria na população escrava: havia 138 escravos homens para cada grupo de 100 mulheres. Nos distritos mineradores e faiscadores, a razão de masculinidade entre escravos era ainda mais expressiva – 217 escravos para 100 escravas.

Quanto à estrutura das famílias e dos domicílios, por que o senhor vinculou a família ao domicílio? Para o Brasil colonial, o estudo da família (casal unido ou não perante a igreja, com filhos ou filhas, caso haja etc.) vincula-se, necessariamente, àquele relativo aos domicílios, porque, sistematicamente, encontrei várias famílias coabitantes a guardar vínculos de subordinação e dependência; vale dizer, podiam viver num mesmo domicílio famílias “independentes”, de agregados e de escravos. Indubitavelmente, tal fato influía na composição das famílias, no seu relacionamento com o corpo social e, ainda, na divisão do trabalho e da renda. Do ponto de vista econômico como do social, pareceu-me relevante distinguir três tipos básicos de famílias: independentes, o chefe do domicílio, sua prole e parentes; agregados e escravos. Constatei a predominância da família independente, vale dizer, a família nuclear, em torno do cabeça ou chefe, que tendia a estabelecer-se em domicílios próprios. Havia cerca de 7% de famílias de agregados vinculadas ao chefe do domicílio. No recenseamento de 1804, os dados referentes à família escrava eram precários para se extrair qualquer conclusão. Predominavam domicílios do tipo simples, com casais e filhos, homens ou mulheres solteiros com filhos, viúvos ou viúvas com ou sem filhos. Em 41% dos domicílios havia a presença de escravos, e em 30% de agregados. Cumpre lembrar que o agregado podia ser um parente do chefe do domicílio, por exemplo, um filho ou uma filha que se casasse e fosse morar em outro local e, caso voltasse a residir com o pai, podia ser anotado como agregado; assim, não se deve tomar o agregado como um mero dependente econômico do chefe do domicílio.

Qual a relevância da estrutura populacional, segundo as profissões e as atividades produtivas, para o seu estudo? A análise das atividades produtivas e da estrutura profissional aparece como elemento do mais alto interesse para o entendimento das características econômicas de uma dada comunidade.

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Ao lado da distribuição dos indivíduos em termos de sexo, cor, posicionamento social (livres, forros, agregados e escravos), a identificação das atividades produtivas revela-se como subsídio indispensável ao conhecimento dos processos de integração econômica e divisão do trabalho. Permite estabelecer o delineamento do quadro da vida material das sociedades estudadas.

Quais as variáveis que o senhor levou em consideração na formulação das quatro categorias ou tipos de estruturas populacionais? As variáveis relacionadas à composição populacional dos vários núcleos foram decisivas na determinação das distintas estruturas populacionais, a saber: os percentuais de livres e escravos, o peso relativo dos agregados e escravos na população total, os números médios de escravos, agregados, pessoas livres e indivíduos em geral por domicílio, e as relações entre estes valores e o seu ordenamento e o grau relativo de urbanização das localidades estudadas. Assim, Vila Rica, Mariana e Passagem enquadravam-se na categoria ou tipo “Urbano”, por apresentarem maior percentual de livres e menores valores para o número médio de escravos, agregados e pessoas livres por domicílio. Além disso, observou-se, em termos da distribuição da população entre as ocupações, uma modesta participação das atividades agrícolas (5%), domínio do artesanato (64%) e dos serviços (31%). No extremo oposto, estava o tipo “Rural-mineradora”, cujas três localidades – Abre Campo, Gama e Capela do Barreto – distinguiam-se pela agricultura voltada para a comercialização e abastecimento de outros centros mineradores, enquanto a atividade secundária baseava-se na existência de lavras relativamente ricas. Esses três núcleos apresentavam predomínio quantitativo de escravos, menores taxas de pessoas livres, e maiores valores médios de escravos, agregados e livres por domicílio.

O senhor ilustra o penúltimo capítulo da análise comparativa entre Vila Rica e demais núcleos de antiga mineração com um trecho do poema de Carlos Drummond de Andrade “Morte das Casas de Ouro Preto” e com uma assertiva de Auguste Saint–Hilaire a respeito da história das povoações que tiveram origem na presença do ouro. Seu estudo acabou por trazer um pouco do desfazer daquela sociedade, os sinais de pobreza, da decadência e, ao mesmo tempo, a transformação? Drummond é muito expressivo ao registrar de forma poética um tempo que se foi... “Sobre o tempo, sobre a taipa,/ a chuva escorre. As paredes/ que viram morrer os homens,/ que viram fugir o ouro,/que viram finar-se o reino,/que viram, reviram, viram/já não vêem. Também morrem” (Carlos Drummond de Andrade). “A história das povoações que tiveram origem na presença do ouro é sempre a mesma. Florescem enquanto as minas foram ricas ou fáceis de explorar; quando se esgotam, os habitantes retiram-se para outra parte” (Auguste Saint-Hilaire).

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Saint-Hilaire, em 1816, em sua visita às Gerais, percebeu o abandono dos distritos auríferos. As primícias do século XIX correspondem a uma quadra da história das Gerais, na qual ocorreram profundas mudanças, tanto econômicas como demográficas, principalmente nos centros mineratórios. A decadência manifesta-se na emigração da população masculina jovem, em pleno vigor físico e solteira, para outras localidades em busca de novas oportunidades. Esse deslocamento fica evidenciado na razão de masculinidade da população livre. Em Vila Rica, em 1776, predominavam os homens livres, 172 para grupo de 100 mulheres; em 1804, a razão de masculinidade era de 88 homens para grupo de 100 mulheres. Cresce o número de filhos ilegítimos e de expostos, e de filhos de mães solteiras, porque os casamentos se tornam, para uma população empobrecida, custosos, assim como, sustentar um filho sem pai. A pobreza ou o número de pessoas que vivem de esmolas, da mendicância, cresce também. Uma miséria que tinha cara, sexo, idade – a maioria dos pobres eram mulheres, com idade superior a 50 anos e solteiras. ... Ao lado da distribuição dos indivíduos em termos de sexo, cor, posicionamento social (livres, forros, agregados e escravos), a identificação das atividades produtivas revela-se como subsídio indispensável ao conhecimento dos processos de integração econômica e divisão do trabalho. Iraci del Nero da Costa com sua orientadora Profª Alice Piffer Canabrava, professores e colegas da FEA-USP, por ocasião da defesa da Tese de Doutorado em 1981. Da esquerda para a direita: Flávio Azevedo Marques de Saes, Iraci del Nero da Costa, Antonio Emilio Muniz Barreto (argentino, já falecido), Francisco Vidal Luna, Ibrahin João Elias (com a mão apoiada no ombro da Profª. Alice), Nelson Hideiki Nozoe e Thomaz de Aquino Nogueira Neto. Acervo Pessoal de Iraci del Nero da Costa.

Agora, vamos saltar para a tese de livre docência, que tem um título bastante sugestivo – “Arraia-miúda um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil” –, que aponta para o preconceito vigente em uma sociedade marcada pela concentração da propriedade dos meios de produção e pela profunda desigualdade social. Por que tratar da arraia- miúda, da plebe ou, na forma ainda mais pejorativa, da ralé? As pesquisas que fizera antes sobre o período colonial em Vila Rica e demais núcleos minera-

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dores me levaram à convicção de que a sociedade colonial brasileira não era polarizada entre senhores e escravos. Em 1804, em Vila Rica, 59,1% e, em Mariana 82,1% dos domicílios não tinham escravos. Logo, a entremear as camadas correspondentes aos senhores e seus cativos, encontrava-se expressiva massa de pessoas livres, aparentemente sem recursos suficientes para possuir escravos. É o estrato populacional formado pelos não proprietários de escravos que me interessava investigar. Assim, o propósito do estudo foi distinguir, no tempo e no espaço, as características da população livre não proprietária de escravo, procurando responder a três questões: Quantos eram? Quem eram? O que faziam?

Quais as fontes documentais empregadas para extrair os dados sobre a população e a propriedade patrimonial e quais as localidades investigadas? Duas fontes de informações foram empregadas – as primárias, os levantamentos censitários do século XVIII e XIX; e as secundárias, obras que quantificaram ou que qualificaram no período que se estende da Colônia ao Império. A investigação abrangeu São Paulo (14 localidades), Paraná (Castro e Antonina), Santa Catarina (Lages), Minas Gerais (Vila Rica, Passagem, Mariana, Furquim, Gama, da Comarca de Vila Rica, e N. S. dos Remédios, da Comarca do Rio das Mortes), Bahia (Brejões e Ouriçanga, hoje Feira de Santana), e Piauí (distrito da freguesia da N. S. da Vitoria da cidade de Oeiras). Para as 14 localidades de São Paulo, eu as distribuí por seis áreas econômicas, a saber: Vale do Paraíba, (Bananal, Lorena, Areias, Guaratinguetá, Taubaté), Açucareira, (Itu e Campinas), Pecuária (Sorocaba), Mineração (Apiaí), Litoral Centro Norte (Santos e São Sebastião), Litoral Sul (Cananéia, Iguape e Xiririca). As fontes empregadas foram os Maços de População para um ano dos fins do século XVIII, e outro ano da terceira década do século XIX. Para Minas, as listas nominativas para as seis localidades levantadas em 1804. Para o Piauí, a fonte é uma descrição dos domicílios pertencente à Matriz Nova de N. S. da Vitoria, feita pelo padre Miguel Coutinho em 1697, e outra de 1762, denominada Rol de Desobriga ou Rol dos Confessados feita pelo padre Dionísio José de Aguiar. Essas eram listas semelhantes às listas nominativas de São Paulo, Paraná e Santa Catarina e de Minas. O senhor abre uma franca discussão com a historiografia consagrada, que sustentava o papel insignificante ou irrelevante dos não proprietários de escravos para explicar a dinâmica social e econômica da sociedade escravista. Sim, é verdade! Mas, eu não tinha a intenção de polemizar com os autores. Fiz o registro das opiniões e das posições de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Maria Silvia Carvalho Franco e Jacob Gorender com respeito aos não proprietários de escravos ou aos despossuídos. Gilberto Freyre (1933) considerava que a monocultura e a grande propriedade escravocrata levaram à construção de uma sociedade de extremos – senhores e escravos – e à formação de uma camada rala e Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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insignificante de gente livre sem propriedade comprimida por aqueles polos. Caio Prado Júnior (1942) não se diferenciou: concebeu que a colonização escravocrata rígida gerou uma massa de pretos, mulatos forros ou fugidos da escravidão, índios mestiços de todos os matizes e categorias e, inclusive, brancos pobres que, não sendo escravos e não sendo senhores, foram repelidos e segregados pela civilização escravocrata e pelo preconceito de qualquer posição estável. Formavam um “detrito humano” que vegetava miseravelmente em algum canto apartado da civilização, “vivendo ao Deus dará”, ou vivendo de encosto em um senhor poderoso – os agregados. Maria Silvia Carvalho Franco (1969) também não destoou de Caio Prado Jr.. Para a autora, a grande propriedade criou os destituídos da propriedade dos meios de produção, um conjunto de homens livres e expropriados que não conheceram os rigores do trabalho compulsório e não se proletarizaram. A “ralé” cresceu e vagou ao longo dos quatro séculos, era dispensável, desvinculada dos processos sociais e essenciais da sociedade. Já Jacob Gorender (1978), diferentemente dos que o antecederam, reconhece a expressividade numérica dos não proprietários, a existência de pequenos proprietários de terras ou de indivíduos livres vinculados à produção agrícola, e os enquadra no “modo de produção específico “camponês”, apartado da dinâmica da economia colonial. Como já disse, as interpretações desses autores não eram o objeto do estudo que eu tinha em mente. Minha intenção era buscar os elementos empíricos que possibilitassem quantificar e qualificar, no tempo e no espaço geográfico e econômico, o conjunto populacional de não proprietários de escravos. Num certo sentido, a historiografia e, em especial, as interpretações dos autores citados, me aguçavam a curiosidade em avançar nas respostas àquelas questões.

Ao lado das interpretações dominantes que o senhor mencionou, havia outras que discordavam e que atribuíam importância aos despossuídos nos marcos da sociedade escravista? Os estudos exemplares de Alice Piffer Canabrava (1972 e 1972b) sobre a capitania de São Paulo entre 1765-1767 e em 1818, baseados nos maços de população e no inventário de bens rústicos, apontavam para o impressionante número de pessoas que “nada possuem”. Ao desenvolver os pioneiros trabalhos em demografia histórica brasileira, Maria Luíza Marcílio (1972) deparou-se também com a categoria dos não proprietários de escravos. Ela discorda da “dicotomia social simplista” – grandes proprietários de escravos e terras versus pequenos roceiros sem terras – os primeiros voltados para o mercado externo e os últimos para a subsistência exclusiva da família. Já as pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1963) e de Nice Lecocq Müller (1951) reconheciam a importância quantitativa e especificidade qualitativa dos não proprietários de escravos.

Que respostas o senhor encontrou para as suas perguntas? Quantos eram e quem eram os não proprietários de escravos? Vamos por partes. Quanto ao número de não proprietários de escravos nos diversos espaços

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geográficos e socioeconômicos investigados, e em dois momentos distintos (fins do século XVIII e primeiras décadas do século XIX), os dados levantados permitem afirmar que a presença de não proprietários de escravos na população total é majoritária, sendo que, nas áreas de criação como Sorocaba e Castro, a participação do contingente de não proprietários de cativos chegava a 80% do total da população. Na terceira década do oitocentos, com a expansão das áreas cafeeiras no Vale do Paraíba e açucareira em Campinas, há um decréscimo no número de não proprietários de escravos mas, mesmo assim, a presença é expressiva. Em termos quantitativos, a população livre não proprietária de escravos é importante; no entanto, esse quadro demográfico e econômico fora ignorado pela historiografia. Quanto à caracterização do ponto de vista demográfico, quem eram os não proprietários de escravos? Sob o ponto de vista estritamente demográfico, levando-se em conta variáveis como sexo, idade e estado conjugal, não há como distinguir os proprietários dos não proprietários de escravos. Uma distinção esboça-se quando se investiga a legitimidade das crianças de menos de 14 anos, e a cor da pele que, por sua vez, não pode ser dissociada das condições econômicas. Quero realçar que, do ponto de vista meramente demográfico, não há distinção entre proprietários e não proprietários. A diferenciação só vem à luz com a introdução de variáveis demo-econômicas. Pode-se afirmar, pois, que os agregados apareciam majoritariamente concentrados no grupo dos não proprietários de escravos. Assim como os forros, que compunham a parcela menos privilegiada da sociedade escravista. Para as localidades paulistas e catarinense, não foi encontrado nenhum forro que possuísse escravos. Grande parte dos forros aparecia como agregado, o que seria outro indício de suas parcas posses. Em Minas, há uma participação da ordem de 8% de forros como proprietários de escravos, mas foi a única localidade a registrar. Agregados, forros e pobres compõem a população livre não proprietária de escravos. Um último indicador socioeconômico para delinear o perfil do não proprietário de escravos é condição de moradia – moradia própria é um atributo do proprietário de escravos, enquanto que apenas 26% a 53% dos não proprietários de escravos habitavam moradia própria. Em síntese, encontrei no grupo dos não proprietários de escravos uma forte concentração de pessoas, as menos privilegiadas do ponto de vista da riqueza – pretos e pardos, agregados, forros e pobres. Como se pode observar, tratava-se de um grupo fundamental na formação da nossa população e do povo brasileiro. Entretanto, excluídos que estavam da propriedade de escravos, quase se viram excluídos de nossa própria História.

O que faziam os não proprietários de escravos? As atividades vetadas aos não proprietários de escravos eram vinculadas à Igreja, à magistratura e aos empregos civis, ao corpo militar, às profissões liberais, rentistas e comércio, nas quais tinham assento somente os proprietários de cativos. Nas localidades mineiras, os faiscadores eram predominantemente não proprietários de cativos, aos quais restava o domínio em setores menos privilegiados no quadro de nossa sociedade escravista: artesanato, jornaleiros e Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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serviços em geral. Não ocorria uma especialização absoluta, seja no comércio seja no transporte, ainda que, por vezes minoritariamente, os não proprie­tários de escravos aparecessem em todos os setores econômicos então vigentes.

Qual a participação dos não proprietários de escravos no produto gerado? Esse contingente da população detém o monopólio de uma produção específica? No Vale do Paraíba (Lorena, Areias, Bananal), em 1829, em plena expansão da cafeicultura, houve um aumento do peso relativo de proprietários de cativos no tocante à produção de quase todos os bens. Mas também houve a permanência de postos anteriormente ocupados pelo não proprietários, vale dizer que a expansão da produção voltada para o mercado exterior não deslocou totalmente a camada despossuída de recursos e nem negava as características básicas das atividades produtivas desenvolvidas. Embora tenha ocorrido um decréscimo na participação relati­va de não proprietários no conjunto da população livre, eles continuavam a ser majoritários, como ocorrera entre 1797 e 1829. Constatou-se que o desenvolvimento da cafeicultura abriu oportunidades para os dois segmentos, proprietários de cativos e não proprietários de cativos, porém os maiores beneficiados foram, justamente, os proprietários de cativos. Outro elemento que deve ser realçado é que a produção da rubiácea não era exclusiva deste último estrato, pois os não proprietários, conquanto modestamente, também plantavam e colhiam para seu uso e comercialização. Deve-se sublinhar que a produção de bens destinados ao comércio de exportação ou à comercialização em mais larga escala, tais como açúcar, café, anil, aguardente, toucinho e a criação de animais (bestas, gado, vacas, carneiros), com exceção de cavalos e suínos, era realiza­da, sobretudo, pelos proprietários de cativos. Ao passo que algodão, pesca e produtos artesanais em geral distinguiam-se como mercadorias cuja produção coloca­va-se, precipuamente, sob a responsabilidade dos não proprietários. Além disso, cabe enfatizar que a produção de alguns bens era partilhada entre os dois segmentos sem que houvesse um predomínio, tais como fumo (tabaco) e os produtos alimentícios (arroz, feijão, farinha, milho e mandioca), não sendo descabida a afirmativa de que prevalecia uma distribuição menos concentrada entre detentores e não proprietários de cativos e de que, em alguns casos, estes últimos apresentavam participações na produção, e particularmente nas vendas, não muito distantes de seu peso relativo na população total. Concluo que os não proprietários de cativos eram partícipes ativos do mundo produtivo. Faziam-se presentes em todas as culturas, mesmo nas de exportação, vinculavam-se às lidas criatórias, ao fabrico e/ou beneficia­mento de bens de origem agrícola, e apareciam com destaque nas atividades artesanais (fiação, tecelagem, alfaiates, sapateiros etc.). Ao fazer o estudo da “arraia-miúda”, senti uma imensa satisfação, pois percebi que se conseguiu resgatar do esqueci­mento os não proprietários de escravos.

Nos últimos anos, o senhor e o professor Julio Manuel Pires dedicaram-se à formulação de uma

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interpretação teórica para a economia escravista do Brasil e das Américas, buscando uma resposta teórica à questão do estabelecimento e funcionamento do escravismo no Brasil e no Novo Mundo a partir do século XVI até 1820. Quais os pontos centrais desta interpretação? Nós sentíamos um desconforto com respeito às interpretações sobre a economia escravista colonial, no âmbito do pensamento marxista. Isso nos levou a buscar novas explicações, até mesmo mais adequadas aos achados das pesquisas empíricas que havíamos realizado. A base da interpretação está na categoria analítica capital escravista-mercantil – uma forma de capital própria das regiões onde o escravismo moderno vicejava. Nós resgatamos uma quarta forma de existência do capital, proposta por Marx, que é aquela capaz de conduzir à produção da mais–valia, por meio da produção de mercadorias com base no escravismo moderno ou escravismo colonial. Essa forma particular de capital denominamos escravista-mercantil, que domina a produção colonial de mercadorias destinadas aos mercados da Europa, onde o modo de produção capitalista já se mostrava dominante. Acrescentam-se três pontos fundamentais: 1) a escravidão não é incompatível com o modo de produção capitalista, mas se torna incompatível, isso sim, com o desenvolvimento do capitalismo, portanto, sua existência tem limites, inexoravelmente desaparece; 2) estamos em face de um escravismo produtor de mercadorias (escravidão puramente industrial) e dependente dos mercados mundiais, os quais imprimem

A escravidão não é incompatível com o modo de produção capitalista, mas se torna incompatível, isso sim, com o desenvolvimento do capitalismo, portanto, sua existência tem limites, inexoravelmente desaparece; O escravismo é produtor de mercadorias (escravidão puramente industrial) e dependente dos mercados mundiais, os quais imprimem vida ao escravismo; Os escravistas são capitalistas, personificam o capital escravista–mercantil.

vida ao escravismo; 3) os escravistas são capitalistas, personificam o capital escravista–mercantil.

Quando o senhor fala de desconforto com os intérpretes marxistas, está se referindo ao modelo interpretativo de Caio Prado Jr., “o sentido da colonização”? Há no modelo de Caio Prado Jr. uma limitação que se deveu ao fato de ele haver transposto para o plano fenomênico (da aparência), sem as devidas mediações, elementos próprios do que considerou a essência de nossa formação e da sociedade aqui constituída, reduzindo, assim, o plano do concreto a elementos da essência. O que restou foi uma caricatura de vida econômica e social, desfigurada, rígida, descarnada, apartada da experiência do dia a dia. O incômodo por nós sentido deriva da confrontação dos achados das nossas pesquisas sobre o modo de vida da população e a leitura dos escritos de Caio Prado Jr. Há ainda outros autores, que não sei se podem ser considerados da corrente marxista, e que fazem justamente o contrário: tomam a apaResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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rência como se fosse a essência. Resulta disso que a essência do escravismo moderno se esvai no ar; resta uma sociedade autônoma, capaz de reproduzir a si mesma, a partir de si mesma.

Como caracterizam o capital escravista-mercantil e qual sua ligação com o capital comercial? A expansão do capitalismo comercial europeu no século XVI, em direção ao Novo Mundo, esteve associada à presença de um conjunto de condições específicas – existência de mercados consumidores de matérias–primas e produtos tropicais, além da disponibilidade de fontes supridoras de mão de obra escrava. Essas condições criaram o ambiente propício para o funcionamento do capital escravista-mercantil nas colônias. A ação dessa forma de capital condicionava a economia e as relações no processo de produção, projetando-se na vida social e política do Brasil. A peculiaridade do capital escravista–mercantil é que ele não se reproduzia no tempo, dependia do capital comercial para realizar a produção exportável e para obter mão de obra. Assim, o capital comercial era a interface entre as colônias e os mercados externos. Como é exposto pelo autor do “sentido da colonização”, o capital comercial é o organizador da grande empresa colonial, do povoamento e da valorização das terras no Novo Mundo. Porém, depois de realizada a tarefa inicial, coube ao capital escravista-mercantil desenvolver a organização interna da sociedade colonial. Disso resulta a discrepância entre a sociedade que vem à tona nas pesquisas e aquela gestada pelo capital comercial, fundada na monocultura, na escravidão e no latifúndio, uma sociedade dividida entre senhores e escravos. Nossos achados nos levam a uma sociedade complexa, diversificada e multifacetada.

Em Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado Júnior (COSTA, 2010, p. 77-111), o senhor reconhece o modelo explicativo-interpretativo de Caio Prado Júnior como “indiscutível contributo à compreensão de nossa formação histórica”. Quais os novos raciocínios e os achados mais recentes decorrentes do avanço de nossos conhecimentos históricos que considera necessários serem incorporados ao modelo? Um corolário imediato do “sentido da colonização” está no fato de que tanto colonizadores como seus descendentes deveriam estar empolgados pela ideia da acumulação. O que os novos achados evidenciaram é que tal pressuposto não se cumpriu inteiramente. Uma parcela expressiva da população parece ter ficado infensa à perspectiva da acumulação; porque os processos de acumulação no Brasil marcaram-se pela alta concentração da riqueza e pela consequente exclusão de largos efetivos populacionais. Ora, tais pessoas encontram espaço muito restrito nos esquemas propostos por Caio Prado Júnior e, via de regra, são relegadas pelo autor a uma condição de marginalidade absoluta. Assim, uma parcela muito numerosa de nossa população é deixada de lado e, com ela, seu contributo para a formação demográfica do Brasil, sua vida econômica e a parte do produto global a ela devida, sobretudo a produção de gêneros básicos votados ao autoconsumo.

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Qual o problema que o senhor encontrou no conceito agricultura de subsistência de Prado Júnior? Sob este conceito o autor emparelhou realidades econômicas muito distintas, o que acarreta, a nosso juízo, incontornáveis dificuldades analíticas. Assim, a par da produção em larga escala de gêneros alimentícios efetuada por escravistas de porte e vendida no mercado interno, faz parte da agricultura de subsistência a acanhada produção executada por não proprietários e destinada ao seu próprio consumo. Mas não somente. Há mais duas realidades distintas que fazem parte do setor agrícola produtor de alimentos: a produção realizada e consumida por cativos nas grandes propriedades escravistas, votadas ao plantio ou preparo de bens de exportação, e a venda ocasional de excedentes agrícolas por parte de pequenos produtores isolados e sem escravo algum. Há no mínimo quatro organizações sociais e econômicas distintas na produção de alimentos que estão englobadas sob o mesmo conceito. Enfim, muitos aspectos da vida econômica de então restam obscurecidos no modelo de Prado Jr. por se verem colocados indistintamente sob um mesmo rótulo; perde-se, pois, a especificidade de cada um, sem alcançar-se uma síntese esclarecedora.

O modelo de Caio Prado Júnior baseia-se em uma bipolarização grande lavoura-exportadora e agricultura de subsistência para o mercado interno. O que isso traz para a compreensão da formação histórica da sociedade brasileira no seu modo de ver? O risco maior envolvido em tal bipolaridade está, cremos, de um lado, em extremar-se o isolamento do processo de acumulação vinculado ao mercado interno e, por outro, em emprestar-se um peso mais do que o devido ao processo de acumulação concernente à produção dirigida ao mercado internacional. Assim, o processo vinculado ao mercado externo, mais dinâmico e determinante, passaria a ocupar quase todo o espaço reservado à acumulação, enquanto a produção para o mercado interno, além de subsidiária e dependente, viria a confundir-se com a mera economia de autoconsumo.

Em Os viajantes estrangeiros e a família escrava no Brasil (1988), o senhor mostra que, os viajantes que visitaram o Brasil no século XIX se depararam com a família escrava constituída. O senhor poderia nos comentar a presença da família escravo nos relatos dos viajantes do século XIX? A historiografia brasileira tem considerado que os viajantes não registraram a presença da família escrava. De fato, isso ocorre nos relatos de alguns viajantes como Ri­beyrolles (1941, p. 67 e p. 33), que afirmou “não existem famílias: há ninhadas”; assim como nos relatos de Dabadie (1858), Yvan (1853) e Saint-Hilaire (1941). Esses quatro viajantes não descreveram, mas também não negaram a presença das famílias escravas. Entretanto, há viajantes que deixaram impres­sões muito ilustrativas a respeito da vida conjugal dos cativos, e outros que deixaram apenas uma referência à família escrava. Graham (1956, p. 221-222), ao descrever sua visita a uma fazenda fluminense, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 26, n. 1 [35], p. 197-222, jan./jun. 2018 – e-ISSN: 2178-3284.

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menciona a existência de “cabanas de escravos casados”. Koster (1942, p. 527) percebe que “Os negros mostram muita dedicação à sua mulher, filhos, outros parentes que tenham a fortuna de possuir, e seus malungos, camaradas da travessia d’África”. Tschudi (1953, p. 52-54), da mesma forma que Graham, registrou a presença de negros casados que viviam em “recintos me­nores devidamente separados”. Mesmo para o século XVII, Antonil (1709) descreve famílias escravas nos engenhos baianos. Já Burmeister (1952), ao descrever o edifício da senzala, menciona a existência de cubículos para escravos casados separados dos de solteiros. Por esses relatos, podemos concluir que as famílias escravas não só existiam como, também, se lhes desti­nava alojamentos próprios, cabendo-lhes, inclusive, administrar os mantimentos aos filhos. Corrobora a ideia da presença da família escrava outro cronista, não viajante, mineiro da Campanha, Perdigão Malheiro (1976, p. 60), que afirmava que, entre os lavradores, não era “raro verem-se famílias de escravos, marido, mulher, filhos”. Também Biard (1945, p. 52-53), ao comentar sobre a venda de escravos, faz referência à família escrava e às “inevitáveis separações” por ocasião dos contratos de venda e compra; um comprador “adquire a mãe não se interessa pela filha”; ou compra um cônjuge, sendo “os esposos separados”. Decorre daí a instabilidade de uniões consensuais, das consentidas pelo proprietário e, até mesmo, das abençoadas pela igreja.

Então os relatos dos viajantes ajudaram a avançar os estudos da família escrava? Desde 1970, inúmeras pesquisas, teses e artigos em Demografia Histórica, realizados com base em fontes documentais eclesiásticas (registros paroquiais) e censitárias (listas nominativas e recenseamentos), têm corroborado os testemunhos de viajantes. O avanço dos estudos sobre a vida familiar dos escravos está se consolidando. Por exemplo, os estudos recentes constataram: a maior incidência de matrimônios nos grandes plantéis; a distinção do comportamento sexual entre o meio rural e o urbano – neste último predominariam os pe­quenos escravistas, o que tornaria mais difícil os casamentos dentro do mesmo plantel; a menor incidência de matrimônio entre cativos pertencentes a diferentes senhores; a estabilidade no tem­po da família escrava; a formação da família escrava como uma instituição capaz de amenizar as condições do cativeiro e de propiciar maior controle social sobre a escravaria. Koster (1942) observou que os escravos eram regularmente casados seguindo os ritos da Igreja Católica, com proclamas, mas sempre com a autorização dos senhores. O autor também afirma ter visto “vários casais felizes (tão felizes quanto o podem ser os escravos) com grande número de filhos crescendo ao redor deles” (KOSTER, 1942, p. 501). Outros viajantes como Rugendas (1972), Castelnau (1949) e Spix e Martius (1938) perceberam a existência da vida familiar entre os cativos e que isso poderia representar um lenitivo nos quadros da escravidão.

Uma pequena provocação: hoje em dia há uma crescente crítica ao emprego da expressão “plantel de escravos”, vista como “politicamente incorreta”. Como o senhor justifica o seu uso?

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O termo plantel refere-se ao conjunto de escravos pertencente a um proprietário tomado individualmente ou a um grupo de proprietários. Assim, pode-se dizer: “O plantel pertencente a Joaquim da Silva...”; “O plantel de Joana e Maria...”. Nesta mesma acepção, deve-se entender a expressão: “O plantel de cativos [ou de escravos] pertencente a João da Cunha compunha-se de três homens e duas mulheres...”. Note-se que o termo já se acha consagrado na literatura historiográfica brasileira, parecendo-nos impertinente, portanto, a crítica dos que entendem ser ele apenas aplicável a animais; quanto ao seu emprego referentemente a pessoas, lê-se no Novo Dicionário Aurélio: “Grupo de atletas, ou coristas, ou técnicos etc., que são os mais capazes em sua profissão”.

Para concluir, gostaríamos que o senhor refletisse sobre o estado atual da arte desta importante área interdisciplinar, História Econômica & Demografia Histórica, e seu futuro. O número crescente de trabalhos realizados na área da demografia histórica, número este que hoje chega a milhares de estudos, contribuiu para o alargamento de nossa visão histórica e para um conhecimento mais apropriado de nossa formação histórica. Na verdade, o fato de não podermos, como alguns países europeus, reconstruir as famílias, levou-nos a voltar nossa atenção para a relação entre a demografia e a história econômica; fato este muito alvissareiro, pois à medida que compúnhamos a demografia histórica adentrávamos o terreno da história econômica. Assim, ambos os campos viram-se fortalecidos e enriquecidos. A perspectiva maior é a de abarcarmos todo o território nacional, pois embora caminhem com rapidez, nossos conhecimentos sobre o norte, nordeste e centro-oeste ainda não se equiparam ao que se conseguiu no sul e no sudeste. Mas, como avançado, os trabalhos multiplicam-se em larga escala e muito em breve teremos uma visão global da história demográfica brasileira. Tal fato, aliado aos avanços da história econômica nos proporcionará, certamente, uma visão mais rica de nossa formação, possibilitando-nos o conhecimento mais preciso de toda uma população a qual, como já sabemos, teve uma composição histórica das mais ricas e multifacetadas.

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