Resgate rInterdisciplinar e v i de s cultura t a
Cidades Imaginadas Cidades reais COMUNICAÇÃO & PUBLICAÇÕES
Volume XXVII, n.1 [37], jan./jun. 2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor: Marcelo Knobel COORDENADORIA DE CENTROS E NÚCLEOS (COCEN) Coordenadora: Ana Carolina de Moura Delfim Maciel
CENTRO DE MEMÓRIA – UNICAMP Diretor: André Luiz Paulilo Diretor associado: Edivaldo Góis Junior CONSELHO CIENTÍFICO - CMU Ana Lucia Guedes Pinto Ana Maria Oda Carlos Alberto Cordovano Vieira Carmen Lúcia Soares Ema Elisabete Camillo Evandro Ziggiatti Monteiro Janaina Pamplona da Costa Jefferson Cano Jesiel Licursi Meira Lima José Roberto Zan Josianne Francia Cerasoli Maria Sílvia Duarte Hadler Ricardo Figueiredo Pirola Rita de Cássia Francisco
EDITOR Heloísa Helena Pimenta Rocha (FE/Unicamp) COMITÊ EDITORIAL Carmen Lucia Soares (FEF/Unicamp) Edivaldo Góis Junior Evelise Amgarten Quitzau Heloísa Helena Pimenta Rocha (FE/Unicamp) Iara Lis Schiavinatto (IA/Unicamp) Maria Ângela Borges Salvadori Maria Stella Martins Bresciani (IFCH/Unicamp) CONSELHO EDITORIAL Ana Maria Mauad (UFF) Anderson Araújo Oliveira (Université du Québec è Montreal, Canadá) Benito Bisso Schmidt (UFRGS) Joan Pagés (Universitat Autònomade Barcelona, Espanha) Luciene Lehmkuhl (UFU) Márcia Ramos (Udesc) Miriam Paula Manini (UnB) Mônica Raisa Schpun (CRBC/EHESS, Paris, França) Regina Beatriz Guimarães (UFPE) Richard Cándida Smith (University of California, Berkeley, EUA) Roberto Mário Elisalde (Universidad de Buenos Aires, Argentina) Valéria Alves Esteves Lima (Unimep)
Editores Científicos Heloísa Helena Pimenta Rocha Fernando Atique Sidney Piochi Bernardini Auxiliar Editorial Heloiza Lopes de Oliveira (Bolsista SAE) Projeto e editoração gráfica Carlos Roberto Lamari Imagem da capa: A imagem é de Giovanni Battista Piranesi (1720-1778). Ele foi um artista italiano famoso pelas suas gravuras da cidade de Roma e pelas imaginativas e atmosféricas gravuras de prisões (Carceri). A imagem está disponível em: <https://sala17.wordpress.com/2010/03/10/giovannibattista-piranesi-1720-1778/>. © Giovanni Battista Piranesi. “Carceri d´invenzione”. 1749-1750
Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura/ Universidade Estadual de Campinas, Centro de Memória. – Campinas, SP, v. 27, n. 1, jan./jun. (1990-). Periodicidade semestral. e-ISSN 2178-3284 Editoria do Setor de Comunicação e Publicações do CMU. Temática do v. 27, n. 1 [37], 2019: Cidades Imaginadas, Cidades Reais
1.Cultura – Periódicos. 2. Memória – Periódicos. 3. Artes visuais. 4. Fotografia. 5. História. I. Universidade Estadual de Campinas. Centro de Memória. CDD 301.205
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C A R T A A O L E I T O R Profa. Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha ......................................................................................................... 5-6 A P R E S E N T A Ç Ã O / E D I T O R I A A imaginação da materialidade e a materialidade da imaginação - a memória que percorre as cidades Prof. Dr. Sidney Piochi Bernardini e Prof. Dr. Fernando Atique ............................................................................7-10 D O S S I Ê Dos espaços modernistas aos lugares da comunidade: memórias da construção das cidades-satélites de Brasília Maria Fernanda Derntl.................................................................................................................................... 11-34 O mito fundador de Brasília expresso em discursos patrimoniais: uma análise de processos de tombamento Daniela Pereira Barbosa ..................................................................................................................................35-56 Patrimônio, Geografia e Paisagem: construindo estratégias de patrimonialização na Amazônia. Francisco Perpetuo Santos Diniz....................................................................................................................... 57-72 Civismo e questão nacional em debate no monumento à Revolución de Mayo (Buenos Aires, Argentina). Ana Carolina Oliveira Alves............................................................................................................................. 73-98 A narrativa visual do álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes, 1904-1906 Elisa Pomari.................................................................................................................................................. 99-118 A cidade e as escolas: a memória material e o monumento através das escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado de Campinas na década de 1880 Munir Abboud Pompeo de Camargo............................................................................................................. 119-136 A cidade, o progresso e o espelho quebrado de Narciso: São Paulo entre a compaixão e o amor de si próprio (1890 a 1927) Ricardo Felipe Santos da Costa..................................................................................................................... 137-154 Americana-SP, uma história entre rios Elizabete Carla Guedes; Jefferson Luis Rodrigues Bocardi e Mariana Spaulucci Feltrin.................................... 155-172 A R T I G O S
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E N S A I O S
Enunciações e corpos que importam: uma leitura de Clarice Lispector Jacob dos Santos Biziack.............................................................................................................................. 173-190 Identidade e Cidadania no ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca no litoral do Piauí Helder José Souza do Nascimento; Francisco dos Santos Moraes e Áurea da Paz Pinheiro................................ 191-210 A estética da identificação comunicacional a dimensão sensível territorial na feira do Guamá, Belém - PA Fábio Rodrigo de Moraes Xavier.................................................................................................................... 211-227
Cidades Imaginadas, Cidades Reais
Carta ao Leitor
Carta ao Leitor
É
com grande satisfação que apresentamos aos nossos leitores esta edição da revista Resgate, organizada pelos professores Sidney Piochi Bernardini (Unicamp) e Fernando Atique (Unifesp), em torno da temática Cidades imaginadas, cidades reais. Tomada como
objeto multifacetado, temporal e formalmente, como propõem os organizadores, a cidade convoca a imaginação, expressando-se em planos, projetos, intenções, sonhos, desejos, em que se entrecruzam o presente e o futuro. Ao mesmo tempo, interroga o passado, convidando a lançar um olhar para as várias possibilidades de futuro anunciadas em outros tempos, algumas delas materializadas em monumentos, outras esboçadas em rascunhos que repousam nas gavetas ou na memória, outras esquecidas. De projetos, propostas, mudanças de rumos, disputas e desvios nos falam os textos de que se compõe este número da revista. A ocasião é propícia para falarmos de cidades e desejos, para o que buscamos inspiração em Italo Calvino, em suas Cidades invisíveis. Acompanhados de Marco Polo, talvez seja oportuno percorrer Fedora e contemplar essa “metrópole de pedra cinzenta” e as pequenas Fedoras azuis, modelos em miniatura de cidades ideais, cuidadosamente guardadas em esferas de vidro: No centro de Fedora, metrópole de pedra cinzenta, há um palácio de metal com uma esfera de vidro em cada cômodo. Dentro de cada esfera, vê-se uma cidade azul que é o modelo para uma outra Fedora. São as formas que a cidade teria podido tomar se, por uma razão ou por outra, não tivesse se tornado o que é atualmente. Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na cidade ideal, mas, enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível futuro hoje já não passava de um brinquedo numa esfera de vidro. Agora Fedora transformou o palácio das esferas em museu: os habitantes o visitam, escolhem a cidade que corresponde aos seus desejos, contemplam-na imaginando-se refletidos no aquário de medusas que deveria conter as águas do canal (se não tivesse sido dessecado), percorrendo no alto baldaquino a avenida reservada aos elefantes (agora banidos da cidade), deslizando pela espiral do minarete em forma de caracol (que perdeu a base sobre a qual se erguia). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 5-6, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Ciadades Imaginadas, Cidades Reais
Carta ao Leitor
No atlas do seu império, ó Grande Khan, devem constar tanto a grande Fedora de pedra quanto as pequenas Fedoras das esferas de vidro. Não porque sejam igualmente reais, mas porque são todas supostas. Uma reúne o que é considerado necessário, mas ainda não o é: as outras, o que se imagina possível e um minuto mais tarde deixa de sêlo. (CALVINO, 1990, p. 32-33)
Entre “cidades de pedra” e a imaginação que acalenta outros projetos de cidade, se movem os autores reunidos nos artigos publicados neste número da Resgate. Também de sonhos e utopias se nutrem os editores da revista, buscando erguer cidades azuis, mesmo em meio à paisagem dos dias presentes. Nos últimos meses, o comitê editorial foi recomposto e ampliado. Além das professoras Iara Lis Schiavinatto, Maria Stella Martins Bresciani e Heloísa Pimenta Rocha, que já integravam o comitê, foram convidados os professores Edivaldo Góis Júnior (FEF/Unicamp), Maria Ângela Borges Salvadori (FEUSP) e Evelise Amgarten Quitzau (Universidad de la República, Uruguai), a quem aproveitamos para dar as boas-vindas. Nesses primeiros momentos, os trabalhos da equipe editorial têm se voltado para a revisão e padronização das normas da revista, elaboração de regimento e organização das informações disponibilizadas no site. Como empreendimento de maior fôlego, estamos trabalhando com o objetivo de inserir o periódico em indexadores que possam dar maior visibilidade à publicação. Nessa direção, é com alegria que noticiamos a recente indexação da Resgate no Latindex. A revista está com uma nova chamada de dossiê aberta: Cidade, saúde e doença, sob a coordenação dos professores Dr. André Mota (FM-USP) e Dr. Fabio de Oliveira Almeida (UFSCar). Cabe lembrar que, além dos artigos relacionados ao tema do dossiê, a Resgate recebe artigos e resenhas de demanda contínua. Desejamos a todos uma excelente leitura!
Profa. Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha (FE/Unicamp) Editora-chefe
Referência CALVINO, Ítalo. Cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 5-6, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
DOI: 10.20396/resgate.v27i1.8655694
Cidades Imaginadas, Cidedes Reais
Apresentação
A imaginação da materialidade e a materialidade da imaginação - a memória que percorre as cidades
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uais são os desígnios propostos pela História para pensar a relação entre pensamento e materialidade? Haveria alguma forma de olharmos para as ideias e traduzi-las em artefatos? Quais são os caminhos possíveis para a compreensão daquilo que a ideia
colocou como marco de produção da vida urbana? Não haveria, por assim dizer, uma História que pudesse por à prova aquilo que a ideia não consegue concretizar, ou mesmo que a concretude não consegue transparecer? Se tais perguntas são feitas durante o ofício de pensar as cidades, aqueles que o carregam consigo não o fazem sem a angustiante trajetória de olhar para trás e observar seu próprio mundo, que se transfigura a cada passo e se transforma a cada nova percepção. Pois a materialidade, em si, não é nada mais do que a representação, para cada um, do significado subjacente às experiências de vida. A cidade, pois, habita no imaginário de cada um. Este dossiê proposto para a Revista Resgate, Revista Interdisciplinar de Cultura da Unicamp, busca discutir estes aspectos. Partindo do argumento de que as cidades são tão reais como imaginadas, convidou autores a submeterem artigos que refletissem o papel do pensamento sobre a cidade e o território – até que ponto este pensamento é capaz de criar novas materialidades e o que leva a que este fique preso apenas no mundo das ideias, sem qualquer possibilidade de personificação. Lançado o desafio, em novembro de 2018, a revista recebeu inúmeras contribuições, entre as quais foram selecionadas nove para compor este dossiê. Sob um olhar variado, os artigos aqui selecionados pretendem trazer, à luz da História, problemas contemporâneos acerca das narrativas sobre a cidade, o território e a construção dos seus ideários, considerando aspectos importantes da historiografia contemporânea como método para enfrentar a difícil tarefa de dialogar com o mundo presente e suas representações. Das abordagens às fontes utilizadas, os textos aqui apresentados podem abrir horizontes para a discussão dos métodos que buscam interpretar a relação entre o material e o imaterial, o real e o imaginário, o concreto e o fluido. Se tal frente de discussões se interpõe nas formas tradicionais de escrever a História, a forma de se enxergar o invisível, que está por trás das manifestações escritas ou nas tentativas de serem erigidas exige um esforço peculiar – o de deixar Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n.1 [37], p. 7-10, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Cidades Imaginadas, Cidedes Reais
Apresentação
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transparente o que, em certa medida, se revela como opaco no mundo das construções e o de deixar concreto e visível aquilo que é translúcido, volátil, etéreo. Que mecanismos são esses que orientam o ofício de observar essas contradições que permeiam o exercício de tornar real o que ainda não se realizou? Os quatro primeiros artigos do dossiê destacam a relação entre patrimônio cultural e memória, colocando em questão as medidas que levam os sítios históricos a se constituírem como bens patrimoniais e as ressonâncias destas medidas no imaginário de quem vive nos espaços “patrimonializados”. Não sem razão, os dois primeiros tratam de Brasília, a cidade ícone do planejamento urbano idealizado no auge do modernismo brasileiro. O artigo de Maria Fernanda Derntl, intitulado “Dos espaços modernistas aos lugares da comunidade: memórias da construção das cidades-satélites de Brasília", busca evidenciar outras representações da capital brasileira partindo da análise de memórias recentes de migrantes que se estabeleceram nas cidades-satélites construídas na periferia. Ao transpor o foco das investigações, em geral, dirigidas ao plano piloto da capital federal, o artigo constrói uma narrativa a partir da dimensão subjetiva na assimilação de um patrimônio oficial para quem, desde cedo, não foi pensado para estar inserido nele. O artigo seguinte, de Daniela Pereira Barbosa, também traz à tona uma discussão sobre o ideário que constitui as políticas de tombamento patrimonial e a interpretação dos discursos subjacentes. Com o nome “O mito fundador de Brasília expresso em discursos patrimoniais: uma análise de processos de tombamento”, o artigo analisa o papel da construção do discurso patrimonial de três edificações tombadas pela administração pública local: o Catetinho, a Pedra Fundamental de Planaltina e a Casa da Fazenda Gama, revelando que a narrativa patrimonial utilizada visa glorificar a monumentalidade de Brasília apoiando-se em um patrimônio não monumental. Com o título “Patrimônio, geografia e paisagem: construindo estratégias de patrimonialização na Amazônia”, o artigo de Francisco Perpetuo Santos Diniz também discorre sobre a questão das políticas patrimoniais, questionando, neste caso, os mecanismos tradicionais que ainda insistem em compreender o patrimônio como artefato construído, sem considerar os aspectos totalizantes presentes na paisagem cultural, neste caso, no contexto amazônico. O autor nos provoca a pensar o sentido do patrimônio como um campo estático, ao desvelar que “a riqueza e a biodiversidade, as pluralidades culturais, os elementos naturais, o sincretismo religioso, os costumes, as lutas históricas contra o grande capital, constituem patrimônios subversivos que territorializam e desterritorializam paisagens a todo o instante”. O próximo texto, de autoria de Ana Carolina Oliveira Alves – “Civismo em debate no monumento à Revolución de Mayo: imaginário nacional em construção (Buenos Aires, Argentina)” – penetra nesta discussão sobre a identidade e o sentimento nacionalista frente a acontecimentos históricos importantes que conformam o imaginário de um povo. A Plaza de
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Cidades Imaginadas, Cidedes Reais
Apresentação
Mayo, em Buenos Aires, envolve, segundo a autora, um processo de articulação direta entre narrativas identitárias de base simbólica do final do século XIX na aproximação do centenário da Independência. O concurso para a construção do monumento comemorativo no interior da praça evocou as concepções subjacentes sobre o espírito nacional que rondava o imaginário daqueles que se envolveram na competição. As representações traçam aqui uma figuração paralela, para além dos significados mais banais observados nos projetos dos monumentos. Um segundo conjunto de artigos do dossiê concentra suas análises sobre São Paulo e suas localidades emblemáticas. A cidades de São Paulo e de Campinas do final do século XIX e início do XX são focalizadas nos três artigos que seguem, revigorando debates conhecidos, mas ainda férteis de serem explorados. Com o título “A narrativa visual do álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes, 1904-1906”, o artigo de Elisa Pomari toma como principal fonte de referência e investigação um álbum fotográfico da família, hoje pertencente ao acervo iconográfico do Centro de Memória da Unicamp. A interpretação da iconografia, neste caso, acende novas luzes sobre aspectos da vida familiar em um curto período de dois anos, demonstrando como tais tipos de fontes podem ser reveladoras da conformação de fatos históricos cotidianos. Sob o título “A cidade e as escolas: a memória material e o monumento através das escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado de Campinas na década de 1880”, o autor Munir Abboud Pompeo de Camargo analisa a construção de duas escolas, na década de 1880, em Campinas, observando de que forma se estabeleceu o diálogo entre esses edifícios e a malha urbana da cidade. Tomando dois edifícios escolares como focos da discussão, o autor defende que a arquitetura é produtora e é produzida do/pelo urbano, sendo tais edifícios possuidores de sentidos próprios que os ligam à memória da cidade. Em contraposição à riqueza produzida pelo café e o desenvolvimento capitalista crescente do estado de São Paulo, a sua grande Capital também guardava, desde estes tempos, traços de miséria que desfilava por suas ruas. É isso que o artigo “A cidade, o progresso e o espelho quebrado de Narciso: São Paulo entre a compaixão e o amor de si próprio (1890 a 1927)”, de Ricardo Santos da Costa, busca revelar. Ao lado da instituição de rígidos códigos e leis que procuravam dar ordem à vida nas ruas, o controle improvável da miséria que se produzia nos escombros da portentosa economia agroexportadora era alvo de medidas filantrópicas e remediadoras. Ao fim desta seção, está o artigo intitulado “AmericanaSP, uma história entre rios”, dos autores Gabriela Simonetti Trevisan, Elisabete Carla Guedes, Jefferson Luis Rodrigues Bocardi e Mariana Spaulucci Feltrin. Tomando como base os escritos históricos de autores consagrados sobre a cidade de Americana, o artigo faz uma reflexão a partir de fontes historiográficas que revelaram algumas lacunas e novas descobertas, buscando trazer uma outra narrativa sobre os nomes e as datas registradas nos escritos anteriores. Este número traz ainda três artigos que compõem a Seção Artigos e Ensaios. O primeiro, de autoria de Jacob dos Santos Biziack propõe uma leitura analítica da obra A hora da estrela, de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n.1 [37], p. 7-10, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Apresentação
Cidades Imaginadas, Cidedes Reais DOI: 10.20396/resgate.v27i1.8655694
Clarice Lispector. Denominado “Enunciações e corpos que importam: uma leitura de Clarice Lispector”, o artigo busca pensar como o corpo da personagem central desta consagrada obra de Lispector, Macabéa, é elaborado pelo enunciador em relação ao espaço urbano e ao imaginário social nos procedimentos de significação. O segundo artigo desta seção, de autoria de Helder José Souza de Nascimento, Francisco de Souza Moraes e Áurea da Paz Pinheiro, coloca em evidência os modos de saber-fazer da vila de pescadores artesanais do município Luís Correia, no Piauí. Através de pesquisa oral e métodos etnográficos a investigação que deu origem ao artigo mostra o impacto da pesca e do turismo predatórios na região, o que vem comprometendo a permanência de mulheres e homens no território pesqueiro. O artigo busca revelar, além disso, a importância do inventário das artes de pesca para o conhecimento e ressignificação desta cultura ancestral. Por fim, o artigo intitulado “A estética da identificação comunicacional a dimensão sensível territorial na feira do Guamá, Belém-PA”, de autoria de Fábio Rodrigues de Moraes Xavier, propõe um conjunto de reflexões sobre as várias dimensões das estratégias de comunicação estabelecidas na feira do Guamá, na cidade de Belém, Pará. A sensibilidade interacional e a estética da identidade presentes na feira demonstram, para o autor, a essência do sentir em comum e a arte de viver. Os editores agradecem a todos os autores e avaliadores que contribuíram e participaram do processo de edição deste fascículo e desejam a todos, uma boa leitura.
Prof. Dr. Sidney Piochi Bernardini (FEC/Unicamp) Prof. Dr. Fernando Atique (EFLCH-UNIFESP). Organizadores
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Cidades Imaginadas, Cidades Reais
Dossiê
Dos espaços modernistas aos lugares da comunidade: memórias da construção das cidades-satélites de Brasília From modernist spaces to places of the community: memories of the construction of satellite-towns of Brasília Maria Fernanda Derntl*
Resumo
Abstract
Os edifícios monumentais e amplos espaços abertos do Plano Piloto definiram imagens emblemáticas de Brasília. Este artigo busca, porém, destacar outras representações da capital, a partir da análise de memórias recentes de migrantes que se estabeleceram em cidadessatélites construídas na periferia de Brasília desde fins dos anos 50. Os relatos de experiências e práticas de construção naqueles núcleos dão novos significados a espaços concebidos segundo princípios modernistas e expressam sentimentos de pertencimento a comunidades vinculadas ao lugar. Mais do que analisar a efetiva construção de cidades-satélites, pretende-se investigar o modo como esse processo foi assimilado e narrado na dimensão subjetiva de quem o vivenciou.
The monumental buildings and wide-open spaces of the Pilot Plan defined emblematic images of Brasilia. This article seeks, however, to highlight other representations of the capital city, based on the analysis of recent memories of migrants who settled in satellite towns built on the outskirts of the capital since the end of the 1950s. Reports of experiences and practices of construction in those settlements endowed new meaning to spaces designed according to modernist principles and expressed feelings of belonging to communities linked to their place. Rather than analyzing the effective construction of satellite towns, the aim is to investigate how this process was assimilated and narrated from the subjective dimension of people who experienced it.
Palavras-chave: Brasília; Plano Piloto; Cidadessatélites; Memórias.
Keywords: Brasília; Pilot Plan; Satellite Towns; Memories.
* Professora e pesquisadora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília desde 2010. Graduada em Arquitetura e Urbanismo (1995), mestre (2004) e doutora (2010) em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado em Delft, Holanda (2018). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq – Nível 2. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br
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Dossiê
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I n t r o d u ç ã o Brasília, história e memória
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rasília foi planejada para ter uma paisagem urbana radicalmente distinta das cidades tradicionais, com intuito de representar uma nação moderna e estabelecer um modo de vida ordenado e igualitário. Os palácios de formas escultóricas projetados por Oscar Niemeyer e as amplas perspectivas do Plano Piloto traçado por Lucio Costa criaram imagens icônicas da capital do Brasil. A inscrição de Brasília – entendida como
o Plano Piloto – na lista do patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO em 1987 reiterou o caráter emblemático do núcleo modernista. Este artigo pretende, porém, ir além da ênfase usual no Plano Piloto para indagar sobre os significados atribuídos à capital em relatos de moradores situados à distância daquele centro monumental. Memórias recentes de pessoas que se transferiram para cidades-satélites em seus primórdios, nos anos 60 e 70, são fonte privilegiada para análise de processos ainda pouco conhecidos de urbanização, na perspectiva, também ainda pouco conhecida, de grupos que os vivenciaram desde seus primórdios. Procura-se mostrar que os relatos de experiências e práticas de construção naqueles núcleos deram novos significados aos espaços modernistas antes planejados e expressaram sentimentos de pertencimento a comunidades vinculadas a seu específico lugar e marcadas pela experiência da exclusão social.
Procura-se mostrar que os relatos de experiências e práticas de construção naqueles núcleos deram novos significados aos espaços modernistas antes planejados e expressaram sentimentos de pertencimento a comunidades vinculadas a seu específico lugar e marcadas pela experiência da exclusão social.
A abordagem aqui pretendida deve muito à fundamentação teórica de Sandra Pesavento no campo de uma história cultural do urbano, sobretudo quando a autora aponta o potencial de renovação da pesquisa sobre cidades possibilitado pela leitura das diversas camadas de sentido atribuídas a elas
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Cidades Imaginadas, Cidades Reais
Dossiê
por seus habitantes. Pesavento (2008, p. 5) sugere ir além da “imagem consagrada pelo cartão postal” para averiguar outras possíveis referências espaciais na elaboração de imaginários da urbe. Recomenda também indagar sobre como designações e significados atribuídos à cidade por arquitetos e urbanistas podem interagir com construções simbólicas elaboradas por quem vive naqueles espaços, num “vaivém dos sentidos conferidos aos espaços e sociabilidades urbanas” por “profissionais da cidade” e por seus habitantes (PESAVENTO, 1995, p. 283). A cidade define-se então não como um conjunto de atributos morfológicos ou urbanísticos, mas como “um palimpsesto de histórias contadas sobre si mesma, que revelam algo sobre o tempo de sua construção e quais as razões e as sensibilidades que mobilizaram a construção daquela narrativa” (PESAVENTO, 2007, p. 17). Vários trabalhos recentes no campo de uma história cultural de Brasília tomaram por base registros orais ou escritos para analisar a elaboração de identidades individuais e sociais em ligação com a rememoração de vivências (CEBALLOS, 2005; COSTA; MAGALHÃES, 2001; BEÚ, 2013; COSTA; BARROSO, 2015). Alguns desses estudos – sobretudo Carvalho (2001) e Ceballos (2005) – contribuíram para esta análise ao chamar atenção para o modo como relatos de memórias e registros de moradores de áreas distantes do Plano Piloto foram moldados por discursos políticos de apologia à nova capital produzidos desde a década de 50. Assim, ao se analisar a memória de migrantes, não se supõe aqui uma polarização entre, de um lado, uma memória dominante ou nacional e, de outro lado, uma memória popular ou marginalizada. Considerando também as reflexões de Stuart Hall (1996, p. 613), podemos ver as memórias partilhadas pelos moradores das cidades-satélites como representações que sustentam uma “narrativa da nação” capaz de conectar “vidas cotidianas com um destino nacional” que as sobrepuja. Mas, essa conexão não está isenta de conflitos. Conforme indicou Michel Pollak (1989, s.p.), o método da história oral pode revelar os limites na imposição de memórias nacionais e, ao mesmo tempo, um esforço individual de “controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais”. Nessa perspectiva, o principal interesse aqui é indagar, na linha do que propôs o estudo fundador de Maurice Halbwachs (1990 [1925], p. 133), como “imagens espaciais desempenham um papel na memória coletiva”, pressupondo-se que “o lugar recebeu a marca do grupo, e vice-versa”. Trata-se de ver essa relação entre grupos sociais e lugares não como fixa ou imutável, mas, na linha sugerida por Michel Pollak (1989) e Verena Alberti (1996), como um processo em contínua elaboração e sujeito a disputas e negociações entre memórias diversas. As fontes orais utilizadas neste trabalho provêm do acervo do Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF), criado em 1985. Em 1987, teve início o Programa de História Oral do Arquivo, a partir de uma coleta de entrevistas com protagonistas da construção de Brasília e, mais tarde, estendendo-se no sentido de compreender a formação das cidades-satélites e “resgatar a historiografia candanga” (ARQUIVO Público do Distrito Federal, 2008, p. 9). Neste trabalho, baseamo-nos em 68 entrevistas coletadas pelo ArPDF entre 1995 e 2005 a respeito da formação das cidadesResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 11-34, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Dossiê
Cidades Imaginadas, Cidades Reais DOI: 10.20396/resgate.v27i1.8654339
satélites de Taguatinga (26 entrevistas realizadas entre 1995-97 e 2004), Núcleo Bandeirante (18 entrevistas, 1999-2000) e Ceilândia (24 entrevistas, 2001-2005).1 O conjunto reuniu depoimentos de alguns dos mais antigos moradores, personalidades locais, políticos, representantes de estratos sociais e ofícios diversos, além de autoridades e técnicos da Novacap. As entrevistas semiestruturadas tiveram como principal tema a participação dos entrevistados na construção da capital e das cidades-satélites. Embora esse conjunto de depoimentos esteja ligado a uma iniciativa de consolidação da memória institucional da cidade, traz uma variedade multifacetada de relatos que não podem ser apreendidos sob um único ponto de vista ou reduzidos a uma visão monolítica e desprovida de nuances.
Os planos urbanísticos e a construção das cidades-satélites
Os depoimentos utilizados nesta análise têm como tema e pano de fundo o peculiar processo de urbanização desenrolado no território do Distrito Federal a partir de fins dos anos 50. A construção de Brasília teve início não no Plano Piloto, mas em seus arredores, onde se fixaram a sede e os acampamentos da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), criada em 1956 pelo presidente Juscelino Kubitschek para gerir o planejamento e as obras da Capital. Com a divulgação das notícias sobre a construção de Brasília e das oportunidades que se abriam naquele ponto do planalto central, a fixação de trabalhadores junto ao acampamento da Novacap e às principais estradas no entorno do Plano Piloto logo se tornou descontrolada. A partir de 1958, a Novacap passou a adotar uma política de remoção de favelas e transferência de populações mais pobres para as então denominadas cidades-satélites.2 Os novos núcleos foram situados à distância do Plano Piloto e caracterizaram-se, inicialmente, pelas construções precárias, ruas sem pavimentação e ausência de serviços urbanos básicos, em evidente contraste com os apartamentos espaçosos em meio a amplos espaços para lazer no Plano Pi1 Optamos por citar os registros escritos dos depoimentos feitos pelo ArPDF, sem indicar erros ou estranhezas da fala coloquial, mas incluindo interpolações entre colchetes, em alguns casos, para esclarecer ou facilitar a leitura. Pela relevância ao tema aqui tratado, incluímos também uma entrevista de Ernesto Silva (1998) depositada no fundo Memória da construção de Brasília do Programa de História Oral do ArPDF. 2 A denominação “cidade-satélite” foi estabelecida pela lei nº 3.751, de 13 de abril de 1960 dispondo sobre a organização administrativa do DF, mas em 1961 esse território foi subdividido em subprefeituras e pouco depois a Lei nº 4.545, de 10 de dezembro de 1964 atribuiu ao Plano Piloto e a anteriores cidades-satélites a denominação uniformizada “região administrativa”, distinguindo-se pela numeração de cada uma delas. As regiões administrativas impuseram-se como principal circunscrição territorial interna ao DF e foram continuamente redivididas numa tentativa de acompanhar seu intenso processo de urbanização. O Distrito Federal foi subdividido em sete subprefeituras em 1961, oito regiões administrativas (RAs) em 1964, 12 RAs em 1964 e 12 RAs em 1990. Em 2008, havia 21 RAs e desde 2011 há 31 delas. O termo “cidade-satélite” permanece corrente entre os habitantes de Brasília e em escritos acadêmicos a seu respeito e, por conta de seu sentido histórico, será utilizado também neste artigo.
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loto. Embora os serviços urbanos tenham sido lentamente expandidos ao longo dos anos, um estudo recente da CODEPLAN (2018) concluiu que mesmo o DF tendo a maior renda per capita do Brasil, existe uma considerável desigualdade socioeconômica entre o Plano Piloto e as regiões administrativas (antes denominadas cidades-satélites), o que também está visível na qualidade e na quantidade da infraestrutura existente no território. Imagem 1 – CODEPLAN. Cidade satélite de Taguatinga, setor H –Norte. Projeto de loteamento e arruamento. 1985 [Original de 3 de abril de 1962].
Fonte: Acervo da SEDUH.
Imagem 2 – DIVISÃO DE ARQUITETURA E URBANISMO – GDF. Núcleo Bandeirante, planta geral.1965.
Fonte: Acervo da SEDUH.
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Imagem 3 – DIVISÃO DE ARQUITETURA E URBANISMO – GDF. Projeto dos setores QNM 17 e 18 de Ceilândia.
Fonte: Acervo da SEDUH.
A oposição entre um centro planejado, o Plano Piloto, e uma periferia supostamente desordenada, onde se localizam as cidades-satélites, é uma das tônicas de muitos dos escritos sobre Brasília. Essa oposição tende a estar associada a outras dicotomias: plano e realidade, ordem e desordem, formalidade e informalidade. No entanto, sabe-se que desde fins dos anos 1950 foram elaborados planos urbanísticos para as cidades-satélites inspirados em padrões modernistas (imagens 1, 2 e 3). Tais planos impuseram uma distribuição setorizada de funções urbanas, superquadras reunidas em unidades de vizinhança, predomínio de longas sequências de lotes para casas unifamiliares, grandes áreas destinadas a espaços livres de uso público e, em muitos trechos do tecido urbano, separação de vias para pedestres e veículos (DERNTL, 2018). Análises da organização espacial das cidades-satélites empreendidas por Frederico de Holanda, Maria Elaine Kohlsdorf e Gunther Kohlsdorf (2013) observaram a aplicação de um “modelo” e um tipo mórfico de “modernismo periférico”, que reproduziria “traços problemáticos do modernismo clássico [do Plano Piloto], sem suas qualidades expressivas”. No entanto, também se observou que os princípios modernistas se “flexibilizaram” ou “informalizaram” por conta da atuação da população que, no interior de seu lote, imprimiu “individualidade e diversidade ao espaço anônimo” (KOHLSDORF, 1996, p. 685). Neste artigo, os relatos de moradores envolvidos na construção de cidades-satélites são reveladores de práticas que contribuíram para transformar espaços planificados com traçados
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regulares em lugares dotados de características específicas e associados a uma vivência em comunidade. No entanto, mais do que analisar a efetiva construção daqueles núcleos, pretendese investigar o modo como esse processo foi assimilado e narrado, na dimensão subjetiva de quem o vivenciou, considerando que seus relatos estão mediados por problemas e preocupações, nem sempre evidentes, do momento presente em que se deram. Os depoimentos analisados neste artigo provêm de moradores de cidades-satélites cujas origens são distintas, ainda que todas elas tivessem recebido planos urbanísticos baseados em determinações formais similares. O Núcleo Bandeirante, antes denominado Cidade Livre, foi criado em 1956 como área de comércio e serviços de apoio à construção da capital, situado a cerca de 12 km do Plano Piloto. O assentamento tinha caráter provisório, pois deveria ser demolido após a inauguração de Brasília em 1960, mas um movimento liderado por comerciantes e moradores locais conseguiu a permanência e a regularização do núcleo em 1961. Já a cidade-satélite de Taguatinga foi estabelecida ainda antes, em 1958, quando manifestantes que haviam ocupado ilegalmente uma área próxima à Cidade Livre, foram transferidos pela Novacap para uma região a cerca de 25 km do Plano Piloto, onde receberam lotes de terra para habitar. E, a partir de 1969, a cidade-satélite de Ceilândia, situada a sudoeste de Taguatinga, foi iniciada pela Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) como o mais vultoso projeto dessa natureza até então, estimando-se que tenha recebido, até 1972, 14.000 famílias, na maior parte provenientes da favela em torno do Hospital do IAPI, situado perto do Núcleo Bandeirante.
Em Brasília, sempre mudando
A habitação e a aquisição de um lugar estável para morar apareceram como tópico fundamental das memórias dos moradores de cidades-satélites. A moradia inicial de boa parte dos entrevistados foi um barraco de madeira construído por eles mesmos na Cidade Livre (onde todas as construções deveriam ser feitas de materiais provisórios) ou em seus arredores, onde foram se criando favelas e agrupamentos precários. Os limites difusos entre o que seria legal ou ilegal estão implícitos nos vários depoimentos acerca da vida inicial em Brasília. O médico baiano Isaac Ribeiro afirmou que, quando chegou à Cidade Livre em 1957 e adquiriu seu lote, teria sido “tudo informal, mas tinha papel [documento oficial de posse]” (RIBEIRO, 2000). Embora houvesse tentativas de controle por parte da Novacap sobre a ocupação daqueles espaços, outros moradores que se instalaram ali dois anos depois também acentuaram seu caráter informal: conforme o carpinteiro Edgar Galdino da Silva, “a gente que chegava de fora cada um tomava Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 11-34, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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conta de um pedacinho de terreno e fazia um barraco, então chamava-se invasão, mas ninguém botava obstáculo” (SILVA, 2000). Salvador Átila Cunha endossou: “no começo tudo era invasão” (CUNHA, 2000). Os relatos referem-se a uma periferia em rápida transformação e de caráter transitório, sugerindo que seria, por um lado, tolerada ou negligenciada e, por outro lado, objeto de medidas de controle e de tentativas de imposição de planos urbanísticos. Mesmo com o estabelecimento de cidades-satélites, a sensação de precariedade e instabilidade permaneceu marcante em relatos sobre frequentes mudanças em razão da busca de locais de moradia e trabalho, das transferências forçadas ou da imposição de planos urbanísticos em locais já habitados. Vicente Paulo Souza (1995), militar, relatou ter construído seu barraco várias vezes desde que chegou a Brasília em 1958: tive que fazer meu barraco três vezes. Uma vez na invasão [da Vila Matias]. Uma outra vez, que ele foi afastado para o local certo, para manter as ruas, para fazer as ruas direitinho. E posteriormente aqui para esse local [em Taguatinga...], que precisou da área lá .
E, aparentemente se referindo a uma condição compartilhada, acrescentou: “a gente trabalhava muito e mudava muito também. Na época a gente estava sempre mudando.” (SOUZA, 1995). Também Luiz Lobão (2002), que chegou a Brasília aos 12 anos com sua família, relatou várias mudanças até a definitiva fixação na capital: a gente foi para a Vila do IAPI, a Vila do IAPI foi removida para Taguatinga, de Taguatinga minha mãe não gostava, de Brasília, a gente volta para Teresina, aí meu pai vai, vem para Brasília de novo e volta para a Vila do IAPI, depois da Vila do IAPI ele veio para Ceilândia, transferido para Ceilândia .
Esse depoimento indica que o empenho oficial para remoção da favela do IAPI foi de início ineficaz para erradicá-la por completo. Percebendo-se que haveria escasso auxílio oficial ou instituições de apoio, os laços de amizade e parentesco eram valorizados e necessários como meio de garantir a sobrevivência e enfrentar dificuldades. A persistência de práticas tradicionais de agrupamento foi relatada em depoimentos de moradores do Núcleo Bandeirante: “a gente morava em frente, terreno da minha sogra, grande, então ela me acampou como genro e os cunhados dela, também amigos como moradores dentro do pasto do terreno dela” (PRETO, 2000) e havia pessoas que “vinham com lugar pronto [para se instalar], porque já tinham os parentes” (MAZOLLA, 2000). A transferência para uma cidade-satélite podia implicar a desestruturação das redes de apoio antes criadas em ocupações irregulares: “nós morávamos lá [na Vila IAPI], uns quatro colegas, todos
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pertinho, pegados assim e levamos castigo, nós queríamos ficar juntos aqui e ficamos todos separados” (NOGUEIRA, 2002). Além do apego a anteriores espaços de socialização, outros motivos relatados para resistência à mudança para uma cidade-satélite eram a distância do local de trabalho e a precariedade da infraestrutura inicial. A principal vantagem oferecida seria a aquisição de um lote: “aqui, cada um de nós teria o seu local, o seu lotezinho, prá construir” (FARIAS, 2001). A transferência de moradores das favelas e ocupações irregulares para as cidades-satélites foi descrita de modo distinto por moradores e agentes institucionais envolvidos nesse processo. Alguns dos assistentes sociais que atuaram junto à população relataram os trabalhos de preparação e organização do transporte das famílias a serem levadas aos novos assentamentos. Conforme Zedith Silva (1998), quando trabalhava como assistente do presidente da Novacap Israel Pinheiro – provavelmente em fins dos anos 50 – ela foi designada, junto com outras “quatro ou cinco pessoas” para atuar junto aos moradores que seriam removidos para Taguatinga, “ajudando a explicar [para] o povo que ali [na favela] que eles não poderiam ficar, que era sujo, era contaminado”. Já no caso de Ceilândia, há relatos de um trabalho institucional em maior escala, compreendendo levantamento das famílias a serem transferidas, organização de reuniões preparatórias e acompanhamento da consolidação inicial do núcleo. O envolvimento pessoal dos assistentes sociais foi enfatizado, como, por exemplo, no depoimento de um deles, Ilton Mendes (2002): “todos [da equipe] eram obrigados a se envolver, não por uma determinação, mas por uma questão de solidariedade”. Ainda segundo seu relato, muitos membros da equipe tinham condição social similar à da população transferida e receberam lotes para residir no novo núcleo. Do ponto de vista das pessoas transferidas, porém, sobressaiu o caráter violento e impessoal da mudança. Conforme um morador que em 1961 teve seu barraco retirado das cercanias do Núcleo Bandeirante e levado para Taguatinga: “Não tinha ajuda nenhuma [por parte do governo], ao contrário, eles chegavam e jogavam você em um terreno, [...] não tinha nada” (BONIFÁCIO, 2004). Em depoimentos de moradores da Ceilândia, reiterou-se a ideia de terem sido “jogados”: “nós fomos jogados realmente, era jogado no lote, no mato mesmo, você é que tinha que fazer tudo” (MANEIRO, 2001), “jogou nós aqui” (COELHO, 2002) e “Quando nós mudamos pra Ceilândia [...] meu bagulho mesmo jogaram lá no chão” (SILVA, 2002). O relato similar sugere, além da experiência compartilhada, uma narrativa coproduzida e assimilada à memória do grupo. Visões contrastantes do processo de transferência para as cidades-satélites podem ser relacionadas com a tentativa de enfatizar certa imagem da origem da comunidade e da participaResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 11-34, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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ção de cada um dos entrevistados na criação daqueles núcleos. O poeta e cordelista Gonçalo Gonçalves Bezerra (2001), que relatou ter liderado uma associação de moradores primeiro na Vila IAPI e depois também na Ceilândia, ressaltou nem tanto as dificuldades ou imposições, mas a força de vontade da população e o apoio recebido de autoridades. E assegurou ao seu entrevistador: Ceilândia “foi uma reivindicação nossa”. No caso de Taguatinga, o deputado distrital César Trajano Lacerda (2000) salientou a reação positiva à transferência para a nova cidade-satélite. Ele afirmou ter sido “o primeiro líder comunitário de Brasília” e responsável por organizar a manifestação de migrantes antes situados numa área de ocupação ilegal – a vila Sarah Kubitschek – além de liderar as negociações com autoridades da Novacap que levaram à transferência daquele grupo para Taguatinga. Conforme Lacerda (1998), ainda que Taguatinga fosse inicialmente desprovida de infraestrutura urbana, a mudança teria sido muito comemorada: “o povo ia para lá cantando e alegre”. Embora essa declaração possa ser vista como parte do enaltecimento de seu próprio papel, talvez mereça algum crédito como expressão de sua satisfação por ter participado da criação da cidade-satélite.
A construção de lugares, a construção de comunidades Um dos principais tópicos dos depoimentos é a formação de um espírito comunitário na construção de cada uma das cidades-satélites. Moradores de Ceilândia lembraram-se de modo similar dos ruídos de construção como expressão de um empenho unitário: “era noite e dia você ouvia era o som ‘currutu, currut, currut’, era serrote, martelo, ‘pá, pá, pá’ a noite inteira e o dia inteiro, um sai, ajudava o outro, o outro sai fazia mutirão” (BORGES, 2002) e “tinha união, você via alguém fazendo seu barraco, era (pá, pá, pá), aquele martelo batendo dia e noite, noite e dia, aquele que terminava primeiro chegava [para ajudar]” (LIMA, 2005). Esses ruídos foram, em mais de um depoimento, comparados a uma sinfonia: “era assim uma zuada, uma bateção de pau de martelo, parecia mais uma sinfonia (LOBÃO, 2002), “a primeira orquestra sinfônica de Ceilândia foi do martelo [...] era dia e noite [...] foi um trabalho em termos de solidariedade que dificilmente nós vamos ver [novamente]” (MENDES, 2002). Alguns relatos acentuaram o caráter único daquela situação, enquanto outros sugeriram um esforço ainda presente à época dos depoimentos: “em Taguatinga, as coisas não partem das autoridades não. Tudo que tem lá, é o povo mesmo que começa e vai” (SILVA, 1997). Nas memórias dos entrevistados, o empenho conjunto e solidário na construção das cidadessatélites apareceu associado a uma crença compartilhada nos ideais da criação de Brasília.
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Conforme Else Haine (2000): “era todo mundo amigo, o objetivo era um só, trabalhar pela nova capital”. Ou ainda: foi “uma aventura, todo mundo incorporou o sonho do presidente” (PEREIRA, 2004). Maria das Graças Pimentel (2001), professora que se mudou para Ceilândia em 1971 também assegurou que a esperança “continuava muito viva dentro deles [na Ceilândia], porque afinal eles vieram para cá para ajudar na construção de Brasília e era uma nova cidade também que eles construíram”. Esse depoimento aponta o impacto duradouro dos ideais subjacentes à construção de Brasília, mesmo se referindo a uma década depois da inauguração da capital. Se, além dos depoimentos de moradores de cidadessatélites, considerarmos também memórias registradas em publicações de políticos e autoridades envolvidos na construção de Brasília, veremos que lembranças de fortes laços de solidariedade durante as obras da capital foram compartilhadas não apenas por migrantes pobres. A experiência de ter vivido um momento inédito de supressão das diferenças sociais foi registrada pelo arquiteto Oscar Niemeyer (2006, p. 35): “Vivíamos naquela época como uma grande família, sem preconceitos e desigualdades”. Ernesto Silva (1999, p. 387), diretor da Novacap entre 1956 e 1960, reafirmou: “todos se sentiam como se fossem membros de uma só família”. A “aparência de solidariedade” durante a construção de Brasília já foi criticada como artifício de mistificação (BICCA, 1985), como maneira de estimular a produção e a dedicação ao trabalho (RIBEIRO, 2008; HOLSTON,1993), podendo ser vista também como recurso político de mobilização de anseios sociais (MONTENEGRO, 2010). Pode-se aventar ainda que tais narrativas permitiriam a altos funcionários e técnicos legitimar o próprio trabalho sem deixar transparecer seu caráter autoritário. Embora os depoimentos dos entrevistados pelo Arquivo Público se refiram de modo similar à vivência de um momento excepcional de solidariedade, seria re-
Embora os depoimentos dos entrevistados pelo Arquivo Público se refiram de modo similar à vivência de um momento excepcional de solidariedade, seria redutor, porém, ver suas memórias como mera repetição de um discurso emanado de autoridades, como pura nostalgia ou tentativa de alheamento de suas dificuldades reais. Longe de ser mera ilusão, os depoimentos permitem constatar que a narrativa sobre o empenho coletivo na construção da capital foi assimilada de modo próprio pelos entrevistados e atuou como elemento de coesão social de grupos que tinham de organizar sua convivência em novos espaços ou pleitear conjuntamente o direito a ocupá-los.
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dutor, porém, ver suas memórias como mera repetição de um discurso emanado de autoridades, como pura nostalgia ou tentativa de alheamento de suas dificuldades reais. Longe de ser mera ilusão, os depoimentos permitem constatar que a narrativa sobre o empenho coletivo na construção da capital foi assimilada de modo próprio pelos entrevistados e atuou como elemento de coesão social de grupos que tinham de organizar sua convivência em novos espaços ou pleitear conjuntamente o direito a ocupá-los. Cabe considerar, na perspectiva de Stuart Hall (1996), que a elaboração de “mitos fundacionais” ou de origem possibilita a grupos desprivilegiados elaborar contranarrativas que ocultam “começos violentos”, traduzem ressentimentos ou satisfações e transformam “a desordem em comunidade’”. A ênfase num espírito comunitário na origem das cidades-satélites pode ser vista como parte essencial na elaboração de uma identidade individual e coletiva, além de permitir expressar anseios e preocupações relativos ao tempo em que foram feitas as entrevistas. Nas memórias dos entrevistados, o apoio à construção de Brasília e a referência ao discurso nacionalista que a sustentava foram mobilizados como forma de defender a legitimidade de movimentos que deram origem às cidades-satélites, desse modo contribuindo para afirmar certa imagem daqueles núcleos. Isso se depreende de lembranças acerca do movimento que envolveu a população do Núcleo Bandeirante, na virada para os anos 60, com o objetivo de obter autorização legal para permanecer ali e resistir aos planos oficiais de erradicação. Conforme Isaac Barreto Ribeiro (2000), que chegou ao Núcleo Bandeirante em 1956 para atuar como médico: “era um sentimento de todos [...] Não era uma resistência armada, era cívica, bonita, não tinha guerra [...] esse Núcleo é que foi a prova da nacionalidade brasileira”. Depoimentos relativos a Taguatinga, cuja criação foi marcada pela ocupação de terras ilegais, primeiro na chamada “Vila Sarah Kubitschek” e depois nas vizinhanças da cidade-satélite, também enfatizaram um empenho em prol do benefício coletivo. Conforme a irmã Celina (QUINTELLA, 1997), os moradores de Brasília “constataram que Taguatinga não era o que o Plano Piloto estava pensando, que era uma comunidade unida, coesa, que tinha um objetivo não assim de rebeldia, mas que queria ver o desenvolvimento da cidade”. De modo similar, a escritora Hilda Mendonça da Silva (1997) ressaltou a dedicação conjunta à construção da cidade-satélite: “[a] queles que vieram pra aqui [Taguatinga] eram diferentes, mesmo os invasores. Eles tinham aquela vontade de construir, de fazer alguma coisa, de fazer ali uma cidade para as gerações futuras deles”. Esses depoimentos se preocupam com refutar aquilo que seus moradores não seriam – belicosos ou rebeldes – e, dessa maneira, parecem atuar como contranarrativas a imagens desfavoráveis que, em seu entender, pairariam sobre eles. Mas, os depoimentos não deixam de mencionar também os permanentes riscos, conflitos e a instabilidade da condição de vida nos anos iniciais das cidades-satélites, levando a ver que
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a formação de comunidades em cada lugar não seria inata ou abrangente como sugeriram alguns entrevistados. Os lotes eram concedidos pela Novacap em caráter provisório até que fosse feita sua regularização definitiva, por isso a posse de um terreno tinha de ser assegurada pela sua ocupação. Os documentos legais eram considerados de pouco valor: “dono é quem ficava dentro, quem morava no lote que era o dono. Por isso que eles [os outros moradores do lugar] não respeitavam muito documento” (SOUSA, 1995). Havia necessidade de logo construir um barraco no lote e de mantê-lo permanentemente ocupado para evitar que fosse tomado por outras pessoas. Conforme declarou Otávio Macedo (2004), “fiz o começo do barraco, o esqueleto do barraco três vezes, quando chegava lá tinha gente morando no barraco, cobria, tinha gente morando, aí [...] eu cerquei, fiz um cercado lá”. Mas, o mesmo Macedo (2004) sublinhou a ajuda recebida de amigos: “[a]ntigamente se tu saías de casa, nós éramos vizinhos, eu olhava tua casa, a gente dava o sangue um pelo outro”. A ênfase dos vários relatos é colocada nos laços de solidariedade mais do que nos conflitos ou problemas, reforçando uma narrativa coproduzida sobre o valor da comunidade na criação do lugar. Embora um código de ajuda mútua tenha contribuído para estruturar grupos e garantir sua sobrevivência, haveria também moradores menos articulados a redes de apoio, o que, conforme alguns depoimentos, poderia se refletir na construção de sua moradia e na ocupação dos espaços. Como sugere Maria das Graças Pimentel (2001), cuja família fora transferida para a Ceilândia em 1971, quando ela era criança, algumas pessoas se instalaram com mais facilidade: [q]uando aquele morador tinha uma equipe grande com ele, às vezes, num dia ele conseguia levantar o barraco e cobrir, mas [...] algumas famílias por vários anos, tinha[m] seu barraquinho no chão batido. Além disso, as dificuldades para se instalar na cidade-satélite de Ceilândia levaram alguns moradores a desistir de viver ali, como conta Ilton Mendes (2002): “iam surgindo os lotes vazios aqui [na Ceilândia] porque muitos vieram para cá, mas não aceitaram [...] Então ele abandonava...” No entanto, não conhecemos os depoimentos dessas pessoas que talvez tivessem impressões da vida em Brasília distintas daquelas analisadas aqui, nas quais prevalece a referência a uma trajetória difícil, mas bem-sucedida: “lutei e venci e estou aqui para vencer mais e mais” (FARIAS, 2001) ou “foi uma luta muito árdua, mas valeu a pena” (MANEIRO, 2001). Em cada uma das cidades-satélites, havia grupos com interesses distintos e possibilidades também distintas de reagir às imposições oficiais ou de ter suas demandas atendidas. Conforme apontou o já mencionado Lacerda (1998), na época em que a população do Núcleo Bandeirante se mobilizou para evitar a erradicação do local, os grandes comerciantes teriam obtido “terrenos à vontade [na Asa Norte] do jeito e tamanho que queriam”, por sua vez, “aos Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 11-34, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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residentes mais humildes era oferecido [lote em] cidades satélites...”. O deputado Cauhy Jr. (2000) mencionou a impossibilidade de evitar a remoção dos barracos: “Ninguém queria sair do Núcleo Bandeirante, mas a imposição foi muito grande [...] eles pegavam a mobília, as coisas da casa, a madeira, levava e despejava no local onde ia residir a pessoa”. Por outro lado, um representante do grupo de comerciantes e proprietários de oficinas automotivas afirmou ter confrontado autoridades, afirmando-lhes que não admitiria a remoção de seu setor: “nós não vamos concordar, não vamos aceitar, de maneira nenhuma” (PRETO, 2000). Por sua vez, César Najar Fernandez (2000) indagou o porquê de o governo permitir a permanência do Núcleo Bandeirante, mas removeu a favela do IAPI, situada nas suas proximidades: “será que os que moravam no [assentamento irregular do] IAPI eram brasileiros de outra categoria?”. Esses relatos sugerem que a paisagem no entorno do Plano Piloto trazia marcas de diferentes grupos e de vários níveis de exclusão socioespacial.
A organização de uma paisagem urbana
Imagens de espanto e desolação emergem de depoimentos sobre a vida inicial em cidades -satélites. A paisagem da Cidade Livre foi lembrada pela poeira e pelo ambiente predominantemente masculino: “mais era homem mesmo, era bagunça, poeira, gente trabalhando, correndo, a vida era trabalhar, mais nada” (ROSA, 2000). E havia “barraco em cima de barraco” (BONIFÁCIO, 2004). Essas referências remetem a temas usuais em registros de visitantes, cronistas e historiadores sobre os anos iniciais de construção de Brasília, tal como analisaram Segawa (2010) e Videsott (2009). Já Taguatinga e Ceilândia, em seus primórdios, foram descritas por meio da reiteração de negativas e pela ausência de atributos urbanos: “Não tinha luz, não tinha água, não tinha esgoto, não tinha nada. Tinha os lotes que eram piquetados na hora”
(LACERDA,
1998)
ou
“não
tinha
quintal, não tinha rua, não tinha nada, cerrado” (RODRIGUES, 2002). Nas nascentes cidades-satélites, referências materiais e simbólicas foram sendo estabelecidas na vivência cotidiana de seus moradores. Um marco na paisagem da Cidade Livre era a chamada Placa da Mercedes – em referência a um outdoor da empresa Mercedes Benz – que indicava o local da zona de prostituição sem nomeá-la diretamente. Alguns depoimentos sugerem uma lógica de organização territorial para definir a convivência entre moradores. Hélio Bonifácio (2004) contou que quando criança ajudou sua família trabalhando “na saída da zona [de pros-
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tituição], vendendo galinha com arroz para os peões” e relatou que “no final da Avenida corria um esgoto, do lado de cima do esgoto era a zona e do lado de baixo eram as famílias”. Amélia da Silva Araújo (2000) afirmou que as prostitutas ficavam “no lugar delas [no Núcleo Bandeirante], tinha uma parte assim que era reservada para elas”. As prostitutas parecem ser vistas como moradoras do Núcleo, mas ao mesmo tempo são descritas como estando à parte dele. Os equipamentos públicos, escassos nos primeiros tempos, foram vistos como marcos que davam nome a lugares e ruas, mas a paisagem urbana também ia sendo referenciada em locais mais prosaicos. Taguatinga é lembrada assim: os pontos de referência são o seguinte: o Café sem Troco, que ficou aqui atrás, a Passarela, a Caixa D’Água, que era um ponto de referência, Bar Estrela, Virgem da Vitória, Curva da Onça [...] Essa avenida de baixo, avenida do Samdu. É porque existia lá, antigamente existia o posto de saúde (SOUZA, 1995).
Os depoimentos indicaram os primeiros estabelecimentos institucionais ou de serviços – igreja, escola, banco, mercado – os nomes dos primeiros moradores a exercer ofícios – primeiro médico, primeira parteira, primeira professora – até mesmo a posse da “primeira televisão”, a introdução do “primeiro esporte, o vôlei” ou a “primeira bicicleta”. Uma listagem dos “primeiros” – hospital, imigrantes, templo, árvore plantada, etc. – encontra-se também na História de Brasília de Ernesto Silva (1999, p. 339-331), um dos homens de confiança do presidente JK e diretor da Novacap entre 1956 e 1961. Essas referências remetem a uma concepção tradicional de história e apontam critérios de distinção e valoração com base na noção de precedência. Como parte da elaboração de um quadro de referências simbólicas locais, foram lembradas as personalidades que teriam tido atuação ampla na construção e organização da vida de cada um dos lugares, tais como o “padre Roque” (Roque Valliati Baptista, 1918-1994) e a “Abadia” (Maria de Lourdes Abadia, assistente social, depois administradora de Ceilândia entre 1975 e 1985, deputada federal na época das entrevistas e depois vice-governadora do DF). Há indícios de que membros de ordens religiosas tiveram amplas atribuições no estabelecimento inicial de cada um dos núcleos, com implicações também na organização dos espaços. Em Taguatinga, o padre Antônio Bernardo Monteiro (1995) relatou que em certo momento assumiu “a loteação toda” – ou seja, foi responsável pela distribuição dos lotes aos moradores recém-chegados – e, além disso, reservou para a igreja e seu jardim um terreno na entrada da cidade. Os relatos sobre a atuação de representantes de instituições religiosas e assistenciais reforçam práticas e vínculos tradicionais de ocupação do espaço mais do que padrões predefinidos e impessoais impostos por planos urbanísticos. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 11-34, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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No entanto, os depoimentos não deixam de fazer referência a elementos planejados dos traçados urbanos. Técnicos e autoridades da Novacap envolvidos com a criação ou a administração das cidades-satélites comentaram o modo como os planos urbanísticos foram feitos. Ernesto Silva (1998) reafirmou uma visão usual na literatura sobre Brasília de que a concepção das cidades-satélites fora deformada: “com o correr do tempo elas se descaracterizaram. Taguatinga não é uma cidade-satélite, nem um núcleo satélite, ela não tem vida própria, o pessoal migra para trabalhar noutro lugar”. Cid Lopes Filho (1997), subprefeito de Taguatinga no início da década de 1960, comparou o modo de planejar Taguatinga e Ceilândia: [n]o planejamento de Taguatinga não houve um plano prévio como houve de Ceilândia, por exemplo, que foi uma cidade que, quando foi criada, já tinha uma planta completa que é praticamente o que ela é hoje. [...]. Já o plano de Taguatinga foi sendo feito por justaposição, pedaços, tanto que ele não é muito igual, ele não guarda uma simetria...
Em contraste com a visão mais distanciada de técnicos e administradores, os relatos dos moradores expressam suas próprias vivências e interpretações a respeito dos planos urbanísticos. Severino Bezerra da Silva (2002) lembrou que em Ceilândia “a pessoa estudava meia quadra, aqui tinha um colégio, aí vinha meia quadra pra cá e meia quadra pra cá né, é dividido, pra num atravessar a pista do meio, apenas não morrer acidentado...”. Sua descrição remete à organização da unidade de vizinhança, conceito que foi adotado na elaboração dos planos urbanísticos de várias cidades-satélites.3 Além disso, os traçados para vias exclusivamente peatonais em Taguatinga também foram destacados, não como forma de organização racional da circulação, conforme pressupunham os cânones modernistas, mas como dispositivo de exclusão social: “as ruas são pequenas para passar carro, porque nunca imaginaram que alguém dali podia ter carro, não é? No máximo é ter uma bicicleta [...] É desse jeito que Taguatinga foi planejada” (LOPES, 1997). Alguns entrevistados parecem estar cientes de que a elaboração de certa imagem da comunidade tornar-se-ia mais visível quando referenciada num suporte material presente na paisagem urbana. Em Taguatinga, o jornalista Wilon Wander Lopes (1998) enfatizou o valor simbólico atribuído à caixa d´água antes situada na via de entrada do núcleo e demolida em 1984 por conta de obras viárias em seu local. Em razão de defeitos na construção, a caixa d’água nunca serviu a sua função, mas, quando se cogitou demoli-la, Lopes participou de uma ação 3 O conceito de unidade de vizinhança veio à luz em 1929 a partir da aplicação das ideias de Clarence Stein e Henry Wright no plano do subúrbio de Radburn em New Jersey e, no mesmo ano, da publicação do Plano Regional de Nova York, no qual Clarence Perry detalhou suas proposições a respeito. Tratava-se de definir o traçado de uma unidade constituinte da cidade, com intuito de fomentar laços sociais e promover uma forma organizada de convivência social. Nessa parcela urbana de população limitada, haveria forte presença de espaços livres e a escola estaria em local dotado de centralidade, podendo ser acessada a pé, após se percorrer uma distância que não deveria ultrapassar 800m.
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judicial para evitar que isso ocorresse. No seu entender, “nós, população, elegemos a caixa d’água como referencial importante” e, portanto, prosseguiu, “deveria passar pela vontade da comunidade para ser demolida ou construída” (LOPES, 1998). É significativo que a construção escolhida estivesse ligada à infraestrutura de serviços urbanos, problema fundamental na estruturação do núcleo. Por outro lado, também há críticas a uma iniciativa de preservação da memória local. O anterior Hospital do IAPI, depois Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (HJKO), situado nas proximidades da Cidade Livre, atendeu à população de 1957 aos anos 70 e teve seu conjunto arquitetônico remanescente tombado pelo DEPHA-DF em 1985. Foi então transformado em Museu Vivo da Memória Candanga, cuja missão é ser espaço de registro, preservação e difusão da cultura dos primeiros migrantes e trabalhadores de Brasília. Embora a iniciativa de criação do museu tivesse tido apoio de uma parte da população, uma moradora ironizou: “eu estou brigando para ver se ponho hospital aqui, lá nessa casa [denominada] Museu Vivo, nós precisamos um museu morto [...] um hospital seria melhor” (MAZOLLA, 2000). Ou ainda: “nós trabalhamos muito para tombar [o hospital], mas acontece que a gente precisava mesmo que tivessem restaurado o hospital, não aconteceu” (PRETO, 2000). Em Ceilândia, por sua vez, o depoimento de Gonçalo Bezerra (2001) aludiu ao que seria uma compensação simbólica representada pela construção, reivindicada pela comunidade local, de um projeto assinado por Oscar Niemeyer. A Casa do Cantador, de autoria do arquiteto, foi inaugurada em 1986 para sediar apresentações de cordelistas e repentistas. A intenção teria sido, conforme Bezerra (2001), “corrigir também, uma discriminação à Nova República” pois, conforme pensou-se, na época, “vamo[s] corrigir, construindo a Casa do Cantador com arquitetura de Oscar Niemeyer”, que só tem Oscar Niemeyer no Plano [Piloto]”. Para justificar a iniciativa, o depoimento apropria-se de uma narrativa política de renovação, já não mais relacionada ao período JK, mas à redemocratização do país iniciada em 1985. No entanto, mais do que referências a edifícios ou construções, tanto em Taguatinga como em Ceilândia, vários entrevistados recordaram-se dos locais cotidianos onde se ia buscar água, lavar roupas ou tomar banho – bicas, torneiras, minas e córregos. Tais locais eram espaços de sociabilidade, sobretudo feminina, pois aquelas atividades ocupavam boa parte do tempo diário das mulheres. A alusão a esses lugares podia reforçar narrativas sobre o empenho coletivo e o momento excepcional de supressão de diferenças sociais: “as mulheres iam todas pegar água ali. Quer dizer, esposas de médico e tudo o mais. Então eu falo que aquilo ali nasceu mesmo de pessoas de garra...” (SILVA, 1997). Mas, as filas para buscar água foram também lembradas como motivo de conflitos, como, por exemplo, no relato da professora Maria das Graças PiResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 11-34, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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mentel (2001): “de repente uma [mulher] passava na frente da outra, menino, daqui a pouco era lata voando para tudo quanto é lado e salve-se quem puder”. Ainda assim, o tom anedótico e a referência ao que seria a índole da “mulher nordestina” ali vivendo – é “forte” e “luta”, mas é também “muito enfezada” – amenizaram a referência aos desentendimentos. Esses depoimentos falam, enfim, de lugares considerados centrais para a vida da comunidade, mas situados em geral à margem do traçado previsto nos planos urbanísticos.
Plano Piloto e cidades-satélites
Ainda que as cidades-satélites tivessem seus próprios marcos e lugares balizadores de memórias, o Plano Piloto permaneceu como referência nos vários depoimentos. A desigualdade social de Brasília foi ressaltada em relatos como o de Cid Lopes Filho (1997): E as duas cidades cresceram juntas – o Plano Piloto: a cidade arquitetônica, linda, bonita, limpa, branca de linhas elegantes; Taguatinga: feia, suja, poeirenta, de barracos, mas lá em Taguatinga estavam realmente aqueles que estavam construindo Brasília.
Esse trecho retoma uma leitura de Brasília cindida em “duas cidades”, de modo similar ao que se vê numa tradição de estudos acadêmicos sobre o caráter dicotômico da urbanização de grandes cidades brasileiras. A experiência de exclusão social permeia os depoimentos, mas há uma tendência de enfatizar a contribuição de cada um dos locais para a história e a formação de Brasília, mais do que o contraste ou a desigualdade entre o centro e a periferia. Depoimentos do Núcleo Bandeirante defenderam a importância daquele local para o comércio, o abastecimento e a continuidade das obras do Plano Piloto: conforme Vonges Rosa (2000), “[Núcleo] Bandeirante era trabalho, manutenção do Plano Piloto, Asa Norte, tudo dependia do Bandeirante, não tinha uma cidade aqui por perto que não dependia, era Cidade Livre que o comércio era forte”. Hélio Bonifácio (2004) sintetizou: “era o centro de tudo”. As referências ao passado deram ensejo à expressão de necessidades do presente de cada uma das comunidades. Assim, o atributo de pioneirismo serviu para reforçar a necessidade de prover o lugar de equipamentos urbanos ou reclamar maior atenção política: “as autoridades precisavam e precisam ainda voltar as vistas para o Núcleo Bandeirante, que sendo a cidade pioneira merece um pouco mais de carinho” (MAGALHÃES, 2000). Taguatinga, por sua vez, “nasceu com a vocação de empreendedora, com a vocação de mãe produtora” (PEREIRA,
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2004) e foi descrita como centro de trabalho em Brasília: “muita gente que mora no Plano Piloto trabalha em Taguatinga, muitas. [...] nós oferecemos, são dados oficiais, nós oferecemos quase 100 mil empregos diretos” (PEREIRA, 2004). Alegou-se que as autoridades deveriam considerar esse empenho: “nós temos essa força empresarial e ela precisa ser reconhecida politicamente” (BRITO, 2004), tendo-se no horizonte “um novo boom de empreendimento da cidade” (ARAÚJO, 2004). No entanto, em depoimentos de moradores de Ceilândia, uma relação mais tensa com o Plano Piloto foi sugerida. Ilton Mendes (2002) pareceu se referir aos crimes que podem decorrer de um contexto de injustiça social: “se concentrar os benefícios ali [no Plano Piloto] e não trouxerem para cá [Ceilândia], nós vamos buscar esses benefícios lá onde eles estão”, no entanto, tranquilizou a seguir: “nós não queremos isso, na realidade o que a gente quer é uma qualidade de vida parecida com o que o pessoal tem ali”. A tensão entre o sentimento de estar excluído de Brasília e ao mesmo tempo incluído em sua história subjaz nos vários depoimentos, já a sensação de ser parte de uma comunidade formada ao longo do processo de construção de cada um dos lugares foi inequívoca. A experiência de exclusão social veio à tona de muitas maneiras, ainda assim, os depoimentos baseiam-se em narrativas de empenho comunitário e não de confronto, provavelmente entendendo que essa postura seria mais eficiente para se fazer ouvir por seus interlocutores e para comunicar suas demandas. Os relatos provenientes de Taguatinga, Núcleo Bandeirante e Ceilândia assimilam referências e tópicos enfatizados pelo discurso político de protagonistas da construção de Brasília, mas de modo a constituir uma imagem própria de suas comunidades. A ênfase na formação comunitária de cada um dos lugares contribui para dar sentido de unidade a experiências diversas e para veicular preocupações individuais e coletivas. Nas memórias dos moradores das cidades-satélites, lugares e comunidades se moldaram mutuamente e de modo muito distinto daquilo que fora concebido em planos urbanísticos e determinações oficiais.
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Recebido em: 21 de dezembro de 2018 Aprovado em: 15 de fevereiro de 2019
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O mito fundador de Brasília expresso em discursos patrimoniais: uma análise de processos de tombamento The founding myth of Brasilia expressed within patrimonial discourses: a review of heritage recognition’s processes Daniela Pereira Barbosa*
Resumo
Abstract
Brasília, Capital da República, tem suas origens associadas a uma narrativa que se apoiou em um amálgama de fatos e elementos sociais, econômicos e simbólicos. Neste trabalho analisamos o papel da construção do discurso patrimonial de três edificações tombadas pelo governo local do Distrito Federal: o Catetinho, a Pedra Fundamental de Planaltina e a Casa da Fazenda Gama. Esses três bens patrimoniais têm em comum o fato de proclamarem, por meio das justificativas expressas na documentação dos processos de tombamento, que foi a partir deles que Brasília teve início. Analisamos como esta imagem é retratada em cada caso, e ao final concluímos que mesmo conflitantes, há uma sintonia de objetivos de uma narrativa patrimonial que visa glorificar a construção de Brasília e sua monumentalidade, apoiando-se em um patrimônio não monumental.
Brasilia, Brazil’s Capital, has its origin associated to a narrative supported by an amalgam of facts and social, economic and symbolical elements. In this paper we analyse the role played by the construction of the patrimonial discourse applied to three buildings that are classified as heritage by the local government: Catetinho, Pedra Fundamental de Planaltina and Casa da Fazenda Gama. Those three assets have in common the fact that they use different arguments to designate themselves as the Beginning of Brasilia. We examine how this idea is treated in each case and, in the end, we conclude that even if there are opposing objectives surrounding each narrative, they tend to be complementary, because they all want to praise the monumentality of Brasilia, even though supported by a non-monumental patrimony.
Palavras-chave: Mito de Origem; Brasília; Monumento; Patrimônio.
Keywords: Founding Myth; Brasilia; Monument; Patrimony.
* Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília - UnB, linha de pesquisa Teoria, História e Crítica. Mestre em Design pela UnB, linha de pesquisa Design, Cultura e Sociedade. E-mail: barbosa.dnl@gmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o
S
ão raras as cidades que, como Brasília, podem escrever uma narrativa histórica a partir da memória de seus fundadores. Pouco menos de 60 anos separam a transformação da paisagem bucólica goiana em Capital da República, cidade moderna erguida no Pla-
nalto Central. Ainda assim, conforme pretendemos demonstrar neste trabalho,1 o discurso
do mito fundador da cidade não é homogêneo. Dentre as alegações e construções discursivas acerca de como foi o início de Brasília, trazemos ao debate o caso de três edificações reconhecidas como patrimônio pelo Distrito Federal: o Catetinho, a Pedra Fundamental de Planaltina e a Casa da Fazenda Gama. As três edificações se denominam como sendo o início de Brasília, manifestando tal desígnio expressamente na documentação patrimonial. Brasília, embora jovem, possui uma forte narrativa que remonta ao imaginário da concretude do Brasil enquanto nação autônoma. O plano moderno de Brasília, de acordo com Carlos Madson Reis (2016, p. 118), “traduzia o desejo de um país que ansiava por romper com seu passado colonial, visto como sinônimo de atraso, e se afirmar como nação autônoma, moderna e original”. As razões para a transferência da capital do Rio de Janeiro para o centro do país são diversas, e já bastante problematizadas na bibliografia (MOREIRA, 1998; OLIVEIRA, 2005; PENNA, 2002; VIDAL, 2009). Apesar de por vezes a construção de Brasília ser retratada como fruto de uma vontade comum de todo o Brasil, é fato que o então presidente Juscelino Kubitschek (JK) necessitou buscar apoio e consolidar justificativas para a construção da cidade, o grande feito do seu governo. O então presidente enfrentou inúmeros entraves, especialmente de ordem política, já que seus adversários eram contra a transferência da Capital. Por este motivo JK teve como desafio estabelecer um cerco que blindasse sua empreitada de eventuais críticas. Conforme aponta Luísa Videsott (2009), a construção de Brasília foi objeto de uma intensa campanha publicitária, e a mídia impressa oficial da época teve como papel essencial divulgar reportagens que exaltassem JK e Brasília como símbolo de um novo Brasil. Uma das intenções era a de consolidar a imagem de que quem fosse contrário à ideia de Brasília seria também contra o desenvolvimento do país. 1 Este trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado em curso, sob orientação de Maria Fernanda Derntl, e foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
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Logo no início da construção de Brasília, em 1956, foi erguido o Catetinho, edificação em madeira construída em dez dias para dar apoio a JK e sua comitiva. A princípio tinha-se como propósito a demolição do Catetinho quando este não fosse mais necessário, mas a edificação acabou por ser preservada e tombada pelo Iphan em 1959, antes mesmo da inauguração da cidade e a pedido do próprio JK. O Catetinho foi preservado como um dos símbolos do sucesso de Brasília, e uma das justificativas para sua preservação foi seu significado como marco do início de Brasília. A região onde atualmente se encontra Brasília, apesar de ter sido por vezes descrita na década de 1950 pelos fundadores da cidade como um vazio em termos de civilização, possuía núcleos urbanos e rurais. É o caso de, por exemplo, Planaltina e a antiga fazenda Gama, núcleos anteriores a Brasília. Planaltina possui três edificações reconhecidas como patrimônio pelo Distrito Federal: a Igreja São Sebastião, o Museu Histórico e a Pedra Fundamental. Esta última, lançada em 1922 e tombada em 1982, é objeto de análise neste artigo. Sua patrimonialização aponta sua importância enquanto início de Brasília, contribuindo principalmente para justificar seu caráter premonitório, já que antecede Brasília em 38 anos. Nas terras da antiga fazenda Gama há um remanescente, a Casa da Fazenda Gama, construída em meados do século XVIII e tombada como patrimônio local em 2006. Quando JK e sua comitiva chegaram ao território atual de Brasília em 1956, antes da construção do Catetinho, hospedaram-se nessa Casa. O processo patrimonial apoia-se principalmente no significado dessa hospedagem para justificar o símbolo da edificação como o início de Brasília. As três edificações analisadas neste trabalho, cada uma lançando mão de motivações e justificativas diversas, se valoriza enquanto patrimônio pelo fato de ter sido o local onde Brasília teve início. Neste artigo nos propomos a analisar como essas narrativas foram
As três edificações analisadas neste trabalho, cada uma lançando mão de motivações e justificativas diversas, se valoriza enquanto patrimônio pelo fato de ter sido o local onde Brasília teve início. Neste artigo nos propomos a analisar como essas narrativas foram construídas e expressas nos respectivos processos de tombamento, contribuindo com uma visão complexa acerca da simbologia da fundação da cidade por meio do discurso patrimonial.
construídas e expressas nos respectivos processos de tombamento, contribuindo com uma visão complexa acerca da simbologia da fundação da cidade por meio do discurso patrimonial. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Esta pesquisa se deu a partir da coleta e posterior análise de dados que se encontram na documentação referente aos processos das edificações analisadas. A documentação desses processos de tombamento é a fonte primária de análise e se encontra nas dependências da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal – Secult. São documentos impressos, organizados e anexados a uma pasta, formando assim, cada um, um processo. A documentação que constitui esses processos é diversificada e foi organizada ou produzida pelos servidores da Secult.
Considerações sobre patrimônio Entende-se aqui o patrimônio como uma seleção de objetos e tradições merecedores de proteção, levando em consideração a complexidade das relações sociais, que dão espaço para interpretações diversificadas. Conforme destacou Dominique Poulot (2009, p. 12), “a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como uma sociedade constrói seu patrimônio”, o que nos faz refletir sobre quais discursos foram oficialmente apropriados e patrimonializados pelo governo local e, a partir disso, qual ou quais representações se colocam em evidência por meio de seu patrimônio edificado. O patrimônio, visto sob esta ótica, faz parte de uma construção social. Manoel Guimarães (2006) utiliza da expressão domesticar o passado ao apontar uma narrativa que ordena, dá forma e torna expressivo um conjunto disperso de experiências capazes de serem apreendidas por uma comunidade de intérpretes. As demandas que concretizam este ordenamento, de acordo com o autor, são regidas por necessidades do presente, e não do passado, o que abre espaço para interpretações diversas sobre esse passado e sobre a escolha de acontecimentos a serem apresentados como fatos históricos. O patrimônio, assim, faz parte do rol de discursos que se apropria de versões do passado para constituir uma narrativa atuante no presente.
Os processos de tombamento e a Secult
A consulta aos arquivos da Secult, realizada obrigatoriamente em suas dependências, se deu a partir de agosto de 2017 e levou à identificação das fontes primárias. A Secult, conforme
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destaca Beatriz Couto (2015), possui uma trajetória de fragilidades na elaboração, implementação, avaliação e controle dos instrumentos de gestão patrimonial. Todo tombamento realizado em nível local está relacionado a tais questões, que esbarram fatalmente em fatores políticos e governamentais. No caso da Pedra Fundamental, seu tombamento foi reflexo do aparelhamento institucional decorrente dos trabalhos do GT-Brasília,2 atuante entre os anos 1981 e 1986, período em que foram valorizados bens relacionados à mudança da capital e à memória candanga. Em 1989 foi promulgada a Lei nº 47 de 2/10/1989, que dispõe sobre o tombamento dos bens culturais no DF. Esse instrumento também determina que os bens tombados pelo Iphan que estiverem localizados no DF sejam inscritos nos Livros de Tombo do GDF, o que fez com que o Catetinho, tombado pelo Iphan em 1959, fosse também declarado patrimônio local. Não existe, todavia, um novo processo de tombamento do Catetinho em nível local, mas sim uma cópia do já existente processo federal. A partir dos anos 2000 a Secult – que então era chamada DePha – perde parte de sua autonomia com relação à gestão patrimonial do Plano Piloto de Brasília, reconhecido como patrimônio mundial em 1987, e restringe-se à atuação sobre os bens protegidos isoladamente. A Casa da Fazenda Gama é reconhecida como patrimônio local em 2006, nessa conjuntura. A tabela 1 a seguir traz a listagem dos bens tombados, localização, construção e legislação, sendo o ano do decreto correspondente à data de tombamento. Tabela 1 – Bens tombados e informações, 2017. Nome do bem
Localização SMPW KM 0, trevo do
Catetinho
Gama
Construção ou inauguração 1957 (inauguração)
Legislação T-594/59 (Iphan); Depha/ GDF 19/11/91
Pedra Fundamental
Planaltina
1922 (lançamento)
Decreto no 7.010/82
Casa da Fazenda Gama
Country Club, Park Way
Entre os séculos XVIII-XIX (construção)
Decreto no 26.660/06
Fonte: Elaborado pela autora com base em dados da Secretaria de Estado de Cultura do DF.
Cada processo de tombamento possui uma lógica de organização própria, e o primeiro momento da coleta de dados consistiu no entendimento dessa fonte primária. Nem todos os documentos anexados aos processos de tombamento apresentam o mesmo nível de relevância para a base analítica de nosso trabalho, já que alguns se referem a trâmites institucionais que demonstram o funcionamento administrativo que culminou no tombamento. Tais arquivos são, normalmente, despachos entre secretarias ou publicações no Diário Oficial do DF, o que 2 O GT-Brasília (Grupo de Trabalho para Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Brasília) constituiu a primeira ação governamental específica para tratar a preservação do patrimônio cultural de Brasília de maneira institucionalizada e tecnicamente sistematizada (IPHAN, 2016). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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nos auxiliou principalmente no entendimento dos procedimentos administrativos da Secult. Em contrapartida, os documentos que se mostraram essenciais para este artigo são os que contemplam os discursos que foram construídos e moldaram uma narrativa acerca da patrimonialização dos bens tombados. Correspondem a material de pesquisa elaborado ou organizado pelos técnicos da Secult e anexados aos processos de tombamento. Analisamos a seguir o discurso presente no processo de tombamento das três edificações, com o intuito de demonstrar e problematizar a narrativa histórica expressa em cada um deles. O Catetinho: a imagem do impulso para a realização de Brasília Imagem 1 – Processo de tombamento do Catetinho (esq.) e Catetinho (dir.), 2018.
Fonte: Elaborado pela autora
O Catetinho, ao contrário das duas outras edificações analisadas neste artigo, foi tombado primeiramente pelo Iphan (então DPHAN), em 1959, e depois incluído no Livro do Tombo do GDF, em 1991. Brasília foi inaugurada em 1960, mas já em 1959 houve a valorização do Catetinho como um símbolo de sua construção. O próprio JK foi uma figura ativa neste processo, já que interviu pesso-
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almente para que o tombamento fosse efetuado. Também Oscar Niemeyer e Rodrigo Melo Franco de Andrade, então diretor do Iphan, foram personagens fundamentais nesse processo. A cópia de um bilhete em que Juscelino solicita a preservação do Catetinho abre a documentação do processo de tombamento, apontando a informalidade que inaugurou a missão. Os trâmites são iniciados a partir desse momento, quando Rodrigo Melo Franco de Andrade pede a cooperação de Israel Pinheiro, diretor da Novacap, a fim de garantir a proteção e zelo à edificação «de acordo com determinação presidencial» (GOVERNO FEDERAL, 1959). A finalidade seria a de promover, pelo Iphan, a integridade e a conservação permanente da edificação existente em Brasília sob a designação de RPI ou “Catetinho”, medida essa justificada por ter sido não só a primeira construção erigida na área da nova Capital, mas também a primeira sede da administração pública no local. (GOVERNO FEDERAL, 1959)
Rodrigo solicita ainda que não seja tomada iniciativa alguma suscetível a alterar suas características originais nem modificar-lhe o aspecto primitivo. Demanda, por fim, cópia do projeto de edificação, de autoria de Oscar Niemeyer, bem como documentação fotográfica. Posteriormente, há o registro, em novo documento, em que Rodrigo entra em contato com Oscar Niemeyer e relata o pedido do presidente ao arquiteto. Confessa que desde a iniciativa daquela edificação ao momento atual, o tempo decorrido ainda é curto para considerá-la na perspectiva histórica. Temos, pois, de cumprir a determinação presidencial, independentemente da consumação do tombamento. E o que importa, aliás, é preservar a casa e velar por sua conservação cuidadosa e permanente. (GOVERNO FEDERAL, 1959)
Rodrigo estaria, deste modo, assegurando que independente da decisão sobre o tombamento, a intenção seria a preservação do Catetinho com a finalidade de atender a demanda do então presidente. Solicita a colaboração de Niemeyer, pedindo o projeto da casa. Relata que teria certo temor, nas palavras dele, de que o projeto tivesse se perdido, mas esperava que o arquiteto conseguisse recuperá-lo. Por fim, termina dizendo: “quero consultar você se não lhe parecerá conveniente ligar a preservação da RPI à iniciativa da construção e instalação do museu de Brasília, desejado também pelo presidente” (GOVERNO FEDERAL, 1959). Aqui estratégias são formuladas na busca por justificativas que legitimassem a proteção do bem, e a ideia do tombamento do Catetinho estaria estreitamente ligada ao desejo do então presidente e da necessidade política de se levar a cabo esse ato. O intuito parece ser o de instituir mais um símbolo do sucesso da construção de Brasília ao se preservar sua primeira construção, valorizando-a enquanto início da Grande Obra. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Depoimentos, discursos e poemas são anexados ao processo de tombamento também com o intuito de criar uma narrativa de valorização do Catetinho como O início de Brasília. Por exemplo a transcrição do discurso de Flávio D’Aquino (responsável pela direção do DUA) enviado a Rodrigo Melo Franco de Andrade ajuda na consolidação dessa narrativa. O relato é iniciado narrando o começo dos trabalhos, que se faziam em ritmo acelerado. Porém, logo no início, o presidente JK teria verificado não haver naquela região nenhuma habitação “mesmo modesta, que lhe prestasse para abrigo e lhe permitisse pernoite como era o seu desejo, a fim de poder acompanhar pessoalmente o início dos trabalhos” (GOVERNO FEDERAL, 1959). A hospedagem de JK e sua comitiva na Casa da Fazenda Gama é negligenciada nesse processo, enquanto no da referida Casa há grande valorização da estadia de JK no recinto, que inclusive o teria inspirado grandemente, conforme será apresentado posteriormente. Voltando ao processo em análise, conta-se que foi a partir da falta de hospedagem que “um grupo de amigos do presidente, conhecendo-lhe o desejo, resolveu construir no menor espaço de tempo possível (...) uma casa de madeira que atendesse àquelas condições” (GOVERNO FEDERAL, 1959). O relato continua, registrando que o arquiteto Oscar Niemeyer, um dos membros desse grupo, fez a planta da casa, que foi construída em 10 dias e que os habitantes de Brasília deram curiosamente o nome de Catetinho. Há, nesses trechos, uma intenção de tornar o Catetinho uma obra familiar, valorizando não apenas a atuação do grupo de amigos do presidente em proporcionar-lhe uma habitação provisória simples e confortável, mas também reforçando o caráter de convivência amigável entre JK e as pessoas que o cercavam na época da construção. D’Aquino continua o relato, resgatando fatos que aconteceram nesses 10 dias de construção. Aponta a dificuldade de se encontrar recursos na região, afirmando que, apesar de apresentar perigos, era necessário continuar a obra começada, em uma referência ao sacrifício necessário que Brasília exigia. O relato continua, enfatizando a importância do Catetinho, já que teria sido nessa residência que o presidente e dirigentes puderam, “talvez com mais comodidade, traçar planos e tomar providências para o posterior desenvolvimento da Nova Capital – a cidade moderna que se estende, como asas abertas do plano de Lucio Costa, pela vastidão do Planalto Central” (GOVERNO FEDERAL, 1959). A referência à monumentalidade de Brasília como ponto de chegada que justificaria todos os esforços é evidente. O último depoimento é do engenheiro José Ferreira de Castro Chaves, o Juca Chaves, sobre a construção do Catetinho. Ele também agrega à construção do bem um feito de um grupo de amigos do presidente, valorizando esta iniciativa como ponto inicial que tornou possível a construção da grandiosa obra. O engenheiro cita os trabalhadores anônimos – os candangos, como elementos importantes na consolidação da nova Capital, mas o destaque principal é sempre a
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figura otimista e disposta de JK. O engenheiro narra sobre a equipe que participou e a logística necessária para a conclusão da obra, destacando que o “trabalho intenso era amenizado nas horas de lazer pelo violão de Dilermando Reis, as serestas de Cesar Prates, que encantavam os candangos” (GOVERNO FEDERAL, 1959). Este trecho remonta a uma convivência harmoniosa entre as pessoas envolvidas na construção, com o intuito de estabelecer uma imagem positiva dos canteiros de obra e dos trabalhadores. Continua o relato, citando um trecho do próprio livro de JK, Porque construí Brasília, sem informação de data, exaltando que o Catetinho constituiu, pois, um símbolo. Foi ele a flama inspiradora que me ajudou a levar a frente, arrostando o pessimismo, a descrença e a oposição de milhões de pessoas, a ideia de transferência da sede do governo. Vi que, se um grupo de amigos fora capaz de erigir, sem qualquer auxílio oficial e levado apenas pelo idealismo, aquele palácio de tábuas em dez dias, o que eu não poderia fazer então, sendo o presidente da república e dispondo, já que o Congresso aprovara minha iniciativa, de todos os recursos governamentais? (GOVERNO FEDERAL, 1959, grifos nossos).
O engenheiro relata ainda como o Catetinho foi um exemplo de trabalho em equipe que frutificou, pois “a partir daquele momento a construção da cidade processou-se em ritmo vertiginoso, o chamado ‘Ritmo Brasília’. O trabalho em equipe e a solidariedade sempre foi a sua característica” (GOVERNO FEDERAL, 1959, grifos nossos). Aqui há o intuito de demonstrar como a construção do Catetinho inspirou também os candangos em sua tarefa de construir Brasília, grupo de trabalhadores que ganharam a alcunha de heróis anônimos. Além dos depoimentos, há no processo de tombamento um poema intitulado Catetinho, de autoria de Wilson Moreira da Costa. Transcrevemos a seguir alguns trechos que vangloriam principalmente a figura de JK e o sacrifício dos candangos que se empenharam na empreitada. JK, no poema, também é retratado como candango. A união do Brasil em prol da construção de Brasília como um objetivo único da nação também está presente. Catetinho, tu foste o pioneiro da urbe do sol (...) Pelos teus caminhos sentimos. Os passos do descobridor. Legado da pátria. A imagem do trabalho (...) Bendito o teu criador, Brasília; Ele transformou a solidão agreste. Na metrópole fecunda (...) E com amor o “presidente candango” construiu. Onde havia a indolência pôs a energia. Onde havia a descrença despertou a fé. E a selva se entregou (...) Pó escarlate de Brasília. Tens a cor do sangue daqueles. Que morreram por ti. Homens de Brasília. Heróis de todas as labutas. Vencedores de todas as adversidades. Escutem. Há um homem que muito sofreu. Para que um dia. Tu, cidade menina (...) Foste o coração da Pátria (...) Glória ao teu pai, Brasília. Que perscrutou o futuro. Plantando a fé. No homem deste país. No caboclo rude do sertão. No gaúcho soberbo dos pampas. No paulista revolucionário (...) No mineiro das montanhas altivas. No bravo nordestino fustigado pelas secas. Glória ao teu pai, Brasília. Que já se sentiu só incompreendido. Que dialogou também com a solidão. E não se Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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deixou abater pela indiferença, pela rotina. Pela ignorância. E do nada te plasmou. Urbe do sol (...) De todas as cores. Um só ideal. (GOVERNO FEDERAL, 1959)
A documentação traz o discurso de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rodrigo lembra que a instalação do Catetinho teve como objetivo “acelerar a obra imensa de transferir do litoral, onde permanecia 4 séculos e meio, para o centro do território nacional, a Capital do Brasil, erigindo-a como um testemunho ciclópico de confiança no futuro da pátria” (GOVERNO FEDERAL, 1959). Relata que o objetivo do tombamento seria o de conservar, para as próximas gerações, “uma construção que, pela própria fragilidade, não possui as condições necessárias para subsistir”. As gerações futuras, nesse sentido, conheceriam “a origem rústica e quase humilde da majestade da Nova Capital” (GOVERNO FEDERAL, 1959). A imagem desenvolvimentista do governo JK aparece nessa citação, pois demonstra que a partir de origens rústicas foi possível construir o Brasil moderno e do futuro, simbolizado por Brasília. Rodrigo reforça esta imagem colocando que o objetivo mais amplo do tombamento seria o de proteger “um dos marcos expressivos da civilização nacional, a memória luminosa da identidade do Brasil do futuro com o do passado, estabelecendo a ligação entre as aspirações gloriosas alcançadas e as realizações toscas e modestas de que se originaram” (GOVERNO FEDERAL, 1959). Diz que este foi o entendimento do Iphan
O tombamento do Catetinho, cronologicamente precursor a Brasília, insere-se em um discurso de valoração da grande obra monumental em que a imagem do Sonho Brasília, ainda em processo de consolidação, se coloca em evidência.
diante da solicitação do presidente para tombar o Catetinho e cita as contribuições de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Este trecho parece se apoiar na ideia da necessidade de se construir uma imagem do Brasil do passado, tosco e modesto, porém importante para poder glorificar o Brasil do futuro, moderno. O Catetinho teria sido o marco dessa empreitada e a glorificação da monumentalidade de Brasília aparece na construção dessa narrativa patrimonial. O tombamento do Catetinho, cronologicamente precursor a Brasília, insere-se em um discurso de valoração da grande obra monumental em que a imagem
do Sonho Brasília, ainda em processo de consolidação, se coloca em evidência. O destaque é dado a personagens como Niemeyer, Israel Pinheiro e Rodrigo Melo Franco de Andrade, além, claro, do próprio JK como ponto chave, preservando-se não só o Catetinho, mas uma narrativa histórica pautada na memória contada pelos fundadores da cidade. A partir da análise do discurso presente na documentação e o modo como é narrada a proposta de preservação do Cate-
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tinho, identificamos que há a intenção de retratar a existência de uma construção homogênea de vozes que atestam a importância do bem, mesmo quando se questiona seu curto período de existência para ser tombado. A Pedra Fundamental de Planaltina: o discurso do antemanhã de Brasília Imagem 2 – Processo de tombamento da Pedra Fundamental de Planaltina (esq.) e Pedra Fundamental de Planaltina (dir.), 2018.
Fonte: Elaborado pela autora
O processo de tombamento da Pedra Fundamental é focado em dois momentos: seu lançamento, no Centenário da Independência do Brasil, em 1922, e seu tombamento, em 1982. O tombamento resgata o lançamento, este que se refere, em 1922, ao futuro Distrito Federal. A simbologia presente nesses momentos históricos é enfatizada na documentação. Sobre o lançamento da Pedra Fundamental, o destaque na documentação vai para os personagens que participaram do ato, assim como os marcos que assinalaram a trajetória da Pedra: sua confecção, transporte e lançamento, como símbolo de esperança da concretização do Novo Distrito Federal. O personagem de maior prestígio é o engenheiro Balduíno Ernesto de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Almeida, que é retratado como o principal responsável pela missão. Balduíno é colocado ao lado de personagens anteriores relacionados ao movimento mudancista e iniciativas a favor da mudança da Capital, que são rememoradas, com o intuito de construir uma narrativa linear acerca de uma pré-existência de Brasília. Por exemplo, o documento recupera nomes e fatos, como o papel de Varnhagen na ideia mudancista, assim como de Lauro Müller, que estabelece, enquanto deputado, a área que fica pertencente à União. Depois é a vez de destacar o papel de Floriano Peixoto e a Missão Cruls, em 1892. Por fim, aponta o momento do lançamento da Pedra Fundamental, no Centenário da Independência do Brasil, com destaque para a figura de Balduíno. Um livreto formato A5 com o título Lançamento da 1ª Pedra da Nova Capital no Planalto Central, de data incerta, anexado à documentação, também nos trouxe informações valiosas. A história é narrada de modo a, novamente, glorificar a figura do engenheiro Balduíno. Relata que por pouco a Pedra não é lançada, pois devido ao curto tempo, a missão seria quase impossível. Teria sido graças aos esforços do engenheiro que a ação teve êxito. Balduíno teria ficado encarregado da missão faltando apenas 10 dias para o 7 de setembro, e teria encontrado inspiração na poesia: falta-me tempo para pensar, para agir ainda menor era o tempo. A viagem realizada pela comitiva até Planaltina é narrada como um ato heroico em que Balduíno preparou os últimos acertos, tomando providências referentes a transporte e alimentação. As dificuldades de transporte são exaltadas como parte da aventura: o trajeto de trem, saindo de Araguari, e depois de automóveis, partindo de Ipameri. As dificuldades de acesso são trazidas como um sacrifício a ser feito. Os carros ford bigode “assustavam os moradores de Mestre d’Armas”, pois era “o carro que corre sem boi” (DISTRITO FEDERAL, 1982). Neste trecho demonstra-se como o progresso estaria chegando àquela comunidade interiorana juntamente com a Pedra Fundamental e a esperança de concretização da Nova Capital. A pretensão de trazer o progresso para o interior do Brasil mais tarde é retomada por JK como uma das justificativas para a consolidação da construção de Brasília. A escolha do local para o lançamento da Pedra Fundamental também teria ficado a cargo de Balduíno, que teria como dado geográfico o quadrilátero Cruls. A narração desta empreitada sugere novamente um ato heroico, ainda que improvisado. Diante da missão, o engenheiro teria se perguntado: onde edificar o marco numa vasta região de mais de 14 mil km2? Ele teria visitado locais, como o sítio Acampamento, onde acampou a Missão Cruls e as terras banhadas pelo rio Paranoá, onde hoje é o Lago Paranoá. Foi Balduíno que batizou o local escolhido de Serra da Independência, e nela teriam dois morros, “ao primeiro chama-o de Morro de 7 de setembro e, ao segundo, Morro do Centenário”. Balduíno então teria tomado uma decisão, “no Morro do
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Centenário decidi, bem ou mal, na manhã de 5 de setembro, colocar a Pedra básica da futura Capital da República” (DISTRITO FEDERAL, 1982). A Pedra é retratada como a antemanhã de Brasília, simbolizando “a concretização próxima da mudança da Capital Brasileira, implantando consigo a esperança da conquista da própria terra para uma libertação social e econômica, e garantindo maior segurança ao país” (DISTRITO FEDERAL, 1982). Esta imagem foi retomada nos anos 1950 para justificar a construção de Brasília, resgatando este e outros momentos históricos para a construção de uma narrativa simbólica da Nova Capital. É basilar compreender que para explicar Brasília, de acordo com Thiago Perpétuo (2015, p. 36), “operou-se a construção de uma narrativa a partir da seleção e apropriação de acontecimentos dispersos, difusos e diversos, para depois cerzi-los numa versão do passado orientada para fins específicos”. Esse procedimento estaria relacionado com a invenção de uma tradição, na qual a imagem da Pedra Fundamental é tratada como um marco histórico. Este marco foi posteriormente apropriado por JK e seus aliados para a construção de uma narrativa associada à pré-existência de Brasília. A existência da cidade, tendo como base as ideias dos mudancistas, é retratada como sendo um inevitável destino do Brasil levado a cabo pelo presidente JK. A solenidade de tombamento, de 1982, buscou valorizar sobretudo o ato de lançamento da Pedra Fundamental que se deu em 1922. O ato contou, além de membros do governo e do exército, com remanescentes signatários da ata de lançamento. Adicionalmente, um texto de junho de 1972 do Correio Braziliense é colocado na documentação para compor o ato de tombamento, lembrando que o lançamento da Pedra “dá uma visão da euforia que se viveu neste dia em Mestre D’armas: a festa da pedra. Quando ainda pertencia ao Estado de Goiás, há precisamente cinquenta anos, Planaltina conheceu o maior acontecimento de sua história que teve repercussão em todo o país” (DISTRITO FEDERAL, 1982). Este resgate histórico pretende vangloriar a importância do lançamento da pedra, o que justificaria a preservação de sua memória. A Pedra Fundamental faz parte da construção de uma narrativa histórica de Brasília que serviu para
A Pedra Fundamental faz parte da construção de uma narrativa histórica de Brasília que serviu para antever sua construção, já que precede Brasília em mais de 30 anos. Sua imagem e a de seus personagens é retratada como uma espécie de profecia de que Brasília seria o caminho para o desenvolvimento do Brasil.
antever sua construção, já que precede Brasília em Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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mais de 30 anos. Sua imagem e a de seus personagens é retratada como uma espécie de profecia de que Brasília seria o caminho para o desenvolvimento do Brasil. O tombamento, nesse sentido, seria a afirmação desse propósito. Vale salientar que o GT-Brasília, atuante no período de tombamento da Pedra, buscou estudar maneiras de se preservar Brasília, levando em consideração seus antecedentes e práticas culturais que foram desenvolvidas na época da construção, recomendando a preservação de núcleos anteriores a Brasília e antigos acampamentos de obras. O tombamento da Pedra Fundamental, nesse sentido, é também um reflexo dessas discussões. A Casa da Fazenda Gama: o discurso do encantamento
Imagem 3 – Processo de tombamento da Casa da Fazenda Gama (esq.) e Casa da Fazenda Gama (dir.), 2017.
Fonte: Elaborado pela autora
A Casa da Fazenda Gama foi tombada em 2006, mas a iniciativa do seu tombamento, de acordo com a documentação, inicia-se em 1990 a partir de uma conversa entre Rodolfo de Mello Prado, presidente do Brasília Country Club, e Silvio Cavalcanti, diretor da Secult (então DePha). Essa conversa foi oficializada em um documento enviado pelo presidente do Brasília Country
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Club ao diretor do DePha e é o primeiro do processo de tombamento. A edificação fica nas dependências do Brasília Country Club. Os interesses pela preservação da Casa que antecederam o tombamento são retomados ao longo da documentação, demonstrando a importância simbólica da Casa Velha, como por vezes é denominada. A primeira iniciativa teria sido do GT-Brasília, em 1987, com o intuito de preservar antigas fazendas, mas não houve propriamente a menção do tombamento como forma de preservação. O documento traz informações sobre a atuação do GT-Brasília especificamente quanto à preservação de núcleos anteriores a Brasília, quando o Grupo produziu o Anteprojeto de Legislação de Proteção do Patrimônio Histórico, Cultural, Natural e Urbano de Brasília. Esse documento aponta as manifestações vernáculas, compreendidas pelos núcleos históricos de Brazlândia e Planaltina e antigas sedes de fazendas que guardam as características do “fazer tradicional da região Centro Oeste” (DISTRITO FEDERAL, 2006). A iniciativa do GT expressa na documentação tem o intuito de prover maior legitimidade à iniciativa e, consequentemente, ao próprio bem e seu tombamento. Em 1999 a questão do tombamento da Casa entraria novamente em cena a partir de uma solicitação do Brasília Country Club (oficialização de conversa entre Rodolfo de Mello Prado, presidente do Brasília Country Club, e Silvio Cavalcanti, diretor do DePha, que corresponde ao primeiro documento do processo de tombamento). Desta vez, a intenção era que a edificação fosse tombada reconhecendo-se seu valor histórico e arquitetônico. Manifesta ainda a necessidade de elaboração de um projeto que contemple a reconstrução ambiental da fazenda, “considerando os equipamentos ainda existentes na área como monjolo, pilão, carro de boi, etc.” (DISTRITO FEDERAL, 2006). O tombamento, porém, não teria sido levado adiante por motivos institucionais. Em 2001, de acordo com a documentação, o DePha retoma novamente a intenção de tombar a Casa sede da Fazenda Gama e inclui essa medida em seu Plano de Ação durante dois anos consecutivos. Contudo, assim como teria acontecido em 1999, mudanças administrativas impedem a continuidade do processo. Em 2002 o DePha recebe, “por parte da comunidade, nova solicitação de tombamento, cujo pedido destaca as condições de completo abandono onde se encontra a casa.” (DISTRITO FEDERAL, 2006). O DePha retomaria a iniciativa de tombamento da Casa da Fazenda Gama em consideração ao interesse da comunidade. A relação entre a Casa e a história de Brasília é elencada nas justificativas apresentadas na documentação, “pois foi ali onde primeiro se reuniram os construtores da Nova Capital do país, e ali se traçaram planos (como o projeto da Cidade Livre) e se tomaram decisões da maior imResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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portância” (DISTRITO FEDERAL, 2006). O interesse histórico da Casa é lembrado ao se afirmar que o local abrigou o primeiro serviço de rádio da Pan Air do Brasil, e era por meio desse rádio amador que se estabeleciam as comunicações entre a futura Brasília e o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Na proposta documentada pelo Brasília Country Club, de 1999, é sugerido que o projeto de recuperação deveria incluir a área das imediações da casa, “de maneira a contemplar a reconstituição ambiental de uma sede de fazenda típica da região naquela época, com equipamentos característicos de uma fazenda do interior” (DISTRITO FEDERAL, 2006). A relação entre modernidade e tradição é latente para justificar a importância dessa edificação e sua representação. A reconstrução dessa tradição, entretanto, tende a reforçar a importância da modernidade de Brasília, pois a justificativa principal de tombamento é a valorização do momento referente à chegada de JK para dar início à construção da nova Capital, valorizando esse momento histórico e sua imagem. A tradição goiana como memória a ser preservada é recuperada algumas vezes na documentação. Um exemplo é quando se valoriza a arquitetura vernácula anterior a Brasília, colocando a Casa da Fazenda nesse contexto. A modernidade, neste tópico, é colocada como um entrave ao mantimento desses núcleos, já que “as edificações mais recentes interrompem, constantemente, os conjuntos antigos com características bastante diversas, como a incidência de materiais novos frequentemente industrializados» (DISTRITO FEDERAL, 2006). Aqui, ensaia-se um discurso de ameaça dessa arquitetura tradicional, o que visa legitimar a preservação da Casa. Um documento anexado ao processo intitulado Fazenda Gama, de data incerta, foi essencial para o entendimento das articulações que envolveram a trajetória patrimonial deste bem. Ele coloca que quando chegaram os pioneiros com a finalidade de construir a primeira residência oficial, a sede da Fazenda do Gama encontrava-se em situação bem precária, mas era o único abrigo existente, e achava-se localizado ao lado do canteiro de obras do Catetinho e da pista de aviação, ora em fase de construção. (DISTRITO FEDERAL, 2006, grifos nossos)
Destacamos que a palavra pioneiro, muito associada à construção de Brasília, é colocada neste documento representando a Casa como parte do discurso oficial da chegada dos desbravadores a Brasília. A simbologia da palavra pioneiro ligada a Brasília alcança desde os trabalhadores até aqueles que vieram para a cidade em construção, inclusive figuras emblemáticas como JK e Oscar Niemeyer. Os antigos acampamentos de obras, por vezes, são também designados
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como pioneiros e, consequentemente, retratados como guardiões da memória da construção de Brasília. A proposta de recuperação da Casa e o orçamento, pelo Brasília Country Club, são anexados ao processo em formato de um livreto encadernado. O discurso adotado pelo Clube ao retratar a Casa é voltado principalmente para a importância da imagem de JK associado à construção de Brasília, mesmo quando retoma a questão da tradição goiana para justificar sua preservação. Alguns textos foram extraídos de publicações do jornalista Adirson Vasconcelos, que é retratado no livreto como um pioneiro escritor, em mais uma alusão à epopeia da construção de Brasília. Nesses textos a ênfase à fase da construção da cidade vai para o ex presidente Juscelino Kubitschek. O texto retrata Brasília como marco mundial da modernidade arquitetônica e acrescenta que “sua história tem raízes em localidades as mais distintas, desde os palácios e gabinetes políticos onde se discutia e se decidia pela Nova Capital, até casas rústicas carregadas dos traços culturais e históricos do povo de Goiás. A casa velha é uma delas” (DISTRITO FEDERAL, 2006). Ainda de acordo com esse texto, o espaço pretendido para a Casa, depois de reformada, seria de um local aberto para abrigar atividades diversas como palestras, exposições de artes plásticas, noites de poesia e música. Enfim, “um lugar do passado, renascendo no presente para abrigar as gerações culturais que se firmam e se perpetuam em Brasília.” (DISTRITO FEDERAL, 2006). A relação complementar entre modernidade e tradição reaparece, sendo a Casa um elo entre ambas. Além das justificativas expostas, um novo fator histórico é apresentado nesse livreto. Com um subitem intitulado Festa e Magia, adiciona-se um discurso místico à imagem da Casa. O fato da Fazenda Gama ter sido o cenário escolhido por JK para ali tratar com sua equipe da transferência da Capital não teria se dado por acaso, pois “por todo o Goiás, a Fazenda Gama sempre foi uma referência marcante. E isso desde muitos anos atrás” (DISTRITO FEDERAL, 2006). O texto traz que Gama era o nome do padre que naquelas terras realizou festas de cunho religioso e também cultural. A ênfase do relato é para a Festa do Divino e seu espírito acolhedor, que atraía grande número de visitantes. Esse espírito, que segundo o texto teria se consagrado até nossos dias, é colocado como sendo o ambiente que JK teria encontrado na fazenda. “Uma casinha simples, mas encantadora. Magicamente encantadora.” (DISTRITO FEDERAL, 2006). Anteriormente na documentação, entretanto, foi ressaltado que os motivos pelos quais a comitiva de JK escolheu o local para se hospedar foram práticos, já que a Casa, além de se encontrar próxima ao Catetinho, na época em construção, estava relativamente bem conservada. No tópico Festa e Magia, em contrapartida, adicionam-se valores simbólicos a esta escolha, representando Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 35-56, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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um Juscelino encantado pela aura do local. Esses discursos, que trazem uma versão diferente do passado, visam formar uma narrativa no processo de construção da trajetória patrimonial da Casa da Fazenda Gama que, de um modo ou de outro, valoriza a escolha de JK pelo local. O ex presidente é o principal personagem no discurso que traça a trajetória patrimonial da Casa. Retratando-o como um homem do povo conta-se a história do Café da Zenaide, chamado assim em função da esposa do zelador da fazenda. A fotografia de JK tomando café faz parte tanto do acervo do atual Museu da Casa da Fazenda Gama quanto da ambientação de seus arredores. O documento narra que Juscelino, na ocasião, ao ser servido de um café, perguntou se a senhora o conhecia. Ela teria respondido “sei... É o presidente Juscelino”. E então “Juscelino ficou muito feliz” (DISTRITO FEDERAL, 2006). A narrativa de homem do povo continua: “enquanto JK tomava café, os fotógrafos começaram a fotografar. Alguém começou a espantar uns suínos e umas galinhas que estavam nas proximidades. Mas o presidente interrompeu o movimento e disse: deixem os porquinhos saírem também na foto” (DISTRITO FEDERAL, 2006). Essa foto é um dos mais importantes registros no acervo do Museu da Casa, colocada em destaque e maior do que todas as outras. Outro tópico que se mostra presente na documentação é a imagem de Brasília como um sonho a ser construído, representado tanto pela figura de Juscelino quanto pelo misticismo presente na Casa, que novamente é colocado em evidência. Quando o presidente foi embora, o documento relata que ficava registrado para a história e para a posteridade o seu pensamento. E tudo estava consubstanciado na página que escrevera sentado ao tronco da árvore caída à beira d’água, próxima à sede da Fazenda Gama: “parecendo um sonho, a construção de Brasília é uma obra realista. Com ela realizamos um programa antigo: o dos constituintes de 1891. É um ideal histórico: o dos bandeirantes dos séculos XVII e XVIII. Brasília significa uma revolução política e uma revolução econômica. Estamos erguendo-a com aquele espírito de pioneiros antigos, dos homens que desbravaram os sertões modernos em nossas almas, ansiosas por fundar uma civilização no coração do Brasil. Agradeço a Deus o privilégio que me concedeu de encarar, como Presidente da República, o espírito pioneiro e o sentimento nacional, que me deram inspiração e força para erguer Brasília no coração do Brasil, com o sentido de transformação do meu país. Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com uma fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino” (DISTRITO FEDERAL, 2006, grifos nossos).
Esta memória é retomada de uma forma heroica, romântica e emotiva, enfatizando a importância da Casa como um local de inspiração para o presidente, que lá teria escrito essas cé-
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lebres palavras3 durante sua estada. Juscelino aparece novamente como homem do povo, mas também desbravador, sonhador e ambicioso em seus ideais, todas essas características, mais tarde, associadas também aos candangos. A Casa da Fazenda Gama atualmente é um museu que abriga objetos tradicionais de Goiás e registros da estada de Juscelino. Este elo entre o Velho Goiás e a modernidade de Brasília também está presente no processo de tombamento, ressaltando a Casa como o local onde Brasília teve início. A escolha de JK para lá se hospedar é o principal elemento, na documentação, que justifica a importância da Casa.
Considerações finais
As narrativas patrimoniais expressas na documentação reunida pela Secult mobilizaram uma série de discursos para o reconhecimento como patrimônio das três edificações aqui analisadas. Os principais discursos expressos na documentação fazem referência ao início de Brasília ligado às edificações, cada uma lançando mão de abordagens distintas. As principais representações envolvem principalmente a suposta pré-existência de Brasília e a contribuição da edificação para a concretização da grande obra. São exaltadas figuras emblemáticas ligadas a Brasília, como os mudancistas e o presidente JK. Os discursos que construíram o patrimônio são por vezes complementares e por outras conflitantes, e algumas questões são recuperadas, afirmadas ou ressaltadas dependendo da versão do passado que se deseja exaltar. O que percebemos é que a valorização desse patrimônio não monumental faz parte de uma idealização simbólica, que acaba por reafirmar a monumentalidade do Plano Piloto de Brasília, sem deixar de afirmar interesses locais específicos. Por exemplo, a imagem de simplicidade do Catetinho parece ser associada à própria imagem que Juscelino desejou passar enquanto homem do
O que percebemos é que a valorização desse patrimônio não monumental faz parte de uma idealização simbólica, que acaba por reafirmar a monumentalidade do Plano Piloto de Brasília
povo, imagem retomada novamente na documentação da Casa da Fazenda Gama (quando JK 3 A última frase da citação, em itálico, está gravada em monumento da Praça dos Três Poderes.
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tomou o café de dona Zenaide, fazendo questão de que na fotografia estivessem presentes os animas). O processo de tombamento da Pedra Fundamental não referencia a figura do ex presidente, muito provavelmente pelo fato de o tombamento ter ocorrido no período militar. Ainda assim a narrativa construída consagra Brasília como predestinada a acontecer, o que coincide com o discurso de Juscelino. A imagem da cidade que se pretende consolidar a partir desses atos de tombamento é também uma questão que merece reflexão. No caso do Catetinho, de acordo com Adrián Gorelik (2005, p. 156), a edificação atualmente é um museu de si mesmo, ou seja, “uma arquitetura capaz de expressar a essência política e cultural da epopeia de Brasília”. É nesse sentido que o Catetinho é uma representação não apenas da monumentalidade de Brasília, mas dos acontecimentos e vontades políticas, culturais e institucionais que a produziram. De modo análogo, a Pedra Fundamental e a Casa da Fazenda Gama, mesmo que envoltas em contextos diferentes de construção – sendo que a primeira representa o projeto de um futuro e a segunda nem sequer faz referência a Brasília –, ambas, juntamente com o Catetinho, possuem o seu tombamento envolto na consolidação de uma imagem premonitória de Brasília. Os três processos de tombamento mostram como as origens de Brasília teriam sido humildes, mas a cidade construída, ao contrário, deveria ser majestosa, pois alcançava uma intenção maior: a de colocar o país no rumo do progresso e do desenvolvimento. A Secult, órgão guardião dos processos, insere-se em contextos temporais distintos em cada tombamento, conforme demonstramos no artigo. Entre 1959 e 2006 as articulações federal e distrital sofreram mudanças, assim como a própria visão acerca do que é um bem patrimonial e o que deve ser preservado. O Catetinho retrata a euforia da construção de Brasília, fazendo parte de uma valorização da própria obra monumental por excelência. Os outros bens, em contrapartida, contaminados por outras visões acerca do que é Brasília, sua cultura e sua formação enquanto cidade complexa, apoiam-se na valorização dos antecedentes dessa história, mesmo que acabem por enaltecer também uma certa narrativa oficial do que foi a consolidação de Brasília.
Referências
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Recebido em: 22 de fevereiro de 2019 Aprovado em: 30 de abril de 2019
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Patrimônio, Geografia e Paisagem: construindo estratégias de patrimonialização na Amazônia Patrimony, Geography and Landscape: building patrimonialization strategies in the amazon Francisco Perpetuo Santos Diniz*
Resumo
Abstract
O artigo apresenta uma discussão sobre o processo de valoração de paisagens que fundamentem a ativação de patrimônios culturais, materiais e imateriais chancelados pela UNESCO na Amazônia, relacionando-os aos patrimônios subalternos analisados pela perspectiva dialética, buscando dar visibilidade aos patrimônios locais não reconhecidos pela lógica hegemônica global. A pesquisa tem um caráter qualitativo, bibliográfico e os resultados demonstraram que os patrimônios amazônicos inscritos na dinâmica de produção do espaço e paisagens, não são reconhecidos pelos órgãos da patrimonialização mundial, mas devem ser o fundamento das políticas de patrimonialização, pois não se resumem a ideia dominante de serem feitos de pedra e cal.
The article presents a discussion about the process of valuation of landscapes that base the activation of material and immaterial cultural heritage patronized by UNESCO in the Amazon, relating it to the subaltern patrimonies analyzed by the dialectical perspective, seeking to give visibility to local patrimonies not recognized by global hegemonic logic. The research has a qualitative, bibliographic approach and the results demonstrated that the Amazonian heritage inscribed in the dynamics of space production and landscapes, are not recognized by the organs of world patrimonialization, but must be the foundation of patrimonialisation policies, since they are not limited to dominant idea of being made of stone and lime.
Palavras-chave: Patrimônio; Geografia; Paisagem; Patrimonialização Subalterna.
Keywords: Patrimony; Geography; Landsca-
pe; Subaltern Patrimonialization.
* Doutorando em Geografia na Universidade Federal do Pará e Vice-Coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação e Meio Ambiente na Amazônia (GRUPEMA) da Universidade do Estado do Pará. E-mail: fpsdiniz@gmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o
A
problematização da dinâmica de patrimonialização implementada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos dá subsídio para discutirmos e propormos novas possibilidades de patrimonialização na Amazônia, especialmente,
as destinadas às populações ancestrais que reproduzem seus cotidianos diretamente ligados a apropriação da natureza. Ao implementar processos de patrimonialização, a Unesco age em consonância com interesses de agentes capitalistas em nível mundial, especialmente os ligados à promoção do turismo com a oferta de serviços de hotelaria, viagens, alimentação, setor bancário etc. A metodologia de patrimonialização da Unesco apresenta uma lógica totalitária ao incentivar a espetacularização e midiatização de locais patrimonializados como se fossem as realidades de todas as malhas rurais e urbanas onde são implementados ao impor à valorização de frações espaciais por modelos que não podem ser replicados em outros lugares e, ao mesmo tempo, ignorando dinâmicas sociais e culturais que edificam patrimônios locais. A patrimonialização de certas frações espaciais pela Unesco é fundamentada em paisagens intituladas de valores inestimáveis e incontestes excepcionalidades, sendo edificadas hegemonicamente por construções humanas que representam conjuntos arquitetônicos1, igrejas, monumentos, casarões antigos, fortes, museus, entre outros, cujos valores se referem às elites dominantes pretéritas, mas que são apropriados visando interesses capitalistas de grupos políticos e econômicos que buscam a valorização imobiliária, a promoção do espaço turístico, a auferição de lucros com a refuncionalização urbana, etc. A patrimonialização que emana da Unesco se baseia na comercialização de paisagens que são forjadas, projetadas e reafirmadas, sempre visando a reprodução capitalista. Mesmo as paisagens ditas naturais que, apesar de apresentarem a dominância de elementos da natureza (praias, morros, florestas, biodiversidade, etc.), também são objetos da comercialização impulsionada pela globalização da patrimonialização. Assim, tais processos são questionáveis devido à invisibilização proposital que impõem à cultura e sociedade da maior parte de patrimônios não reconhecidos e cultivados por populações pobres, indígenas e outras minorias. 1 Segundo Ribeiro (2007) foi a partir da Carta de Veneza (1964) que a patrimonialização passou a incorporar aos valores artístico e histórico a noção de paisagens fundamentadas em conjuntos arquitetônicos expressos em paisagens singulares. Assim, rompeu-se com a ideia de monumentos isolados do entorno onde se situava.
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É a partir do contexto segregador de patrimonialização praticado pela Unesco que conjecturamos a construção de um fazer alternativo de patrimonialização na Amazônia ao propormos o que denominamos de patrimônios subalternos2 tidos como todas as expressões de patrimônios cultivados pelos povoados locais e de outras partes do mundo e que fogem ao modelo da patrimonialização mundial, mas que possuem relevante valor para os empobrecidos, para as coletividades rurais, urbanas ou extrativistas que edificam seus cotidianos em memórias, histórias e saberes culturais não reconhecidos. Portanto, apontamos uma nova perspectiva da patrimonialização no contexto amazônico fundamentada na valorização de saberes, fazeres, processos educativos, práticas de trabalho, reprodução cultural, modos de vida e cotidianos de povos locais que vivem nas matas, águas, meios rurais ou que se encontram esquecidos em periferias urbanas, ignorados pela patrimonialização da Unesco. Assim, considerar o processo de construção e significação de paisagens inerentes à produção de patrimônios na realidade amazônica, na perspectiva da contradição, da historicidade e da totalidade, é um grande desafio teórico e um contra-movimento de contestação edificado pelo que chamamos de patrimonialização subalterna, especialmente por dar vozes aos grupos sociais inseridos marginalmente no processo de patrimonialização global de paisagens.
Paisagem como Fundamento da Patrimonialização da Unesco
No contexto da ciência geográfica a paisagem passou a ser estudada no pensamento acadêmico somente no século XIX nas escolas Francesa e Alemã ou Possibilista e Determinista. Na França, Paul Vidal de La Blache tentou explicar a diferenciação das paisagens a partir dos gêneros de vida que estariam expressos nas relações dos homens com o meio e organização social do trabalho. Segundo Schier (2003, p. 24), na Alemanha predominava o conceito de paisagem baseado na descrição3 dos elementos naturais e humanos. O estudo da paisagem ganhou destaque na escola de Berkeley (EUA) ou de Geografia Cultural Tradicional e tinha em Carl Sauer seu maior ícone. Carl Ortwin Sauer (1889-1975) publicou, em 1925, o A Morfologia da Paisagem 2 São aqueles produzidos pelas populações marginalizadas socialmente e minorias étnicas que participam perifericamente da economia do patrimônio. 3 Para Schier (2003) Alexander von Humboldt com Os Cosmos (1944), Carl Ritter com a Geografia Comparada (1865) e a Antropogeografia (1990) de Friedrich Ratzel fundamentaram o conceito da paisagem com o método da transcrição de dados sobre áreas distintas do planeta. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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cuja obra questionava as noções de determinismo geográfico e ambientalismo, alegando que as paisagens não eram resultado dos processos de modelagem dos elementos naturais, que as sociedades não eram regidas por leis naturais universais, criticando, inclusive a exclusão do homem como agente produtor do espaço e paisagens. Contudo, o principal mérito de Sauer foi propor a diferenciação de áreas como objeto de estudo da Geografia e a paisagem como conceito central dos estudos geográficos. Já nos anos 1960, com a emergência da Geografia Humanista e a crítica ao Positivismo da geografia teorética ou quantitativa, a paisagem passou a ser compreendida para além do visível, destacando-se as subjetividades e valores simbólicos, cujos desdobramentos resultaram no entendimento de que eram documentos abertos aptos a múltiplas interpretações. Nos anos 1970, houve o desenvolvimento de novos caminhos epistemológicos associados aos estudos da paisagem, sendo que, a escola que ganhou maior emergência e destaque nesse campo de estudo foi a marxista, por considerar a construção de paisagens a partir da ação dos sucessivos modos de produção, da historicidade, da materialidade do mundo, da relação visível e invisível, entre outros. Na geografia um dos maiores expoentes dos estudos da paisagem associada ao espaço foi Milton Santos (2012, p. 55) ao entender que ambos eram produzidos por dinâmicas que evidenciavam a totalidade socioespacial estritamente vinculadas às formas, estruturas, processos e funções4. A vinculação da economia ao patrimônio5 ganhou notoriedade a partir da segunda metade do século XX, quando houve o resgate de paisagens, especialmente as antigas, enquanto “objeto-mercadoria” a serem consumidas de diversas formas. Ressalta-se que a ideia de patrimônio cultural em voga dá protagonismo aos centros urbanos, às áreas históricas, aos objetos dotados de valores, ao ideário de preservação da história das coisas, ficando para segundo plano, a noção de patrimônio enquanto emanação de paisagens que revelam as manifestações sociais e de bens singulares (materiais e imateriais) não vinculados a objetos visíveis. Segundo Ribeiro (2017, p. 50) a partir de 1970, a ideia de patrimônio foi profundamente transformada com a ampliação dos bens patrimonializados devido à influência da Carta de Veneza (1964), do questionamento da exclusividade de tombamento feito por técnicos especializados e da perspectiva da referência cultural como referenciadora da patrimonialização. Ribeiro (2017, p. 49-50) enfatizou a mudança de discurso pela Unesco quando superou a imagem de patrimônio como objeto de tombamento e referência ao enaltecimento de monumentos e conjuntos arquitetônicos feitos obras de arte e preservação da história que passaram a ser considerados como textos e documentos ávidos a serem interpretados. 4 Para Santos (2012), a forma é todo objeto acumulado temporalmente de maneira diferenciada no espaço. A Estrutura relaciona-se à dinâmica socioeconômica de produção do espaço. Função diz respeito como certos objetos mudam de função conforme os tempos sociais locais e globais e o processo porque a produção do espaço revela movimento ininterrupto. 5 Segundo Choay (2017), o termo patrimônio sofreu ao longo dos anos um conjunto de transformações. No passado patrimônio expressava a transferência de bens que eram garantidos como propriedades a gerações futuras. No século XIX, na Europa, patrimônio representava a preservação dos bens da igreja e da aristocracia, além das obras de artes e, especialmente, a cultura de um povo associada a uma identidade nacional. Os bens materiais aceitos coletivamente por quase toda nação eram definidos como patrimônio material.
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A noção de Paisagem Cultural propalada pela Unesco objetivou superar o paradigma de modernidade que dissociava o homem da natureza, sendo uma estratégia que visava dar ênfase às culturas material e imaterial, aos bens naturais. Segundo a Unesco as paisagens poderiam ser definidas pelos seus limites, desde que dessem a ideia de conjunto excepcional: As paisagens culturais são bens culturais e representam as «obras conjugadas do homem e da natureza» a que se refere o artigo 1º da Convenção. Ilustram a evolução da sociedade humana e a sua consolidação ao longo do tempo, sob a influência das condicionantes físicas e/ou das possibilidades apresentadas pelo seu ambiente natural e das sucessivas forças sociais, económicas e culturais, externas e internas (UNESCO, 2011, p.18).
Por muito tempo a metodologia de patrimonialização emanada da Unesco vinculou paisagem com área física delimitada, uma localidade. O problema consistia no fato da paisagem, seja ela natural ou cultural, estar limitada a uma localidade não vinculada a processos endógenos e exógenos contraditoriamente edificados. A paisagem cultural definida pela Unesco tinha como foco de análise pontos fixos em determinados locais que teriam evoluído independentemente. É neste contexto histórico que as paisagens fundamentaram a economia desigual do patrimônio, pois apenas poucos locais eram visibilizados pelos arquitetos do mundo6. Na Conferência da Unesco, em Paris em 1972, houve a determinação de criação de uma Lista do Patrimônio Mundial objetivando inscrever paisagens que constituíssem bens culturais e naturais de valores universais e excepcionais, cabendo aos Estados Membros da Convenção identificar e preservar os bens patrimoniais. Tal metodologia ratificou ainda mais a atuação de profissionais do patrimônio com extremo saber na definição de paisagens-patrimoniais, além de haver a separação de paisagens naturais restritas às belezas naturais e as culturas vinculadas aos sítios e construções excepcionais, mas que deveriam ser conservadas conjuntamente. Segundo Ribeiro (2007, p. 111-112) somente no início dos anos 1990 que a Unesco definiu o conceito de paisagem cultural a ser inscrito na Lista do Patrimônio Mundial, estando a mesma subdividida em categorias claramente definidas, que seriam as criadas intencionalmente; as evoluídas7 organicamente numa espécie de evolução biológica de transmissão de caracteres hereditários de uma geração a outra que, por sua vez, seriam desdobradas em fósseis por terem encerrado seu ciclo de evolução; e contínuas, mesclando aspectos tradicionais com os atuais; e, por fim, as paisagens associativas em que apesar da presença de aspectos culturais, artísticos e religiosos predominassem aspectos naturais. Ressalta-se que a ideia de evolução que marcou os fundamentos teóricos da noção de paisagem cultural, menosprezava a historicidade, os conflitos sociais e a segregação espacial decorrentes das práticas do capitalismo. 6 Para Costa (2015) os arquitetos do mundo representavam os organismos multilaterais globais responsáveis pela patrimonialização, sendo eles o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). 7 A ideia de evolução advém da teoria da seleção natural das espécies do pensamento darwinista em que os seres mais aptos às contingências do meio sobreviveriam e levariam vantagens sobre os demais. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, organizada pela Unesco, em 2003, houve a preocupação em identificar possíveis ameaças socionaturais aos patrimônios culturais visando salvaguardá-los, além do reconhecimento das influências negativas do processo de globalização e a necessidade de aprimoramento e legitimação de acordos internacionais para proteção de patrimônios da humanidade. Destaca-se ainda, que a Conferência de 2003, definiu claramente o que expressava o patrimônio cultural imaterial, seguido da normatização dos Órgãos da Convenção, de Comitês Internacionais, métodos de trabalho nos Comitês, os pré-requisitos para a participação dos Estados Membros, as metodologias para a Salvaguarda no interior dos Estados Nacionais, a participação das comunidades e grupos, a definição da Lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade as formas de cooperação e assistência, a criação do Fundo para preservação patrimônio. Apesar de todo esforço de adaptar a metodologia de patrimonialização aliando cultura a paisagens naturais, a Unesco continuou definindo patrimônio, em nível global, pelo processo hierárquico e seletivo reforçando as desigualdades socioespaciais entre as nações. A mumificação de paisagens pela patrimonialização dominante é analisada por Costa (2016, p. 35) como a patrimonialização global8 por expressar um conjunto de políticas públicas ou privadas destinadas a fomentar a patrimonialização centrada na turistificação de paisagens reforçando os valores das elites dominantes pela colonialidade de poder e seguindo a lógica dos arquitetos do mundo. A dialética da patrimonialização global eleva às particularidades dos lugares as singularidades comercializadas universalmente, mas impõe uma seletividade espacial problemática, quando: o brusco movimento universal de espetacularização e banalização pela cenarização progressiva dos lugares promovida pela dialética Estado-mercado sobre as bases da técnica, da ciência e da informação; em síntese, é um processo de ressignificação dos lugares da cultura e da natureza em escala planetária (COSTA, 2015, p. 35).
Para Costa (2015, p. 205), há uma lista estabelecida pela Unesco que impõe a geografia desigual do patrimônio cultural, na medida em que os patrimônios em sua maioria se concentram nos países da Europa e nos Estados Unidos, tendo inclusive, as sucessivas Conferências da Unesco e do Icomos ratificando o status quo referente à hierarquia dos bens patrimonializados e a reprodução do modo de produção capitalista perversamente. Para o mesmo autor, em 1994, o Icomos, buscando amenizar as pressões referentes à dominação dos países ricos na lógica da patrimonialização mundial, através da Estratégia Global fundamentada na noção de Valor Universal Excepcional, elevou os bens locais a um patamar de singularidade universal, buscou contraditoriamente, encorajar os Estados a fazerem parte da Convenção e inserirem regiões e temas na lista do patrimônio global, mas ao mesmo 8 Metáfora desenvolvida por Costa (2015) para explicar a escala de ação dos arquitetos do mundo e que se configura na replicação de modelos de patrimonialização em nível planetário.
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tempo, via informação, reforçou o aprimoramento de sua atuação a reafirmação da mundialização da ideia da necessidade de inserir os bens imateriais na dinâmica da patrimonialização mundial. A noção de paisagem, emanada do Icomos e Unesco visou consolidar a reprodução desigual da patrimonialização, apesar de tentarem se adaptar as novas dinâmicas da arquitetura e do desenvolvimento, amenizando as pressões da urbanização, desenvolvimento local, inserindo as comunidades e bens imateriais as paisagens urbanas e históricas como bens de propriedade de toda humanidade. A ressignificação de paisagens pela Unesco no Brasil, mais especificamente, no Rio de Janeiro, com o registro do Cais do Valongo e as paisagens cariocas: entre as montanhas e o mar como patrimônios mundiais, sendo a primeira inscrita como marco do processo de escravidão, de territórios quilombolas e afrodescendentes que estariam passando por um intenso processo de revitalização e requalificação feito por grandes obras estruturais, especulação imobiliária e promoção turística e a segunda vendida como paisagem cultural baseada na tradição paisagista e arqueológica, foi analisada por Ribeiro (2017, p. 55) como um processo antidemocrático por restringir a participação popular na escolha dos bens a serem inscritos para patrimonialização. Segundo Silberman (2016, p. 61) o patrimônio vem sendo comercializado e atende a um conjunto de interesses econômicos específicos de certos grupos e questiona até que ponto as pessoas e comunidades ligadas aos locais onde o patrimônio é comercializado, são beneficiadas? Hernándes e Tresseras (2001 p. 117) fazem uma instigante análise acerca dos processos de patrimonialização e das tensões que envolvem os sujeitos locais e os órgãos da patrimonialização quando destacam que urge a necessidade da qualificação e atuação ética e responsável de profissionais públicos encarregados pela gestão do patrimônio e a democratização na seleção do que deve ser selecionado. Aliás, a dicotomia existente entre os interesses de órgãos públicos, de agentes de setores privados e de populações locais é sempre permeada por conflitos e tensões que não podem ser ignorados. O processo de revalorização urbana e de volta ao passado é apontado por Smith (2006, p. 93) como a herança autorizada da arqueologia do patrimônio por representar interesses econômicos e políticos inscritos em discursos legitimadores do status quo, mas que podem ser questionados pelo princípio de negociação política, de inversão de valores, de construção de identidades ligadas a memórias, aos lugares e paisagens que emanam resistências de grupos subalternos. No que se refere ao processo de turistificação de paisagens pela patrimonialização, Sottrati (2013, p. 610) argumenta que há uma romantização das paisagens nas cidades pela difusão de um reducionismo simbólico e pela criação de processos mercadológicos que forjam a espetacularização de paisagens locais, menosprezando as complexidades históricas, sociais e econômicas. Neste sentido, a turistificação do patrimônio impõe a fragmentação de paisagens como uma suposta totalidade da cidade. Para Canals (2006, p. 78-79), a ativação do patrimônio possui duas perspectivas, sendo a primeira representativa de relações que vinculam a economia turística à representação de identidaResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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des, mas que resultam na mercantilização do patrimônio e a perspectiva que legitima as diferenças entre os povos, mas que tem por objetivo final, a construção de processos turísticos mais solidários e comunitários. Portanto, a patrimonialização hegemônica na Amazônia deve ter seu fundamento em práticas culturais e espaciais que edificam paisagens locais, pois na região, as paisagens culturais representam frações espaciais em constante transformação social, histórica e carregada de contradições, memórias, fazeres e práticas de trabalho a todo instante renovadas
Paisagens e Dialética
Os princípios dialéticos da totalidade espacial descritos por Santos (1988, p. 5) definindo o espaço observado como apenas manifestação do espaço invisível e total, sendo o primeiro negado constantemente e a noção de que toda realidade é uma abstração do concreto, cujos recortes feitos do objeto servem como pano de fundo para criações de abstrações do concreto e de totalidade concreta descrita por Kosik (1995, p. 44), esfacelam o discurso histórico da patrimonialização da Unesco quando consideramos que as paisagens não se restringem ao campo da visão e se referem, apenas, a parte de sua expressão empírica, sendo que sua essência vai além de sua localização espacial, pois evoca temporalidade, historicidade e processos sociais singulares de produção do espaço. As paisagens não se limitam a um conjunto arquitetônico, monumentos ou dádivas naturais que teriam evoluído com o tempo, pelo fato de que as mesmas se encontram em constante movimento expressando sempre processos marcados pela produção e reproduções de formas espaciais que a todo instante seriam destruídas9, reconstruídas e significadas. Para Kosik (1995, p. 49), a investigação de fenômenos considerando o todo e as partes não se restringem ao entendimento de que a totalidade é a união das partes no sentido de dar conta de toda realidade, pois a ideia de totalidade concreta pressupõe o entendimento das relações dialéticas que envolvem o todo, as partes e vice-versa. Para o mesmo autor, a realidade não é como ela se apresenta, visto que, o que vemos é apenas uma pseudo-concreticidade, pois a mesma não se apresenta imediatamente ao homem, estando vinculada a práxis utilitária, ou seja, a forma como o sujeito experimenta e representa as coisas do mundo, mas à medida que há o questionamento sucessivo do mundo vivido, a essência manifestada, primeiramente, no plano do vivido 9 Choay (2017) ao analisar a dinâmica de patrimonialização na França, especialmente em Paris, destacou o processo dialético construtivo-destrutivo-reconstrutivo dos monumentos históricos.
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vai sendo desnaturalizada até se tornar essência decorrente do entendimento de como as coisas, elementos e variáveis constituem o processo fenomênico. Para Santos (1988, p. 6), o espaço visível é a manifestação superficial do espaço enquanto emanação do senso comum, circunscrito à área de vivência dos sujeitos. Neste sentido, a essência num estágio inicial é aparência (visível) e invisível ao mesmo tempo, sendo que para conhecê-la é preciso percorrer suas entranhas e descortinar o mundo-fenomênico que a visão pode observar. Quando associamos este princípio do visível e do invisível à patrimonialização global, conjecturamos que os agentes da patrimonialização hegemônica, na maior parte dos casos, concebem as paisagens tão somente pelo plano das manifestações visíveis. Isto nos permite inferir que uma contribuição precisa ser feita, pois na Amazônia, as paisagens a serem patrimonializadas necessitam de profundas problematizações e questionamentos de como elas foram construídas historicamente, como as sociedades as interpretam, apresentam indicadores de processos que revelam opressões, resistências e identidades. Restringir a paisagem ao plano do visível é o mesmo que concebê-la no plano do empírico, ou seja, de uma pseudo-concreticidade, porém quando problematizada, questionada, analisada e interpretada tornar-se-á paisagem invisível. A paisagem invisível não está escondida no espaço da pseudo-concreticidade, mas é revelada ou desnudada quando a compreendemos para além do espaço integrante de paisagens visíveis. As paisagens invisíveis se manifestam no plano da visão, mas vão muito além do objeto-dado. Nesta perspectiva, as paisagens a serem ativadas na Amazônia devem ser identificadas pelas comunidades locais através de relatos, memórias e descrição de práticas de trabalho que envolvam cotidiano e cultura. Neste sentido, conjecturamos que os agentes da patrimonialização global denominam propositalmente de paisagem todo objeto socionatural observável no plano da aparência e não consideram que o que se observa é apenas um registro temporal e espacial de um processo que nunca se esgota. Ressalta-se que as paisagens são apenas abstrações cognitivas ou um conceito que serve como parâmetro ou pano de fundo para o entendimento de como certas frações espaciais determinam e são determinadas pelas ações patrimonializadoras da Unesco. Assim, as Organizações Mundiais da patrimonialização ignoram a integração entre o todo (o espaço) e as partes (as paisagens) e viceversa na lógica da identificação e determinação de paisagens de expressivos valores universais. A suposta ação totalizadora da patrimonialização global se restringe à tentativa de difusão de uma patrimonialização homogênea em determinadas áreas, mas na prática, fica restrita a poucos fragmentos espaciais. As paisagens amazônicas não podem ser mais vistas pela patrimonialização global como linhas, pontos, nós, áreas e polígonos dissociados do restante do todo do campo, das áreas ribeirinhas e extrativistas, do todo da cidade, do Estado, da região, do país e do mundo. A ideia de evolução ambiental e social menospreza as paisagens ligadas à produção do espaço em nível mundial e induz ao entendimento de que elas surgiram feito tábua rasa, evoluíram independentemente e se petrificaram, seja em áreas rurais, urbanas e naturais, autonomamente não Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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se relacionando aos espaços edificados pela história, memória, luta de classes, modos produtivos temporalmente sequenciados e como expressão de uma totalidade social e espacial indivisível. Bruyne (1977, p. 65) descreve o fundamento dialético da totalidade, que auxilia na análise da patrimonialização de paisagens amazônicas. Assim a perspectiva dialética, [...] visa simultaneamente os conjuntos e seus elementos constitutivos, as totalidades e suas partes, é ao mesmo tempo análise e síntese, é movimento reflexivo do todo às partes e reciprocamente... É sempre negação, porque nega as leis da lógica formal (identidade; não-contradição; terceiro excluído) na medida em que as hipóteses e os fatos que esta permite analisar são abstraídos do conjunto concreto que os ultrapassa. (BRUYNE, 1977, p. 65-66).
Bruyne descreve a dialética como sendo uma metodologia geral, expressa na análise de um objeto científico a partir da superação de qualquer relação linear do processo, como a realidade concreta problematizada e formada por partes articuladas a uma totalidade se constituindo sempre num processo que expressa negação quando a análise do objeto é apresentada como a evolução de um percurso a cumprir. Já Para Merleau-Ponty (1984, p. 222-223), o visível e o invisível não podem ser entendidos como oposição para compreensão do ser e o nada, deve haver a superação da visão dicotômica da busca a razão como único caminho do pensamento. Para o autor, o visível e o invisível são sempre possibilidades do vir à ser. Assim, o visível e invisível podem ser compreendidos como transitoriedade, movimento e processo em constante construção. Assim, pensar de forma alternativa, a patrimonialização no contexto amazônico pressupõe considerar que os patrimônios a serem ativados são fragmentos de uma totalidade amazônica em constante interação com o mundo, mas que resistem às influências da patrimonialização do mundo pelas singularidades locais. Na Amazônia, as paisagens não são estáticas, são fluxos, movimentos, processos socioculturais e práticas de trabalho ancestrais e atuais que a todo instante são re-significados pela memória coletiva10. Neste sentido, entendemos que o não reconhecimento da paisagem como integrante de um sistema espacial complexo, embebido em contradições sociais e articulado localmente e globalmente, favorece a fragmentação, dominação e hierarquização dos fragmentos espaciais e paisagens a serem selecionados. A patrimonialização quando analisada pela dialética revela contradições, processos, reciprocidade, movimento, totalidade e transformação da quantidade em qualidade ou lei do progresso por saltos. Assim, inferimos que é necessário repensar o modelo de patrominialização de paisagens amazônicas procurando construir transições, partindo do cotidiano dos sujeitos locais, passando pela lógica da patrimonialização oficial e chegando a patrimonialização subalter10 Citando Halbwachs, Abreu (2011) ratifica a ideia de que a memória coletiva é decorrente das resistências e relações que os sujeitos tiveram coletivamente com espaços. A memória coletiva não se restringe a memória individual, pois esta possui leis próprias, mas estaria vinculada a forma como os sujeitos edificam conjuntamente as memórias subjetivas. A memória coletiva não seria a somatória de memórias individuais, mas as memórias vividas coletivamente nas famílias, grupos e sociedades.
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na num movimento incessante que busca dar saltos qualitativos significativos considerando a totalidade social e espacial dos povos amazônicos rompendo com a noção de paisagem inerte fruto da ideia de uma realidade que não se transforma, considerando os processos desiguais de apropriação do espaço, entendendo que a patrimonialização global age discursivamente pela totalidade, mas que se efetiva pela seleção e fragmentação de áreas, que a história social é o que dá vida e sentido às paisagens e, principalmente, que elas são produzidas pelas dinâmicas contraditórias de produção do espaço global e de paisagens locais. Na Amazônia, os patrimônios materiais e imateriais emanados do processo de produção de paisagens não surgem de uma concepção romântica de evolução de paisagem, na qual se ignoram as lutas de classes, segregações socioespaciais e o processo perverso de colonização imposto à região por séculos, posto que, as paisagens variam conforme os povoados, bairros, complexos naturais e diversidade cultural e são produtos da significação, interpretação e trabalho humanos.
A Patrimonialização da Unesco na Amazônia e suas Relações com a Patrimonialização Subalterna A patrimonialização na Amazônia imposta pela Unesco, apesar de apresentar avanços por reconhecer outros patrimônios, que não apenas os feitos de pedra e cal, foi muito pontual, especialmente pelo fato de as decisões finais terem ficado sob responsabilidade de profissionais do patrimônio. Apesar dos avanços, no que se refere à metodologia de trabalho da Unesco, foi evidente uma hierarquização ao determinar o que deveria ser considerado patrimônio, pois na Amazônia, apesar de toda a riqueza cultural e natural, apenas o sítio do Complexo da Amazônia e dois rituais indígenas foram reconhecidos como patrimônio. A própria noção de sítio é problemática, pois na geografia, o sítio sempre possui seus limites bem definidos, pressupõe uma fração espacial, um local que independe do todo da qual faz parte. Neste sentido, a Unesco trata sítio como local fechado, composto por paisagens que se destacam do todo. Assim, apesar de avançar no sentido de reconhecer outras paisagens que não são feitas de pedra e cal, a instituição reproduz o ideário de sítio como local único, porém quando nos reportamos ao contexto amazônico é inviável recortar biomas, patrimônios materiais e imateriais, como se não estivessem pertencendo a uma totalidade social, natural e cultural que dá sentido às singularidades da região. Os patrimônios chancelados pela Unesco na Amazônia tentaram expressar paisagens e patrimônios imateriais como se fossem representativos de toda diversidade e complexidade de patrimônios existentes na região, além de apresentar a região como um santuário natural de propriedade de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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toda humanidade de excepcional e espetacular valores destinados a serem observados, apreciados, cuidados, preservados e valorizados. Tal visão reforça a concepção de Amazônia como paraíso natural, sem conflitos, tensões sociais e econômicas. Ressalta-se que a Unesco reconheceu, em 2013, como patrimônio imaterial as festividades do círio de Nossa Senhora de Nazaré, o ritual indígena situado entre o cerrado e a floresta amazônica expresso pela preservação da Ordem Cósmica da tribo Enawene Nawe, em 2011 e as expressões orais e gráficas dos Wajapis que são indígenas do Amapá, em 2008. Apesar do reconhecimento, tais manifestações patrimoniais amazônicas expressam, tão somente, um percentual mínimo no que denominamos patrimônios subalternos. É a partir desta perspectiva que devemos compreender que as paisagens visíveis chanceladas pela Unesco na Amazônia, apesar de inscritas em processos naturais e da cultura indígena imaterial, fazem parte de um processo de reconhecimento limitado dos patrimônios culturais dos países periféricos ao capitalismo central. No contexto amazônico, as paisagens invisíveis, objeto maior da patrimonialização subalterna e edificadas pelas populações de colonos, extratores, índios e sujeitos empobrecidos da região, misturam-se as materialidades e imaterialidades que partem do espaço de paisagens concretas, mas não se restringem a elas, sempre expressam relações que misturam o interno e o externo, a totalidade e as partes, o movimento e a historicidade enquanto processos incessantes. As paisagens invisíveis amazônicas são sempre relacionais e se manifestam no espaço pela lógica contínua da produção do espaço. Contudo, ressalta-se que as paisagens visíveis, num momento inicial, expressam a situação geográfica da paisagem dada, por apresentarem algumas das características das paisagens invisíveis, que no contexto dos sujeitos amazônicos não se restringem às edificações históricas em centros urbanos ou a elementos naturais evoluídos. A metáfora da patrimonialização subalterna representa um jogo, uma construção teórica, uma conjectura subversiva que busca questionar a patrimonialização oficial dos arquitetos do mundo e servir como contra-movimento direcionado a visibilizar os patrimônios não visíveis propositalmente contidos nos interiores de bairros periféricos, nas matas, águas e solos amazônicos, cultivados e reproduzidos pelos habitantes locais que sofrem as ações predatórias multifacetadas do capitalismo e da patrimonialização global. O discurso dominante da transmissão do patrimônio como algo dado destacado por Smith (2006, p. 11) pode subsidiar a discussão sobre a ativação de patrimônios na Amazônia ao enfatizar a importância de reconhecimento de discursos subalternos não hegemônicos. Na perspectiva de Costa (2017, p. 61) urge a necessidade de subversão e visibilização do utopismo patrimonial territorial11 como tentativa de dar visibilidade aos grupos sociais empobrecidos da 11 Para Costa (2017) o patrimônio territorial enquanto utopia valoriza os territórios de exceção inscritos em diferentes espacialidades na América Latina, busca a partir da realidade criar possibilidades de mudança, de construção da consciência de transformação enquanto sujeitos ativos. O patrimônio territorial enquanto utopia tem haver com a resistência emanada do processo de colonialidade que impôs os territórios de exceção, sendo os mesmos fruto de um perverso processo de aculturação, imposição da pobreza, não consideração da cultura afro-indígenas, a subordinação à práticas perversas de trabalho, a exploração econômica, ao alastramento da injustiça social. Então, os territórios de exceção devem romper com as amarras históricas a que foram submetidos, as dinâmicas econômicas, culturais e sociais que marginalizaram as populações locais.
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América Latina, em especial, os negros, índios e populações marginalizadas propositalmente pela ordem da modernidade européia capitalista desdobrada na colonialidade pode demonstrar que os resquícios, resíduos e locais das periferias das cidades e áreas rurais, dos locais de memória e resistência a colonialidade do poder são expressões de práticas de trabalho, valorização de maiorias marginalizadas e inversão da lógica da patrimonialização, da ressignificação turística e evidencia de formas singulares de produção de paisagens, territórios e espaços na América Latina. Os Utopismos patrimoniais territoriais propostos por Costa (2016, p. 3-5) vão de encontro à noção de patrimonialização subalterna que defendemos, pois compreendemos o espaço da patrimonialização pelas contradições sociais e defesa do espaço de paisagens invisíveis desvinculado da ideia de real e da noção de patrimônio como herança a ser transmitida sem maiores questionamentos, tão pouco se limitando a descrição de características físicas de paisagens patrimonializadas oficialmente para serem consumidas e observadas, senão bestificadas. Quando consideramos as relações dialéticas que envolvem o visível e o invisível às paisagens produzidas pelas interações entre o local e o global na Amazônia, pelas minorias pobres da região distribuídas em fragmentos de espaços agrários, agrícolas e extrativistas, especialmente, os mateiros, ribeirinhos, extratores, índios e a maioria marginalizada das periferias que habitam as cidades da região que produzem e entendem as paisagens como processos de resistência frente às formas de dominação e reprodução singular dos meios de vida teremos novas possibilidades de reversão da ordem da patrimonialização global que poderão ser edificadas. É assim que a patrimonialização subalterna dá sentido, sustentabilidade teórica e prática às culturas marginalizadas dos sujeitos amazônicos dando vozes aos censurados e não reconhecidos como produtores de patrimônio, permitindo ações e sustentando saberes, fazeres, epistemologias e ontologias ignoradas pela lógica colonizadora e colonialista.
Algumas Considerações A Geografia do Patrimônio Mundial é marcada pela luta de classes, pela reprodução do capital e pelo ordenamento do território visando a patrimonialização global, sendo que, na Amazônia esse contraste é bem mais acentuado por unir modernidade e tradição, pelo fato da região ser estigmatizada como espaço vazio, dotada de recursos naturais que precisam ser patrimonializados à maneira dos arquitetos do mundo, ser celeiro de conflitos sociais decorrentes das ações dos grandes projetos geoeconômicos e estigmatizada como paraíso verde. A pedagogia da preservação não pode ser a guia da patrimonialização de paisagens amazônicas, nem Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 57-72, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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estar limitada a processos burocráticos e gerenciais vinculados a identificação de paisagens. No interior da região amazônica as paisagens não se congelam, os patrimônios não são transmitidos de geração a geração de forma estática, nem se restringem a “pedra e cal”. A riqueza da biodiversidade, as pluralidades culturais, os elementos naturais, o sincretismo religioso, os costumes, as lutas históricas contra o grande capital, constituem patrimônios subversivos que territorializam e desterritorializam paisagens a todo instante. A utopia descrita por Costa (2016, p. 65) ao evocar processos de resistência, mobilidade frente à rigidez das ações da cultura patrimonial dominante e um desejo de criação de novas possibilidades de existência, mais fraternos e estruturados pelas dinâmicas locais, pontencializam novas reflexões. A super evidência dos profissionais do patrimônio no processo de patrimonialização representa um caráter autoritário, conforme discutem Hernándes e Tresseras (2001, p. 116). A patrimonialização implementada pela Unesco não pode ficar circunscrita a atos gerenciais isolados, visto que o real sentido da ativação patrimonial deve ter por fundamento o chancelamento das sociedades locais, cujos patrimônios são representativos de suas identidades que, em geral, são muito dissonantes do discurso autorizado problematizado por Smith (2006, p.94) e, principalmente, quando entendemos que os processos de ativação de patrimônios, conforme descreve Canals (2006, p. 81), representam dinâmicas que devem ser negociadas e expressar processos de resistências frente à lógica global. Assim, as paisagens enquanto emanações de relações visíveis e invisíveis dialeticamente compreendidas expressam processos e conjecturas que orientam a dinâmica de patrimonializações na Amazônia e contribuem para relativizar, problematizar e desmistificar os discursos dominantes que consideram as paisagens regidas pela dinâmica da evolução desvinculada do real, do mundo desigual e em mutação. Construir endogenamente processos de patrimonialização pressupõe edificar um objeto teórico e práticas utilitárias que levem a subversões e indiquem alternativas para patrimonializações em contextos amazônicos fundamentadas no consumo, uso, produção, apropriação, significação e, principalmente, na democratização de paisagens pela patrimonialização subalterna e que considerem a realidade de sujeitos amazônicos marginalizados propositalmente e que se opõem à dinâmica da patrimonialização global como práticas espaciais e produção de paisagens não petrificadas.
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Recebido em: 24 de fevereiro de 2019 Aprovado em: 24 de maio de 2019
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Civismo e questão nacional em debate no monumento à Revolución de Mayo (Buenos Aires, Argentina) Civility and national issues in the debate on Revolución de Mayo monument (Buenos Aires, Argentina) Ana Carolina Oliveira Alves*
Resumo
Abstract
Desde que se tornou Capital da Argentina, a cidade de Buenos Aires foi alvo de ações que transformaram seu espaço urbano buscando expressar a nação. A Plaza de Mayo foi envolvida nesse processo de articulação entre narrativas nacionalistas e estratégias de base simbólica, do final do século XIX até início do XX, quando se aproximava o centenário da Independência. Na primeira década da virada, foi lançado um concurso para o monumento à Revolución de Mayo a ser colocado na praça, substituindo o anterior monumento pátrio. Do concurso emergiram propostas de intervenção no espaço da Plaza – evidenciando concepções sobre a nação, seus principais “heróis” ou protagonistas e uma leitura da História argentina bastante específica, que buscava consolidar na memória coletiva os eventos relacionados à Revolución. Atentaremos aqui às análises feitas na Revista Técnica sobre os projetos, para tangenciar embates em torno da cidade e da compreensão de monumentos como forma de pedagogia cívica.
The article presents a discussion about the
Palavras-chave: Pedagogia Cívica; Monumentos; Espaço Urbano; Identidade Nacional.
Keywords: Civic Pedagogy; Monuments; Urban Space; National Identity.
process of valuation of landscapes that base the activation of material and immaterial cultural heritage patronized by UNESCO in the Amazon, relating it to the subaltern patrimonies analyzed by the dialectical perspective, seeking to give visibility to local patrimonies not recognized by global hegemonic logic. The research
has
a
qualitative,
bibliographic
approach and the results demonstrated that the Amazonian heritage inscribed in the dynamics of space production and landscapes, are not recognized by the organs of world patrimonialization, but must be the foundation of patrimonialisation policies, since they are not limited to dominant idea of being made of stone and lime.
* Mestre em História pela área de Política, Memória e Cidade, linha Cidade e Cultura da Universidade Estadual de Campinas, bolsista da CAPES. E-mail: anacarolinaoa@hotmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o
A
mudança de status da cidade de Buenos Aires, ao assumir, definitivamente, o papel de Capital da República Argentina, no ano de 1880, gerou uma série de ações que se manifestaram também materialmente em seu espaço urbano, principalmente em termos
simbólicos. O primeiro intendente da cidade, Torcuato de Alvear, e o arquiteto italiano Juan Antonio Buschiazzo propuseram, em 1883, um projeto que unificava as duas antigas praças centrais da cidade, criando outra com o intento de amalgamar elementos que expressassem toda a nação, com base em uma série de movimentos simbólicos que envolviam elementos urbanos. A Plaza de Mayo era encarada, nesses projetos, como praça nacional e alvo de uma articulação direta entre narrativas nacionalistas e estratégias de base metafórica. Esse projeto reunia na praça elementos de uma história nacional, transformando-a de acordo com uma espécie de pedagogia cívica, que valorizava o culto aos grandes homens e eventos da história, o que em muito se apoiou nas artes como forma de expressão. O próprio espaço urbano é visto como passível de corporificar esse discurso e despertar o culto à nacionalidade argentina, estimulando sentimentos de coletividade, civismo e valorização da independência, do regime republicano e da participação popular. As mudanças monumentais emergiram para suprir o que foi encarado como demanda desse novo país, cuja identidade deveria ser definida, e os elementos urbanísticos foram mobilizados para simbolizar o pretendido avanço cultural, expressando, em obras públicas, esses discursos e suas concepções.1 A cidade se materializava como uma crônica da história nacional, já que os monumentos buscavam reafirmar sentidos pertencimento. 1 O processo de construção do Estado argentino envolveu, principalmente a partir das últimas décadas do século XIX, questões territoriais e populacionais para sua consolidação, a partir de um duplo processo de (1) monopólio coercitivo sobre a população indígena que dominava áreas limítrofes; (2) estímulo à imigração europeia por parte da elite dominante. Tais questões se relacionam com as teorias racialistas que levaram os intelectuais latino-americanos a buscar alternativas para superação do postulado de inferioridade racial de seus povos. Como afirma George Andrews, para ingressar no seio das nações “civilizadas”, a resposta de grande parte da América Latina, como no caso argentino, foi um amplo esforço para transformar suas sociedades em repúblicas brancas. Durante a década de 1880 esse projeto alcançou sua realização de maneira mais plena e, entre 1881 e 1885, o número de imigrantes dobrou em relação aos cinco anos anteriores – número esse que aumentou ainda mais nos anos seguintes. A presença cada vez maior de contingentes populacionais de origens diversas levantou questões mais profundas sobre o nacionalismo, que foram mobilizadas pelas elites por meio de distintas estratégias que buscavam uma suposta identidade nacional (ANDREWS, 2004; DEVOTO, 2000).
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Nesse processo, temas selecionados do passado, como o processo de independência, foram utilizados de maneira recorrente como metáfora, com base na ideia de que a nação se construía também a partir dos discursos visuais e literários. Essas construções, ao tentar superar os limites de curta duração provenientes da transmissão oral, buscavam ultrapassar estes meios e perpetuar-se por intermédio de outros, como: monumentos, cerimônias e rituais, que envolveram uma constante interpretação e reinterpretação dos acontecimentos. Essas comemorações atualizam – e, portanto, modificam – o passado, transformando-o em uma atividade também do presente (SEIXAS, 2001). O projeto envolveu ações de variadas ordens, relacionando-se diretamente com um evento da história argentina: a Revolución de Mayo, cuja relevância é perceptível, dado o nome escolhido para a praça. Ela é uma das efemérides consideradas mais importantes, referenciando à proclamação da independência, uma série de eventos iniciada naquele quase mítico 1810. As pesquisas historiográficas demonstram a heterogeneidade de discursos envolvidos na análise desse que se configura em um dos fenômenos mais complexos da história argentina pela grande variedade de interpretações mobilizadas para compreendê-lo, bem como de apropriações sobre ele feitas a posteriori (PILIA DE ASSUNÇÃO; RAVINA, 1999). Destacamos que estamos em consonância com o debate que relativiza o peso de tais eventos e personagens, não só em nível nacional na Argentina, mas no continente como um todo. Entretanto, recuperamos o evento buscando compreender as recorrentes ficções narrativas criadas, associadas a estes símbolos, bem como suas intenções de fortalecer ideias e perspectivas propostas por grupos restritos. A ideia da Revolución, como evento fundador da Argentina, é constantemente recuperada, para legitimar discursos nos quais se incluem os de intervenção urbana e, nesses casos, a praça também é frequentemente envolvida como parte da retórica. Buscaremos analisar como o evento reiterou uma dada concepção acerca da suposta identidade argentina, além de como ele funciona como paradigma de muitas das modificações da praça e da cidade. A revolução se transfigura em paradigma, com base no mote da comemoração de seu centenário, que solidificou a busca por um efeito pedagógico, por meio de escolhas deliberadas de colocá-lo em uma posição de destaque em meio à história argentina. Diversos pontos do projeto de Alvear e Buschiazzo seguiram esse sentido, como a própria remodelação da praça, pautada em uma retórica nacionalista. Seguiremos aqui um deles: a proposta de substituição da Pirámide de Mayo por um novo monumento que celebrasse a revolução, a ser colocado no centro da Plaza.2 Esse não foi empreendido durante a gestão do intendente, pois ainda se debatia a manutenção ou destruição da pirâmide. Entretanto, na virada do século, o 2 A Pirámide foi construída um ano após a Revolución de Mayo para comemorar seu aniversário, sendo considerada o primeiro monumento pátrio e formalizando a praça como lugar cívico. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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mote da comemoração do centenário da Independência se configurou em ocasião ideal para reafirmar os ideais iniciais do projeto, recuperando a ideia do monumento. Em 1907, foi convocado um concurso para o monumento comemorativo da revolução, por um decreto oficial do executivo. Este foi aqui escolhido como objeto de análise por considerarmos que envolveu expectativas e conflitos relacionados ao espaço urbano, que colaboram na compreensão dos discursos que se configuravam nesse contexto. Além disso, consideraremos as análises sobre esse processo publicadas na Revista Técnica, importante periódico argentino da área de arquitetura, que nos ajudará a compreender muitos desses debates, buscando os diversos usos dos saberes constitutivos do campo, bem como seus distintos vínculos teóricos e políticos. Ainda que, ao fim do concurso, o projeto selecionado não tenha sido executado, consideramos as propostas recebidas e suas próprias bases como expressão de determinados pensamentos sobre a cidade e suas necessidades. Essas propostas compõem também a leitura da cidade e expressam construções de ideias sobre esta, salientando a interação entre elementos que evidenciam modos de pensar, intenções e escolhas. Propomos, assim, uma análise dos processos de construção dos discursos que, ao falar da cidade, a qualificam e requalificam, conferem-lhe uma ordem, com ela se identificam ou dela se afastam (MONDADA, 2000). Atentar para como se descreve a cidade torna-se, nesse sentido, essencial, já que os discursos que versam sobre esta também são responsáveis por estratégias que podem se materializar ou, caso não se materializem, ainda dão continuidade a narrativas sobre esses espaços que evidenciam como eles são encarados. Analisar o processo de concepção dos monumentos – efetivados ou não – nos auxilia a compreender essas narrativas oficiais e as disputas envolvidas em torno destas por meio de discursos com outros interesses. Segundo a categoria criada por Aloïs Riegl (1984), no início do século XX, para analisar os monumentos, o que caracterizaria os celebrativos seria o fato de surgirem com uma intenção específica de memória, já estabelecida no momento de sua idealização, sendo, portanto, já projetados com a ideia de fixar uma memória específica através do tempo. É nesse sentido que, mais uma vez, destacamos sua dimensão pedagógica, tendo em vista que são produzidos com o intuito de ensinar, estabelecendo um discurso que se corporifica na cidade e objetiva despertar um sentimento nacional, que, por não ser espontâneo, precisa ser cultivado. Corroboramos aqui com as perspectivas de Gorelik e de outros trabalhos sobre uma permeabilidade entre passado e presente, já que o foco do centenário favorece uma quantidade de
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iniciativas vinculadas com a história e, principalmente, com sua apropriação monumental na cidade (GORELIK, 1998; MALOSETTI COSTA, 2010; MENDES; GUTIÉRREZ VIÑUALES, 2006). Para Gorelik, a necessidade de conjuntos monumentais vai ser um dos pontos sobre os quais as expectativas públicas irão se centrar no período da virada do século, considerando que estes têm a capacidade emblemática de condensar significados de ordem política e cultural, de desenvolvimento urbano e de representação estatal. Nas fontes analisadas, observamos um debate de elaboração de narrativas calcadas em eventos históricos, majoritariamente aqueles que compõem o processo de independência ou que com este se relacionam, através de metáforas ou imagens que utilizam recursos alegóricos, os quais buscam expressar personagens ou cenários específicos, como os generais San Martin e Belgrano, bem como o espaço da própria praça. A análise do processo de construção ou concepção desse monumento deve ser feita conservando os diálogos, trocas e negociações que permeiam essa obra, pensando-a como fruto de um processo e de práticas e atores distintos. A hierarquia entre esses atores não descaracteriza a ocorrência de interferências mútuas entre esses projetos, determinantes na concepção final da obra, como nesse caso em que o monumento não se concretizou.
O concurso: monumentos como pedagogia cívica As bases do concurso estabeleciam que o monumento, além de construído no aniversário da Revolución, deveria localizar-se na Plaza de Mayo. Os elementos visuais das narrativas analisadas devem, portanto, ser pensados considerando sua proximidade com o espaço urbano. Retomando as ideias de Françoise Choay, acreditamos que não se deve afastar esses artefatos da realidade de uma cidade, afinal, existe uma relação de dependência mútua que se estabelece entre estes e seu entorno. O valor de uso desses elementos urbanos é legitimado por um trabalho que não é estritamente técnico, mas também se preocupa com a sua articulação com grandes redes de ordenação, sendo indissociável do contexto no qual se insere, já que mantém com o entorno uma relação essencial (CHOAY, 2006). O edital para a construção do monumento convocava escultores argentinos e estrangeiros a enviarem suas propostas, que seriam selecionadas em duas fases - a primeira, envolvendo maquetes, e a segunda, um confronto direto entre os vencedores.3 Estes receberiam um prêmio monetário, além de participar da segunda fase, mas previam-se outros grupos que receberiam 3 A primeira fase elegeria cinco prêmios de primeiro lugar, bem como cinco de segundo e cinco de terceiro. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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dinheiro, sem ter, entretanto, possibilidade de chegar à final. O júri seria composto de 15 pessoas, entre as quais destacam-se representantes do Senado, do poder executivo, da Comissão do Centenário, diretores de instituições como o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Histórico Nacional, a Academia Nacional de Belas Artes e a Sociedade Central de Arquitetos.4 Compreender a composição desse júri se torna importante ao percebermos que a designação de seus membros, apesar de priorizar figuras políticas, não ignorava representantes das artes e especificamente da arquitetura.5 Seus membros, de variadas filiações institucionais, demonstram que o monumento é encarado a partir de diversas perspectivas: como obra de arte, objeto urbano e arquitetônico e símbolo do discurso nacionalista, por exemplo, assumindo distintos papéis que se sobrepõem de maneira dinâmica. Aqui, especificamente, nos interessa compreender os discursos encarnados em sua relação e associação com o espaço urbano. A idealização de um monumento público envolve a expectativa inicial dos autores que o conceberam. Antes, porém, percebe-se uma proposta daqueles que propunham sua construção, concretizada no edital do concurso, que se torna o primeiro mediador entre o que se busca e os escultores que darão forma a esse projeto previamente concebido. O edital argumentava a necessidade de construção, na cidade de Buenos Aires, de uma obra comemorativa da história argentina. Por meio da trajetória dos monumentos celebrativos, percebemos as elaborações em torno de uma suposta identidade para um coletivo determinado, que atende, portanto, a interesses de pequenos grupos com grande influência na gestão da cidade. Esse documento se torna, portanto, o ponto de partida dessa construção, sendo de extrema relevância, já que aparecem nele indicados os parâmetros da proposta – suas dimensões e materiais e, principalmente, o conteúdo simbólico a ser corporificado. Por meio do edital, primeiro contato entre artista e obra, é possível observar a conflituosa negociação entre comissão e artistas, em uma tentativa de controle do conteúdo da obra, em relação a aspectos materiais ou simbólicos/narrativos profundamente imbricados. As negociações acerca da estruturação do projeto se relacionam com uma disputa: os artistas apresentam suas interpretações sobre o episódio em questão, mas, por outro lado, nota-se a presença de uma comissão julgadora preocupada em controlar e decretar uma apreensão específica do tema, segundo suas perspectivas. 4 Os membros seriam: o presidente do Comitê Executivo da Comissão Nacional do Centenário, um representante do Senado Nacional, um da Câmara de Deputados Nacional, três membros da Comissão Nacional do Centenário e três de seu comitê executivo, o diretor do Museu Histórico Nacional, o da Academia Nacional de Belas Artes, o do Museu Nacional de Belas Artes, o diretor geral do Departamento Municipal de Obras Públicas, um delegado da Comissão Nacional de Belas Artes e um delegado da Sociedade Central de Arquitetos.(BASES DEL CONCURSO PARA EL MONUMENTO DE LA INDEPENDENCIA ARGENTINA, n. 44, 1907). 5 Importantes nomes para a arquitetura e as artes no país como Eduardo Schiaffino, Ernesto de la Cárcova, Eduardo Sívori estavam envolvidos nesse júri. Também Julio Dormal, Cárcova e Alejandro Christophersen foram responsáveis pelo concurso.
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As primeiras pistas que tangenciam o conteúdo simbólico da obra surgem desse documento, que sugere leituras específicas da historiografia. Desejava-se que as propostas fossem capazes de traduzir a suposta verdade encarnada naquela Revolución, materializando uma homenagem às personalidades consideradas relevantes na versão do episódio defendida por esses atores. Fica clara a busca por uma leitura específica da história argentina, calcada em um ponto de vista escolhido desde a produção do edital, que buscava reiteração em meio às propostas inscritas pelos artistas. Trata-se de uma perspectiva que escolhe protagonistas específicos para a independência, considerados heróis nacionais, produzindo e reiterando uma visão do fenômeno com base na noção de liberdade e de heroísmo. O exame crítico desses projetos, seus discursos e suas imagens revela escolhas ligadas aos interesses dos idealizadores. As escolhas da comissão possibilitam observar o modo como foram julgados e interpretados, revelando critérios e fatores determinantes na seleção de um vencedor. As análises da revista evidenciam as percepções de um grupo de agentes especializados não só sobre as propostas, mas sobre as escolhas realizadas dentro do concurso. O cruzamento dessas perspectivas foi escolhido como método profícuo para acompanhar ideias que não se configuram de forma homogênea e revelam muito sobre a relação entre monumento e cidade, a partir da lógica de diferentes atores. Os monumentos construídos com intenção de celebração, além de seu conteúdo ideológico, estão sujeitos a novas interpretações das alegorias que os compõem. Não é possível garantir que essa leitura seja a mesma prevista quando foram concebidos, afinal, os olhares se transformam e novas camadas de significação se sobrepõem nestes artefatos. Por isso, dedicamos a este objeto um olhar atento aos interesses em jogo em sua construção, nesse caso com base na forma de expressão da situação alcançada pelo país no processo de independência. Buscamos saber, portanto, que debates estão envolvidos na composição desse monumento. Como as alegorias propostas relacionam-se, simbolicamente, com as narrativas que conformaram as propostas de monumento? Que tipo de sociedade parece se confirmar a partir de tais expressões? Como monumentos construídos para celebrar o passado são sistematicamente concebidos para reafirmar personagens, valores, ideologias, percebemos a relevância da independência para a sociedade daquele período. As narrativas recuperam esse evento, propondo leituras sobre ele, cabendo compreender, nessa nova proposta monumental, a relação entre a conformação material e a construção do passado, segundo as dinâmicas políticas do presente. As escolhas feitas nas alterações do traçado e da composição urbana demonstram as possibilidades de compreender essas atitudes como políticas, e analisar como essa materialização, segundo afirma Alan Colquhoun, evidencia que não só a arquitetura, mas também as alterações urbanas operam dentro desta lógica. Colquhoun (2002) indica Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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que as posições do presente estão sujeitas a um quadro de referências anterior, que ajuda a perceber sua própria configuração, constituindo conceitualmente a arquitetura. A glorificação desse evento na estatuária pública não significa uma reflexão constante e atualizada sobre ele, mas pode indicar uma cristalização de sua narrativa, com base em uma perspectiva particular. Na primeira fase, foram recebidas 84 maquetes, sendo oito de autores argentinos.6 A execução do concurso colocou em movimento questões em torno da conformação da Nação e o debate acerca do nacional. Anteriormente, muitas haviam sido as tentativas de substituir a histórica pirâmide. Parece contraditório que a proposta de construção de um monumento à revolução de 1810 envolvesse a destruição desse primeiro artefato pátrio com base em uma lógica de valorização de elementos nacionais. Entretanto, cabe buscar compreender o jogo de poder e as articulações imbuídas nestas obras, já que essas ações configuram uma disputa entre grupos distintos. Posteriormente, por exemplo, o júri exigiu uma adequação dos projetos que deveriam abrigar a antiga pirâmide. Paulo Knauss (2000) afirma que a lógica monumental se calca em uma estrutura narrativa que a define como produto de figurações do passado, ordenando determinada leitura da história e insistindo em uma organização temporal que apresenta o processo histórico como univocidade da nação, de maneira simbólica.7 Essa estrutura se define em torno de uma pedagogia do civismo, na qual as imagens urbanas evidenciam como se constituíram em instrumentos de dada pedagogia social caracterizada pela promoção do civismo – ou seja, baseada nos feitos dos grandes homens e capaz de germinar um orgulho pela história fomentado pela nacionalidade. Para Knauss, a dedicação ao caso exemplar e o orgulho pela excepcionalidade constroem uma identidade afetiva, que busca anular diferenças sociais, instaurando sobre uma mesma base emocional a comunhão de cidadãos que circulam em torno de uma mesma peça urbana, que se propõe a expressar valores sociais comuns. O caso biográfico é um dos elementos principais da estratégia educativa da pedagogia do civismo, na qual os objetos urbanos e suas imagens são compreendidos como elementos de mediação. Esses instalam uma base de identificação entre sujeito e objeto, empregando a empatia como procedimento. Rituais de uma mobilização social convocada pela promoção de uma imagem urbana assumem sentido de educação cívica, seja pela peça imaginária, seja pelas formas de culto ao emblema escultórico que são incorporadas às práticas de civismo. A ritualização das imagens urbanas ganha um atributo específico. A imaginária urbana se define, assim, para o autor, como recurso didático para a promoção do civismo. 6 Além desses, foram recebidos 21 projetos franceses, 17 italianos, 11 chilenos, 10 espanhóis, 6 alemães, 3 belgas, 3 ingleses, 2 austríacos, 2 uruguaios e 1 norte-americano. (CONCURSO PARA EL MONUMENTO DE LA INDEPENDENCIA ARGENTINA, 1908). 7 Para o autor, as estátuas assumem novas conotações simbólicas e se tornam emblemas políticos, derivados do culto laico à nação – os monumentos se confundem com os próprios processos de fundação simbólica da nação.
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A promoção de uma imagem urbana de caráter histórico e escultórico baseia-se na recordação de um personagem do passado – concebido de maneira heroica, capaz de uma ação extraordinária fundadora da nação – ou um evento específico, como o que analisamos, cuja narrativa também envolve a valorização de personagens. A pedagogia do civismo, ancorada na suposta unidade nacional, integra juntamente com a promoção de imagens escultóricas e os quadros de uma ideologia de Estado que visa à integração político-social sob a tutela do Estado, impondo, pelos monumentos, a criação de novos padrões simbólicos. Apesar de declará-lo como uma competição de arte excepcional e sem precedentes na América do Sul, Enrique Charnoudie, importante figura da Sociedade Central de Arquitetos, afirma que não houve no concurso um esboço que incorporasse todos os critérios pedidos.8 O arquiteto ressalta a importância das cir-
A pedagogia do civismo, ancorada na suposta unidade nacional, integra juntamente com a promoção de imagens escultóricas e os quadros de uma ideologia de Estado que visa à integração político-social sob a tutela do Estado, impondo, pelos monumentos, a criação de novos padrões simbólicos.
cunstâncias do concurso, considerando a participação de arquitetos e escultores de grande valor, apesar de pouco conhecedores “de nuestra historia y de nuestros adelantos” (n. 48, 1908). Sendo ainda mais contundente, afirma que apenas um terço dos esboços do concurso seria digno de participação, criticando, assim, os gastos.
O concurso nas páginas da Revista Técnica O suplemento da Revista Técnica (n. 49, 1908) publicou uma crítica detalhada dos resultados do concurso, realizada por seus membros. Essa revista constitui o primeiro órgão específico de difusão da disciplina na Argentina, sendo antecedente da Revista de Arquitectura da Sociedad Central de Arquitetos. Desde o final do século XX, o periodismo especializado foi impulsionado na Argentina e essas publicações tornaram-se espaços privilegiados para a expressão de ideias e inquietudes, bem como de consideração de propostas, funcionando como núcleos de articulação de estratégias de grupo e instrumentos de legitimação. 8 Charnourdie [1864] era editor da Revista Técnica, arquiteto e graduado em engenharia civil pela Universidade de Buenos Aires. Como estudante, foi incorporado, em 1882, ao Departamento de Engenheiros da Nação, onde atuou até 1894, ocupando distintos cargos. Fundou a Revista Técnica em 1895, dirigindo-a até 1918 (LUCCHINI, 1981). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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A revista nos interessa pela possibilidade de debater e tornar públicos atos e decisões desse grupo de agentes especializados, que demanda reconhecimento enquanto grupo e legitimidade para seu modo de operar no mundo. Os temas de investigação, vinculados com o desenvolvimento do próprio campo disciplinar e com a prática da profissão, encontram nas revistas valiosa fonte de produção textual dos técnicos.
A revista nos interessa pela possibilidade de debater e tornar públicos atos e decisões desse grupo de agentes especializados, que demanda reconhecimento enquanto grupo e legitimidade para seu modo de operar no mundo. Os temas de investigação, vinculados com o desenvolvimento do próprio campo disciplinar e com a prática da profissão, encontram nas revistas valiosa fonte de produção textual dos técnicos. Elas se apresentam como correlatas de associações profissionais, científicas e academias da engenharia e da arquitetura, convertendo-se em difusoras de ideais em torno da prática profissional (CIRVINI, 2011). A revista nasceu como suplemento da Revista Técnica, entretanto, ganhou autonomia após um acordo para organizar a publicação com páginas independentes.9 O texto destaca a contribuição de uma publicação destinada a aproximar artistas estrangeiros, da importância da Revolución para a construção da nação, constituindo-se em uma resenha histórica. Esse texto reforça a relação entre o evento e a praça, estabelecendo, ainda, outros símbolos a serem exaltados, como o
povo, a bandeira, a assembleia constituinte, que são, de maneiras diferentes, incorporados aos projetos. Mesmo com permissão da adesão de estrangeiros ao concurso, havia a necessidade de que estes compreendessem a história argentina, antes de projetar o monumento que deveria expressar uma suposta identidade nacional, exigindo que elementos considerados representativos desse sentimento fossem compartilhados pelo autor e sua obra – tornando a publicação essencial também para os próprios argentinos, já que não se buscava um conhecimento qualquer da história nacional, mas uma visão alinhada com aquela proposta pelo edital. Seus parágrafos mais destacados sustentam que La revolución de mayo no fue la obra de un hombre, sino la obra de un pueblo. El primer actor que debemos poner en escena, el protagonista [...] es el Pueblo mismo [...] La Plaza de la Victoria, cuyo nombre consagra la obtenida sobre los ingleses, es el foro donde se reúne y delibera el 9 119 edições foram publicadas entre os anos de 1904 e 1916. Segundo Jorge Tartarini (2004), a publicação significou a primeira publicação dedicada a arquitetura, tratada de maneira especial por seus próprios protagonistas e não mais como anexo de outro periódico.
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pueblo, la muchedumbre que pronto será ciudadana. (CONCURSO PARA EL MONUMENTO DE LA INDEPENDENCIA ARGENTINA, 1908, p. VIII)10
A demanda de recuperação do evento se constrói de maneira ambígua por estimular uma livre interpretação, mas calcada em uma narrativa específica. Alguns parâmetros são estabelecidos nesse texto, como o destaque que deveria ser concedido ao povo como protagonista do processo de independência e a própria localização das batalhas, a partir da exaltação da própria praça onde se ergueria o monumento. Destaca-se também a relevância de que a obra estivesse, acima de tudo, inspirada na história argentina, tomando como referências a bandeira, o escudo e o hino nacionais. A crítica da revista demonstra que, ainda que algumas regras não tenham sido estabelecidas – como a quantidade de participantes selecionados por país, ou o tipo específico de monumento a ser priorizado -, foram sendo definidos critérios durante a realização do concurso. Os vencedores dos três primeiros prêmios totalizaram 20 projetos: sete franceses, cinco italianos, três argentinos. Inglaterra, Alemanha, Uruguai, Espanha e Bélgica contavam com um cada.11 Destes, seis ocuparam o primeiro lugar: um francês, um italiano, um belga, um argentino, um espanhol e um alemão. As pesquisas de Raúl Piccioni (2001) indicam que houve uma alteração na ordem dos ganhadores da primeira categoria e de um que, em princípio, havia sido qualificado para a segunda. Conforme o autor, foram as pressões exercidas pelo jurado Emilio Mitre que deslocaram outro projeto francês do primeiro para o segundo lugar, sendo substituído pelo espanhol – já que os franceses haviam conseguido duas vagas para a segunda fase e parecia mais conveniente contar apenas com um representante de cada país. De acordo com Piccioni, a ampliação para seis teve o único objetivo de incluir o projeto argentino, mesmo que esse não tenha cumprido uma das principais cláusulas, por não ter entregado a maquete solicitada, mas apenas um desenho do projeto. O autor demonstra, por meio de correspondências e fontes diplomáticas, que outras delegações se mostraram incomodadas com esse acontecimento, afirmando que foram ignoradas as bases do concurso, com o propósito de favorecer “a un hijo de la patria”. A pesquisa de Piccioni considera o concurso como uma tensão entre interesses econômicos e políticos internacionais. Com base na documentação diplomática escolhida como fonte primordial de análise, o autor defende sua hipótese de que essas relações, ainda que não explicitadas, definiram muitos dos rumos tomados pelo concurso, ajudando a explicar até mesmo a razão de o monumento 10 Breve reseña histórica de la revolución argentina para los artistas extranjeros que tomen parte en el concurso del monumento a la Revolución de Mayo. 11 “Fortes Fortuna Adjuvat” de Berlim; “Oceano” de Paris; “1810-1816-1910” de Madrid; “Pro Patria et Libertate” de Milão; “Sol” de Bruxelas e “Arco de Triunfo” de Buenos Aires; ocuparam o primeiro lugar. “Sol Naciente” de Paris; “Bellum, pacem, fecit” de Londres; “Oize” de Florença; “Patria” de Buenos Aires e “Tabaré” de Montevidéu ocuparam o segundo. “Addico” de Paris; “Argentino” de Buenos Aires; “Coronada su siem de Laureles” de Roma; “Gloria Republica” de Paris; “Iris Florentina” de Florença; “Paris Marsella” de Paris; “Soleil de Libertè” de Paris; “Triomphal” de Paris e “Una nueva e gloriosa nación” de Roma ficaram em terceiro lugar. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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vencedor não ter sido efetivamente executado. Mesmo que muitos desses interesses tenham se sobreposto, em termos de materialização, às buscas da elite intelectual argentina e do próprio Estado nacional – de perpetuar a memória dos acontecimentos da independência, reforçando uma retórica nacionalista -, consideramos que também essas estratégias não devem ser relegadas a segundo plano. Ao contrário, as propostas, as críticas e toda a discussão que envolveu o concurso permitem explorar essas construções discursivas que evidenciam disputas políticas, nas quais as percepções de cidade e de sua apropriação também estão em jogo. Nesse sentido, elegemos os casos dos seis projetos vencedores do primeiro lugar e o parecer sobre estes publicado na revista como campo de análise. Da descrição da proposta do projeto “1810-1816-1910”, do espanhol Miguel Blay, destacamos algumas alegorias, além de associações com o entorno da praça. À base do monumento, seriam adicionadas duas imagens que fariam frente ao Cabildo, personificando o povo argentino, rompendo a dominação espanhola, em uma figura masculina, e a cidade, voltando-se para o povo, em uma feminina.12 A cena retrataria a figura da cidade, logo após escrever no alto da pilastra “la primera Junta Popular Independiente”, voltando-se para o povo que, ao redor do pedestal, aplaudia o gesto, para, posteriormente, ser retomado na face seguinte, tomando parte no processo de luta.13 Ainda que o povo esteja presente na proposta, como demandava o edital, percebemos que a ação popular se limitava a uma dependência de ordens ou comandos executados por outros personagens ou instituições, como no caso da própria cidade que, nessa proposta, parece encarnar papel mais importante em meio aos acontecimentos relatados que a própria população, chegando, inclusive, a ser personificada. As faces seguintes continuariam referenciando ao longo processo independentista, em uma encenação cadenciada de determinados momentos considerados cruciais, como o ano de 1816, na figura da assembleia legislativa e constituinte, na qual foi legalmente lavrada a Declaração de Independência. Não por acaso essa fase do processo é encarnada na face que faz frente ao Palácio de Governo. Essa é uma constante em muitas propostas: a direção principal do monumento voltada para o eixo de comprimento da praça, destacado por ter a Casa Rosada em seu fundo. Essa opção é justificada constantemente por reforçar a visibilidade do monumento a partir da própria praça, já que seu sentido horizontal é bem maior, se comparado ao vertical. Ainda que essa não seja uma preocupação de todas as propostas, encontramos aqui uma clara preocupação de seguir o movimento do próprio edital, de relacionar a proposta com o entorno imediato da Plaza de Mayo, local diretamente relacionada com o evento histórico que seria retratado, não só no sentido de pensar em seu eixo e na 12 O cabildo era uma instituição administrativa municipal própria da América Espanhola no período colonial. 13 O termo refere-se à junta surgida em 1810, como consequência do triunfo da Revolução que destituiu o vice-rei. Seus integrantes se diziam defensores da soberania popular, do princípio representativo e da publicidade dos atos governamentais. Entre esses, figuram os nomes de Cornelio Saavedra, Juan José Castelli, Manuel Belgrano, Miguel de Azcuénaga, Manuel Alberti, Domingo Matheu, Juan Larrea, Juan José Paso e Mariano Moreno.
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garantia de uma maior visibilidade, mas também relacionado, de forma linear, com as instituições que a circundam e seus simbolismos.14 A principal crítica ao projeto, no parecer, fora o excesso de figuras em sua base, apresentando-se quase que amontoadas e não tendo recebido a devida atenção, o que seria quase impossível. O conjunto alegórico criticado fora justamente aquele que fazia referência ao povo que, segundo o edital, deveria ocupar espaço de destaque em meio às propostas. O parecer dos técnicos, entretanto, não parecia conceder a esse elemento a mesma importância, já que não propunha uma efetiva modificação, que mantivesse a ação popular destacada na obra. No projeto francês “Oceano”, do arquiteto Georges Chedanne e do escultor Paul Guatch, é descrito que imagens de cenas populares e batalhas figurariam na sua parte inferior, enquanto em cima e nas faces laterais, estariam estátuas dos homens de Estado, membros da primeira junta, a saber, Castelli, Alberti, Matheu, Passo e Azcuénaga. Na face posterior, estaria uma referência direta ao povo, respondendo ao chamado do general Belgrano, com a bandeira nacional criada por ele, que o convida a unir-se aos combates, liderados pelo general San Martin, cuja estátua equestre ocupa o centro da face principal. Imagens 1 e 2 - Projetos espanhol e francês - “1810-1816-1910” (1908) e “Oceano” (1908)
Fonte: Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica, nº 49, 1908.
14 A frente do monumento voltada para a instituição de origem colonial relacionava-se com o início do processo de separação da metrópole, enquanto o auge legal do processo, lavrado no congresso, voltar-se-ia à sede de governo, expressão da forma constitucional de poder adotada pela Argentina: uma democracia representativa, republicana e federal. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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As cenas populares, bem como a participação da população no processo, aparecem dependentes diretamente da ação dos homens de Estado. Isso fica claro quando observamos as posições hierárquicas estabelecidas entre os personagens do monumento, já que os generais estariam acima das outras figuras, ocupando lugares de destaque. Além disso, a participação do povo emerge especificamente como cumprimento de um chamado de Belgrano, relegando novamente a capacidade de ação popular a uma posição secundária.
O mecanismo alegórico introduz figurações em diferentes imagens, que se sobrepõem, buscando reforçar uma ideia, uma formação discursiva que busca fixar um sentido. O efeito político da metáfora é forçado, uma vez que tal imagem atua tanto na imaginação quanto no sentimento, como teorizou Ricoeur (1992), possibilitando a fixação de elementos que, ao se estruturarem de maneira lógica, dificultam a perda de força do argumento.
Esse projeto é pouco comentado pela crítica da revista, que afirma sua simpatia por este, desde o primeiro momento, além da segura crença de que teria obtido resultado positivo na votação. Entretanto, destaca-se que o encanto foi diminuindo gradualmente em função do questionamento sobre a harmonia do projeto e sua consequente adequação ao espaço destinado à sua construção. Diferente, portanto, do caso espanhol citado anteriormente, esse dilema parece demonstrar uma possível falta de atenção dos franceses com a escala da proposta e com sua relação com a praça, destacada como relevante desde a chamada do edital. O mecanismo alegórico introduz figurações em diferentes imagens, que se sobrepõem, buscando reforçar uma ideia, uma formação discursiva que busca fixar um sentido. O efeito político da metáfora é forçado, uma vez que tal imagem atua tanto na imaginação quanto no sentimento, como teorizou Ricoeur (1992), possibilitando a fixação de elementos que, ao se estruturarem de maneira lógica, dificultam a perda de força do argumento. Muitas das alegorias presentes em ambos os projetos remetem diretamente a sím-
bolos nacionais destacados na publicação do concurso. Os personagens históricos, os símbolos nacionais e alegorias de virtudes associadas à República ou à liberdade se mesclam em tentativas de evocar a argentinidade, com referências diretas ao episódio de 1810, ainda que de formas distintas. A própria revista, em seu parecer, também demonstra preocupação direta com a força dessas narrativas e a forma com que as imagens das propostas estariam perpassando a história argentina. Ainda que sigam caminhos diferentes, tanto as propostas quanto as críticas efetuadas a estas seguem o tom de destaque aos aspectos que seus autores julgam adequados por meio de recursos alegóricos e metafóricos.
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Ainda que outras propostas tenham, de alguma forma, considerado aspectos relacionados à Plaza de Mayo, o projeto belga “Sol”, do escultor Julio Lagae e do arquiteto E. Dhureque, teria sido o único a prever a transformação completa da praça e sua conversão em Monumento de Mayo, um vasto conjunto ornamental, espécie de panteão nacional. Sua própria descrição destaca o propósito de oferecer um programa novo, uma solução inovadora que aproveitaria as condições especiais da própria cidade de Buenos Aires.15 Nesse sentido, no centro da praça estariam Belgrano, Saavedra, Brown e Moreno rodeando a estátua equestre de San Martin, novamente em posição de destaque, enquanto outros personagens ocupariam diversos pontos da praça. Os autores defendiam a ideia de que um conjunto arquitetônico amplo tornaria mais fácil a compreensão das mensagens a serem transmitidas do que se todos os elementos estivessem dispostos em um só monumento, permitindo que cada um dos momentos do processo tivesse sua importância para a compreensão total do episódio. Imagem 3 - Projeto belga “Sol” (1908)
Fonte: Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica, nº 49, 1908.
O monumento proposto para o fundo conteria uma colossal figura da República, retratada como pacificadora, e isso envolveria um esforço em evitar movimentos excessivos e dramáticos e tentativas de conservar a dignidade, que simbolizaria o regime republicano, baseando-se nas artes gregas. Também nessa peça do conjunto monumental se reiterava a preocupação com as condições locais, reforçando não uma ideia genérica de república, mas uma ideia de República argentina, como se percebia nas alegorias da “idade heroica” e “idade do ouro” da pátria, evocadoras de um passado que justificaria o presente. 15 A descrição do projeto permite perceber efetiva familiaridade com o espaço e as transformações da cidade, já que este leva em conta que o Palácio de Governo ocupa uma de suas metades, enquanto a outra termina com uma avenida, e ainda existiriam propostas de abertura de novas, que convergiriam para o centro da praça. Nesse sentido, pensando em termos de perspectiva, os autores se baseiam no centro do espaço, tomando como base um monumento de elevação considerável para fechar o conjunto urbano no qual toma parte. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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A revista destaca o propósito de erguer uma estátua de San Martín em seu centro, independente do monumento principal, que lhe serviria de fundo, considerando que se tratava de um dos trabalhos mais conscientemente estudados, concebidos e executados ainda que inicialmente tenha parecido, pelo exame da maquete, que a praça pareceria menor, ao abrigar tão grande projeto. O estudo atento da proposta, de seus planos complementares e memória descritiva permitiu compreender melhor e causou grande simpatia pela afinidade de ideias, já que em anos anteriores, isso havia sido proposto pelos membros da própria revista. Ainda assim, foram apontadas algumas características consideradas vulneráveis no projeto. A principal delas era a grande importância concedida à mitologia, o que não parecia adequado para um povo que acabara de atingir sua maioridade – fazendo referência direta a certa visão que enxerga a história das sociedades como uma evolução progressiva, pautada em condições universais, evidenciadas por certa diferença temporal. A revista expõe algumas sugestões de modificação do projeto, buscando torná-lo ainda mais evocativo dos episódios de Mayo. Em relação ao monumento de San Martin, afirma-se que não deveria sofrer nenhuma modificação sequer, já que era a obra de arte mais pura e nobre que fora vista na exposição, demonstrando apreço por certa hierarquia estabelecida entre algumas figuras históricas, que outros projetos não teriam executado. Ainda que todos os projetos tenham sido passíveis de críticas, destacamos o posicionamento inteiramente negativo da revista acerca da escolha de um dos projetos vencedores: o do escultor argentino Rogelio Irutia, “Arco do Triunfo”. A inclusão desse projeto na lista dos agraciados teria, segundo a revista, contado com excesso de boa vontade no processo de escolha, por não se ajustar às bases do concurso, ainda que seus organizadores reconhecessem a excelência de seu escultor. A crítica faz referência direta ao fato de o escultor ser argentino, atestando que isso não deveria ser suficiente para escolhê-lo pois “el triunfo de um artista nacional no puede ser preferido al triunfo de la Justicia” (ARQUITECTURA, SUPLEMENTO DE LA REVISTA TÉCNICA, n. 48, 1908, p. 135). Observa-se a rejeição em aceitar a nacionalidade como critério de escolha, ainda que o monumento a ser projetado estivesse totalmente imbricado com a história argentina. Enquanto alguns projetos estrangeiros foram elogiados pela visão concedida à história argentina, o único projeto nacional que chegara à segunda fase fora criticado pela mesma razão. A nacionalidade, portanto, parecia não garantir o “correto” manuseio da história nacional. A resenha publicada em conjunto com o concurso, que parecia destinar-se apenas aos estrangeiros, torna-se, portanto, elemento essencial até mesmo para as interpretações feitas pelos autores nacionais. A crença parece revelar que o correto manuseio da história se refere à reiteração da versão espe-
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cífica escolhida por seus idealizadores para ser compartilhada e, para isso, a leitura da resenha e sua correta interpretação parecia ser suficiente. O projeto do argentino era considerado um monumento que não despertaria na imaginação do povo nem ideias artísticas nem ideais patrióticos, além de ser arquitetonicamente deficiente, não funcionando como articulador de uma mensagem, já que era necessário descrevê-lo para que se entendesse o simbolismo pretendido, o que suprimia sua força imagética e metafórica. Isso explicaria a sugestão de que a escultura fosse adquirida pelo governo, para ser colocada em um lugar que não simbolizasse nada, valorizando-o mais como símbolo da arte nacional do que como monumento comemorativo à Revolución. A solução encontrada pelos críticos revela, ainda, a importância do espaço da Plaza de Mayo. Foram apontados outros problemas em relação ao projeto de Irutia, como a ideia de que o arco de triunfo não era o tipo de monumento adequado a uma praça. Destacamos as contradições presentes no discurso, tendo em vista que o próprio concurso evidenciava não ter preferência por nenhum tipo de monumento. Nas críticas aos projetos propostos, entretanto, a hierarquização entre os tipos acaba emergindo nos discursos. Também o projeto alemão do escultor Gustavo Eberlein, “Fortes Fortuna Adjuvat”, propunha erguer quatro arcos do triunfo, de estilo romano, acima do zócalo – estando cada um paralelo às quatros ruas que atravessam a praça e, em cada uma das quatro portas, estaria um dos célebres generais independentistas.16 Destes, o projeto apenas destacava a figura de San Martin que ocuparia a frente, enquanto delegava a escolha dos personagens que ocupariam os outros arcos para a própria comissão. Seguindo esses personagens, estariam distintos cortejos, aludindo aos povos da República, considerados heterogêneos pelos próprios autores, que destacam a presença de soldados, cidadãos e até mesmo sacerdotes. Entretanto, o grupo considerado popular é descrito “vendo” o combate, o que, mais uma vez, atribui a estes uma ação secundária distante do protagonismo que, segundo o edital do concurso, deveria ser atribuído ao povo. Diferente do projeto argentino, esse não fora criticado pela proposta na forma de um arco do triunfo, pois, segundo a crítica da revista, teria se preocupado em adaptar, crendo que os arcos teriam relação direta com as ruas circundantes. Entretanto, isso teria resultado em outros erros, para os avaliadores. O primeiro refere-se ao desconhecimento das condições topográficas da Plaza de Mayo, verificado na própria crença da possibilidade de adaptação dos arcos, que não condizia com as proporções nem com o formato do espaço. Ademais, destacam considerar 16 Denomina-se zócalo o corpo inferior de um edifício ou obra que serve para elevar as bases a um mesmo nível. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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um erro histórico na concepção da obra, já que ela daria importância igual a quatro dos gloriosos generais da independência argentina. Segundo a interpretação histórica da revista, não se pode igualar nenhuma figura à de San Martin – posição que poderia, no máximo, ser ocupada por Belgrano, devido ao enorme peso de ter criado o símbolo da bandeira nacional. Não desconsiderando o projeto, assim como no caso argentino, as críticas relacionam-se mais ao fato de sua inadequação à proposta e ao próprio entorno, avaliando, inclusive, que o conceito da proposta era compatível com a ocupação da interseção de amplas avenidas que se cruzassem. Para a seleção do monumento vencedor, portanto, parecia não bastar a validez estética e seus significados articulados. A posição que esse ocuparia na praça deveria estar presente no projeto e pautar a construção da obra, já que, ao contrário de lugares que nada simbolizavam, a Plaza de Mayo parecia acolher todos os significantes nacionais. O projeto vencedor foi o italiano “Pro Patria et Libertate”, do arquiteto Gaetano Moretti e do escultor Luigi Brizzolara, que teve seu obelisco descrito pela revista como possuidor de uma silhueta pobre, além de ser mal trabalhado em seus detalhes, trazendo dúvida se seria merecedor do prêmio. Na relação apresentada, os autores sintetizavam sua proposta a partir de […] una extensísima base, como para indicar las grandes raíces de aquel fuerte sentimiento popular, que la chispa inicial del 25 de Mayo de 1810 llevó al triunfo de la revolución, da origen a un Obelisco colosal que, elevándose hasta 35 metros de altura, evoca los recuerdos patrióticos más sobresalientes y termina en su cumbre con una composición escultórica, que es la Apoteosis del Pueblo, del nuevo Estado y de su enseña santa: La Bandera Argentina. […] sintetizando y coordinando en conexión lógicamente expresiva, aquellos personajes, aquellos momentos, aquellos hechos que la historia registra entre los más hermosos y que la humanidad puede noblemente proclamar entre las más nobles victorias, ya que de ahí surge como aurora radiante para un pueblo generoso oprimido por tiranías seculares, Patria y Libertad. (CONCURSO PARA EL MONUMENTO DE LA INDEPENDENCIA ARGENTINA, 1908)
Duas grandes escadarias em frente à Casa del Gobierno e ao cabildo chegariam aos altares dos símbolos enquanto o povo rodeia a base do obelisco. A nova Nação, por sua vez, apareceria em um movimento de lançar-se ao futuro derrubando, com a ajuda do progresso, tiranias, injustiça e ignorância, ao levantar a bandeira como afirmação de poder e direitos. A Revolução, a Independência, a Justiça e o Povo acompanham, como símbolos, a pátria conquistada. A estrutura se desenvolve formando duas fontes reavivadas com composições plásticas, que reproduzem episódios do processo revolucionário. A Pátria e a liberdade seriam consideradas dois sentimentos divinos, duas espécies de faróis para o povo – aludindo, provavelmente, à metáfora de sentimentos norteadores, pela ideia
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de que o farol ilumina o caminho. Assim, tais sentimentos teriam guiado o povo argentino até a conquista de direitos e, por isso, tanto estes quanto o próprio povo ocupavam lugar de destaque. A torre tem seus quatro lados como as páginas de um imenso livro – o Grande Livro de Ouro da Argentina. Sobre essas estariam eternizadas as recordações, como datas significativas e nomes dos patriotas que contribuíram na formação da República. Imagem 4 - Projeto italiano “Pro Patria et Libertate” (1908)
Fonte: Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica, nº 49, 1908.
Depois da primeira fase, o projeto dos italianos recebeu recomendações de mudança, que implicavam, basicamente, na modificação da arquitetura de sua parte baixa, para dar mais amplitude e espaço para fontes (ARQUITECTURA, SUPLEMENTO DE LA REVISTA TÉCNICA, n. 50, 1908). O projeto ganhou após um empate técnico com o projeto de uma equipe belga, tendo sido necessário recorrer ao voto do presidente da comissão, que decidiu em favor da primeira Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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equipe. Ainda devido às polêmicas envolvendo a própria pirâmide, esse projeto incorporava um vão em seu interior que incluiria a antiga pirâmide, como pedido pelo júri. O projeto original se elevaria com essas modificações até 46 metros, para conceder lugar a uma cripta com a pirâmide. Essa exigência era criticada pela publicação da revista, cujos membros duvidavam do valor histórico do monumento como evocador da nacionalidade, por este já ter passado por numerosas alterações. O contrato firmado estabelecia que os autores eram obrigados a dirigir e dar assistência pessoalmente aos trabalhos de colocação do monumento. Receberiam, em troca, um pagamento de 300.000 pesos. A obra deveria estar concluída antes do dia 31 de dezembro de 1915, quando se previa o translado da pirâmide. A proporção entre a praça e o monumento é considerada aspecto importante. Os autores concretizaram estudos especiais baseados na visão do monumento construído, decidindo contribuir espontaneamente para uma melhor organização da praça, a partir de uma solução mais ampla e significativa do que as que haviam sido, até então, propostas. Baseavam-se nas seguintes premissas: na valorização de vista da cidade para o Rio da Prata e na projeção adequada de uma sede para os monumentos oferecidos à República como contribuição ao seu centenário. A resposta a esse conceito resultaria em um projeto de supressão do Palacio del Gobierno e desaparição dos armazéns da aduana, em todas as partes compreendidas no ângulo visual da praça e do rio.
Considerações Finais
O concurso em torno do monumento foi tido aqui como caso a considerar ações que visavam conduzir à conformação da Argentina em país independente, mas evitar a subversão das hierarquias sociais previamente estabelecidas. A participação popular, bastante reiterada em alguns discursos, parece figurar apenas como elemento retórico, sempre de maneira dependente de outros condicionantes – como personagens heroicos. Intensificou-se e difundiu-se a visão de que a liberdade garantida pelo processo independentista era aquela que não feria os princípios consagrados na legislação e, nesse processo, também os monumentos e intervenções no espaço da cidade foram importantes estratégias. Por meio delas, percebemos as concepções presentes nas proposições técnicas e políticas daqueles envolvidos nas intervenções no espaço da cidade – seja do poder público ou dos técnicos que, de alguma forma, se envolveram em ações destinadas ao espaço urbano.
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A pedagogia cívica, que emerge no ímpeto monumental ainda nesse final do século XIX, consiste em uma proposta de apropriação do passado na construção de uma narrativa linear que tivesse na Espanha, antiga metrópole, o inimigo a ser derrotado e que agora parecia conformar a nova República como palco de igualdade e direitos equânimes. Essa pedagogia pautava-se na civilidade e na moralidade e emanava de projetos político-culturais formulados e executados nas esferas governamentais do período pós-independência pelos políticos letrados que nestas estavam inseridos. Tais projetos se expressavam de distintas formas, como o caso analisado do uso de monumentos que construíam o espaço público e deveriam disciplinar, instruir, civilizar e moralizar, sem, entretanto, alterar hierarquias sociais. No sentido de conformação de uma esfera pública de poder, as tentativas demonstram uma incorporação da população apenas figurativa, por meio da adesão aos princípios e valores nos quais se baseava a construção do Estado e da nação argentinos naquele mo-
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Essa pedagogia pautavase na civilidade e na moralidade e emanava de projetos político-culturais formulados e executados nas esferas governamentais do período pós-independência pelos políticos letrados que nestas estavam inseridos. Tais projetos se expressavam de distintas formas, como o caso analisado do uso de monumentos que construíam o espaço público e deveriam disciplinar, instruir, civilizar e moralizar, sem, entretanto, alterar hierarquias sociais.
mento, nos quais a efetiva participação popular não era exatamente exaltada. A construção e a afirmação de uma obra de arte de caráter público serviam de instrumento de propaganda e retórica. Compreender as nuances e negociações envolvidas no concurso nos permite verificar o entrelaçamento entre arte e política, que está por trás das pretensões para com esse monumento, ainda que ele tenha ficado restrito à concepção. A manipulação da memória se opera por meio de seu caráter seletivo. As comemorações nacionais oferecem pertinentes exemplos. Comemorar, nesse sentido, significa reviver de maneira coletiva a memória de um acontecimento considerado como um ato fundador. O centenário da Independência buscou celebrar, em 1910, aqueles ideais nacionalistas exaltados na Revolução, buscando formar uma espécie de consenso nacional – que, em realidade, não se dava de forma homogênea, nem mesmo nas propostas que envolviam debates de percepções. Privilegiou-se a construção narrativa de negação das antigas ligações de depenResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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dência com a Espanha, enquanto se reforçava uma ideia de nação autossuficiente, ainda que cada proposta o fizesse de sua maneira. O esquecimento de pontos da história é significativo e mobilizou distintos discursos em prol de uma narrativa específica, aquela que buscava cristalizar a lembrança das vitórias celebradas naquela data reforçando uma ideia coletiva de orgulho nacional. Estas expressões celebram a argentinidade em torno de ideias como modernidade, progresso e civilização, buscando consolidar uma unidade nacional e forjar uma narrativa que aproxima passado, presente e futuro. As utilizações sociais da memória emergem nesses fenômenos de comemoração que se impõem como ritos nacionais, buscando valores de uma comunidade na rememoração de acontecimentos passados que atribuem significações diversas para usos no presente. Essa tendência unificadora, baseada na negação de conflitos sociais e da violência desse processo, evidencia figurações forjadas ao longo de tanto tempo que deixaram rastros na memória coletiva. Essas comemorações reforçam uma narrativa sobre a história nacional em busca da uma suposta identidade a partir do despertar de sentimentos de pertencimento. A maneira de recordar coletiva se transforma em espetáculo, exigindo lugar para tornar-se pública. A experiência coletiva se constitui nessas práticas de natureza simbólica que expressam significados complexos. Os ritos e práticas são catalisadores de novas interpretações e realidades, reconfigurando os significados que não são homogêneos, mas apropriados de distintas maneiras. O caso do monumento, unindo-se à ritualização da independência argentina, expressa, portanto, uma forma de pensar essa relação e questionar práticas que trazem à tona relações de poder que, com base nos ritos, definem interpretações do passado a partir do presente. O espaço de expressão da nacionalidade tem na leitura e valorização do passado sua chave analítica. Ao focarmos nossa análise nesses seis projetos e nos conflituosos debates entre comissão, artistas e técnicos, por meio do parecer da revista, percebemos o manejo dos episódios históricos e a forma como estes são convertidos em imagens alegóricas a partir da elaboração de narrativas. O exame cuidadoso desses projetos nos fez notar recursos comuns entre os artistas como, por exemplo, a noção de linearidade na narrativa histórica nas alegorias, uma vez que cada qual a sua maneira retratou os acontecimentos como uma série cadenciada de eventos que gradativamente alçaram a Argentina a uma nova condição política, de país independente. O monumento proposto era considerado uma verdadeira alegoria à apoteose da Independência, pensado de maneira a se relacionar com o espaço circundante. Sua acentuada verticalidade o transformava em projeto eloquente e efeito semelhante era gerado por seus elementos
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simbólicos, como a presença de figuras femininas, que aludiam à glória cantando o Hino Nacional. As alegorias de pátria e liberdade são centrais, por serem consideradas mobilizadoras do povo a conquistar sua independência, sendo sacralizadas de tal maneira no espaço físico que o passado se converte em objeto de devoção: é uma versão da história nacional, que se baseia em um passado específico cristalizado, mas construído no presente para projetar certo triunfo. A obra ganhadora nunca se realizou, aparentemente por razões econômicas, ainda que os autores tenham insistido em custeá-la. A do segundo lugar, entretanto, foi levantada na nova praça do Congreso, alguns anos depois, o que suscita ainda novos debates sobre a validade da eleição dos vencedores. Ainda que propusesse uma relação direta com a Plaza de Mayo, foi destinado a outra praça, parecendo perder seu caráter principal de relacionar-se diretamente com o espaço cuja retórica referenciava. Os discursos políticos filiam-se a formações discursivas atravessadas por distintos sentidos e ideologias, em constante dinâmica, que se condensam em metáforas, como as analisadas no caso do discurso nacionalista, mobilizado em prol de um ideal moderno e científico buscado para o país/a cidade. Na busca de construir uma suposta identidade argentina, estes recursos criam e reforçam efeitos de diferenciação que definem um lugar específico para a argentinidade. Os monumentos emergem como ferramentas eficazes para o projeto civilizatório e como campanha pedagógico-artística para incluir valores cívicos e artísticos. Os festejos do centenário pareciam oportunidades perfeitas para reforçar os valores cívicos, recorrendo à memória de heróis da Independência. A despeito da realização das propostas, entretanto, o debate sobre a função cívica dos monumentos foi amplo e controverso, no âmbito do concurso, e os artistas ocuparam um papel importante nele. O edital se mostrou como elemento ambíguo. Muitas das alegorias simbólicas citadas por ele, como o hino, o escudo e a bandeira, tiveram aparição em todas as propostas. O povo também esteve sempre presente, entretanto, o papel de protagonismo, destacado na proposta inicial, pareceu escapar de todos os projetos, nos quais a ação popular aparecia de maneira secundária ou menor que de outros personagens. A valorização da praça como espaço nacional também foi mobilizada por alguns autores, mas escapou a muitos projetos que chegaram até a propor intervenções que não condiziam com a sua estrutura. Há um vocabulário comum que permeia os projetos no que tange às referências utilizadas, muitas delas baseadas na própria publicação do edital que tenta normatizar o caminho escolhido para a obra. No que diz respeito à forma das obras, entretanto, os formatos variaram Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 73-98, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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bastante entre si, demonstrando que, ainda que partindo de um mesmo conjunto referencial, as interpretações foram distintas. Também o parecer efetuado pelos responsáveis pela Revista Técnica envolve questões próximas. A linearidade e progressão da narrativa histórica observada na maioria das propostas é reiterada ou mesmo cobrada pelos técnicos que, por
Em consonância com as análises de Ana Rita Uhle (2015) sobre o monumento aos fundadores de São Paulo, consideramos que, embora quando olhados em conjunto esses projetos sejam portadores de um discurso harmonioso, se apresentam como um campo de leituras heterogêneas e de conflitos de interesse, que demonstram que a obra é um produto direto das disputas e negociações entre diferentes interlocutores que atuam nesse processo.
meio de sugestões e/ou críticas, demonstram visões pareadas com ideais nacionalistas e com a vontade de perpetuar tal memória. Essa forma de narrativa se mostra claramente alinhada com ideais positivistas sobre a história, por considerar a existência de uma verdade histórica única, construída a partir de um tempo linear, cumulativo e irreversível, calcado nos valores de progresso. Até mesmo os comentários técnicos não se restringiram à forma e validade estética das propostas, já que muitas vezes esses aspectos eram validados, mas o monumento era considerado inadequado por alguma outra questão – seja a própria ligação referencial com o evento recuperado, ou mesmo sua adequação ao espaço no qual seria construído. No geral, os projetos foram apreciados no que diz respeito a essa “verdade histórica”, que aqui se refere àquela buscada e descrita pelo edital. Logo, qualquer incongruência e discordância é lida como um manuseio equivocado dessa narrativa.
Em consonância com as análises de Ana Rita Uhle (2015) sobre o monumento aos fundadores de São Paulo, consideramos que, embora quando olhados em conjunto esses projetos sejam portadores de um discurso harmonioso, se apresentam como um campo de leituras heterogêneas e de conflitos de interesse, que demonstram que a obra é um produto direto das disputas e negociações entre diferentes interlocutores que atuam nesse processo. Percebe-se, assim, uma imbricação entre as formas retratadas e a construção de interpretações específicas do episódio narrado que, apesar de seguir os nortes propostos pelo edital, demonstram que os projetos de retórica nacionalista podiam assumir – e assumiram – distintas formas.
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Recebido em: 10 de março de 2019 Aprovado em: 3 de junho de 2019
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A narrativa visual do álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes, 1904-1906 The visual narrative of the F. Matarazzo & Cia Industriaes album, 1904-1906 Elisa Pomari*
Resumo
Abstract
O álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes foi idealizado pelo grupo F. Matarazzo & Cia e produzido pelo fotógrafo Orestes Cilento, entre 1904 e 1906, momento de transformação das atividades do grupo, que trouxe a necessidade de divulgação dos negócios. A obra, durante muito tempo a única a retratar sistematicamente o interior das fábricas, é uma narrativa visual inserida num contexto de produção, circulação e consumo de imagens fotográficas como prática de grandes empresas. Tais imagens colaboraram para o fortalecimento dessas empresas, ao mesmo tempo em que contribuíram para a formação de grandes personalidades empresariais míticas. Assim, o artigo analisa o discurso dessas fotografias em torno da produção, da aparência do ambiente fabril e das relações de trabalho ali desenvolvidas.
The F. Matarazzo & Cia Industriaes photographic album was commissioned by the group to the photographer Orestes Cilento and produced between the years 1904 and 1906, a moment of transformation in the activities of the group and that brought the need to divulge the business. The work, for a long time the only one to systematically portray the interior of the factories, is a visual narrative inserted in a context of production, circulation and consumption of photographic images as a business practice of large companies. These images collaborated for the strengthening of the companies while contributing to the formation of great mythical business personalities. Thus, the article analyzes the discourse of these photographs around the production, the appearance of the factory environment and the labor relations developed there.
Palavras-chave: Fotografia; Matarazzo; Industrialização; São Paulo (Estado) - Indústrias.
Keywords: Photography; Matarazzo; Industrialization; São Paulo (State) - Industries.
* Graduada em História pela Universidade Estadual de Campinas. Mestra em História na área de Política, Memória e Cidade pela mesma instituição. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado na linha Cultura Visual, História Intelectual e Patrimônios do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp). E-mail: pomari. elisa@gmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 99-118, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o
O
bjetos visuais de diferentes formatos, com variadas temáticas e contextos de produção foram importantes artefatos e agentes na construção de discursos e relações sociais, econômicas, políticas e culturais (GELL, 1998). No cenário oitocentista de surgi-
mento e difusão de inovações técnico-científicas, que permitiram a construção de dispositivos mecânicos e impulsionaram rápidas transformações, a fotografia surgiu como possibilidade técnica e rapidamente consolidou-se como objeto de consumo, prática social e fenômeno estético. Em poucas décadas as imagens fotográficas, em suas múltiplas formas, inundaram o cotidiano e o imaginário de diversas sociedades. Em um regime visual no qual a ilusão, a subjetividade, a efemeridade e o fascínio do espetáculo eram valorizados1, as imagens fotográficas colaboraram para a consolidação de tradições de representação e, somando ao seu potencial de comunicação, a facilidade de circulação e a velocidade de recepção pelos observadores, foram importantes vetores de ideias e discursos. Participaram da construção de narrativas, da disciplinarização do olhar, da atenção (CRARY, 2012) e do efeito de naturalização de práticas, paisagens e dinâmicas sociais que emergiam. Assim, dialogaram e contribuíram com projetos de sociedade que tentavam se estabelecer. Em meio ao processo de expansão e consolidação do sistema fabril, a produção e publicação de imagens fotográficas tornou-se uma importante ferramenta de comunicação, apropriada por diversos atores sociais individuais e coletivos, a partir da qual foram elaboradas narrativas visuais sobre o cotidiano das fábricas, os trabalhadores, o processo de modernização econômica e a industrialização como um todo. Os industriais foram grandes fomentadores da produção de fotografias, criadas para circulações específicas dentro e fora de seus empreendimentos, incluindo tanto as imagens elaboradas de e para comemorações internas, como a documentação de seus negócios e atividades com fins publicitários ou para atração de potenciais investimentos. Neste segundo caso enquadra-se o álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes. 1 Os termos apresentados são recorrentes em análises clássicas sobre fenômenos das sociedades que passaram pela experiência da consolidação de novas formas de produção e de significativo aumento na circulação de mercadorias, especialmente no século XIX e início do século XX. Ver Benjamin (2007), Debord (1997), Hardman (1991) Barbuy (1999).
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A análise aqui apresentada foi baseada nas reflexões da historiadora Ana Maria Mauad (2008), que concebe a fotografia como um processo histórico e social de construção de sentido e propõe sua observação a partir de aspectos históricos e estruturais da imagem.2 Portanto, para sua leitura e interpretação devem ser observados dados técnicos, que dizem respeito às formas de expressão das imagens fotográficas, tais como quem a produziu, seu tamanho, suporte, enquadramento, foco, iluminação; e seus aspectos de conteúdo, dentre os quais local, tema, existência de pessoas e objetos etc. A partir da decomposição das informações presentes na superfície visível, Mauad propõe o estabelecimento de diversos espaços discursivos na imagem: espaço fotográfico, espaço geográfico, espaço do objeto, espaço de figuração e espaço de vivência. Para a autora, “os campos espaciais permitem o restabelecimento de códigos de representação social e de comportamento, no seu marco de historicidade” (MAUAD, 2008, p. 46). Trata-se, assim, de esmiuçar o que está visível na imagem fotográfica para compreendê-la como produtora e produto de relações de sentido específicas, ou seja, históricas. Isto posto, o artigo retoma a narrativa visual do álbum idealizado pelo grupo F. Matarazzo & Cia e realizado pelo fotógrafo Orestes Cilento, entre 1904 e 1906, inserindo-o num contexto de produção, circulação e consumo de imagens fotográficas como uma prática de grandes empresas, que colaboraram para seu fortalecimento, ao mesmo tempo em que contribuíram para a formação de grandes personalidades empresariais míticas. Além disso, essas fotografias foram, por muito tempo, as únicas a retratarem sistematicamente o interior das fábricas, motivo pelo qual têm uma grande força discursiva em torno de sua aparência e das relações ali desenvolvidas.
F. Matarazzo & Cia Apesar de não ser o único proprietário dos negócios ou o único de sua família a conquistar poder econômico, relevância política e prestígio social, Francisco foi, sem dúvida, o principal responsável por tornar notável o sobrenome Matarazzo, motivo pelo qual emprestou seu nome ao grupo e ao álbum. Os rumores e mitologias sobre sua vida antes da emigração para o Brasil, entre o fim 1880 e o início de 1881, assim como as motivações de sua vinda são inúmeras. Contudo, pode-se dizer com certa segurança que sua família não apenas não era pobre como era 2 A autora também considera os apontamentos de Meneses (2003) e constrói uma proposta de análise das imagens a partir de quatro ângulos: da produção (sujeito e aparato técnico); da recepção (as condições históricas de observação e relacionamento com outras imagens); do produto (da materialidade da imagem e seu potencial narrativo); e do agenciamento (a dimensão de artefato da imagem, sua biografia). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 99-118, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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bastante proeminente em sua cidade de origem, Castellabate, localizada na região campana de Cilento, província de Salerno, no sul da Itália. É igualmente possível afirmar que, em meio à reorganização estrutural e fiscal iniciada pelo processo de unificação – desastrosa especialmente para parte dos proprietários do sul -, os tempos eram difíceis e a família havia enfrentado desafios financeiros que impulsionaram a viagem do filho mais velho para outro continente. Mas ele não veio desprovido de amparo na travessia, tinha contato de um conterrâneo bem estabelecido na região de Sorocaba, no interior paulista, um carregamento de banha – que na maioria das versões da história teria sido perdido no desembarque – além de capital, elementos que lhe garantiram segurança (DEAN, 1971; MARTINS, 1973; COUTO, 2004). Embora, para o olhar em retrospecto, já como fundador de um dos maiores complexos industriais do continente, pudesse parecer um início humilde, estes pertences iniciais certamente o diferenciaram da maior parte dos italianos que aqui chegaram e foram fundamentais para seu sucesso econômico. Matarazzo fixou-se inicialmente em Sorocaba, onde deu início às suas atividades como comerciante de secos e molhados. Em 1882 abriu um armazém, no fundo do qual começou, junto com sua mulher, Filomena, a fabricação de banha de porco para venda no próprio estabelecimento, visto que a consumida aqui era importada e a criação de suínos era considerável naquela região. Rapidamente expandiu a produção para duas outras fábricas em áreas próximas. Este período foi classificado por José de Souza Martins (1973, p. 43) como a fase de comércio rural, na qual a fabricação de banha era atividade secundária. Em seguida viria a fase do comércio ampliado e da importação. Assim, nos anos iniciais da República, mudou-se para a Capital; associou-se e desassociou-se dos irmãos em três empresas diferentes, provavelmente para a capitalização das empresas, em meio à política econômica do Encilhamento; firmou uma casa comercial na rua 25 de março, que se tornou atacadista; e, por fim, uma importadora, na qual era associado ao irmão André (Andrea). Após um vultoso financiamento do London & Brazilian Bank, a F. Matarazzo & Cia deixou de ter como principal atividade a importação de farinha norte-americana e tornou-se proprietária do único moinho do estado de São Paulo em 1889, o Moinho Matarazzo. A migração para o ramo industrial foi tão lucrativa que, em apenas um ano, o moinho dobrou seu maquinário e capacidade de produção. Desse momento em diante e de maneira muito veloz, multiplicaram-se os negócios industriais: em 1901 ou 19043, foi fundada a Fiação e Tecelagem Mariângela; em 1902, a oficina do moinho foi transformada numa metalúrgica que fabricava lataria para venda de seus produtos. Foi também o período de início da fabricação de óleo para uso doméstico a partir do caroço de algodão e, em 1906, veio a inauguração da fábrica de fósforos. Além disso, nos primeiros anos do século XX, Francisco 3 José Martins aponta dúvida entre as datas de 1901 ou 1904, Ronaldo Costa Couto considera o ano de 1901 como o de fundação.
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Matarazzo participou da fundação de bancos ítalo-brasileiros e recebeu da coroa italiana o título de comendador.
O álbum O álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes começou a ser elaborado em um momento de migração das atividades da companhia. Sua produção, desenvolvida entre os anos de 1904 e 1906, deu-se possivelmente como uma catalogação fotográfica das novas e diversas fábricas. Posteriormente, a obra foi direcionada para a Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo e, assim como o restante do acervo da Secretaria, atualmente compõe uma coleção homônima pertencente à documentação fotográfica do Centro de Memória – Unicamp. O álbum possui dimensões de um grandioso projeto: 25 cm x 30 cm x 15 cm. Era composto de 100 fotos – das quais uma se perdeu – e tem autoria do estúdio Photo Cilento, de Orestes Cilento, que, segundo o verbete do Dicionário Histórico Fotográfico (KOSSOY, 2002), era: “um dos estabelecimentos tradicionais dentre os fotógrafos de origem italiana no princípio do século XX”. Para além do fato de ter se dedicado a retratar a comunidade italiana e ser o autor das fotografias do álbum Il Brasile e gli Italiani – publicado em 1906 pelo jornal Fanfulla, representante da colônia italiana de São Paulo -, não se sabe muito mais sobre o fotógrafo, mas é relevante destacar que seu sobrenome, mais do que de origem italiana, fazia referência à região de onde era proveniente, Cilento, sul da Campânia. Ou seja, Cilento e os Matarazzo, vindos de uma Itália, há pouco unificada e de forte regionalismo, eram efetivamente conterrâneos, assim como muitos outros que trabalharam para o industrial. F. Matarazzo & Cia Industriaes traz, nesta ordem, uma foto de Francisco Matarazzo, cuja legenda aponta seu título de comendador, e uma do escritório central do grupo, na rua XV de Novembro; depois, apresenta séries de fotografias dos negócios: Moinho Matarazzo, Fiação e Tecelagem Mariangela, Fábrica de Óleo Sol Levante, Fábrica de Banha A Paulista, Fábrica de Phosphoros Sol Levante; e, por último, da frota de carroças usadas para o transporte das mercadorias, nas quais é possível observar o nome do moinho. Todas as páginas trazem, no topo, a indicação da fábrica à qual se referem e, no rodapé, legendas em português, italiano, francês e inglês. Para cada uma das fábricas a sequência das imagens foi organizada de maneira bastante similar. As primeiras fotos são vistas externas da fachada ou da entrada. Estas imagens foram registradas, em geral, a partir de locais distantes – mais altos ou mais baixos -, que permitiram a Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 99-118, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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captura de planos gerais da maior parte do edifício, possibilitando ver a dimensão dos prédios, assim como elementos de importância para a distribuição da produção, como a proximidade de linhas férreas. As fotos seguintes dedicam-se aos equipamentos e infraestrutura nas fábricas, maquinário, motores, oficina, bombas hidráulicas e equipamento contra incêndio. São seguidas, por fim, das imagens do “pessoal”, dos trabalhadores organizados e divididos, dependendo do tamanho do empreendimento, em função, especialização, gênero etc. Dessa forma a própria ordem das fotografias cria a sensação de uma narrativa que busca apresentar, por completo, não apenas os negócios do grupo – indo da administração à distribuição das mercadorias, passando por sua produção -, como também as atividades de cada uma das fábricas. O observador as “vê” por fora, adentra no espaço de produção, onde pode observar o número e a grandiosidade do maquinário e, por fim, ver os trabalhadores que dele se ocupam. O álbum ainda é acompanhado de um encarte explicativo bilíngue (português/italiano) produzido pela Thypographia Cardozo Filho & Motta. Ambos trazem adornos e fonte que oscilam entre o art nouveau e o art deco, estilos ligados à indústria e ao discurso da modernidade, reforçando a inserção da publicação em um discurso do moderno. Conforme observado por Vânia Carvalho e Solange Lima (1997, p. 411): Esses atributos ornamentais garantem a necessária familiaridade com os temas tratados ao facilitar a apreensão visual por integrarem um repertório imagético que abarca desde a ornamentação arquitetônica de fachadas, portões e gradis de ferro, papéis de parede e pintura decorativa parietal, até aquela praticada no campo das artes gráficas [...] Assim os modernos editores narram o moderno da cidade em um invólucro igualmente moderno, consonante com o partido visual dos demais produtos do mercado no qual a sua publicação disputa espaço e leitores. Os invólucros ornamentais buscam, assim, garantir a necessária empatia com o público leitor. Imagem 1 – Detalhe da página 11 do folheto que acompanha o álbum (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
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No encarte também é possível encontrar a descrição de cada uma das fábricas, com detalhes da construção e principalmente do funcionamento das máquinas, sua quantidade, tamanho, capacidade, potência, consumo de energia, produção média e número de funcionários. Dessa forma, o álbum e o folheto somados tornam-se uma visita detalhada às propriedades da F. Matarazzo & Cia, cujo objetivo era mostrar a capacidade de produção, divulgar o investimento tecnológico na aquisição do maquinário, a sua potência, assim como a organização racional do espaço fabril. Ao considerar suas dimensões, pode-se concluir que o álbum não deve ter sido feito para uma circulação muito ampla. Trata-se de uma apresentação provavelmente destinada a autoridades e figuras importantes no âmbito nacional e internacional, o que lhe confere uma função importante nos negócios da empresa. Ademais, pode-se considerá-lo um meio moderno de divulgação e propaganda da modernidade das empreitadas lideradas por Francisco Matarazzo. Conforme já apontado, a publicação foi produzida em um momento bastante emblemático para os negócios dos Matarazzo. Segundo Martins, do ponto de vista organizacional, correspondeu ao período em que foi dissolvida a sociedade com os irmãos José (Giuseppe) e Luís (Luigi), cujas fábricas foram readquiridas pela nova associação, F. Matarazzo & Cia, em sociedade com o irmão André, na qual, embora outros membros da família possuíssem ações, não tinham participação na diretoria. Assim, o álbum pode carregar ainda a função de divulgação do nome do grupo em meio à formação de diversas associações na família. Além disso, na perspectiva da atividade econômica, corresponde ao início da fase de retomada e grande investimento na atividade industrial, depois de um processo de concentração no comércio importador, com a mudança para São Paulo. O moinho de farinha de trigo, inaugurado em 1900, representou um deslocamento dos negócios no sentido da indústria, ainda que as ações comerciais tivessem sido mantidas, visto que a diversidade de atividades, industriais e comerciais, possibilitava a segurança dos negócios em relação às oscilações econômicas. Logo, pode-se observar uma concentração de imagens, ou seja, um esforço em destacar algumas atividades da empresa – como indicada pelo próprio nome industriaes -, e, de forma mais precisa, algumas das fábricas. Das 99 fotografias, 26 retratam o Moinho Matarazzo, suas atividades e maquinário. O moinho foi a primeira e a mais rentável das atividades industriais de Matarazzo no início de sua trajetória. Também foi responsável por originar a Fiação e Tecelagem Mariângela – à qual 25 imagens foram dedicadas -, fábrica que posteriormente superou o moinho e a partir da qual se desenvolveu a Fábrica de Óleo Sol Levante, dedicada à extração do óleo do caroço do algodão utiliResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 99-118, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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zado na fiação e que conta com um total de 19 fotos. Portanto, mais de dois terços do álbum concentram-se nessas três fábricas recém-criadas. O volume destas imagens relaciona-se à importância financeira que cada empreendimento tinha para a organização e sua ordem indica o processo de desdobramento das atividades: das necessidades de ensacamento do moinho surgiu a fiação, assim como surgiria também, alguns anos depois, uma metalúrgica, a partir da oficina mecânica retratada no álbum. Das sobras da produção de tecidos, teve origem a fábrica de óleo de semente de algodão, principal óleo utilizado para consumo doméstico no período, cujo processo de desodorização era exclusivamente realizado pela F. Matarazzo & Cia. Dessa forma, também é possível observar na documentação o processo de criação de novas fábricas como uma maneira de responder às necessidades da própria produção industrial. Esse processo, conhecido como concentração vertical, foi característico do período inicial da industrialização e típico dessa fase dos negócios do grupo, pois trazia vantagens fiscais e eliminava dificuldades de abastecimento. Apesar de ser o mais antigo dos negócios de Matarazzo, as imagens relativas à Fábrica de Banha A Paulista são poucas, apenas sete, e são apresentadas ao leitor somente depois dos novos empreendimentos da capital. Essas imagens já destoam das demais por serem as únicas não localizadas na cidade de São Paulo, mas sim em Capão Bonito, município da região de Itapetininga. Além disso, retratam um empreendimento que era consideravelmente menor em pessoal, maquinário e modernidade industrial do que os demais. Por último, é retratada a Fábrica de Phosphoros Sol Levante, o mais recente empreendimento do grupo. Datado de 1906, aparece ainda em estágio de finalização da construção, mas conta com 17 fotografias. É provável que essas fotografias tenham sido adicionadas com a publicação já em andamento, o que explicaria porque, a despeito do tamanho e maquinários, é a última. Apesar do volume do investimento, esse foi o único estabelecimento liquidado pelo grupo, vendido à Fiat Lux no final da década, segundo Ronaldo Costa Couto (2004, p. 290), precisamente pela impossibilidade de verticalização dos negócios.
As narrativas fotográficas
A observação das imagens permite, para além de demarcar a hierarquia entre os empreendimentos, remontar os espaços de trabalho e sua provável organização, a ordem da produção e a lógica de funcionamento fabril, por meio do posicionamento das máquinas, da sequência das imagens de uma mesma fábrica e de diversos outros indícios nelas capturados.
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No caso da Fiação e Tecelagem Mariângela, as fotografias têm a seguinte ordem: imagens de abridores e batedores, processos de tratamento do fruto do algodão; cardas e passadores, processos de tratamento da fibra; urdideiras, carretéis, salas de fiação, maçaroqueira, novamente cardas, engomação do fio e remitição, processos de fiação; teares, processo de fabricação do tecido; e, por fim, descascadores. Embora o processo de fiação encontre-se retratado de maneira quase direta, as imagens dos descascadores dos caroços de algodão, que são a primeira etapa do processo, aparecem por último, dentre as máquinas. Fato este que pode ser atribuído à própria organização física do edifício, ou seja, podem ter sido representados na mesma ordem em que os espaços se colocavam para quem entrava na fábrica. O que, no entanto, não impede a reconstituição da lógica e das técnicas de produção. Além disso, também é possível observar os espaços ocupados pelos trabalhadores. Embora na maioria das fotografias do interior das fábricas os trabalhadores não estejam presentes, podese imaginar sua colocação pela própria localização dos maquinários no espaço, assim como pelo posicionamento das lâmpadas. Imagem 2 – Moinho Matarazzo – Deposito de pano para saccos, machinas de costura e estamparia (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
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Os espaços retratados no álbum estão limpos em quase todas as fotos, dado fantasioso para certos locais que sabidamente envolviam grande quantidade de resíduos, pela lida com separação de grãos, sementes, fibras e fiação. Inclusive, de acordo com boletins do Departamento Estadual de Trabalho, esses eram locais que mereciam atenção por parte dos industriais pela ameaça à saúde que representavam aos trabalhadores. As imagens seguintes, do Moinho Matarazzo e da Fiação e Tecelagem Mariângela – duas das quais retratam os espaços menos limpos presentes no álbum -, são exemplos disso. Nelas é possível observar um asseio pouco provável em meio ao processo de produção. Até mesmo na fotografia do descascador, máquina que separa a fibra da semente do algodão, quase não há produtos ou subprodutos do processo. Imagem 3 – Moinho Matarazzo - Moinho de arroz: Peneiras e separadores de arroz (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
Imagem 4 – Fiação e Tecelagem “Mariangela”- Sala Northrop 3ª sala (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
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Evidencia-se, então, certa cenarização, o que também implicava a ruptura na rotina de trabalho, do ambiente fabril com vistas ao registro fotográfico, uma vez que as imagens tinham por objetivo dar a ver o espaço e o maquinário da fábrica, principais atores na demonstração da grandeza e do avanço tecnológico, temas centrais da obra. Ainda reforçavam um discurso de higiene e salubridade fabril, fato relevante para a divulgação da companhia, atração de mão de obra, financiadores e investimentos para os negócios. Muitas das fotos foram dedicadas exclusivamente às máquinas, resultando em registros nos quais figuram apenas fileiras e fileiras de aparato técnico. Considerando os termos formais das imagens, pode-se observar que a maior parte das fotografias foi registrada a partir de ângulos diagonais, o que lhes permite mostrar o máximo possível dos espaços internos. De forma semelhante, o maquinário foi registrado em perspectiva, salientando ao observador sua dimensão, o volume dos equipamentos, ao mesmo tempo em que tornava visíveis áreas mais extensas dos mesmos. As exceções acontecem nas imagens que buscam retratar a quantidade e o volume (numérico) de máquinas comportadas em determinadas seções; nesses casos, alguns dos registros são frontais. Pode-se inferir, assim, que as máquinas e sua disposição no interior da fábrica são as figuras centrais do álbum, com destaque para os motores elétricos, fotografados com enquadramento e linguagem próxima à tradição dos retratos de pessoas. Tal destaque dado ao motor pode ser explicado por sua centralidade no contexto tecnológico do período, no qual praticamente todo o maquinário de uma fábrica era movido mecanicamente pelo mesmo eixo, conectado às máquinas a partir do teto por engrenagens e correias. Esse eixo, por sua vez, ligava-se ao motor, que distribuía sua potência às demais máquinas, o que também explica as muitas salas entrecortadas por barras metálicas e correias apresentadas nas fotografias do álbum, assim como o registro da potência dos motores de cada uma das fábricas nas descrições trazidas pelo folheto anexo. Além dos motores e do próprio Francisco Matarazzo, o engenheiro ou técnico da fábrica de fósforos, que muitas vezes se
Imagem 5 – Fiação e Tecelagem “Mariangela” - Motor de funccionamento (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
tornava o responsável por sua administração, também é retratado de forma individual, mas ao lado das máquinas. Esse protocolo de representação, comum na linguagem fotográfica do período, concede ao retratado o prestígio da individualização na imagem além de demonstrar sua importância hierárquica e refinamento intelectual. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 99-118, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Imagem 6 – Fabrica de Phosphoros “Sol Levante” Serra de madeira (entre 1904 e 1906)
No que diz respeito à representação da mão de obra, não há trabalhadores dentro do espaço fabril em três quartos do álbum. Nas grandes fábricas, eles foram retratados a partir de um ângulo frontal e reunidos de maneira a acentuar sua grande quantidade, como nas imagens de fileiras de equipamentos. As fotos desses grupos numerosos foram registradas do lado de fora, geralmente acomodados em estruturas de madeira improvisadas. A única exceção refere-se aos trabalhadores mecânicos do Moinho Matarazzo, que aparecem dentro do local de trabalho, o que pode ser atribuído ao fato de ser esta a seção transformada em metalúrgica para a fabricação de embalagens para a banha, como já mencionado. Tal separação garantiria, assim, sua diferenciação dos demais funcionários, ao mesmo tempo em que retrataria o ambiente da metalúrgica, possivelmente já em projeto.
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
Imagem 8 – Moinho Matarazzo – Pessoal Mechanico (entre 1904 e 1906)
Imagem 7 – Fiação e Tecelagem “Mariangela” – Pessoal ajudante (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do
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O motivo pelo qual os trabalhadores foram retratados fora do espaço de produção não está ligado à falta de iluminação, visto que é possível observar que os ambientes fotografados, em geral, têm iluminação natural abundante típica de construções fabris, mas sim ao discurso da obra. Conforme já foi apontado, o discurso visual do álbum não tem como foco a atividade desenvolvida pelos operários no espaço retratado, mas sim o tamanho, organização, capacidade, modernidade do equipamento e, consequentemente, potencial de produção das empresas do grupo. Nesta ótica, os trabalhadores aparecem também como parte do potencial de produção e têm importância pelo número que simbolizam, motivo pelo qual são representados em grandes grupos, dispostos em forma de arquibancada, o que amplia o impacto visual da quantidade de funcionários. Além disso, o “pessoal”4 da fábrica aparece dividido por gênero e função. Nas fotografias do Moinho Matarazzo, pode-se observar a separação dos trabalhadores por função (moinheiros, ensacadores, pessoal mecânico); divisão que também aparece na Fábrica de Óleo Sol Levante, na qual são fotografados em separado: o pessoal do mecânico, pessoal da refinação, pessoal do acondicionamento e carpinteiros. Nas fotografias da Fiação e Tecelagem Mariângela, temos, ainda, a separação entre tecelões, tecelãs, pessoal ajudante, tecelãs de teares Northrop, conforme as legendas do álbum. Aqui é possível observar não só a divisão de funções e de gênero dentro de uma mesma função, como também uma diferenciação por especialização dos que operam um tipo específico de tear, mais moderno e automatizado, o Northrop Loom5. Contudo, nas fotografias das duas últimas empresas, a Fábrica de Banha A Paulista e a Fábrica de Phosphoros Sol Levante, assim como nas fotos do armazém e da frota de caminhões, os trabalhadores foram retratados em seu local de trabalho e, mesmo nas fotos exteriores, aparecem de forma menos protocolar e sem separação por função ou gênero. Nas imagens da fábrica de Banha A Paulista, os trabalhadores não apenas aparecem dentro do espaço fabril, como também foram retratados em atividade. Cabe lembrar que este foi um dos primeiros empreendimentos de Francisco Matarazzo – durante muito tempo mantido como propriedade individual, não fazendo parte das sociedades anteriormente abertas com os irmãos – e era o menos automatizado dentre os retratados na obra. As imagens do álbum relativas ao negócio de Capão Bonito são poucas, sete, das quais três se referem a vistas internas. As demais incluem uma vista do pasto, pessoal e vistas externas. 4 No álbum do grupo Matarazzo, o termo trabalhadores não aparece nas legendas em português – utilizou-se “pessoal” -, italiano ou francês, somente em inglês tem-se um termo próximo, workers. 5 Esse tear foi inventado em 1895 e comercializado pela British Northrop Loom Co. Ltd a partir de 1902. Trata-se de maquinário de ponta para o período de produção do álbum.
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Imagem 9 – Fabrica de Banha “A Paulista” – Acondicionamento de banha (entre 1904 e 1906)
Fonte: Coleção Secretaria da Agricultura Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo – Centro de Memória-Unicamp
Imagem 10 – Fabrica de Banha “A Paulista” – Vista Geral (entre 1904 e 1906)
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Imagem 11 – Fabrica de Banha “A Paulista” – Vista Geral (entre 1904 e 1906)
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Comparando as duas últimas fotografias do exterior do prédio, é possível admitir que nelas tenha sido acrescida artificialmente à construção uma chaminé, para garantir-lhe o ar fabril. Nestas imagens, também pode-se observar que os trabalhadores aparecem dentro da fábrica ou realizando as atividades para dar sentido à produção ali realizada e, ao mesmo tempo, disfarçar a rudimentaridade do espaço. Já nas fotografias da fábrica de óleos, surge outra situação, que pode estar ligada ao fato de registrarem um menor número de trabalhadores, 65 funcionários, segundo o encarte que acompanha o álbum. É possível ver nas imagens do “pessoal” que muitos deles seguram as ferramentas utilizadas no trabalho ou que simbolizam seu ofício; em uma delas foi incluída até uma placa que sinaliza o ofício dos retratados, trabalhadores da carpintaria. Esta atitude faz referência à linguagem herdada da pintura e comum nos retratos, nos quais geralmente as pessoas são apresentadas com objetos que fazem alusão à sua profissão ou status social. Ao mesmo tempo, estabelecem diálogo com as imagens de ofícios, como aquelas feitas por Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 99-118, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Marc Ferrez e Vincenzo Pastore, no momento em que alguns dos funcionários exibem suas ferramentas de trabalho mesmo nas fotografias de grupo. Em uma delas chegam a formar um grande mise-en-scène das atividades de toda a fábrica, incluindo até mesmo os produtos finais, o que também funciona como maneira de preencher, com produtos e ferramentas, o espaço fotográfico ocupado por um número não tão extenso de operários. Imagem 12 - Fabrica de Oleos “Sol Levante” – Pessoal do accondicionamento (entre 1904 e 1906)
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No contexto industrial dessas fotografias – que se diferencia da maioria dos trabalhadores urbanos registrados por Ferrez e Pastore pelo fato de os trabalhadores fabris não possuírem suas próprias ferramentas de trabalho -, é possível pensar que a empunhadura destes objetos poderia significar uma tentativa de demonstrar a propriedade de um saber, um domínio de ofício, em substituição ao controle da produção. Entretanto, não é possível saber até que ponto os trabalhadores poderiam ou não ter controle sobre a montagem da cena fotográfica, que também pode ter sido originada de uma iniciativa dos produtores para atrair a atenção para atributos da produção, diante do baixo número de trabalhadores empregados nessa fábrica em comparação às demais.
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Apesar da impossibilidade de afirmar que a exibição de instrumentos de trabalho seja uma tentativa de individualização consciente por parte dos trabalhadores em meio à sua representação sempre coletiva, é possível notar algum grau de preocupação dos mesmos com sua imagem fotográfica por meio do cuidado com a própria roupa e aparência física. Em algumas das fábricas isso fica mais evidente, especialmente nas indústrias maiores e localizadas em São Paulo, como o moinho e a fiação. É possível observar na fotografia dos ensacadores e costuradores que os trajes dos trabalhadores provavelmente não são os mesmos utilizados no trabalho diário. Um exemplo é o quarto homem (da esquerda para a direita) da segunda fileira, cuja indumentária pode sugerir um desejo de enfatizar distinção em relação aos demais trabalhadores, assim como pode-se deduzir que os trajes nem mesmo pertençam a eles, como é possível considerar a partir do colete e do paletó do quarto homem (da esquerda para a direita) da primeira fileira. Os dois casos podem ser compreendidos como um esforço de construção, ainda que com limitações, de uma determinada imagem a ser perenizada por parte dos trabalhadores fotografados.
Imagem 13 – Moinho Matarazzo - Ensaccadores e costuradores (entre 1904 e 1906)
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Outro ponto levantado pelas fotografias em torno da construção de um espaço de discurso dos próprios trabalhadores sobre si diz respeito às relações que estabelecem com os outros trabalhadores. Nas fotografias coletivas, pode-se observar a procura, por parte dos retratados, de estabelecer entre si contato físico, que nem sempre pode ser considerado acidental ou motivado pela falta de espaço. Enquanto algumas das pessoas sentadas umas ao lado das outras mal se tocam, outras realizam os movimentos trabalhosos, bastante acentuados e pouco naturais para serem retratadas em ligação. Braços entrelaçados, toques nas pernas e ombros poderiam sinalizar a vontade de evidenciar uma relação que ultrapassaria a do ambiente de trabalho, possivelmente familiar. Dessa forma, também se torna possível observar redes de relações pessoais transcritas nas imagens por meio do contato físico. Imagem 14 – Fiação e Tecelagem “Mariangela” – Tecelans (entre 1904 e 1906)
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Considerações Finais
As considerações sobre o álbum F. Matarazzo & Cia Industriaes aqui apontadas inserem sua produção em um momento de transformação das atividades do grupo, o que acarretou a necessi-
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dade de divulgação dos negócios, bem como o detalhamento do maquinário, produção, ambiente fabril, mão de obra. Assim, obra e companhia são inseridas em um contexto de economia visual, no qual a circulação de imagens fotográficas nesse formato cuidadosamente elaborado tinha como objetivo auxiliar os processos econômicos, sociais e políticos desejados por seus produtores. Nesse contexto, tais iniciativas eram entendidas, mais do que como um dever, como um privilégio pertencente aos industriais, cujas figuras eram vinculadas ao aparato tecnológico, aumentando seu prestígio social, político e potencializando sua atividade econômica, ao mesmo tempo que também mantinham exclusividade sobre o acesso, a representação e a produção de discursos, dentre eles o visual, acerca do ambiente de produção. Cabe observar que, nos anos posteriores, o Estado passa a disputar com os industriais e os empresários o acesso ao espaço privado da fábrica, e torna-se também um produtor de representações e discursos visuais em torno das diversas atividades econômicas nacionais (POMARI & MENEGUELLO, 2019). Por fim, ainda que o foco do álbum seja o aparato industrial da Companhia Matarazzo, as imagens dos trabalhadores também ficaram registradas nas frestas desta vitrine da modernidade fabril. Personagens que provavelmente não teriam tido contato com sua imagem perpetuada e com os quais não teríamos deparado, não fosse pela iniciativa desse registro visual das indústrias da família italiana.
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Recebido em: 11 de março de 2019 Aprovado em: 21 de maio de 2019
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A cidade e as escolas: a memória material e o monumento através das escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado de Campinas na década de 1880 Cities and schools: the material memory and the monument seen through Corrêa de Mello and Ferreira Penteado schools in Campinas (Brazil) in the 1800s Munir Abboud Pompeo de Camargo*
Resumo
Abstract
Este artigo tem o objetivo de analisar a construção das escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado na década de 1880, através do diálogo desses edifícios com a malha urbana de Campinas. Além de prédios escolares, esses colégios se tornaram monumentos para a memória daqueles que detinham o poder político e econômico na cidade. Ambos os edifícios eram dedicados à educação popular e inseriam-se em Campinas como estratégia para marcar os espaços entre os grupos menos abastados e os mandatários da cidade, levando sua memória para o futuro. Como fontes, são utilizadas fotografias das escolas, plantas arquitetônicas, o mapa da cidade, jornais e almanaques do período. A análise é realizada a partir das lentes da nova história cultural, compreendendo a arquitetura como produtora e produzida do/pelo urbano, sendo os edifícios escolares possuidores de sentidos próprios que se ligam à memória e à cidade.
This article aims to analyze the construction of the schools Corrêa de Mello and Ferreira Penteado in the 1880s, through the dialogue between these buildings and the urban mesh of Campinas, Brazil. These institutions, apart from being schools, would become monuments for the memory of their creators: those who detained political and economic power in the city. Both buildings were dedicated to people’s education and were inserted in Campinas’ urban mesh as a strategy to determine the space pertaining to less well-off groups and the one attended by the city’s leading group, preserving their memory for future generations. As sources, we used school photographs, blueprints, city maps, newspapers and almanacs of that time. These documents are analyzed from the perspective of new cultural history, comprehending architecture as both the producer and a product of (and by) the urban, and that school buildings possess particular meanings that are linked to memory and to the city.
Palavras-chave: Arquitetura Escolar; Século XIX; Campinas; Memória; Cidade.
Keywords: Photography; Matarazzo; Industrialization; São Paulo (State) - Industries.
* Bacharel e Licenciado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca/SP. Mestre pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisador do Programa de Estudo e Pesquisas em História da Educação (PROEPHE) do Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp (CME – FE/ Unicamp). E-mail: munirabboud@hotmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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urante a segunda metade do século XIX, em Campinas, a educação passou a ter notoriedade nos discursos do grupo mandatário da cidade, pois era vista como necessária para trazer progresso à nação, assim como para formar aqueles que seriam os futuros governantes e combater a ignorância do povo (ANANIAS, 1999, p. 87-88). Essa preocupação animava as mais diversas iniciativas de maneira independente aos três partidos do império (Republicano, Liberal e Conservador), já que elementos dessas agremiações muitas vezes se uniam na defesa da constituição de instituições escolares. Esse movimento ocorria visto que o grupo mandatário de Campinas, detentor do poder econômico e das instâncias políticas da cidade, apresentava uma configuração familiar. Nesse sentido, os laços de parentesco1 entre
seus membros eram notórios e indiferentes às filiações partidárias. Além disso, possuíam um ideal próprio de educação, que era vista como fator decisivo para o desenvolvimento da civilização e o alcance do progresso. Nessa perspectiva, os espaços especializados para a educação também eram defendidos. Esse grupo foi responsável pela fundação de colégios direcionados para seus filhos, como o Colégio Internacional e o Colégio Culto à Ciência2, e de escolas para o povo, como a Escola Corrêa de Mello e a Escola Ferreira Penteado (POMPEO DE CAMARGO, 2019a, p. 36). Os quatro colégios possuíam arquitetura própria e especializada e foram construídos para cumprirem fins educativos, sendo os dois primeiros edificados por Guilherme Krug e os dois segundos por Francisco de Paula Ramos de Azevedo. O contraste entre esses edifícios evidenciava planos de educação distintos para aqueles que eram considerados pelo grupo como elite e como povo, além de uma preocupação com aquilo que seria deixado para a posteridade pelo grupo. Um exemplo a ser citado são os edifícios que, construídos como monumentos, carregavam os nomes de membros do próprio grupo mandatário, questão evidenciada pelas escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado, objetos da presente análise. 1 Os laços familiares são fatores que apresentam questões como união, crescimento e preservação de riquezas, assim como manutenção e ampliação de poder político, prestígio e influência social, pontos apresentadas por Carlos de Almeida Prado Bacellar em seu livro Os Senhores da Terra (1997) e por Maria Alice Rosa Ribeiro no capítulo Famílias, propriedades e transformações na riqueza (1830-1930) (2016), inserido no livro Sesmarias, Engenhos e Fazendas: Arraial dos Souzas, Joaquim Egydio, Jaguary (1792 – 1930) (2016). Assim, o traçado dessas relações torna-se matéria importante para o alcance da compreensão dos grupos sociais trabalhados, e que se encontram envolvidos diretamente ao processo de edificação das instituições de ensino abordadas. 2 Sobre os colégios Internacional e Culto à Ciência, ver Moraes (2006); Bencostta (1996) e Pompeo de Camargo (2019a)
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Essa elite também se envolvia em diversas “iniciativas[,] como a construção da Igreja Matriz; a Companhia Paulista de Estradas de Ferro e participarem de esferas de decisões políticas, como a Câmara Municipal” (POMPEO DE CAMARGO, 2019b). O jornal Gazeta de Campinas, assim como os almanaques da cidade, também faziam parte dessas ações3. Os periódicos circulavam entre os grupos mandatários e as instituições que eles frequentavam e controlavam, assim como entre a população letrada com a qual possuíam algum vínculo. Essas publicações serviam como formas de divulgação das ideias de membros do grupo mandatário e traziam notícias sobre as escolas da cidade, sendo fontes de informação para a presente pesquisa, pois nelas constavam o público destinado, a estrutura física das escolas, os endereços, as quantidades de alunos, os relatos sobre a fundação das instituições, os anúncios, as inaugurações, o corpo docente e o diretivo. Ademais, também estavam presentes dados sobre as concepções de educação dos envolvidos nas iniciativas, além de algumas edições apresentarem atas da Câmara Municipal de Campinas contendo discussões a respeito de espaços urbanos e educacionais.
O movimento analítico aqui apresentado é realizado de maneira a contribuir para preencher as lacunas da historiografia da arquitetura escolar do estado de São Paulo. Pompeo de Camargo (2019b), ao realizar o balanço da referente produção, apresenta possibilidades de pesquisa na área, sendo a arquitetura escolar do período imperial em São Paulo um recorte viável de trabalho. Dessa maneira, ao problematizar a formação dessa arquitetura junto ao diálogo de sua materialidade com a cidade, pretende-se trazer possibili-
Destarte, analisando o contexto da sociedade campineira, esta pesquisa traça os planos de constituição das escolas Ferreira Penteado e Corrêa de Mello na década de 1880, discutindo suas formações como monumentos e suas inserções na malha urbana de Campinas. Dessa maneira, colocamse questões a respeito da formação da memória para problematizar a sua materialidade e o seu diálogo com a cidade de Campinas no período mencionado.
dades de leitura para a história da cultura material escolar no estado de São Paulo pelas lentes da nova história cultural. Destarte, analisando o contexto da sociedade campineira, esta pesquisa traça os planos de cons tituição das escolas Ferreira Penteado e Corrêa de Mello na década de 1880, discutindo suas 3 A respeito dos almanaques de Campinas, do jornal Gazeta de Campinas e da imprensa na época ver Galzerani (1998). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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formações como monumentos e suas inserções na malha urbana de Campinas. Dessa maneira, colocam-se questões a respeito da formação da memória para problematizar a sua materialidade e o seu diálogo com a cidade de Campinas no período mencionado.
As escolas Ferreira Penteado e Corrêa de Mello: arquitetura e localização
A Escola Ferreira Penteado foi construída com o financiamento de Joaquim Ferreira Penteado, conhecido como Barão de Itatiba, assim o terreno, a construção e a manutenção da instituição foram financiadas por seus cofres do e seu objetivo com a iniciativa era construir um monumento para celebrar suas bodas de ouro. O jornal Gazeta de Campinas, em um de seus editoriais, descreve a inauguração em 15 de maio de 1881 e aponta a iniciativa como algo que contribuiria com o “progresso da civilização” (Gazeta de Campinas, 19 de maio de 1880). Por sua vez, o projeto do edifício foi realizado por Francisco de Paula Ramos de Azevedo, arquiteto e engenheiro que havia retornado de seus estudos na Universidade de Gante, na Bél gica, em 1879. Em julho do mesmo ano, Ramos de Azevedo realizou na residência de Antonio Nogueira Ferraz uma exposição de seus trabalhos trazidos da Bélgica. Pouco tempo após a exposição, teve acesso aos projetos das escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado, além de ter sido contratado para finalizar a construção da igreja matriz de Campinas. Essas rápidas contratações de Ramos de Azevedo para a realização de trabalhos arquitetônicos em Campinas se deram devido à sua inserção no interior do grupo mandatário da cidade. Filho do Major João Martins de Azevedo4, o arquiteto gozou do status e dos contatos que sua família possuía na cidade. Além disso, ele era vinculado à maçonaria, instância de sociabilidade do período, tendo sido levado para a Loja Maçônica Independência “como aprendiz no dia 17 de outubro de 1873, antes mesmo de sua viagem para a Bélgica” (POMPEO DE CAMARGO, 2019a, p. 92). Dessa maneira, quando discutida a inserção de Ramos de Azevedo na sociedade campineira, devem ser consideradas as relações sociais do arquiteto, tanto as familiares quanto as sociais, visto que a circulação de ideias dentro do grupo mandatário também se dava dessa forma. Quanto à maçonaria, ela deve ser vista como uma instância de sociabilidade que provavelmente teve sua parcela de contribuição para a sua carreira. 4 De acordo com Lobo (1951, p.1), o Major João Martins de Azevedo era um “homem bom” da cidade pertencente ao partido Liberal, sendo “vereador nos períodos de 1853 a 56, de 65 a 68 e de 69 a 72”.
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Ademais, a ideia da importância da educação para o progresso do povo era algo aceito por Ferreira Penteado e aqueles que o rodeavam. A escola tinha o objetivo de fornecer educação ao povo e, de acordo com o discurso de sua criação, tratava-se de uma iniciativa direcionada aos grupos menos abastados daquela sociedade (ANANIAS, 2000, p. 48). O terreno da escola era localizado em frente à casa do Barão de Itatiba, área de sua propriedade. A relação do palacete assobradado, chamado de Palácio dos Azulejos – residência do Barão – com o edifício da Escola Ferreira Penteado constitui um diálogo que leva a processos de organização e espacialização da memória. Dessa maneira, a escola é pensada como uma obra de arte que poderia ser contemplada da residência de Ferreira Penteado. Assim, sua construção em frente à sua residência demonstra a constituição de um monumento que traria maior reconhecimento social aliado à garantia da lembrança póstuma, tendo em vista que durante as décadas finais do império, os investimentos escolares por parte de particulares eram notórios (ANANIAS, 1999, p.88). Em outras palavras, Joaquim Ferreira Penteado, ao construir a escola, também criou um monumento à sua memória aliado à ideia de progresso. O edifício da Escola Ferreira Penteado era térreo e, apesar de ter o modelo de uma escola isolada (com apenas uma sala de aula), era especializado para a educação: tratava-se de uma arquitetura própria com formas construtivas que colocavam a preocupação com a higiene em lugar de destaque. Nesse modelo, são realçados o alteamento do piso em relação ao solo e as janelas dispostas para a circulação de ar e entrada de luz solar (MONTEIRO, 2009, pp. 38-39). Houve, ainda, a utilização de tijolos para a construção, o que demonstra a modernização na técnica arquitetônica, e um frontispício escondendo o telhado de duas águas que carregava a inscrição “Ao Povo, consagra J. Ferreira Penteado”. Havia ainda a preocupação com o isolamento do edifício: um jardim frontal formava uma barreira entre a rua e a entrada da escola. Além disso, os primeiros cômodos eram um vestíbulo, um locutório e um vestiário, sendo que atrás deles havia a sala de aula. Dessa forma, os aposentos funcionavam como barreira entre o ambiente externo e a sala de aula e, assim, possibilitavam o controle de quem adentrasse o prédio. Essa configuração gera “uma direção cuja proximidade com a entrada ou vestíbulo de entrada a faria mais acessível a tais coletivos, mas, ao mesmo tempo, poderia chegar a confundir-se com a portaria ou os serviços administrativos” (BENCOSTTA, 2005, p. 23). Entretanto, tratava-se de um edifício para cinquenta alunos e, nesse modelo, os espaços ocupavam mais de uma função, não sendo um problema para a instituição. Já a sua localização era na região central de Campinas, como já mencionado, em frente ao Palácio dos Azulejos, residência do Barão de Itatiba. O local era marcado pelas ruas Francisco Glycério, Regente Feijó, São Carlos e Ferreira Penteado (Imagem 1). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Imagem 1 - Mapa da Cidade de Campinas em 1900 – destaque circular para as localizações das escolas Corrêa de Mello (superior) e Ferreira Penteado (inferior).
Fonte: Condepacc
A imagem 1 apresenta o Mapa da Cidade de Campinas em 1900, impresso pelo Estabelecimento Gráfico V. Steidel & C. S. Paulo. A representação foi publicada no almanaque Campinas em 1901, organizado por Leopoldo do Amaral, e confeccionada em uma escala de 1 : 10 000, apresentando o relevo da cidade e as indicações de edificações, como o Theatro S. Carlos (2), a Matriz Nova (3), a Praça José Bonifácio (4), o Theatro Rink (6) e a Câmara Municipal (14), todos eles próximos à Escola Ferreira Penteado, apresentada no destaque realizado no mapa. A análise da localização da escola demonstra que ela estava inserida em uma região central da cidade, próxima a edifícios administrativos, religiosos e culturais. Essa não era uma zona de possível expansão da cidade, ou, como será apresentado no caso da Escola Corrêa de Mello, em um ambiente também de crescimento, mas em um local marcado por pobreza na cidade. A Escola Corrêa de Mello foi criada a partir da iniciativa de fazendeiros ligados ao Clube da Lavoura e da Câmara Municipal de Campinas. Em momento inicial, as discussões marchavam para a construção de um monumento em homenagem ao botânico Joaquim Corrêa de Mello. A ideia era colocar uma estátua na praça da Igreja Matriz nova, entretanto, a Câmara Municipal mudou de ideia por não achar mais apropriada a colocação da homenagem na praça por
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conta de questões estéticas (AMARAL, 1927 p. 254-255). Dessa maneira, surgiu a ideia da criação de uma escola primária direcionada para o povo. O Largo do Jorumbeval, território municipal e uma região alagadiça e local de depósito de lixo, foi doado para a construção da escola e passou a ser chamado de Largo Corrêa de Mello. Apesar da aprovação do local e da doação da prefeitura, houve resistência. Antônio Quirino dos Santos, então suplente na Câmara dos Vereadores e irmão de Joaquim Quirino dos Santos, se negou a participar da comissão de demarcação do Largo do Jorumbeval para a construção da escola (Gazeta de Campinas de 1 de abril de 1879), afirmando que [t]enho a ponderar a v. s. que, quando se tratou de fazer a cessão de parte d’aquelle largo para dito fim, eu me oppuz a tal medida fazendo ver entre outras razões que, o referido largo devia ficar reservado para um futuro mercado e mercadinho, visto que a cidade se estende diariamente para as respectivas circunvizinhanças por causa da influencia e importância que lhes dá o cruzamento das estradas de ferro (SANTOS, 1879, p. 2).
Posteriormente, em 1906, construiu-se o mercado municipal, em área defronte à escola, Entretanto, essa ideia já circulava em Campinas antes da construção da Escola Corrêa de Mello. Situado próximo ao Largo do Jorumbeval, o Colégio Florence enfrentava problemas por conta da região. Os pais das alunas do colégio chegaram a publicar notícias nos jornais da cidade exigindo providências da Câmara Municipal, por conta do “fluxo de emanações pestíferas” (RIBEIRO, p. 47, 1993). Ainda que, em 1876, construções de melhorias foram realizadas na região do brejo, como pavimentação e iluminação a gás, a situação do local não melhorou. Em 1880, período de construção da escola Corrêa de Mello, a região era descrita como como uma área de “moradores turbulentos” e a “imprensa pedia providências ao Delegado de Polícia porque nas imediações da Escola em construção ‘as mulheres descompostas e os sujeitos de má nota postavam-se lá a proferir nauseabundas obscuridades’” (SALLES, 1978, p. 35). A área, apesar de estar nos limites do perímetro urbana da cidade, era uma região periférica, marcada pela exclusão social, próxima aos trilhos dos trens. A imagem 1 também apresenta em destaque a localização da Escola Corrêa de Mello na malha urbana de Campinas, representada no mapa pelo número um. A partir daí, tem-se a delimitação da área pelas Ruas Álvares Machado, José de Alencar, Benjamin Constant e, em frente ao edifício, havia a Rua Bernardino de Campos, posição que, para o período, era distante da região central da cidade: tratava-se da sangria do perímetro urbano de Campinas. Por sua vez, a imagem 2, que veremos a seguir, apresenta a Escola Corrêa de Mello em 1900 Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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e, apesar de não terem sido encontradas informações sobre sua autoria, ela fornece elementos para pensar a arquitetura e a localização da escola. A fotografia nos apresenta o edifício elevado em relação à rua com um pequeno recuo e um muro que o isolava dela. Essa posição garantia monumentalidade, característica fundamental para um prédio que cumpria a função de resguardar a memória de Joaquim Corrêa de Mello, ainda que em uma região periférica e marcada pela pobreza da cidade. A construção da escola foi realizada por Francisco de Paula Ramos de Azevedo, no entanto, não foi encontrada sua planta original, sendo a análise feita a partir da imagem 3, que veremos a seguir. Trata-se de uma planta contida em um requerimento de reforma de 1935 que foi assinado pelo Engenheiro Chefe da Prefeitura de Campinas. Embora sua assinatura não nos conceda seu nome, o documento permite analisar a estrutura da escola. O edifício era composto por quatro cômodos e um corredor central, com um porão que garantia o alteamento do piso em relação ao solo e janelas que cobriam em quantidades iguais os lados do edifício, garantindolhe proporcionalidade. A circulação de ar e a insolação, aliadas ao pé direito de cinco metros, também são observáveis e se davam em prol das condições de higiene internas. Havia, ainda, um telhado de quatro águas, encoberto pelo frontão com o nome da escola. Imagem 2 - Escola Corrêa de Mello – 1900
Fonte: Arquivo de fotografias do Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas
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Imagem 3 - Recorte da Planta de 1935 da Escola Corrêa de Mello, apresentando o pavimento térreo e corte
Fonte: Arquivo Municipal de Campinas; Requerimento nº: 1027/17 – 05 – 1935.
As escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado como futuro e memória
As arquiteturas da Escola Corrêa de Mello e da Escola Ferreira Penteado eram sinônimos de modernidade em um ambiente em que edifícios escolares especializados começavam a surgir. Ramos de Azevedo, nesse contexto, foi um artífice do futuro da arquitetura escolar que, consequentemente, contribuiu na formação de um ideal de sociedade por parte do grupo mandatário de Campinas. Ao analisar as escolas em suas posições na malha urbana da cidade, essas questões tornam-se mais perceptíveis. Entretanto, é necessário compreender que Paul Ricoeur destaca o urbanismo como sendo a escala em que melhor se percebe o trabalho do tempo no espaço. para o historiador francês, narrar e construir são atos que operam um mesmo tipo de inscrição, ‘uma na duração, outra na dureza do material’. dai sua afirmação de que todo edifício se inscreve no espaço urbano como uma narrativa em um meio de intertextualidade. os sentidos do novo se chocam com a significação daquilo que já estava lá, fazendo com que a cidade confronte, no mesmo espaço, épocas diferentes que se apresentam ao mesmo tempo, a ver e a ler. em termos discursivos, podemos considerar que narrar e construir não são atos em sentido pragmático, mas sim gestos no nível simbólico que materializam, em palavras ou tijolos, interpretações a respeito da realidade histórico-social (FEDATTO, 2013, p. 37-38) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Assim, a cidade é vista como uma gramática espacial, sendo a arquitetura seu ponto de início e o edifício urbano, como já apontado, “uma narrativa em um meio de intertextualidade” (FEDATTO, 2013, p. 37-38). Dessa forma, a arquitetura e a cidade traçam interações constantes entre elas, em que uma ressignifica e a outra, fazendo emergir, assim, novos sentidos, interpretações para a materialidade. Dessa forma, no efeito de unidade de uma cidade se produz um lugar de onde (se) dizer a (sua) história. aí está marcada a sua função-autor. Isso que se apresenta como materialidade urbana é resultado de acomodações e resistências silenciosas que se escondem nos detalhes, debaixo de camadas de tinta, sob uma fachada de concreto, atrás de um novo nome ou no vazio da demolição... assim, o texto urbano vai construindo e refletindo uma rede de saberes que se tornaram cotidianos (nomes próprios, sistemas de ideias, filiações políticas). ao se situarem, esses saberes recortam sentidos para o espaço e formulam as construções como lugares de significação para diferentes posições-sujeito (posições em relação à instituição, ao lugar social: alunos, fiéis, funcionários, nobres, pobres, gentios, escravos, cidadãos, leitores, eleitores, contribuintes...). esse embate absorve determinados sentidos e também deixa brechas para a irrupção de imprevistos. como salienta m. pêcheux, é importante que se abordem, de alguma forma, “as condições (mecanismos, processos...) nas quais um acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência própria a uma memória (FEDATTO, 2013, p. 27).
Nessa perspectiva, mesmo com a colocação de planos e ideais de cidade, os edifícios na malha urbana cumprem uma função gramatical, entretanto incerta, na medida em que não se controlava o próprio futuro. No caso da Escola Corrêa de Mello, ao ser edificada no Largo do Jorumbeval, ela representava uma intervenção do grupo mandatário na área e uma imposição a partir daquele que a ela não pertencia. Foi demarcada, então, uma relação e poder que silenciou os significados surgidos dos locais em relação ao lugar. A mudança do nome do Largo fez com que fosse estabelecida uma relação de posse entre a figura de Joaquim Corrêa de Mello e o local. O espaço não carregava apenas a lembrança do sujeito, mas também estabelecia a apropriação de uma região e impunha seu posicionamento no urbano, ratificado com a presença do elemento material de mesmo nome: a Escola Corrêa de Mello. Assim, tanto a mudança do nome do Largo quanto a construção da escola foram dadas por elementos que ocupavam a Câmara Municipal e que marcavam a lembrança de indivíduos exógenos, em especial o homenageado, além da lembrança constante das instituições de poder local. Por sua vez, arquitetura escolar lá construída trouxe novas concepções arquitetônicas, marcadas pela higiene e pelo controle dos corpos, sendo resultado da expressão visual dos ideais e
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dos valores do grupo mandatário (SCHORSKE, 1989, p. 44). Além disso, essa nova arquitetura também apresentava o saber institucionalizado que se espalhava e tentava se impor pelo urbano. Dessa maneira, a Escola Corrêa de Mello emergiu na malha urbana escrevendo-a e sendo escrita nela, também expressando a ânsia de futuro de um grupo social e a vontade da eternização a partir dessa projeção no tempo, impostos em meio a um ambiente que se chocava com esses desejos. A Carta aos Posteros publicada pelo Diário de Campinas de 07 de abril de 1879 e enterrada em uma cápsula do tempo nos alicerces do edifício reforça essa ideia: [s]e o tempo que tudo destroe apagar um dia da superfície da provincia de S. Paulo a nossa florecente cidade de Campinas, é possivel que vós, os filhos desse remoto futuro, venhaes procurar nas ruinas da cidade extinta os traços que caracterisaram a vida dos seus habitantes, o seu moral, o seu progresso. Quizeramos traçar-vos aqui todas essas informações de modo á poupar-vos, a vós futuros archeologos, o muito estudo e trabalho que vos serão necessarios para reconstituirdes a história de Campinas, dos seculos passados. Não o comporta, porém, o espaço de que dispomos nem o permite o tempo que devemos aos nossos labores quotidianos. A vossa curiosidade, os vossos bibliothecarios, os vossos archeologos hão de vir procurar nas ruinas dos nossos edificios os fragmentos da nossa geração. Não é, porém no explendor da architectura, nem no colossal da fórma que vós podereis saber do nosso adiantamento: é na idéia que presidiu á sua edificação. Estas linhas que vos dirigimos, em fins do seculo XIX, encontral-as-heis sotterradas nos alicerces de uma casa. Esses alicerces, meus senhores, são de uma escola que nós contruimos para glorificar a memoria de um grande brasileiro e ensinar a ler os nossos filhos. (SALLES, 1978, p. 86.)
O texto marca a preocupação com o futuro e com a herança que seria deixada para as próximas gerações, sendo também uma tentativa de se projetar no futuro de acordo com os próprios ideais da época. Tratava-se, portanto, de um movimento de tentativa de criação de uma memória marcada pelos edifícios, pelas formas e, principalmente, pelas ideias relacionadas à educação no período. Assim, ao apresentar um hipotético futuro composto por ruínas a serem estudadas, tentou-se mantê-las como monumento representante do período; tomando como grandiosas as concepções de educação daquele tempo. Dessa maneira, o trecho aqui destacado reforça as características memorialísticas daquela arquitetura escolar enquanto cria um processo seletivo de informações, na medida em que estabelece o que seria importante ser lembrado do período. Quando se analisa a escola Ferreira Penteado, faz-se um movimento analítico um pouco difeResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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rente, visto que a escola em questão não se localizava em uma zona de possível expansão da cidade, como era o caso da Escola Corrêa de Mello, que estava em um ambiente também de crescimento, mas em um local marcado por pobreza na cidade. Como já mencionado, a escola localizava-se no centro da cidade, região próxima a alguns dos edifícios das principais instituições de Campinas, em frente à residência de Joaquim Ferreira Penteado, em terreno de sua propriedade. O edifício da Escola Ferreira Penteado, assim como o da Escola Corrêa de Mello, é um monumento, “uma forma que silencia outras, condição para que o sentido se espacialize” (FEDATTO, 2013, p. 214). Sendo assim, ela cria uma relação entre seu tempo e o futuro, com o objetivo de se eternizar a partir da arquitetura e do ponto de sua formação da malha urbana, assim como dos sujeitos, das ideias, das concepções de mundo e dos planos do próprio futuro. Trata-se, então, de uma eternização no interior de um organismo (centro da cidade) que constantemente se modifica e se ressignifica. Quando analisada a construção da memória material de Joaquim Ferreira Penteado, três elementos são notados na malha urbana de Campinas: a Escola Ferreira Penteado, sua residência e a rua de mesmo nome. São artefatos que se complementam tanto na constituição da memória quanto do urbano, assim, o imponente Palácio dos Azulejos, residência de Joaquim Ferreira Penteado, apresenta seu poder social e econômico. Por sua vez, a rua atravessa a cidade transformando a lembrança do oligarca em uma referência no plano da cidade. O colégio, em frente à residência, é uma construção mais modesta que visa transmitir a ideia de benevolência e caridade por parte de seu financiador. Ademais, há a inscrição “Ao Povo, consagra J. Ferreira Penteado” na construção, o que reforça esse sentido material ao apresentar um caráter religioso na ação. Ainda, o termo “consagra” cria a percepção de que o edifício foi feito por uma figura sagrada, sendo apresentado como fruto de um gesto sagrado. Dessa forma, a residência, com sua arquitetura monumental e de clausura, que estabelece limites entre a vida privada e o espaço público, engrandece a imagem do Barão de Itatiba, sendo a escola materializada como um presente enviado por aquele que estaria acima dos presenteados. A relação é reforçada na medida em que a escola é fruto de uma comemoração privada (as bodas de ouro do Barão) e é materializada como um presente para o povo. No caso, esse presente seria a educação e o saber instituído e delimitado pelo grupo social do Barão para a formação de uma sociedade idealizada, que seria grata à sua figura pelo gesto realizado. Além disso, Theodoro (1996, p. 203) aponta que Ramos de Azevedo, responsável por edificar as duas escolas em questão, ainda que sua formação tenha se dado na Europa, teve a capacidade de absorver os costumes brasileiros e “realocar as antigas necessidades do cidadão em edifícios privados e públicos, analisando o espaço para definir os novos pressupostos cognitivos”. Dessa
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maneira, há uma relação entre “o princípio cognitivo que gerenciou parte da arquitetura colonial brasileira e aquele que sustentou a obra de Ramos de Azevedo”. Tais preceitos se tornam visíveis na medida que se pensa “a lógica construtiva que norteou a arquitetura colonial brasileira transformada em razão construtiva no trabalho de Ramos de Azevedo” (THEODORO, 1996, p. 205). Ainda, o fato de a escola Ferreira Penteado estar situada, como já mencionado, em frente à residência do Barão de Itatiba e em terreno de sua propriedade, estabelecia o controle do sujeito sobre a instituição de ensino de maneira a hierarquizar as relações entre aqueles que teriam acesso a ela e seriam agraciados pelo Barão e aqueles que não seriam. Isso estabelecia certa proximidade apesar da escola representar uma divisão entre formalidade e informalidade. Tratava-se de uma instituição dedicada ao povo, mas somente aos indivíduos ligados ao proprietário. Essa relação era dada de maneira a marcar as divergências sociais, entretanto, de maneira dessemelhante ao que ocorria em na tradição brasileira acostumada a demarcar “a diferença dentro de um mesmo espaço (casa grande e senzala são parte de um todo)” (THEODORO, 1996, p. 204). A relação era dada a partir de uma roupagem de divisão do público e do privado e, no caso da escola Ferreira Penteado, essa divisão era dissolvida pelas bodas de ouro do Barão de Itatiba. Já a escola Corrêa de Mello era inserida em um ambiente de exclusão. Tratava-se de uma arquitetura considerada moderna pela elite e destoante em relação ao seu perímetro. Esse elemento novo em meio a um local de exclusão social era o marco de um monumento que, apesar de ter sido construído em terreno do município partir de uma agremiação com fins públicos, materializava as diferenças sociais daquela sociedade, assim como as visões de mundo da elite, sendo mais um local controlado pelo grupo mandatário da cidade, que estabelecia os critérios e, consequentemente, frequentava aquele ambiente escolar (ANANIAS, 2000, p. 61). Isso demonstra a falta de divisão clara entre o público e o privado mesmo em relação a um edifício escolar. As escolas, além de marcarem uma arquitetura especializada e direcionada para a educação, eram representações de um modelo de sociedade que o grupo mandatário queria formar, com ideal de progresso pautado na formação de instituições liberais como a escola. Em resumo, essa era uma construção voltada para os modelos de controle, sendo a disciplina dos corpos uma das características centrais dessa arquitetura. Tratava-se, portanto, de um modelo industrial disciplinar, tendo a higiene como fator disciplinador voluntário, com características que marcavam o surgimento de um modelo moderno de arquitetura5 que tinha sua visão na constituição de uma sociedade do futuro. 5 A palavra “moderno” utilizada aqui se trata da arquitetura a partir do século XIX. O termo é extraído a partir das análises de Olsen e Pétursdóttir (2014, p. 3) a respeito das mudanças nas cidades a partir do referente século. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Considerações finais
Como pudemos ver ao decorrer deste artigo, durante as décadas finais do período imperial, desenvolveu-se em Campinas uma arquitetura escolar especializada, criando espaços escolares voltados especificamente ao ensino. Esses modelos de edifícios se posicionavam na malha urbana de maneira a escrevê-la e transformá-la a partir de projetos educacionais e de concepções de futuro do grupo que às idealizou. Esse grupo era composto por elementos dos três partidos do império que carregavam laços de parentesco e mantinham aproximação pessoal entre eles. Essa característica também contribuiu para que suas ideias convergissem e para que iniciativas comuns fossem tomadas, como a construção de escolas em Campinas. As escolas Corrêa de Mello e Ferreira Penteado foram iniciativas tomadas por esse grupo que controlava as instâncias políticas e econômicas de Campinas, sendo edifícios com características específicas de higiene e isolamento, destinados exclusivamente às concepções educacionais do grupo. Ademais, eles estabeleciam relações com o urbano e foram construídos para serem também monumentos. A Escola Ferreira Penteado foi formada para representar a memória de Joaquim Ferreira Penteado e compunha uma arquitetura que dialogava com o seu entorno de maneira a ressaltar o poder e a benevolência de seu financiador. Seria a visão de alguém acima do povo que os presenteava com a instituição escolar e que se apresentava como sujeito que levou instrução à população de maneira a contribuir para o seu progresso, ao mesmo tempo em que o Palácio dos Azulejos, sua residência, refletia seu poder. Mais tarde, uma das ruas do entorno de seu casarão passou a se chamar Rua Ferreira Penteado, fortalecendo ainda mais a memória instituída pelo próprio Barão, refletida também como uma ânsia pelo futuro, pois trazia a ideia de eternizar-se através da cidade. Ademais, embora a Escola Ferreira Penteado tenha sido um edifício financiado apenas por um indivíduo, ele estava vinculado a um grupo que reproduzia as ideias de educação como base para uma nova sociedade, em que era pungente a necessidade da construção de edifícios escolares para esse fim. Esses prédios também ligavam a imagem de seus financiadores aos ideais pelos quais eram construídos, sendo notória a preocupação com a criação de uma memória para o futuro. Formavam-se, assim, monumentos que marcavam a malha urbana de Campinas com a figura desse grupo.
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A Escola Corrêa de Mello também foi uma instituição estabelecida como construção monumental na cidade de Campinas. Sua região era tida como insalubre, ocupada pela população excluída da cidade e foi construída enquanto elemento material de imposição na área da memória daqueles que dominavam as instâncias políticas e econômicas na cidade, representando o estabelecimento da educação e das instituições liberais como monumentos. Além disso, a escola também era símbolo de progresso e tinha o objetivo de levar as ideias educacionais do grupo mandatário da cidade ao povo. Sua função também é ligada ao processo de eternizar o nome de Joaquim Corrêa de Mello, sendo ele um membro do grupo que estabelecia aquilo que era instituído ou não na sociedade do período. Dessa maneira, o movimento realizado pelo grupo mandatário da cidade tinha a educação como ponto de formação de um futuro que carregava as memórias de seus idealizadores, sendo essas as instituições que criariam um modelo de sociedade pautada em seus preceitos. Os edifícios mencionados se aproximam na medida que eram monumentos que, apesar de apresentarem uma roupagem europeia, eram marcos da “passagem rumo a um universalismo [que] foi constituído a partir de uma individualidade europeia desfrutada apenas pela elite” (THEODORO, 1996, p. 204). Dessa maneira, demarcavam simbólica e materialmente as divisões sociais estabelecidas naquele tempo. Como aponta Pompeo de Camargo (2019a, p. 132) “ainda que há tempos a historiografia tenha percebido que as diferenças entre o popular e a elite não
Destarte, esta pesquisa quis contribuir para a compreensão das relações da arquitetura escolar campineira da década de 1880 como forma de estabelecer memórias a partir da relação com a malha urbana ao mesmo tempo que impunha um ideal de futuro na sociedade, que partia de interesses pessoais de eternização daqueles que detinham poder. As memórias foram marcadas pelas figuras que constituíram as instituições e que estabeleceram formas de divisões sociais a partir da visão de instituições de uso público e de ambientes privados e que, ainda assim, se fundiam de acordo com os interesses daqueles que as controlavam.
são nítidas ou estanques, viu-se que na Campinas do final do período imperial o esforço do grupo mandatário foi de delimitar em pedra e cal as diResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 119-136, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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ferenças sociais entre as pessoas”. Esse esforço teve Ramos de Azevedo como uma das figuras responsáveis, tendo em vista que ele, apesar das tentativas de estabelecer uma “cidade estratificada que garantisse ao cidadão circulação eficiente” (THEODORO, 1996, p. 204), não podia desprezar as características daquela sociedade e os desejos de seus clientes. Destarte, esta pesquisa quis contribuir para a compreensão das relações da arquitetura escolar campineira da década de 1880 como forma de estabelecer memórias a partir da relação com a malha urbana ao mesmo tempo que impunha um ideal de futuro na sociedade, que partia de interesses pessoais de eternização daqueles que detinham poder. As memórias foram marcadas pelas figuras que constituíram as instituições e que estabeleceram formas de divisões sociais a partir da visão de instituições de uso público e de ambientes privados e que, ainda assim, se fundiam de acordo com os interesses daqueles que as controlavam.
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Recebido em: 8 de março de 2019 Aprovado em: 21 de maio de 2019
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DOI: 10.20396/resgate.v27i1.8654911
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A cidade, o progresso e o espelho quebrado de Narciso: São Paulo entre a compaixão e o amor de si próprio (1890 a 1927) City, progress and the broken mirror of Narcissus: São Paulo between compassion and self-love (1890-1927) Ricardo Felipe Santos da Costa*
Resumo
Abstract
Com o advento da República e o desenvolvimento da economia ligada ao café, verificam-se nas sessões da Câmara Municipal de São Paulo, de forma quase regular, referências orgulhosas ao progresso da cidade. Inspirando-se no método do historiador Michel de Certeau, porém, este artigo busca os desvios das falas, entre a cidade que se pretende, normatizada, e a cidade que se vive. A miséria que desfila nas ruas entre novos viadutos, praças arborizadas e o Theatro, não espelhava os ideais civilizatórios acalentados em uníssono pelos legisladores. Relativizando o bom ou mau gosto, diante das contradições de uma cidade narcisista, este estudo pretende colocar os seus esforços em analisar uma realidade urbana complexa, com os seus conflitos e representações. Para tal, propõe-se trabalhar com a série documental constituída pelas Actas e Annaes da Câmara Municipal de São Paulo, além de jornais da época. O período cronológico contempla dois marcos legais: o Código Penal (1890) e o Código de Menores (1927). Assim, entre a compaixão e o amor de si próprio, com relação ao escândalo da miséria e à agonia dos que a vivem nas ruas, este artigo investiga o tratamento dado pela municipalidade à filantropia, bem como as suas intenções.
With the advent of the Republic and the development of the coffee associated economy, it is possible to observe proud mentions of the city’s progress, in the City Council of São Paulo’s sessions almost regularly. By taking Michel de Certeau’s methodological framework as reference, however, this article searches for speech deviations between the aforethought standardized city and the actual city where people lived. The misery displayed through the streets between new viaducts, green squares, and the Municipal Theatre does not mirror the civilized ideals cherished in unison by the legislators. Putting aside matters of good and bad taste, and facing the contradictions of a narcissistic city, this study intends to analyze a complex urban reality, with its own conflicts and representations In order to do so, we researched series of documents constituted by the Minutes and Annals of the City Counciland newspapers. The chronological period contemplates two legal marks: The Penal Code (1890) and the Children’s Code (1927). Thus, this essay investigates the treatment given by the municipality to philanthropy, as well as its intentions, in this relation between compassion and self-love, regarding the scandal of misery and the agony of those who live in the streets.
Palavras-chave: São Paulo (Cidade) – História
Keywords: São Paulo (City) - History 1890-1927; Poverty; Social Institutions; Social Control; Childhood.
- 1890-1927; Pobreza; Instituições sociais; Controle Social; Infância.
* Doutorando em Educação pela UNICAMP, na linha de pesquisa Educação e História Cultural. Mestre em Educação pela mesma instituição (2017). Formado em História pela Universidade de São Paulo (1992). Membro do grupo de pesquisa PROEPHE (Programa de Estudos e Pesquisa Historiar a Educação) da FE/Unicamp. Atualmente é professor titular do Centro Universitário Estácio São Paulo. E-mail: felipehistoria@uol.com.br Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o O progresso, a miséria e as imagens além do espelho
A
o ser removido para uma área isolada sob o Viaduto Dr. Plínio Queiroz pela Prefeitura de São Paulo, em 04/01/2017, Jaziel de Almeida Luís, morador de rua, 52 anos, afirmou:
Tiraram a gente da calçada porque passa gente importante aqui. Fica feio para a Prefeitura ver um monte de gente de rua. Nos varreu de lá e botou aqui. Deus queira que eu esteja enganado. Mas, daqui a pouco ele coloca uma tela aqui [nas grades debaixo no viaduto] para esconder a gente da sociedade. (SOARES, 2017)
De fato, dias depois, a tela foi colocada embaixo do viaduto, impedindo que os seus moradores fossem vistos pelos pedestres e motoristas. Segundo a então Secretária de Assistência Social, Sonia Francine, foi para o bem dos próprios moradores de rua, pois a tela foi colocada para “a proteção deles” (FOLHAPRESS, 2017). Como harmonizar a representação de cidade desenvolvida, da capital dos arranha-céus, com a miséria escancarada pelas esquinas e praças? Tenta-se neste estudo uma resposta, um entendimento, ao menos, acerca de uma pobreza que não se quer encarar, pois olhá-la seria ver a outra face de uma mesma moeda, qual seja, a modernização conservadora (PERLATTO, 2014, p. 463), que depende dessa mesma pobreza para se mover sem alterar minimamente as estruturas sociais. Assim, uma visão naturalizada da pobreza1, como uma fatalidade, sem História (TELLES, 2013, p. 33), apresentou-se muito cedo. E ainda persiste. 1 Conforme Vera da Silva Telles (2013, p. 9), tal viés “projeta a pobreza em uma espécie de paisagem que incomoda a todos, mas que, tal como natureza, se estrutura fora e por fora da trama das relações sociais – um mundo sem autores e sem responsabilidades”.
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Reportando-se ao passado colonial da cidade de São Paulo, bem como da capitania de São Vicente como um todo, a pobreza, porém, não é escondida. Mas utilizada para a construção de uma memória de coragem do povo paulista, de um espírito aventureiro representado pelos bandeirantes que, em razão das condições locais precárias, enfrentavam a fome e as intempéries, atravessando caminhos e cortando fronteiras, lutando pela sobrevivência (HOLANDA, 1995, p. 42). Tecendo os fios da História, este artigo busca resgatar uma compreensão possível acerca da pobreza, de forma geral, e, particularmente, dos filhos dos outros2, da miséria das crianças nas ruas, exploradas nas fábricas ou abandonadas entre os muros das instituições sociais – sobretudo os abrigos, reformatórios e orfanatos. Outro aspecto consiste em entender como a pobreza é usada por aqueles que a negam enquanto produto social, colocando-a como simples fruto do acaso, como uma tempestade imprevisível ou, ainda, decorrente da inépcia e da vida infame dos que a sofrem. Assim, no contrapé dos discursos evolucionistas, que exaltam a passagem para a República, sob o lema positivista da “ordem e progresso”, esta pesquisa procura o outro lado da cidade, que se quer invisível e silenciado. Ao invés de contornar ou amordaçar as falas desviantes, que contrastam com a representação de progresso da cidade, a proposta aqui é realçá-las, tendo em vista que a “formalização da pesquisa tem, precisamente, por objetivo, produzir ‘erros’– insuficiências, falhas – cientificamente utilizáveis” (CERTEAU, 2013, p. 77). Lendo os pronunciamentos dos vereadores e apurando as subvenções públicas municipais aos pobres na cidade de São Paulo, em especial às crianças, no período entre a aprovação de duas leis federais importantes para o ordenamento social pretendido, o Código Penal (1890) e o Código de Menores (1927), o resultado desta pesquisa coloca em xeque o sentido de modernidade da recém-proclamada República (1889). Particularmente na cidade de São Paulo, que procurou apagar simbolicamente um recente passado escravocrata, de atraso, para alcançar um grau de reconhecimento civilizatório. Assim como a ação da atual prefeitura para esconder a pobreza, procurando camuflar os contrastes de uma permanente modernização conservadora, a cidade dos primórdios da República, nos recentes tempos sem os grilhões da escravidão, utilizou-se dos dois Códigos – além da Constituição (1891) e do Código de Posturas (1886) – 2 À margem de um mundo particular da infância, protegido, segregado do mundo adulto, tal referência – os “filhos dos outros” ‒ é uma tentativa de categorizar as crianças pobres inseridas precocemente no mundo adulto do trabalho, vivendo desde cedo as lutas pela sobrevivência. A esse respeito, com relação ao trabalho infantil, o trabalho de Esmeralda Blanco B. de Moura (1995) estuda os acidentes que mutilavam ou matavam as crianças operárias, supostamente protegidas pelas fábricas, que as tiravam das ruas. Sobre a sobrevivência das crianças nas ruas, com ou sem a companhia dos pais, na mendicância, trabalhos informais ou prostituição, neste período da Primeira República na cidade de São Paulo, são referências as pesquisas de Maria Inez Borges Pinto (1994) e Boris Fausto (1984). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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para legitimar o aparato de intimidação dos pobres, considerados como potencialmente perigosos3. Na compreensão do tratamento legal dado aos pobres, particularmente às crianças abandonadas, é relevante colocar o Código Penal (1890) em relação ao Código Civil (1916), observando-se o contraste social: enquanto o primeiro, criminalizava a pobreza, a mendicância infantil, com ou sem os pais, estabelecendo a idade a partir de 9 ou 14 anos para a imputação do crime (se com ou sem discernimento do ato), o outro, debruçava-se sobre a propriedade, a herança e o patrimônio das famílias abastadas. Já no Código de Menores (1927), evidenciava-se o papel de tutela do Estado. Para alcançar a cidade dos planos dos vereadores, representantes da “boa sociedade” paulistana, frente às mazelas sociais advindas de uma estrutura escravocrata pouco tocada, recorreu-se à higienização social4, tentando segregar a pobreza para longe dos olhos da face civilizada da cidade. Para isso, a legislação foi um instrumento, criminalizando a popular capoeira, a mendicância e a “vadiagem”, conforme os Art. 399 a 402 do Código Penal (1890). A “vadiagem” era um crime especificado para aqueles que não tinham recursos, sendo um disfarce para o desemprego5 e dispensando de tal pecha os ricos. A estigmatização da criança pobre, na/de rua, classificada pela lei como “menor”6, propondo-se o seu isolamento em institutos disciplinares, também contribui para a almejada faxina social, pelo viés da legislação e repressão por esta legitimada. Outra forma de higienização social – que funcionava com o suporte da lei – eram as reformas urbanas, jogando os pobres para as franjas da cidade. Efeito da especulação imobiliária nas áreas urbanizadas, a exemplo do que ocorria no Rio de Janeiro, bem como das exigências do 3 A categoria “classes perigosas” foi utilizada por Louis Chevalier (1911-2001) na obra Classes laborieuses et classes dangereuses pendant la première moitié du XIXéme siècle (1958), sem tradução para o português. Bresciani (1985, p. 126) afirma que o historiador francês “nos conduz através dos relatos dos literatos, administradores, médicos e pensadores franceses contemporâneos que se preocuparam com a (...) figura da pobreza, onde o trabalhador, o desempregado e o vadio se confundem numa mesma imagem ameaçadora”.
4 Sobre a categoria “higienização social”, Chalhoub (1996, p. 20) aborda, em uma “cidade febril”, a capital do Império, a relação estabelecida pela sociedade entre as doenças transmitidas pelos pobres e a política de isolamento a que eram submetidos. Nicolau Sevcenko (2010) associa no Rio de Janeiro, então Capital da República, a Revolta da Vacina à política de remanejamento da população pobre, após a reurbanização do centro da cidade. Com a valorização do terreno das áreas centrais afrancesadas, os moradores dos cortiços derrubados foram empurrados para a periferia, ou seja, favelas. 5 Conforme Ligia da Silva, em comentário a um artigo de Boris Fausto no livro Crime, Violência e Poder, organizado por Paulo Sérgio Pinheiro (1983, p. 213), “a categoria ‘vadiagem’ esconde [...] uma situação social de desemprego em que vivem os ‘desocupados’ e revela a visão que as classes dominantes difundem sobre o caboclo nacional”. 6 Para Fernando Londoño (1995, p. 129) e Edson Passeti (1987, p. 18), o conceito “menor”, durante a década de 1920, com a criação de leis contemplando as crianças e jovens infratores, foi gradativamente se transformando em uma expressão para designar a infância criminalizada, passando a ser um estigma social para as crianças pobres, sobretudo abandonadas. Estas leis foram concentradas no Código de Menores, em 1927, reforçando o preconceito – já que contemplava especialmente as famílias em situação de vulnerabilidade social. Dessa forma, aos poucos, as palavras criança e menor passaram a ter um caráter socioeconômico.
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Código de Posturas (1886)7, com relação ao padrão exigido para as construções das casas (recuo da rua, distância lateral, abertura de janelas e portas, etc.), arruamento e, ainda, do tipo de comportamento regulamentado e, até, roupas normatizadas, lembrando que as regras do Código – ainda que legalmente válidas para toda a cidade – eram cobradas particularmente nas ruas do centro urbanizado da cidade (ROLNIK, 1997, p.85). Finalmente, a filantropia compôs o aparato de higienização e controle social, com a sistematização da assistência social, numerando, classificando e institucionalizando os pobres, em orfanatos, reformatórios e asilo para mendigos. Por isso, fazendo-se o levantamento das verbas sob a rubrica Auxílios/Subvenções nas Actas e Annaes da Câmara Municipal de São Paulo (1890-1927), procurou-se tabular as principais instituições assistenciais, em termos de recebimento de recursos públicos municipais, examinando-se o funcionamento dessas instituições e verificando o que havia de compaixão – mas, também, de controle social disfarçado.
As cidades de São Paulo: entre o planejamento, a realidade e as suas representações
Quando se pensa em um projeto civilizador, cioso de uma beleza ideal, pode-se avaliar que – assim como os entulhos das obras modernizadoras – a pobreza tenha que ser removida. Menos de três meses antes da Proclamação da República, em agosto de 1889, o jornal O Estado de São Paulo pedia a atenção da polícia para os mendigos que “enxameavam as ruas” da capital, o que não seria mais admissível, tendo em vista a instalação do Asylo de Mendicidade (1885). Segundo o periódico, “em toda parte sempre haverá pobres; mas é preferível remetê-los para o Asylo do que consentir o triste espetáculo da exibição da miséria pelas ruas de uma capital opulenta” (18/08/1889, p. 1). A pobreza, assim, é tratada como uma fatalidade apolítica a ser escondida, desprovida de História, não sendo relacionada ao passado escravocrata dos nacionais pauperizados e ao papel social imposto aos imigrantes, que vieram em sua substituição. É simplesmente um estorvo a ser contornado pela benemerência da sociedade e do Estado, travestida com tons humanitários ou de caridade cristã, como se depreende pelo chamamento do jornal 7 Em São Paulo, o Código de Posturas (1886), que continuou em vigor após a Proclamação da República, restringia o uso da cidade nas áreas centrais, também com relação às atividades dos ambulantes e à prostituição. Depois, foi complementado com o Código Sanitário de 1894, que proibiu novos cortiços, provocando a ida dos pobres para os bairros mais baratos, alagadiços ou perto das fábricas, quando não contemplados por uma higiênica vila operária. Segundo Sobrinho (2013, p. 2017), “a higienização dos espaços públicos e o sonho de limpeza e disciplinamento das condições de vida dos mais pobres” perpassam os projetos urbanísticos e a ideia de modernidade, inicialmente em Paris e, depois, transplantados pelas nossas elites. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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aos “corações sensíveis”, acerca do recolhimento dos mendigos. Mas, neste caso, fica evidente que o tratamento despendido aos pobres visava fazer uma faxina social na “capital opulenta”, segregando os miseráveis para longe daqueles que a pretendiam civilizada. Dessa forma, a proteção reivindicada não é para os mendigos, inclusive crianças, reclusos no Asylo de Mendicidade, mas para os que estão fora dos seus muros, os mesmos que clamam pelo sequestro8 dos miseráveis (FOUCAULT, 2015, p. 192-198), sob o pretexto de uma proteção que é, na verdade, para si9. Quando se pensa na cidade desse período como um projeto de civilização, ciosa de uma beleza ideal, é possível depreender o espaço que será reservado para a pobreza – aprofundada por esse processo de desenvolvimento. Figuras populares como a do negro velho Zé Prequeté (BRUNO, 1954, p. 938), um mendigo que, no início do século XIX, ficava na escadaria da Sé antiga, serão menos toleradas. Junto com a antiga Igreja e as casas velhas derrubadas na região, em sua urbanização, ocorre uma tentativa de apagamento da pobreza das áreas dos cartões postais da cidade. Cabe refletir acerca do lugar do humano frente ao modelo de progresso empreendido e almejado: Sabemos que nenhuma imagem, por mais perfeita que seja, poderá ser viva como um ser humano. O personagem, entretanto, parece tratar sua imagem como outro ser vivente, e a ama como jamais pôde amar qualquer um. A prevalência da ilusão sobre o real, portanto, assinala não apenas a vitória da aparência em detrimento da verdade nesse caso, mas concomitantemente, a derrota final do que poderia haver de humano em Narciso (CANIATO; NASCIMENTO, 2016, p. 55).
Para os partidários e beneficiários do progresso, oriundos da “boa sociedade”, a projeção de suas próprias imagens humanas na cidade moderna, espelhadas em um cenário que reunia a nova Estação da Luz (1901), o Viaduto do Chá (1892), o Theatro Municipal (1911), a Praça da República e as ruas do Triângulo Histórico, entre outras, era como recriar – a partir do amor de si – outros viventes, conciliados com a civilização. Em contrapartida, pessoas como o mendigo Zé Prequeté eram destituídas do direito de terem as suas imagens projetadas em certas áreas da cidade e, mais do que isso, de sua humanidade. 8 “Sequestro”, em termos jurídicos, pode ser lido como “apreensão judicial de bem litigioso, destinada a assegurar-lhe a entrega, oportunamente, à pessoa a quem se reconheça que ele deve tocar”. E, ainda, “objeto sequestrado, depositado”. Especificamente sobre "sequestração", além da explicação mais comum (“ato ou efeito de sequestrar, sequestro”), há a seguinte definição, da Patologia: “porção de tecido morto, principalmente de tecido ósseo, que, no decurso da necrose, foi afastado do tecido são” (FERREIRA, 1986, p. 1572). Nesta pesquisa, “sequestro” ou “sequestração” tem o sentido dado por Foucault(2015), podendo indicar tanto a retenção de pessoas, muitas vezes de forma arbitrária, privando-as de liberdade, mesmo que sob o disfarce de “liberdade vigiada”, ou, ainda, o afastamento de quem não é são (o tecido morto) daquele que é saudável (normal). Com a possibilidade de reinserção do indivíduo ao corpo saudável, como tecido são (FERREIRA, 1986). 9 Para Nietzsche (2013, p. 173), quando, pela compaixão, socorre-se o outro, pensa-se em si, “considerando a decisão tomada em todos os casos em que podemos evitar o espetáculo daqueles que sofrem, gemem e estão na miséria”. Outros motivos são o prazer, daquele que ajuda, de se ver alguém em uma situação contrária à sua e, ainda, o “pensamento dos elogios e do reconhecimento” a serem recolhidos pelo ato de ajudar.
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A cidade não se reconhece como é, mas como quer parecer. Assim, silencia a alteridade e quebra o espelho que reflita o seu ideal de urbanidade. Daí decorre uma higienização, por meio da segregação da pobreza, utilizando-se da filantropia que – ainda que possa conter compaixão – apresenta-se como uma assistência que nega aos pobres o papel de sujeito, constituindo-se como mecanismo de controle social. Em 1914, reivindicando a construção de um muro, a fala do vereador José Piedade, ao pedir o fechamento dos terrenos situados no cruzamento da Rua Paraguassu com a Rua Cardoso de Almeida, permitiu que a questão social surgisse em uma sessão da Câmara, ainda que não com esse entendimento. Segundo o parlamentar, era necessário evitar que o local virasse um “depósito de lixo e couto para os vagabundos” (ACTAS10, sessão de 28/02/1914). A presença de pobres revirando o lixo em um terreno não condizia com a ideia de capital opulenta, centro dos negócios oriundos
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A cidade não se reconhece como é, mas, como quer parecer. Assim, silencia a alteridade e quebra o espelho que reflita o seu ideal de urbanidade. Daí decorre uma higienização, por meio da segregação da pobreza, utilizando-se da filantropia que – ainda que possa conter compaixão – apresenta-se como uma assistência que nega aos pobres o papel de sujeito, constituindo-se como mecanismo de controle social.
do café, desenvolvendo-se no setor financeiro e promovendo uma incipiente industrialização. Mas, ao longo do período pesquisado, a discussão acerca da pobreza ocorre de forma secundária, sendo um desvio para o debate sobre os projetos de obras públicas e urbanização. As discussões em torno da elaboração de projetos, como a construção do Theatro Municipal, inaugurado em 1911, demonstram que o foco de preocupação dos vereadores era a modernização da cidade, entendida como alcançável a partir de grandes construções, muitas delas projetadas por franceses e italianos, com materiais vindos da Alemanha ou Bélgica11. Nesse sentido, os vereadores Veiga 10 As Actas e os Annaes foram pesquisados no Arquivo Histórico Municipal Washington Luís e também no Setor de Documentação da Câmara Municipal de São Paulo. As sessões da Câmara Municipal passaram a ser registradas em 1562. O material do período colonial encontra-se manuscrito; no Império, começa a ser impresso. Até 1903, recebe a denominação de actas, passando a annaes a partir de 1904. Durante esta pesquisa, uma parte dos volumes impressos foi digitalizada pelo Setor de Documentação da Câmara Municipal, podendo ser encontrada no site da Câmara, cuja referência está ao final deste artigo. 11 O Viaduto Santa Ifigênia (1913) foi idealizado pelo italiano Giulio Micheli e projetado pelo seu conterrâneo Giuseppe Chiappori. O material veio da Bélgica. O Viaduto do Chá (1892) foi idealizado pelo francês Jules Martins, sendo o material encomendado na Alemanha. O Theatro Municipal (1911), inspirado na Ópera de Paris, foi projetado pelo italiano Cláudio Rossi, com desenhos de Domiziano Rossi, sendo a construção conduzida por Ramos de Azevedo. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Filho e Abílio Soares defendem a edificação de um grande teatro, que ficasse “à altura do progresso desta Capital”. O modelo deveria ser buscado na Europa, referência civilizatória para a nação que se procurava construir, devendo atender a “todas as exigências modernas de luxo, elegância acústica e segurança” (ANNAES, sessão de 29/05/1900). Por outro lado, a pobreza tem a sua utilidade para a execução do projeto de modernização da cidade. É claro, desde que controlada, de forma a evitar uma revolta das “classes perigosas” que ameace a ordem social. E, também, exibida com parcimônia, para não colocar em risco a imagem de civilização. Para o mercado de trabalho, no momento de sua formação, a pobreza contribui para rebaixar o valor da mão de obra. No tocante à moral que se quer criar, em uma sociedade que até recentemente identificava o trabalho com o escravo, desvalorizando-o, a miséria criminalizada é um contraponto ao trabalho, mostrado agora como virtude própria das gentes civilizadas. Além disso, para o Estado, a pobreza dos desempregados e dos que fazem trabalhos informais passa a ser uma forma de justificar um aparato policial repressivo, para combater a vadiagem – abordada como voluntária – e o seu perigo potencial. Finalmente, pode-se citar a miséria como razão para as subvenções concedidas pela Câmara Municipal às instituições de assistência social, fundamentais em uma “política social remediadora” (SEVCENKO, 2010, p. 134-135), garantidora de uma manutenção da ordem sem os sobressaltos de uma miséria infrene. Parte importante dessa política remediadora, a legislação tem papel importante para a contenção social, aliada à repressão. Distante dos pressupostos clássicos do liberalismo econômico, na República inaugurada na quartelada de 15/11/1889, articulada com a participação dos grandes fazendeiros, “coronéis-civis”, a lei, ao invés de promover a igualdade pelo direito, dividiu a sociedade entre os trabalhadores e aqueles sem trabalho formal, os “pobres incivis” (TELLES, 2013, p. 26). Ou, ainda, entre os cidadãos, homens alfabetizados, de um lado, e – de outro lado – os não-cidadãos, analfabetos, mendigos e mulheres. Para os pobres incivis e não-cidadãos foi “reservado o espaço da assistência social”, mais particularmente da “filantropia privada” (TELLES, 2013, p. 26-27). Entre os que não tinham cidadania, as mulheres abastadas são uma exceção, não sendo atendidas, mas prestando atendimento nas instituições de assistência social. A sua condição de filantropas era favorecida pelo tratamento de bondade materna e cristã dado aos mendigos inválidos, vistos como desfavorecidos pela sorte. Outros não-cidadãos, miseráveis, eram vistos com desconfiança, devendo ficar do lado de dentro dos abrigos de reclusão, nas instituições de assistência social ou, mais propriamente, de controle social.
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A Cidade e a Lei: normatização e resistência
Na coluna “Coisas da Cidade”, em 1909, o jornal O Estado de S. Paulo apresenta a mendicidade como um perigo social, a ser combatido pelas autoridades, pois “os legisladores em quase todos os países dirigiram sempre os seus esforços de um modo a preveni-la e reprimi-la, estabelecendo, entretanto, uma distinção para os indivíduos que, pela idade ou pelas doenças, não podem trabalhar” (11/12/1909, p. 4). O jornal dividia os mendigos em três tipos: os válidos12, que fingiam ter alguma doença para pedirem esmolas, os desempregados e os que não podiam trabalhar de fato, em razão da idade avançada ou doença. A mendicidade é apresentada desprovida de motivações políticas, dinâmica social e trajetória histórica: Homens, mulheres e crianças, às chusmas são encontradas a todo o momento (...) dizendo a sua miséria em voz alta, fingindo [sofrimento] (...). Nunca em São Paulo, como agora, houve tão elevado número de mendigos. É uma avalanche perigosa que, à semelhança de uma praga, invadiu de chofre a sociedade, sacrificando-a e perseguindo-a. Se dentro dos limites das leis não lhe dermos combate, tanto em benefício de uns como em benefício de outros, estaremos ameaçados de um verdadeiro perigo social. (O ESTADO, 11/12/1909, p. 4)
Uma vez mais, a pobreza é naturalizada, sendo comparada a uma praga, uma avalanche que invadiu a cidade, vinda de fora, desconsiderando a sua produção social. Portanto, a solução está no combate das suas consequências, da aparência que ofende os ideais de civilização, relacionados a ordem pública, trabalho formal e asseio da cidade. Por outro lado, as causas da pobreza são ignoradas, atribuídas a um agente não identificado. Neste sentido, deveria ser adotada a repressão, de acordo com as determinações já estabelecidas pela legislação. Entre elas, a proibição da mendicidade aos aptos ao trabalho (CÓDIGO PENAL, 1890, Art. 391), que restringe o crime de vadiagem para os pobres que não têm meios de subsistência (CÓDIGO PENAL, 1890, Art. 399; CÓDIGO DE POSTURAS, 1886, Art. 198) e a atribuição de responsabilidade penal a partir dos 9 anos de idade – para os que cometessem crimes com discernimento – e a partir dos 14 anos, com imputabilidade completa (CÓDIGO PENAL, Art. 27). Tal artigo, é claro, contempla as crianças em situação de rua e suas famílias em condição de vulnerabilidade, a quem cabe o Código Penal (1890) como um todo. Já às crianças e famílias abastadas, destina-se o Código Civil (1916) que trata de assuntos como propriedades, doações, adoções e heranças – dos quais os pobres estão alijados. 12 A categoria “mendigos válidos” é tratada também como “mendigos indignos” pela imprensa e polícia, pois não são incapacitados para o trabalho. Assim, são classificados como “mendigos vadios”. O historiador polonês Geremeck (1986, p. 60) faz referência ao uso proposital de roupas rasgadas e sujas e a simulação de gestos de sofrimento e doenças por estes mendigos. Tais características são generalizadas como forma de criminalização da mendicância. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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No plano municipal, o Código de Posturas, em nome da padronização, também produzia segregação. No Rio de Janeiro, o Prefeito Pereira Passos havia proibido a mendicância nas ruas do centro, reurbanizadas entre 1902 e 1906, com o apoio de Rodrigues Alves, o presidente da República. Além dos mendigos, outras posturas municipais proibiram o trânsito de vacas e o comércio ambulante de alimentos. No jornal Correio Paulistano, em edição publicada em 1907, na crônica intitulada “Os pés-no-chão...”, o poeta Olavo Bilac referiu-se a tais medidas como civilizadoras, já que na “Idade Moderna até nas estrebarias e nos presídios se exigem asseio, higiene e decência” (CORREIO, 20/10/1907, p.1). A crônica de Bilac pretendia defender a aprovação de mais uma lei que tinha como propósito modelar o comportamento dos cidadãos e demarcar os limites que implicavam na exclusão dos que não se enquadravamna nova regra. Trata-se do projeto de Tertuliano Coelho para proibir o “trânsito, nas ruas do Rio de Janeiro, de pessoas descalças” (CORREIO, 20/10/1907, p.1). Para Bilac, a lei era apropriada para uma cidade civilizada e qualquer pobre poderia comprar um calçado por dez tostões. Para muitas famílias que há pouco haviam perdido a sua moradia, nos cortiços derrubados pelo “bota-abaixo”, a compra de sapatos para pisar as ruas da Cidade Maravilhosa poderia significar pular mais alguma refeição. Da mesma forma, em São Paulo, o Código de Posturas (1886) dividiu a cidade e criou espaços de legalidade e ilegalidade (ROLNIK, 1997, p. 112-114), legitimando o controle social e a repressão nos cortiços e áreas periféricas – locais para os quais iam pessoas que não conseguiam cumprir as normas estabelecidas, com relação às construções (recuo do terreno, alinhamento à rua, tipo de pintura, pé direito, abertura das janelas e portas), que tinham trabalho informal, como comércio ambulante, particularmente os trapeiros, que buscavam seu sustento por meio da coleta de objetos tirados do lixo. Mas, no centro da cidade civilizada, e segregada, os excluídos não exilados para a periferia sobreviviam com a sua pobreza itinerante: cheiro de comida nas ruas, garotos descalços vendendo jornais, pulando de um bonde para outro, mulheres com roupas tidas como indecentes pelo Código de Posturas (1886), bem como com vozerios e alaridos, igualmente proscritos (CÓDIGO DE POSTURAS, 1886, Art. 190 a 192). Neste sentido, um pouco depois (década de 1930), há registro de que algo semelhante se dava no Rio de Janeiro. Fugindo do controle espacial, “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo” (FOUCAULT, 2013, p. 138), o garoto Boné Preto levava uma vida errante pelas ruas da Capital. Como demonstrou o historiador André Paulilo, em contraste com a aluna Nanette, que vivia da casa para a escola, Boné Preto, garoto pobre, tirava a sua sobrevivência da rua, “planejando fugas para fazer carretos na Praça Saenz Peña, escondendo no mato sapatos e paletó para realizar o expediente” (PAULILO, 2013, p. 148). A rua torna-se um espaço de guerra onde se luta para sobreviver. Desobedecer é resistir
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Conclusões: a cidade ao abrigo da infâmia
Às vésperas da Proclamação da República, os vereadores Domingos Sertório, Vicente Ferreira da Silva e Carmilo recomendavam o recolhimento das crianças pedintes e demais mendigos, demonstrando que o incômodo maior não era com a miséria em si, mas com a sua exibição, constituindo-se em um vexame público: Indicamos que a Câmara oficie ao Sr. Chefe de Polícia ver a conveniência de obstar que ande pelas ruas e casas da cidade mendigos e crianças pedindo esmolas incomodando os transeuntes. Havendo nesta cidade um asilo onde são recolhidos os pobres que o procuram, propomos à Câmara que tome alguma providência de modo a fazer cessar esse vexame para o público. (ACTAS, sessão de 09/09/1889)
A repressão era legitimada pelo Código de Posturas do Município de São Paulo (1886) e pelo Código Criminal do Império (1830), substituído pelo Código Penal, em 1890. As crianças que esmolavam, inicialmente, eram colocadas no Asylo de Mendicidade. Com relação às que furtavam ou cometiam outra infração, na ausência dos “estabelecimentos disciplinares industriais” previstos no Art. 30 do Código Penal (1890), eram detidas nas delegacias. Muitas crianças alugavam colchões em quartinhos na região da Sé, em locais também usados para a prostituição. Uma das casas, cujo locador era português, era considerada “um covil de menores gatunos e vagabundos, com capacidade para 150 indivíduos em 50 cubículos” (FAUSTO, 1984, p. 83). Para inserir estes “meninos insuportáveis” (DIÁRIO POPULAR, 1886, apud FAUSTO, 1984, p. 82) no “mercado de homens” (CRUZ, 1990, p. 10), era preciso discipliná-los para o trabalho, como recomendado pela lei. Assim, em um projeto defendido pelo deputado Cândido Motta (1909), é criado o Instituto Disciplinar de São Paulo13, em 1902, após uma campanha que criminalizava as crianças que trabalhavam na informalidade, como as que vendiam jornais e faziam carretos. O abrigo no Instituto do Tatuapé era apenas para meninos. A história do Instituto Disciplinar foi marcada pelas fugas. Pela lei, os castigos físicos não eram permitidos. Mas, em nome da regeneração, a violência tornou-se parte do seu cotidiano. Segundo Maria Inez Pinto, as fugas “evidenciavam a intolerância e a revolta dos pequenos infratores contra o tratamento cruel a que eram submetidos pelos policiais e funcionários encarregados de promover a sua reeducação” (PINTO, 1994, p. 204). Assim, o próprio Instituto, permitindo ilegalidades e as gerindo, transformava parte dos internos, quando não em corpos dóceis, úteis e produtivos, em corpos desobedientes e indisciplinados, que reincidiriam no cri13 Construído em uma Chácara no Belém, na região do Tatuapé. Em 1976, passou a se denominar como uma das unidades da FEBEM (Fundação do Bem Estar do Menor). O prédio foi desativado em 2007. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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me, justificando o próprio aparato que os reprimia, constituindo-se em um meio importante de controle da ordem social (FOUCAULT, 2013, p. 265). Diferente dos propósitos anunciados, o Instituto Disciplinar, criado para tirar as crianças da “escola do crime”, como eram chamadas as ruas, regenerando-as para o trabalho, em alguns casos, contribuía para a formação de um ciclo delinquencial, o que pode ser comprovado pelas recorrentes fugas e retornos ao Instituto Disciplinar. Desde o início, o Instituto Disciplinar foi pequeno para a demanda que recebia de internações. Em 1909, dos 9.631 presos do Estado, em penitenciárias e delegacias, 1.565 eram crianças (MATOS, 2014, p. 62 e 64). Assim, a cidade de São Paulo teve que recorrer à filantropia das instituições sociais privadas e religiosas, subvencionadas pelo poder público, para impedir que as crianças ficassem misturadas com os adultos. Outra forma de tirá-las das ruas foi através do trabalho infantil formal, sobretudo nas fábricas. Mas, tanto nas celas prisionais, como nas ruas e tecelagens, as mortes das crianças eram frequentes. Por essa razão, em 1927, por iniciativa do juiz Mello Mattos, para combater essa violência sofrida pelas crianças e jovens, foi aprovado o Código de Menores. A nova lei impedia o trabalho infantil noturno, limitava a sua jornada diária em 6 horas, exigia a instrução primária para as crianças contratadas e estabelecia a idade mínima de 14 anos. Vários industriais, entre os quais Jorge Street e Francisco Matarazzo, que se apresentavam como filantropos ao empregarem as crianças, tirando-as do “vício das ruas”, afirmavam que “a fábrica é a melhor escola”, passando a criticar a aprovação do Código, alguns chegando a propor a desobediência. Consideravam que a jornada de 6 horas, um “ócio forçado”, desarticularia o trabalho das crianças e dos adultos, que tinham jornada de 8 horas, desafinando a “orquestra da produção fabril” (SILVA, 1996, p. 177-199). O uso das crianças no trabalho das fábricas foi intensificado após 1914, com a diminuição da chegada dos imigrantes no Brasil e o início da Primeira Guerra Mundial. Outro fator perturbador foi a militância política dos imigrantes, organizando greves – como a de 1917. De civilizados passam a “desordeiros”, portadores do “vírus da anarquia”. A partir daí, os nacionais – antes vistos como viciosos e irrecuperáveis, preteridos por uma política imigrantista de branqueamento – viram alvo de um discurso de regeneração. Nesse contexto, “a criança é o melhor imigrante”, como afirmou Sabóia Lima, em estudo de 1939, analisado por Irene Rizzini (2002, p. 379). Nas fábricas, adoçadas na pancada, com remuneração inferior, crianças de menos de 10 anos, operavam serras circulares, plainas e tornos mecânicos. Há casos de acidentes, inclusive fatais, em que a sindicância concluiu pela culpa da criança, acusada de imprudência por estar brincando (MOURA, 1995, p. 123).
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A situação de risco das crianças pobres nas ruas, nas fábricas e até no Instituto Disciplinar, mesmo não sendo a preocupação maior dos vereadores, motivou algumas discussões na Câmara acerca das subvenções às instituições sociais privadas, inclusive orfanatos e escolas religiosas. Ainda que o Estado laico, criado pela Constituição de 1891, provocasse algumas controvérsias entre os parlamentares sobre o destino das verbas das instituições de assistência social, o Orphanato Christovam Colombo foi o que mais recebeu recursos entre 1890 e 1927, sendo dirigido pelo Padre Faustino Consoni entre 1895 e 1919. Em 1899, mantinha 170 crianças de 12 anos para baixo. Em 20/09/1899, o local foi denunciado por jornalistas do Diário Popular, que o visitaram, como asqueroso, onde infelizes órfãos andavam “descalços com a cabeça coberta de chagas pela grande quantidade de piolhos”, sendo notada a falta de banheiro. Outro episódio envolvendo o Orphanato foi o desaparecimento da menina Idalina, que teria sido abusada pelos padres, fato desmentido pelos jornalistas da grande imprensa – chamados de “prostitutas de calças” que iam colher informações com a polícia, sua verdadeira patroa, segundo a imprensa anarquista, que discordou do veredicto (ANDRADE, 2010, p. 8). Em seguida, quanto ao valor das subvenções, vinham o Asylo Bom Pastor e o Abrigo Santa Maria, ambos dedicados às meninas órfãs, sendo que o primeiro também recebia jovens mulheres consideradas como a serem “regeneradas”. O Abrigo Santa Maria procurava preparar as meninas para o casamento, providenciando as festas. Em 4º lugar, o Asylo de Mendicidade – que, às vezes, recebia as crianças que acompanhavam os adultos. Sobre o Asylo Bom Pastor, havia uma ala para moças penitentes entre 15 e 29 anos e outra para as órfãs menores. Recorria-se à instituição em casos de “moças desonradas” ou de ameaça de prostituição pela família (CORREIO, 17/04/1917, p. 5). Sobretudo a partir do Código de Menores, as famílias pobres, em situação de risco, passam a correr o risco de perderem a guarda dos filhos, quando estes estivessem em condições de vulnerabilidade, segundo o Juiz de Menores. Sônia Camara vê aqui um processo de “judicialização da infância menorizada”, podendo as leis de assistência e proteção à infância pobre e delinqüente estar muito mais preocupadas com os meios para a obtenção da “ordem e progresso” do que com a inclusão social dessas crianças e suas famílias (CAMARA, 2010, p. 180-182). Tanto o Abrigo Santa Maria, que criava e educava as meninas órfãs visando ao casamento, como o Asylo Bom Pastor, que regenerava as “jovens mulheres desonradas”, além de ter uma ala para receber meninas órfãs para educá-las – visando
também, em ambos os casos, ao
casamento – são instituições sociais que se alinham aos esforços de controle social para a maResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 137-154, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Transcendendo as explicações recorrentes sobre a caridade praticada individualmente por alguns, com intenções humanitárias, finalmente, teve por objetivo desnaturalizar a pobreza para entendê-la na sua relação com a assistência social, identificada como parte de uma política pública que visa à aplicação de medidas paliativas contra a miséria para, em última instância, defender um modelo de progresso que convive com a pobreza e dela se alimenta.
nutenção da ordem, desonerando gastos com a polícia. Uma vez estruturada, a família passa a exercer
um
papel
de
contenção
social,
funcionando ela mesma como uma polícia dos costumes socialmente aceitos. Isso funciona quando a mulher impede o marido de ir ao cabaré ou ao bar e os pais não permitem que os filhos fiquem na rua. (DONZELOT, 1986, p. 29). Uma polícia dentro de cada casa seria a situação ideal para a manutenção da ordem social estabelecida. Uma família “bem estruturada” para reproduzir os valores e os costumes da obediência ao poder instituído, ao capital, à nação, enfim, à civilização. Mas, como não era possível, cabia às instituições de assistência social a “função de esponja”, enxugando a cidade dos elementos indesejáveis, segregando-os entre os muros das instituições subvencionadas, para que a cidade ficasse protegida, sob o disfarce da proteção dos filhos destes outros do progresso. Tendo como contraponto a cidade de São Paulo
imaginada nos primórdios da República, este artigo procurou, sobretudo a partir dos discursos destoantes dos vereadores e das notícias de uma cidade real, entender a outra história do progresso, ou seja, a pobreza e as suas representações. Transcendendo as explicações recorrentes sobre a caridade praticada individualmente por alguns, com intenções humanitárias, finalmente, teve por objetivo desnaturalizar a pobreza para entendê-la na sua relação com a assistência social, identificada como parte de uma política pública que visa à aplicação de medidas paliativas contra a miséria para, em última instância, defender um modelo de progresso que convive com a pobreza e dela se alimenta.
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Arquivo
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Americana-SP, uma história entre rios Americana-SP, a history between rivers Gabriela Simonetti Trevisan* Elizabete Carla Guedes** Jefferson Luis Rodrigues Bocardi*** Mariana Spaulucci Feltrin****
Resumo
Abstract
A história da cidade de Americana, inspirada na obra de pesquisadores consagrados da região de Campinas, como Jolumá Brito e Celso Maria de Mello Pupo, é atrelada à Fazenda Salto Grande. A partir do plantio de cana-de-açúcar e, posteriormente, café e algodão, teria se dado a povoação da região entre os rios Atibaia e Jaguari, consolidando-se no final do século XVIII. Algumas questões, contudo, foram analisadas com profundidade, atentando-se para a construção de uma genealogia dos donos de terras na região, bem como das datas e demarcações geográficas. Neste sentido, a busca de fontes historiográficas permitiram abordar novas possibilidades sobre a história da cidade, como novos nomes e novas datas. Este estudo se propôs a seguir o percurso da construção da história da cidade, retomando documentos e buscando publicizar uma nova perspectiva para essa narrativa, embasando-se em uma pesquisa rigorosa feita pelos Historiadores Independentes de Carioba.
The history of the city of Americana, inspired by the work of renowned researchers from Campinas, such as Jolumá Brito and Celso Maria de Mello Pupo, is linked to Fazenda Salto Grande. From the planting of sugarcane, and subsequently coffee and cotton, the settlement of the region between the rivers Atibaia and Jaguari took place, consolidating in the late eighteenth century. Some issues, however, were analyzed in depth, focusing on the construction of a genealogy of landowners in the region, as well as dates and geographical demarcations. In this sense, the search for historiographical sources allowed us to approach new possibilities on the history of the city, such as new names and new dates. Thus, this study set out to follow the course of the construction of the city’s history, retrieving documents and seeking to publicize a new perspective for this narrative, based on a rigorous research done by the Historiadores Independentes de Carioba.
Palavras-chave: História Regional; Fazendas; Fontes Históricas.
Keywords: Regional History; Farms; Historical Sources.
* Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista FAPESP. E-mail: trevisan.gabriela@gmail.com ** Formada em Licenciatura em História pelo Centro Universitário de Araras Dr. Edmundo Ulson (Unar). Estudante de bacharelado em Museologia pela Claretiano Campinas. Funcionária pública da Secretaria de Cultura e Turismo de Americana, coordenadora do Projeto Raízes e coordenadora do Museu Histórico e Pedagógico Dr. João da Silva Carrão (Museu Salto Grande). E-mail: carla.bellyguedes@gmail.com *** Licenciado em História pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Professor PEB II da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. E-mail: jlbocardi@yahoo.com **** Licenciada em História pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Professora do Ensino Fundamental II na rede privada de ensino. E-mail: mfeltrin@gmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o
N
o início de 2017, quatro historiadores decidiram se unir para estudar a história da cidade de Americana, no interior do estado de São Paulo, formando o grupo Historiadores Independentes de Carioba. O município fica a aproximadamente quarenta
quilômetros da atual Campinas, da qual foi comarca até 1924, e seu povoamento teria iniciado a partir das terras da Fazenda Salto Grande, localizada entre os rios Jaguari e Atibaia. No percurso de pesquisa, deparamo-nos com o desafio de buscar as fontes históricas pouco citadas nos trabalhos historiográficos locais. Focados em um trabalho de história regional, percorremos, em especial, o Centro de Memória da Unicamp, em Campinas, e o Arquivo Público do Estado de São Paulo, preocupados com dois pontos: o primeiro - foco maior deste texto - foi o de entender as redes que se davam entre as terras e seus donos e que constituíram o que depois viria a ser denominada Villa Americana, traçando novos conflitos e novos fatos; o segundo, ainda em fase de elaboração, tem sido um esforço de perceber agentes outros nessa história que foram, muitas vezes, silenciados pelos jogos de poder imbricados no fazer histórico, como os negros e as mulheres. A discussão sobre a história regional possui diversos autores e posicionamentos. Entre eles, buscamos abordar a questão a partir de uma perspectiva similar ao que propõe Erivaldo Fagundes Neves (2008, p. 28). Em suas palavras, “uma região resulta sempre da interveniência das redes de poderes econômicos, políticos, militares, eclesiásticos ou de segmentos sociais”. Para esse pesquisador, a ideia de região se relaciona com o que se considera a “totalidade”, por exemplo, um país ou o mundo, sendo essas categorias históricas. Dessa forma, ele acredita que se deve ressaltar as especificidades dos diferentes espaços, mas também chamar atenção para as “interconexões locais, regionais, nacionais, continentais e universais” (NEVES, 2008, p. 31). A metodologia comparativa, portanto, não deve sair de vista. É o que buscamos fazer ao estudarmos as dinâmicas econômicas e sociais da região de Campinas, mas também salientando aspectos da história nacional, como a escravidão. Nesse sentido, este artigo é resultado dos últimos meses de pesquisa intensa a que nos dedi-
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camos e visa, predominantemente, trazer os primeiros passos de um trabalho historiográfico sobre a cidade de Americana. O enfoque encontra-se na Fazenda Salto Grande durante o período escravista e sua relação com o início da história americanense. Dessa forma, iniciamos com um breve debate bibliográfico com o intuito de localizar o leitor para, depois, apontar nosso percurso e as novas narrativas possíveis. Por fim, apresentamos um trabalho inicial e inédito de mapeamento da região no século XIX.
Divergências sobre a história de Americana
A história de Americana anda de mãos dadas com a história de Campinas, uma vez que aquela foi pertencente à Comarca desta até o início do século XX. Como destaca José Roberto do Amaral Lapa (1996), a consolidação da região se deu no século XIX, a partir da produção de açúcar e, depois, de café, sustentadas por uma ampla mão de obra escravizada, exploração esta que promoveria um enriquecimento de grandes proprietários e um processo de modernização e expansão da zona urbana na segunda metade do século. Em entrevista (SIMSON, 2000), Lapa afirma que a narrativa de uma história de Campinas e região teve diferentes fases. Entre elas, encontra-se o período da primeira metade do século XX e início da segunda metade, na qual diversas obras foram escritas por memorialistas e cronistas, com grande destaque para o papel da imprensa na difusão desses textos. Para o historiador, esse trabalho historiográfico, ainda que com algumas incongruências metodológicas diante da pesquisa acadêmica que emerge a partir dos anos 1950 na região, não pode ser descartado. Trata-se, pelo contrário, de uma página importante na produção sobre a história da cidade, com a qual devemos ter crivos críticos de leitura, mas sem deixar de reconhecer sua riqueza. Esses autores memorialistas e/ou cronistas escreveram obras consagradas sobre Campinas, reunindo também muitas informações sobre a constituição do território “entre rios”, ou seja, da fazenda Salto Grande e da atual cidade de Americana. Dentre eles, dois nomes chamam atenção como referências principais nos materiais mais recentes publicados sobre a história americanense1: Jolumá Brito e Celso Maria de Mello Pupo. Ambos, nascidos no início do sé1 Esses materiais são livros que compõem a historiografia regional mais recente sobre o início da história de Americana. Ressaltamos as obras Preservando nossa história (1999), Descobrindo Americana (2008), Americana e sua história (2010) e Carioba: um lugar, uma herança (2010), cujas referências completas se encontram no final deste texto. Eles utilizam, como principal referência, os autores Jolumá Brito e Celso Maria de Mello Pupo. Por esta razão, nos detemos, neste artigo, em analisar as obras desses dois pesquisadores. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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culo XX, publicaram livros sobre a história campineira por volta dos anos 1960, contudo, vale ressaltar que Brito, no final da década de 1950, já possuía obras reconhecidas, falecendo em 1987, enquanto Pupo, por sua vez, tem novas publicações até os anos 1980. As especificidades e as divergências do conteúdo de suas pesquisas são frequentemente pouco abordadas e, portanto, nos propusemos a discuti-las, com o intuito de seguir o percurso da construção da historiografia americanense. Americana teve seu início no século XVIII, com as ocupações e sesmarias nas terras do “Salto Grande”, região compreendida entre a confluência dos rios Atibaia e Jaguari, no interior da Província de São Paulo. O jornalista Jolumá Brito explica, na obra História da Cidade de Campinas (1963, p. 97), o interesse de sesmeiros pela região: Pelo fato de não existirem caminhos ou picadas abertas rumo à antiga Vila da Constituição2 foi que, talvez, nos fins do século XVIII, os antigos devastadores e bandeirantes de nossas matas e exploradores de sesmarias tivessem se interessado pela região que hoje é a cidade de Americana. Com a fundação da antiga aldeia de Santa Bárbara junto à Piracicaba, alargando-se territorialmente em direção à velha freguesia de Barreto Leme3 é que, acreditamos, tenha-se descoberto o grande “salto”, que, pelas águas do rio Atibaia atingiram as proximidades da futura Capela fundada por dona Margarida da Graça Martins4.
Segundo Brito (1963, p. 97), Antônio Machado de Campos, juntamente com Francisco de S. Paio, Antônio de S. Ferraz e André de Campos Furquim, “estão ‘na paragem do Salto Grande, há mais de cinquenta anos (1771), ali cultivando e residindo, com fábrica de açúcar’”. O autor comenta que o engenho do Quilombo, de Antônio Machado de Campos, se localizava onde hoje é a cidade de Sumaré, “ao par do ‘Salto Grande’” (BRITO, 1963, p. 97). Contudo, o historiador Celso Maria de Mello Pupo pensa diferentemente a periodicidade das primeiras habitações na região. Ele defende que as datas das concessões de sesmarias não equivaleriam necessariamente à data de início das produções agrárias nesses locais. Na obra Campinas, município no Império (1983, p. 122), ele aponta que, Temos que admitir a caducidade de várias concessões de sesmaria, que não foram povoadas e cultivadas, pois se repetem descrições em certas concedentes, sem provas de que os primeiros concessionários tenham permanecido no direito sobre elas. Como já dissemos, a data da sesmaria não indica o cultivo das terras, mas, apenas, a consolidação da propriedade com títulos regulares, podendo as culturas ser anteriores ou posteriores a esta consolidação, o mesmo se verificando com as escrituras de compra e venda. 2 Atualmente Piracicaba-SP. 3 Nossa Senhora da Conceição de Campinas, atual Campinas-SP. 4 Atual Paróquia Santa Bárbara, localizada no centro de Santa Bárbara D’Oeste-SP.
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Segundo o autor, “a produção açucareira em Campinas só surgiu na década de 1791-1800”. Para ele os “recenseamentos provam a inexistência de produção de açúcar, sendo os sitiantes indicados [José de Souza e Siqueira e Domingos da Costa Machado] produtores de aguardente, proprietários de engenhocas, para esta produção” (PUPO, 1983, p. 120). Vale ressaltar que a localização da região do Salto Grande era parte, então, da antiga Nossa Senhora da Conceição de Campinas, atual Campinas, e, de acordo com Pupo, “as primeiras sesmarias cultivadas e povoadas pelos sesmeiros foram obtidas pelos irmãos Filipe Néri Teixeira e Joaquim José Teixeira Nogueira, e mais o latifúndio comprado pelo cunhado deste último, Francisco de Paula Camargo” (PUPO, 1983, p. 122). Desse modo, notamos discordâncias entre os autores quanto ao início do povoamento e da cultura da cana-de-açúcar na região do Salto Grande, bem como distintas formas de se pensar a geografia da região. Portanto, um primeiro conflito se consolida entre Brito e Pupo: se, para o primeiro, o território da atual Americana já era habitado por sesmeiros na década de 70 do século XVIII, para o segundo, a fixação de produtores de açúcar no local se daria apenas a partir do final do mesmo século. Seguindo o percurso dos dois pesquisadores, também são citadas referências diversas a donos de sesmaria na região do Salto Grande. De acordo com Jolumá Brito (1963, p. 97), Existe mais referência a uma outra sesmaria que pertencera ao primeiro Domingos da Costa Machado, casado com a primogênita de Barreto Leme, ou fôsse ela d. Maria Barbosa do Rêgo que havia “cedido terras de sua sesmaria, parcialmente, antes de 1799 ao Guarda-mor Manoel Teixeira Vilela e ao Alferes Antônio de Camargo Penteado ficavam localizadas entre os rios Atibaia e Jaguari, o ‘Salto Grande’ (hoje Americana), e foram obtidas juntamente com Antônio Vieira da Silva Pinto, João Antunes e Agostinho Luís Ribeiro, em 2 de abril de 1799”.
Segundo Brito, portanto, o primeiro Domingos da Costa Machado5 teria cedido terras de sesmaria ao Guarda-mor Manoel Teixeira Vilela6 e ao Alferes Antônio de Camargo Penteado, em 1799. No entanto, para Pupo, em direção diferente a Brito, as terras não teriam sido doadas, mas vendidas por João Manuel do Amaral apenas a Manoel Teixeira Vilela. Em suas palavras: Durante o governo do capitão-general Antônio Manuel de Castro e Mendonça, por ato seu, foi concedida uma sesmaria a João Manuel do Amaral, José Antônio do Amaral e Domingos da Costa Machado, abrangendo a confluência dos rios Atibaia e Jaguari, incluindo salto grande do primeiro. Os beneficiários não a povoaram até 1799, quando o primeiro vendeu sua parte, por quinze mil réis, ao guarda-mor Manuel Teixeira Vilela. (PUPO, 1983, p. 148). 5 Constam, na mesma família, ao menos três gerações com o nome Domingos da Costa Machado, por isso, intitulamos o citado por Brito de “primeiro”. 6 Optamos por essa grafia, com apenas um “L”, para nos referirmos aos membros da família Vilela, seguindo o padrão de pesquisadores especialistas, como Maria Alice Rosa Ribeiro, citada ao longo deste trabalho. Alguns documentos históricos apresentam o sobrenome grafado de forma diferente, como “Vilella”. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Pupo defende que “a parte que coube a Domingos da Costa Machado, voltada para Oeste, constou de área na qual se fundou a fazenda, cuja sede, mais tarde, se tornou a indústria Carioba” (PUPO, 1983, p. 129). Para o autor, a venda de João Manuel do Amaral a Manuel Teixeira Vilela se daria também em 1799, mesmo ano em que Brito acreditava que as terras teriam sido doadas. Contudo, Pupo aponta que “não foi lavrada a escritura” da venda, tendo sido registrada em cartório apenas em dois de fevereiro de 1809 (PUPO, 1983, p. 148). Infelizmente, o historiador não referencia o documento, sendo pouco clara a localização da fonte onde consta essa informação. Seguindo adiante, Pupo comenta que Manuel Teixeira Vilela teria construído, com mão de obra escravizada, a casa sede da Fazenda Salto Grande, descrita na obra como um dos “Grandes solares do Açúcar”. Segundo o autor, a fazenda teria permanecido na família Teixeira Vilela até 1870, quando comprada por Francisco de Campos Andrade. Sua obra foi uma das principais a consolidar a interpretação de que essas terras pertenciam aos Teixeira Vilela entre o início e o final do século XIX. Pupo pontua, porém, que as dimensões, nomenclaturas e imprecisões territoriais criaram confusões e embaraços historiográficos. Assim, partindo de informações das obras desses dois cânones da pesquisa sobre a história de Campinas e região, Brito e Pupo, a historiografia americanense data e desenha o que seria o início do povoamento do território compreendido hoje como Americana. Entendendo sua história atrelada a sua formação geográfica, econômica e social, as especificações de compra, venda ou herança de terras, bem como dados territoriais, mostram-se essenciais para a compreensão do período e do que se considera o início de seu povoamento. Assim, nos propomos a estudar as fontes e referências da historiografia desse período, elaborando um estudo genealógico da Fazenda Salto Grande. Para tanto, inspiramo-nos no trabalho coordenado por Suzana Barretto Ribeiro, Sesmarias, Engenhos e Fazendas: Arraial dos Souzas, Joaquim Egídio, Jaguary (1792-1930) (2016). Em parceria com diversos estudiosos, a pesquisadora propôs uma revisão interdisciplinar sobre a história da cidade de Campinas desde o século XVIII, retomando as diversas documentações acerca das terras e seus proprietários, até culminar na urbanização da região. Ainda que Americana fosse parte da mesma comarca na época, porém, o estudo tem seu recorte geográfico demarcado nas áreas da atual Campinas, deixando de lado uma análise mais aprofundada do baixo Atibaia, o que propomos nesta pesquisa.
Seguindo as trilhas da historiografia americanense Como Marc Bloch (2001) pontua já na década de 1940, a pesquisa histórica não nos permite um acesso a uma verdade absoluta ou a uma origem bruta dos fatos. A leitura das fontes históri-
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cas, portanto, deve perpassar uma postura crítica do pesquisador. Nesse sentido, procuramos por documentos que permitissem entender o percurso de uma história da Fazenda Salto Grande e de Americana sob um prisma crítico, tentando perceber a construção das narrativas mais consolidadas. Buscando pelos caminhos que teriam constituído a história da cidade, nos deparamos com os volumosos inventários da família Teixeira Vilela, armazenados no Centro de Memória da Unicamp como parte do acervo do Tribunal de Justiça de São Paulo na Comarca de Campinas. De acordo com a produção historiográfica, o primeiro dono da fazenda seria Manoel Teixeira Vilela, falecido em 1820. Seu inventário, porém, não foi encontrado, como também pontua a historiadora Maria Alice Rosa Ribeiro (2015, p. 541). O suposto segundo dono das terras seria seu filho Antônio Manoel Teixeira, seu herdeiro, assim como herdeiro de seu irmão José Manoel Teixeira Vilela, falecido em 1846. Seguindo o percurso, nos deparamos com o inventário de Antônio, que data de 1852, ainda que seu falecimento tenha se dado em 1850. Nele, podemos observar a riqueza da família, com um grande número de terras listadas: Engenho da Cachoeira, Sítio da Lagoa, terras em Parnaíba, Sítio Bom Fim, Sítio da Boa Esperança, Fazenda de Santa Bárbara, Fazenda do Paraná, Morro Alto, Saltinho, Sítio da Califórnia e Sítio do Jaguary. Ou seja, ainda não há a listagem de qualquer fazenda denominada Salto Grande. Antônio Manoel Teixeira deixa muitas dívidas e passa a seu herdeiro Francisco Teixeira Vilela - o suposto terceiro dono de Salto Grande - apenas as fazendas Morro Alto e Cachoeira. Suas propriedades, porém, também se estendiam a mais de quatrocentos escravos, quantidade muito grande para a época, colocando-o como um dos maiores proprietários de cativos na região. Francisco Teixeira Vilela, por sua vez, falece em 1873, ainda mais endividado do que o pai, deixando a família sem qualquer propriedade. Em seu inventário, constam as terras Morro Alto e Cachoeira, herdadas do pai, Santa Maria, grande fazenda na região da atual Campinas, e o Sítio Areia Branca. Entre suas propriedades - todas entregues aos credores - também constava uma grande lista de escravos. De acordo com Maria Alice Rosa Ribeiro, Francisco falece subitamente, em um momento no qual ainda não havia colhido frutos de altos investimentos (RIBEIRO, 2015, p. 554). Como comenta a autora em seu estudo sobre a família Teixeira Vilela, há uma hipótese levantada por alguns estudiosos da região de Campinas de que a fazenda Salto Grande seria, na verdade, a fazenda Cachoeira dos inventários citados. Parte dessa hipótese pareceu encontrar respaldo nas obras de Hércules Florence, em especial em suas aquarelas e seus nanquins produzidos em 1834. Na legenda da imagem, escrita pelo pintor, ele diz: “Vue Du sitio d´Antonio Manuel Teixeira à 5 léguas de S. Carlos, Prov de St Paul. (Anto Ml Teixra) sur la rive Jaguari” (LEMOS, 1999, p. 48). Nesse sentido, ele apresenta a vista da sede da fazenda de Antonio, sem citar Salto Grande. Com as novas possibilidades apresentadas a partir desta pesquisa, levantamos a hipótese de que Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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as imagens poderiam não retratar o sobrado de Salto Grande. Carlos Lemos (1999), por exemplo, a partir da observação da arquitetura da casa na pintura e do prédio remanescente em Salto Grande, comenta que Florence teria “errado” o número de janelas do sobrado. Segundo ele, o estilo arquitetônico desse casarão seria “ortodoxo”, ou seja, um piso térreo de serviços e, acima, uma moradia isolada. Ainda de acordo com o autor, foram poucas as construções desse tipo no meio rural paulista e o único que teria sobrevivido ao tempo teria sido justamente o da fazenda Salto Grande, localizada em Americana, interior do Estado de São Paulo. Todavia, há outros exemplos de sobrados no estilo do representado por Florence. No livro Campinas, Município no Império, de Celso Maria de Mello Pupo (1983, p. 120-156), por exemplo, constam o Solar Teixeira Nogueira e a Fazenda Bonfim com prédios na forma de grandes paralelepípedos. Portanto, apesar de existirem poucos sobrados no estilo de construção do representado na aquarela de Florence, havia imóveis parecidos, e, dada a sobrevivência do casarão de Salto Grande e a associação de sua propriedade aos Teixeira Vilela, é possível que tenha ocorrido uma confusão na interpretação da imagem.
Imagem 1 - Engenho da Caxoeira, a 5 léguas de S. Carlos, Província de S. Paulo (1835), de Hércules Florence. Nanquim sobre papel, 25,9 x 37,7 cm.
Fonte: Coleção Cyrillo Hércules Florence, São Paulo. Fotografia de Jorge Bastos.
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A ideia de Cachoeira e Salto Grande serem a mesma propriedade nos chamou atenção, já que, na historiografia de Americana, a segunda fazenda é posta como denominada dessa forma desde o princípio. Segundo os inventários, pelo menos até a morte de Francisco Teixeira Vilela, em 1873, ainda é citado o nome Cachoeira para a propriedade. Dessa forma, o choque entre as fontes escritas, iconográficas e a bibliografia permitiria a hipótese de que Salto Grande e Cachoeira não seriam a mesma fazenda, mas terras diferentes. Caminhando para o quarto suposto dono da fazenda Salto Grande, notamos a ausência do inventário de Francisco de Campos Andrade, que não era herdeiro dos Vilela, mas teria adquirido as terras por compra. No entanto, pudemos encontrar o inventário de sua esposa, Barbara Paes de Barros Campos, falecida em 1888. Nele, localizamos a fazenda Salto Grande, bem como outras terras também pertencentes ao seu marido, denominadas Santa Bárbara. No texto,
A leitura dos documentos, portanto, parecia não levar à narrativa esperada a partir dos trabalhos historiográficos sobre Americana, uma vez que os inventários dos Vilela sugeriam que as terras de Salto Grande não pertenciam a essa família ou eram denominadas de outra forma.
não constam escravos como bens, sendo executado no dia 9 de maio, quatro dias antes da assinatura do documento que viria a proclamar a abolição da escravidão no Brasil. A leitura dos documentos, portanto, parecia não levar à narrativa esperada a partir dos trabalhos historiográficos sobre Americana, uma vez que os inventários dos Vilela sugeriam que as terras de Salto Grande não pertenciam a essa família ou eram denominadas de outra forma. Essa situação nos intrigou, já que a narrativa consolidada não citava tais problemas nas fontes. Isso nos leva à segunda parte da pesquisa.
Possíveis caminhos até Salto Grande
Diante das dúvidas deixadas pelo percurso de pesquisa sobre a família Teixeira Vilela, recorremos ao Arquivo do Estado de São Paulo, onde tivemos acesso ao Registro de Terras da Província de São Paulo referente à Comarca de Campinas, feito entre 1854 e 1857. Nessas fontes, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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encontramos duas ocorrências de “Salto Grande”. A primeira se refere a uma “Fazenda Salto Grande”, no registro de número 69, de 14 de agosto de 1855, no qual o Alferes José de Campos Penteado assume a propriedade das terras entre o rio Jaguari e o rio Atibaia, fazendo divisa com o sítio denominado Saltinho. Nesse sentido, ele cita seus donos anteriores e diz que as terras possuem um engenho de açúcar, pertencente a ele mesmo, e dois de café, pertencentes aos seus filhos Antônio de Camargo Campos, José de Campos Penteado Junior e Francisco de Campos Andrade, como no trecho abaixo: O Sítio de Salto Grande é propriedade do Alferes José de Campos Penteado e suas confrontações são as seguintes = Da beira do Rio Jaguary por onde se verificará a divisa com o sítio denominado Saltinho pertencente a Felippe Antonio Franco partirá um rumo até o Rio Atibaia, e descendo rio abaixo o rio é divisa até o ponto da divisa com o sítio do falecido Capitão José Ignácio de Camargo Penteado, hoje de seus herdeiros aí deixará o rio e seguirá em rumo reto até sair na estrada velha de Limeira seguindo mesma estrada até o espigão que serve de divisa com José de Campos Penteado Junior e Francisco de Campos Andrade e seguindo o mesmo espigão divisa com Dona Anna Cândido Campos Machado até frontear um vallo da mesma então descerá a rumo até o vallo adiante até o rio, e pelo rio acima até encontrar o lugar de onde é e tem de partir a divisa do sítio Saltinho como acima fica dito. (...) Contém dentro deste sítio três estabelecimentos, sendo um de engenho de fabricar açúcar pertencente ao proprietário. Dois de café sendo um pertencente a Antônio de Camargo Campos e outro a José de Campos Penteado Junior em sociedade com seu irmão Francisco de Campos Andrade – Todos filhos do proprietário; cujo sítio acima declarado pode regular mais ou menos meia légua em quadra. Campinas 16 de agosto de mil oitocentos e cinquenta e cinco (REGISTRO DE TERRAS DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 1855, s. n.).
Já na segunda ocorrência, de 21 de dezembro de 1855, José de Campos Penteado Junior e Francisco de Campos Andrade descrevem os limites das suas terras chamadas de “Sítio do Salto Grande”, ligada à propriedade do pai. Nesse trecho do registro de número 220, os dois filhos de José de Campos Penteado tratam dos limites das terras de sua propriedade, fazendo divisa com as terras do engenho do pai e de Domingos Leite: O sítio no bairro do Salto Grande é freguês de Campinas, e é propriedade de Jose de Campos Penteado Junior e Francisco de Campos Andrade, suas confrontações são as seguintes; Principiando no canto de uma cerca por uma linha reta até encontrar com terras de Domingos Leite e aí segue rumo direto até embicar num marco de pedra que se acha na beira do caminho de Antônio Ferreira da Silva, seguindo pelo caminho até um pau de batata arcado, desse pau de batata vai em linha reta a um cipó que tem no caminho que foi de Manoel Alvares Machado, daí segue pelo caminho como quem volta para o mesmo sítio até a beira de uma capoeira alta, da beira dessa capoeira segue uma linha reta a sair no caminho do falecido Major Domingos, ficando na encruzilhada dum caminho antigo que ia para Santa Barbara, desta encruzilhada
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volta pelo caminho como quem vem para o sítio - procurar o espigão do outro lado da estrada, segue por ela até sair na estrada velha de Limeira e segue a estrada até sair no caminho velho de Dona Gertrudes até a beira de um capão de mato virgem aí entra por uma picada até encontrar com uma carreira de bananeiras acabando as bananeiras segue pelo espigão divisando com Domingos Leite e José de Campos Penteado (Pai dos proprietários) até dar na divisa com o Major Domingos, por onde se verifica por haver parte no sítio do finado Major Domingos, pertencente aos proprietários que ainda estão em divisas, porém tem que seguir essa divisa até dar no marco de pedras como acima se declara, sua propriedade ou sítio terá mais ou menos um quarto em quadra. Campinas vinte e um de dezembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco = Campos Junior e Irmão. (REGISTRO DE TERRAS DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 1855, s. n.).
A partir dessas informações, sustenta-se uma hipótese de que as terras de Salto Grande, já em 1855, pertenciam provavelmente a Francisco de Campos Andrade, colocado como último dono da fazenda antes da abolição da escravidão pela historiografia local. Mais do que isso, porém, nota-se sua sociedade com o irmão, localizada dentro da propriedade de seu pai, José de Campos Penteado. Dessa forma, abre-se uma nova possibilidade de narrativa histórica que contrariaria as ideias mais consolidadas sobre a região, isto é, a de que as terras de Salto Grande pertenciam à família Teixeira Vilela. Essa ideia é corroborada pela ausência da fazenda nos inventários dessa família e pela ocorrência, no Registro de Terras, de uma propriedade de mesmo nome e localização como pertencente aos Campos Penteado. Para analisarmos essas hipóteses, recorremos novamente ao Centro de Memória da Unicamp e ao acervo do Tribunal de Justiça de São Paulo na Comarca de Campinas. Nesse sentido, fizemos o percurso inverso, partindo de Francisco de Campos Andrade, nome já conhecido a partir da leitura dos trabalhos locais, para buscar a possível ligação geracional de sua família com as terras da região. Como já comentado, não foi possível localizar o inventário de Francisco de Campos Andrade, contudo, consta no arquivo o inventário de Barbara Paes de Barros Campos, sua esposa, de 1888. No documento, são citadas as terras de Salto Grande e a fazenda Santa Bárbara e listadas as benfeitorias e bens de cada uma das propriedades. Dessa forma, observamos uma descrição das construções existentes na fazenda e seus valores estimados, a exemplo da “casa de morada de sobrado e quadrado anexo”, avaliada em “quatorze contos de reis” ou a “caza de moinho de fecha”, de “um conto de reis” (INVENTÁRIO DE BARBARA PAES DE BARROS CAMPOS, 1888, p. 30-31). Seguindo a árvore genealógica da família, como consta no Registro de Terras da Comarca de Campinas, buscamos pelo inventário do pai de Francisco de Campos Andrade, o Alferes José Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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de Campos Penteado. Falecido em 1860, o documento cita a fazenda Salto Grande como parte de seus bens: Um sítio denominado Salto Grande com casas de sobrado, senzalas, engenho de moer cana tocado por água, com todos os seus pertences, engenho de serra, tenda de enchugar açúcar, pachões e todas as suas benfeitorias, com todas as terras que lhe pertencem, compreendendo as em que estão arranhados os herdeiros Antônio e Francisco, bem como a estalagem e suas terras, tudo por 111:000$000 (INVENTÁRIO DE JOSÉ DE CAMPOS PENTEADO, 1860, p. 11).
O inventário também possui uma extensa lista de escravos. A partir desse documento e de testamentos, também pudemos notar que José foi casado uma primeira vez com Rita Antonia da Silva Serra, falecida em 1838, e, depois, com Anna Francisca de Andrade. No inventário, constam entre seus familiares Francisco de Campos Andrade, Floriano de Camargo Campos, Antonio de Camargo Campos, José de Campos Penteado, Anna Elidia de Campos, Candido da Silva Serra e Anna de Campos Paes. Essas informações trazidas pelo inventário de José de Campos Penteado, de 1860, dialogam com os dados do Registro de Terras da Comarca de Campinas, de 1855, contrariando também a hipótese de que a propriedade das terras de Salto Grande seria dos Vilela na mesma época. Segundo o Registro, Salto Grande aparece uma vez como propriedade de José e, outra, como um sítio nas mesmas terras onde seus herdeiros mantinham um engenho, assim como consta no trecho do inventário supracitado. Na obra História de Limeira, de Reynaldo Kuntz Busch (1967, p. 53), o autor também comenta que, em uma carta de 28 de junho de 1823, existente no Arquivo Público do Estado, o Engenho de Salto Grande é posto pelo próprio José de Campos Penteado como sua propriedade, descrevendo que suas terras são próximas a de nomes como Alferes Antonio Furquim, Antonio Manoel Ferreira, Capitão José Pedrozo da Silva, Nicolau Gonçalves, Capitão Domingos7 e Joaquim Ferreira. É importante perceber que há um conflito entre esse estudo e obras canônicas sobre a história de Campinas - como as escritas por Jolumá Brito e Celso Maria de Mello Pupo -, que afirmavam a propriedade de Salto Grande pela família Vilela. Dando um último passo para trás na árvore genealógica da família de Francisco de Campos Andrade, buscamos também pelo seu avô Antonio de Camargo Penteado, pai do Alferes José de Campos Penteado. No seu inventário, de 1812, Antonio lista entre seus bens, além de escravos, terras entre os rios Jaguari e Atibaia, fazendo divisa com Manuel Teixeira Vilela: 7 Não há o nome completo citado no trecho.
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Por humas terras pertencentes ao erdeiro José de Campos na forma da verba dos [palavra ilegível] entre os rios Jaguary e Atibaia, na paragem denominada corrego da Jacutinga, que rio acima do Jaguary, confina com terras do Guarda-mor Manoel Teixeira Vilella, com hum quarto de testada e meia légua de certao que foram vistas e avaliadas pellos mesmos avaliadores pela quantia de cem mil reis com que sahe (INVENTÁRIO DE ANTONIO DE CAMARGO PENTEADO, 1812, p. 18).
Vale ressaltar que, tanto no inventário de Antonio, de 1812, quanto no Registro de Terras, de 1855, são citadas as terras vizinhas à Salto Grande, informações importantes para um mapeamento da região na época. No primeiro caso, ela faria divisa com uma propriedade de Manoel Teixeira Vilela e, no segundo, com Felippe Antônio Franco. Isso poderia significar que as terras vizinhas à Salto Grande teriam mudado de proprietário. Em 1850, no inventário de Antonio Manoel Teixeira, consta Saltinho como sua propriedade. Antonio, porém, falece com muitas dívidas, como já comentado, e passa para seu herdeiro Francisco Teixeira Vilela apenas as fazendas Morro Alto e Cachoeira. No Registro de Terras, de 1855, Felippe Antônio Franco, no registro de número 153, é posto como dono de uma propriedade denominada Saltinho, que se localizava ao lado de “Morro Alto sítio de Francisco Teixeira Vilella”, que “divisadas pelos Rios Attibaia e Jagyuary pela margem delimita com a Fazenda do Alferes José de Campos Penteado” (REGISTRO DE TERRAS DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 1855, s. n.). Isso poderia significar que essas terras vizinhas de Salto Grande se refeririam à fazenda Saltinho, pois, se na morte de Antonio Manoel Teixeira, em 1850, as terras não passam a seu filho e são perdidas pela dívida, em 1855, elas já poderiam pertencer a Felippe Antônio Franco, como notado no Registro de Terras. Para além dessas informações, Felippe também descreve a divisa de suas terras com José de Campos Penteado e comenta sobre a vizinhança com Francisco Teixeira Vilela, proprietário de Morro Alto, terra que herdou
A partir da leitura e das novas narrativas que essas documentações levantaram, foi possível um primeiro esforço para mapear a região de Americana e as fazendas que compunham seu território em meados do século XIX. Trata-se de um trabalho inédito, ainda em construção, baseado na hidrografia anterior ao represamento do rio Atibaia, no século XX.
do pai após o pagamento das dívidas. Essa leitura dos documentos nos leva a pensar que a hipótese do pertencimento de Salto Grande à família Vilela teria se conformado a partir da proximidade das terras e a confusão das datas, uma vez que se mostra necessária a confrontação dos documentos para perceber as ligações. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Reflexões finais: Salto Grande e a escravidão
A partir da leitura e das novas narrativas que essas documentações levantaram, foi possível um primeiro esforço para mapear a região de Americana e as fazendas que compunham seu território em meados do século XIX. Trata-se de um trabalho inédito, ainda em construção, baseado na hidrografia anterior ao represamento do rio Atibaia, no século XX. A partir da localização geográfica assinalada nos inventários e no Registro de Terras, assim como dos rios Atibaia e Jaguari e do córrego Jacutinga, o mapeamento permite observar as fazendas que percorrem essa pesquisa, em especial Salto Grande, destacada em listrado. Imagem 2 - Mapa da região de Americana em 1855
Fonte: Elaborado pelos autores
Há ainda, porém, muitas estradas a serem traçadas quando falamos dessa região. Se é possível seguir alguns passos de proprietários de terras pelos documentos oficiais da época, nem por isso se torna fácil entender os processos que se deram na região e conformaram a cidade, em especial acerca do trabalho escravo. Contudo, abrindo novas hipóteses sobre as demarcações de terras, também notamos outras possibilidades de documentações que jogam luz à história da resistência dos escravizados na região. A pesquisa referente à escravidão em Campinas – já amplamente estudada por nomes como Peter Eisenberg (1989) e Robert Wayne Slenes (2011) –, nas terras da comarca onde nasceria
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a futura Americana, mostram que ela estava presente desde as primeiras ocupações de terras. Como já comentado, há diversas referências ao uso de mão de obra escrava por famílias como os Vilela ou mesmo no período do início da industrialização da região, no final do século XIX. Nas documentações estudadas durante a pesquisa, é perceptível como os escravizados eram sinal de poder entre os senhores de terra e fundamentais para seu enriquecimento. Antônio Manoel Teixeira, por exemplo, tem em seu inventário uma lista na qual constam mais de quatrocentos escravizados em sua propriedade. Na família Campos Penteado, a grande quantidade de escravizados também chama atenção nos documentos: no inventário de José de Campos Penteado, por exemplo, constam mais de duzentos cativos. Entretanto, na cidade de Americana, essa história é muitas vezes esquecida ou mesmo apagada, dando-se maior destaque à imigração italiana, norte-americana ou de outras das várias nacionalidades europeias, fortalecendo um discurso de que essa foi a mão de obra essencial para a formação sócio-econômica, cultural e mesmo étnica da região. É comum encontrar uma narrativa de exaltação dos colonos, afirmando, por exemplo, que “superaram tudo com valentia, tornando-se posteriormente os industriais, comerciantes e seus descendentes, profissionais liberais, sobrepujando todas as barreiras e restrições a eles impostas” ou que tinham uma cultura rica e muitas técnicas de trabalho, favorecendo o desenvolvimento econômico brasileiro (GOBBO, 1999, p. 28). Percebe-se que escassamente são utilizadas as mesmas categorias para se referir aos escravizados, como a ideia de riqueza cultural. Notamos, portanto, a existência de pesquisas históricas que não abordam as violências da escravidão no início da formação de Americana, mas também que não analisam esses sujeitos históricos como essenciais para a emergência da região. É interessante notar que, nesse sentido, os estudos sobre a cidade parecem se afastar das inúmeras pesquisas sobre a história de Campinas e a mão de obra escravizada, deixando de lado o pertencimento da Villa Americana às mesmas lógicas econômicas da comarca da qual era parte. As primeiras ocupações na região de São Carlos, de onde depois se desmembraria Campinas, constam do ano de 1793. Segundo os estudos do pesquisador Peter Eisenberg, disponíveis no acervo do Arquivo Edgard Leuenroth, na Universidade Estadual de Campinas, a estimativa de habitantes de São Carlos em 1798 - isto é, na região que abrangia onde se localizariam posteriormente Campinas e Americana - era de 701 pretos e mulatos cativos em um total de habitantes de 2508, ou seja, os escravizados contavam 28% da população. Em 1829, apenas trinta anos depois, a região já contava com 4263 pretos e pardos cativos, sendo 56% da população total de 7627 habitantes. Por fim, em 1854, na já chamada comarca de Campinas, o total de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 155-172, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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escravizados é de 15285 enquanto a população total é de 32011 pessoas, portanto, a porcentagem de cativos é de 47,74% da Comarca. Tem-se com esses estudos uma ideia da importância desses escravizados na história da região, perceptível pelo grande crescimento da população de cativos. Um levantamento prévio de documentações nos arquivos Martha Watts, em Piracicaba-SP, no Centro de Memória da Unicamp e no Arquivo Público do Estado de São Paulo apresentam uma série de listagens e processos judiciais de escravizados, mostrando não só violências como também as possíveis agências desses sujeitos históricos. Por fim, as histórias que buscamos analisar sobre Americana no século XIX confluem para a formação do que viria a ser a urbanização da cidade e marcá-la até seu presente. É a partir das terras de Salto Grande que, no final do século XIX e mais fortemente no século XX, se instalam as fábricas de tecido Carioba, vila operária que garantiu o apelido de “Princesa Tecelã” ao município. Estudar a história de Americana a partir da busca das fontes históricas é um desafio que apenas começou, abrindo novos caminhos que os Historiadores Independentes de Carioba estão dispostos a trilhar.
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INVENTÁRIO DE ANTONIO DE CAMARGO PENTEADO, 1º Of., Cx. 11, Proc. nº 280, 1812. INVENTÁRIO DO COMENDADOR ANTONIO MANOEL TEIXEIRA. 1º Of., Cx. 162, Proc. nº 2899, 1852. INVENTÁRIO DE JOSÉ DE CAMPOS PENTEADO, 1º Of., Cx. 155, Proc. nº 3284, 1860. INVENTÁRIO DO COMENDADOR FRANCISCO TEIXEIRA VILELLA. 1º Of., Cx. 257, Proc. nº 4359, 1873. INVENTÁRIO DE BARBARA PAES DE BARROS CAMPOS, 3º Of., Cx. 370, Proc. nº 7512, 1888. LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas 1850-1900. São Paulo: Edusp, 1996. LEMOS, Carlos A. C. Casa Paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1999. NEVES, Erivaldo Fagundes. História e região: tópicos de história regional e local. Ponta de Lança. São Cristóvão, v.1, n. 2, p. 25-36, abr. 2008. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/ pontadelanca/article/view/3146/0>. Acesso em: 08 abr 2019, às 16h47. POPULAÇÃO DE CAMPINAS - SEXO E CONDIÇÃO LEGAL; POPULAÇÃO EM GERAL - % VARIDADE 20-49 OU 21-50. Acervo Peter Eisenberg, pasta 587. PUPO, Celso Maria Mello. Campinas, município no Império. Fundação e Constituição; usos familiares. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1983. PUPO, Celso Maria Mello. Campinas, seu berço e juventude. Campinas: Academia Campinense de Letras, 1969. REGISTRO DE TERRAS DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, COMARCA DE CAMPINAS, 1854-1857. Microfilme nº 3006. RIBEIRO, Maria Alice R. Música no ar... Cachoeira, Santa Maria, Morro Alto e Saltinho. Teixeira Vilela, Hercule Florence e Carlos Gomes, Campinas, século XIX. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 53-75, maio 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142016000200053> Acesso em: 27 jul. 2018. RIBEIRO, Maria Alice R. Riqueza e endividamento na economia de platation açucareira e cafeeira: a família Teixeira Vilela-Teixeira Nogueira, Campinas, São Paulo, século XIX. Estudi.ecom. São Paulo, v. 45, n. 3, p. 527-565, jul. 2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/0101-416145353mar>. Acesso em: 27 jul. 2018. RIBEIRO, Maria José, F. A.; FERREIRA, Melquesedec. Americana e sua história. Americana Prefeitura Municipal de Americana, 2010. RIBEIRO. Maria Jósé, L. V. (Org.). Descobrindo Americana: um grande salto. Americana: Prefeitura Municipal de Americana, 2008.
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RIBEIRO, Suzana Barreto (coord). Sesmarias, Engenhos e Fazendas; Arraial de Souzas, Joaquim Egydio, Jaguary (1792 - 1930). Campinas: Novo Mundo, 2016. SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes von (org.).O garimpeiro dos cantos e antros de Campinas : homenagem a José Roberto do Amaral Lapa. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. STOCK, Suzete de Cássia, V. Carioba: um lugar, uma herança. São Paulo: Ed. Lexia, 2010.
Recebido em: 12 de fevereiro de 2019 Aprovado em: 22 de maio de 2019
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Enunciações e corpos que importam: uma leitura de Clarice Lispector Enunciations and bodies that matter: a reading by Clarice Lispector Jacob dos Santos Biziack*
Resumo
Abstract
Este artigo propõe uma leitura de A hora da estrela, de Clarice Lispector, a partir, principalmente, do conceito de enunciação para a análise do discurso, orientada pelas obras de Michel Pêcheux e Eduardo Guimarães. Entendendo a enunciação com base em um sujeito discursivo e não em um empírico que transmitiria uma experiência sua, compreendemos que ela funciona afetada pela ideologia e pela história. Sendo assim, a enunciação, como prática discursiva, não estabelece relação direta com “a realidade”, ainda que funcione como se fosse transparente. Problematizando esta ilusão referencial que afeta o sujeito e a enunciação, analisamos a novela de Lispector para continuarmos pensando o político, que faz funcionar a linguagem – portanto, o simbólico – na narrativa, pensando como o corpo da personagem central, Macabéa, é elaborado pelo enunciador em relação ao espaço urbano e ao imaginário social nos procedimentos de significação.
This article proposes a reading of Clarice Lispector’s A hora da estrela, based mainly on the concept of enunciation for discourse analysis guided by the works of Michel Pêcheux and Eduardo Guimarães. That is, understanding the enunciation in view of the discursive subject and not an empirical one that would transmit an experience of his, we understand that it works affected by the ideology and the history. Thus, enunciation, as a discursive practice, does not establish a direct relation with “reality”, although it functions as if it were transparent. By analyzing this referential illusion that affects the subject and the enunciation, we analyze the novel by Lispector in order to continue thinking about the politician who makes the language – and therefore the symbolic – work in the narrative, thinking like the body of the central character, Macabéa, is elaborated by the enunciator in relation to the urban space and the social imaginary in the procedures of signification.
Palavras-chave: Enunciação; Corpo; Clarice Lispector; Análise do Discurso; Judith Butler.
Keywords: Enunciation; Body; Clarice Lispector; Discourse Analysis; Judith Butler.
* Doutor em Estudos Literários pela UNESP Araraquara (com pós-doutorado pela USP Ribeirão Preto e UFRJ); Docente e chefe de Seção Pedagógica do IFPR Palmas; pós doutorando pela UNICAMP (Grupo Mulheres em Discurso, supervisão da Profa. Dra. Mônica Graciela Zoppi-Fontana). E-mail: jacob.biziak@ifpr.edu.br Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o Enunciação que importa
G
De repente, a gente vê que perdeu Ou está perdendo alguma coisa Morna e ingênua que vai ficando no caminho Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás (Cazuza, “Poema”, 2000) enette, na importante obra Discurso da narrativa ([197-]), inova ao apresentar o narrador como operador do texto literário, com base na ideia de ponto de vista, foco narrativo. No entanto, o crítico literário francês ainda aborda a diegese desconsiderando a
ideia de sujeito1, como se este – centrado em si mesmo, focado na comunicação com o outro
e envolvido por um mundo transparentemente percebido – não precisasse sofrer uma revisão teórica. Tal perspectiva é muito bem descrita por Zoppi-Fontana (2015, p. 252) como metáfora da “encenação”: Como encenação, o que leva a considerar uma multiplicidade de figuras enunciativas (máscaras) mostradas pelo enunciado, organizadas em relação à figura do locutor, que funciona (pela presença ou ausência) como princípio organizador. Neste caso, entende-se o “desdobramento da personalidade” como uma multiplicação dos lugares de enunciação disponíveis para o sujeito, o qual fica necessariamente fora do jogo enunciativo, irredutível na sua posição de autor/ diretor da peça. Dito de uma outra maneira, desde que a relação que se estabelece entre o sujeito falante e as diferentes figuras enunciativas é de irredutível exclusão (a descrição do sentido de um enunciado só considera as últimas), a multiplicação dos lugares de enunciação não abala estruturalmente ao sujeito, o que é ainda representado (ou suposto, nos casos em que não 1 Procedimento que sabemos ser típico do chamado Estruturalismo.
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há uma explicitação teórica a seu respeito) como dono e mestre de um dizer intencionalmente orientado.
Na perspectiva teórica com que trabalhamos, a análise do discurso elaborada por Pêcheux (1988, 1990), o sujeito não só é constitutivamente dividido, como isso o afeta enquanto falante, que acredita dizer de maneira intencional e orientada, mas somente como efeito do funcionamento da ideologia e das práticas históricas na língua. Dessa maneira, em meus trabalhos mais recentes com o texto literário, venho optando por trabalhar com o termo enunciador ao invés de narrador, justamente para marcar, em meus gestos de leitura, aquilo que entendo como fundamental a esse “ponto cego” do “ponto de vista” (ZOPPI-FONTANA, 2015), que não pode excluir o sujeito discursivo. Além disso, entendo a interpretação como movimento, cuja prática intervalar é, segundo Orlandi (1996), lugar próprio da ideologia, sendo convocação ao sujeito – ele sofre injunções para que atue como intérprete – mediante a relação entre língua e história. A materialidade desta atua como necessária ao funcionamento do discurso, operando na construção e funcionamento do campo imaginário. Em outros termos, o discurso (PÊCHEUX, 1988) é o local em que o sujeito representa a realidade dentro de uma relação – ou seja, não há centro, mas relacionamento com uma alteridade que se acredita absoluta, Uma, centrada em si mesma, evidente – com as determinações históricas, constituindo as condições de produção material de sua existência. Esta, então, por sua vez, não é instância transcendental, a-histórica, universal, “para além do sujeito”. Portanto, o discurso – como objeto teórico – é fundamento da reflexão que entende a relação material entre inconsciente e ideologia pela linguagem, suporte simbólico dos mecanismos imaginários. Cria-se, assim, a ilusão referencial entre sujeito e realidade(s), inclusive de sua identidade: o real da língua e da história2; logo, é o irrepresentável que resiste, atua e deixa rastros no simbólico, por meio da falha e do equívoco, contradições essenciais para que o indivíduo emerja como sujeito na linguagem e possa falar. Fuchs e Pêcheux (1990, p.173-176) propõem que o sujeito fala, enuncia, não como ator empírico, mas como materialização da ideologia e do discurso na língua: O que falta atualmente é uma teoria do funcionamento material da língua em sua relação consigo própria, isto é, uma sistematização que não se opõe ao não sistemático (língua/fala), mas que se articula em processos. Se convencionamos chamar “semântica formal” à teoria deste funcionamento material da língua, pode-se dizer que o que falta à análise linguística é precisamen2 Conforme Orlandi (2009) desenvolve, para a análise do discurso de Pêcheux, a relação entre pensamento, mundo e linguagem não é unívoca. Ao mesmo tempo, não há o entendimento de que o sentido mora em um “outro lugar” idealizado e inacessível – de rastro platônico – o que quer dizer que a significação funciona a partir da sua materialização na linguagem. Conforme a autora lembra, o real da língua e o da história não são iguais: mas, quando história e língua se atravessam é produzida e posta em ação uma materialidade que não é abstrata – como no Estruturalismo ou no Formalismo, sem sujeito – e, sim, forma encarnada na história. Assim, surgem as proposições básicas da AD: a língua tem sua ordem específica; o real da história é afetado pelo simbólico; o sujeito é cindido porque afetado pela ideologia e pelo inconsciente. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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te essa semântica formal que não coincide de modo nenhum com a “semântica discursiva” (...). A expressão “semântica formal” (...), que definiremos adiante como o último nível de análise linguística, atingiria, neste sentido, o lugar específico da língua, que corresponde à construção do efeito-sujeito. (...) Se definirmos a enunciação como a relação sempre necessariamente presente do sujeito enunciador com o seu enunciado, então aparece claramente, no próprio nível da língua, uma nova forma de ilusão segundo a qual o sujeito se encontra na fonte do sentido ou se identifica à fonte do sentido. (...) os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por característica colocar o “dito” e em conseqüência rejeitar o “não dito”. A enunciação equivale pois a colocar fronteiras entre o que é “selecionado” e tornado preciso aos poucos (através do que se constitui o “universo do discurso”), e o que é rejeitado.
Assim, “dito” e “não dito” operam relacionalmente de forma a atuar sobre a significação enquanto funcionamento. Isso se torna ainda mais forte quando se declara (PÊCHEUX, 1988) que o sujeito enuncia sob o efeito de dois esquecimentos: o número um, ideológico, pelo qual o enunciador age, acreditando ser a origem de seu dizer; o número dois, enunciativo, pelo qual se esquece que o dito poderia se dar de/em outras formas. Portanto, nem o léxico é estoque de palavras à disposição do enunciador; nem a sintaxe é “pura forma” à espera de preenchimento de funções pré-estabelecidas à enunciação. Articulando a Linguística com uma leitura althusseriana de ideologia (por seu turno, concatenada com propostas lacanianas sobre o inconsciente, por exemplo) e do próprio marxismo, Pêcheux (1988) entende que o sujeito enuncia por meio do assujeitamento3 imposto pela interpelação ideológica. Por intermédio disso, o “eu” atua tendo uma perspectiva imaginária de si e do “(O)outro”, de forma a acreditar que “sabe” para quem se “comunica” e o que precisa dizer para “se expressar”, ignorando que sua identificação é imaginária. Não se trata de um “defeito” da língua, mas da condição que a constitui: operar de maneira a sempre se inscrever no simbólico a partir do que continuamente precisa afirmar como pertencimento a si mesma, para que possa, então, se projetar ao outro. Mas, como afirma Orlandi (1999), além da necessária identificação com a ideologia para poder emergir, acontecer, o sujeito precisa, em seguida, se identificar com as posições-sujeito permitidas pelo Estado como possibilidades de significação sobre o que é ser “cidadão de direitos”, por exemplo: Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de 3 Mais uma importante contradição oriunda da ação da ideologia e da história no atravessamento com a língua. O indivíduo só se reconhece como sujeito a partir do momento em que, interpelado, performatiza uma imagem unívoca de si para poder ascender à enunciação: ou seja, a evidência de liberdade e unidade do dizer se faz às custas da perda destes dois valores, uma vez que é nos termos de e em relação a um Sujeito Absoluto que ocorre a subjetivação e identificação.
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mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas. (LISPECTOR, 2017, p. 49)
No primeiro trecho que reproduzo de A hora da estrela (2017), temos os instantes iniciais da narrativa. Aqui, algo se realiza e vai estar presente ao longo da enunciação da novela toda: além das dificuldades para escrever, Rodrigo SM (nome da fonte a quem se atribui o dizer da/na novela), a todo momento, questiona-se sobre a validade da sua escrita diante da complexidade que acredita haver na existência e na figura miserável de Macabéa. Rodrigo SM alterna, principalmente, efeitos de generalização e de maior pessoalidade com o que diz, e uma das maneiras de fazer isso é pelo uso de pronomes e verbos declinados na terceira e primeira pessoa. No entanto, para além disso, é necessário perceber de que maneira as referências sobre “ser mulher” são tomadas como efeito de já-construído – “sei que há moças”, “ninguém a quer”, “descubro eu”, “teria que ser” – produzindo e fazendo funcionar sentidos sobre feminilidades como dados evidentes, construídos alhures e não por ele em uma posição de enunciador. Aliás, seu questionamento sobre o valor da escrita, elaborada no ato de dizer da/na novela, não leva em conta isto: o próprio acontecimento do enunciar ocorre, primeiramente, porque é possível uma identificação com a ideologia, a qual se inscreve nas relações imaginárias de Rodrigo SM consigo mesmo e com Macábea. Estas, por seu turno, continuam a ocorrer por meio das condições fornecidas pelo Estado e, neste, a personagem alagoana não entra como cidadã reconhecida como plena de direitos, já que nem o corpo possui para dispor à venda, uma vez que “ninguém” a quer (e quem é ninguém?). Logo, uma falta constitutiva permite a enunciação da novela, dado que Rodrigo SM, ainda que questione, em alguns instantes, a ilusão de exterioridade e as referências evidentes de que dispõe, não consegue se fazer sujeito em condições diferentes. Dessa forma, a democracia (ZOPPI-FONTANA, 2011) – em que se constitui modernamente o sentido para ser “cidadão” – significa como liberdade, produzindo efeitos nas atualizações discursivas, como os efeitos de evidência da livre expressão e da transparência dos dizeres: sob essa naturalização de que há um Sujeito Absoluto de direitos, pensa-se na pobreza e na existência mirrada, “capim”, de Macabéa. No entanto, contraditoriamente, porque dividido em si mesmo para poder falar, Rodrigo SM enuncia como se houvesse cobertura simbólica sem furos, ao mesmo tempo em que se apropria deles, inevitáveis, para fazer matéria-prima da novela. O questionado pelo enunciador, por outro lado, é o que permite que ele fale, não só por o constituir, mas também como assunto sobre o qual se debruça: (Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo que é novo assusta. (...)). (LISPECTOR, 2017, p. 63)
Como no exemplo acima, o uso dos parênteses ao longo da narrativa é recurso comum para introduzir reflexões paralelas ao que vem sendo desenvolvido, de maneira que, neles, é criada uma interlocução diferente, diretamente dirigida ao leitor. No entanto, este não deve ser tomado como outro elemento empírico, mas enquanto função (ORLANDI, 2005). Dessa forma, o enunciador (que, em uma primeira leitura, mais superficial, parece atender por Rodrigo SM) cria o leitor com o qual dialoga, sendo que este habita o próprio texto, não sendo externo a ele. Ou seja, o leitor é tomado por SM como unidade imaginária, cuja identificação aproxima com a sua, “média burguesia”, não existindo enunciação “ao vento”, mas, sim, que performatiza o outro com quem fala, convocando-o a interpretar, mesmo que em condições de produção diferentes, o que pode promover o deslizamento de sentidos dos enunciados: Por isto usamos a palavra “individuação” que remete necessariamente ao fato de que se trata de um sujeito individuado, ou seja, a forma sujeito histórica, no nosso caso capitalista, passando pelo processo de articulação simbólico-política do Estado, pelas instituições e discursos, resultando em um indivíduo que, pelo processo de identificação face às formações discursivas, identifica-se em uma (ou mais) posição-sujeito na sociedade. (ORLANDI, 2010, p. 22)
Isso que vem sendo apresentado até aqui é importante à medida que serve para (re)pensarmos certas leituras que, comumente, são elaboradas não só a respeito de A hora da estrela, mas, também, do conjunto de narrativas de Lispector. É senso comum, inclusive, quando se lê ou escuta algo sobre tais obras, a ênfase no trabalho com a linguagem – “hermética”, de difícil compreensão – e com os “dramas da existência”. Isso é tão repetido que faz existir e funcionar uma realidade sobre essas diegeses, atuando como já-dado, interferindo nos processos de leitura. Ao mesmo tempo, acredito que a enunciação da novela que estamos lendo aqui acaba auxiliando porque, ao trazer aspectos temáticos sociais de maneira mais explícita, permite que outras reflexões surjam e sirvam para que se coloque a obra como um todo em outro horizonte hermenêutico. Temos uma escrita labiríntica em A hora da estrela – comumente com a sensação de sem saída, sem leitura definitiva – porque quem se assume como responsável pelo dizer trabalha de maneira, inclusive, a intervir na memória geralmente aceita sobre o que seria uma narrativa “tradicional”. No entanto, a própria “tradição” é efeito discursivo que só existe dentro de um processo de individuação do sujeito diante da ideologia e das posições-sujeito chanceladas pelo Estado, inclusive as dos “abjetos”. Dessa perspectiva, os enunciados que, aparentemente,
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emanam de SM, ao mesmo tempo em que parecem fazê-lo identificar-se como indesejável, já que é escritor de certa literatura nem sempre de fácil consumo, projetam isso sobre Macabéa, outra indesejável. Mas, por outro lado, trata-se de um jogo de projeções e deslocamentos mediante a contradição constitutiva da enunciação, uma vez que o enunciador da novela se desdobra em pronomes diferentes e personagens diferentes porque não é possível a unidade para falar de si, de forma que a mulher-capim-miserável também é o escritor de “média burguesia”, dado que a posição-sujeito que permite falar é a que faz ambos existirem. É em relação a uma projeção imaginária de Sujeito de Direitos que a linguagem devora a si própria, à medida que afirma e, sem perceber, problematiza o que toma como evidente: E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? (...) Antecedentes meus do escrever? Sou homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que possa desequilibrá-la, a baixa nunca vem a mim. Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. (LISPECTOR, 2017, p. 53)
Trata-se de uma escrita “faísca” e “lasca” que parece, em sua superfície, “rocha inteira”, sendo não só o escrever difícil, mas o processo de interpretação também, já que não se produz para descobrir a essência do enunciador, mas é procedimento “duro como quebrar rochas”, no qual o evidente atua para ser fragmentado, posto em circulação, movimento pendular. Por isso, a escrita enunciada não é mentira como paráfrase de “invenção”, mas como representação posicionada em dada formação discursiva4, sendo impossível escapar a isso, tornar-se e ver-se externo à língua e à ideologia, a não ser como efeito imaginário. Ou seja, por mais inovadora que uma escrita surja em alguma historiografia literária, ela reproduz rituais enunciativos, condições do dizer, justamente para se fazer legível, afirmando – muitas vezes, sem perceber – sua filiação histórica por meio das famílias parafrásticas5. 4 Pêcheux, em seus escritos como um todo, traz o conceito de formação discursiva a partir da obra de Foucault. Sendo assim, acredito que Ana Zandwais (2013, p. 47) nos traz um bom norte para pensarmos: “De modo paradoxal, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição. Parece que é a partir daí que a reflexão de Foucault evolui para chegar à concepção de que é um semelhante sistema de dispersão entre um número de enunciados que dá origem a uma Formação Discursiva. Ampliando, nomeia regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição”. 5 Como nos lembra Zoppi-Fontana (2003, p. 250): “Para o estudo das relações de paráfrase que se estabelecem entre os enunciados, seguimos a Fuchs (...) e Fuchs & Pêcheux (...) que definem família parafrástica como um conjunto de seqüências relacionadas entre si por operações de substituição. A família parafrástica funciona como matriz de sentido para a produção de novas seqüências que significam (e referem) a partir das relações de paráfrase que estabelecem com as demais seqüências da família”. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Eduardo Guimarães (2002)6, aprofundando as possibilidades de leitura sobre a enunciação e dialogando com Pêcheux (1988), também entende o “ego” como da ordem do discurso e que comparece ao sujeito como função real essencial, acrescentando ao estudo da enunciação o político. A partir disso, compreende-se que a relação do falante com a língua não é unívoca, mas funciona através de uma disputa incessante pelo dizer. Entendendo o espaço de enunciação como a divisão desigual da língua, é nele que o sujeito se constitui entre formas e direitos de dizer, buscando afirmar pertencimento. Ou seja, é tal divisão – e não o Um, o íntegro – que leva o falante a se identificar para, politicamente, poder enunciar. Não há homogeneidade, mas heterogeneidade povoada por desiguais. Como vimos anteriormente, Rodrigo SM, ao falar sobre “moças que vendem o corpo”, realiza tal prática a partir do momento em que adentra o espaço conflitivo da língua, assume posição e, dela/nela, fala, naturalizando a “obviedade” das prostitutas como paráfrase de quem vende “o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela”. É dessa – e somente dessa – posição na formação discursiva que o corpo e a vida de Macabéa vale menos e, logo, não pode ocupar o mesmo espaço como cidadã e como alguém que se inscreve no espaço urbano. Paradoxalmente, em momentos que irrompem na narrativa, reorganizando sentidos, o próprio enunciar se martiriza como discurso outro, quebrando as cadeias parafrásticas que vêm sendo atualizadas e reelaborando impossibilidades de conseguir falar de uma vida pobre, como a da moça vislumbrada na feira, muda. Tal divisão constitutiva dos sujeitos – já que a língua só pode ser acessada desigualmente por eles – permite que Guimarães (2002) pense no agenciamento enunciativo como operador de leitura das enunciações. Em uma cena enunciativa – que são locais específicos de acesso ao dizer nos espaços de enunciação – são construídas as figuras que permitem funcionar os lugares de dizer, de forma que o sujeito seja imaginariamente percebido como centrado em si. Nela, na cena, o Locutor (de que acreditamos ser a fonte dos enunciados) engaja-se em um lugar social – assumindo posição nas divisões da língua – que o predica e, assim, permite que fale. Tal funcionamento, no entanto, em um primeiro instante, é percebido como uniforme, transparente, por meio da ação do enunciador, o qual representa lugares de dizer. Como venho analisando, os Locutores a quem os enunciados da novela atribuem fonte do dizer são Clarice Lispector e Rodrigo SM, assumidos como desdobramentos um do outro. 6 A semântica do acontecimento, desenvolvida por Guimarães (2002), estabelece fortes diálogos com o percurso teórico de Pêcheux, mas inova à medida que entende a enunciação como um desdobramento – agenciamento – que produz o dizer. De maneira que, aqui, enunciador não é sinônimo da instância enunciativa por completo, mas parte da criação de possibilidades para que se diga algo. Por exemplo, na teoria literária mais comumente estudada, em A hora da estrela, o narrador é Rodrigo SM, instância do dizer. No entanto, segundo a filiação teórica que assumo neste trabalho, não é possível dizer que o enunciador é Rodrigo SM: este é tão somente uma figura nomeada como a fonte do falar, ainda que não haja sujeito capaz de ser origem do próprio dizer. O enunciador, então, corresponde ao lugar de dizer em que ocorre modulação dos enunciados em sua superfície linguística para fazer operar efeitos de individuação ou universalização, por exemplo, que apagam a constituição cindida da enunciação (esta, para criar ilusão de comunicação, em um primeiro momento, precisa ser recebida como “inteira”).
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Na verdade, o nome do Locutor não afeta o procedimento central para que ocorra enunciação. A partir do espaço enunciativo da “média burguesia” em que o escritor não se percebe valorado como outros cidadãos – e o mesmo se pode dizer de Macabéa -, Clarice Lispector/Rodrigo SM7 engaja-se e assume uma posição para poder representar a realidade, afetado pela historicidade das condições de produção de ser escritor em uma contingência descrita pela distribuição desigual de riquezas e de trabalhos. Assim, como locutor-x, o dizer pode ser percebido como um agenciamento através do qual se fala a partir de um local do interdiscursivo, uma posiçãosujeito que vai recortar a memória – que não é contínua, já que vislumbrada nunca por “inteiro” (o que, na verdade, não existe), mas por fracionamentos – por intermédio de uma relação com a língua sobredeterminada. No entanto, essa natureza política do acontecimento da enunciação acaba sendo mascarada, silenciada, através do apagamento da disparidade entre Locutor/Clarice Lispector/Rodrigo SM e locutor-x/ escritor(a) de média-burguesia. Isso ocorre porque surge o enunciador como um lugar de dizer que parece íntegro, oscilando, no caso da narrativa em questão, entre o individual (quando assume o “eu”), o coletivo (quando o “nós”, na relação com o leitor estabelecido como enunciatário) e o universal (quando se estabelecem afirmações com efeitos de saber universal). Por meio dessa complexa prática, o dizer surge, ascendendo um enunciador, díspare em si mesmo, que assume uma imagem de indivíduo empiricamente possível por meio da ação do simbólico sobredeterminado pelo interdiscurso. Com isso, o enunciador cria uma temporalidade, um efeito de presente (na verdade, encontro entre passado da memória recortada de uma posição e futuro, desejo de significação para o leitor, afetado pela falta que instala a hiância do agenciamento): Ninguém pode entrar no coração de ninguém. Macabéa até que falava com Glória – mas nunca de peito aberto. Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos intermináveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia dela um desafio que se resumia em ‘ninguém manda em mim’. (...) Muito bem. Voltemos a Olímpico. (LISPECTOR, 2017, p. 92, grifos meus)
Graças ao que venho defendendo até aqui, os enunciados em negrito no trecho anterior acabam funcionamento como família parafrástica de “peito aberto”, como se fossem sinônimos, mas cuja referência não existe a priori, e sim como efeito de já-dado em outro lugar. Tais enunciados destacados, na verdade, fazem circular sentidos que refratam as relações dos lugares 7 Na primeira página da novela, já encontramos a “Dedicatória do autor (na verdade Clarice Lispector)”: jogo de nomes que estabelece um efeito de que o dizer possui um “dono que fala em um presente” e a quem podemos nos referir enquanto ego autônomo. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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sociais da instância enunciadora com os das personagens, “faladas” por esta. Tal funcionamento, como se pode ver, por meio dos itálicos, é dissimulado por uma alternância de enunciadores que, em seu conjunto, acabam atuando para dar autoridade ao narrado – por intermédio do primeiro enunciador em itálico que marca lugar de dizer universal – e estabelecendo efeito de proximidade com o leitor almejado, por meio do “voltemos”, lugar de dizer coletivo. Dessa forma, a enunciação que importa – no funcionamento da diegese – é a do apagamento da divisão constitutiva do dizer8. Mesmo quando o enunciador assume lugar de dizer para falar sobre a impossibilidade de transcender suas limitações para representar a miséria de Macabéa, só pode fazê-lo de uma posição específica, lugar social que modalizará léxico e sintaxe na construção de uma realidade, diferente em si mesma. Logo, os corpos que (não) importam ganham possibilidade de surgimento dentro desse funcionamento, não estando nunca desde-já-lá: a performatividade cria a imagem de um presente no qual alguém diz e personagens perambulam.
Corpo e vida que importam Butler (2003) desenvolve sua teoria de maneira que vejo certa possibilidade de interlocução com o que venho analisando até aqui. A filósofa propõe – ao pensar os gêneros – um rompimento com a perspectiva biológica, quando entende que toda representação, ao entrar no campo da linguagem, não está mais determinada por nenhum tipo de naturalismo, mas é produzida por/em efeitos engendrados pelas repetições de performatividades que são associadas, em determinado espaço, a um sentido ou outro. Assim, feminilidades ou masculinidades, por exemplo, não resultam de uma evidência pura simplesmente, mas de rituais que se repetem cronotopicamente. Pensando que a enunciação é o acontecimento responsável por textualizar enunciados – sejam eles de qualquer suporte linguístico, verbal ou não – são os rituais enunciativos, então, que engendram significações sobre as (im)possibilidades de representações de corpos e suas respectivas valorações, sempre relacionais. 8 Zoppi-Fontana (2004), em “A arte de cair fora”, articula um duplo movimento de dialogar, rever e continuar as teorias da enunciação e da polifonia de forma a pensar qual seria o lugar de uma terceira pessoa dentro das relações dialógicas. Pensando que o olhar – como metáfora para o funcionamento da enunciação – cria distância, teríamos um excedente de visão, de forma que, inclusive, o olhar do sujeito sobre si representa e funciona sempre como um olhar do outro. Portanto, o lugar do “ele” assume-se como extraposto e dividido, cindido, entre focalização interna e externa: “O olhar do ‘eu’ (locutor) converge com o do ‘ele’ observador (...) permitindo o deslocamento para identificar a situação atual com a passada” (ZOPPI-FONTANA, 2004, p. 64). Temos, então, uma ilusão de exterioridade – por meio do efeito de distanciamento obtido pela perspectiva do “ele” observador – que causa o apagamento das diferenças materiais entre as diferentes posições de sujeito dadas em uma formação social. Há, então, para a enunciação, uma tentativa – sempre frustrada, dado que os enunciados não são da ordem do “ter” mas do “exercer” – de controle da polissemia, como se fosse possível estar de fora da constituição do sentido.
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Dessa maneira, são operações linguísticas (como mecanismo de substituição para elaboração de sinônimos e paráfrases determinados no interdiscurso) que criam referências fixadas pelas designações (ZOPPI-FONTANA, 2003). Logo, designar um corpo refere-se a um empreendimento que ocorre em regularidades formais na materialidade linguística para os enunciados. Estamos diante, portanto, de rituais enunciativos de uso da língua, cujo funcionamento arbitrário – no sentido de que poderia ser outro em condições diferentes – se repete em determinados usos socialmente produzidos, cujos efeitos discursivos executam evidências de sentido, sobredeterminando os processos de subjetivação para construção de identidades. Portanto, o “ego”, mais uma vez, não está livre para “relatar a si mesmo” porque “O ato de relatar a si mesmo, portanto, adquire uma forma narrativa, que não apenas depende da capacidade de transmitir uma série de eventos em sequência com transições plausíveis” (BUTLER, 2015, p. 23). Ou seja, o político de Butler não estaria distante do proposto por Guimarães (2002), à medida que aponta para a necessidade de o sujeito poder falar de si somente nos termos que são dados em “outro lugar”, uma interpelação para sempre perdida porque seu momento de ocorrência não pode ser recuperado. Com isso, adentrando espaços de enunciação marcados pela divisão, o político consiste em se posicionar nos e diante dos termos do outro para se fazer existir por meio das regularidades enunciativas. Mesmo a contestação e/ou a tentativa de subversão se faz, em um primeiro momento, às custas disso, já que não é exterior ao interdiscurso e às determinações históricas: Sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primária, uma angústia, sem dúvida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados, reivindicados, vinculados ao que não somos, mas também de sermos movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nós mesmos em outro lugar e, assim, abandonarmos o “eu” autossuficiente como um tipo de posse. (BUTLER, 2015, p. 171)
A partir desta articulação teórica, podemos pensar que o corpo é possível de ser significado ao custo de ser “desfeito pelo outro”, o que significa ter sua criação de referência pela entrada do Locutor nos espaços discursivos de forma a se engajar em lugares sociais não definidos por ele e que o predicam. Vejamos mais uma cena discursiva em A hora da estrela (LISPECTOR, 2017, p. 75, grifos meus): Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de “operário” e sim de “metalúrgico”. Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo. “Metalúrgico e datilógrafa” formavam um casal de classe. A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça. O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocá-las embaixo, sobre uma placa Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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deslizante. Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo. A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro: dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia.
Analisando os termos destacados em negrito, temos deslocamentos sofridos pelos termos “operário” e “datilógrafa”, por intermédio de relações parafrásticas com os demais: não funcionam discursivamente como referência só a empregos a ser ocupados, mas como indicativos de posições sociais significadas através de certa concepção de corpo. Como já vimos, ao corpo de Macabéa, que vale menos que o das prostitutas, já que não pode vendê-lo, porque “ninguém” (quem é ninguém?) o quer, soma-se o fato de ganhar “menos que o salário mínimo” e de ser um corpo que dorme “de graça (...) em obras de demolição”. A polissemia que se dissemina permite rever que “um casal de classe” – que sofre operações sociais predicativas por meio de dois adjuntos adnominais – transita menos por um efeito de superioridade e mais pelo pertencimento na divisão desigual do espaço urbano, dado pela divisão constitutiva da língua, na qual os sujeitos não entram todos pelas mesmas portas. Além disso, não se trata de “relatos” possíveis a priori, de fora da história e da ideologia, mas determinados pela ação do Locutor Rodrigo/Clarice que, interpelado e subjetivado no espaço enunciativo como escritor/escritora na “média burguesia”, oscila entre vozes mais individuais, coletivas e universais, sentindo-se constrangido justamente pela limitação que sua enunciação sofre, dentro de um tempo também dividido, um presente que não preenche ao mesmo tempo em que é saturado. Com isso, a aparente “encenação” da existência é “de classe”, refletindo o equívoco de que a história é capaz nas falhas do simbólico. Benedito Nunes (1989, p. 163), um dos mais canônicos estudiosos brasileiros da linguagem em Lispector, afirma: A voz do narrador-personagem é bastante jocosa para anunciar que a história pobre da datilógrafa desenrolar-se-á acompanhada pelo ruflar de um tambor, “sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo, com gosto do cheiro de esmalte de unhas e de sabão Aristolino”, e bastante séria para mediar o confronto da situação humana de Macabéa com o ofício e o papel do escritor. As peripécias da narração envolvem o dificultoso e problemático do ato de escrever – questionando quanto ao seu objeto, à sua finalidade e aos seus procedimentos.
Pelos trechos que destaquei, percebemos que Nunes ressalta a ideia de “confronto”, na narrativa de A hora da estrela, entre a situação paupérrima da protagonista e os “dramas da linguagem” vividos pelo “ofício e papel do escritor”, “dificultoso e problemático”. No entanto, acho necessário acrescentar a isso que tais problemas não podem corresponder, no gesto de leitura que tomo aqui, a uma visão transcendental ou metafisica de “problema” e “pobreza”, mas a uma
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referência construída pelo funcionamento da enunciação – que se dá por meio de agenciamentos de vozes – no qual o sentido assume direções determinadas, também, por relações entre classes sociais. E, mais ainda, isso interfere na interpretação, já que o leitor imaginariamente almejado não é a-histórico. Ou seja, se há questionamento do narrador é somente dentro de sua enunciação com figuras específicas e desigualmente valoradas pelas materialidades: histórica, ideológica e linguística. Vemos, aí, mais uma vez, como o discursivo é uma materialidade histórica sempre já dada, e é nela/por ela que os sujeitos são interpelados e produzidos como “produtores livres” de seus dizeres. Historicizando o corpo com Butler (2003, p. 25), “O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (...) tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Expando tal afirmação ao pensar que os corpos – como já afirmei anteriormente – ganham efeito imaginário de uniformes, inteiros e normais por meio de repetições performativamente operadas em espaços de enunciação. Ou seja, ler – logo, fazer existir – um corpo é assumir uma posição política, já que, contraditoriamente, correspondente a um apagamento, um esquecimento, da ordem do apontado por Pêcheux e Fuchs (1990), das demais possibilidades que significam pela ausência como silenciamento. No que diz respeito ao espaço urbano, as imagens criadas sobre o corpo citadino e cidadão também correspondem a processos discursivos (ZOPPI-FONTANA, 1998), o que significa um trabalho da linguagem no campo simbólico, no qual se dá a elaboração de sentido. Macabéa, portanto, é produzida enquanto “corpo que faz sentido”, cuja experiência é relatada a partir de efeitos que a constituem em um contexto sócio-histórico das cidades modernas, nas quais, pela operação da enunciação, se produz “sujeito incorporado” (o que pode parecer redundante, uma vez que não há sujeito discursivo sem corpo que lhe valore), em condições de visibilidade que são desiguais e repetidas performativamente por meio dos rituais de uso da língua. Como nos lembra Zoppi-Fontana (1998), desde o século XIX, tornou-se comum a dicotomia (e a literatura urbana desde o mencionado período textualiza isso) entre realidade e imaginário (como paráfrase de mentira), essência e aparência. No entanto, em meu gesto que dialoga com o de Zoppi-Fontana, não há corpo urbano que não seja imaginário, à medida que corresponde a um deslizamento de sentidos que coloca o social em termos espaciais (como vimos no trecho anterior da novela, em que consta a descrição do espaço de demolição, por exemplo). Ao mesmo tempo que há um agenciamento da enunciação, há um gerenciamento do espaço urbano, cuja visibilidade não é dada a priori, mas construída a partir de uma posição que desloca, por exemplo, o direito à língua para o direito à cidade e este para o problema social. Mas o problema social existe para que imagem de cidade? Pensar isso é retomar a ética em outros termos, nem sempre com conotação positiva (BUTLER, 2015), uma vez que a cidadania e a identificação do sujeito-corpo (a ordem dos termos, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 173-190, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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aqui, é importante) são definidos em condições específicas que fazem dizer, sempre e constitutivamente, pelo silenciamento também. A linguagem, então, funciona como se fosse transparente, de forma que o sujeito-corpo acredita ter direito ao mundo, como o do espaço urbano, mas sempre sofrendo interferência de sua relação em dado espaço de enunciação. Assim, é organizada a relação entre real (o irrepresentável que resiste e existe no simbólico), virtual (o que poderia ser mas ainda não é) e o imaginário (o que parece ser), nos diferentes processos de simbolização do espaço urbano. Com isso, a “necessidade” comparece ao sujeito-corpo que interpreta corpos: Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair. A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato. É quando entro em contato com forças interiores minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro. (LISPECTOR, 2017, p. 68, grifos meus)
Importante perceber, no trecho anterior, por meio dos itálicos, a alternância nos usos dos verbos: pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito e presente se relacionam de forma a instalar uma temporalidade, na qual a enunciação atribui à escrita, à textualização, um caráter de presente que é valorado como individual e universal (pelas modalizações, por exemplo, entre uso de pronomes de primeira e de terceira pessoa. Neste caso, como vemos em “Sim, e que são apenas um acaso”). Nisso, Macabéa surge como passado que durou, já que não há a marca do pretérito perfeito para a “relatar”: ela emerge, na narrativa, às custas de um desaparecimento que faz o presente do texto ganhar alguma coerência, ainda que cheio de “espanto”. Logo, a temporalidade não significa cronologicamente, mas como criação de um cronotopo que faz tempo e espaço existirem relacionalmente, de forma a criar efeito de evidência: até o espanto de SM/Lispector parece evidente em meio às representações que traz. Com isso, Macabéa não está em um passado historicizado como o dos grandes heróis, das grandes épicas, mas como vida precária. As referências que significam esta vão sendo percebidas, por exemplo, por meio dos destaques feitos por mim em negrito: é vida restrita a uma memória recortada “ao deus-dará”, sem “técnica”, nem “estilo”, “vida parca”. Tudo em uma grande metrópole
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– como a descrita pela narrativa – em que o espaço não é de pertencimento igual a todos, não só porque existiriam problemas sociais “do sempre”, mas porque o acesso à língua não é isonômico, dado que ela mesma é heterogênea em si, bem como o sujeito-corpo possível de haver nela. Portanto, a normatividade que rege e simboliza corpos deve ser repensada em novos termos: em que cidade existe uma vida “ao acaso”? Todo corpo é afetado pela sua condição precária, pois é finito, está exposto à morte, à doença. Mas, para além disso, alguns corpos são mais precários que outros, dado que este reconhecimento depende do “enquadramento” e valoração que se faz a respeito da morte (BUTLER, 2015b): se esta vale menos, em determinadas condições de produção, do que outras, tal precariedade produz formas de visibilidade e determina o valor de uma vida “ao acaso”. E todos os sujeitos-corpos estão expostos a isso, já que emergem sob termos que lhes escapam. Estamos diante de uma: ontologia social que, ao partir desta condição comum de precariedade, refuta aquelas operações normativas [...] que decidem de antemão quem se qualifica e quem não se qualifica de humano. Meu objetivo não é tanto reabilitar o humanismo quanto lutar por uma concepção de obrigação ética que se fundamenta na precariedade. Ninguém escapa à dimensão precária da vida social – tratar-se-ia, poderíamos dizer, de nossa não-fundação comum. (BUTLER, 2015b, p. 21)
(Im)Possíveis (in)conclusões
Não é possível apreender o corpo presente no espaço urbano, em que há a presença de uma ideia de direitos e de cidadania, como objeto empiricamente observável. O sujeito que acredita ser dono do dizer sofre a ação da interpelação, sendo convocado à interpretação que performatiza realidades, obrigando os corpos a se situarem nas significações, a se reconhecerem na memória. Trata-se de um funcionamento, na perspectiva butleriana (2015a e 2015b), sustentado por uma violência que não elege regimes de precariedades comuns a todos, já que adentramos desigualmente nos espaços de enunciação: não se enuncia nem se é enunciado nas mesmas condições. Isso fica marcado na narrativa de A hora da estrela, uma vez que há um narrador (imaginariamente unificado pela designação de Rodrigo SM que, enquanto instância enunciativa, é cindido, disperso na unidade), que parece construir um labirinto de linguagem ao redor da culpa de não poder dar vida, a não ser no pretérito e na morte, à personagem pobre que avista e relata. Inclusive, é fundamental perceber como sua culpa se lhe coloca como uma
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necessidade, o que, na verdade, é mais uma evidência que surge em sua ilusão referencial sobre si, o outro, a realidade e a (im)possibilidade de relatar experiências que nomeia como suas, de Macabéa e da própria narrativa. Nestes fios que vão costurando a diegese, a “beleza do que aconteceu há minutos atrás” comparece por meio de determinações históricas que nos fazem pensar não só a enunciação como também a interpretação como o lugar onde a ideologia funciona. Pensando com Zoppi-Fontana (1998), temos aqui, em A hora da estrela, uma cidade fluida por meio de um movimento discursivo de interpretação no qual se ressalta a heterogeneidade do urbano e dos corpos que o ocupam. Os espaços – enunciativos e urbano – são conflitivos e praticados como unidade polivalente que, atravessada pela memória, põe em contato gestos de interpretação sobre ser precário: SM parece reconhecer sua precariedade como escritor, mas às custas de uma outra ainda maior, a de Macabéa, passado que dura “mais que perfeito”: Em outras palavras, o paradoxo nocional cidade uma/cidade fluida não se refere a “realidades” empíricas mas a processos discursivos concretos e aos efeitos de sentido que resultam deles, produzidos ambos historicamente nas práticas de linguagem. Analisamos, assim, o confronto entre discursos que tendem a homogeneizar os múltiplos sentidos da/na cidade e discursos que incorporam e trabalham essa heterogeneidade, ou seja, exploramos o funcionamento das práticas discursivas na/da cidade em relação com os espaços de memória nos quais elas se inscrevem. (ZOPPI-FONTANA, 1998, p. 33)
Tudo isso ocorre porque a própria linguagem utilizada dá voltas, de maneira a ora revelar e ora velar o cruzamento de memórias que representam o sujeito em sua experiência e condição de inserção urbana. O conflito dos espaços enunciativos, ao mesmo tempo em que é silenciado em alguns momentos da narrativa, é problematizado em outros, principalmente quando se faz menos evidente. Tal como o escorpião que parece se matar cercado pelo fogo, a enunciação em A hora da estrela parece se fazer sofrer e manquear, mas para poder se mostrar imaginariamente inteira, ainda que para ser interpretada às “faíscas” e “lascas” e “de repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua que vai ficando no caminho”.
Referências BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Recebido em: 11 de março de 2019 Aprovado em: 23 de maio de 2019
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Identidade e Cidadania no ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca no litoral do Piauí Identity and Citizenship in the craft and ways to know-make fishing arts in the coast of Piauí Helder José Souza do Nascimento* Francisco dos Santos Moraes** Áurea da Paz Pinheiro***
Resumo
Abstract
Este artigo tem como objetivo apresentar resultados de pesquisas e registros preliminares do ofício e modos de saber-fazer da vila de pescadores artesanais, bairro Coqueiro, Luís Correia, Piauí, um dos dez municípios que integram a Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba. A investigação de natureza ação, revelou o cotidiano de quinze pescadores artesanais, proprietários de suas embarcações, construtores de apetrechos de pesca e detentores de um saber-fazer ancestral e em risco, provocado pelo avanço da pesca e do turismo predatórios, que comprometem a permanência de homens e mulheres no território pesqueiro, fragilizando a afirmação de identidades e cidadania. Com o uso da História Oral e Etnografia, de técnicas e fichas adaptadas do Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, realizamos pesquisa, cujos registros farão parte do acervo do Museu da Vila, equipamento cultural associado à Rede de Museu de Território do Ecomuseu Delta do Parnaíba.
This article aims at presenting the results of researches and preliminary registers about the crafts and know-how on an artisanal fishermen’s village, the Coqueiro discrict, in Luís Correia, Piauí. Luís Correia is one of ten cities that integrate the Delta do Parnaíba Environmental Protection Area. This action research has revealed the everyday life of fifteen artisanal fishermen, owners of their vessels, manufacturers of fishing gear and holders of an ancestor know-how that is currently at risk, triggered by the development of predatory fishing and tourism, which compromise the residence of men and women in the fishing territory, thus undermining the affirmation of their identities and citizenship. This research was carried out using Oral History and Ethnography, as well as techniques and record sheets adapted from the Application Guide of the National Inventory of Cultural References, published by the National Historical and Artistic Heritage Institute. The research, collected datathat will be part of the collection of the village’s museum, a cultural equipment associated to the Territorial Museum’s Network of the Delta do Paraíba’s Ecomuseum.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Cidadania; Artes de Pesca; Piauí
Keywords: Cultural Heritage; Citizenship; Fishing Gear; Piauí
* Mestrando em Artes, Patrimônio e Museologia, pela Universidade Federal do Piauí. Diretor executivo da TV Costa Norte, afiliada a TV Cultura, no Piauí. E-mail: phbhelder@hotmail.com ** Mestrando em Artes, Patrimônio e Museologia, pela Universidade Federal do Piauí. Graduado em Letras Inglês. Professor de Educação Básica nos municípios de Parnaíba e Luís Correia, Piauí. E-mail: moraesphb@gmail.com *** Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutora em Ciências da Arte e do Patrimônio, Especialidade Museologia, Universidade de Lisboa. Coordenadora do Mestrado em Artes, Patrimônio e Museologia da Universidade Federal do Piauí, Brasil. E-mail: aureapazpinheiro@gmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o [...] da minha família pescava todo mundo. Só que foram morrendo, morrendo [...]. Meu pai vivia pescando, também morreu [...] tinha meu irmão também que pescava, também morreu. É uma coisa que sempre nós fala, [...] quando nós se ajunta, nós mais velho, que somos pescadores, que quando for mais tarde a pesca se acaba, né? Pra nós [...]. (FREITAS, 2017)
Apresentamos nos limites deste artigo um trabalho de natureza participativa e colaborativa que envolveu em 2017 quinze mestrandos do Programa de Pós-graduação, e quinze pescadores, da antiga vila de pescadores, hoje, bairro Coqueiro, Luís Correia, que construíram um inventário do patrimônio imaterial associado ao ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca, em um território cuja marca são os processos avassaladores de globalização e desterritorização de comunidade que historicamente habitam a Área de Proteção Ambiental APA Delta do Parnaíba, formada por dez municípios dos Estados do Piauí, Ceará e Maranhão. Este trabalho se insere no contexto do Projeto Matriz Rede de Museu de Território - Ecomuseu Delta do Parnaíba, concebido como um instrumento integral e integrador de comunidades ribeirinhas, praieiras e deltaicas, que habitam a APA Delta do Parnaíba, bioma marinho costeiro, com 307.590,51 hectares, criada por decreto federal s\n de 28.08.1996, coordenada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), CR5, cidade de Parnaíba, Piauí. Na APA Delta do Parnaíba estão inseridos os municípios de Barroquinha e Chaval, no Estado do Ceará; Araioses, Água Doce, Tutóia e Paulino Neves, no Maranhão; Cajueiro da Praia, Luís Correia, Parnaíba e Ilha Grande, no Estado do Piauí. Pela natureza do território (APA), a coordenação do PPGAPM-UFPI, representada pela Prof.ª Dr.ª Áurea da Paz Pinheiro, optou pelo conceito de REDE e de ECOMUSEU, uma natureza de museu polinuclear, uma tipologia que nos serve como base de integração entre empresas públicas, privadas e sociais a serviço do desenvolvimento sustentável, no campo da museologia de cariz social. A missão e vocação de um museu, nesse caso de um Ecomuseu, é desenvolver programas, ações
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e projetos de documentação, preservação, salvaguarda, educação, comunicação da paisagem cultural, o que inclui os patrimônios cultural e ambiental de um dado território particular, singular (APA), para conhecimento, reconhecimento e valorização, promovendo a atribuição de sentidos e significados das histórias e memórias pelas comunidades ribeirinhas, praieiras e deltaicas, com estímulo a reflexões sobre formas de garantir a sustentabilidade social, ambiental e econômica, com o envolvimento das populações residentes (os pesquisadores também residem em sua maioria na APA) na constituição do Ecomuseu; uma natureza de museu que necessariamente deve servir como instrumento de informação e educação às populações, para que possam vir a participar ativamente da gestão de seus patrimônios; a entenderem e valorizarem o espaço modificado cotidianamente em suas relações como o meio ambiente. Concordamos com Varine (2012) para quem a gestão dos patrimônios deve ser feita o mais próximo de seus criadores e detentores, o que justifica a nossa opção pela Museologia e Inovação Social, que valoriza as ações educativas e sociais dos museus, entendidos como espaços de educação nãoformal, de ações culturais e de comunicação, geradores de conhecimento, reconhecimento individual e coletivo, de afirmação de culturas e identidades, de estímulo à consciência crítica, de afirmação de olhares e reflexões, que permitam desconstruir os discursos oficiais, que negam memórias de grupos minoritários e/ou marginalizados. O Conselho Internacional de Museus (ICOM, 2007) define museu como [...] uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.
O conceito de Ecomuseu remonta aos anos 1960 e está associado ao interesse e à reflexão sobre novos tipos de museus, concebidos em oposição ao modelo clássico e à posição central que ocupavam as coleções naqueles museus: ecomuseus, museus de sociedade, centros de cultura científica e técnica, de maneira geral, presentes na maior parte das novas proposições de museus, que visam colocar os patrimônios sob a gestão de agentes públicos e privados locais, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável. Esse conceito de museu está atravessado pela relação entre o ser humano e sua realidade, pela apreensão direta e sensível dos patrimônios, portanto, os objetos museais devem permanecer em seus locais de origem, logo, os museus locais, de território, de comunidades, ecomuseus e museus integral ou integrado, que tenham sob sua gestão coleções do patrimônio cultural Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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local devem representar uma tendência atual, qual seja: de participação das comunidades nos processos de gestão. Nesse sentido, segundo Desvalleés e Mairesse (2013, p.64), [...] o termo ´museu´ tanto pode designar a instituição quanto o estabelecimento, ou o lugar geralmente concebido para realizar a seleção, o estudo e a apresentação de testemunhos materiais e imateriais do Homem e do seu meio. A forma e as funções do museu variaram sensivelmente ao longo dos séculos. Seu conteúdo se diversificou, tanto quanto a sua missão, seu modo de funcionamento ou sua administração.
Como parte dos serviços de Educação a Ação Cultural, a Rede de Museus fará uso, dentre outras ferramentas, de campanhas de educação ambiental e cultural, de forma a envolver públicos diversos, dentre eles o escolar e não escolar, associações de moradores, pescadores etc. Portanto, a missão e vocação da Rede é promover ações de pesquisa, documentação e comunicação de acervos do patrimônio natural e cultural do território, para o conhecimento e valorização, de forma a promover o trabalho de histórias e memórias de comunidade ribeirinhas, praieiras e deltaicas.
O lugar da pesquisa
Em virtude do trabalho iniciado em 2008, no contexto do Projeto de Investigação “Por entre rio e mar. Delta do Parnaíba - Piauí”, de natureza histórico-etnográfica, as professoras Áurea Pinheiro e Cássia Moura, que em 2017, decidiram por ampliar a equipe da pesquisa ao envolverem alunos-mestrandos do PPGAPM da UFPI e outras instituições de ensino locais, dentre elas uma escola de formação básica com sede no Bairro do Coqueiro, o que nos permitiu entrar no lugar bairro-escola, nos aproximarmos das pessoas e iniciar estudos, registros e intervenções no campo do patrimônio cultural imaterial – as artes de pesca. Com as orientações de quem conhece o lugar e os estudos do patrimônio cultural, buscamos neste artigo narrar o processo da pesquisa, apresentar memórias de pescadores imersas em seu ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca. Segundo Maurice Halbwachs (1990, p.54) A memória individual não está isolada e fechada. Um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros, pois ele se reporta a pontos de referencia que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade, a memória in-
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dividual não é possível sem esses instrumentos que são palavras, ideias, que o individuo não inventou e que emprestou do seu meio.
Ao tomarmos o autor como referência, concordamos que as memórias individuais se apoiam nas memórias coletivas para preencher algumas lacunas, às vezes se confundindo entre si, nos permitindo afirmar que a memória individual não é inteiramente desconectada das demais. Quando Pierre Nora (1993) cunha o termo “Lugar de Memória”, se refere às lógicas socioculturais que nos permitem trabalhar, refletir sobre o nosso próprio presente e passado, a partir de representações, que definem concepções específicas de identidades Para Jacques Le Goff (2003), as ligações entre as diferentes formas de memória podem apresentar caracteres não metafóricos, mas reais. Há memórias em constante trabalho presentes em um bairro onde os residentes não reconhecem suas marcas de identidades, que o atravessam – a pesca artesanal. Homens de três gerações vivem do ofício e têm um modo singular de pescar e fazer seus apetrechos de pesca. Conseguimos ao longo do trabalho compreender que não existem histórias sem sentido e que é preciso as encontrar até mesmo onde os outros não as veem (PINHEIRO, 2008). Segundo o artigo 216 da Constituição Federal (BRASIL,1988) o Patrimônio Cultural é composto pelo conjunto dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como o de pescadores. O Decreto 3.551 de 2000, complementou a CF/88 e instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, que constituem o Patrimônio Cultural Brasileiro, e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial: Artigo 1° Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. Parágrafo 1º Esse registro se fará em um dos seguintes livros: I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. (BRASIL, 2000) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Afirmamos a nossa convicção que as artes de pesca, patrimônio da comunidade, necessitam de um olhar mais atento e sensível, para que se percebam os pontos frágeis e potencialidades do território, que abriga uma paisagem cultural única, singular.
Em 17 de outubro de 2003, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, UNESCO, em sua 32ª sessão, realizada em Paris do dia 29 de setembro ao dia 17 de outubro de 2003, aprovou a Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, ratificada pelo Brasil em 2006. Destacamos dois trechos daquele documento, que justificam a sua aprovação e que nos auxiliam a pensar sobre o estado de risco do ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca no território da pesquisa. [...] Considerando a importância do patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade cultural e garantia
de desenvolvimento sustentável, conforme destacado na Recomendação da UNESCO sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, de 1989, bem como na Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, de 2001, e na Declaração de Istambul, de 2002, aprovada pela Terceira Mesa Redonda de Ministros da Cultura. Considerando a profunda interdependência que existe entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural e natural. Reconhecendo que os processos de globalização e de transformação social, ao mesmo tempo em que criam condições propícias para um diálogo renovado entre as comunidades, geram também, da mesma forma que o fenômeno da intolerância, graves riscos de deterioração, desaparecimento e destruição do patrimônio cultural imaterial, devido em particular à falta de meios para sua salvaguarda [grifo nosso]. (UNESCO, 2003)
Afirmamos a nossa convicção que as artes de pesca, patrimônio da comunidade, necessitam de um olhar mais atento e sensível, para que se percebam os pontos frágeis e potencialidades do território, que abriga uma paisagem cultural única, singular. A praia do Coqueiro, no norte do Estado do Piauí, entre os estados do Maranhão e Ceará, tem 8 km dos 66 km de extensão do litoral. Nos últimos vinte anos, o Bairro, as pessoas, os pescadores, a orla de praia, em suma, a paisagem cultural tem sofrido inúmeras alterações, transformações, provocando desafios para manter a harmonia ser vivo, ser humano e natureza. A presença do grande capital, do turismo de massa afetam um território berçário de espécies marinhas em extinção, dentre elas, tartarugas, cavalos-marinhos e peixes-bois. fragilizam uma cultura ancestral, transmitida de forma oral de geração em geração, com destaque para as artes da pesca, construção de embarcações e apetrechos de pesca.
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Imagem 1 - Mapa Delta do Parnaíba (2017), Coqueiro da Praia, PI.
Fonte: EMBRATUR, com adaptações de Helder Souza.
O trabalho de campo
Dividimos o trabalho de pesquisa nas seguintes etapas: 1 – Teórica – realizamos estudos e análises do Manual de Aplicação; Metodologia da História Oral e Etnografia, para a concepção e realização das entrevistas temáticas com os pescadores; levantamento de fontes sobre a pesca artesanal no Brasil e no Piauí em particular. 2 – Prática – identificamos, localizamos e selecionamos, após visitas sistemáticas ao campo da pesquisa, os pescadores que seriam posteriormente entrevistados. A nossa escolha foi norteResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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ada pela idade [os mais velhos – primeira geração; adultos – geração intermediária ou segunda geração; e os mais jovens, terceira geração – os aprendizes]; pela propriedade da canoa e apetrechos de pesca e pelo exercício efetivo do ofício, o que nos possibilitou acompanhar as permanências e rupturas nos modos de saber-fazer da pesca artesanal no bairro Coqueiro. 3 – Análise de dados e construção desta escrita - transcrição das entrevistas; seleção e decupagem do material audiovisual. (PINHEIRO, 2008) • Priorizamos as entrevistas temáticas, com destaque para o ofício e os modos de saber-fazer da pesca artesanal. Os pescadores nos informam sobre os perigos do risco do ofício da pesca artesanal, dentre eles: • Pesca de arrastão, um barco de pesca que opera redes de arrasto, redes em forma de saco que são puxadas a uma velocidade que permite que os peixes, e outros tipos da biodiversidade marinha sejam retidos na rede; • Pesca predatória; • Ausência de pessoas da comunidade, sobretudo os mais jovens, interessados na pesca artesanal; • Exploração imobiliária desordenada; • Migração dos pescadores para outras atividades, dentre elas de zeladores das casas de veraneio; • Problemas ambientais, como a degradação do ecossistema costeiro, que tem acarretado a escassez dos peixes.
Os diálogos sistemáticos, a longa permanência no lugar, as entrevistas temáticas com os pescadores nos permitiram compreender a situação atual do grupo. O Manual de Aplicação, ferramenta técnica do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), foi usado como instrumento complementar no trabalho de campo, o que inclui a identificação, documentação, registro e comunicação do ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca no Bairro. O Manual de Aplicação foi elaborado sob a orientação do antropólogo Antônio Augusto Arantes (2000). O INRC é apontado pelo Iphan como uma ferramenta essencial no procedimento de identificação e documentação de bens culturais; um instrumento possível para a preservação e salvaguarda de bens culturais de natureza material e imaterial. O INRC é, antes, um instrumento de conhecimento e aproximação do objeto de trabalho do IPHAN, configurado nos dois objetivos principais que determinaram sua concepção: 1. Identificar e documentar bens culturais, de qualquer natureza, para atender à demanda pelo reconhecimento de bens representativos da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade; e 2. Apreender os sentidos e significados atribuídos ao patrimônio cultural pelos
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moradores de sítios tombados, tratando-os como intérpretes legítimos da cultura local e como parceiros preferenciais de sua preservação. (IPHAN, 2000, p.8)
O trabalho nos permitiu identificar e registrar as artes de pesca para propormos de forma coletiva um conjunto de ações colaborativas, que permitam a salvaguarda desse patrimônio ameaçado, em risco. O INRC, a História Oral e a Etnografia foram usados
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O trabalho nos permitiu identificar e registrar as artes de pesca para propormos de forma coletiva um conjunto de ações colaborativas, que permitam a salvaguarda desse patrimônio ameaçado, em risco.
como métodos-técnicas de aproximação, recolha e registro de informações, para análise e escrita, a fim de propormos soluções para os problemas identificados pelos detentores do patrimônio cultural, buscando transformações no território pesqueiro, diante de mudanças avassaladoras nos últimos dez anos no ofício e modos de saber-fazer da pesca artesanal. Somos participantes com os detentores de um saber-fazer ancestral, construímos reflexões sobre as relações da comunidade com suas referências culturais, nomeadamente com as artes de pesca. Para Cabral (2011), comunidades são redes de pessoas, cujo sentido ou ligação derivam de relações historicamente partilhadas, enraizadas na prática e transmissão, ou envolvimento com patrimônio cultural imaterial. Essa relação entre comunidade e patrimônio se faz necessária, deve ser consolidada para o fortalecimento do território, das pessoas e defesa do patrimônio cultural. A vocação do bairro Coqueiro para a pesca artesanal firma uma das identidades de um território que abriga referências culturais diversas. Na visão de Castells (2008), a identidade se constitui a partir do contexto, tendo em vista que todas as intervenções sociais e as características de cada tipo de identidade se conectam ao ser social, ao ator social, às suas necessidades em sociedade. Contudo, no que diz a respeito a atores sociais, a identidade é um: Processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significados. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas (CASTELLS, 2008, p. 22).
Entendemos que o trabalho com as memórias permite a transmissão do vivido traduzido em Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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narrativas de experiências vividas. A memória é trabalho (BOSI, 1994) e está interligada nesta investigação com o cotidiano dos detentores do patrimônio cultural – os pescadores artesanais.
Compreendemos que realizar um inventário do patrimônio cultural não é somente registrar e analisar o dia a dia de pessoas em uma comunidade, mas, dialogar e construir de forma participativa, colaborativa, documentos, resultados significativos para a transformação dos envolvidos, no caso desta investigação-ação, usando o patrimônio cultural como pretexto para o desenvolvimento e formação cidadã.
A proposta do Mestrado Profissional é que além de pesquisa teórico-metodológica, os discentes realizem intervenções nos territórios, com as pessoas usando como um dos métodos a Pesquisa Ação um instrumento político de produção de conhecimentos, que busca um aprofundamento das questões socioculturais em uma comunidade, para uma transformação da realidade, envolvendo diretamente grupos sociais na resolução de suas próprias demandas. Para Brandão (2006, p. 46): A pesquisa participante não se trata de conhecer para ´promover´ ou para desenvolver algo, mas para transformar o todo nesse ´algo´ que existe como está e, assim, deve ser transformado junto como o todo social de que é parte [...] se importar conhecer para formar pessoas populares motivadas transformar os cenários sociais de suas próprias vidas e destinos, e não apenas para resolver alguns problemas locais restritos e isolados [...] ainda que o propósito mais imediato da ação social seja o local específico.
Compreendemos que realizar um inventário do patrimônio cultural não é somente registrar e analisar o dia a dia de pessoas em uma comunidade, mas, dialogar e construir de forma participativa, colaborativa, documentos, resultados significativos para a transformação dos envolvidos, no caso desta investigação-ação, usando o patrimônio cultural como pretexto para o desenvolvimento e formação cidadã. Nesse processo dialógico com as pessoas, conhecer o universo de estudos da museologia é enfrentar desafios, identificar e analisar o comportamento individual e coletivo do ser humano frente ao seu patrimônio, em um contexto de diferentes processos de musealização. Assim, acreditamos que a pesquisa ação é viável ao longo dos estudos e ações. Entendemos que para reforçar as identidades de um território é preciso constituir processos de musealização, na contra mão do tipo de museu tradicional. Na visão de Duarte Cândido
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(2013) a museologia ao estudar as relações do ser humano diante de seu patrimônio, amplia a prática museológica para abrigar as vivências entre museus tradicionais e as outras realidades museais. Pode-se destacar o papel social da museologia à necessidade de integração do patrimônio ambiental ao cultural, a importância da função sócio educativa dos museus e do estímulo à reflexão e ao pensamento crítico, a afirmação do museu como meio de comunicação (DUARTE CÂNDIDO, 2013, p. 40).
O papel social da museologia é promover uma interação entre comunidade e suas referências culturais, independentemente da forma que se apresenta a realidade museal, se distanciando do comportamento passivo de outrora, para um dinamismo nas relações, onde o foco não se direciona somente ao estudo do objeto, mas às transformações das pessoas e realidades imersas nos territórios que habitam. Reside nesse aspecto a diferença entre museologia e demais campos do conhecimento. Ao longo do inventário que realizamos, esse campo de saber-fazer – a museologia, teve um papel para além da pesquisa, intervir na realidade dos pescadores e na comunidade, promovendo transformações. Na análise de Cristina Bruno (2009, p.9-10), Cabe salientar que a museologia oferece às outras áreas uma oportunidade especial de aproximação sistemática com a sociedade presente, para a necessária e requisitada devolução do conhecimento, uma vez que vincula suas principais preocupações em dois níveis, a saber. 1) Identificar e analisar o comportamento individual, e ou coletivo do homem ao seu patrimônio.2) Desenvolver processos técnicos para que, a partir dessa relação, o patrimônio seja transformado em herança e contribua para a construção das identidades. (grifo nosso)
De acordo com Stránsky (1980), a museologia é uma disciplina científica independente, específica, cujo objeto de estudo é uma atitude específica do Homem sobre a realidade, expressão dos sistemas mnemônicos, que se concretizam por diferentes realidades museais ao longo da história. A museologia
A identificação, registro, documentação e comunicação do ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca, construção de embarcações e artefatos associados, potencializam a valorização das referências culturais junto ao processo de musealização dentro de um território com vocação para museu, aqui entendido como fenômeno, dinâmico, livre e democrático.
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tem a natureza de uma ciência social, proveniente das disciplinas científicas documentais e mnemônicas, contribui para a compreensão do ser humano no seio da sociedade. A identificação, registro, documentação e comunicação do ofício e modos de saber-fazer das artes de pesca, construção de embarcações e artefatos associados, potencializam a valorização das referências culturais junto ao processo de musealização dentro de um território com vocação para museu, aqui entendido como fenômeno dinâmico, livre e democrático. Desvallées e Mairesse (2013, p. 65) fazem uma compilação dos conceitos de Museu desenvolvidos por autores da teoria museológica. É possível, assim, definir o museu, de maneira ampla e mais objetiva, como ´uma instituição museal permanente, que preserva as coleções de ‘documentos físicos’ e produz conhecimento a partir deles` (VAN MENSCH, 1992). Schärer, por sua vez, define o museu como ´um lugar em que as coisas e os valores que se ligam a elas são salvaguardados e estudados, bem como comunicados enquanto signos para interpretar fatos ausentes´ (SCHÄRER,2007) ou, de maneira à primeira vista tautológica, o lugar onde se realiza a musealização. [...], um ´fenômeno´ (SCHEINER, 2007), englobando as instituições, os lugares diversos ou os territórios, as experiências, ou mesmo os espaços imateriais. (grifos nossos).
Percebemos que a pesca artesanal na comunidade do Coqueiro fortalece os traços identitários no território, o reconhecimento para importância dessa referência cultural, desse patrimônio imaterial. A Carta Patrimonial de Brasília nos informa que, [...] Compreendemos a identidade como uma forma de pertencer e participar. É por isso que somos capazes de encontrar nosso lugar, nosso nome ou nossa personalidade, não por oposição, mas porque descobrimos vínculos verdadeiros que nos ligam ao destino das pessoas com as quais compartilhamos da mesma cultura. O que ficou dito nos leva a formular algumas perguntas a que é preciso responder: A que lugar pertencemos e do que participamos? Isto posto, a pergunta sobre a que lugar pertencemos nos leva à busca da identidade histórica, à valorização da tradição cultural de nossos povos [...] (Carta Patrimonial de Brasília, 1995, p.1).
Para o levantamento de fontes secundárias sobre as artes de pesca no Piauí, no território da APA Delta do Parnaíba e demais temas interconectados ao estudo, identificamos e analisamos pesquisas materializadas em dissertações e teses disponíveis no Núcleo de Referência em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Rede nomeado Desenvolvimento e Meio Ambiente (MDAM), que tem com uma das instituições participantes da rede a Universidade Federal do Piauí (UFPI).
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Para além, tomamos como norte Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC – Arte Santeira do Piauí, pesquisa que contemplou: levantamento preliminar, identificação e documentação do ofício e modos de fazer das localidades/municípios: Teresina, José de Freitas, Campo Maior, Pedro II e Parnaíba. Documento produzido para a 19ª Superintendência Regional do IPHAN nas ações de salvaguarda referentes ao bem inventariado, coordenado pela hoje coordenadora do PPGAPM, Prof.ª Dr.ª Áurea da Paz Pinheiro, no ano de 2008 e Inventário das Artes de Pesca e Construção de Embarcações na APA Delta do Parnaíba que a Professora coordena desde 2008, com a Professora Cássia Moura, do PPGAPM. Estudos e conhecimentos prévios, frutos de um trabalho já em andamento com e na comunidade de pescadores Coqueiro da Praia, uma vez que em função de nosso projeto de pesquisa interagimos e nos familiarizamos com o local e criamos o projeto “Guardiões do Patrimônio”, auxiliados pelo método-técnica do Inventário Participativo, associado ao Projeto Matriz; nos foi possível realizar estudos e ações de educação para o patrimônio com 16 (dezesseis) alunos da Unidade Escolar Carmosina Martins da Rocha, com crianças e adolescentes, desde o mês de agosto de 2017; realizar igualmente o ‘Diagnóstico da Paisagem Cultural do Coqueiro da Praia’(MORAES,2017), realizado com os mestrandos do PPGAPM. As ações iniciais seguiram o seguinte percurso: estudo do Inventário Nacional de Referências Culturais: Manual de Aplicação (IPHAN,2000); seleção do referencial teórico indicado pela orientadora da pesquisa, Drª. Áurea Pinheiro, com destaque para os conceitos-chave da museologia, museus, patrimônio imaterial, comunidade, identidade, memória, inventário do patrimônio imaterial, etnografia, história oral; conservação e restauro; contato preliminar com o pescador Francisco das Chagas Galeno Freitas, conhecido como Sr. Análio, um dos donos das quinze canoas existentes e registradas neste estudo e intervenção. A do pescador, Sr. Análio se justifica por ser um dos mais antigos pescadores, faz parte da primeira geração e é avô de um dos integrantes do Projeto “Guardiões do Patrimônio”, João Vitor (13 anos), que sempre falava sobre o avô com carinho e orgulho de ser neto de um dos pescadores do lugar. Foi o neto que viabilizou o primeiro contato com o avô. À primeira vista, a cautela e poucas palavras trocadas com o pescador, conhecido por ser de pouca conversa, pareceu o empecilho. Mas a constância do contato nos revelou um informante e colaborador disposto a contribuir com o trabalho, uma caixa de pandora se abriu. A coleta de dados foi realizada entre os meses de dezembro de 2017 e janeiro de 2018, usamos o método da história oral (ALBERTI, 2004), (THOMPSON, 1992), (FREITAS, 2006), que nos permitiu propor entrevistas temáticas para a recolha de informações; realizamos também registros sonoros, fotográficos e fílmico. Ganhamos a confiança do Sr. Análio. Decidimos que Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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dividiríamos a pesquisa: 1. realizamos uma entrevista sobre as informações gerais; 2. Gravamos som e imagem com o auxílio de câmera e microfone, uma entrevista com informações específicas sobre a atividade ancestral das artes de pesca artesanal. Nessa parte do trabalho foi o momento que o avô de João, jovem guardião do patrimônio, nos presenteou com um passeio em sua embarcação; no terceiro encontro, o Sr. Análio levou-nos para fazer o registro, a documentação de sua canoa, e para que acompanhássemos o dia a dia de seu trabalho o que inclui a manutenção da embarcação Imagem 2 - Entrevista com o Sr. Análio (2017). Praia do Coqueiro, PI.
e seus o apetrechos, que o Sr. realiza com outros pescadores locais, amigos do cotidiano, parceiros de uma longa caminhada, que realizam desde a infância. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas, constituímos um conjunto de dados sobre o ofício e modos de saber-fazer. Foram conversas informais, registradas em diário de campo e outros suportes, o que
Fonte: Elaborado pelo autor.
inclui registro fotográfico da canoa e os artefatos. No quarto momento,
apresentamos ao pescador vídeo gravado, as fotos capturadas, os registros dos momentos que estivemos juntos, a documentação da canoa e demais artefatos que havia nos apresentado. As entrevistas temáticas foram realizadas na casa do pescador – Sr. Análio, avô do jovem pesquisador, João Victor, que mora com os avós, bem próximo à orla da praia. O Sr. Análio tem o mesmo endereço desde a infância e se orgulha por ainda não ter se rendido à especulação imobiliária e saído “de perto do mar”, como muitos já o fizeram. [..] E eu nunca saí daqui. Todo mundo morava aqui nessa área. Aqui morava meu sogro, acolá morava o Novo [outro pescador amigo do Sr. Análio], que é o dono do Alô Brasil. E mora muita gente por aqui. Meus parentes morava tudo por aqui. Aí foram vendendo, foram vendendo. Quando eu tinha dezesseis ano eu fiz essa casa aqui. Fiz uma casinha de ‘taipa’. Eu mesmo fiz minha casa de taipa. Eu mesmo fiz, quando eu tinha dezesseis anos. Com vinte anos eu casei e já tinha ela. Minha casinha de taipa. Aí verificamos, mudamos ela. Depois fiz maiorzinha. Mas eu nunca sai daqui, todo mundo saiu. Morava todo mundo aqui. Todo mundo vendeu suas casas e eu fiquei aqui sozinho [..] Até ainda hoje. [...] porque a gente tem que tá é aqui perto do mar. Porque quem pesca tem que estar perto do mar, todo tempo, né?[...] (FREITAS, 2017).
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A casa onde mora o pescador – Sr. Análio, também é abrigo para suas redes e outros apetrechos de pesca. Na data marcada para a entrevista ao chegarmos a sua residência, estava para o mar, e fomos então, recepcionados por sua esposa, a senhora Maria do Livramento, que reforçou a peculiaridade de timidez do marido antes que ele chegasse para a gravação. Curioso! A esposa lamentava termos escolhido o pescador para pesquisa dentre os quinze selecionados, todos proprietários de suas canoas. Reforçava que o marido era “de pouca conversa”. Mas os temores da esposa e os alertas de outras pessoas não nos intimidou e fomos surpreendidos, pois diante das perguntas, o pescador falou por 55 (cinquenta e cinco) minutos. Após a entrevista, o Sr. Análio nos levou a um pequeno galpão nos fundos de sua casa, espaço onde guarda artefatos de pesca de uso cotidiano: redes, linhas de pesca, carretéis, anzóis, que ele mesmo produz, além de um instrumento chamado de “dedeira”, que nos informa com orgulho ser uma criação própria, para evitar machucar o dedo durante o manuseio com a linha de nylon, na pesca de isca. Naquele momento, espontaneamente nos convidou para um passeio em sua canoa - Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Luís Correia, convite que aceitamos
Imagem 3 - Sr. Análio. Praia do Coqueiro (2017), PI.
de pronto. Foi à primeira visita à embarcação, quando pudemos sentir de perto a emoção e o gosto do pescador pelo mar. Aos 64 anos, o pescador demonstra total destreza e habilidade em seu ofício, vive exclusivamente da pesca, atividade cotidiana, não possuindo nenhuma outra ocupação secundária durante toda a sua vida. A relação intrínseca do pescador
Fonte: Elaborado pelo autor.
com o ofício estudado e com os bens a serem inventariados nos serve de reforço em acreditar que esta pesquisa, tendo em vista as informações facultadas, servirá para construir um banco de dados sobre as artes de pesca da APA Delta do Parnaíba, mesmo sem a pretensão de ser conclusiva ou fechada em si mesma. Os encontros com o Sr. Análio e demais pescadores da região foram sempre marcados por aprendizados que atravessaram as leituras que realizamos com foco na memória e história Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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oral, nos revelaram que os pescadores aprenderam o ofício com familiares, parentes, amigos em experiências cotidianas, em vivências comuns. Que apesar da semelhança do oficio e modos de saber-fazer, cada pescador tem uma forma peculiar de trabalho. Que há uma consciência da relevância do ofício na comunidade, ao mesmo tempo em que há um reconhecimento das dificuldades e sofrimentos na vida no mar, que acarreta um enfraquecimento, desaparecimento do ofício no território. Agrosino (2009) aconselha que ao aplicar pesquisa etnográfica em campo, temos sempre de lembrar que não temos o controle de todos os elementos no processo de pesquisa: estamos capturando a vida como ela está sendo vivida e assim devemos estar conscientes de que as coisas que podem parecer significativas para nós como pessoas de fora, como outsiders, podem ser ou não significativas para pessoas que vivem na comunidade estudada – e vice-versa. O pescador, ao ser indagado sobre o que diria para as próximas gerações, para quem não conhece o ofício de pescador, qual a mensagem que ele poderia deixar para as pessoas que não conhecerão e que gostariam de ter conhecido daqui há algum tempo; o que se poderia se falar de ser pescador. O conselho que eu dou ainda é aquele que [...] se puder ter um estudo bom e viver de outra vida. A pesca hoje ela não dá mais o que já deu. Hoje não dá mais não. É o que eu digo é que quem já viveu da pesca, viveu. Mas, quem [...] não entre na pesca. Porque eu mesmo eu tenho um filho, se ele dissesse: “Ô, papai eu quero fazer uma pesca pra mim!”. Eu diria não, não faça não. Faça mais não porque o tempo da pesca já passou. (FREITAS, 2017).
A fala do velho pescador é desoladora e nos instiga a pensar com a comunidade outras formas de empreendedorismo associadas às artes de pesca e sua preservação. Tivemos o cuidado que uma pesquisa etnográfica exige no que refere ao sentimento que pode nos surpreender diante de revelações inesperadas, ou que não pensávamos em ouvir. Ao longo do trabalho de campo, tomamos a precaução de conhecer e reconhecer “os senhores do seu ofício” (PINHEIRO, 2008) como doutores de sua arte, nunca distanciando-nos como pesquisador e participantes. Durante a pesquisa tivemos a oportunidade de viver momentos de familiaridade em conversas informais nas cabanas de palha e madeira de carnaúba, na orla da praia, abrigos para os pescadores e suas embarcações, espaços de sociabilidade, que alguns chamam de “Latada da beira da praia”, onde frequentemente se reúnem para conversar e preparar atividades antes da saída e volta do mar. Essa postura nos permitiu registrar momentos como a saída para a manutenção da embarca-
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ção do Sr. Análio, que acompanhado de outros pescadores aguardava “a baixa da maré” para que com “a canoa no raso” procedessem as ações de manutenção, o que inclui a limpeza do casco da embarcação, de uma forma simples, utilizando restos de redes de pesca e areia do mar, como um esfoliante natural para a madeira. Os registros em suportes diversos que integram o inventário das artes de pesca na APA Delta do Parnaíba, como gravações em som e imagem – audiovisual, pontos de vista, registros fotográficos, entrevistas transcrições; fichas: de informações gerais sobre o entrevistado e de específicas sobre o ofício e modos de saber-fazer; dos objetos [canoa demais artefatos da pesca artesanal; glossário; fotografias; literatura e fontes; podem subsidiar conhecimento, compreensão sobre as histórias e experiências das artes de pesca artesanal, atividade secular, realizada na comunidade de Coqueiro da Praia, da Cidade de Luís Correia, Piauí.
Considerações finais
Registramos um cenário de um rico e complexo Patrimônio Cultural, que carece de um olhar atento para os pontos frágeis e fortes do território, que abriga uma paisagem cultural1 diversa, centro de estudos e intervenções do PPGAPM, que tem viabilizado a construção de inventários do patrimônio cultural imaterial da APA Delta do Parnaíba. Descobrimos um bairro do Coqueiro como uma comunidade praieira singular que vive da pesca artesanal, apesar das transformações ocorridas ao longo dos anos, não deixou de ser reconhecida por seus moradores como uma vila de pescadores. A pesquisa de campo nos revelou alternativas que contribuirão para o fortalecimento da pesca artesanal, especificamente no coqueiro e com os laços identitários da comunidade e sua origem pesqueira. O que pode resultar em: • Fortalecer o Museu da Vila como um dos núcleos do Ecomuseu Delta do Parnaíba, como forma de conhecer, reconhecer e salvaguardar as artes de pesca; 1 Paisagem Cultural é “Meio Ambiente compreendido como Patrimônio básico para a vida humana. A perspectiva ambiental deve remeter os alunos à reflexão sobre os problemas que afetam a sua vida, a de sua comunidade, a de seu país e a do planeta. Para que essas informações os sensibilizem e provoquem o início de um processo de mudança de comportamento, é preciso que o aprendizado seja significativo, isto é, os alunos possam estabelecer ligações entre o que aprendem e a sua realidade cotidiana, e o que já conhecem. (PCN, 1998, p. 189-190) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 191-210, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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• Identificar e registrar histórias de vida de outros pescadores, há muito mais de quinze pescadores no bairro Coqueiro da Praia; • Realizar ações socioeducativas que visem valorizar o conhecimento dos detentores do saber fazer da pesca local; • Valorizar e incentivar a cadeia produtiva na pesca artesanal no bairro do Coqueiro; • Sensibilizar o poder público municipal para com a comunidade e traçar políticas públicas de incentivo e valorização da pesca artesanal; • Promover eventos que incentivem o trabalho com a pesca e a reconheçam como um bem cultural da comunidade.
Esperamos que este trabalho colabore com a construção técnico-sensível, em andamento desde 2008, de um inventário para salvaguarda das artes de pesca artesanal, de forma a incentivar a permanência harmônica entre território, pessoas e bens culturais, em risco.
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A estética da identificação comunicacional a dimensão sensível territorial na feira do Guamá, Belém - PA The aesthetics of communicational identification the territorial dimension sensitive of the Guamá market, Belém – PA (Amazon) Fábio Rodrigo de Moraes Xavier*
Resumo
Abstract
Neste artigo, nós apresentamos reflexões acerca da estética da identificação comunicacional e a dimensão sensível territorial na feira do Guamá, localizada em Belém – PA, situada na Amazônia brasileira. Procuramos observar, por meio do processo etnográfico, a sensibilidade interacional, apresentando a ideia da estética da identificação, a maneira como ocorre o processo de interação e a dimensão sensível territorial, assim como o modo como as vivências e as emoções se expressam na localidade. Discutimos a expressividade estética com percepção à condição espacial temporal da realidade ali observada, bem como o aspecto sensível do lugar, isto é, a feira, que tem como essência o sentir em comum, a arte de viver.
In this research we analyze the aesthetics of communicational identification and the territorial sensible dimension in the market of Guamá, located in Belém – PA, within the Brazilian Amazon. Using the ethnographic process, we tried to observe an international sensibility, presenting the notion of aesthetics of identification, how the interaction process occurs and how the territorial sensible dimension, as well as experiences and emotions express themselves in this location. We discussed the aesthetic expressiveness perceiving the spatial and temporal condition of the observed reality, as well as the sensible aspect of the place, that is, the market, whose essence is the common experience, the art of living.
Palavras-chave: Comunicação; Estética; Território; Arte; Feira.
Keywords: Communication; Aesthetics; Territory; Art; Market.
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará e graduado em Comunicação pela mesma instituição. Participou do projeto de pesquisa “Experiência social, cultura e comunicação na Amazônia. Etapa 1: intersubjetividade e pragmática comunicativa em mercados de Belém”. Email:fabio.rodrigo.moraes. xavier@gmail.com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 211-227, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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I n t r o d u ç ã o
O
artigo apresenta reflexões acerca da percepção sobre a estética territorial comunicacional e o envolvimento etnográfico presentes na feira do Guamá, A feira municipal do Guamá localiza-se no cruzamento entre a Rua Barão de Igarapé-Miri e
a Avenida José Bonifácio, no bairro do Guamá, em Belém, capital do Pará. Possui movimentação e influência na economia local, bem como na estruturação social do bairro e dos bairros limítro-
fes. Trata-se de um espaço convencional de comercialização de produtos, dedicado à venda de frutas, legumes, carne, pescados, farinhas, ervas medicinais tradicionais, e produtos industrializados convencionais. (CASTRO, XAVIER; CASTRO, 2017, p. 363)
A localidade encontra-se na periferia de Belém e nasce nos meados do século XIX por causa da extensão de uma linha de bonde. O burgo do Guamá, bairro popular de Belém, se consolidou em meados do século XIX e ao final desse foi atendido por uma linha de bonde. Destinada a se encerrar em Santa Isabel, espaço de um cemitério dezenoviano já então populoso, a linha se estendeu até um pouco mais à frente e em seu ponto final se formou feira que lá hoje há. (CASTRO; CASTRO, 2017, p. 3)
O objetivo de investigação na feira é fazer uma reflexão tendo como ideia o entendimento da estética da identificação e como se desenvolve a dimensão sensível territorial na essência interacional entre os sujeitos deste local. Pretende-se identificar a composição de como ocorre o processo de interação comunicacional que se evidencia na relação dos frequentadores e na formatação da realidade espacial temporal ali expressa, isto é, a percepção da arte da vivência. A indagação central diz respeito tanto à estética da identificação quanto à dimensão sensível territorial na Feira do Guamá, para assim termos ideia de como ocorrem a comunicação e a percepção da cultura e da sociedade. Busca-se perceber o sentimento em comum como fator de estruturação socio-cultural, como essência da interação entre os sujeitos presentes quotidianamente na localidade. Para alcançar este intuito, baseamo-nos em Maffesoli (1998, 1999), que desenvolve os conceitos de percepção do universo simbólico comunicacional e reflexão estética. Também com-
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partilhamos a ideia de identidade proposta por Hall (1999), o qual discorre sobre a construção dinâmica na sociedade. Estes autores nos possibilitam propor uma reflexão sobre a realidade que o local representa e como demonstra a sensibilidade. No que concerne à dimensão sensível territorial, Haesbert (2004, 2007) aborda a observação territorial e a condição de construção que se expressam na realidade ali existente. Há contribuições igualmente importantes de Guattari e Rolnik (1986) para as noções de movimentação e desterritorialização. Nós podemos, então, entender a colocação da estética da identificação como formatação da realidade, assim como no processo de realização de sensibilidade produzida no local em determinado tempo espacial. Pode-se assim adentrar no desenvolvimento e no envolvimento da territorialidade, tendo como base a comunicação e a interação existentes entre as pessoas que frequentam a localidade. as feiras por serem locais que carregam trajetórias, relíquias do passado, singularidades, crenças, tradições, costumes e identidades de um grupo. Constituem-se como espaços onde ainda é possível respirar, sentir, tocar e ver o “coração” de uma cultura. (LOBATO; CAÑETE, 2015, p. 242)
O estudo que aqui propomos se desenvolve na percepção da identificação de como ocorre a sensibilidade e como proporciona o desenvolvimento territorial em um tempo existente na feira. Nós buscamos entender as condições para o entendimento do sujeito amazônico, bem como a movimentação e a noção da cultura da sociedade, a comunicação, o ser Amazônia. O procedimento para a efetivação da pesquisa baseia-se na reflexão teórica sobre a temática e em visitas realizadas na feira do Guamá (etnografia), com a utilização de material para a coleta de dados. Isso possibilitou o conhecimento sobre o funcionamento das expressividades dos frequentadores que estavam presentes no lugar e na composição estética, incluindo a identificação comunicacional e a dimensão sensível territorial.
A estética da identificação comunicacional
A reflexão sobre o desenvolvimento do lugar e a expressão estética da identificação encontra-se no
espaço em um universo simbólico que “é preciso compreender como sendo a soma de interações que constituem, essencialmente, a vida social” (MAFFESOLI, 1998, p. 123), para que assim Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 211-227, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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possamos ter uma reflexão de como ocorre a formatação da realidade social ali constituída, dentro de um processo de sensibilidade interacional, comunicacional. Nós temos como horizonte Stuart Hall (1999), teórico que propõe três concepções de identidade. A primeira é a do sujeito iluminismo, em que figura o entendimento do indivíduo centrado, unificado, dotado de capacidades da razão. Como se aquele sujeito tivesse um processo de identificação estático, consistindo em um núcleo interior que emerge e se desenvolve, permanecendo a mesma essência. A segunda concepção é a de um sujeito sociológico, cuja complexidade é determinada na realidade de um mundo moderno. A percepção de indivíduo não autônomo haveria de ter relação com o outro que se identifica, para a mediação de valores, sentido, símbolos, preenchendo um espaço temporal entre o mundo “interior” e “exterior”, entre o mundo pessoal e o público. Pode-se perceber a contribuição de posicionar sentimento subjetivo com lugares objetivos que cada indivíduo ocupa em um mundo comunicacional, cultural e social. Como se a identificação fosse algo que se compõe de textura para a construção do indivíduo em determinada estrutura de formatação de realidade. A última percepção refere-se ao sujeito pós-moderno, caracterizado como aquele indivíduo que tem uma identidade instável, fragmentada, ou seja, em movimento. Muitas vezes, com várias identidades, algumas podendo ser contraditórias e não resolvidas, problemáticas, desta forma, compondo um campo de formatação do real, como uma espécie de múltiplos territórios sensíveis. Argumenta-se, entretanto que são exatamente essas coisas que agora estão “mudando”. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais. “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 1999, p. 12)
Notamos assim certa argumentação sobre o processo da realidade, formado por determinado indivíduo, como algo que se estrutura em sua diversidade de sentido e composição na construção de sensibilidade comunicacional. No local é possível perceber, no que concerne ao modo de divisão dos boxes, assim como no processo da interação entre os frequentadores, cheiro, higiene, a sonoridade e o envolvimento dos feirantes com os fregueses.
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Imagem 1 - Esquema da divisão dos boxes do mercado. Belém – PA (2016)
Fonte: Elaborada pelo autor.
No processo de instituição do movimento de identificações que ali se encontra em desenvolvimento, percebemos que: “É, portanto, a partir de uma arte generalizada que se pode compreender a estética como faculdade de sentir em comum” (MAFFESOLI, 1999, p. 28). A prática social, a movimentação da feira e a ligação entre os feirantes revelam diversos fatores construtivos da interação, ressaltam uma ética da estética, um prazer, desejo de estar-junto. O próprio cumprimento entre os feirantes, como também o envolvimento com o seu freguês, condicionam a relação de prazer, isso pode posicionar uma melhor constituição de sentimentos que ali se evidenciam. Nós temos como exemplo expressões como “minha freguesa”, “hoje o charque tá magro”, “tá barato hoje”, “tá só o creme” – retratos de como o posicionamento simbólico pode corroborar para um melhor grau de aproximação e identificação sensível. No primeiro momento, isto poderia ser insignificante, mas propõe certa relação simbólica da construção de relacionamento. Então, “está renascendo uma outra concepção do tempo que vai privilegiar o que os romanos chamavam de otium, uma espécie de férias, ou melhor, da Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 211-227, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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disponibilidade social, que deseja compor o lazer, a criação, o prazer de estar junto” (MAFFESOLI, 1999, p. 66). Como se aquele processo de venda estivesse, de algum modo, composto de assentamento de disponibilidade e de sentimento, algo que se caracteriza tanto na própria formação espacial-temporal quanto na dimensão estética que ali são evidenciadas. Na fala do feirante a seguir, é importante perceber a reflexão do processo de construção conjunta da estética da identificação, a partir do processo de experiência que ali está envolvido para o procedimento de determinado contato de interação. A gente joga bola aqui aí na arena do farinhão no futevôlei. Aqui tem clube todo ano tem campeonato, quatro clube aqui, aí disputa lá na arena, quem é campeão ganha um dinheirinho, faz a festa. O feirante tem essa virtude que, me dá um real me dá dois aí me dá cinco aí pra fazer isso aqui, cara dá, corre dinheiro, por isso que fico na feira, não tem melhor lugar do mundo pra viver como feirante, tem dinheiro toda hora todo dia, alguns dias falha, mas melhor lugar. (OLIVEIRA, 2017)1
O discurso do vendedor colabora para a construção de laços de prazeres, bem como para a socialização entre eles. A feira tem quatro times de futebol que se reúnem para fazer um campeonato, que, normalmente, ocorre no final de ano - um tipo de confraternização que desencadeia o desenvolvimento da reciprocidade e maior interação entre os indivíduos. A troca de dinheiro também faz parte da caracterização do que ocorre naquele momento para o movimento festivo. Nós podemos observar que chega a certo altruísmo, como se fossem “colecionadores de experiência e sensações” (FRIDMAN, 2000, p. 80). A condição de que a localidade se transforma no melhor lugar do mundo, evidenciando a dimensão estética da identificação, mostra-se na carga de diversas emoções que aquele feirante possui em sua memória. Portanto, é perceptível que “experimentar junto emoções, participar do mesmo ambiente, comungar dos mesmos valores, perder-se, numa teatralidade geral, permitindo, assim, a todos esses elementos que fazem a superfície das coisas e das pessoas fazer sentido” (MAFFESOLI, 1999, p.86) constitui determinada formatação da dimensão estética, com o envolvimento das pessoas que compartilham naquele lugar o ato de sentir em comum, a arte de viver. A estética da identidade é desenvolvida dentro das variações e nas trocas simbólicas expressas ali, ocorrendo entre os sujeitos, forma pela qual acompanha a prática, o movimento e a formatação da dimensão estética. Deste modo, é possível perceber que influencia no modo da representação desenvolvida naquela realidade. 1 Mário de Oliveira vende charque que é uma carne bovina salgada cortada em mantas e seca ao sol em muitos preparos. Esse produto é utilizado, muitas vezes, para dar gosto ao feijão e também é consumido frito para ser saboreado junto com o açaí em polpa.
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O importante são as representações que os indivíduos fazem da realidade social e de suas divisões. (...) A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. (...) Devese considerar que a identidade se constrói e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais. (CUCHE, 1999, p. 182-183)
A prática e o movimento compõem a estrutura de envolvimento na própria conciliação da essência do que ali é representado, condicionado e formado. De maneira direta, na perspectiva simbólica do pensamento, encadeia o modo como as pessoas ali interagem. Neste sentido, a construção da relação entre os feirantes é alicerce para o posicionamento da formatação que determinados sujeitos expressam no local. O posicionamento que possui cada indivíduo ali estabelece novas perspectivas de pensamento e desenvolvimento da capacidade normativa de fatos, o que é desenvolvido e como abrange as pessoas que participam da feira. É possível observar, na prática da venda e na aproximação do freguês, a expressividade que cada feirante possui na formatação da representação e na disposição entre os sujeitos que frequentam o lugar. Confirma o processo de ordenamento simbólico, que solidifica a base para o envolvimento da estética da identificação comunicacional. Sendo também alicerce de formatação de posicionamento, o contexto sensível proporciona, de algum modo, influências sobre a maneira pela qual ocorrem as interações. O envolvimento que as pessoas ali desenvolvem ocasiona o resultado da capacidade de identificação e de Imagem 2 - Placa do local onde ocorre a venda da farinha. ser identificado.
Belém – PA (2017)
A sensibilização envolve certo contexto de construção simbólica que está, de algum modo, evidente na ideia do lugar. Nós podemos entender que “o lugar é aquele em que o indivíduo se encontra ambientado, no qual está integrado. O lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva para uma pessoa ou grupo de pessoas” (COSTA; ROCHA, 2010, p.37).
Fonte: Elaborada pelo autor.
Quando alguém chega e faz algum tipo de saudação para aproximação do outro, isto é, algum procedimento para interação, nós temos a expressão da localidade. Podemos ter como Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 211-227, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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exemplo a disponibilidade do feirante para o freguês, a exemplo da fala: “chegou a minha freguesa”, “olá baroa’’, o inverso também ocorre, “quero bem magro” “quero promoção em”, que se caracterizam como pontos de alicerce da efetivação e da integração do lugar, bem como a formatação da ambientação temporal do que a localidade é. Na feira, entre os próprios feirantes, o processo do lugar combina a efetivação do modo de integração e a harmonia para o procedimento de venda do dia. É importante observar que as barracas dos produtos se localizam uma ao lado da outra, são divididas em setores, como exemplo: peixe, legumes e frutas, refeição. Esta organização serve para facilitar a entrada dos fregueses para a efetivação da compra, colabora para a sensibilização e para o processo de ambientação que forma e desenvolve a construção da identificação estética e a significância afetiva para determinado grupo social. Em alguns momentos, a maneira como está disposta a barraca também pode ocasionar rivalidade entre os feirantes, porém não tem tanta relevância para o procedimento da compra e de vivência da feira, pois, na maioria dos casos, ocasiona malefícios para a venda, como se eles estivessem trabalhando conjuntamente para a sobrevivência. Algo que é característico dentro desta ideia é o valor dos produtos, visto que, muitas vezes, as barracas utilizam o mesmo valor para o mesmo produto. Dentro deste processo, nós podemos ter o entendimento de que as condições da dimensão estética da identidade são características do modo de vivência ali submetido. Demonstra-se como um processo que, a cada dia, vai se movimentando pela construção estética expressiva, proporciona a formatação da realidade presente. Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “processo”, sempre “sendo formada.” (HALL, 1999, p.8)
Pode-se entender que a identificação, em seu tempo, constitui uma caracterização da sensibilização e é também ponto norteador de formação de interações. Deste modo, a identidade se encontra de maneira íntima com a própria constituição da estética, modo formatador da realidade que é condicionada, como se fosse um processo de experiência vivido dentro da realidade simbólica em movimento da localidade. O aspecto imaginário associa a perspectiva de se obter algo para a construção do modo imagético que é criado no movimento do cotidiano. Em vista disso, condiciona representações que
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permanecem como fonte de propagação de ideias que são formadas na comunicação entre sujeitos, indivíduos em envolvimento com o grupo social em determinado tempo de ser. Pode-se notar que o aspecto da identificação colabora para a base do fator territorial sensível e para o envolvimento da formatação da sensibilidade territorial pelo processo simbólico que encadeia as ideias entre pessoas que frequentam o local e forma realidades. Este fato proporciona a condição de vivência que, na feira, também comporta a construção do real ali envolvido no processo territorial sensível.
A dimensão sensível territorial No que tange à dimensão sensível territorial, ela ocorre na localidade pela via da expressividade, pois consiste em um processo de movimentação simbólica, cujo envolvimento comunicacional de relações evidencia-se na interação do cotidiano. Logo, temos aqui, como ideia, de que é algo passageiro, fugaz, em que as identificações territoriais se constroem na realidade e influenciam a perspectiva de ser dos sujeitos que frequentam a localidade. Assim, no que estamos denominando aqui de identidades territoriais, escolhem-se (ou concomitantemente reconstroem se) espaços e tempos, geografias e histórias para moldar uma identidade, de modo que os habitantes de um determinado território se reconhecem, de alguma forma, como participantes de um espaço e de uma sociedade comum. (HAESBAERT, 2007, p. 44)
A denominação identificações territoriais possui atrelamento ao processo espacial e temporal como fonte de expressividade e sensibilidade da localização. Evidencia a forma de sensibilização que ali é expressa, como modo de reconhecimento, a arte de viver, o sentir em comum das pessoas que desenvolvem a formatação da realidade da feira. Nesse caso, caracteriza-se como fonte estética que promove o procedimento da experiência do ambiente. Os participantes daquele processo de interação possibilitam o modo de reconhecimento e construção da forma de adequação para o desenvolvimento do espaço simbólico, pela via da intersubjetividade (SCHUTZ, 2012), transformando-se em uma construção comum, comunicacional, social e cultural. A dimensão estética territorial sensível cabe na percepção dessas forças expressas na feira, na forma de propor melhor interação em certo tempo e também no envolvimento de fontes de poder no espaço simbólico, na realidade, no cotidiano ali presente. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 211-227, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Portanto, todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar “funções” quanto para produzir “significados”. O território é funcional a começar pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo “lar” para o nosso repouso, seja como fonte de “recursos naturais” – “matérias-primas” que variam em importância de acordo com o(s) de sociedade(s) vigente(s). (HAESBAERT, 2004, p.3)
O aspecto funcional simbólico das diferentes combinações inclui a maneira como o espaço é desenvolvido e também abarca o molde social que pode ser caracterizado por diferentes modos interacionais temporais. Pode caracterizar-se na própria formatação da construção simbólica, assim como abriga relações de venda, matéria-prima para obtenção de lucro e recurso de disponibilidade de produtos que estão dispostos. Podemos, então, ter a reflexão
Imagem 3 - A venda de farinha tapioca. Belém – PA (2017)
da feira como forma, pensar em possibilidades de comunicação e construção que cabem no processo simbólico. Como podemos observar, a sensibilidade ocasiona a formatação da localidade, evidenciando o envolvimento entre os frequentadores. Assim adentramos a cultura dos sentimentos que é fator motriz para a adequação de produtividades. À guisa de exemplo, o
Fonte: Elaborada pelo autor.
peixeiro tende a perceber qual a forma em que o cliente quer o peixe, isso pode se traduzir como o desenvolvimento do fator sensível. Do mesmo modo, o vendedor de legumes, ao colocá-los em um saco de plástico e expô-los para a venda, pontua a estrutura de percepção dos feirantes como maneira para obter a melhor venda e, consequentemente, maior atuação na dimensão estética sensível territorial. Ainda que uma feira, não importa qual ela seja materialmente falando, não tenha surgido de um encontro fortuito – inesperado, ou provindo de uma colisão, tenha, ao contrário, nascido da necessidade expressa de um encontro, de uma troca; sua formação e os elementos que a sustentam e que, ao mesmo tempo, são sustentados por ela – o feirante, a freguesia, suas barracas,
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boxes, ambulantes, camelôs, dentre outros - reverberam nesse espaço, provocando “encontros fortuitos”, gerando sentidos sem fim, emuladores de formas, gestando um mundo em si, na própria feira e no seu entorno. (CASTRO, 2013, p. 33)
Os emuladores de formas são característicos do próprio grau de venda entre o feirante e o freguês, na relação da expressividade, assim como também no envolvimento da prática, na movimentação e na valorização simbólica existentes na localidade. A estrutura do espaço em seu entorno condiciona a forma de atuação temporal simbólica que a feira possui, dentro do território sensível que significa os “processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 8), em uma espécie de cartografia espacial múltipla. A diversidade de produtos à venda, como roupas, sapatos, geladeiras, camas, colocados em diferentes locais, no entorno da feira, é perceptível. Como se a realidade e a expressividade pudessem ocasionar influência simbólica, instituindo um processo de formatação da realidade então vivenciada em certa construção e envolvimento entre sujeitos. É importante pensar em “fazer a leitura do social desde o desejo, fazer a passagem do desejo ao político, nos quadros dos modos de subjetivação” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.16), sendo esta a base para a produtividade e consequência para o entendimento da relação existente no local. É possível observar que o desejo também fica evidente na maneira de pensar, como, por exemplo, quando uma feirante escolhe alguém para uma tarefa, o faz com aquele que tem maior proximidade, como podemos inferir nesta fala: “A Lucir e a Ladecir, por afinidade por ficar bem” (COSTA, 2017)2, induzindo ao pensamento que de, alguma maneira, o desejo e a afinidade evidenciam o grau de poder simbólico político. Neste momento, ressalta-se que a dimensão territorial sensível formata e institui a percepção de certo tempo de interpretação, da maneira como se condiciona a situação para o envolvimento e ligação entre sujeitos: “a sociedade não é uma substância concreta, mas um processo associação, isto é, um processo contínuo e criador de interações” (VANDENBERGUE, 2005, p. 77). Isso compõe o entendimento interacional entre indivíduos que envolvem grupos, que se percebem em experiências sensíveis de sentir em comum.
2 Catalina da Costa é vendedora de frutas como cupuaçu, bacuri, pupunha, biribá, banana, melão. Muitos dos produtos que ela vende são típicos da Amazônia. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 27, n. 1 [37], p. 211-227, jan./jun. 2019 – e-ISSN: 2178-3284
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Imagem 4 - Movimentação no entorno da feira do Guamá. Belém - PA (2017)
Fonte: Elaborada pelo autor.
A comunicação está evidente no processo de formatação da realidade da vivência das pessoas que estão frequentando a feira. Porquanto, em diferentes dias, o processo se repete e se constrói como modo de apropriação do envolvimento simbólico interacional. Aquilo que é contrário ao processo então vigente naquela localidade, ocasiona conflito. Como exemplo, é possível observar as reformas pelas quais a feira passou, ao longo de sua existência, em sua multiplicidade de vivência. Alguns feirantes lembram como foi impactante ter mudado de
lugar para se posicionar de outra maneira, como uma espécie de desterritorialização: O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar, cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323). Pondera-se se aquela atitude de mudança ocasionou outra perspectiva de interação ou se pode ter sido um diferente modo de adequação com relação ao outro. O movimento de desterritorialização se conforma como um aspecto circundante de influência simbólica, o qual desencadeia processos de formatação temporal da realidade. A materialização da estratificação de mentalidades colabora para a prática, movimento e composição estética que ali é expresso. A temporalidade, em conjunto com o espaço, com o universo simbólico, com as interações é parte do processo de multiplicidades de territórios que associam uma série de desterritorializações. Então, conjuntamente, formata a composição da própria caracterização do que a feira é, como podemos perceber na divisão dos boxes, no cheiro, no falatório, na sonoridade, nas cores, nos preços, na aproximação de fregueses, na roupa do feirante, nas vendas. Todavia, é perceptível que se constitui como fonte de agregação para o movimento contínuo que se encontra na composição do real formado. A multiplicidade de sentido expresso cons-
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Imagem 5 - Venda de roupa. Belém – PA (2017)
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trói afinidade e facilidade para quem esta dentro da mesma frequência de sentido, ultrapassando a localidade, como é o caso da compra de mercadorias nas Centrais de Abastecimento do Pará (CEASA), da aproximação de pessoas de outros bairros e do procedimento de venda no entorno da localidade. A passagem de experiência como modo de estruturar a divisão do trabalho é um fator importante, que possibilita pensar
Fonte: Elaborada pelo autor.
a desterritorialização, como se a mesma estivesse em base, o fator temporal então
composto de estruturas estéticas territoriais. Esse processo possui função de moldar mentalidades, estratificações no cotidiano. Foi observado no local que os feirantes, que têm maior idade, passam para os filhos o ofício da venda, como forma de adequação para prosseguir o movimento, dentro da estrutura da realidade que é evidenciada. Nesse sentido, os descendentes continuam na passagem de certa memória que muitas vezes os seus antepassados idealizaram, no desenvolvimento do ofício da venda. Pode-se observar que a composição territorial se desterritorializa, desenvolve e forma outros processos de composição da interação, então expressa na localidade em sua diversidade cultural. A dimensão sensível territorial encadeia-se por processos múltiplos, sentidos muitas vezes, visto que estão relacionados à comunicação, interação, o sentir-junto com outro em certo tempo. Sendo assim, nota-se que a desterritorialização constrói, como processo de continuidade simbólica, o que se expressa nas estruturas que a feira expressa na composição do real. Temos como perspectiva, a noção da dimensão territorial estética, a sua abrangência para variadas estruturas. A feira insere-se em uma reprodução localizada, territorial e esteticamente, como algo que paira e possui abrangência em diferentes modos. Compara-se a relação do local com o global de forma condicionada, dentro de diferentes processos interacionais que se desenvolvem na qualidade da memória dos frequentadores, que ali interagem quanto à produção territorial da realidade então formada.
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A estética na composição política e econômica, no sentido amplo da percepção do território, é relevante para o entendimento da complexidade do que ali pode ser formatado dentro do fator sensível. A política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativa também a todas as relações espaço-poder institucionalizadas): a mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente – relacionado ao poder político do Estado. Cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. Econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate. (HAESBAERT, 2007, p. 40)
A composição política tem como ordem principal as relações espaço-poder que se generalizam em diferentes estruturas estéticas dentro da composição social, como fonte de apropriação territorial e de construção, manutenção ou desconstrução de poder. Notamos que aquilo que se encontra de maneira localizada na feira pode ser reverberado para outras dimensões de realidade temporal, envolvida na mentalidade situacional humana dos sujeitos ali existente. A composição econômica, que enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, sendo perceptível o território como recurso, pode ser simbólica ou até mesmo uma situação de ausência de construção e desterritorialização. A multiplicidade político-econômica aprofunda-se e formata variadas fontes de poder simbólico, então desenvolvidas no local. A economia que aqui estamos expressando não é aquela apenas de venda do procedimento de troca de dinheiro por produto, mas aquela que se condiciona dentro do fator simbólico. É como se ocorresse ordenamento dentro de suportes de construção do que é evidenciado na feira, agregando o desenvolvimento de alguma natureza emocional, formando poderio imagético simbólico sensível. Desta forma, observamos que a formatação do real ali desenvolvida recebe influência da expressão e essência do ser amazônico, dentro de diferentes ordens simbólicas de sensibilidade temporal. A dimensão sensível territorial efetua-se em diferentes direções e por várias camadas de realidades expressas no cotidiano da localidade, no seu processo de construção e identificação com o outro, assim como na evidência da composição territorial, tendo como base o sentir em comum que influencia as mentalidades e realidades ali existentes.
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Considerações finais
Pudemos constatar que, no espaço da feira do Guamá, a relação dos sujeitos frequentadores possui diversas construções, que colaboram para a reverberação das interações, na composição estética da identificação comunicacional e no desenvolvimento da sensibilidade territorial. A pesquisa propõe a possibilidade de percepção na diversidade existente na localidade, assim como expressividades para a condição da construção espacial temporal da realidade presente. O aspecto lógico ou econômico possui justificativa para a movimentação do local. Todavia, não se pode deixar de lado a própria expressão que ali persiste. Assim, notamos a estrutura da vida social do cotidiano, como é percebido na movimentação da identificação e no aspecto territorial, modo vivente de sentir em comum a arte de viver. Observamos que a estética da identificação comunicacional caracteriza-se na composição da construção de sensibilidade interacional, envolve emoções e segue a formatação da perspectiva real dos frequentadores. Um processo de instituição do movimento, caracterizada por um sentir em conjunto, ética da estética, possibilidade de uma arte generalizada. A composição e o desenvolvimento da formatação e da sensibilidade territorial – envolvida e formada na capacidade que a localidade encontra, dentro de sua composição de tempo de construção real – formata diversas relações sociais, assim como desenvolve e envolve formas de relações culturais que se caracterizam como ponto norteador do que é expresso na feira. Esta composição da estética da identidade comunicacional, assim como o processo territorial ratifica a interação que surge com quem frequenta a feira. A posição pela qual a interação e a comunicação se envolvem, propõe novos horizontes para o entendimento de algo que formata a realidade ali observada e impulsiona relações entre sujeitos em diversas escalas. A feira do Guamá em sua diversidade cultural possui múltiplas características, que têm como base o desenvolvimento de identificações e aspectos territoriais, o sentido de ser, para a sua própria formatação real temporal à sensibilidade. A localidade expressa aspectos fundamentais da própria essência da sociedade amazônica e de sua composição, bem como sua importância para a formação de processos comunicativos universais e humanos. A nossa investigação tem como ponto principal trazer primeiras reflexões, para que possam fomentar debates e futuros estudos importantes dentro da temática de pesquisa aqui colocada.
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