r e v i s t a
Resgate
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História Econômica Demografia Histórica Parte 1
Comunicação & Publicações
Volume XXV, n. 2 [34], jul./dez. 2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor: Marcelo Knobel COORDENADORIA DE CENTROS E NÚCLEOS (COCEN) Coordenador: Ana Carolina de Moura Delfim Maciel
CENTRO DE MEMÓRIA – UNICAMP Diretora: Ana Maria Reis de Goes Monteiro Diretor Associado: Jefferson de Lima Picanço CONSELHO CIENTÍFICO - CMU Ana Maria Oda Andre Luiz Paulilo Antonio Carlos Zuffo Carlos Alberto Cordovano Vieira Carmem Lúcia Soares Eliana Moreira Emilia Pietrafesa de Godoi Iara Lis Franco Schiavinatto Jorge Alves de Lima Josianne Frância Cerasoli Juanito Ornelas de Avelar Maria José Maluf de Mesquita Maria Sílvia Duarte Hadler Ricardo Godoi
Editores Ana Maria Reis de Góes Monteiro Jefferson de Lima Picanço COMITÊ EDITORIAL Carmen Lucia Soares (FEF/Unicamp) Heloísa Helena Pimenta Rocha (FE/Unicamp) Iara Lis Schiavinatto (IA/Unicamp) Maria Stella Martins Bresciani (IFCH/Unicamp) CONSELHO EDITORIAL Ana Mauad (UFF) Anderson Araújo Oliveira (Université du Québec è Montreal, Canadá) Benito Bisso Schmidt (UFRGS) Joan Pagés (Universitat Autònomade Barcelona, Espanha) Josianne Frância Cerasoli (IFCH/Unicamp) Luciene Lehmkuhl (UFU) Márcia Ramos (Udesc) Maria Stella Bresciani (Unicamp) Miriam Paula Manini (UnB) Mônica Raisa Schpun (CRBC/EHESS, Paris, França) Regina Beatriz Guimarães (UFPE) Richard Cándida Smith (University of California, Berkeley, EUA) Roberto Elisalde (Universidad de Buenos Aires, Argentina) Valéria Lima (Unimep)
Editora Executiva Juliana Oshima Franco (revisão e normalização)
Projeto e editoração gráfica Carlos Roberto Lamari Imagem da capa: “Humanidades X”, da artista plástica Fúlvia Gonçalves (Linogravura, 1978, Série Humanidade, 59 cm x 42 cm). Acervo do Museu de Arte Contemporânea Olho Latino (Atibaia, SP).
Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura/ Universidade Estadual de Campinas, Centro de Memória. – Campinas, SP, v. 25, n. 2, jul./dez. (1990-).
Periodicidade semestral. e-ISSN 2178-3284 Editoria do Setor de Comunicação e Publicações do CMU. Temática do v. 25, n. 2 [34], 2017: História Econômica & Demografia Histórica
1.Cultura – Periódicos. 2. Memória – Periódicos. 3. Memória. 4. História Economica . 5. Demografia Histórica. I. Universidade Estadual de Campinas. Centro de Memória.
S U M Á R I O C A R T A
A O
L E I T O R
Ana Maria Reis de Goes Monteiro Jefferson de Lima Picanço.................................................................................................................................1-2 A P R E S E N T A Ç Ã O História Econômica e Demografia Histórica: um encontro marcado Maria Alice Rosa Ribeiro e Maísa Faleiros da Cunha.......................................................................................... 3-6 D O S S I Ê Com os olhos no futuro da Demografia Histórica da América Latina: uma homenagem a Maria Luiza Marcílio Ana Silvia Scott............................................................................................................................................ 7-26
As viagens do Conceição Esperança: Tráfico de escravos entre São Paulo e Moçambique (1820-1822) Renato Leite Marcondes; José Flávio Motta.................................................................................................. 27-56 Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714) Dayane Julia Carvalho Dias; Carmen Margarida Oliveira Alveal................................................................... 57-80
De Vossa Mercê amigo, criado e muito obrigado: comércio, família e redes de clientela na capitania de MinasGerais (c.1760 – c. 1820) Paula Chaves Teixeira Pinto.......................................................................................................................81-104 A prestação de contas com a morte - olhar sobre testamentos e inventários post-mortem - nordeste paulista, séculos XVIII e XIX Lelio Luiz de Oliveira................................................................................................................................105-122 O registro de batismo de ingênuos no Vale do Paraíba paulista (1871-1888) Agnaldo Valentin.....................................................................................................................................123-144 Para onde foram as patacas?: patrimônio de portugueses na Amazônia (Belém, 1840-1909). Anndrea Caroliny da Costa Tavares.......................................................................................................... 145-166 Entre Escravos e Livres: Economia e Força de Trabalho no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista no terceiro quartel do século XIX Marcelo Freitas Soares de Moraes Cruz..................................................................................................... 167-190 Reconstituição de famílias e estudos por geração: linhagens fundadas por imigrantes alemães em Curitiba, século XIX e XX Sergio Odilon Nadalin..............................................................................................................................191-208 Relação de pareceristas ad hoc (2017).................................................................................................. 209-216
História Econômica Demografia Histórica
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Carta ao Leitor Parte 1
Carta ao Leitor
A
Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura é hoje uma das mais longevas revistas interdisciplinares de cultura do Brasil. Nesta trajetória de mais de 27 anos, a publicação dedicou-se à discussão e divulgação de temas na área da cultura, aqui compre-
endidas as Ciências Humanas e as Artes. Neste caminho, a Resgate manteve-se sempre conectada com as discussões de seu tempo. Quando surgiu, nos anos 1990, sob a direção do Prof. José Roberto do Amaral Lapa, fundador do Centro de Memória – Unicamp (CMU), a revista procurou trazer debates culturais da época, sempre com a premissa de envolver também o público externo à academia. Desde então, novos pontos de vista foram agregados, outros substituídos. Mas os compromissos da revista se mantêm. A Resgate tem sua publicação online desde 2010. Com isso, alcançou um público mais amplo e diversificado, sem abrir mão de seu compromisso com a qualidade e com a facilidade de leitura nos novos meios digitais: fazem parte da tradição da revista a qualidade gráfica de suas edições e o cuidado na diagramação de cada artigo publicado, que podem ser comprovadas nas modificações realizadas no projeto gráfico editorial e no site da revista ao longo de 2017. A qualidade do processo de submissão é outra preocupação constante. Com a incorporação da Resgate ao Portal de Periódicos Eletrônicos Científicos (PPEC/Unicamp), a revista teve todo o processo de submissão automatizado, desde o envio do trabalho até a decisão editorial. Os ganhos foram enormes. A avaliação por pares neste ambiente preserva o sigilo da identificação autor/avaliador. E a rapidez do processo é maior, permitindo uma edição mais cuidadosa. Para reforçar este processo, o atual Comitê Editorial, composto pelos editores e pelas professoras Carmen Lucia Soares, Heloísa Helena Pimenta Rocha, Iara Lis Schiavinatto e Maria Stella Martins Bresciani, realizou e realizará diversas mudanças na politica editorial e na estrutura da revista. Os editores sentem-se gratos e honrados por esta contribuição. O Conselho Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 1-2, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284
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História Econômica
Carta ao Leitor Demografia Histórica & Parte 1 Editorial da Resgate está em processo de renovação, com a agregação de nomes de peso em nível nacional e internacional. As etapas do processo editorial também têm sido revistas, no sentido de agilizar a publicação de artigos e centrar nas principais áreas de atuação do periódico. Em termos de estrutura, a revista continua com a publicação de dossiês temáticos. Estes são importantes no sentido de reunir a produção especializada e de trazer contribuições atualizadas dos debates de cada área. Por outro lado, a submissão de artigos em fluxo contínuo é mais que bem-vinda. A expectativa dos editores é que esta modalidade de submissão venha a se multiplicar para o futuro. A periodicidade é outro fator que vem sendo discutido pelo Comitê Editorial. Temos como compromisso o cumprimento dos prazos de publicação dos artigos recebidos. Hoje, estes prazos são cada vez mais importantes. Para os autores, é o fim de uma etapa central de seu trabalho: a divulgação dos resultados da pesquisa. Para a revista, significa credibilidade e transparência. É por isso que, a partir de 2018, a Resgate deixará de ser publicada nos meses de junho e dezembro – que sempre coincidem com os períodos em que nossos colaboradores, autores e pareceristas, estão sobrecarregados com o fechamento de semestre –, passando a ser publicada nos meses de março e setembro, com a mesma periodicidade semestral. As mudanças projetadas para estes números e os seguintes visam uma revista cada vez mais dinâmica, e são parte de um projeto editorial pensado para o presente e o futuro. A Resgate Revista Interdisciplinar de Cultura quer estar sempre presente nos debates contemporâneos, com rigor acadêmico e transparência institucional. Profa. Dra. Ana Maria Reis de Goes Monteiro Prof. Dr. Jefferson de Lima Picanço Editores
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Apresentação Parte 1
História Econômica e Demografia Histórica: um encontro marcado
É
com imenso prazer que apresentamos o dossiê História Econômica e Demografia Histórica. Preliminarmente, cabe esclarecer que, em virtude da grande demanda de artigos submetidos e aprovados, decidimos desdobrar o dossiê em dois números da revista Resgate: a Parte 1, com a presente edição, composta por nove artigos, e a Parte 2, composta por outros dez textos, com publicação prevista para março de 2018. Ambas edições contam com contribuições de autores(as) prestigiados(as) nos campos da História Econômica e da Demografia Histórica, procedentes de diferentes universidades brasileiras. O dossiê História Econômica e Demografia Histórica percorreu um longo caminho até chegar aos seus leitores. Começou com o convite feito pela pesquisadora Dra. Maria Elena Bernardes, então diretora do Centro de Memória - Unicamp (CMU), para organizarmos um grupo de trabalho no VIII Seminário Nacional do Centro de Memória, que culminou na proposição do GT Memória, História Econômica e Demografia, um dos 12 grupos de trabalho que integraram o evento. Após a realização do seminário, em julho de 2016, recebemos um novo convite para organizarmos o dossiê que ora se apresenta.
Nossa proposta é a interdisciplinaridade de duas áreas autônomas da História, tendo como objetivo potencializar a compreensão dos acontecimentos e das transformações sociais e econômicas que se passaram em espaços geográficos específicos e em tempos determinados. Partimos do pressuposto que o estudo da população é fundamental para entender os condicionamentos das transformações na vida material, na produção, distribuição e consumo de mercadorias, no trabalho, no dinheiro e no crédito. A história da população condiciona e é, ao mesmo tempo, condicionada pelas estruturas e pelas condições sociais, econômicas e culturais que se modificam e voltam a se reestruturar no tempo, segundo a ação de homens e mulheres, das gerações que fazem surgir novas formas na organização social, cultural e material do espaço e da paisagem. Isso nos faz lembrar da professora Emília Viotti da Costa1 e de sua concepção do fazer a História, que enfatiza a necessidade de partir do “pressuposto de que são os homens que fazem a história (e não as estruturas), se bem que a façam dentro de condições determinadas”. O dossiê História Econômica e Demografia Histórica reúne trabalhos de pesquisa que resultaram da análise crítica de documentos originais, sejam eles produzidos por instituições públicas ou privadas, administrativas, judiciárias ou eclesiásticas, tais como: registros paroquiais (batismo, casamento e óbito), testamentos, inventários post mortem, recenseamentos populacionais, almanaques, entre outros, como, por exemplo, as correspondências ativas e passivas trocadas entre indivíduos. As contribuições que integram o dossiê evidenciam a incursão teórica e historiográfica sobre diver1 COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 5. ed. São Paulo: Unesp, 2010, p. 31. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 3-6, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284
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Apresentação Demografia Histórica & Parte 1
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sos temas interdisciplinares: redes de negócios, de clientelas e relações familiares; características das famílias livres, escravas negras e indígenas, e imigrantes; experiências de mobilidade social e espacial; comportamentos e estratégias frente à morte; transformações das formas de riqueza, e composição da força de trabalho para espaços geográficos e temporais da história brasileira. Abrimos esta edição da Resgate com uma homenagem a Maria Luiza Marcílio. O artigo de Ana Silvia Scott reporta a trajetória acadêmica dessa pesquisadora pioneira no campo da Demografia Histórica brasileira, cuja tese de doutorado, La ville de São Paulo: peuplement et population. 1750 – 18502, é o marco inaugural do campo e completa seu cinquentenário em 2017. Em seguida, destacamos o artigo de autoria de Renato Leite Marcondes e José Flávio Motta, que se debruça sobre a correspondência de Antonio da Silva Prado, mais tarde Barão de Iguape, na qual o comerciante e traficante de escravos organiza as transações do empreendimento de duas viagens a Moçambique para trazer africanos escravizados para os senhores de engenhos de São Paulo, no limiar da Independência do Brasil. Um conjunto de cartas de um negociante português em Minas Gerais foi também a fonte documental empregada por Paula Teixeira Pinto para mostrar a formação de redes de clientela e de negócios que ligaram as duas principais praças mercantis nos fins do século XVIII e início do XIX – Minas Gerais e Rio de Janeiro. O artigo de Dayane Carvalho Dias e Carmen Alveal traz uma análise dos registros paroquiais de batismo da Capitania do Rio Grande durante a Guerra dos Bárbaros (1681-1714), que marca a interiorização do povoamento no Rio Grande do Norte, o consequente embate entre colonizadores e indígenas, o aniquilamento da população masculina indígena e a crescente presença de escravos africanos em uma área não vinculada à agroexportação. Outros dois artigos utilizam os registros paroquiais como principais fontes para repensar o segundo império e a república. Agnaldo Valentin focaliza os batismos dos filhos de escravos nascidos após da Lei do Ventre Livre, os ingênuos, em quatro localidades do Vale do Paraíba paulista no período entre 1871 e 1888, evidenciando semelhanças entre elas. Sergio Nadalin, ao retratar as famílias de imigrantes alemães luteranos em Curitiba entre 1866 e 1939, analisa o comportamento reprodutivo de três gerações/ coortes, e a tendência à diminuição, no tempo, das concepções pré-nupciais. Os inventários post mortem serviram como principal suporte documental para dois trabalhos com objetivos distintos. Lelio Luiz de Oliveira faz um estudo sobre os comportamentos e as estratégias dos indivíduos frente à morte na região nordeste de São Paulo, apontando os bens legados e os valores destinados aos rituais fúnebres, aos pobres e às instituições religiosas, inscritos em testamentos e inventários post mortem em finais do século XVIII e século XIX. Já Anndrea Tavares analisa a evolução das fortunas de imigrantes portugueses em Belém, Província do Grão-Pará, 2 MARCILIO, Maria Luiza. La ville de São Paulo: peuplement et population. 1750 - 1850. Paris, Université de Paris-Sorbonne, EHESS, 1967. Disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4783500U8>. Acesso em: 11 dez. 2017.
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Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 1 [33], p. 3-6, jan./jun. 2017 – e-ISSN: 2178-3284
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entre os anos de 1840 e 1909, período anterior e de consolidação da economia extrativa da borracha. A autora, com base nos autos cíveis de inventários, destaca a importante presença dos portugueses na rede mercantil da cidade. Por fim, o artigo de Marcelo Cruz utiliza o Recenseamento Geral do Império de 1872 e as informações veiculadas no Almanak da Província de São Paulo (1873) para analisar a constituição e a distribuição da força de trabalho de livres e escravos em um conjunto de localidades que compõem as duas principais regiões cafeeiras de São Paulo, o Vale do Paraíba e o Oeste Paulista. O leitor poderá evidenciar a multiplicidade de temas e as distintas abordagens presentes nos artigos do dossiê, em que se mesclam as análises quantitativas e qualitativas, e avaliar os resultados que, certamente, enriquecerão o diálogo acadêmico. Não podemos concluir esta apresentação sem expressar nosso mais sincero agradecimento a todos(as) que contribuíram para a realização deste número: autores(as) que compartilharam suas experiências, avanços e resultados de investigação; pareceristas convidados, pela generosa disponibilidade e seriedade para avaliarem os artigos; Fúlvia Gonçalves, artista plástica e professora aposentada da Unicamp, que gentilmente cedeu o uso da obra “Humanidade X” (Linogravura, 1978), que integra o acervo do Museu Olho Latino (Atibaia, SP), para utilização na capa desta edição; Profa. Dra. Ana Maria Reis de Goes Monteiro e Prof. Dr. Jefferson Picanço, respectivamente diretora e diretor associado do CMU, além de editores da Resgate, pelo apoio institucional; Carlos Lamari, pelo cuidado com o projeto gráfico; e Juliana Oshima Franco, editora executiva da revista, pela revisão e supervisão. Dra. Maria Alice Rosa Ribeiro Dra. Maísa Faleiros da Cunha Organizadoras
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Dossiê Parte 1
“Com os olhos no futuro da Demografia Histórica da América Latina”: uma homenagem à Maria Luiza Marcílio
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“With an eye on the future of Latin American Historical Demography”: a tribute to Maria Luiza Marcílio Ana Silvia Volpi Scott Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Resumo A partir da recente comemoração dos cinquenta anos da Demografia Histórica, presta-se uma homenagem às contribuições de Maria Luiza Marcílio para a introdução e o desenvolvimento desses estudos no Brasil e na América Latina. Colocam-se em destaque os importantes aportes dados pela homenageada, através das suas atividades de docência, de orientação e de produção acadêmica neste campo. O balanço final sobre sua carreira revela que os temas e as vertentes de pesquisa abertas por Maria Luiza Marcílio continuam ainda hoje a estimular os pesquisadores da Demografia Histórica, da História da População e da História da Família na América Latina. Portanto, esta homenagem à Maria Luiza Marcílio não significa falar do passado da Demografia Histórica latino-americana ou brasileira. Trata-se de lançar os nossos olhares para os desafios que nos aguardam nos próximos anos.
Palavras chave: Demografia Histórica; População; América Latina; Brasil.
Abstract After the recent commemoration of the 50th anniversary of Historical Demography, a tribute is paid to the contributions of Maria Luiza Marcílio to the introduction and development of these studies in Brazil and Latin America. It highlights the important contributions given by the honoree, through her teaching activities, orientation and academic production in this field. The final balance of her career reveals that the themes and research lines opened by Maria Luiza Marcílio continues to stimulate researchers of Historical Demography, Population History, and Family History in Latin America. Therefore, this tribute to Maria Luiza Marcílio does not mean talking about the past of Latin American or Brazilian Historical Demography. It’s about casting our eyes at the challenges that await us in the coming years.
Keywords: Historical Demography; Population; Latin America; Brazil.
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Este texto, com algumas modificações e atualizações, foi apresentado como conferência de encerramento do I Seminário de Demografia Histórica e História da População na América Latina, que ocorreu no Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo/Unicamp), em junho de 2015. Gostaria de agradecer o convite dos colegas Paulo Teixeira e Isabel Barreto Messano – na oportunidade, moderadores da RED Demografía Histórica, Asociación Latinoamericana de Población (ALAP) –, assim como à Maísa Faleiros da Cunha, para participar da homenagem à Professora Maria Luiza Marcílio, estendendo os agradecimentos às organizadoras deste dossiê pela oportunidade de publicar o presente trabalho.
Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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I n t r o d u ç ã o
Maria Luiza Marcílio (COSTA & IVO, 2007).
A
Demografia Histórica acaba de completar meio século. O “episódio” que marca a contagem dos cinquenta anos foi criação oficial da International Comission for Historical Demography, em Viena, Áustria, no ano de 1965, durante o XII International Congress of
Historical Sciences (Congresso Internacional de Ciências Históricas). A criação do referido Comitê deu-se cinco anos depois de Louis Henry ter apresentado pela primeira vez aos historiadores a metodologia de Reconstituição de Famílias, em Estocolmo (Suécia), na edição do ano de 1960 do mesmo Congresso Internacional de Ciências Históricas. A Reconstituição de Famílias é, talvez, a marca mais conhecida da Demografia Histórica e foi desenvolvida com a cooperação do historiador francês Michel Fleury.
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Dossiê Parte 1
As comemorações relativas aos cinquenta anos da Demografia Histórica incluíram publicações importantes, especialmente na Europa, afinal o seu “berço” é a França e a “paternidade” da disciplina é atribuída a Louis Henry, demógrafo francês que esteve vinculado ao Institut National d’Études Démographiques (Ined), na França. O conjunto de publicações integra, por exemplo, o volume nº 50 do Annales de Démographie Historique – Bilan historiographique d’une discipline em renouvellement, publicado em 2015, um dos principais periódicos voltados para os temas da demografia do passado (Annales, 2015). Outras duas publicações importantes neste contexto são os livros A Global History of Historical Demography. Half a Century of Interdisciplinarity, de Fauve Chamoux e Bolovan (2016), e The future of historical demography. Upside down and inside out, de Matthijs (2016)1, que também integram a celebração e, mais do que isso, avaliam do impacto da Demografia Histórica nos campos da História e da Demografia.
Maria Luiza Marcílio e a demografia histórica no Brasil
Considera-se o ano de 1973 como a “entrada oficial” da Demografia Histórica no Brasil: com alguns anos de atraso em relação à Europa, a disciplina foi introduzida e ganhou espaço entre pesquisadores brasileiros e latino-americanos. O marco inaugural foi a publicação do livro de Maria Luiza Marcílio sobre a cidade de São Paulo. A obra correspondia à versão em português de sua tese de doutorado, sob orientação do próprio Louis Henry e defendida na França, em 1967, apenas três anos depois da constituição oficial do Comitê de Demografia Histórica na Europa. Esse foi o impulso inicial que, nos anos seguintes, estimulou dezenas e dezenas de pesquisadores a trilharem a senda que se valia dos métodos e técnicas da Demografia Histórica para subsidiar os estudos sobre a população brasileira e latino-americana. Nada mais justo do que, no contexto de celebração que envolve a Demografia Histórica em nível mundial, prestar a justa homenagem à Maria Luiza Marcílio, até porque, neste ano de 2017, se completam os 50 anos da defesa, na Sorbonne, de sua tese pioneira, que se valeu do instrumental da Demografia Histórica para estudar a população de São Paulo. É, sem dúvida, 1 Vale destacar, ainda, que no livro A Global History of Historical Demography, o capítulo dedicado à América Latina é de autoria de Maria Luiza Marcílio. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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um momento que enseja a reflexão sobre a contribuição de Maria Luiza Marcílio, destacando as várias facetas de sua longa e produtiva carreira. O reconhecimento em relação às contribuições dadas por Maria Luiza Marcílio à Demografia Histórica brasileira e latino-americana foi apontado em diferentes oportunidades: em 1988, com o prêmio conferido pelo governo espanhol, através da Comissão Oficial de Celebração do V Centenário, na categoria de Historia da América, para a publicação da obra Crescimento Demográfico e Evolução Agrária Paulista 1700-1836; no ano seguinte, foi atribuído a ela o Prêmio Guggenhein. Em 2012, Maria Luiza Marcílio foi distinguida com a Menção Honrosa de Melhor Historiadora, na 54ª International Conference of Americanists (Viena, Áustria). Assim, a homenagem que se presta agora, além de reconhecer seu papel e sua contribuição para a Demografia Histórica, permite que os colegas e outros profissionais que cruzaram seus caminhos, possam retomar contato com sua importante produção, bem como pode estimular os mais jovens a explorar e conhecer mais a fundo as páginas escritas ao longo dessas últimas décadas. Não há dúvida de que o nome de Maria Luiza Marcílio está estreitamente vinculado ao percurso de mais de cinco décadas da Demografia Histórica na América Latina e no Brasil, e que suas pesquisas foram indutoras para que esse conhecimento se multiplicasse e se aprofundasse, especialmente a partir do sucessivo alargamento dos temas, das fontes, das metodologias, assim como por conta da renovação das gerações dos próprios estudiosos da população em perspectiva histórica. Ao longo das últimas décadas, seus trabalhos têm dado uma contribuição de peso para a Demografia Histórica, assim como para a História da Família. Para mais, ainda continuam a apontar caminhos inovadores que merecem ser explorados sob o influxo das novas gerações. Esse é um primeiro aspecto de sua trajetória que deve ser destacado: o fato de ter guiado tantos jovens estudantes nessas temáticas e ter propiciado a primeira oportunidade de adentrar o universo da pesquisa2. Maria Luiza Marcílio teve, e continua a ter, uma carreira intensa e produtiva. Parte substantiva 2 O convite para a publicação deste texto me deu muita satisfação, não apenas pela chance de me dirigir a colegas e estudantes que, tenho certeza, se sentem permanentemente desafiados a trabalhar com a demografia em perspectiva histórica, mas também por me ser permitido dar um testemunho e, de alguma forma, fazer um agradecimento especial à querida mestra, pelas oportunidades e pela atenção que ela sempre deu à formação de jovens estudantes. Incluo-me entre estes pesquisadores privilegiados que, desde então, percorrem as trilhas do conhecimento em Demografia Histórica, História da População e História da Família. Em meu nome e no de todas as gerações de pesquisadores formados sob sua “orientação e os seus cuidados”, agradeço à Profa. Maria Luiza Marcílio.
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Dossiê Parte 1
de seu percurso acadêmico transcorreu no Departamento de História da USP, e foi lá que tive a oportunidade de conhecê-la, quando ministrou a disciplina de História da América para minha turma de graduandos, nos finais da década de 1970. Naquela ocasião, Maria Luiza Marcílio estava de retorno ao Brasil, depois de uma estada na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Desde então, recordo de ver a Profa. Marcílio sempre cercada de alunos que se integravam aos seus projetos de pesquisa. Entre eles, o que deu origem ao livro Caiçara: Terra e População. Estudo de Demografia Histórica e História Social de Ubatuba (publicado em 1986 e reeditado em 2006), assim como o projeto que eu tive a oportunidade de me integrar como bolsista de iniciação científica: População, Terra e Herança na Capitania Paulista (1765-1836), que propunha a análise diferencial da população paulista. Deste projeto resultaram duas dissertações de mestrado sobre a elite composta pelos grandes proprietários de escravos na Capitania-Província de São Paulo (SCOTT, 1987; BACELLAR, 1987).
Registro do lançamento do livro História em todos os seus sentidos. Demografia Histórica e Questões Contemporâneas (2017), realizado na Livraria da Vila, em São Paulo, no dia 19 de agosto 2017. O livro foi uma homenagem de seus orientandos, alguns deles presentes na imagem (esq. à dir.): Renato Pinto Venancio (UFMG), Renato Junio Franco (UFF), Ana Silvia Volpi Scott (Unicamp), Maria Luiza Marcilio e Carlos de Almeida Prado Bacellar (USP). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Essa aproximação e integração com alunos de graduação pode-se dizer, foi uma bem-sucedida estratégia de formação de recursos humanos, que acabou por dar as bases para a institucionalização do grupo que reunia alunos e orientandos de graduação e pós-graduação. Com a determinação e a vontade que lhe são características, Maria Luiza Marcílio fundou, em 1985, o Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (CEDHAL), que dirigiu por mais de dez anos. O CEDHAL teve papel fundamental na produção do conhecimento na área, elegendo como temas centrais o estudo da infância e da família. Por ali passaram dezenas e dezenas de pesquisadores, desde os iniciantes, carinhosamente, identificados como “CEDHAL Jr”, até os pesquisadores seniores. Em que pese o fato de que as contribuições de Maria Luiza Marcílio abarquem múltiplos temas e abordagens3, é importante privilegiar aqui a produção no campo da Demografia Histórica, da História da População e da História da Família. Usei como fio condutor, para recompor esta longa trajetória acadêmica, marcos que considerei fundamentais para aquilatar seu percurso. Assumo como ponto inicial a graduação em História, pela Universidade de São Paulo, em 1960, que se seguiu à sua inserção como docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde ministrou a disciplina de História do Brasil. Nos meados da década de 1960, outros desafios foram abraçados pela jovem historiadora, que partiu rumo à cidade luz, para fazer seu doutorado na Université de Paris-Sorbonne. Ali, Maria Luiza Marcílio foi orientada por pesquisadores do calibre de Fernand Braudel e Louis Henry. O resultado da estada parisiense foi a tese La ville de São Paulo: peuplement et population. 1750 1850, publicada em 1968 na França, e no Brasil apenas cinco anos mais tarde, pela Editora Pioneira, com o título A cidade de São Paulo: Povoamento e População, reeditado em 2014. Aqui, abro um parêntesis necessário para chamar a atenção para o fato de que seus livros mais conhecidos no campo da Demografia Histórica mereceram reedições nos últimos anos. É sinal inequívoco que reforça a importância dos estudos realizados, que ainda têm contribuições e lições a dar para as velhas e novas gerações de historiadores, demógrafos historiadores e demógrafos. 3 Outras áreas receberam a atenção e os estudos de Maria Luiza Marcílio. Destaco a sua integração, como presidente, na Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo (1997-2010), quando criou a Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da USP. Presidiu ainda o Instituto Jacques Maritain. Nesse campo dos direitos humanos teve atuação marcante também, produzindo inúmeros textos e reflexões, e recebendo a Menção Honrosa do Prêmio Alceu Amoroso Lima para os Direitos Humanos, em 2009. Nos últimos anos, tem se dedicado ao projeto Alfabetização na História do Brasil. Um dos resultados dessa investigação, desenvolvida no Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, foi o livro História da escola em São Paulo e no Brasil, publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo em 2005, e reeditado em 2014.
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Voltando às reflexões sobre a trajetória de Maria Luiza Marcílio, sem dúvida, a permanência na França possibilitou uma experiência vibrante e enriquecedora, permitindo que ela desfrutasse de um ambiente instigante, que lhe permitia transitar pelas muitas e fecundas trilhas exploradas pela historiografia francesa, que reunia um grupo de historiadores integrados à chamada Escola dos Annales4. Vale lembrar que a “segunda geração dos Annales” foi capitaneada por ninguém menos que Fernand Braudel que, inicialmente, orientou Maria Luiza Marcílio na Sorbonne. Diferentemente dos dias atuais, naquele momento a divulgação, a circulação das propostas e a disseminação dos métodos não era tão fácil e rápida como é hoje. Não apenas o acesso à produção era muito mais restrito e difícil, como a mobilidade de pesquisadores entre as diferentes instituições e países era muito mais limitada. Só tendo em conta este contexto é possível avaliar a contribuição e o impacto da atuação dessa pesquisadora, que vem produzindo conhecimento e formando pesquisadores, estimulados pelos desafios postos pelas novas abordagens da História, valendo-se com muita propriedade dos métodos e técnicas da, então, jovem ciência que era a Demografia Histórica. Ainda há que se considerar outro ponto importante. Se hoje a produção intelectual de alto nível realizada pelas mulheres, em todos os campos do saber, não é novidade, o mesmo não pode ser dito sobre o contexto que caracterizava a sociedade e as universidades brasileiras em meados da década de 1960. Nos tempos que correm, em que a busca pela igualdade de oportunidades entre os gêneros é indiscutível, e quando a inserção internacional passa a ser quase que obrigação de todos nós pesquisadores, talvez seja difícil lembrar que, naqueles anos, não era um desafio menor uma jovem de seus vinte e poucos anos partir, sozinha, para fazer o doutorado em Paris, na prestigiada Sorbonne, sob a orientação de eminentes pesquisadores europeus. Enfim, de volta ao Brasil, Maria Luiza permaneceu por um curto período na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis. Na revista ali publicada, os Anais de História, veiculou importantes resultados de seus estudos. Cito aqui, entre outros, o artigo “Dos registros paroquiais à Demografia Histórica no Brasil” (MARCÍLIO, 1970). Sem dúvida, um início auspicioso para uma trajetória rica que engloba, pelo menos, meia centena de artigos publicados no Brasil e no exterior, quase uma vintena de livros, outra meia centena de capítulos de livro, mais de 150 participações em eventos, além das inúmeras orientações de dissertações de mestrado e teses de doutorado. 4 Ainda que haja discussão em torno da adequação desse termo, refiro-me ao grupo de historiadores que se renderam às propostas e desafios lançados por Marc Bloch e Lucien Fébvre. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Esse pequeno e incompleto balanço pode dar a dimensão da dificuldade encontrada para escolher o “roteiro” dessa homenagem. Por conta disso, foram escolhidos alguns tópicos que pudessem dar a medida da produção dessa grande pesquisadora e professora. Até porque a produção intelectual não se “contabiliza” apenas pela quantidade (essa demanda excessiva pela quantificação da produção é, sabemos todos, uma “praga” do nosso tempo). A “régua” deve dar conta também da diversidade e riqueza das abordagens e dos temas, para refletirmos não apenas sobre a métrica, mas, sobretudo, sobre o impacto de sua produção para os caminhos da Demografia Histórica da América Latina e do Brasil. Embora tenhamos o passado como ponto de partida, quero mirar o futuro. Essa “viagem” no tempo me fez garimpar algumas pepitas, como a primeira publicação de Maria Luiza Marcílio, datada de 1965, quando já se encontrava em Paris5, começando em grande estilo ao publicar, em francês, um texto sobre industrialização e movimento operário em São Paulo no início do século XX. Aliás, essa é outra característica importante de toda a sua produção: publicar em diversos idiomas e em diferentes países. Há que se referir que alguns desses trabalhos jamais foram publicados no Brasil6. Esse lapso de algumas décadas revela, à partida, um sinal particularmente importante, que me fez refletir, mais uma vez, sobre o passado e futuro da Demografia Histórica da América Latina. Com os olhos no passado recente, constato que há alguns anos um grupo consistente de pesquisadores latino-americanos interessados na história da população e na demografia histórica vem mantendo intensos e produtivos diálogos entre si (embora mantidos de forma individual), a partir de projetos, publicações, ou através dos encontros que ocorrem nos congressos da Associación Latinoamericana de Población (ALAP), Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), Associación de Estudios de Población de la Argentina (AEPA), entre outros. Os que trabalham em temas afins buscam uma maior aproximação com alguns colegas. Mas, é necessário ir além! E creio que o exemplo dos membros do Grupo de Trabalho “População e História” da ABEP e dos integrantes das Redes da ALAP pode ajudar a dinamizar ainda mais esses contatos, estimular os projetos conjuntos que busquem cobrir toda a amplitude de temas e questões que merecem a nossa atenção, e que pesquisadores individuais não têm fôlego e/ 5 Marcílio permaneceu em Paris entre os anos de 1964 e 1967 para fazer o doutorado, com bolsa do governo francês (CNRS), conforme informações do Currículo Lattes. 6 Com o objetivo de reunir e disponibilizar textos importantes, incluindo alguns nunca publicados no Brasil ou traduzidos para o português, quatro ex-orientandos – Renato Pinto Venancio (Universidade Federal de Minas Gerais), Renato Junio Franco (Universidade Federal Fluminense), Carlos de Almeida Prado Bacellar (Universidade de São Paulo), e Ana Silvia Volpi Scott (Universidade Estadual de Campinas) – organizaram a edição de um livro que é um tributo à ampla e rica produção de Maria Luiza Marcílio. Intitulado A História em todos os sentidos. Demografia Histórica e Questões Contemporâneas, a obra reúne textos que abordam um amplo leque de temas e abordagens que caracterizam a sua produção. O livro foi publicado pela Editora PUC Minas, em 2017. O texto sobre a industrialização e o movimento operário está incluído neste livro.
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ou recursos para abraçar. Esse desafio não é de hoje! Maria Luiza Marcílio, ao fazer um balanço sobre a Demografia Histórica latino-americana (MARCÍLIO, 2000), apontava a necessidade de diálogo amplo e concertado entre os pesquisadores. Assim, cada vez mais a soma de esforços para a conformação de redes colaborativas se coloca como o grande desafio aos pesquisadores, não apenas da Demografia Histórica, ou da Demografia, mas em todos os campos das ciências. No caso dos historiadores e demógrafos historiadores, em especial, talvez seja um desafio um pouco mais árduo, por conta da consolidada prática de trabalho individual que se realiza, muitas vezes, no silencioso interior dos gabinetes, dos arquivos, das bibliotecas e, ultimamente, diante das telas dos computadores e de toda a parafernália eletrônica a que temos acesso. A tarefa, embora ambiciosa, é primordial, uma vez que não é necessário lembrar a nenhum de nós pesquisadores que lidam com os problemas relativos aos estudos das populações no passado, sobre os grandes investimentos de recursos humanos e materiais para a coleta, a organização, a sistematização e, mais importante, a produção e construção de dados que forneçam as bases para as nossas análises e interpretações sobre a população e a família no passado. Por conta disso, ao voltarmos nossos olhares para o passado mais distante, e para a atuação Maria Luiza Marcílio, percebemos que, desde o início, ela se preocupou em constituir equipes, ter projetos coletivos em andamento, ter inserção internacional, quando ainda não se falava nem de “redes colaborativas” e nem de “internacionalização”. Na mesma linha lembro que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, os “meninos da Marcílio”, como era conhecido o seu grupo de alunos(as)/orientandos(as), foram sempre encorajados(as) a participar de eventos, cursos e seminários no Brasil e no exterior. Igualmente, sua própria inserção como professora visitante em diversas universidades, tanto no Brasil quanto no exterior (Estados Unidos, França, Portugal, Porto Rico), fomentava também os contatos e as trocas de experiências/conhecimentos entre colegas e alunos. Vale aí mais um testemunho pessoal: a primeira viagem que fiz à Europa, foi para participar do Seminário Comparative Historical Sociology, no Instituto Gulbenkian de Ciências (Lisboa), seguido de participação no Stage de Formation Intensive à la Démographie Historique, oferecido pelo Laboratoire de Démographie Historique da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Nesses dois cursos, eu e outros colegas, orientados por Maria Luiza Marcílio, tivemos contato e acesso a pesquisadores que faziam investigação de ponta na Demografia Histórica europeia: Louis Henry, Jacques Dupâquier, Jean Pierre Bardet, Jean-Noël Biraben, Hervé le Bras, Richard Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Smith, Robert Rowland, Alain Macfarlane, bem como a alguns pesquisadores de renome hoje, que despontaram nos inícios dos anos 1980, como David Reher, Maria Norberta Amorin e Isabel Moll. Uma maneira muito objetiva de perceber os contatos e as redes de pesquisadores que cruzaram o percurso acadêmico de Maria Luiza Marcílio pode ser avaliada através de duas obras seminais organizadas por ela: Demografia Histórica: orientações técnicas e metodológicas (1977) e População e Sociedade. Evolução das Sociedades Pré-industriais (1984). A simples leitura dos índices das obras revela a sua inserção internacional, concorrendo para reunir textos fundamentais, e publicados em português, de autores que dispensam maiores apresentações entre os estudiosos da Demografia Histórica: Thomas Hollingsworth; Louis Henry; Hubert Charbonneau, Jean Pierre Poussou; Jacques Dupâquier; Alain Bideau; Massimo Livi–Bacci, Jean Noël Biraben; Peter Laslett, François Lebrun7. O CEDHAL, centro fundado por Maria Luiza Marcílio, em 1985, veio a se consolidar como um espaço privilegiado, que funcionou não apenas como núcleo de formação de pesquisadores no campo de estudo da população, mas também serviu para oportunizar a vinda nomes importantes para palestras, seminários, ou mesmo para estabelecer contatos que abriam oportunidades variadas para seus orientandos(as). Foi a vinda do Secretário Geral do European University Institute, ao CEDHAL, em 1988, que oportunizou minha ida para Florença (Itália) para fazer o doutorado, sob a orientação de Robert Rowland. O colega Renato Pinto Venâncio, também aproveitando os contatos propiciados por Maria Luiza Marcílio, fez seu doutorado em Paris, sob a orientação de Jean Pierre Bardet. Enfim, todo esse relato mostra mais uma faceta importante de Maria Luiza Marcílio: sua preocupação não apenas com a formação de pesquisadores e discípulos, mas a disposição e a generosidade de oferecer oportunidades para que seus orientandos “alçassem voos” mais arrojados e autônomos. Contudo, o perfil de um(a) grande mestre(a) não se limita exclusivamente à formação de quadros e recursos humanos através da docência e da orientação. A capacidade de produzir conhecimento e renovar as interpretações e os estudos sobre um conjunto alargado de temas revela outra marca de Maria Luiza Marcílio, que está amplamente documentada, não apenas aqui no Brasil, como também através de sua brilhante carreira internacional, que possibilitou partici7 Cabe ainda recordar um fato significativo e que não deixa de ser curioso: a coletânea Demografia Histórica, publicada inicialmente no Brasil pela Editora Pioneira, em 1977, mereceu uma versão em francês, publicada dois anos mais tarde, numa colaboração entre a Presses Universitaires de France (PUF), a Universidade de Rouen e a Universidade de Montreal (MARCILIO & CHARBONNEAU, 1979).
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pação ativa no debate historiográfico de ponta, nas áreas de História Social e de Demografia Histórica. Tal assertiva fica muito clara quando passamos em revista o tema central do I Seminário da Red Demografía Histórica (ALAP), que teve como objeto as famílias e as múltiplas abordagens da história da população8, e percebemos que Maria Luiza Marcílio produziu conhecimento substantivo em todas as perspectivas, somadas a outras que não foram contempladas no seminário. Para mais, cabe sublinhar o constante e rico diálogo que Marcílio sempre procurou manter entre a demografia histórica e outros campos da história, especialmente com a história social. Um exemplo dessa postura aparece expresso no texto publicado em Porto Rico, intitulado “La Historia Demográfica al servicio de la Historia Social” (1986). Tal relação, com certeza, deve ser resultado dos ensinamentos dos mestres Fernand Braudel e Louis Henry. As reflexões e os textos produzidos no âmbito da Demografia Histórica, da História da População e da História da Família foram veiculados em livros, artigos, conferências, apresentações em congressos e abordam aspectos teóricos e metodológicos, sem deixar de lado a vital discussão sobre as fontes que podem ser exploradas através do instrumental da Demografia Histórica. Maria Luiza Marcílio debruçou-se sobre temas amplos, como foram as considerações apresentadas no texto em que fez um balanço sobre a Demografia Histórica na América Latina (MARCÍLIO, 2000) ou o capítulo sobre a população no Brasil Colonial, que integra o volume 2 da coleção História da América Latina, organizada por Leslie Bethell e publicada pela primeira vez em 1984, que teve edições na Espanha e no Brasil (MARCÍLIO, 1984a; 1984b; 1999), sem esquecer o capítulo que assinou no livro A Global History of Historical Demography. Half a Century of Interdisciplinarity, sobre a Demografia Histórica na América Latina (MARCÍLIO, 2016). Nessa perspectiva, a pesquisadora propunha visões de conjunto que procuraram dar conta das grandes linhas e estabelecer algumas interpretações sobre o vasto conjunto da população latino-americana e brasileira, tendo por base o conhecimento produzido até então. Aliás, no tocante à reflexão sobre a população brasileira no início da década de 1970, Marcílio publicou artigo sobre o crescimento histórico da população brasileira até 1872, ano do primeiro recenseamento geral do Brasil, o único realizado durante o período escravista (MARCÍLIO, 1973). Sobre o balanço da Demografia Histórica na América Latina, publicado nos Annales de Démographie Historique, citado anteriormente, procurava dar conta da situação na virada para o século XXI, e além de retomar os estudos pioneiros e seus autores, discutia a questão fundamental 8 O I Seminario Demografía Histórica e Historia de la Población en Latinoamérica foi realizado no Núcleo de Estudos de População (Nepo/Unicamp), em Campinas, entre os dias 22 e 23 de junho de 2015. O tema do evento foi: Familia & Familias: formas de organización de redes familiares en América Latina. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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das fontes e metodologias para se produzir a demografia histórica na América Latina, apontando para a necessidade do diálogo entre pesquisas e pesquisadores interessados no estudo da população em perspectiva histórica. No mais, seria interessante para os pesquisadores de hoje seguir algumas sendas abertas por esses pioneiros. Hector Pérez Brignoli (2004) faz referência aos vários grupos que, nas décadas de 1960 e 1970, sob a influência da escola francesa de Louis Henry, apareceram e abriram caminho no campo da demografia histórica na América Latina: Nicolás Sánchez Albornoz, Rolando Mellafe, Cecilia Rabell, Elsa Malvido e Maria Luiza Marcílio, seguida por Altiva Pillati Balhana e Cecília Westphalen, ambas vinculadas à Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estas duas professoras tiveram também papel importante na formação de pesquisadores e na produção de conhecimento na área da Demografia Histórica brasileira, oportunizando inclusive a vinda de Louis Henry para o Brasil, onde ofereceu cursos na UFPR e quando teve acesso às fontes brasileiras que usou para escrever o livro Técnicas de Análise em Demografia Histórica (1977), que ficou conhecido como o “manuel brésilien”. Esses pioneiros, ao lado de Marcílio, deram subsídios para muitos temas e variadas abordagens, mas nem todos tiveram continuidade. Entre as possibilidades lançadas, refiro-me especificamente aos estudos comparados, a exemplo da iniciativa que ocorreu em 1979, na cidade de Vancouver (Canadá), sobre a urbanização nas Américas, quando Marcílio apresentou uma reflexão sobre regimes demográficos no Brasil do século XIX, buscando comparar áreas urbanas e rurais. Essas primeiras reflexões já apontavam para as diferenças entre o Antigo Regime Demográfico na Europa e na América. Marcílio, no final dos anos 1970, abordando especificamente o caso do Brasil, sugeria quatro modelos diferentes que variariam de acordo com os graus de isolamento da população, com o acesso aos recursos naturais, com o tipo de mão de obra predominante e com as ligações com a economia mundial, gerando as categorias seguintes: 1) regime demográfico da economia de subsistência; 2) regime demográfico das economias fundadas nas “plantations”; 3) o regime demográfico das populações escravas; 4) regime demográfico das regiões urbanas (sobretudo áreas portuárias). Alguns anos depois o tema dos regimes demográficos foi retomado e sistematizado de forma mais refinada no capítulo “Sistemas demográficos no Brasil do século XIX” (MARCÍLIO, 1984), que integra o livro População e Sociedade. Evolução das sociedades pré-industriais, já mencionado. Para a Demografia Histórica no Brasil, esse texto é fundamental, pois a reflexão e discussão sobre os regimes demográficos no passado brasileiro é o eixo que reúne um grupo de pesquisadores de norte a sul do país, liderado por Sergio Nadalin, do Grupo de Pesquisa Demografia & História, cadastrado no CNPq. O texto de Marcílio instigou, vinte anos depois, Sergio Nadalin a
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refletir sobre a demografia da sociedade colonial, a partir da mobilidade/estabilidade da população, para mapear os regimes demográficos que teriam vigorado, e que constituiriam, segundo esse autor, “uma pauta comum para a continuidade do estudo da história demográfica brasileira” (NADALIN, 2003; 2009; 2014). Isto é, problemas e reflexões lançadas por Maria Luiza Marcílio há mais de três décadas, continuam a inspirar os pesquisadores que, em redes, procuram dinamizar as pesquisas e o trabalho coletivo para racionalizar e rentabilizar recursos humanos e materiais, procurando avançar no conhecimento sobre o passado de nossa população. Vale destacar também que, desde os finais da década de 1970, e sobretudo ao longo das décadas de 1980 e 1990, os trabalhos de Maria Luiza Marcílio continuaram a apostar na vertente comparativa. Além disso, suas preocupações se dirigiram a todos os segmentos da população, incluindo os escravos negros, assim como seus aportes já se detinham na população indígena do Brasil, tema que ainda hoje é insuficientemente abordado pelos pesquisadores brasileiros, embora no caso da América Latina essa lacuna seja menos acentuada. Sobre a população indígena, chamo atenção para o trabalho apresentado no colóquio realizado em Paris sobre o povoamento do mundo, antes de 1800. Naquela oportunidade, Marcílio (1987) apresentou um texto sobre a população indígena no Brasil e a conquista europeia no século XVI. Em relação à população escrava de origem africana, houve aqui no Brasil um boom de estudos, principalmente nas últimas décadas. Também nesse campo encontramos contribuições e reflexões de Maria Luiza Marcílio, que revelam sua percepção para fazer aflorar abordagens pioneiras. No contexto que seguiu o centenário da abolição da escravidão no Brasil, celebrado em 1988, Maria Luiza Marcílio (1991) publicou texto que discutia os padrões da família escrava, quando muitos pesquisadores sequer estavam prontos a aceitar, sem reservas, a própria existência da família entre a população cativa. Temas inovadores, perspectivas e fontes renovadas. A produção de Maria Luiza Marcílio é sinônimo de tudo isso, a começar pelas contribuições de sua tese de doutoramento. Entre elas, chamo atenção para um aspecto que tem grande significado e repercussão para os regimes demográficos e sistemas familiares latino americanos: os altos índices de nascimentos fora do casamento, assim como a importância do fenômeno do abandono de crianças. Se hoje as discussões sobre esses temas e os números relativos à fecundidade ilegítima e aos percentuais de abandono não nos espantam mais, a revelação desses comportamentos, a partir do estudo da freguesia da Sé de São Paulo, foi impactante, afinal, pela primeira vez, se contabilizou que cerca de 40% dos batizados naquela paróquia correspondiam a crianças naturais ou expostas. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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A “descoberta” de altos índices de abandono de crianças abriu inúmeras perspectivas de estudo, muitas delas abraçadas e exploradas pela própria autora, caminho que continua a ser seguido por muitos pesquisadores que, hoje, discutem com profundidade essa temática, enriquecida através da metodologia do cruzamento de fontes, tentando compreender não apenas o fenômeno do abandono em si, mas as repercussões ao nível das trajetórias de vida das crianças que sobreviveram aos altos índices de mortalidade que afligiam estes inocentes, e que lograram constituir família e se inserir na sociedade. As diversas facetas do abandono (nas rodas ou nas soleiras das portas), a intervenção das câmaras municipais e tantos outros aspectos são objeto de interesse de numerosos estudiosos que se inspiraram no trabalho seminal de Maria Luiza Marcílio, História Social da Criança Abandonada (1998), reeditada em 2006. Retomo aqui as palavras do colega Renato Pinto Venâncio (1999), na resenha publicada na Revista Brasileira de História: Nos meios acadêmicos brasileiros, a Demografia Histórica é frequentemente identificada aos excessos de métodos quantitativos e à ausência de problemáticas definidas. Ao longo de sua prolífica vida acadêmica Maria Luiza Marcílio só fez desmentir tais estereótipos [...] seu livro é um exemplo de como a sensibilidade e até mesmo o envolvimento afetivo com um tema podem andar irmanados com seriedade e rigor metodológico.
Continuando na linha das análises das variáveis demográficas exploradas por Maria Luiza Marcílio, encontramos contribuições fundamentais em diferentes trabalhos, especialmente no “clássico secreto”, como se referiu Stuart Schwartz à tese de livre-docência apresentada à Universidade de São Paulo em 1974, Crescimento Demográfico e Evolução Agrária Paulista, que somente foi publicada no ano 2000. No prefácio, Schwartz se refere à integração da perspectiva social e demográfica, afirmando que se tratava de um estudo pioneiro e que merecia ser incluído na estante de todo estudioso de História Social e de História Demográfica no Brasil. Fecundidade, mortalidade, nupcialidade, migração: todas essas variáveis foram tratadas nos seus inúmeros trabalhos. Aqui cabe chamar atenção para o estudo da mortalidade, tema que ainda hoje é pouco frequentado pelos pesquisadores da população em perspectiva histórica, como Marcílio já apontava em 1983. Se nos limitarmos às análises apresentadas em três de seus livros9, vemos que, a despeito das dificuldades de se abordar aquela variável, Maria Luiza Marcílio não se furtou a dar contribuição para o seu estudo, sobretudo chamando atenção para as variações existentes entre os diferentes segmentos populacionais. Valendo-se dos registros paroquiais e das listas nominativas de habitantes, apresentou resultados precursores sobre 9 São elas: Cidade de São Paulo: povoamento e população (1973); Caiçara: terra e população. Estudo de Demografia Histórica e História Social de Ubatuba (1986); Crescimento Demográfico e Evolução Agrária Paulista, 1700-1836 (2000).
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mortalidade infantil, repartição dos óbitos por idades e causas de morte. Especialmente na tese de livre docência, que tratou de toda a Capitania de São Paulo – um trabalho magistral pelo esforço de coleta, organização e análise das fontes, considerando-se que não se dispunham das facilidades, em termos informáticos, que temos hoje –, Marcílio apresenta conclusões importantes, sinalizando que as taxas elevadas de mortalidade não eram fruto de flutuações bruscas e periódicas, causadas por epidemias devastadoras ou crises de alimento, mas deviam-se às condições sanitárias, higiênicas, de habitação e da alta incidência de moléstias infectocontagiosas e parasitárias. Para mais, apontava hipóteses interessantes sobre o impacto diferenciado de moléstias infecciosas entre as populações do litoral e do interior. Em relação à cidade de São Paulo, assinalava que a mortalidade infantil, para o período entre os finais do XVIII e inícios do XIX, rondaria 239 mortes para cada mil nascimentos. Ainda no tocante a este tema, publicou artigo sobre a “Mortalidade e morbidade da cidade do Rio de Janeiro Imperial” (MARCÍLIO, 1993). Aqui, pelo contrário, Marcílio demonstrava que, pelo menos dentre os estudos de mortalidade realizados para o Brasil antes de 1900, não se conhecia fenômenos de mortalidade semelhantes ao do Rio de Janeiro ao longo de um período de quase 80 anos: mortalidade elevadíssima e constantemente maior que a natalidade. Uma perspectiva mais abrangente sobre a morte foi apresentada no capítulo intitulado “A morte de nossos ancestrais”, em volume organizado pelo sociólogo José de Souza Martins (MARCÍLIO, 1983a). Fica claro, com base nesses comentários, como seria fundamental que os pesquisadores de hoje dessem continuidade ao estudo desta variável, não só por conta das diferentes áreas e períodos, mas também em relação aos distintos segmentos da população. Mais ainda, como introdutora da Demografia Histórica no Brasil, Maria Luiza Marcílio colocou na “ribalta” fontes que até então mereciam pouca ou nenhuma atenção dos pesquisadores, entre elas os registros paroquiais e, sobretudo, as hoje muito conhecidas listas nominativas de habitantes, ou antigos censos coloniais, disponíveis desde os meados do XVIII até as primeiras décadas do período imperial. Com base na existência de fontes para o estudo da população no passado, inclusive propôs uma divisão da história demográfica brasileira em três grandes períodos: o período pré-estatístico, desde o início da colonização até 1750; o período proto-estatístico, que se situa entre 1750 e 1872, e o período estatístico, inaugurado com o primeiro recenseamento geral do Brasil (1872). Graças, ainda, à adaptação dos métodos e técnicas desenvolvidos na França e mesmo na Inglaterra (para o estudo dos domicílios), Maria Luiza Marcílio (2008) contribuiu para que as ferraResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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mentas da Demografia Histórica pudessem revelar realidades “inusitadas”, como ela mesma afirmou sobre o passado das populações.
Considerações finais
Através de uma análise mais abrangente não apenas das contribuições de Marcílio, mas sobre a produção na área de Demografia Histórica, especialmente no Brasil, percebe-se a concentração dos estudos em algumas áreas, períodos e temas. Entre nós, os estudos concentram-se, ainda, no final do período colonial, entre os meados do XVIII e as primeiras décadas do XIX, com peso maior na região sudeste-sul (muito embora o grupo de pesquisa Demografia & História, liderado por Sergio Nadalin, esteja envidando esforços para que esse desequilíbrio se atenue) e uma concentração maior nos temas relativos à fecundidade e nupcialidade, variáveis que melhor são exploradas através das metodologias da Demografia Histórica, seguindo as diretrizes da Escola Francesa, à la Henry. De outra parte, por conta da existência das séries de listas nominativas, sobretudo para São Paulo, Paraná e Minas Gerais, houve um investimento muito grande nos estudos sobre as estruturas do domicílio e da família. Marcílio adaptou o uso dessas fontes e metodologias à realidade brasileira, inclusive propondo a aplicação da metodologia de Reconstituição de Famílias a partir do uso das séries de listas nominativas de habitantes10. A partir do uso dessas listas, muitos pesquisadores se inspiraram nas contribuições de Peter Laslett e do grupo de Cambridge, como Eni de Mesquita Samara (1980), que estudou a família em São Paulo. Sem dúvida foram produzidos muitos trabalhos, mas a abundância das fontes para essas regiões inibiu, de certa maneira, ou pelo menos “desviou a atenção” dos pesquisadores do uso e da exploração dos assentos paroquiais. Nos últimos anos, contudo, os historiadores têm se voltado cada vez mais para a exploração dos registros paroquiais, embora nem sempre com o objetivo de fazer análises demográficas, mas, sobretudo, para estudar a família e recompor trajetórias, apostando no estudo das redes sociais e familiares construídas através dos laços do compadrio e do casamento, por exemplo. Nesse campo há também uma atenção crescente dirigida para a análise das práticas de nominação, entre outras abordagens inspiradas na micro história e nos seguimentos nominativos. O uso das informações dos assentos paroquiais para estudar a questão dos nomes e prenomes 10 Resultados concretos da aplicação dessa adaptação podem ser encontrados em dois trabalhos que foram orientados por Maria Luiza Marcílio no final dos anos 1980: Scott (1987) e Bacellar (1987).
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é uma tendência interessante dos estudos recentes, e também foi objeto de atenção da Maria Luiza Marcílio (1974). No tocante à variável migração, Marcílio também abriu perspectivas promissoras ao propor uma tipologia para as migrações no período colonial, em texto de poucas páginas, publicado em 1990, em que tece considerações sobre esse tema fundamental para todos os que estudam a população na América Latina, assim como lançou ideias para o estudo do migrante português no período colonial através da microanálise (MARCÍLIO, 1995). Embora o foco de Marcílio tenha sido a demografia e a família no passado brasileiro, a questão mais ampla da população na América Latina esteve também nos seus horizontes de trabalho, quando analisou a população da América Latina, inclusive no século XX (MARCÍLIO, 1981). O tema das mulheres também emergiu através do artigo publicado no México (MARCÍLIO, 1983b). Ainda no balanço sobre a Demografia Histórica na América Latina, Marcílio apontava os temas que mais tinham atraído atenção dos pesquisadores: a população autóctone, antes da conquista e depois o problema da depopulação no século XVI, matéria que comporta controvérsias ainda não resolvidas; o tema do casamento, da família, que se alarga para incorporar o estudo do grupo doméstico, as crianças sem família, e os sistemas de herança. Tópicos que devem ser enquadrados e compreendidos à luz das normas da Igreja (e sua moral), bem como da função do Estado, que tem papel fundamental na explicação e interpretação dos resultados quantitativos produzidos a partir dos estudos demográficos. Marcílio, entre outros estudiosos, também frisou o fato de que a sociedade latino-americana se caracterizava pela importância do concubinato, ou das uniões consensuais estáveis, ou ainda pelo lugar de destaque ocupado pelos domicílios chefiados por mulheres sós (ou, por vezes, acompanhadas por seus filhos ilegítimos), ou o predomínio das famílias de tipo conjugal simples, assim como as fracas taxas de nupcialidade entre a população livre e as taxas quase nulas entre a população cativa. Enfim, temas e problemas de pesquisa para estimular os pesquisadores de hoje e das gerações vindouras não faltam. Aliás, o balanço proposto por Marcílio caminhou no mesmo sentido daquele apresentado por Héctor Pérez-Brignoli (2004) sobre a Demografia Histórica na América Latina nos inícios dos anos 2000, tanto sobre as questões mais recorrentemente tratadas, como também na proposição de uma agenda para os anos futuros. Sem dúvida, estas páginas procuraram mostrar que as vertentes abertas por Maria Luiza MarResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 7-26, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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cílio continuam, ainda hoje, a estimular os pesquisadores da Demografia Histórica, da História da População e da História da Família na América Latina. Portanto, prestar uma homenagem a Maria Luiza Marcílio não significa falar do passado da Demografia Histórica latino-americana ou brasileira. É, ainda, e mais do que nunca, voltar nossos olhos para o futuro e para os desafios que nos aguardam.
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As viagens do Conceição Esperança: tráfico de escravos entre São Paulo e Moçambique (1820-22)* The voyages of Conceição Esperança: slave trade between São Paulo and Mozambique (1820-22) Renato Leite Marcondes José Flávio Motta Universidade de São Paulo
Resumo
Abstract
Este artigo utiliza como principal fonte documental um conjunto de cartas enviadas pelo negociante paulista, também traficante de escravos, Antônio da Silva Prado, mais tarde Barão de Iguape. Tal fonte nos permite a análise da montagem da operação do comércio da mercadoria humana e o seu resultado. As cartas referem-se, basicamente, às duas viagens a Moçambique de um navio negreiro. Mantendo constante diálogo com a historiografia, nossa análise demonstra a complexidade da operação e a vasta rede de relações estabelecidas para a realização do empreendimento. Por fim, tecemos alguns comentários acerca do tratamento dispensado aos escravos, da elevada mortalidade nas viagens do Conceição Esperança, bem como acerca dos ganhos passíveis de serem auferidos naquele grande negócio.
The principal documents we use in this paper is a collection of letters written by Antonio da Silva Prado, a merchant and slave trader from São Paulo, who would be, years later, the Baron of Iguape. Based on these letters we analyze the organization of the slave trade operation. Our subject is basically the two voyages to Mozambique of a slave ship. Our analysis maintains a constant dialogue with the historiography and demonstrates the complexity of the operation and the vast network of relations established for the activity. We also make some comments about the treatment gave to the slaves, the high mortality observed in the voyages of the Conceição Esperança, and the potential profitability of that monumental business operation.
Palavras-chave: Tráfico de Escravos; Santos; Barão de Iguape; Mortalidade; Moçambique.
Keywords: Slave Trade; Santos; Barão de Iguape; Mortality; Moçambique.
* Uma versão preliminar deste texto foi publicada nos Anais do IX Congresso Brasileiro de História Econômica e 10ª Conferência Internacional de História de Empresas, ocorrido em 2011 em Curitiba e realizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (MARCONDES & MOTTA, 2011).
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I n t r o d u ç ã o
O
tráfico africano para o Brasil foi um dos grandes negócios dos períodos colonial e imperial. O crescimento das exportações e do próprio mercado interno demandava crescentes levas de mão de obra, que não podiam ser fornecidas pela imigração voluntá-
ria ou pela reprodução da população brasileira. Desse modo, a violência era utilizada para a
obtenção desses trabalhadores. Durante toda a vigência do infame comércio de pessoas, entre doze e doze milhões e meio de escravos foram embarcados para o continente americano e as ilhas do Caribe; cerca de cinco milhões e meio destinaram-se ao Brasil, quase a metade (44,9%) do total1. Daquele total de cativos embarcados nas principais regiões da costa africana, menos de um vigésimo (4,3%), isto é, pouco mais de 540 mil pessoas, compuseram a carga de navios zarpando do Sudeste da África. Quase dois terços (358 mil indivíduos) desse mais de meio milhão de africanos destinaram-se à América do Sul, aí incluídos os diversos portos no Brasil e no Rio da Prata. Apesar do desenvolvimento mais tardio do tráfico, principalmente por conta da distância dos mercados americanos, de Moçambique estima-se a saída de 293 mil escravos, principalmente a partir do final do século XVIII (ELTIS & RICHARDSON, 2010, p. 89-90 e p. 257). Segundo Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 17), “é somente em 1756 que Moçambique recebe a primeira tabela aduaneira portuguesa de cobrança de direitos de exportação sobre escravos. Ou seja, dois séculos e meio depois da entrada em vigor de pautas similares elaboradas para a Guiné portuguesa, e duzentos anos mais tarde das que entraram em vigor no Congo e em Angola. Afora remessas esporádicas, o Brasil só recebe regularmente escravos da África Oriental a partir do início do século XIX”. Essa grande e complexa empresa do tráfico atlântico estruturou-se ao longo do século XVI, mas principalmente a partir do século XVII ganhou dimensões expressivas. Para o funcionamento do negócio, tornou-se necessária a mobilização de um conjunto bastante elevado de pessoas, desde o interior africano até os portos na costa, na travessia do Atlântico, nos portos e interior da América e também na Europa2. Os recursos envolvidos na empreitada atingiram montantes substanciais, demandando a cooperação de um vasto elenco de patrocinadores e 1 Cf. The Trans-Alantic Trade Database (2012). 2 Ver Silva (2016).
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trabalhadores em terra e no mar. Os próprios navios utilizados possuíam mais marinheiros do que os navios de carga de tonelagem semelhante, em razão da necessidade de um número maior de tripulantes para a sobrevivência e segurança dos cativos. Era preciso pessoas qualificadas no tráfico para cuidar da saúde dos escravos desde a África até a América. Em geral, os valores invertidos nas embarcações carregadas para a troca por escravos na África superavam os dos navios tradicionais de carga no Atlântico, à exceção dos galeões de prata e ouro. Por essa mercadoria humana, os africanos recebiam produtos manufaturados de valor elevado, muitas vezes importados da Ásia (como tecidos coloridos de melhor qualidade), da Europa (armas, ferro, facas, machados, panos etc.) e bebidas alcoólicas e tabaco da América3. O comércio atlântico de cativos foi considerado por muitos historiadores e mesmo por viajantes da época como uma atividade de rentabilidade elevada. De modo a ilustrar tal assertiva, podemos citar o estudo de Manolo Florentino (1997, p. 168), que analisou várias viagens de navios negreiros no início do século XIX. O autor estimou ao redor de 19,2% a dita rentabilidade, no trajeto entre o Rio de Janeiro e Angola. Entretanto, a ausência de informações e os relatos de lucros não tão extraordinários, principalmente das companhias europeias envolvidas nesse negócio nos séculos anteriores, geraram discussões sobre a efetiva magnitude dos ganhos auferidos. Não obstante, não parece haver dúvida de que era uma atividade lucrativa (KLEIN, 2004, p. 98-100)4. O Brasil foi, pois, um dos principais destinos do tráfico negreiro transatlântico e, aos poucos, os residentes nas colônias tornaram-se trabalhadores e proprietários dos empreendimentos, principalmente a partir do final do século XVIII (FLORENTINO, 1997). Os produtos coloniais tornaram-se bastante apreciados na África, incrementando as transações. Corcino Medeiros dos Santos (1993, p. 160), por exemplo, escreveu: “Nas exportações do Rio de Janeiro para Benguela aparecem as seguintes mercadorias: açúcar, aguardente, tabaco, farinha de mandioca, café, arroz, algodão e fazendas da Europa. Parece serem as mesmas que eram mandadas para Angola. [...] A compra dos escravos nos portos africanos não era feita somente por gêneros do Brasil e mercadorias da Europa, mas também por dinheiro vivo e ouro em pó, barra ou em objetos”. Desses produtos, o tabaco e a aguardente foram os mais importantes entre as mercadorias brasileiras e os panos de algodão também eram oriundos das Índias. O tráfico brasileiro concentrou-se nos principais portos coloniais: Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Luís. Os destinos principais dos tumbeiros oriundos destes portos foram a Costa da Mina e Angola. Na segunda metade do século XVIII, o porto do Rio de Janeiro assumiu a li3 Ver, por exemplo, os estudos de Klein (2004); Lovejoy (2002); Miller (1988); Rediker (2011) e Rodrigues (2005). 4 A essa questão, e com informações concernentes às viagens do Conceição Esperança, voltaremos na última seção deste trabalho. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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derança desse comércio, atendendo uma vasta região do Centro-Sul da colônia. As demandas concentraram-se inicialmente nas áreas mineradoras e, mais tarde, nas agricultoras, incrementadas a partir da chegada das Cortes portuguesas em 1808. O tráfico prosperou nas áreas mais dinâmicas da colônia, onde era mais fácil amealhar os recursos necessários para sua realização. Alice Piffer Canabrava (1984) mostrou a ativa participação dos paulistas no envio de escravos para a região do Rio da Prata ao final do século XVI e início do XVII. Contudo, verificamos os primeiros registros pontuais de portos paulistas de desembarque no banco de dados Slave Trade em 1718-19, mas tão somente em duas viagens francesas das quais decorreu o desembarque em Santos de pouco mais de duas centenas de escravos. Destarte, no início do século XVIII foram apenas alguns movimentos episódicos, sem contestar a predominância quase completa do porto do Rio de Janeiro naquele negócio. De fato, tais informações demonstram a profundidade e a abrangência das relações comerciais do tráfico africano no Brasil. Todavia, o desenvolvimento econômico e o crescimento demográfico do final do século XVIII e início do XIX possibilitaram um comércio negreiro regular diretamente com a África, especialmente com Moçambique. Sem considerar os casos classificados na denominação conjunta de Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina, o banco de dados contém informes de 83 viagens e correspondente desembarque de quase quarenta mil escravos, principalmente em Santos, mas também em São Sebastião, Ubatuba e Cananéia. Se computarmos também os casos imprecisos de destino especificado para São Paulo, os números atingiriam 197 viagens e quase cem mil escravos, principalmente a partir da década de 1830. Essas últimas viagens representaram, entre 1834 e 1850, de 7,7% a 19,8% do total de escravos desembarcados no Brasil. De toda sorte, à província de São Paulo coube parcela expressiva do tráfico no período ilegal, participação esta condicionante e condicionada pelo evolver econômico e demográfico da região. Este artigo fundamenta-se nas cartas do grande comerciante paulista Antônio da Silva Prado (1788-1875), mais tarde Barão de Iguape, enviadas a diferentes pessoas relacionadas à negociação5. Elas referem-se, basicamente, às duas viagens a Moçambique do navio negreiro N. S. Conceição Esperança, ambas no início da década de 1820. Confirmamos, no banco de dados Slave Trade, informações da referida galera, saindo no dia 26 de julho de 1820 de Santos para Moçambique, onde aportou em setembro do mesmo ano. Contudo, no banco de dados em tela, o retorno teria ocorrido apenas em fevereiro de 1822, configurando uma única viagem; as cartas em que nos baseamos indicam ter havido de fato duas. A primeira começou em 26 de julho 5 Tal documentação encontrava-se no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e atualmente está depositada no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Utilizamos os quatro primeiros livros de correspondências (números 1, 2, 3 e 5).
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de 1820 e o retorno da galera foi em janeiro de 1821; a segunda teve início provavelmente em agosto de 1821, tendo o navio retornado em 2 de fevereiro de 1822 ao Rio de Janeiro, de onde se dirigiu a Santos. Assim, estes dois casos foram computados como um só no Slave Trade e não estão incluídos no cálculo da participação de São Paulo, pois o desembarque foi no Rio. Como sabemos por meio das cartas, não apenas a partida, mas também a chegada deveria ser computada em Santos. Ainda segundo o banco de dados, a galera tinha 200 toneladas e seu capitão era Agostinho José de Carvalho. Conforme escreveu Jaime Rodrigues (2005, p. 147), “as maiores embarcações destinadas ao tráfico eram as barcas e galeras — que, de acordo com os dicionários contemporâneos, eram navios de três mastros. A diferença entre ambas ficava por conta do velame: enquanto as barcas contavam com velas latinas apenas no mastro de ré e as demais eram redondas, as galeras tinham todas as velas redondas”. Marcus Rediker (2011, p. 73-74) valeu-se de informações fornecidas por “William Falconer, o compilador de um dos maiores dicionários de termos náuticos do século XVIII, o navio [termo que designava tanto um tipo específico quanto embarcações em geral] pertencia ‘à primeira classe de embarcações que navegam o oceano’. Era a maior das embarcações usadas no tráfico de escravos, combinando boa velocidade com grande espaço para carga. Tinha três mastros, cada um dos quais com um mastro real, um mastaréu e provavelmente um mastaréu de joanete. [...] como navio mercante, tinha maior diversidade de tamanhos, variando de cem até quinhentas toneladas ou até mais [...]. A média dos navios negreiros era do tamanho do primeiro visto por Clarkson [de fins do século XVIII], de duzentas toneladas, como o Fly”. Ainda que a galera não seja um dos tipos explicitamente mencionados por Rediker, a própria tonelagem do Conceição Esperança coloca-o no terceiro grupo descrito por esse autor. Apesar da unilateralidade da correspondência por nós compulsada, o segundo e o terceiro copiador de cartas de Antônio da Silva Prado constituem uma preciosa fonte para o estudo do tráfico, em virtude da riqueza de informações sobre a montagem da operação e acerca dos cuidados com vistas ao bom resultado dos negócios6. Em meio à correspondência referente aos vários interesses comerciais de Silva Prado, encontramos cerca de uma centena de cartas relacionadas ao tráfico de escravos, mas não exclusivamente. Tal volume impressiona pela profusão de destinatários e pelos detalhes da operação. Nosso objetivo é tratar de aspectos econômicos concernentes ao tráfico negreiro na década de 1820, enfocando as principais relações mercantis necessárias para a atividade, uma vez que o autor das cartas relacionou-se com diversas pessoas desde a preparação até a conclusão do ne6 O segundo e terceiro copiador de cartas referem-se aos anos de 1818 a 1822. Ver, também, Petrone (1976, p. 4-5). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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gócio. Na próxima seção, apresentamos a dinâmica econômica e da população escrava paulista naquela época, salientando os negócios de Antônio da Silva Prado. Posteriormente, discutimos a organização do empreendimento do tráfico, compreendendo a formação da sociedade e os preparativos para a viagem. Por fim, analisamos o retorno da viagem atlântica, desde os cuidados com a alimentação e o tratamento dos escravos até os possíveis resultados auferidos.
São Paulo no início do século XIX e o Barão de Iguape
Paulo Prado (1925, p. 82-83, grifos nossos), nos anos de 1920, escreveu: “Em 1748 considerações administrativas sugeridas pelo conde de Bobadella determinaram o desmembramento dos territórios de Cuiabá e Goiás da capitania de S. Paulo, extinta por alvará desse ano e sujeita ao Rio de Janeiro. Era a confirmação oficial da decadência da gloriosa Piratininga, que a tirania estúpida dos capitães-generais e a voracidade do fisco iriam completar de modo lastimável”. Não obstante, tem sido refutada pela historiografia a noção de decadência aplicada à Capitania de São Paulo nos meados do século XVIII7. Independentemente do quanto o território paulista possa ter se beneficiado dos vínculos com as regiões mineratórias nos primeiros lustros do Setecentos, assumindo uma condição da qual fosse possível “decair” em momento posterior8, encontra-se bastante difundida a ideia de que a administração de D. Luís Antônio de Souza (1765-1775) representou um ponto de inflexão no que respeita ao evolver paulista9. De acordo com Heloísa Liberalli Belotto (2007, p. 313), “inferimos que às diretrizes estabelecidas por Pombal [...] D. Luís Antônio teria juntado, com objetividade, a sua intuição e a sua inclinação dinâmica por realizar, na capitania que lhe cabia restaurar, um governo progressista. ‘Acrescentar as povoações, estender os domínios, fertilizar os campos, estabelecer fábricas, idear novos caminhos, penetrar sertões incógnitos, descobrir ouro, fortificar Praças, armar o Exército e fazer observar as leis’ foram os propósitos que se dispôs a cumprir, em simbiose com a determinação máxima da metrópole de combater o inimigo espanhol”. E, no florescimento econômico da capitania, papel de destaque, inequivocamente, coube à lavoura canavieira e à manufatura dos derivados da cana. 7 Sobre esse período de decadência paulista e sobre a crítica a essa ideia, ver, entre outros, Bellotto (2007); Blaj (2002); Borrego (2010) e Canabrava (2005). 8 Por exemplo, para o estudo do abastecimento da região das Minas Gerais, feito também a partir da capitania de São Paulo, bem como dos efeitos deletérios da ligação direta aberta entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais sobre esse mercado, ver Zemella (1990). 9 Sobre a inflexão a que nos referimos, por exemplo, ver a dissertação de Mont Serrath (2007).
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De fato, Maria Thereza Schorer Petrone (1968, p. 12) salientou ter a administração em tela injetado novo alento à atividade agrícola, em especial à canavieira: “se é verdade que a lavoura da cana não desaparecera de todo da Capitania, é também verdade que somente a partir do governo do Morgado de Mateus se tornou um empreendimento visando ao mercado mundial”. Foi igualmente um grande incentivador da lide açucareira o governador Bernardo José de Lorena (1788-1797). Todavia, os maiores frutos fizeram-se presentes no governo seguinte (1797-1802), de Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça; a partir daí, escreveu Petrone (1968, p. 15), “o açúcar vai adquirindo importância sempre maior, transformando-se num dos fatores do progresso pelo qual a Capitania, depois Província de São Paulo, passou na primeira metade do século XIX”. Desenvolvendo-se com maior intensidade em algumas regiões do território da capitania, a exemplo do “quadrilátero do açúcar”10 a economia açucareira também foi um marco no que respeita ao emprego da mão de obra escrava africana em São Paulo. O impacto da introdução em larga escala dos cativos na lavoura canavieira foi identificado, por exemplo, por Suely Robles de Queiroz (1977, p. 20). Não obstante, as listas nominativas de habitantes, disponíveis para a capitania paulista nessa época, indicam uma expressiva presença de cativos africanos já nos inícios do governo do Morgado de Mateus. Como relatam Francisco Vidal Luna e Herbert Klein (2005, p. 45): “No final da década de 1760, os primeiros anos para os quais dispomos de dados confiáveis, a população atingiu 83.880 pessoas, das quais 23.333 eram escravos africanos; somavam-se a essa população 2.736 índios residentes em aldeamentos. Claramente, a elevada proporção de cativos era incomum para a região, refletindo uma relação mais íntima da economia local com mercados nacionais e internacionais do que no início do século”. Em suma, na virada do século XVIII para o XIX, a capitania de São Paulo apresentava um dinamismo econômico em grande medida assentado na lavoura canavieira e na produção de açúcar e demais derivados da cana. De outro lado, a produção e comercialização de animais na capitania e oriundos do Sul movimentavam as estradas, muitas vezes destinadas a Minas e ao Rio de Janeiro, abarcando um conjunto expressivo de pessoas nessa atividade. Esse dinamismo imbricou-se a um significativo crescimento demográfico, para o qual importante contribuição foi dada pelo aumento da população escrava proveniente da África. Tal evolver econômico e demográfico conjugado, ademais, auxiliou na conformação de um contexto favorável ao desenvolvimento da cafeicultura, atividade que, a sua vez, deu continuidade e potencializou aquele evolver da província paulista ao longo do Oitocentos. O crescimento demográfico, tanto livre como escravo, ocorreu de modo bastante expressivo em São Paulo ao final do século XVIII e início do XIX, igualmente condicionado pela intensificação do tráfico transatlântico de escravos, conforme apontam Luna e Klein (2005, p. 137-138). 10 Assim denominada, segundo Petrone, a região compreendida pelo quadrilátero formado pelas vilas de Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí. Destoou, pois, essa autora, por exemplo, de Caio Prado Jr. (1981, p. 81) e de Ernani Silva Bruno (1966, p. 117), que compõem o quadrilátero em questão com Porto Feliz em vez de Sorocaba. Escreveu Petrone (1968, p. 24): “preferimos Sorocaba a Porto Feliz [...] pois em Sorocaba o cultivo da cana-de-açúcar ainda teve relativa importância e, porque, dessa maneira, Itu, importantíssimo centro canavieiro e outras áreas produtoras de açúcar ficam decididamente enquadrados”. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Em 1817, já em São Paulo e próximo de completar trinta anos de idade, Antônio da Silva Prado escreveu: “aqui não há em que se ganhe dinheiro inda quem o tem”11. O negociante paulista voltara há pouco tempo à sua capitania natal. Estivera de 1810 a 1816 em Caetité, na Bahia, e antes disso iniciara sua atividade comercial em Mato Grosso e Goiás. É certo que, ao menos em termos do crescimento demográfico, os dados de Luna e Klein (2005) sugerem certo arrefecimento no ritmo verificado nas décadas iniciais do Oitocentos. Mas o futuro Barão, que conseguira amealhar algum cabedal nos anos em que permaneceu na Bahia, apesar da afirmativa pouco encorajadora feita em 1817, manteve-se daí em diante em São Paulo. E, decerto, seus negócios beneficiaram-se do dinamismo econômico que marcaria a capitania, depois província, ao longo do restante de sua vida. Talvez sua reclamação fosse infundada, ou pelo menos condicionada pelo viés originado no contraponto com a economia baiana12. Seja como for, estivesse ele verdadeiramente insatisfeito ou não com as oportunidades que encontrou ao chegar da Bahia, “o fato é que Antônio da Silva Prado, futuro barão de Iguape, deve ter reunido em Caetité capitais suficientes para mais tarde tornar-se, empregando-os em São Paulo, um dos homens mais ricos desta Província” (PETRONE, 1976, p. 6, grifos nossos). Os negócios de Prado eram variados. No triênio de 1820 a 1822, quando o Conceição Esperança fez suas viagens ao continente africano, assumiu grande relevância, no conjunto daqueles negócios, a atuação como contratador de impostos e como comerciante de gado, em especial bovino. Petrone (1976, p. 9) também argumenta: “Pode-se distinguir duas fases nesse comércio de gado: na primeira, predominam os negócios de reses, e na segunda, os de bestas. A mudança de interesse deve ter ocorrido entre os anos de 1822 a 1825, cujos copiadores de cartas infelizmente foram perdidos”13. Na Tabela 1 transcrevemos os informes, referentes ao aludido triênio, constantes do Diário Geral, documento sobre o qual Petrone (1976, p. 157) fez a seguinte ressalva: “O ‘Diário Geral’ não constitui uma contabilidade completa dos negócios do comerciante, tanto é que dele, por exemplo, não constam os negócios realizados durante a feira de Sorocaba [...], de maneira que seu aproveitamento pequena contribuição oferece”. Não obstante essa ressalva, a autora vale-se dessas quantias para enfatizar a importância da atuação de Silva Prado como contratador, pois verifica que, considerada a soma dos três anos em tela, o lucro obtido com o contrato do “novo imposto” (5:273$000) corresponderia a quase metade do saldo total das entradas e saídas de dinheiro apresentadas no Diário Geral (Cf. Petrone, 1976, p. 158-159). Sobre o “novo imposto”, escreveu a 11 Em documento que integra o volume da Coleção Antônio da Silva Prado intitulado Contas correntes da loja de A.S.P. na Bahia, 1812-1818, e copiador de cartas do barão de Iguape (Cf. Petrone, 1976, p. 7). 12 Segundo Petrone (1976, p. 7),“mesmo em anos posteriores, Prado se queixa dos negócios em São Paulo, comparando-os com a pujança dos do sertão baiano”. 13 Serão essas atividades de maior relevância as selecionadas para o estudo citado. De fato, Sérgio Buarque de Holanda, no Prefácio que escreveu para o livro de autoria de sua discípula, referindo-se às transações de Silva Prado feitas em São Paulo e no Sul, observou: “tamanhas são estas e de tal variedade que, pretender abordá-las em sua totalidade, seria correr o risco de cair num emaranhado de motivos heterogêneos” (HOLANDA apud PETRONE, 1976, p. xix).
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historiadora: “criado em 1756, recaía sobre vendas de molhados ou botequins, gêneros de importação nas vilas da marinha e, principalmente, sobre os animais vindos do Sul, que passavam por Sorocaba. Por três triênios consecutivos, ele [Antônio da Silva Prado-RL/JFM] e seus sócios foram os contratadores desse imposto” (PETRONE, 1976, p. 7). Tabela 1 – Entradas e saídas de dinheiro em parte dos negóciosde Antônio da Silva Prado (em réis). Ano 1820
Entrada 111:923$881
Saída
Saldo
103:545$385
8:378$496
1821
170:553$705
168:053$705
2:500$000
1822
75:802$833
75:307$287
495$546
Fonte: Diário Geral das entradas e saídas em dinheiros pertencentes às transações desta minha casa (PETRONE, 1976, p. 158).
Nesses mais de cinco contos de réis auferidos com o contrato mencionado, foram computados por Petrone os dois contos recebidos por Prado “pelo seu trabalho de administração”. Transcreveu também essa autora o balanço de 1818, apresentado pelo negociante, no qual a comissão do “novo imposto” comparecia com o valor de 500$000. É interessante observar, da perspectiva da atividade do futuro Barão de Iguape, objeto de nossa atenção neste artigo, outro item desse mesmo balanço. Assim, em 1818, a compor o lado das entradas dessa contabilidade, estava o lucro obtido com a venda de quatro negros, perfazendo 246$47014. É certo que, numa sociedade escravista como a nossa naquele período, a comercialização de quatro pessoas não tornaria o vendedor um traficante de escravos; mas não é menos certo que essa ocupação de Antônio da Silva Prado ficaria caracterizada de forma inequívoca alguns anos mais tarde, com as viagens do Conceição Esperança por nós analisadas nas próximas seções. E, ao fim e ao cabo, já em 1818, não podemos deixar de notar que os valores envolvidos no negócio da mercadoria humana representaram cerca de metade do que Prado recebeu pela administração do contrato do “novo imposto”, contrato que, como bem mostrou Petrone, juntamente com o comércio de gado, figurava entre as principais atividades daquele comerciante paulista.
Montagem da empresa traficante
Como sabido, o tráfico de escravos envolveu uma rede complexa de negócios e, por conseguinte, um conjunto variado de pessoas, desde chefes africanos, administradores coloniais, comerciantes locais, pumbeiros e tripulantes, além dos agentes que participavam daquele comércio indiretamente, como os fornecedores de alimentos a serem consumidos pelos cativos, os seguradores, dentre 14 As cifras referidas neste parágrafo foram extraídas do volume da Coleção Antônio da Silva Prado intitulado Contas correntes da loja de A.S.P. na Bahia, 1812-1818, e copiador de cartas do barão de Iguape (Cf. Petrone, 1976, p. 159-160). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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outros. Todos esses indivíduos, desempenhando suas distintas atividades, sustentavam as operações do tráfico. A análise das duas viagens do Conceição Esperança permitiu-nos uma observação mais detalhada dessas negociações e dos vários mecanismos para lidar com as dificuldades para a montagem da operação, como levantar o capital, dinheiro, mercadorias e riscos do empreendimento. Antônio da Silva Prado escreveu um conjunto de mais de uma centena de cartas referentes às duas negociações, apesar de a maioria não serexclusivamente sobre o tráfico. De fato, Silva Prado lança mão de uma ampla rede de contatos mercantis constituídos anteriormente, dentro e fora da província, para construir a negociação do tráfico, seja com potenciais sócios para o empreendimento, compradores para os escravos, ou mesmo com as pessoas diretamente envolvidas no tráfico. A primeira referência à negociação do tráfico ocorreu em maio de 1820 em carta ao Sargento Mor Manuel Moreira Lírio, do Rio de Janeiro. Este é um correspondente regular de Silva Prado em diversos negócios na corte, como nos de açúcar. Ao escrever ele em primeiro de maio desse ano, informou o interesse dele e de outros negociantes em fazer o tráfico com Moçambique e se declarou caixa do empreendimento, solicitando alguns esclarecimentos com relação às autorizações necessárias, tanto portuguesas como também inglesas: Vários negociantes desta tentam fazer uma especulação de mandar a Moçambique o navio Conceição Esperança de construção americana, ora em Santos a fim de buscar escravatura, [...] de cuja negociação sou eu o caixa nesta, e por isso vou rogar-lhe queira saber nessa se não haverá dúvida em o navio ser de construção americana, posto que a nos seu proprietário é português, quais os despachos, que deve levar o navio para não sofrer alguma tortura com os ingleses, pois me asseveram tem havido exemplos, e como ignoro o preciso para evitar tais transtornos (2º COPIADOR, p. 222 verso e p. 223).
Ao que tudo indica, Silva Prado realizava pela primeira vez esse tipo de empreendimento. As cartas salientam o desconhecimento dos negociantes paulistas sobre como fazer o tráfico e a necessidade de recorrer ao Rio de Janeiro para esclarecer as dúvidas e solicitar certos bens e serviços indisponíveis, ao menos não na quantidade e tempo necessários. Em outra carta, de 25 de maio, a José Henriques Pessoa, do Rio de Janeiro, diretor de uma seguradora do tráfico (a Companhia Indemnidade15), reforçou o reduzido risco da aventura para diminuir o prêmio do navio e do dinheiro para a troca pelos cativos, pedindo informações para o consumo de 400 negros que deveriam ser trazidos na viagem: Muito lhe agradeço as insinuações que remeteu por meu pedido a seu mano, e meu bom amigo para a pretensão que tenho de mandar o navio Conceição Esperança a Moçambique porém se me faz preciso saber ainda mais: o navio é de construção americana porém seu proprietário português a 8 anos é armado em guerra com 14 peças, e o comandante um 1º Tenente da Mari15 Sobre a dita Companhia ver a dissertação de Megliorini (2008).
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nha, por isso queiro saber o menor prêmio por que o seguro faz a ida e volta de dito navio, assim como 16:000$000 que leva em moeda metálica. Devo mais saber se as peças de 6$400 valem em Moçambique mais de 6$400 por que nesta tenho comprado a 7$040, e assevero-lhe que este seguro deve ir a companhia de que vossa mercê é Diretor, mais exijo saber se é preciso o navio levar passa porte dessa pelo consulado Inglês para os mandar buscar; outro sim se 200 pipas d´agua, sendo estes cascos do porto e Lisboa será bastante aguada para 400 cativos. No seguinte correio lhe ei de pedir comprar 200 arrobas de carne, e 150 machos para prender os escravos no mar, e comprar as caldeiras precisas para a cozinha de dito navio e lhe remeterei ordem para assistência do dinheiro preciso, e tirará a sua comissão por tal compra (2º COPIADOR, p. 233 e p. 233 verso).
Não apenas alimentos eram necessários para o empreendimento, pois pediu a compra de utensílios de cozinha e de aprisionamento. O valor total dos bens adquiridos no Rio somaram quase dois contos de réis (1:987$595). Apesar da pressa para a saída do navio em tempo dos melhores ventos para a viagem16, nem tudo vinha do Rio, como informa Prado ao capitão do navio, Agostinho José de Carvalho Santos, em carta de 24 de maio de 1820, salientando o reforço do abastecimento de carne do navio e mais produtos necessários para a empresa, até mesmo a questão da água durante a travessia: Recebi a lista que me remeteu para mandar buscar do Rio de Janeiro o que nela menciona para os preparos de sua viagem, a qual pretendo enviar para o Rio no correio de 2 a José Henriques Pessoa para este comprar o que pede e remeter-lhe com toda a brevidade para essa, e em dita lista dupliquei o número de arrobas de Carne por que assim vem a insinuação do Rio como adiante farei ver. A meu cuidado fica procurar as 4 arrobas de pólvora ordinária e remeter-lhe com a brevidade possível17. Aqui tem estado o capitão Manoel José de Paiva e certificou ao tio Jordão que não precisava do piloto, e vejo a tratar de negócio, e não queixar-se como V. S. supunha. Tenho assim respondido ditas suas cartas, e agora o mesmo que se me oferece dizer-lhe. No correio de 30, tive resposta das 4 perguntas que fiz para o Rio a José Henriques Pessoa, o qual tem uma embarcação que anda para Moçambique, e inda agora a fez sair para aquele porto, e da cópia junta verá que diz ser preciso 200 arrobas de carne seca para sustentação de 400 escravos, as quais mandou vir do Rio, e é preciso V. S. ai aprontar 250 de farinha, 30 de feijão, 70 de arroz, duas pipas de aguardente, uma e meia de vinho (?) e tudo deve fazer aprontar com a brevidade que queremos da mesma. Copia verá, que a arqueação é de 3 cabeças por tonelada, e na mesma menciona o seguro a 5, 10, 18, porém no correio passado fiz ver que a sua embarcação, e os sabidos fundos também pedi que se soubesse se era preciso levar Despacho do Consulado Inglês, e assim parece que estamos certos, em que não haverá coisa que nos prive do nosso firme projeto de tal especulação. 16 Em carta ao capitão em 31 de maio avisou “que se faz necessário sair o navio o mais tardar nos primeiros dias de julho para aproveitar a monção” (2º COPIADOR, p. 238). A segunda negociação também respeitará as condições marítimas para a navegação. 17 A pólvora custou 34$000. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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PS. Convém dizer-me as toneladas que supõem ter a sua Galera Conceição, e também saiba que aqui está uma pessoa que 4 anos residiu em Moçambique e diz convir que V. Sa. Leva aguada cheia desse porto, por que a dali além de ser má, as vezes custa dinheiro, e então será conveniente fazer levantar as 200 pipas que tem, e pô-las estanques (2º COPIADOR, p. 234 verso e p. 235).
A galera foi estimada em 200 toneladas; dessa forma, o número de escravos que deveria ser comprado em Moçambique obedecia à arqueação das disposições do Alvará de 24 de novembro de 1813, dado pelo príncipe D. João, a saber: ALVARÁ. Regula a arqueação dos navios empregados na condução dos negros que dos portos da África se exportam para os do Brasil. I. Convindo para a saúde e vida dos negros que dos portos de África se conduzem para os deste Estado do Brasil, que eles tenham, durante a passagem, lugar suficiente em que se possam recostar, e gozar daquele descanso indispensável para a conservação deles, não devendo as dimensões do espaço necessário para aquele fim depender do arbítrio ou capricho dos Mestres das embarcações...: hei por bem determinar, conformando-me às proporções que outros Estados iluminados estabeleceram relativamente a este objeto, e que a experiência constante manifestou corresponder aos fins que tenho em vista; que os navios que se empregarem no transporte dos negros, não hajam de receber maior número deles, do que aquele que corresponder à proporção de cinco negros por cada duas toneladas; e esta proporção só terá lugar até a quantia de 201 toneladas; porque a respeito das toneladas adicionais, além das 201 que acima ficam mencionadas, permito que somente se admita um negro por cada tonelada adicional. (Cf. COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL).
Silva Prado também conversou com uma pessoa que habitou em Moçambique, questionando os mantimentos existentes por lá. A resposta relatada em carta ao capitão do navio foi de apenas “muito bom trigo, caril, e milho miúdo e nada mais, e a madeira que ver pode precisar não acho desacertado leva-la”18. As evidências desse momento reforçam a ideia da reduzida disponibilidade de viveres em Moçambique. Outra demanda do capitão do navio foi a contratação de um piloto experiente no Rio de Janeiro, como podemos observar na correspondência a José Henriques Pessoa em 31 de maio: [...] se presta a receber para seu bordo um outro piloto a bem do que já tem uma vez que possa vossa mercê descobri ai, e conseguir o ajuste de alguém que pelo menos tenha de Moçambique duas viagens, o que também lhe incumbo, justando a soldada pelo menos que puder, sem que exceda a 400$000 pela viagem redonda, além da passagem dessa para Santos, e a encontrar pessoa suficiente deve vir na embarcação que conduzir os gêneros pedidos; confiando da sua escolha o desempenho do recomendado piloto, que convém seja mui prático daqueles portos, e se possível for também de probidade inda melhor para se lhe poder confiar a negociação no inesperado caso das ausências (2º COPIADOR, p. 238 verso e p. 239). 18 Carta a Agostinho José de Carvalho de 31 de maio de 1820.
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Não dispomos de informação sobre os demais tripulantes da galera, mas ainda nessa carta Silva Prado detalhou a combinação entre ele e o capitão do navio, que não era seu o proprietário19. O trato entre eles foi de que a negociação se responsabilizaria pelos mantimentos em terra e não no mar e a remuneração do capitão seria proporcional ao número de escravos vivos entregues. O capitão ainda assumiu 4 ações da negociação no total de dois contos de réis. Apesar de não possuirmos uma relação dos sócios do empreendimento, os referidos nas cartas moravam, sobretudo, em distintas partes de São Paulo, desde a região sulina, passando pelo oeste e atingindo o Vale do Paraíba. Por fim, informa que além dos 16 contos em moedas de ouro que levaram açúcar e aguardente para a permuta pelos cativos na África: [...] observarei quanto me insinuar vossa mercê a quem não devo ocultar que as despesas da ida, estada, ali e volta da referida Galera não compete aos interessados na dita negociação e assim ao referido Caixa Carvalho, com quem justei pagar-lhe o frete dos cativos que vivos me entregar; sendo estes em toda viagem sustentados a custo do mesmo, e a negociação só obrigada ao alimento dos cativos pelo tempo que estiverem em terra antes de embarcar, e tanto lhe refiro para disto se for mister também tratar no modelo que lhe peço para a Carta de Ordem, que virá em termos de providenciar quanto for possível a vossa mercê entender preciso a bem da negociação para qual irá 6$400 quarenta mil cruzados, e também um pouco de açúcar ensacado, e alguma aguardente se isto lhe parecer a propósito (2º COPIADOR, p. 239 e p. 239 verso).
Em carta posterior, Silva Prado detalha que serão embarcadas 275 arrobas de açúcar em sacos para a negociação, porém avaliadas em apenas 550$000 – muito menos do que o dinheiro em ouro. A relação com os sócios pode ser descrita na carta de 1º de março de 1821, cujo destinatário era o sargento-mor João da Silva Machado, então radicado na Vila do Príncipe, no Paraná. Sobre o sargento-mor escreveu Petrone (1976, p. 1): “Na segunda fase de seu comércio de gado, baseado quase exclusivamente em muares, Antônio da Silva Prado tem um sócio: João da Silva Machado, futuro barão de Antonina [em 1820, Prado tentara interessar Machado na compra de bois nos Campos Gerais. Mais tarde ambos realizaram alguns negócios com bovinos mas, sobre essas transações, não existem mais informações]. Influente e grande proprietário nos Campos Gerais, sargento-mor de ordenanças na vila do Príncipe, atual Lapa, Machado dedicou-se com muito interesse ao comércio de gado, além de ser também criador. Notabilizou-se, igualmente, pelas expedições que dirigiu para o reconhecimento de áreas desconhecidas, principalmente dos sertões do oeste paranaense. Várias vezes esteve ligado à abertura de estradas ou ao seu melhoramento”. Como percebemos no trecho abaixo reproduzido, o autor da missiva faz referência tanto à primeira das viagens da galera, que retornara de Moçambique em janeiro daquele ano, como à se19 O proprietário era Luiz Antonio de Carvalho da cidade de Lisboa. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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gunda, que ocorreria meses depois. Ele procura confirmar o prévio interesse do sargento-mor em participar do negócio (“tenho bem em lembrança o que aqui tratamos”). Essa participação dar-se-ia mediante a subscrição de ações do empreendimento. Notamos, pois, como os contatos mercantis de Silva Prado, estabelecidos em outras transações, a exemplo do comércio de animais, eram utilizados para alcançar pessoas em distintas áreas e alavancar as iniciativas do negociante, no caso, no tráfico negreiro: No dia 27 do mês próximo passado foram convocados os acionistas para a nova negociação da escravatura para Moçambique com as mesmas condições da passada negociação, e havendo imensos concorrentes não só aqueles que entraram na passada, como outros que tentarão na futura, porém eu tenho bem em lembrança o que aqui tratamos, logo reservei oito ações para vossa Mercê, e o nosso comum amigo Tenente Coronel José Feliz da Silva, e por isso certifique, a aqueles que pretendiam, que só serão admitidos quando entrarem com suas respectivas ações que se calcula cada uma de 500$000 entregando em peças de 6$400 [...] (3º COPIADOR, p. 11).
Além de adquirir suas ações, o futuro Barão de Antonina difundia as informações entre os possíveis interessados na região do planalto paranaense, que naquela época pertencia à capitania de São Paulo. A aquisição de uma cota do empreendimento custava relativamente caro, pois a quantia de meio conto de réis permitia a compra de cerca de três escravos na época20. Como veremos adiante, ele utiliza o resultado do primeiro empreendimento para convencer novos investidores. Por fim, os recursos deveriam ser entregues em moedas de ouro, que possuíam melhor aceitação tanto no Brasil quanto, principalmente, na África. As moedas de ouro circulavam com ágio naquele momento, isto é, valiam mais do que o seu valor de face e em comparação com as demais moedas, de prata e principalmente cobre, e com as notas do Banco do Brasil. Na primeira negociação o ágio foi de 10%. Contudo, em carta a João Ferreira Fróes, da Bahia, Silva Prado descrevia a conjuntura para o segundo empreendimento em maio de 1821 as vésperas do embarque de D. João VI: [...] com bem dificuldade tendo conseguido algumas peças de 6$400 como o prêmio de 20% e no Rio tem chegado a 29% com a ida de S. Majestade para Portugal, porém se for verdade a notícia que não vai mais, pelos acontecimentos do Sábado de aleluia, e Domingo de Páscoa tornará a baixar de prêmio, pois com toda a certeza se tinha embarcado em moeda oito milhões de conta das diferentes pessoas, que acompanhavam a sua majestade. (3º COPIADOR, p. 41 verso e p. 42).
Em carta desse mesmo mês, endereçada a José Henriques Pessoa, no Rio de Janeiro, o comerciante paulista comentou a resposta do correspondente baiano: 20 Em carta datada aos 29 de agosto de 1821, a João Francisco Vieira de Taubaté, Silva Prado agradeceu a venda de três escravos por 15 dobras cada, ou seja, 192 mil réis (Cf. 3º COPIADOR, p. 87).
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Penso virão em conta os escravos na presente viagem que espera de Moçambique, por que dessa foram poucos navios e aquele porto, e da Bahia não pode ir nenhum por falta de peças, pois tanto me avisa o meu amigo Fróes, e assim talvez esta viagem de para o prejuízo da outra passada (3º COPIADOR, p. 84).
A restrição monetária mostrou-se elevada naquele momento, pois em carta a Antônio Soares Paiva, no Rio de Janeiro, afirmava, em 20 de outubro de 1821: “[...] mesmo eu mandei para Moçambique 5 mil peças de 6$400 as quais consegui com o prêmio de dez, e 20 por 100, e algumas que restam existem em mãos tão apertadas que presumem que hão de levar para outro mundo” (3º COPIADOR, p. 111 verso). Pelo fato de o tráfico negreiro ser um negócio de alto risco, devido à mortalidade elevada de negros durante o trajeto, ao roubo e à pirataria em alto mar, o seguro da atividade era algo imprescindível. Robert Conrad (1985, p. 82) forneceu um exemplo interessante, no qual se sobressai um elemento adicional a compor esse risco elevado, qual seja, a possibilidade de captura dos tumbeiros pelos navios britânicos, fundamentada pelas limitações ao tráfico então vigentes. Trata-se do brigue Henriquetta, de propriedade de João Cardozo dos Santos, que realizou seis viagens à África entre fevereiro de 1825 e junho de 1827: “Os lucros auferidos por esse navio e por outros como ele eram grandes, e foram tomadas medidas sistemáticas para diminuir o impacto financeiro de suas capturas. O ganho líquido das seis viagens registradas do Henriquetta foi estimado em 80.000 libras esterlinas [...]. Além disso, para maior segurança o Henriquetta ‘foi segurado no Rio de Janeiro ... por um prêmio que incluía o risco de captura pelos cruzadores britânicos’. [...] Segurar o lucrativo brigue havia sido uma precaução inteligente tendo em vista o fato de que foi finalmente capturado em setembro de 1827, com 569 escravos o bordo, por F. A. Collier, capitão do H. M. S. Sybille, condenado no mês seguinte e vendido em leilão público”. Como informado na carta a Pessoa, de 25 de maio de 1820, os preparativos para a viagem do Conceição Esperança incluíram a realização do seguro do navio, das mercadorias e do dinheiro embarcado. Apesar de ser a sua primeira contratação desse tipo, em carta de 9 de agosto ao sargento-mor Manuel Moreira Lírio, Silva Prado declarava o seu desagrado com a forma da contratação do seguro: Vejo ter segurado a Galera Conceição Esperança por conta de Luiz Antonio de Carvalho da cidade de Lisboa na importância de 20:000$000 que dividiu nas duas companhias denominadas Providência e Permanente, tudo por meu pedido de 30 de Maio, porém devo dizer-lhe que o seguro que fez não combina com o que me disse em sua carta de 19 de Maio do corrente ano, a qual fiz presente ao 1º Tenente Agostinho José de Carvalho, e em virtude dela foi que se mandou segurar, para dizer bem claro, que pretendião os seguros a 5% a salvo, 10 no caso de perda, e 15 no caso Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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de tomadia, e cuidando eu que obsequiava a vossa mercê em dirigir este seguro as companhias de seu interesse, vejo-me agora comprometido com o fazer o seguro no caso de perda, a 20% o que não tem lugar e demais apresenta vossa mercê uma conta em que quer exigir 100$000 de comissão de ½% do dito seguro, o que devo entender ser só a título de ter assinado a letra de dito seguro. (2º COPIADOR, p. 267 verso).
De acordo com Saulo Santiago Bohrer (2008), das duas seguradoras do navio, a Companhia de Seguros Marítimos Permanente do Rio de Janeiro foi criada em 1816 Cf. Há uma referência a outra companhia denominada Providência (BOHRER, 2008, p. 121), mas talvez o autor estivesse se referindo à Providente (RJ), criada em 1814. O seguro cobria duas possibilidades de sinistro do navio: perda e “tomadia”, que se deveria à pirataria. A discordância decorreu do prêmio de 20% no caso de perda, e da comissão de meio ponto porcentual do seu correspondente do Rio21. O custo do seguro foi de pouco mais de um conto de réis, incluindo a comissão (1:101$920 réis). A galera foi segurada no Rio de Janeiro onde, em função da escala do tráfico, tais operações eram mais comuns e menos custosas22. Tal discórdia não impediu a continuidade dos demais negócios com o referido correspondente, porém o restante do seguro da primeira negociação foi tratado com o José Henriques Pessoa, da companhia concorrente, como visto na carta de 1º de agosto: [...] meus desejos em preferir para as minhas transações a Companhia de sua Diretoria, cumpre-me de novo pedir lhe, que na mesma, ou em outra que for de seu agrado, faça por minha conta, e sem demora, segurar a quantia de 4:110$000 a todo risco de ida e volta, do capital, e prêmio que a risco em dita Galera Conceição confiei do mesmo capitão Carvalho, por meio da obrigação, ou letra que em 21 do mês findo aceitou, cujo original levo a sua presença, para que a vista do mesmo ultime como achar mais conveniente este seguro, pelo menor prêmio que puder conseguir, e de verificado se servirá dar-me o preciso aviso para minha inteligência (2º COPIADOR, p. 268 verso).
A comissão de Pessoa foi de apenas um quarto de ponto porcentual, bastante inferior à comissão de Lírio, em especial considerando que seu irmão era próximo a Silva Prado. Este último informou a Lírio o negócio com Pessoa em 19 de agosto, pois precisava prestar contas ao capitão do navio: [...] que José Henrique Pessoa não tendo comigo motivos de amizade como a Vossa Mercê, fez o seguro por ¼ por cem, e até não quis coisa alguma ao que não assenti, e fica-me o pesar de não ter mandado a ele o seguro do navio, por que entenderá o Capitão de dita galera que foi esper21 Se houvesse a perda do navio, haveria uma franquia de 15%, recebendo liquidamente o segurado apenas 80% do valor segurado. 22 Os valores segurados no Rio de Janeiro, levantados por Manolo Florentino (1997, p. 166), variavam entre oito e trinta contos de réis, compreendendo os valores do casco, apetrechos e dos gêneros e mantimentos. O custo do seguro oscilou entre 4% e 12% da importância segurada.
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teza em mim as diferenças que há de um para outro seguro, quer na comissão, como no risco, porém mostrarei as suas cartas e minhas respostas ao dito para ver que é coisa sua, e não minha (2º COPIADOR, p. 287 verso).
Finalmente, em 31 de outubro Lírio aceitou a mesma comissão de Pessoa: Vejo estar, de acordo a rebater ¼ por cem no valor da comissão que levou pelo seguro que fez do casco e aparelho da Galera Conceição Esperança com o que me dou por satisfeito, visto que iguala ao prêmio que levou José Henriques Pessoa por fazer segurar os fundos da mesma galera, e por isso em data de 21 lhe debitei 50$000 importante do rebate de ¼% no valor da comissão visto tanto ser seu gosto (2º COPIADOR, p. 307).
Dessa forma, o terceiro seguro também foi contratado a ele, como consta da seguinte carta de 19 de agosto: [...] recebi a conta do seguro que fez em 20 de julho do corrente ano da quantia de 18:150$000 por minha conta e de quem mais pertencer, valor dos objetos carregados na Galera Conceição Esperança de que Capitão o 1º Tenente Agostinho José de Carvalho, e vejo ter verificado o seguro a 5 por cem de ida e volta, dez em caso de perda e 15 no de tomaria pelos insurgentes (2º COPIADOR, p. 272).
Para a segunda viagem, todos os seguros realizaram-se com a companhia Indemnidade23. Dessa vez, efetuaram-se quatro seguros e não apenas três, por conta talvez de alguma alteração no navio. As minutas dos seguros constaram da carta ao diretor José Henriques Pessoa, de 20 de maio de 1821, nos seguintes termos propostos, destacando as características da embarcação de origem provavelmente norte-americana24: 1º Seguro – O Capitão Antônio da Silva Prado, segura a Galera Conceição Esperança de construção americana, formada de cobre, que está furta no porto de Santos, pronta e próxima a seguir nova viagem de que é capitão o 1º piloto Agostinho José de Carvalho, ou outro por ele. Seguro a dita Galera por conta de quem pertencer, cascos e todos os seus pertences a todo, e qualquer risco cogitado, e não cogitado, que por qualquer forma, ou maneira lhe possa acontecer do dito porto de Santos desde o momento que levanta a primeira âncora ao de Moçambique a onde vai fazer a permuta de escravos, sua estada ali e de volta. Para o mesmo porto de Santos com todas as Escalas forçosas, e voluntárias, que hajas de ser mister na ida, e na volta no valor de 15 contos de réis valha mais, ou valha menos a dita galera e todos os seus utensílios, para a sobre dita viagem. 23 A Companhia de Seguros Marítimos Indemnidade do Rio de Janeiro foi criada em 1810 (BOHRER, 2008, Tabela 6). 24 Leonardo Marques (2010) salienta o envolvimento norte-americano com o tráfico de escravos para o Brasil na primeira metade do século XIX . As embarcações norte-americanas eram apreciadas como melhores do que as de outras procedências, respondendo por mais da metade delas no desembarque de africanos no Brasil entre 1831 e 1850 (MARQUES, 2013, p. 4). Esses navios eram vendidos ou fretados no Rio de Janeiro e anunciados no Jornal do Comércio. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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2º Seguro – Segurar 16:960$000 e o prêmio que no caso de qualquer sinistro despender com este seguro, declarando ser dita quantia parte de 18:600$000 réis que em dinheiro e gêneros avaliados desde já carregados na Galera [...]. 3º Seguro – 6:060$000 [...] que em moeda corrente deu a risco a Luiz Antônio de Carvalho proprietário da Galera Conceição Esperança pronta [...]. 4º Seguro – segurar 1:017$233 [...] por igual valor dado a risco em gêneros desde já avaliados na referida quantia ao Capitão 1º piloto da Galera Conceição (3º COPIADOR, p. 48-49).
Os valores alcançados no negócio do tráfico mostraram-se substanciais, pois o total segurado chegou a mais de 42 contos de réis nas duas negociações25. Pouco mais de um terço desse total referiu-se à embarcação e o restante aos gêneros e moedas. Interessante notarmos que os termos do seguro acima descritos, os quais, no caso da embarcação, cobriam a viagem de ida e a de volta, bem como a estada em Moçambique, não fazem menção à carga humana a ser adquirida. Decerto, a definição do número de escravos embarcados e as próprias características dessas pessoas (distribuição sexual e etária, por exemplo), seriam elementos importantes a informar o ajuste dos valores segurados. Infelizmente, não temos esses informes para o caso do Conceição Esperança, para nenhuma das duas viagens aqui analisadas. Assim, por exemplo, não sabemos se as elevadas perdas entre os cativos adquiridos na primeira viagem foram em alguma medida ressarcidas por conta de uma cobertura referente àquela carga. Para o caso inglês, percebemos que o seguro da carga humana propiciou margem a inúmeros conflitos entre traficantes e companhias de seguro e ao estabelecimento do correspondente aparato legal. Uma ilustração disto é dada por Rediker (2011, p. 297), ao descrever a determinação exarada em 1785 por um tribunal da Inglaterra, vinculada ao, à época, “aceso debate sobre a desumanidade dos navios negreiros” e à elevada incidência, nos registros dos médicos daquelas embarcações, de casos de suicídio de cativos: As companhias de seguro eram obrigadas a pagar por escravos que morressem em insurreições, mas não pelos que morressem de melancolia, abstinência ou desespero. Mais especificamente: “não cabia indenização nos casos em que os escravos se atiravam ao mar”. Foi ainda Marcus Rediker (2011, p. 248) quem comentou o caso do Zong, ocorrido em 1781: O capitão Luke Collingwood navegava com sua tripulação de dezessete homens, mais uma ‘carga’ de 470 escravos apinhados, da África Ocidental para a Jamaica. Logo difundiu-se uma enfermidade no navio: sessenta africanos e sete membros da tripulação pereceram. Temendo uma ‘viagem fracassada’, Collingwood reuniu os membros da tripulação e disse-lhes que ‘se os escravos morressem de morte natural, isso significaria uma perda para os proprietários do navio; mas se fossem 25 Quando Silva Prado acusou o recebimento das quatro apólices do segundo empreendimento, o total alçava-se a quase 42 contos.
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jogados no mar, a perda seria da companhia de seguros’. [...] Naquela noite a tripulação atirou ao mar 54 escravos de mãos amarradas. Dois dias depois atiraram outros 42, e mais 26 pouco tempo depois. Dez escravos assistiram ao pavoroso espetáculo e se atiraram ao mar por vontade própria, aumentando o número de óbitos para 132. [...] O caso foi parar na justiça quando a companhia de seguros recusou-se a pagar o exigido, e os proprietários entraram com uma ação contra ela.
Em nota de rodapé, Rediker (2011, p. 405) contou o fim da história: “O tribunal decidiu que a seguradora não devia pagar pelos escravos assassinados”. Entre os gêneros embarcados para a segunda viagem à África do Conceição Esperança havia novamente o açúcar, como relata o missivista a Cipriano da Silva Proost, em Santos, aos 22 de maio de 1821: “Sobre o açúcar para Moçambique já comprei e a 2$200, e fez bem não comprar a caixa” (3º COPIADOR, p. 49 verso). De igual modo, houve também negociação para incluir a aguardente, observada numa carta enviada a Vieira, de Taubaté: “Quanto sobrar as pipas de aguardente que quer mandar por s/c para Moçambique só com a vista podemos tratar disto estando presente o capitão Agostinho José de Carvalho” (3º COPIADOR, p. 18 verso e p. 19). Deste modo, além do dinheiro em moedas de ouro, utilizavam-se também, de forma complementar, produtos da terra como o açúcar e a aguardente. As evidências apresentadas demonstram a necessidade de uma ampla rede de pessoas para mobilizar recursos e atuar efetivamente na operação traficante. A articulação desses indivíduos, realizada por Antonio da Silva Prado, revelou-se elemento chave para a viabilização do negócio. A rede de confiança, parceria, amizade e parentesco, estabelecida por ele em seus vários empreendimentos, foi peça fundamental para o bom funcionamento das operações.
Retorno da viagem Houve toda uma preparação para a chegada da galera com os escravos a bordo. Em Santos, eles seriam recolhidos à casa do Tororó (talvez posteriormente Itororó), mantendo uma quarentena a fim de evitar a disseminação de doenças. Esse local necessitou de uma reforma entre uma viagem e outra. Os cuidados com o local que receberia os escravos traficados eram uma constante. Em 10 de janeiro de 1821, portanto às vésperas do retorno do Conceição Esperança de sua primeira viagem a Moçambique, o negociante acusou o recebimento de notícias sobre o Tororó enviadas pelo Capitão Proost no dia 6 daquele mês: “Estimo muito o anúncio que me dá em ficar pronta a Casa do Tororó mesma coberta de palha em te fins deste [mês], pois não deve tardar aí a Galera se não lhe acontecer algum sucesso não esperado” (3º COPIADOR, p. 34). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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No período correspondente à segunda viagem, Silva Prado escreveu ao governador provisório solicitando a reforma da casa. Há pelo menos duas cartas remetidas a Daniel Pedro Müller (1978) demandando a reedificação da casa e oferecendo madeiras de sua chácara. No final parece ter arcado com parte dos custos da reforma, como demonstra a missiva a Proost, em 6 de dezembro de 1821: Respeito ao Tororó basta fazer o conserto, que me disse ser da maior necessidade, sendo necessário seja tapada a abertura que tem no oitom [?], e as janelas bastará pauapicalas evitando grande despesa, pois é a minha custa, e demais, pouca, ou nem um demora terão ai os escravos (3º COPIADOR, p. 131).
A preocupação com a alimentação e até a vestimenta dos escravos mostrou-se grande, como na carta ao correspondente em Santos, Capitão Cipriano da Silva Proost, de 19 de setembro de 1821. Silva Prado informava que o capitão do navio compraria em Moçambique os panos para as vestimentas exíguas dos escravos: “Para a chegada dos escravos nesta viagem que se espera suponho não se precisar de tangas, por que recomendei ao Capitão comprasse em Moçambique, fazendas da Índia que ali há para vir munido de tangas” (3º COPIADOR, p. 97 verso). Com relação aos alimentos, identificamos a preocupação do negociante em carta anterior, datada aos 17 de janeiro de 1821, referente, portanto, à primeira viagem do Conceição Esperança. Também destinada a Proost, nela havia a recomendação acerca dos gêneros a serem utilizados na alimentação dos cativos chegados da África naquele mês. Adicionalmente, o futuro barão sugeria que o preparo da comida fosse feito na própria galera e levado aos escravos desembarcados, o que implicava ser a atracação do navio realizada de modo a facilitar o trânsito dos alimentos preparados: Pelo corrente saberemos se é verdade a notícia D. Agostinho [...] de farinha estamos servidos. Segundo seu aviso, a carne se não chegou, penso não tardara a lhe ser entregue, agora restamos alguns alqueires de feijão. Que se precisa bem como o arranjo para se fazer a comida para a escravatura, e só me lembra mandar cozinhar mesmo na embarcação e conduzir-se em gamelas para o Tororó por isso na chegada de Agostinho faça-lhe ver isto para que ele atraque a embarcação perto da terra, e em lugar que nos fique mais perto (3º COPIADOR, p. 1 verso).
Percebemos, ademais, o emprego do charque para a alimentação dos cativos oriundos do Rio de Janeiro. A carne seca figurava também entre os gêneros com os quais se deveriam alimentar os escravos durante a travessia, explicitados no Alvará de 1813: VI. Posto que o feijão seja o principal alimento que a bordo das embarcações se fornece aos Africanos, tendo-se reconhecido, pela experiência, que estes o repugnam e rejeitam passados os pri-
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meiros dias da viagem, convém que se reveze, dando-lhes uma porção de arroz, ao menos uma vez por semana, e misturando o feijão com o milho, alimento que os negros preferem a qualquer outro, não sendo o mendoby, que entre elles tem o primeiro logar, e que portanto se lhes deve facilitar; fornecendo-se a competente porção de peixe e carne seca, que igualmente deverá ser de boa qualidade; e para preparo da comida se empregarão caldeirões de ferro, ficando reprovados os de cobre (COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL).
Também atinente à primeira das viagens do Conceição Esperança, a carta de fevereiro de 1821, enviada ao sargento-mor Manuel Moreira Lírio, trazia a seguinte informação: Mais lhe creditei R$158$712 importância das 100 @ de charque que me remeteu pela Sumaca Carlota a ser entregue em Santos ao Capitão Cipriano da Silva Proost, [...] Charque chegou no mesmo dia que a Galera vinda de Moçambique, e por isso cumpre-me agradecer-lhe a prontidão com que me remeteu (3º COPIADOR, p. 10).
A correspondência demonstra a necessidade de uma atenção contínua durante as diversas etapas do negócio para o seu sucesso. Contudo, mesmo assim as dificuldades conjunturais, como a mortalidade elevada na viagem atlântica, poderiam onerar o empreendimento, tornando-o de retorno negativo. Silva Prado mantinha negócios na Bahia e escreveu em 2 de maio de 1821 a João Ferreira Fróes, seu tradicional correspondente naquela praça, informando que, na primeira viagem do Conceição Esperança, dos 461 cativos embarcados apenas 214 sobreviveram. Vale dizer, mais da metade (53,6%) faleceu na viagem ou nos primeiros dias e semanas no Brasil, assim relatado: “Em 21 de janeiro chegou a Santos a Galera Conceição Esperança com menos de 6 meses de viagem de ida e volta a Moçambique e comprando-se naquele porto 461 cativos apenas vendi nesta 214 por morrerem 247” (3º COPIADOR, p. 41 verso). É possível inferir que a elevada mortalidade indicada não decorreu de uma eventual sobrecarga da mercadoria humana transportada pela galera de 200 toneladas, pois em conformidade com o Alvará de novembro de 1813, o Conceição Esperança poderia carregar até 500 escravos. Sua carga de 461 africanos correspondeu, portanto, a 92,2% daquele limite26. De outra parte, a higiene e as provisões para a longa viagem eram muitas vezes inadequadas, com significativo impacto sobre a mortalidade entre os cativos. De acordo com Robert Conrad (1985, p. 45-46), “A viagem de Moçambique português para o Brasil [...] durava praticamente o dobro do tempo em relação à viagem dos portos africanos ocidentais (cerca de 60 dias na primeira e 34 na última). Assim, os escravos embarcados para o Brasil em Moçambique tinham muito mais probabilidades de morrer na viagem do que aqueles embarcados nas colônias africanas ocidentais como Guiné Portuguesa, Cabinda ou Angola”. 26 Ver Verger (1987, p. 659-660) e Reis, Gomes e Carvalho (2010, p. 109-130). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Isto decorria também das facilidades em se burlar as exigências para a certificação das condições higiênicas das embarcações. Não obstante, a perda de mais de metade da carga do Conceição Esperança superou em muito as proporções entendidas à época como normais, ainda que a ultrapassagem desses índices normais estivesse longe de ser incomum. Assim, por exemplo, José Capela (2002, p. 259-260), em seu estudo sobre o tráfico de escravos nos portos de Moçambique, escreveu: “Por volta de 1820, no percurso de Moçambique para o Rio de Janeiro, tinha-se como regular uma mortandade de 25%. Mas eram frequentes as circunstâncias em que essa percentagem era ultrapassada. Não apenas em casos de naufrágios, de tempestades, e mesmo de atrasos na viagem que faziam escassear os alimentos e a água. Epidemias e acidentes eram outras tantas causas de mortandade. Numa viagem de 53 dias, de um carregamento à partida de 760 escravos, morreram 399. O armador atribuía a mortandade a um acidente à saída do porto e atraso consequente. [...] outras estimativas, para a viagem entre Quelimane e o Rio de Janeiro, apontam para uma média de 21% de mortes sobre os escravos embarcados”. Essa cifra é muito similar à mencionada por Robert Conrad (1985, p. 46), baseado em relatórios consulares britânicos para o período de 1821 a 1825: “Durante esse tempo, entre 91.848 escravos embarcados da África ocidental para o Rio, 5.418, ou pouco menos de 6%, morreram no mar, ao passo que entre os 38.165 escravos embarcados em Moçambique, morreram no mar 7.368, ou cerca de 20%”. É interessante observar o quanto esses porcentuais estimados distanciavam-se daqueles que se poderiam talvez entender como “ideais”, e cuja obtenção era, por conseguinte, estimulada pela Coroa portuguesa, conforme, uma vez mais, o Alvará de 1813: II. [...] sou servido determinar, que sucedendo não exceder de dois por cento o número dos que morrerem na passagem dos portos de África para os do Brasil, haja de se premiar o Mestre da embarcação com a gratificação de 240$000, e de 120$000 o Cirurgião; e não excedendo o número de mortos de três por cento, se concederá assim ao Mestre como ao Cirurgião metade da gratificação que acima fica indicada, a qual será paga pelo Cofre da Saúde... (COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL).
A pirataria, outrossim, representava um risco significativo. No caso das embarcações carregando escravos vindos de Moçambique, havia a constante pressão de corsários franceses, que costumavam enviar os cativos pirateados para as Ilhas Maurício. O corso era tanto mais frequente quanto maior fosse a demanda por africanos, a exemplo da década de 1820, quando mais de quatro mil africanos passaram para as mãos de piratas27. Destarte, esse grande risco foi a razão para o seguro contra este contratempo, porém não houve tal infortúnio na referida negociação. Como houve naquela primeira viagem escala no Rio de Janeiro, Silva Prado tentou, na segunda expedição da galera, minimizar a estada lá para evitar prejuízo com perdas de escravos, não 27 Ver Florentino (1997, p. 140-143).
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necessariamente por conta da mortalidade. Dirigindo-se novamente ao sargento Lírio, em 11 de janeiro de 1822, informava a necessidade de ir até Santos para ter isenção de direitos tributários: A Segunda (22/12/1821) com esta recebi a carta que me inclui do Capitão Agostinho José de Carvalho em que me participa fazer escala por esse porto, e como suponho já ai ter chegado, e regressado para Santos onde é o destino dos escravos, mesmo por que neste porto são livres de direitos 500 escravos, cuja graça obtive de sua majestade por isso nada tenho que providenciar a este respeito (3º COPIADOR, p.143).
Uma grande preocupação era com as doenças dos cativos. Apesar da esperança de não precisarem ficar em quarentena para serem vendidos logo, notamos cuidados para reduzir a mortalidade, como na carta ao capitão do navio, datada aos 7 de março de 1821: “quando Vossa Mercê vier, sem que cumpra vierem os dois mal convalescidos por que com o excesso de viagem podem piorar como aconteceu com os que vieram e por isso acertado inda lá ficarem” (3º copiador, p. 16). Quando da chegada da primeira viagem, ao final de janeiro de 1821, Silva Prado escreveu uma correspondência variada, quase toda em um único dia, endereçada a várias pessoas no interior da capitania, especialmente em Itu, Sorocaba, Piracicaba, Campinas e Taubaté, divulgando a disponibilidade de escravos novos. Não eram necessariamente sócios do empreendimento, mas possíveis compradores dos cativos. Eles deveriam difundir a informação aos interessados em suas respectivas regiões. Logo depois ele próprio seguiu para Santos, a fim de receber os escravos e verificar seu número, condições e o tratamento a eles dispensado. Alguns compradores também desejavam ver os cativos em Santos, como o Capitão Floriano de Camargo Penteado, radicado em Campinas. Assim, muitos negócios eram fechados em Santos. Evidenciamos, destarte, a importância dessa rede de relações para um resultado favorável com o tráfico.. Muitas vezes anunciavam-se em jornais a chegada de embarcação traficante, como publicado no Diário de Pernambuco em 7 de fevereiro de 1827, fornecendo até prazo para o pagamento: Quem quiser comprar o brigue Santo Antônio Protetor, chegado ultimamente de Angola com escravos, com todos os pertences próprios para o mesmo tráfico, o qual é de 447 praças, e forrado de cobre, procure na rua da Guia a Antônio de Queirós Monteiro Regadas, para tratar do ajuste, que venderá a dinheiro, ou a prazos, conforme for a convenção, e quem o quiser comprar se lhe mostrará o seu inventário (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1827)
Ainda na carta de 1º de março de 1821 ao futuro Barão de Antonina, Silva Prado escreveu a fim de convencer mais interessados na nova negociação, utilizando da informação acerca do resulResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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tado da primeira negociação. Apesar da grande mortalidade nessa viagem, os cativos trazidos “deram não só para o principal, e mais despesas como ainda para o pequeno lucro de 40$000 a cada ação, e mais será se os direitos vierem livres como presumo” (3º COPIADOR, p. 11 verso)28. Cerca de um mês depois, na já relatada carta ao Fróes, de 2 de maio de 1821, Silva Prado salientou um novo resultado do primeiro empreendimento. É notável como a notícia sobre a primeira viagem do Conceição Esperança, nessa carta para o “amigo Fróes”, diverge do comentário presente na missiva, datada de dois meses antes, para o sargento-mor João Machado. As condições de um negócio tão instável podem ter se modificado, por exemplo, em função da elevada mortalidade entre os africanos trazidos nos seus primeiros dias e semanas na América, ou mesmo no computo de todos os custos do empreendimento. E não se pode descartar a possibilidade de que o objetivo, ao que tudo indica, perseguido na correspondência de março, de assegurar o interesse de Machado e outros eventuais investidores na próxima viagem da galera, responda em parte pela divergência apontada: [...] comprando-se naquele porto 461 cativos apenas vendi nesta 214 por morrerem 247 e ainda sim só perdemos de principal em toda negociação R 508$512 porém eu salvei-me porque tive a comissão de 6% como caixa entrada da quantia de 34:457$400, e o mesmo aconteceu a todas as embarcações que do Rio de Janeiro foram aquele porto, para onde torna a galera em dias do corrente mês (3º COPIADOR, p. 41 verso e p. 42).
Mesmo a extraordinária mortalidade da primeira negociação não comprometeu o capital do negócio nessa operação, produzindo tão somente um pequeno prejuízo aos sócios. Assim, houve a possiblidade de realizar um novo empreendimento ainda nesse ano de 1821, com saída na mesma época da anterior, como relata a Lírio, em 20 de fevereiro, a brevidade da conclusão da primeira e a preparação da próxima negociação: “quase todos já vendidos, sem que isto me faça esmorecer por que pretendemos tentar nova negociação que terá efeito na próxima monção” (3º COPIADOR, p. 10). Infelizmente, não dispomos de comentários similares do comerciante acerca da segunda viagem da galera, mas o banco de dados Slave Trade informa a saída de 389 escravos da África e a chegada de 265 no Rio de Janeiro, em fevereiro de 182229. Nessa última operação, comparada à primeira, a proporção das perdas (31,9%) revelou-se bastante inferior, ainda que neste último porcentual não se tenha computado a mortalidade nos primeiros dias no Brasil. Apesar de a mortalidade para Moçambique mostrar-se em geral superior à dos demais trajetos, as mortalidades verifica28 Esse comentário destoa da observação feita por Prado na carta para José Henriques Pessoa citada anteriormente. Referimo-nos a essa disparidade a seguir no texto. 29 Não localizamos o Quarto copiador de cartas.
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das nessas duas operações superaram as relatadas pela historiografia para essa rota. De acordo com o banco de dados Slave Trade, a mortalidade durante a viagem transatlântica entre o Sudeste africano (incluindo as Ilhas do Índico) e o Brasil chegou, de 1821 a 1825, a 16,9%, fração pouco inferior à indicada por José Capela, conforme mencionamos anteriormente. Percebemos, ademais, ter sido embarcado na África um número de cativos aproximadamente 15% menor. Talvez essa diminuição estivesse relacionada à mortalidade elevada ocorrida na viagem anterior, ou decorresse de uma eventual maior dificuldade, na segunda operação, de completar o espaço disponível nos porões do navio. Desse modo, provavelmente essa última viagem pode ter sido lucrativa, antes do mais, em função da menor mortalidade. Os empreendimentos reportados apontam para uma grande divergência de resultados, decorrente do risco inerente ao próprio negócio, mas não contrariam a existência de retornos elevados. Tais retornos, sem dúvida, ajudavam a formar as expectativas dos participantes da empreitada. Por exemplo, Marcus Rediker (2011, p. 56-57), com a atenção principalmente voltada para o tráfico negreiro no Setecentos, tendo à frente a Inglaterra, escreveu: Os comerciantes britânicos e americanos tentavam a sorte num negócio que exigia grandes investimentos e implicava enormes riscos. Nos primeiros tempos, pequenos investidores e investidores medianos, inclusive artesãos, podiam ganhar dinheiro adquirindo cotas-partes ou embarcando uma pequena carga num navio negreiro, mas já no século XVIII o comércio era fortemente controlado por comerciantes que tinham grandes somas de capital e, em sua maioria, experiência e conhecimento do negócio. Como escreveu John Lord Sheffield [John Baker-Holroyd, 1735-1821, à época Baron Sheffield e, em 1816, Earl of Sheffield-RL/JFM], em 1790, isso queria dizer que o tráfico era um empreendimento de ‘homens de capital, e os eventuais aventureiros serão desestimulados a entrar no negócio’. Os lucros desses grandes comerciantes podiam ser extraordinários, chegando a cem por cento sobre o investimento se tudo corresse bem, mas as perdas podiam ser igualmente imensas, por causa dos riscos de doença, insurreição, naufrágio e captura por corsários inimigos. A taxa média de lucro obtida por aqueles que investiam no tráfico de escravos no século XVIII ficava entre nove e dez por cento, o que era considerável, mas não excessivo para os padrões da época.
O estudo de José Capela (2002) traz inúmeros exemplos que atestam esse retorno elevado. Um dos mais emblemáticos é o do União Feliz, do armador Antônio Dias Correia. Viajando de Moçambique ao Rio de Janeiro no primeiro semestre de 1819, esse navio teve uma carga comprada de 910 cativos. Um acidente na saída implicou atraso e, em decorrência da morte em terra de 130 escravos, o embarque de 760 africanos, dos quais chegaram ao destino apenas 358. Mesmo assim, a viagem teria produzido um lucro bruto superior a trinta contos de réis, estimado pelo Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 27-56, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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autor com base num custo total de pouco mais de 25 contos (valor de 28$000 atribuído a cada um dos 910 escravos comprados)30. Um lucro, portanto, muito expressivo, e “isto em um caso em que o navio chega ao destino com pouco mais de um terço da carga” (CAPELA, 2002, p. 205). As experiências vivenciadas pela galera de Silva Prado corroboram, pois, o que, numa perspectiva mais geral, afirmou o estudioso português: No que diz respeito a Moçambique, é por demais evidente que, não obstante o curto período em que se desenvolveu31, o negócio era atrativo. [...] A sobrelotação dos navios, a saída dos navios fora das monções, a acumulação de escravos à espera de embarque, o tratamento a bordo, o mau estado das embarcações, se, por um lado, provocavam desastres e falências frequentes, por outro, indiciam o fascínio do negócio, o ganho aparentemente fácil. Tudo leva a crer que um carregamento de escravos, feito em condições razoáveis e normais, era um bom negócio. Outra questão, a abordar em outro lugar, é a de saber se o negócio de escravos é susceptível de funcionamento em condições “razoáveis e normais” (CAPELA, 2002, p. 201-202).
Considerações finais
Em suma, o tráfico de escravos revelou-se um grande negócio, que necessitava de uma ampla rede de pessoas e da mobilização de recursos apreciáveis para a sua operação. Desde o interior moçambicano até o planalto paulista e paranaense, analisamos alguns elos dessa rede por meio da correspondência de um controlador, Antonio da Silva Prado. As tarefas executadas por ele compreenderam a mobilização de uma rede de negociantes para a realização do empreendimento, que abarcou um grande volume financeiro dos sócios. Verificamos que a articulação de diferentes pessoas e contratos estabelecidos foi fundamental para a administração do caixa da negociação. Uma complexa e ampla rede foi utilizada para o funcionamento do tráfico africano, que se mostrou muito arriscado e sujeito a grandes instabilidades. Nesse sentido, a criação de condições para a operação do tráfico a partir do Brasil diretamente com a África revelou-se uma condição inequívoca para a continuidade do uso em larga escala do escravo africano nas lavouras brasileiras após a independência, principalmente numa área de expansão como São Paulo nessa época.
30 Sobre esse valor de 28$000 que utiliza em seu cálculo do lucro bruto escreveu ainda Capela: “Dada a quantidade é de crer que o preço médio unitário fosse razoavelmente mais baixo” (2002, p. 204). 31 “Há boas razões para acreditar que o tráfico transatlântico sistemático a partir de Moçambique, com envolvimento de armadores de praças portuguesas, brasileiras ou moçambicanas, não existiu antes da década de 90. Havia, no entanto, o já referido tráfico com destino a S. Domingos e a Havana” (CAPELA, 2002, p. 69).
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Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714) A study on the population of the Captaincy of Rio Grande with emphasis on black and indigenous slavery in the context of the Barbarian War (1681-1714) Dayane Julia Carvalho Dias
Carmen Margarida Oliveira Alveal
Universidade Estadual de Campinas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Resumo
Abstract
O trabalho pretende analisar alguns dados demográficos sobre a capitania do Rio Grande, na região norte do Estado do Brasil, com base em registros de batismos da Freguesia de Nossa Senhora de Apresentação, contemplando os aldeamentos e algumas capelas rurais, entre os anos de 1681 e 1714, período cujo contexto era conturbado em decorrência da chamada Guerra dos Bárbaros. Os dados mostram algumas características interessantes sobre o perfil daquela população à época. A análise, ancorada na totalidade de batizandos, incluindo livres e escravos, procurará privilegiar os escravos, segmento significativo da sociedade colonial da capitania do Rio Grande. Assim, procurou-se analisar, com base nos registros paroquiais de batismos, os seguintes elementos: distribuição geográfica dos locais de batismos (população total, escravizados negros e indígenas); condição jurídica; distribuição por sexo; razão entre sexos; quantidade de batismos por anos de escravos negros e indígenas; locais de procedência dos escravos de origem africana; e por fim, relações familiares dos escravos negros, no que se refere à categoria de idade (dividido entre crianças, adultos e informações ausentes), e no caso das crianças, o estado civil de suas mães.
This article intends to analyze some demographic data about the captaincy of Rio Grande, in the northern region of the State of Brazil, based on records of baptisms of the Parish of Nossa Senhora de Apresentação, including villages, Indian settlements and some rural chapels, from 1681 to 1714, period whose context was complicated because of the so-called Barbarian War (Indians). The data show some interesting characteristics about the profile of this population at that time. The analysis, anchored in the totality of baptisms, including free and enslaves people, will seek to privilege slaves, a significant segment of the colonial society of the Rio Grande captaincy. Based on the parish records of baptisms, we sought to analyze the following elements: geographical distribution of baptismal sites (total population, black and Indian enslaved); legal status; distribution by sex; sex ratio; number of baptisms per year of slaves; places of origin of slaves from Africa; and finally, family relations of slaves of African origin, as regards the age category (divided among children, adults and missing information), and in the case of children, the marital status of their mothers.
Palavras-chaves: Capitania do Rio Grande; População Escrava; População Indígena; Batismos; Guerra dos Bárbaros.
Keywords: Captaincy of Rio Grande; Slave Population; Indian Population; Baptisms; Barbarian War.
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I n t r o d u ç ã o
A
colonização do Rio Grande1 foi retomada após a expulsão dos holandeses, em 1654, e foi caracterizada, em seu início, por uma economia incipiente, assim como pelas disputas violentas por terras entre indígenas, colonos e missionários, período conhecido
como a Guerra dos Bárbaros (PIRES, 1990; PUNTONI, 2000; LOPES, 2003; ALVEAL, 2013 e 2016). Este artigo pretende analisar o contexto histórico e demográfico no qual estava inserida a sociedade colonial do Rio Grande, com base em registros paroquiais de batismos do período de 1681 a 1714. Pretende-se realizar uma discussão principalmente sobre a população escravizada, tanto indígena quanto negra, propondo-se a analisar essas populações que constituíram famílias com suas especificidades, mesmo em um contexto difícil e de princípio da construção da sociedade colonial na capitania. O objetivo desse artigo, portanto, é apresentar características sociodemográficas da população negra e indígena escravizada, e também da população livre na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, que englobava praticamente toda a capitania daquele período, incluindo a matriz, na cidade do Natal, os aldeamentos indígenas de Guaraíras e Guajirú, e algumas capelas rurais (São José de Mipibu, Nossa Senhora do Desterro, Nossa Senhora dos Prazeres de Goianinha, Capela de Cunhaú, Oratório de Jundiaí, Capela de São Gonçalo do Potengi e Capela de Santo Antônio do Potengi). Renata Assunção da Costa (2015), em sua dissertação de mestrado, utilizando-se de mesmo material, mapeou a localização de todas essas igrejas, capelas e oratório, evidenciando como, geograficamente, a população da época estava basicamente contida no litoral, no entorno da cidade do Natal, capital da capitania, não muito mais do que 40 a 50 quilômetros de distância dessa localidade. Além dessas regiões, havia no litoral sul, também não distando mais de 30 quilômetros da costa, o engenho Cunhaú, área que concentrava significativa quantidade populacional. Os aspectos analisados a partir dos registros paroquiais de batismos foram: distribuição geográfica dos locais de batismos (população total, escravos negros e indígenas); condição jurídi1 Utilizar-se-á Rio Grande, sem “do norte”, uma vez que o termo apareceu somente em 1751, para diferenciar a região da capitania do São Pedro do Rio Grande do Sul, e o período aqui estudado é anterior.
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ca; distribuição por sexo; razão entre os sexos; quantidade de batismos por anos de escravos indígenas e negros; locais de procedência dos escravos negros, se nascidos no Brasil ou na África; e por fim, relações familiares dos escravizados negros, no que se refere à categoria de idade (dividido entre crianças, adultos e informações ausentes), e no caso das crianças, o estado civil de suas mães. No período colonial, a Igreja constituía-se em uma peça fundamental na sociedade, cujos procedimentos de casamentos, batismos e óbitos tornavam-se obrigatórios para quem fizesse parte da esfera política, administrativa e social do Império Português, como forma de se enquadrar no modelo social imposto. Foi com o desenvolvimento da demografia histórica a partir de 1950, e com a utilização dos registros de casamentos, óbitos e batizados, que o estudo das famílias e outras áreas se consolidaram, incluindo os estudos da família escrava no Brasil (FARIA, 1997). Há décadas, diferentes autores têm dedicado-se às análises voltadas para a participação dos negros e indígenas na formação da sociedade brasileira. Quanto aos primeiros, destacam-se, nos trabalhos desenvolvidos nas últimas décadas, abordagens historiográficas que pretendem romper com a ideia de “coisificação” do negro, e compreendem essa camada da sociedade colonial por um viés diferenciado, ou seja, como agentes sociais, como é o caso de Stuart Schwartz (1988), Robert Slenes (1999) e Sheila de Castro Faria (1998), que focaram em pesquisas que permitissem perceber a participação dos negros enquanto sujeitos históricos, constituidores de famílias. Outros estudos têm focado nas diferentes etnias, mostrando a complexidade das relações dos escravos de origem africana e seu estabelecimento no Brasil, bem como suas estratégias de sobrevivência e ascensão a partir dos registros de batismos e das relações de compadrio (SOARES, 2000 e 2010; KÜHN, 2015). Nesta perspectiva, serão apresentados os resultados dessa pesquisa para o Rio Grande, capitania cujo estudo sobre a escravidão tem sido prejudicado por duas razões: por um lado, a dificuldade de fontes, e por outro, o discurso dos estudos clássicos produzidos na primeira metade do século XX, ao afirmar que, pelo fato de a região não ter tido economia exportadora, não teria feito uso de escravos de forma maciça, não sendo necessários estudos mais elaborados por parte dos historiadores (ROCHA POMBO, 1922; LYRA, 1998 [1922]; CASCUDO, 1955). Discordando dessa visão, este trabalho procurar mostrar que a capitania do Rio Grande, mesmo não tendo prioritariamente lavouras de grande extensão voltadas para a exportação, estava inserida em um contexto escravista, no qual, quando possível, para os conquistadores foi importante ter escravos, no sentido de se diferenciarem socialmente, uma vez que, na colônia, ser senhor de terras e escravos os distinguia na hierarquia social. As fontes analisadas foram os registros de batismos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, contemplando os aldeamentos e
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algumas capelas rurais do período de 1681 a 1714. Raros são os registros anteriores ao século XVIII. Entretanto, foram encontrados, no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), em Recife, duas partes do que uma vez deve ter composto um ou mais livros de registros de batismos da então capitania do Rio Grande. Infelizmente não foram encontrados registros de matrimônios e óbitos para o mesmo período. Mas esta documentação já possibilita a construção de indicadores demográficos, levando-se em consideração o contexto histórico da população a ser estudada. Para tratamento das informações, utilizou-se o software NACAOB, que tem permitido o desenvolvimento de estudos na área de Demografia Histórica, História da Família e História da População. A forma de funcionamento do software consiste na coleta e organização, por meio da inserção das informações referentes aos batismos, casamentos e óbitos – no caso deste artigo organizou-se as informações de batismos. O NACAOB permite que o pesquisador extraia tabelas contendo os nomes e principais informações de todos os indivíduos inseridos no banco de dados (SCOTT & SCOTT, 2006 e 2013).
O período da chamada Guerra dos Bárbaros e o povoamento do Rio Grande
A Guerra dos Bárbaros faz referência ao período em que houve um incremento no avanço dos sertões no interior das capitanias da Paraíba, Rio Grande e Ceará, havendo choques entre os desbravadores e os indígenas que habitavam a região. Essa ampliação no processo de colonização portuguesa nessa área ocorreu após a expulsão definitiva dos holandeses, em 1654. A partir dessa data, primeiramente o próprio litoral foi reorganizado, tendo as poucas instituições sido reintroduzidas, como as Câmaras e as tropas de ordenanças. O tema da Guerra dos Bárbaros foi importante para a história local, dado que Vicente Lemos (1912), ao investigar a atuação dos capitães-mores da capitania do Rio Grande, já destacou a importância desses agentes no enfrentando dos índios no interior. Seus estudos contribuíram para as análises das sínteses feitas em comemoração ao centenário da independência, escritas por Rocha Pombo (1922) e Tavares de Lyra 1998[1922]) e mais tarde o estudo de Luís da Câmara Cascudo (1955). Afonso d’Escragnolle Taunnay (1930), perseguindo o objetivo de valorizar a atuação dos paulistas na fundação da nação, também analisou a guerra dos bárbaros. Todas essas são perspectivas consideradas clássicas, nas quais se percebia a resistência indígena, em especial dos tapuias, como entrave à colonização. Somente no final do século XX novas perspectivas surgiram, sendo o primeiro estudo de Maria Idalina da Cruz Pires (1990), no qual tentou investigar os diferentes interesses dos grupos envolvidos na guerra. Já Pedro Puntoni (2000), em estudo de maior fôlego, abordou a Guerra dos Bárba-
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ros desde os primeiros entraves na Bahia, em meados do século XVII, até a Guerra do Açú, no Rio Grande, em fins do XVII perpassando ao início do XVIII, percebendo os embates entre os locais e as tropas de paulistas e seus diferentes ganhos. Ao se reiniciar o processo de colonização, após a expulsão dos holandeses, no caso do Rio Grande, a Câmara foi restabelecida e o capitão-mor da capitania retomou a distribuição de sesmarias na capitania, títulos de propriedade da terra do período colonial. Nas primeiras décadas, aproximadamente entre 1660 e 1670, foi priorizado o litoral (ALVEAL, 2013). Uma vez que os terrenos da faixa litorânea não eram tão propícios para a lavoura da cana-de-açúcar como os litorais das capitanias de Pernambuco e Paraíba, os moradores da capitania do Rio Grande acabaram por se especializar na lavoura de mandioca e na consequente produção de farinha, assim como na criação do gado. Apesar de a produção de farinha e outros gêneros para autoconsumo e a criação de gado terem sido as principais atividades econômicas da região, isso não significa a inexistência de lavouras de cana-de-açúcar. Houve um grande engenho, de Cunhaú, ao sul da capitania, que sempre teve participação relevante na produção do açúcar que era levado para o porto de Recife. Ademais, havia pequenas engenhocas que produziam rapadura e aguardente para o consumo local. A criação de gado, no entanto, tornou-se uma atividade que contribuiu para o avanço na ocupação das terras para além do litoral (DIAS, 2015). Cada vez mais vinham moradores de outras capitanias solicitando sesmarias com vistas à pecuária, inclusive famílias da açucarocracia de Olinda2, que procuravam diversificar seus negócios devido à crise do açúcar que passou a afetar esse grupo3. A partir de 1680, apesar de ter havido já um processo de aldeamento de grupos indígenas no litoral, como as aldeias de Guajiru e Guaraíras4, havendo uma tentativa, principalmente por parte de missionários, de inserir esses grupos na sociedade colonial, vários outros grupos de índios, conhecidos pela categoria genérica de tapuias5, não ficaram contentes com tal avanço. Assim, muitos ataques realizados pelos tapuias ao gado ou às próprias moradias desses desbravadores ocorreram, levando muitos a retornarem para o litoral. O governo local, tanto a Câmara da cidade do Natal, quanto o capitão-mor, responsável pela defesa da capitania, passou a pedir ajuda ao gover2 Tais famílias possuíam engenhos em várias localidades, mas controlavam o poder político de Olinda, principal Câmara das Capitanias do Norte. Com o incêndio de Olinda, ocasionado pelos holandeses, e a consequente degradação da Vila, vários senhores preferiram habitar em seus engenhos, mas continuaram controlando o poder na Câmara na segunda metade do século XVII, tentando fazer frente ao crescimento do poder dos comerciantes de Recife, que ainda não era vila, fato que ocorreria somente em 1711, após grandes embates como a Guerra dos Mascates (MELLO, 2003; 2007; 2008). 3 Estudo recente de Morais (2014) aborda a família Carneiro da Cunha, tradicional família açucareira de Pernambuco, que passou a pedir sesmarias e comprar terras nas capitanias do Ceará e do Rio Grande, e a participar da atividade da pecuária. 4 Os aldeamentos, realizados principalmente por missionários religiosos, foram importante instrumento da Coroa no sentido de permitir aos índios uma possibilidade de um mal menor do que a escravização (ALMEIDA, 2013). Para um estudo dos aldeamentos dos índios no Rio Grande, ver Lopes (2003). 5 Tapuia era o termo utilizado pelos índios Tupi, habitantes do litoral, para se referir às populações que habitavam as áreas longe do litoral. Constituíam-se de vários grupos étnicos. Os portugueses se apropriaram do termo para se referir aos índios do interior (LOPES, 2003). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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no geral, em Salvador. O próprio governo de Pernambuco e a Câmara de Olinda também acudiram os pedidos de socorro, levando a um embate entre o governador-geral, de um lado, e o governador de Pernambuco e capitão-mor do Rio Grande, de outro (ALVEAL e SILVA, 2012). O governador geral na Bahia decidiu enviar uma tropa, conhecida como Terço dos Paulistas, composta tanto por paulistas bem como por outras pessoas de diversas origens, inclusive mestiços e índios. Essa tropa chegou ao Rio Grande no ano de 1695 e, agindo de forma enérgica, travou confrontos violentos contra populações indígenas. O final da Guerra dos Bárbaros, nome que ficou consolidado na historiografia pela referência dos portugueses a esses grupos, aconteceu por volta do ano de 1720 (PUNTONI, 2000; SILVA, 2015). É nesse período conturbado de colonização do interior, entre 1680 e 1720, e da consolidação de algumas atividades econômicas, como a pecuária, a pescaria, a salineira e a pequena produção agrícola, com o uso da mão-de-obra escrava tanto de indígena quanto negra, que os dados demográficos serão analisados, a partir das seguintes hipóteses de trabalho: a) apesar de o Rio Grande não ter tido uma atividade econômica vinculada à exportação, não deixou de utilizar mão de obra escrava em outras atividades; b) embora o elemento indígena tenha sido utilizado como mão de obra escrava, muito em decorrência da própria Guerra dos Bárbaros, vários foram os escravos negros utilizados também como mão de obra, evidenciando que, mesmo não fazendo parte dos grandes lucros da economia açucareira, as famílias tinham cabedal para possuir escravos negros, considerados mais caros que os indígenas, inclusive alguns vindo diretamente da África, ou seja, negros não nascidos na América portuguesa; c) não houve o massacre ou a completa dizimação dos índios tão apontada pela chamada historiografia clássica, quanto por alguns estudos recentes, que salientam a violência da ação dos Paulistas na Guerra dos Bárbaros6. Em segundo lugar, os dados mostrarão que, apesar do estado conturbado de guerra, os moradores puderam: a) realizar o sacramento do batismo, tão importante no período colonial; b) indígenas e negros podiam se casar em frente à Igreja Católica, bem como batizar seus filhos.
Indicadores demográficos O conjunto de registros é composto por duas partes, não sendo certo se pertenciam a um mesmo livro ou a livros diferentes. É sabido que tal conjunto comporta registros de batismos da antiga 6 O grupo conhecido como os clássicos historiadores que escreveram sobre a história do Rio Grande do Norte é composto por Cascudo (1955), Lyra (2008 [1922]) e Pombo (1922). Além destes, o estudo de Puntoni (2000) corrobora para a ideia de extermínio completo dos indígenas. Assim, essa historiografia sinalizou para uma suposta extinção dos indígenas na capitania do Rio Grande. Estudos mais recentes como os de Macedo (2011) já demonstram que essa extinção não existiu.
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Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, da cidade de Natal7, na capitania do Rio Grande. Os registros totalizam 957 batismos entre os anos de 1688 e 1714. Deve-se levar em consideração que uma fração não estava inclusa nessa ”sociedade colonial” ainda em formação, sobretudo os índios tapuias, em que constam apenas os que foram aldeados, escravizados e batizados. Analisando-se de forma mais aprofundada quem eram esses batizandos, será observada a distribuição espacial dos batismos. O Gráfico 1 refere-se à distribuição do local do batismo da população total. É importante ressaltar que não foram contabilizados dois registros, o realizado em Camaratuba (PB), e um feito em casa. Houve casos de três escravos serem batizados no mesmo registro. Também ocorreram casos de gêmeos. Portanto, foram computados 944 registros com local de batismo, de um total de 957. Dos 957 batismos analisados, em 944 constavam informações de local de batismos e, destes, a maioria foi realizada na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação em Natal, totalizando 288 batismos, ou cerca de 31%. Em segundo lugar, há os batismos realizados na Capela de Santo Antônio, atual São Gonçalo do Amarante (total de 176 registros, correspondendo a 19%). Em terceiro lugar, destaca-se a aldeia de Mipibú, atual São José de Mipibú (138 registros, ou cerca de 15%), seguido pela Capela de São Gonçalo do Potengi (72 registros, ou 8%) e a aldeia de Guajirú, atual Extremoz (70 registros, cerca de 7,5%)8. Destaca-se que o número de registros que não constavam o local de batismo ou estava ilegível é de 99, correspondendo a 10,5%. Gráfico 1 – Local de batismo, população total da Capitania do Rio Grande, 1681-1714. Desconhecido
95
Capela de Nossa Senhora do Desterro
2
Capela de Goianinha (Atual Goianinha)
3
Capela de Ceará-Mirim (Atual Ceará-Mirim)
4
Oratório de Jundia
8
Capela de Cunhaú (Atual Canguaretama)
[VALOR]
Aldeia das Guaraíras (Atual Arês)
57
Aldeia de Guajirú (Atual Extremoz)
70
Capela de São Gonçalo do Potengi
72
Aldeia de Mipibú (Atual São José de Mipibú)
138
Capela de Santo Antônio (Atual S. Gonçalo do Amarante)
176
Natal
288
0 50 100 150 200 250 300 350
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
7 Esta foi a única freguesia da capitania até o ano de 1726, com a fundação da freguesia do Assú, um dos palcos da Guerra dos Bárbaros, consolidando o avanço dos conquistadores no sertão com a criação dessa freguesia bem ao interior. 8 Luís da Câmara Cascudo (1968), em seu livro Nomes da Terra, apresenta a correspondência dos nomes atuais, bem como o significado dos nomes das várias localidades. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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A distribuição dos batismos realizados na Capitania do Rio Grande neste período representa um pouco da localização geográfica onde esses batismos eram realizados. Percebe-se que Natal, por ser o núcleo de povoamento mais antigo, ser a capital da capitania e abrigar grande parte da população, possui grande número de batismos realizados. Mas os aldeamentos indígenas também se destacaram, evidenciando sua grande importância neste período inicial de formação da sociedade. Apesar de nem todos os batizandos nessas aldeias serem indígenas, a sociedade colonial da capitania do Rio Grande construiu-se em torno dessas aldeias9. O Gráfico 2 expressa como a sociedade estava dividida por condição jurídica entre pessoas livres e escravos. Gráfico 2 – Condição jurídica da população na Capitania do Rio Grande, 1681-1714.
ESCRAVOS (342)
LIVRES (615)
36% 64%
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
Para a produção do Gráfico 2, foram considerados 957 registros de batismos. Desse total, 64% ou 615 pessoas eram livres, e 36% escravos, tanto negros quanto indígenas, correspondendo a 342 batizandos. Conforme os resultados, pode-se ressaltar alguns aspectos da sociedade colonial ainda em formação no Rio Grande. O principal é que a maioria da população era composta de pessoas consideradas livres, corroborando o fato de que a escravidão foi menor do que em outras áreas. Portanto, havia uma economia que não motivava a busca incessante por escravos, culminando em números superiores da população livre em relação à escrava. 9 Costa (2015) mostra, em sua dissertação, como nos registros de alguns aldeamentos destacava-se muito mais o batismo de não indígenas do que o de indígenas.
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A economia da capitania do Rio Grande não comportava atividades voltadas para a grande lavoura exportadora, portanto, não utilizou muito a mão de obra escrava. Mas, ainda assim, os escravos estavam presentes no processo de construção da sociedade colonial local, sendo 36% de batizandos, correspondendo ao número de 342 de crianças ou adultos que estavam na condição de escravos quando foram submetidos ao sacramento do batismo –bem mais de ¼ da população submetida aos padrões eclesiásticos. Durante muito tempo, na historiografia do Rio Grande do Norte (ROCHA POMBO, 1922; LYRA, 2008 [1922], CASCUDO, 1955), acreditou-se que os escravos negros e índios eram tão poucos que não se constituiriam em uma parcela significativa a ser considerada. No entanto, como se verifica nos Gráficos 1 e 2, a parcela de 36% de escravos na população é significativa. Mesmo que não cheguem à metade da população batizada, não é possível ignorar esse segmento da participação da sociedade. Os dados indicam que os escravos estavam se inserindo nessa sociedade em formação, participando, inclusive dos rituais de sacramentos da Igreja Católica à época. Ademais, se 36% da população batizada era escrava, mesmo que não tenha sido a base da mão de obra, ensejando outras relações de trabalho, ainda assim é um número considerável e, portanto, pode-se falar que a sociedade da capitania do Rio Grande era escravista e agia de modo semelhante às outras regiões em que a escravidão era mais preponderante. Conhecido como a sociedade colonial estava dividida por meio da condição jurídica, torna-se importante conhecer também o sexo e a razão de sexo dos indivíduos batizados, conforme pode ser verificado na Tabela 1. A divisão foi feita por categorias de livres (615), os escravos negros (271) e os escravos indígenas (71), que juntos totalizam 957 batismos. Tabela 1 – Sexo e Razão de Sexo na Capitania do Rio Grande, 1681-1714. Categoria
Sexo
Razão de Sexo
Masculino
%
Feminino
%
Livres
314
51
301
49
104,3
Escravos negros
143
53
128
47
111,7
Escravos indígenas
32
45
39
55
82,1
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
A razão de sexo expressa a relação quantitativa entre os sexos. Quando a razão de sexo é igual a 100, o número de homens e mulheres se equivale, estando em equilíbrio “perfeito”. Se está abaixo de 100, há predominância de mulheres na população e, acima de 100, predominância de homens, mostrando certo desequilíbrio, isto é, quanto maior a discrepância entre eles, maior o desequilíbrio entre os sexos, podendo acarretar consequências demográficas. O indicador é Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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influenciado por taxas de migração e de mortalidade diferenciadas por sexo e idade (SHRYOCK & SIEGEL, 1976; CERQUEIRA & GIVISIEZ, 2004). Para a população de pessoas livres, a razão de sexo demonstrou um quase equilíbrio de 104,3, com um leve predomínio de homens na população. De acordo com o Gráfico 6, mostrado mais adiante, a maioria dos indivíduos batizados era de crianças, e a diferença entre os sexos nessa idade não era tão grande, visto que nasciam tanto homens como mulheres de forma quase igual. Geralmente, em populações em que há predominância do sexo feminino, houve sobremortalidade masculina, sobretudo nas idades jovens e adultas, decorrentes da alta incidência de óbitos por causas violentas. Tal como pode ser o caso da razão de sexo da população escrava indígena, que apresentou uma razão de sexo de 82,1, indicando uma predominância de mulheres escravas na população. Um dos motivos para esse desequilíbrio seria a participação da população indígena na Guerra dos Bárbaros, o que teria reduzido o número de índios do sexo masculino, que entraram em combate direto com os colonizadores. Essa diferença entre os sexos corrobora a questão de os homens indígenas terem sido o maior número de vítimas da Guerra dos Bárbaros. As mulheres e crianças que sobreviveram aos combates tornaram-se escravas; já os homens adultos acabaram perecendo, lutando até o fim contra o destino que, muito provavelmente ,seria o das indígenas escravizadas, ou mesmo mortos deliberadamente para não possibilitar a fecundidade entre esses grupos étnicos (TORRES-LONDOÑO,1999). Outro aspecto a ser destacado é que os escravos indígenas foram provenientes desses embates e, provavelmente, foram aprisionados e vendidos localmente a preços inferiores do que os negros escravizados. Ou mesmo aqueles, os chamados conquistadores, que lutaram contra os indígenas, acabaram por retê-los como seus prisioneiros, transformando-os em escravos como espólio de guerra (MONTEIRO, 1994; LOPES, 2003; OLIVEIRA, 2004; Hemming, 2007). Em relação à razão de sexo de 111,7 de escravos negros, a predominância de homens na população poderia ser explicada pela preferência do sexo masculino para mão de obra econômica, apesar de a capitania do Rio Grande não ter sido cenário de grandes lavouras dedicadas a produtos de exportação, tendo se especializado mais na pecuária e na lavoura para autoconsumo, como a mandioca e a produção de farinha. Para aprofundar a análise da questão da escravidão, também foram elaborados gráficos de local de batismos. O Gráfico 3 refere-se aos locais predominantes de batismos da população escrava negra. Dos 261 registros de batismos, encontram-se os seguintes dados:
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Gráfico 3 – Local de batismo, população negra escrava na Capitania do Rio Grande, 1681-1714. Desconhecido
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Oratório de Jundia
3
Capela de Cunhaú (Atual Canguaretama)
6
Aldeia de Mipibú (Atual São José de Mipibú)
26
Aldeia Guarairas (Atual Arês)
19
Aldeia de Guajirú (Atual Extremoz)
21
Capela de São Gonçalo do Potengi
28
Capela de Santo Antônio (Atual S. Gonçalo do Amarante)
49
Natal
88
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
De acordo com os registros, a maioria dos batismos de população negra escrava ocorreu em Natal (88), seguido pela Capela de Santo Antônio do Potengi (49) e pela Capela de São Gonçalo do Potengi (28). Esses resultados podem indicar que as atividades que envolviam a mão de obra escrava giravam em torno desses locais, pelo menos, foi o que pôde ser filtrado pelos registros paroquiais. Apesar de também não ser uma cidade com alto grau de dinamicidade, parece ter exercido certa centralidade das ações da Igreja ou, talvez, diante das dificuldades da ida de clérigos aos locais mais remotos, é possível que houvesse um esforço de se ir até a capital para garantir o sacramento (COSTA, 2015). O batismo de escravos no período colonial era um meio de enquadrar essas pessoas, por meio da religião, no modelo social existente, especialmente através da adoção de um nome cristão, embora no sentido econômico e social mantivessem-se as diferenças. Os escravos vindos diretamente da África tinham os seus nomes mudados durante o batismo instituído pela Igreja Católica, fator de integração simbólica do gentio escravizado (SOARES, 2010, p. 81). Alguns nomes eram mudados já nos portos da África. Conforme as Ordenações Filipinas, o proprietário era obrigado a realizar o batismo do gentio logo após a compra, tendo prazo de seis meses para cumprir essa obrigação. Em caso de denúncia do não cumprimento, poderia haver a perda da propriedade. Até 1707, o escravo era considerado adulto com 10 anos, mas com as Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, passou a sete anos. O escravo, considerado adulto, deveria ser levado ao vigário da freguesia, para ser batizado dentre os seis meses (CONSTITUIÇÕES DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1853 [1707]; SOARES, 2017). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Com relação aos indígenas, esses poderiam ser aprisionados somente por meio da guerra justa, justificativa que foi utilizada no momento da Guerra dos Bárbaros (PERRONE-MOISÉS, 1992). Apesar de a guerra ser mais entendida como uma reação dos índios à entrada cada vez mais ao interior dos conquistadores, para esses o entendimento era de que eles estavam sendo atacados, justificando a matança ou aprisionamento dos grupos tapuias que viviam nos sertões da capitania (PIRES, 1990). Gráfico 4 – Local de batismo, população escrava indígena na Capitania do Rio Grande, 1681-1714
Desconhecido Oratório de Jundiaí Aldeia de Mipibú (Atual São José de Mipibú) Aldeia de Guajirú (Atual Extremoz) Capela de São Gonçalo do Potengi Capela de Santo Antônio (Atual S. Gonçalo do Amarante Natal 0
5
10 15 20 25
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
À medida que os conquistadores avançavam em terras nas quais os Janduís, Icós, Cariri, Canindé, Paiacú, Panatis, Tarariús, entre outros, denominados genericamente de tapuias, tinham suas áreas de deslocamento, os confrontos aumentavam, uma vez que se viam ameaçados (LOPES, 2003). O Gráfico 4 diz respeito aos locais de batismos da população escrava indígena. Os batismos da população escrava indígena ocorreram predominantemente na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação em Natal (20), seguido pela Capela de Santo Antônio (18) e pela Capela de São Gonçalo do Potengi (9). São poucos os registros de batismos de população escravizada indígena. Na história colonial do Brasil e também do Rio Grande, percebe-se que os indígenas também foram escravizados no início da colonização, mas a preferência recaiu, conforme o tempo, sobre a população negra. O levantamento do número de batismos por ano permite analisar a sazonalidade de ocorrência do registro dos eventos vitais na Capitania do Rio Grande, conforme pode ser verificado no Gráfico 5 para a população de escravos negros e indígenas.
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Gráfico 5 – Batismos por ano dos registros de escravos na Capitania do Rio Grande, 1681-1714.
Legenda: D = desconhecido.
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
O número de batismos da população escrava negra variou ao longo dos anos considerados. Da década de 1680 para a de 1690, a média de batismos por ano quase dobra, e a partir desse momento apresentou uma média de 10 a 14 em 1692, 1698, 1699, e entre 1702 e 1706. Apesar de algumas variações, pode-se perceber o ano de 1692 como data indicativa de uma consolidação do avanço sobre o interior da capitania, aumentando a potencialidade econômica da região, com o aumento do uso da mão de obra escrava. O ponto mais alto foi de 18 batismos em 1712, um período que já indica o domínio dos conquistadores no interior e de maior dinâmica na economia, o que permitiu a compra desses escravos. Os anos de 1706 a 1711, com números mais baixos, podem indicar anos de instabilidade econômica, e ressalta-se que. ainda nesse período. ocorriam os embates com os tapuias. O número total de batismos de escravos negros que constava informação do ano foi de 261 de um total de 271 registros. Cabe observar que o número de registros anuais é bastante baixo, caso se compare com outras regiões, como, por exemplo, a Bahia (SILVA JÚNIOR, 2016), mas é tão baixo quanto de outra região considerada periférica, como a Colônia do Sacramento nas décadas de 1730 e 1740 (KÜHN, 2015). Já o número de batismos por ano de escravos indígenas foi mais baixo ainda: pouco variou entre 1 e 6, e chegou a 12 batismos em 1710, provavelmente resultado de embates no sertão do Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Açu. O total geral foi de 67 registros em que constavam informações de anos, de um total de 71 registros. Percebe-se que nem em todos os registros constavam o ano do batismo. Claramente, esses dados estão sujeitos a problemas de enumeração, sobretudo, os erros de subenumeração, quando os levantamentos dos dados estão distantes do que foi a realidade, deixaram de ser registrados por diversos motivos ou foram registrados de forma errada. No entanto, apesar dos problemas, a existência rara desses dados permite pensar um pouco sobre alguns aspectos demográficos da época. Passando-se a analisar somente os escravos que foram declarados enquanto provenientes da África, pode-se perceber, no Gráfico 6, o local de procedência desses escravos. Antes de passar-se aos números, é importante alertar que as denominações étnicas registradas nos batismos não necessariamente podem corresponder aos locais de fato da origem do escravo na África. Entretanto, como se discutirá adiante, em diálogo com a bibliografia especializada sobre o tráfico atlântico, acredita-se que as nomenclaturas utilizadas nos registros paroquiais analisados estejam de certa maneira corretos. No caso do Rio Grande, para o período entre 1681 e 1714 foram encontrados os seguintes dados: Gráfico 6 – Local de procedência dos escravos de origem africana na Capitania do Rio Grande, 1681-1714.
Gentio de Arda (6)
Gentio de Guiné (19)
24%
76%
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
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Dos 271 registros de escravos negros analisados, somente em 25 constam informações de locais de procedência do continente africano. Provavelmente, o restante de 246 registros era de escravos já nascidos no Brasil, mostrando um presumível crescimento endógeno, embora não se possa afirmar que isso ocorria na própria capitania do Rio Grande, ou era decorrente do aumento da oferta, no último quartel do século XVII, de escravos de Pernambuco e da Paraíba, ou mesmo da Bahia, que eram revendidos no Rio Grande. Lamentavelmente, a compreensão do funcionamento da rota do comércio de escravos entre os principais portos na América portuguesa e as regiões periféricas, como o Rio Grande, ainda é inexistente, e por essa razão foram utilizados trabalhos que mais se aproximam, geograficamente, da explicação das rotas do tráfico em relação ao espaço de estudo, como é o caso de Recife. Desses 25 registros, 76% eram provenientes do gentio de Guiné, e 24% do gentio de Arda. Primeira constatação a ser feita é como esses escravos chegavam ao Rio Grande ainda sem ser batizados, nem no porto de embarque no continente africano, nem no porto de chegada. Uma pergunta que no momento não pode ser respondida é: será que os proprietários do Rio Grande iam diretamente a Recife comprar os escravos, ou comerciantes de Pernambuco os levavam até Natal? Por trás dessa pergunta se coloca o questionamento se não havia o receio de o batismo não ser realizado no período que a legislação ordenava, pois corria-se o risco de perda da mercadoria, o que não era interessante nem para o comerciante nem para o senhor de escravos. Informação que interessa ao leitor é sobre a explicação de que escravos provenientes da Costa da Mina, justamente a região de onde vinham os escravos batizados do Rio Grande. Segundo Fábio Kühn (2015, p. 5), “estes escravos vindos da África Ocidental eram embarcados ainda ‘pagãos’, ao passo que os provenientes da região congo-angolana viriam já batizados”. De fato, no caso do Rio Grande, para esse período não existem africanos cuja procedência foi Angola, embora, mais para meados do século XVIII, apareçam alguns gentios da Angola nos registros sobreviventes10. Os ardas (ardras, aladas) eram aqueles exportados pelo Reino de Alada, sendo os principais portos de embarque Ofra e Jakin, também na Costa da Mina, conforme Silva Júnior (2016, p. 8-9). Ainda segundo este autor, o termo arda teria perdido força na documentação relativa à Bahia, enquanto o termo mina ter-se-ia popularizado já nas décadas iniciais do século XVIII . No caso do Rio Grande, relevante afirmar que também o termo arda desaparece na documentação paroquial existente, embora Helder Macedo (2013) tenha encontrado um registro para os casos do Seridó, freguesia de Santana, entre 1737 e 1800. Após essa série incompleta de batismos da 10 Como existem poucas series ao longo do século XVIII, tanto de batismo, quanto casamento e óbito, procurou-se trabalhar primeiramente com estes registros entre 1681 e 1714, cujo contexto é, ainda, de construção da capitania e da época da Guerra dos Bárbaros. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, entre 1681 e 1714, os primeiros registros são de matrimônio, a partir de 1727, e o nome arda não aparece mais, dando lugar apenas a minas e angolas. Já o termo mina acabava englobando de maneira geral os africanos oriundos da Costa da Mina, que seria o modo pelo qual os portugueses se referiam às antigas Costa do Ouro e Costa dos Escravos, região correspondente hoje ao território que vai de Gana até o sudoeste da Nigéria. Tanto ardas como minas eram preferidos nas negociações, uma vez que, comparados aos angolas, eram considerados mais robustos (SILVA JÚNIOR, 2016, p. 9-10). O comércio atlântico de escravos mostrava oscilações das procedências dos escravos africanos. Para a Bahia, Angola seria o local principal da exportação de escravos até o último quartel do século XVII, enquanto que, para a capitania do Rio de Janeiro, a África Centro Ocidental era o principal porto desde meados do século XVII, que se consolidou ao longo de todo o XVIII (SILVA JÚNIOR, 2016). Também Pernambuco, como a Bahia, teria recebido a maioria de escravos provenientes da Costa da Mina na primeira metade do século XVIII, começando a receber mais angolas nos anos de 1738, 1740, e 1742 em diante, embora ao longo do XVIII houvesse oscilações da região de procedência dos escravos desembarcados em Pernambuco (SILVA & ELTIS, 2008). Mas de certa forma, os dados do comércio atlântico de escravos de Bahia e Pernambuco coadunam com os números encontrados para o Rio Grande, quando, no período entre 1681 e 1714, entraram nessa capitania apenas escravos minas e ardas, provenientes da Costa da Mina. Apesar de discordar um pouco dos números levantados por Daniel Silva e David Eltis (2008), o historiador Gustavo Lopes (2012, p. 16) mostra o lento soerguimento da capitania de Pernambuco após a expulsão dos holandeses das Capitanias do Norte, sobretudo nas décadas de 1660 e 1670, assim como uma boa recuperação a partir de 1680, e considera o período entre 1694 e 1704 como de prosperidade econômica de Pernambuco. Este autor também defende que os traficantes de escravos que paravam na Costa da Mina eram provenientes de Lisboa e faziam a rota Lisboa-Costa da Mina-Pernambuco. Gustavo Lopes (2012) destaca o caso de dois governadores de Pernambuco, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, diretamente vinculados a interesses locais, e exemplos de como a economia açucareira utilizava mão de obra escrava, que foram nomeados governadores de Angola nos períodos de 1658-1661 e 1661-1666 respectivamente. Esse fato levou muitos angolas para o mercado de escravos de Pernambuco, apesar de esse fluxo não ter permanecido. Portanto, o mercado de escravos de Pernambuco não dependeu de Angola na segunda metade do século XVII e início do XVIII e, no caso, a Costa da Mina passou a ser o principal fornecedor de escravos. Os dados do Rio Grande confirmam essa informação, caso se leve em consideração
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que os escravos que chegaram ao Rio Grande eram provenientes do porto de Recife (LOPES, 2012, p. 18-21). Retornando aos dados dos 271 escravos negros, o Gráfico 7 informa como eram constituídas as relações familiares em torno do sistema escravocrata. Com relação ao número desses 271 escravos, os dados foram divididos entre crianças11, adultos e ausência de identificação. Gráfico 7 – Relação familiar I, escravos negros na Capitania do Rio Grande, 1681-1714.
Criança (190)
Adultos (59)
Ausentes (22)
8%
22%
70%
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
De 271 registros de batismos de escravos negros analisados, 70% (190) eram batismos de crianças, 22% de adultos (59) e 8% de ausentes (22). Esses resultados permitem pensar que a maioria dos batismos era de crianças, e indica que as mulheres escravas estavam reproduzindo, independente das condições impostas pela escravidão. Sobre isso, os próprios senhores incentivavam a reprodução de filhos, pois significava aumento da mão de obra (SLENES, 1999). Os adultos representavam 22% dos batismos, indicando que o comércio dos escravos provenientes do continente africano na região era existente nesse período e, mais importante, que as famílias do Rio Grande tinham cabedal para adquirir escravos negros, considerados mais caros que os indígenas (SCHWARTZ, 1988). 11 No documento não está escrito que se trata de crianças e não é estabelecida a idade. Mas se pressupôs que fossem batismos de crianças ao analisar a data de batismo e a condição de ”filha ou filho” presente no documento, uma vez que, nas Ordenações Filipinas (Livro V, capítulo 99), ficava estabelecido que todos deveriam ser batizados em no máximo um mês após os senhores terem sua posse, e deveriam ter no mínimo 10 anos. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia diminuíram essa idade para sete anos, como informado anterioremente. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Já com relação às 190 crianças escravas negras, os seguintes apontamentos podem ser feitos, com base nos dados apresentados no Gráfico 8. De 190 registros de batismos de crianças escravas negrae analisados, 78% (144) eram filhos (as) de mães solteiras, e 22% (40) com mãe e pai no registro, mas não necessariamente casados perante à Igreja Católica. Entre os dados apontados, é relevante o número de mães escravas negras solteiras que constam nas fontes: 144, correspondendo a 78% dos registros. Gráfico 8 – Relação familiar II, crianças de escravos negros na Capitania do Rio Grande, 1681-1714
Filhos de mães solteiras (144)
Filhos de pais casados (40)
22%
70%
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados dos registros paroquiais de batismos da Freguesia de Natal, Rio Grande do Norte (IAHGP, 1681-1714).
Se comparado ao número de registros em que constavam o nome dos pais (40), correspondendo a 22% dos registros de batismos, tais dados evidenciam um maior número de filhos naturais entre a população negra escravizada. Esse número alto ocorria devido a inúmeros fatores: a) as mulheres negras podiam ter uniões estáveis com homens, mas tais uniões não eram reconhecidas pela Igreja; b) essas mulheres eram tidas como objeto de relações extraconjugais, sendo muitas vezes violentadas, e não tendo os filhos reconhecidos por seus pais. No entanto, o número de 40 batizados que tinham pai e mãe no registro mostra como, já na retomada do povoamento da capitania do Rio Grande, havia famílias escravas negras, corroborando para os apontamentos feitos por estudos recentes, que desmistificam a promiscuidade dos africanos (MATOSO, 2003 [1982]; SCHWARTZ, 1988; FARIA, 1998; SLENES, 1999). Dessa forma, apesar
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de não ter tido a economia de lavoura de exportação e, portanto, extensa escravaria, a família escrava negra estava presente na construção da sociedade colonial do Rio Grande, evidenciando mais uma vez seu caráter escravista e a escravidão como parte constitutiva dessa sociedade colonial. Estes dados reforçam que a escravidão fez-se presente desde o início da colonização da capitania do Rio Grande. Desde 1607, quando os jesuítas obtiveram uma sesmaria, já indicavam que traziam consigo quatro escravos negros da guiné, inaugurando a escravidão de origem africana nessa região. No final do século XVII, os dados apresentados mostraram como o instituto da escravidão prosseguiu.
Considerações finais
Tendo em vista os argumentos apresentados, algumas conclusões acerca da população presente no Rio Grande colonial, no contexto da Guerra dos Bárbaros, podem ser realizadas. No que se refere aos locais de batismos, a distribuição espacial desse sacramento, analisado nos registros, concentra-se na matriz da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, localizada na cidade de Natal, cuja condição de capital constituiu-se como um dos núcleos de povoamento mais antigos da capitania, junto com o engenho de Cunhaú e os aldeamentos indígenas. Todas essas localidades estavam no litoral, evidenciando uma concentração da população ao longo da costa. Em relação à condição jurídica, a maioria da população era composta de pessoas consideradas livres. No entanto, 36% da população era escrava, e mesmo que não tenha sido a base da mão de obra, ensejando outras relações de trabalho, ainda assim é um número considerável e, portanto, pode-se falar que a sociedade da capitania do Rio Grande era escravista e agia de modo semelhante às outras regiões nas quais a escravidão era mais preponderante. Dentre os escravizados negros, os trazidos da África vieram da região da Costa da Mina, que fazia parte do golfo da Guiné, e no período estudado foram usadas duas nomenclaturas: gentio de Arda e gentio da Guiné, não sendo identificados escravos pertencentes ao gentio de Angola. Sobre as relações familiares, chegou-se à constatação de que os dados relativos às mulheres mostram suas relações extraconjugais, ou mesmo o que poderiam ser os filhos resultados da Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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violência, uma vez que, ao engravidarem e darem à luz, seus filhos não tinham seus pais reconhecidos. Porém, o número de 40 batizados, filhos naturais, que tinham pai e mãe no registro, mostra também como, já na retomada do povoamento da capitania do Rio Grande, havia famílias escravas negras, uniões às vezes não reconhecidas pela Igreja. Desta forma, pode-se concluir que, apesar de o Rio Grande não ter tido uma atividade econômica vinculada à exportação, não deixou de utilizar mão de obra escrava em outras atividades. E, embora o elemento indígena tenha sido utilizado como mão de obra escrava, muito em decorrência da própria Guerra dos Bárbaros, muitos foram os negros escravizados utilizados também como força laboral compulsória, evidenciando que, mesmo não fazendo parte dos grandes lucros da economia açucareira, os moradores do Rio Grande tinham cabedal para possuir escravos negros, e mesmo alguns trazidos da África, considerados mais caros que os indígenas. Finalmente, o baixo percentual de indígenas batizados indica uma redução significativa da sua população, mas não a completa dizimação dos índios tão apontada pela chamada historiografia clássica (ROCHA POMBO, 1922; LYRA, 1998 [1922]; CASCUDO, 1955), quanto por alguns estudos recentes que salientam a violência da ação dos paulistas na Guerra dos Bárbaros (PUNTONI, 2000). Apesar da ação violenta dos conquistadores, muitas mulheres e crianças indígenas sobreviveram e foram escravizadas em decorrência da guerra. De modo geral, os dados apontam que as pessoas realizavam o sacramento do batismo, tão importante no período colonial, mesmo em um contexto de incertezas e violentos conflitos; e que os indígenas e negros escravizados poderiam se casar frente à Igreja Católica, bem como batizar seus filhos.
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De Vossa Mercê amigo, criado e muito obrigado: comércio, família e redes de clientela na capitania de Minas Gerais (c.1760 – c.1820) “Of Your Grace, friend servente and thank you”: trade, family and customer networks in the captaincy of Minas Gerais (c.1760 – c.1820) Paula Chaves Teixeira Pinto Universidade Federal de São João del Rei
Resumo
Abstract
Em 1789, na capitania de Minas Gerais, o movimento de membros das elites mineiras, que pretendia a Independência, foi denunciado por partícipes. A investigação sobre o crime iniciou em 1789, sendo abertas duas devassas. O episódio, reflexo das transformações socioeconômicas no Império Ultramarino português, deixou o comerciante português Manoel Pereira Alvim e seu sobrinho, Gervásio Pereira Alvim, numa situação delicada perante a movimentação de seus negócios: a prisão dos envolvidos no movimento implicou na desarticulação de suas redes de negócios. Dessa forma, uma nova realidade foi posta: a ausência de parceiros impôs ao comerciante e seu sobrinho um novo quadro, no qual novos laços de amizades e redes de clientela precisariam ser formados para salvaguardar a sobrevivência enquanto membros das elites e para assegurar a produção da riqueza e do poder. Por meio da microanálise, o objeto desta pesquisa é a formação das redes de clientela e de negócios em Minas Gerais entre os anos de 1760 e 1820, enfatizando as estratégias e adaptações dos sujeitos às novas conjunturas do Império Ultramarino português e do Brasil.
In 1789, in the captaincy of Minas Gerais, the movement of members of the mining elites, who wanted the Independence, was denounced by participants. The investigation into the crime began in 1789, when two proceedings were opened to investigate those involved. This episode signals the socioeconomic transformations in the Portuguese Overseas Empire and represents a new situation for the Portuguese merchant Manoel Pereira Alvim and his nephew, Gervásio Pereira Alvim, who lived a very tense situation in their business: the imprisonment of those involved in the movement implied the disarticulation of their networks. In this context, a new reality emerged: the absence of partners imposed on the merchant and his nephew a new framework in which new friendships and networks of clientele would need to be formed to safeguard their survival as members of the elites and to ensure the production of wealth and power. Therefore, through microanalyses, this article has as object of study the formation of clientele and business networks in Minas Gerais between the years 1760 and 1820, emphasizing the strategies and adaptations of the subjects to the new conjunctures of the Portuguese Overseas Empires and Brazil.
Palavras-chave: Comércio; Família; Redes de clientela; Estratégias.
Keywords: Trade; Family; Customer networks; Strategies.
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I n t r o d u ç ã o
A
no de 1789. Em 15 de março, em Minas Gerais, o governador Visconde de Barbacena ouvia atentamente à denúncia pronunciada pelo coronel Joaquim Silvério dos Reis acerca de uma conspiração que pretendia livrar a capitania do domínio de Portugal. A
delação por um partícipe do movimento pretendia tratamento especial vindo de Lisboa, principalmente no que se refere às suas dívidas com a Coroa portuguesa. O movimento, segundo Kenneth Maxwell (2009), tinha entre seus conspiradores uma variedade imensa de interesses, o que o tornava frágil, sobretudo pela facilidade de dissuasão. Assim, esfacelava-se à medida que o governador da capitania, secretamente, buscava apoio na autoridade do vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa, solicitando apoio militar e uma investigação discreta, haja vista a composição social dos envolvidos. O governador ainda se aproveitava das rivalidades intramembros e da ganância de alguns envolvidos para desarticular o que restava da tentativa de sublevação. Entre os meses de março e maio, a agitação tomou conta dos sentimentos do governador de Minas Gerais, o Visconde de Barbacena, do vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa, e dos inconfidentes (MAXWELL, 2009). A afoiteza do Conde de Resende, que havia acabado de assumir o cargo de vice-rei do Brasil, em abrir o inquérito para apurar a carta denúncia do governador da capitania mineira, estando em posse da denúncia formal feita pessoalmente pelo coronel Joaquim Silvério dos Reis a Luís de Vasconcelos e Sousa, precipitou os primeiros rumores na capital da Colônia. Assim, em 7 de maio de 1789, uma semana após a chegada do delator à capital colonial, foi aberta a primeira devassa para investigar o crime de alta traição. Naquele tempo, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, de alcunha Tiradentes, era alertado por amigos militares que estava sendo seguido na cidade. A prisão de Tiradentes se deu após nova traição de Silvério dos Reis, ao denunciar a localização do alferes. Tão logo se espalhou a notícia da prisão de Tiradentes, rapidamente, em Vila Rica, outros inconfidentes procuraram o Visconde de Barbacena para denunciar a sublevação em troca de proteção (MAXWELL, 2009). Em defesa dos interesses pessoais (FURTADO, 2002), a insatisfação que unia os conjurados se concentrava, principalmente, na mudança de orientação política acenada com a ascensão de
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Martinho de Melo e Castro como secretário do Estado no governo de Dona Maria I (MAXWELL, 2009). Na mudança de governo, o novo ministro rompeu com o projeto de Império implantado pelo Marquês de Pombal, afastando das atividades administrativas, com isso, diversos membros das elites regionais, incorporadas outrora pelo programa pombalino. Isso começou com a mudança do governo, através da chegada do Visconde de Barbacena, que trazia instruções específicas para a administração da capitania, tais como a cobrança das dívidas dos contratos em atraso e dos impostos referentes à extração mineral (MAXWELL, 2009). Frente a essas rupturas e mudanças políticas, o conflito de interesses que envolvia o poder metropolitano e os interesses privados de grupos das elites mineiras ficava latente. Em Vila Rica, um grupo de burocratas e profissionais liberais, apoiados por contratadores e fazendeiros de diversas regiões de Minas Gerais, arquitetou um audacioso plano de libertação da capitania do jugo português, que previa, inclusive, uma ação bélico-militar (MAXWELL, 2009; FURTADO, 2002). Para garantir o sucesso da luta, novos membros eram cooptados através dos vínculos familiares e de amizade, e das redes de clientela dos conjurados nas comarcas mineiras. Foi assim que o capitão José de Resende Costa tomou ciência e começou a participar da conjuração. A participação do capitão José de Resende Costa no movimento de 1789 foi devida às relações de amizade e vizinhança com o padre Carlos Correia de Toledo e Melo, vigário na Vila de São José, vizinho de casas de morada no Distrito da Lage e em São José, bem como através das relações sociais com o sargento-mor Luís Vaz de Toledo Piza, irmão do padre Carlos Toledo. Mesmo com participação pequena, o capitão José de Resende Costa e seu filho homônimo foram processados pela justiça de Sua Majestade pelos crimes de alta traição e lesa-majestade, e punidos com o degredo na África por 10 anos. Segundo os depoimentos prestados nas devassas abertas, o capitão José de Resende Costa e seu filho negaram participação no levante, embora afirmassem que sabiam algo sobre ele. O primeiro depoimento ocorreu em 28 de julho de 1789, na devassa aberta em Minas Gerais. Nele, tanto o capitão, quanto o filho negaram participação, reconhecendo, porém, que tinham notícias sobre a sublevação por ouvir dizer algumas pessoas. Todavia, ao ser citado como conhecedor do assunto pelo sargento-mor Luís Vaz de Toledo, na devassa aberta no Rio de Janeiro – mesmo sendo esclarecido que o capitão não servia aos propósitos dos conjurados, por estar velho, doente e trêmulo –, o capitão e o filho foram convidados pelas autoridades responsáveis pela apuração do crime a comparecer à capital colonial e dar novos esclarecimentos sobre seu envolvimento com o levante. Em 5 de junho de 1791, três anos após as primeiras explicações, afirmaram novamente que não tiveram participação no movimento, embora soubessem algo sobre ele. De acordo com o relato do capitão José de Resende Costa, ele soube do movimento ao procurar o padre Carlos Correia de Toledo, na Vila de São Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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José, para pedir que o vigário acompanhasse o jovem José de Resende Costa na viagem que faria para Portugal, pois pretendia matricular o filho na Universidade de Coimbra. Assim, lhe pediria o favor de, no reino, encaminhar o jovem Resende Costa para o estabelecimento. Em princípio, tudo estava acertado com o vigário. No entanto, durante o processo de organização da partida, o padre Carlos Toledo lhe mandara um recado avisando sobre a desistência da viagem. Passado um tempo, encontrando o capitão por acaso com o sargento-mor Luís Vaz de Toledo, em São José, o mesmo contou que o padre Carlos Toledo havia desistido da viagem por causa do levante na capitania. E disse, ainda, que caso obtivessem sucesso, o capitão não precisaria enviar o filho para estudar no reino, pois eles haviam de criar em Vila Rica uma universidade semelhante à de Coimbra. De certo, observando a falha cometida, uma vez que não enviara o filho para estudar em Coimbra, tentava se defender. O capitão, então, afirmou que desistira de enviar o filho para o reino porque, feitas as contas das despesas que teria, observou que sua casa não possuía os meios suficientes para arcar com a manutenção do jovem em Portugal. O depoente tentava argumentar que a sua decisão não tinha nada a ver com a crença no sucesso do movimento e a conseguinte criação de uma universidade em Minas Gerais e/ou com outros projetos dos conjurados (AN-Inconfidência Mineira, 1789). Apesar do esforço para convencer as autoridades da sua não participação e ausência de interesse no sucesso do movimento, a prisão de pai e filho foi decretada no dia 10 de abril de 1791, sendo eles recolhidos aos cárceres, no Rio de Janeiro, no dia 20 de maio daquele ano. Eles foram acusados de conhecerem os planos do levante e as pessoas envolvidas na sedição, e não os denunciarem às autoridades competentes. Foram sentenciados, em princípio, à morte natural na forca com direito a sepultamento, promulgada em abril de 1792. Porém, pela carta régia de 15 de outubro de 1790, mantida em segredo, eles tiveram suas penas comutadas para degredo em possessões portuguesas na África por 10 anos e sequestro de seus bens (MAXWELL, 2009; RODRIGUES, 2008). Nos cárceres, aguardando a partida para a África, o capitão José de Resende Costa e seu filho conheceram o tenente coronel Domingos de Abreu Vieira, comerciante e contratador dos dízimos, ex-sócio e muito amigo de Manoel Pereira Alvim, português, tio de Gervásio Pereira Alvim. O encontro desses sujeitos marcou o início de uma nova fase na vida deles: desterrados para África, exceto pelo jovem José de Resende Costa, eles não voltariam mais para as terras brasílicas e deixavam para trás parentes e amigos, além de uma longa trajetória de sucesso, com o acúmulo de riqueza, prestígio e poder.
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Já para os parentes e amigos que ficaram, os anos que se seguiram, desde as denúncias, apurações, prisões e condenações pelo crime de alta traição e lesa-majestade, foram de reviravoltas. As prisões implicaram na desarticulação dos seus modos de viver, das formas de produção da riqueza, das redes de comércio e de poder na capitania de Minas Gerais. Para eles, o efeito da delação do crime também virou de ponta cabeça suas vidas. O movimento alterou significativamente as relações familiares e de amizade há muito construídas. As redes de comércio e as cadeias de créditos mudaram e ainda acenaram para a emergência e o fortalecimento de outros sujeitos, membros de outros grupos de elites, bem como o aparecimento de novos conflitos e de novas alianças. Frente esse quadro, Manoel Pereira Alvim e Gervásio Pereira Alvim tiveram que se adaptar à nova realidade, criar novas estratégias, fortalecer os laços de parentesco e amizade, como também firmar novos laços para salvaguardar a sobrevivência enquanto membros das elites regionais e assegurar a produção da riqueza e do poder nas Minas do Ouro, em momento de reestruturação econômica, no qual a produção mercantil voltada para o mercado interno passava a ocupar o lugar de atividade nuclear (MAXWELL, 2009; ALMEIDA, 1994; CARRARA, 2007; FRAGOSO, 1990). Este artigo tem como objeto de estudo a formação das redes de clientela e de negócios na capitania de Minas Gerais entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, enfatizando as estratégias e adaptações dos sujeitos às novas conjunturas do Império Ultramarino de Portugal e do Brasil.
Manoel Pereira Alvim e Domingos de Abreu Vieira: contrato dos dízimos, comércio e redes de clientela nas Minas do Ouro (c.1760 - c.1790)
Em 20 de junho de 1792, o tenente coronel Domingos de Abreu Vieira escrevia a Manoel Pereira Alvim, do cárcere no Rio de Janeiro, devido à punição pela participação no movimento de 1789, na capitania de Minas Gerais. Às vésperas da partida para o degredo na África, o missivista passava clarezas ao amigo e ex-sócio acerca de sua partida e fazia os últimos acertos para seguir viagem, buscando mais recursos para que pudesse melhor enfrentar as necessidades em terras distantes devido à migração compulsória. Segundo o missivista, Meu amigo e sr. os dias passados escrevi a vm. respondendo lhe a sua e dizendo-lhe o que se me oferecia e os favores que havia recebido por recomendação de vm. do senhor Patrício José Lopes e a assistência, que me havia feito por ordem sua, e me havia dado três doblas, com que Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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tenho me remediado, e agora me deu mais 104$000 r.s que junto com as três doblas importa 142$400 rs. de que lhe passei de todas as quantias recibos para apresentar a vm., e a meu sobrinho o padre Luís Vieira de Abreu para seu desembolso. E tendo recebido de vm. tantos favores espero na sua bondade os continue para o diante, pois não me acho com mais recurso se não o q. de vm. tenho recebido. E vou muito mal arrumado para Angola para onde embarco amanhã, ou depois, onde espero da sua bondade todo o favor. E espero também faça aviso para Minas Novas. Recomendando isto mesmo; e o q. me remeterem seja por via de vm. ou do sobred.o Patrício José Lopes. Bem tenho espera de por meu sobrinho não só p.a ter o gosto de viver como p.a ir melhor arrumado; porém com a infelicidade de não poder suceder assim. Também lembro a vm. que me deu aqui o cap.am Antônio Jacinto Machado, que ainda está no desembolso de uma assistência, q.e aqui fez a aquele p.e que foi a Roma ordenar-se filho ou cunhado de meu comp.e Domingos Pinto e vm. me pediu p.a eu escrever ao m.mo para q. lhe assistisse. Lembre vm. ao d.o R.do para lhe remeter o q. o sobred.o recebeu. Também um maço de créditos que estavam em minhas caixas, nele estava um crd.o de vinte e tantos mil rs. que o d.o cap.am Machado me remeteu p.a cobrar do licenciado, ou boticário Pedro Teixr.a ... p.a crédito estava com uma cota por fora a quem pertencia, e q.m devia para verem, que não era mui; tenha vm. a bondade também de lhe ver isso, aqui seja embolsado o d.o. E mais nada digo por agora estar um barulho muito grande por razão do embarque que está propínquo. [...]Como vm. sabe as necessidades em que me poderei ver não lhe digo mais nada, e o que lhe houver de mais lho participarei de Angola, onde e em toda parte me achará prontíssimo as suas ordens. Desejo lhe saúde e felicidades que Deus continue como bem deseja quem é de vm. am.o e m.to seu venr.o e obrg.do cr.o Domingos de Abreu Vieira. Rio de Janeiro, 20 de junho de 1792 Na que escrevi a vm. lhe disse tinha recebido a barrinha que me fez vm. md.ar de 35$600 r. pelo crioulo Bernardo, do q.e já lhe dei os agradecim.to, e por esta o repito. Agora também acresce o dizer lhe q. também fico devendo ao cap.am Antônio Jacinto Machado 56$900r.s em dr.o que me deu e algumas coisas de que preciso, lhe passei um recibo da mesma quantia p.a vm. ou meu sobrinho o p.e Luís Vr.a satisfazer q.do puder. Abreu. (APM-CC-Manoel Pereira Alvim, 1792).
Contando apenas com o apoio de Manoel Pereira Alvim e o sobrinho, padre Luís Vieira de Abreu, no mundo fora da prisão, a carta do tenente coronel Domingos de Abreu Vieira revela as tensões vivenciadas pelos inconfidentes nos cárceres e as novas relações emergidas da condição de condenados da justiça metropolitana. Neste contexto, ressaltam-se os agradecimentos pela amizade de longa data, a parceria de sucesso nos negócios e a dinâmica dos créditos em Minas Gerais na segunda metade dos setecentos. Manoel Pereira Alvim e Domingos de Abreu Vieira, ao lado ainda de João de Souza Lisboa, atuaram em dois importantes contratos de cobrança de impostos na capitania mineira: o contra-
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to de dízimos e o contrato de entradas. Tais atividades, além dos avultados lucros que rendiam, constituíam importantes fontes de poder local e da reprodução social do prestígio entre os envolvidos, pois, ao instituir a forma de contratos para a arrecadação dos impostos, a Coroa portuguesa abriu importante espaço para a atuação econômica e administrativa dos negociantes coloniais (ARAÚJO, 2008; OLIVEIRA, 2009). Segundo Ângelo Alves Carrara (2011), os impostos dos dízimos e entradas eram os responsáveis pela quase totalidade da receita da Real Fazenda e, em Minas Gerais, eram os contratos de maior rendimento. Ao fazer a comparação com a arrematação do quinto do ouro, Carrara (2011, p. 34) observou: No triênio de 1762 a 1764 os dízimos renderam aos cofres da Provedoria da Real Fazenda de Minas 229:530$000, enquanto que as entradas atingiram a cifra de 587:040$000 réis, quase três vezes mais. A soma do valor arrecadado com estes dois tributos era suficiente para comprar 1952,15kg de ouro em barra. Os quintos renderam no mesmo período 2950,13kg de ouro.
Sem dúvidas, tanto o contrato de dízimo, que incidia sobre a produção agrícola e pastoril, quanto o direito de entradas, imposto cobrado sobre as mercadorias importadas pelos mineiros, constituíam interessantes fontes de rendas para os negociantes, reveladas através do volume captado pela Real Fazenda e pelo apreço ao sistema pelos comerciantes e suas articulações para a arrematação. Enfim, possuir um contrato fiscal significava para os arrematantes assumir “o encargo de arrecadar impostos, como mandatários privados, ou melhor, como comerciantes que intermediavam uma mercadoria – o tributo – entre os súditos e o rei, auferindo lucro, que era a diferença entre o preço fixo do contrato e o excedente arrecadado” (RODRIGUES, 2005, p. 125). Em suma, era uma atividade decerto lucrativa, embora imbuída de altos riscos1. Manoel Pereira Alvim atuou como administrador do contrato de entrada arrematado pela sociedade João de Souza Lisboa e Cia. entre os anos de 1762 e 1764. Na função, ele foi designado para atuar no registro de Matias Barbosa, no Caminho Novo, o mais importante e o de maior rendimento dos registros de entrada da capitania, em função de ser esse o principal caminho de acesso das mercadorias vindas do Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2009). No exercício da atividade, os administradores recebiam uma comissão de 8% sobre o rendimento total de seu registro, sendo, portanto, factível supor que Manoel auferiu bastante lucro no exercício da função. Como administrator, mês a mês Manoel deveria apresentar ao contratador uma lista dos rendimentos do período e, a cada ano, fazer um balanço do rendimento do posto (CARRARA, 2011). 1 Neste caso, chamamos atenção para a atuação de João Rodrigues de Macedo, contratador de entradas no triênio de 1776 a 1778, e de 1779 a 1781, nas capitanias de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e São Paulo. Apesar do sucesso alcançado pelo contrato anterior, arrematado por João de Souza Lisboa, João Rodrigues enfrentou diversos problemas na arrecadação e administração de seus contratos, amargando o fracasso do empreendimento. Sobre seu contrato, ver, em especial, Maxwell (2009), Rodrigues (2005) e Carrara (2011). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Já no contrato de dízimos, entre 1784 e 1789 Manoel Pereira Alvim exerceu a atividade ao lado do amigo Domingos de Abreu Vieira, com o qual mantinha uma sociedade. Manoel atuava como caixa da administração, respondendo pelo rendimento e cobrança dos dízimos. Diferentemente da cobrança das entradas, em que existiam postos de arrecadação pelos caminhos, o imposto de dízimos incidia sobre a produção agrícola e pastoril de toda a capitania voltada para a mercantilização. Para garantir a efetividade da cobrança e arrecadação, os administradores e seus auxiliares deveriam ter amplo conhecimento sobre a produção das localidades e seu vínculo com o mercado interno, a fim de salvaguardar seu quinhão, uma vez que as informações eram prestadas pelos próprios lavradores e fazendeiros (CARRARA, 2007). Consoante a isso, é bem provável que as atividades mercantis de Manoel pelo interior da capitania tenham contribuído para o sucesso das atividades fiscais, sobretudo para a cobrança dos dízimos. Manoel, muito antes de se envolver com os contratos, enveredou-se no ramo de abastecimento da capitania mineira. De Vila Rica, capital de Minas Gerais, seus negócios se estendiam para o norte, alcançando a Bahia, passando pela Vila do Serro Frio, e chegando, ao sul, até as capitanias de São Paulo e do Rio de Janeiro, tendo percorrido grande parte da comarca do Rio das Mortes. A extensão da rede mercantil, e o hábito muito difundido entre os mineiros de comprar a prazo com o intenso recurso ao crédito, impunham aos praticantes do comércio a necessidade de intermediários, pessoas da confiança que tinham como principal função facilitar os arranjos mercantis, mediando as relações entre comerciantes e fornecedores, entre credores e devedores2. Assim, por diversas vilas e pontos de passagens, Manoel mantinha os contatos que os auxiliavam na dinâmica da atividade mercantil. Esses homens, escolhidos entre o círculo de amizade e parentesco, deviam ser sujeitos dotados de credibilidade e serem parceiros fiéis e confiáveis. No exercício de suas funções, eles representavam os comerciantes na localidade em que residiam, negociavam em seus nomes, recebiam os seus créditos e mercadorias, faziam diversos tipos de acertos etc. Portanto, a obediência e a fidelidade às ordens passadas deveriam ser rigorosamente cumpridas e respeitadas. Para auxiliar nas atividades mercantis, Manoel convidou seus sobrinhos Gervásio Pereira Alvim e José Pereira Alvim a migrarem do reino para as terras mineiras, para atuarem ao seu lado. Muito provavelmente, com a mesma motivação do tio e de outros reinóis que rumaram para a América portuguesa, os irmãos deixaram para trás parentes e amigos, e vieram tentar a sorte em Minas. 2 Claudia Chaves (2001) e Raphael Santos (2006) problematizaram o intenso uso do crédito na economia mineira do século XVIII como resposta à falta de numerário circulante na capitania. Para Cláudia Chaves, fundamentada nos manuais e dicionários portugueses de uso no comércio, o crédito e a compra a prazo eram estratégias defendidas pelos contemporâneos como instrumentos necessários à construção da confiança e da credibilidade. Assim, as instruções apresentadas nestes documentos diziam que a boa circulação e a manutenção dos sujeitos no mercado dependiam da fé que o credor depositava no seu devedor, relembrando o ditado “ter crédito na praça é ter fé”. Corroborando essa interpretação, Raphael Freitas Santos, ao analisar a intensa atividade creditícia na capitania de Minas Gerais, também afirmou que o endividamento dos mineiros tinha, além das funções financeiras, a função social de construção da confiança e laços de clientela.
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No horizonte, estavam a riqueza e o prestígio já amealhados pelo tio, bem como a trajetória em curso nas Minas do Ouro. Provavelmente, o convite soara para os irmãos como possibilidade de ascensão social e riqueza, enquanto para Manoel, a presença de parentes, além de garantir a colaboração de pessoas de sua confiança para atuar no comércio, significava também a possibilidade de reconstrução dos laços familiares no Novo Mundo, rompendo com o estigma de desenraizado. O convite aos sobrinhos soa também como reprodução cotidiana das relações sociais hierarquizadas, fundamentadas pela economia moral do dom. Isto é, os sentimentos envolvidos no processo de convite a parentes e amigos, e a aceitação para vir atuar junto a eles nas atividades mercantis, criavam entre os sujeitos envolvidos uma relação clientelística e hierárquica, na qual os sentimentos de gratidão, benevolência e honra permeariam o trato cotidiano das relações sociais que interligavam esses sujeitos, reproduzindo a prática cotidiana da economia moral do dom3. O conceito economia moral do dom, apresentado por Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha (1998), auxilia na compreensão da formação das cadeias de poder informal e das redes de clientela como parte do exercício de dominação política, permitindo explorar, portanto, o exercício do poder no cotidiano das Minas setecentistas. Segundo os autores, a prática cotidiana da dominação envolvia um complexo jogo social de lealdades, honras, fidelidades e prestação de serviços, desenvolvido a partir de um intricado sistema político, e, às vezes, econômico, assentado na tríade dar, receber e restituir. O sistema, compondo o universo mental que moldava os modos de ver, pensar e agir dos sujeitos, criava uma lógica de ação que condicionava as representações e as práticas sociais. Nesse sentido, quando um sujeito tinha meios para beneficiar outro indivíduo, seu parceiro, era socialmente esperado que ele o fizesse. Em contrapartida, o beneficiário deveria honrar ao benfeitor com os laços de lealdade e fidelidade e nutrir sentimentos de estima e gratidão. Essa lógica social – sedimentada nas relações de clientela, na obrigação moral de dar e na tríade dar, receber e restituir – envolvia os sujeitos numa teia perpetuadora da economia de favores. Formava-se um ciclo que tendia a nunca se findar, “um contínuo reforço econômico e afectivo dos laços que uniam, no início, os atores, numa crescente espiral de poder, subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os actos de gratidão e serviços” (XAVIER & HESPANHA, 1998, p. 382). 3 A acerca da economia moral do dom, alguns estudos de sociologia e antropologia que discutiram os mecanismos de redistribuição e reciprocidade em sociedades pré-capitalistas contribuíram com a formação do conceito. Entre eles, destacamos o estudo sobre a dádiva, de Marcel Mauss (1988), que a partir da dialética “dádiva e contradávida”, delineou princípios fundamentais da organização e lógica socioeconômica em sociedades primitivas. A partir da interligação dos princípios “dar, receber e restituir”, as relações sociais eram estabilizadas, criando laços de energia espiritual entre os envolvidos, traduzido em comportamentos de obrigação. Ao focar nas formas de concessão da dádiva e na obrigação de retribuir presentes em sociedades primitivas, Mauss evidencia sua sobrevivência nas sociedades modernas, destacando, assim, princípios de uma ordem social e de transações econômicas. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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No mundo dos negócios, a formação e a consolidação de vínculos de amizades, lealdades, gratidão e prestação de serviço eram importantíssimas, pois os comerciantes necessitavam de pessoas de sua confiança para auxiliar no giro da mercancia (BRAUDEL, 1998; FURTADO, 1999). Assim, o convite a parentes e amigos para se estabelecerem no Novo Mundo proporcionava, a quem o recebia, a oportunidade de mudar de vida e tentar a sorte numa terra mais promissora (PÉREZ, 2010); enquanto que, para quem convidava, proporcionava a oportunidade de cumprir com os deveres morais (XAVIER & HESPANHA, 1998; FURTADO, 1999), oportunizando a ascensão social e a melhor fortuna, além de, pelo viés antropológico, permitir a recriação dos laços de parentesco num universo no qual a identificação dos sujeitos era firmada pela família e através das redes de clientela, amizade e vizinhança. É nesse sentido que percebemos as ações de Manoel e seus sobrinhos, pois além do primeiro poder contar com pessoas de confiança para auxiliar no giro do comércio, ao convidá-los Manoel encontrara também um meio de estender suas relações familiares no Novo Mundo, ampliando o rol de clientes e de parentes, o que atestaria sua verdade, intenções e honestidade, proporcionando-lhe melhor relacionamento e credibilidade, bem como melhor posicionamento social e hierárquico na sociedade mineira do final dos setecentos. Sem dúvidas, Manoel era um sujeito bem situado social e economicamente. As atividades exercidas nos contratos fiscais denotam sua inserção no restrito grupo de comerciantes e contratadores que compunha as elites mineiras da segunda metade do século XVIII. A ocupação do cargo de administrador do registro de entradas de Matias Barbosa, na vigência do contrato de João de Souza Lisboa, e a sociedade com Domingos de Abreu Vieira, no contrato dos dízimos, deixam pistas sobre o posicionamento de Manoel. Ele pertencia ao círculo de amizade e confiança de importantes contratadores, homens de cabedal e detentores de poder e prestígio, haja vista a especificidade da função desempenhada em ambos os contratos. Na função de administrador, era Manoel quem controlava as cobranças e a arrecadação. O sucesso dos contratos dependia do correto manejo da administração, do conhecimento das realidades locais e da existência de relações sociais e de amizades fundadas na honestidade e lealdade entre as partes envolvidas. E essas relações foram conquistadas por Manoel, sobretudo, entre os membros sediados em Vila Rica. Através de suas atividades mercantis, da existência de vínculos familiares e consanguíneos e do parentesco ritual, Manoel atuava ao lado de importantes sujeitos históricos que deixaram suas marcas na historiografia brasileira, em geral, e de Minas Gerais, em particular. Entre seu círculo de amigos e de negócios, figuraram o sócio Domingos de Abreu Vieira, José de Souza Lisboa e João Rodrigues de Macedo, importantes arrematadores de contratos coloniais em Minas Gerais; o fazendeiro Inácio Correia Pamplona, importante líder de expedições para os sertões mineiros em busca do gentio e quilombolas; o capitão José Álvares Maciel e o ouvidor geral Tomás Antônio Gonzaga. Posteriormen-
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te, suas relações se estenderam ao capitão José de Resende Costa e seu filho homônimo4, bem como a seus sobrinhos, Gervásio Pereira Alvim e José Pereira Alvim, então ricos fazendeiros na comarca do Rio das Mortes. Ao lado de homens com projeções na capitania de Minas Gerais, senhores de fortuna e prestígio, com amplo exercício do mando em suas regiões de morada e detentores de cargos administrativos importantes na colônia, Manoel Pereira Alvim traçou sua trajetória de sucesso, riqueza, fortuna, prestígio e poder numa das áreas mais ricas do Império Ultramarino português. O consórcio de atividades mercantis e fiscais, conjugadas ainda com atividades agrárias e minerais5 – modelo econômico adotado pelos homens ricos da capitania – marcou a trajetória de Manoel Pereira Alvim nas Minas. Além disso, Manoel também ocupara o cargo de juiz de Órfãos. O ápice desse caminho de sucesso, a sua projeção como homem bom e o coroamento da sua riqueza e prestígio, vieram entre os anos de 1778 e 1780, quando Manoel requereu e teve concedido o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, uma das mais distintas honrarias doadas pelo rei de Portugal a seus súditos (SILVA, 2005). Acreditamos que a trajetória de Manoel Pereira Alvim fora árdua de muito siso e pouco riso, pois não deveria ser nada fácil abandonar a família e os amigos para tentar a sorte em um lugar distante, correndo o risco de um naufrágio, das desordens e de poucas de relações sociais, numa sociedade em que os valores individuais não interessavam e as chances de mobilidade social eram restritas. Nesse sentido, embora a trajetória de Manoel possa ter sido semelhante à de vários portugueses que se aventuraram em terras coloniais, e acumularam riquezas através do consórcio de atividades mercantis com o exercício de cargos da administração colonial (FARIA, 1998; ALMEIDA, 2001), nem todos os migrantes tiveram a mesma sorte. Muitos se tornaram pequenos comerciantes, mascates e ajudantes em casas de comércio, quando contavam com o apoio e proteção de algum sujeito colonial. Outros permaneceram à míngua, tornaram-se vadios e foram vistos como desordeiros pela população e autoridades régias (SOUZA, 2005). Enfim, a migração para os sujeitos comuns, apesar de motivada pela melhoria na qualidade de vida, e pela busca por fortunas e riquezas, significava aventurar-se nos domínios coloniais do ultramar – algo bastante incerto. Podia dar certo, como aconteceu com alguns, cujas proezas foram recita4 Há que se destacar que o jovem José de Resende Costa retornou ao Brasil após cumprir a pena de degredo em África. Porém, antes de fazê-lo, passou por Portugal, onde ocupou cargos da administração lusitana, a saber no Erário de Lisboa, após ter participado da administração colonial das possessões na Ilha de Cabo Verde. Quando da chegada da Família Real e transmigração do aparato burocrático do Estado português para o Rio de Janeiro, José de Resende Costa veio a ocupar-se da administração joanina e, no decurso da reforma do Estado imperial português, desencadeado pela Revolução do Porto, em 1820, foi eleito deputado para representar Minas Gerais na Assembleia das Cortes de Lisboa. Durante o primeiro reinado, ele ainda ocupou uma das cadeiras do Primeiro Conselho de Estado de D. Pedro (PINTO, 2014). 5 Manoel Pereira Alvim possuía propriedades rurais em Borda do Campo, nas proximidades do Rio Jacaré, termo da Vila de São José, comarca do Rio das Mortes, e no sertão do Rio Doce, termo da Vila de Mariana, comarca de Vila Rica. E ainda foi detentor do posto de guarda-mor das águas minerais dos distritos de Carijós, em 1778 (PINTO, 2014). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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das nas aldeias e vilas de Portugal, inflamando o imaginário metropolitano acerca das riquezas do Novo Mundo, mas poderia se tornar um pesadelo, como fora para outros, cujas histórias não foram noticiadas no Velho Mundo. E isso não era exclusivo da América portuguesa. As histórias de sucesso e infortúnio também se repetiam na vizinha América hispânica (PÉREZ, 2010). A esse infortúnio, Manoel Pereira Alvim correu sério risco quando seu espaço social foi seriamente atacado com a delação de Joaquim Silvério dos Reis e a deflagração do infame intento das elites mineiras em 1789. A prisão do amigo e sócio Domingos de Abreu Vieira desarticulou parte dos negócios de Manoel, afetando a sua participação no comércio abastecedor da capitania. Embora Manoel tenha conseguido escapar da devassa instaurada para apurar as denúncias, a prisão de Domingos de Abreu não apenas pôs fim no sonho de maiores possibilidades de enriquecimento para ele e seus parceiros (caso a conjuração fosse bem sucedida e os laços coloniais fossem rompidos), mas, principalmente, afetou, sobremaneira, a sua rede de comércio de abastecimento e a sua dinâmica. Manoel, ao participar dos contratos, sobretudo do contrato de dízimos, beneficiava-se duplamente. Se por um lado se beneficiava com o rendimento da atividade fiscal, por outro, a participação na administração lhe proporcionava informações privilegiadas acerca dos mercados consumidores mineiros e dos núcleos de produção. Essas informações eram fundamentais no controle do comércio de abastecimento e na dinâmica do crédito nas Minas setecentistas, uma vez que, de posse de informações sobre as produções locais, os mercados consumidores e os fornecedores, Manoel tinha em mãos os instrumentos e conhecimentos necessários que, se não proviam, facilitavam o sucesso de suas atividades mercantis. Assim, a prisão de Domingos de Abreu Vieira representou uma ruptura na dinâmica mercantil. Em função da punição recebida, o contrato de dízimos foi suspenso e a cobrança dos débitos foi efetivada. A partir desse momento, o primeiro passo seria a mudança no comportamento da rede. E se, conforme ressaltou Fernand Braudel (1998), os desentendimentos e conflitos eram comuns no interior das redes e associações, eles não eram isentos de criar desconfortos sociais e transtornos econômicos. Porém, naquele momento, era preciso evitá-los. Com os sobrinhos, em especial, Manoel Pereira Alvim tratou de reforçar os laços. Já com outros sujeitos, antigos parceiros e amigos, Manoel, com o que restara de sua influência, buscou beneficiar com algumas mercês e favores, fosse a conquista de um cargo administrativo, fosse a resolução de uma pendência judicial, fosse a intercessão de algum negócio6. A estratégia adotada era fortalecer laços com os antigos parceiros que escaparam 6 Como ações que visavam a reafirmação e o reforço dos vínculos por parte de Manoel Pereira Alvim, podemos citar a intercessão que ele fez em benefício do compadre Ignacio Antônio de Sousa na conquista do cargo de ajudante da escrivaninha em Matias Barbosa e, um ano depois, no empenho do Ouro Branco. Através das cartas trocadas, observou-se o reforço dos laços entre os envolvidos e a recriação de cadeias de amizades assimétricas. Ignácio, ao pedir a intervenção de Manoel, tinha como expectativa “lançar barro a parede” na aquisição do cargo. Por outro lado, o préstimo ao compadre favorecia o comerciante, e agora juiz dos Órfãos, na expansão e reforço de rede de comparsas nas Minas, seja nas atividades mercantis, seja nas ações judiciais (PINTO, 2014).
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à investigação e/ou não tiveram participação. E fora do círculo, com o grupo que ascendeu após a denúncia de Joaquim Silvério, ele buscou uma aproximação, a criação de novos laços de amizade e de negócios7. Nenhuma aliança seria negligenciada. Nem mesmo o amigo e ex-sócio Domingos foi abandonado. Como se observa pela carta do tenente coronel Domingo de Abreu Vieira, Manoel continuava prestando favores ao antigo amigo, principalmente para que seguisse viagem melhor arrumado. Aquele foi um momento de recriação dos laços e reposicionamento dos parceiros, enfim, outra interface da prática da economia moral do dom. De um lado, Manoel prestava serviços e favores ao antigo sócio, fazendo os acertos de negócios possíveis e oferecendo créditos para seguir para o degredo. Por outro lado, Domingos lhe oferecia serviços do lado oposto do Atlântico: de Angola, avisaria sobre as necessidades e mais informações acerca da cobrança de créditos. Talvez a intenção de ambos (e a possibilidade existia) era a reestruturação das redes de comércio em outras bases e espaços: “perdem um império a leste, constituem outro a oeste” (BRAUDEL, 1998, p. 139). Conforme pontuou Roquinaldo Ferreira (2008), para garantir a sobrevivência em domínios da África, os degredados adentraram as estruturas administrativas e militares em Angola e Cabo Verde, ganhando poder e prestígio, e ocupando o espaço de intermediários dos negócios entre essas regiões e o Brasil, galgando para si importantes postos e posições na economia africana e suas engrenagens no Império Ultramarino português. Muito provavelmente, isso acontecera ao tenente Domingos e outros punidos da Inconfidência Mineira, como o jovem José de Resende Costa8, uma vez que eram homens letrados, com experiências na administração colonial e nas atividades mercantis. Assim, em terras africanas, esses homens integraram as redes de comércio e/ou administrativas, e alguns reconstruíram os laços familiares. Pois, segundo Roquinaldo Ferreira (2008, p. 21), “a maioria dos brasileiros em Angola tinha ligações com o tráfico de cativos. Degredados, agentes de casas comerciais sediadas no Brasil e marinheiros não vacilavam em se aventurar pelos sertões angolanos em busca de bons negócios”. Seja como for, houve um esforço por parte dos desterrados para reconstruir seus meios de vida e se incluir na nova sociedade, que não lhe era tão estranha e fechada de oportunidades. Pelo contrário, como pontuou Luiz Felipe de Alencastro (2008), nos domínios lusos no Atlântico Sul formou-se uma matriz espacial específica, que unia bilateralmente brasileiros, angolanos e habitantes do Golfo da Guiné num mesmo projeto de reprodução econômica e social e, portanto, favorável à inclusão desses homens. Para finalizar esta seção, cabe ressaltar o último favor solicitado por Domingos de Abreu ao inveterado amigo Manoel Pereira Alvim antes da partida: que cuidasse da família do capitão José de Resende Costa, socorrendo-a e beneficiando-a no que fosse possível. O pedido, emergido 7 Cumpre destacar a tentativa de aproximação entre Manoel e seus sobrinhos com Ignácio Correia Pamplona (PINTO, 2014). 8 Ver nota de rodapé nº 4. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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das solidariedades forjadas nos cárceres, destinava-se ao sobrinho de Manoel, Gervásio Pereira Alvim, que acabara de casar com dona Francisca Cândida, filha do inconfidente Resende Costa, que numa estratégia ousada, ficara de posse de todos os bens do casal capitão José de Resende Costa e dona Ana Álvares Preto. Segundo o missivista, tanto o capitão, quanto o filho homônimo, apelavam para a amizade de longa data entre Domingos e Manoel, fazendo com que o tenente coronel reforçasse o pedido, afirmando: sei que vm. também tem tantos meios de poder beneficiar, e o seu maior desejo [de José de Resende Costa] seja de achar em vm. um pai e protetor a sua família, pelo favor com q. vm. tanto me honrou e honra lhe suplico, a trate e proteja, como ambos tanto desejam, o que sei alcançarão da sua bondade (APM-CC-Manoel Pereira Alvim, 1792).
O pedido do capitão José de Resende Costa, reforçado por Domingos, era reflexo da tensão que envolveu os inconfidentes, seus parentes e amigos. A migração forçada para a África, o sequestro dos bens, o abandono das famílias e a desarticulação dos negócios eram questões preocupantes para quem partia e para quem ficava. De ambos os lados, a superação, se não o abrandamento dos problemas advindos das punições pela participação na Inconfidência Mineira, exigia dos sujeitos envolvidos precauções e cuidados, reforço de alianças e busca de novos instrumentos que pudessem servir de apoio e proteção para todos. Isso porque as prisões dos inconfidentes e o degredo abriram espaço para a ascensão de outros grupos de elite no controle do poder e no exercício do mando, sendo apropriados à reprodução da riqueza e prestígio. Nesse sentido, os remanescentes deveriam tecer estratégias que assegurariam a reprodução material do grupo, seus status, prestígio e influência na política local, mesmo que em níveis mais modestos. Essas estratégias dependiam de arranjos bem feitos e cálculos bem projetados. Por isso, o apelo aos amigos que não foram indiciados e o reforço das alianças familiares.
José de Resende Costa e Gervásio Pereira Alvim: riqueza, comércio e reconstrução de redes de poder na comarca do Rio das Mortes (c. 1790-1820)
Em 3 de março de 1791, na capela da Lage, termo da Vila de São José del Rei, o português Gervásio Pereira Alvim e dona Francisca Cândida de Resende contraíram as primeiras núpcias. A cerimônia, celebrada pelo vigário Manoel Gomes de Souza, foi testemunhada pelo reverendo João Tomás Ribeiro Miranda e José Pereira Alvim, este irmão do noivo (AEMNSP-São José-Cas, 1791). O enlace celebrava a inserção de Gervásio Pereira Alvim no seio de uma família da elite da comarca do Rio das Mortes, capitania de Minas Gerais.
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O noivo era português, natural da região do Minho. Branco, letrado, com algum cabedal acumulado em função das atividades mercantis exercidas ao lado do tio Manoel Pereira Alvim, Gervásio preenchia qualidades úteis para se realizar o casamento e alcançar objetivos buscados ao lançar-se na aventura ultramarina. Já a noiva, dona Francisca Cândida, era filha legítima do capitão José de Resende Costa e dona Ana Álvares Preto. O casal, um dos primeiros ocupantes do Distrito da Lage, termo da Vila de São José, destacou-se pela posse de escravos, terra e prestígio no interior da comarca do Rio das Mortes. No Rol dos Confessados da Vila de São José, de 1795, o domicílio de dona Ana Álvares Preto, cabeça do casal, devido à migração forçada do marido, foi descrito por Maria Lúcia R. Chaves Teixeira (2006, p. 51) da seguinte maneira: O fogo contava com 50 pessoas e o marido ausente. Ana Álvares Preto encabeçava a posse de 29 escravos, que certamente a ela pertenciam. A seguir vinha um feitor livre solteiro e branco, possuindo um escravo. Logo após estavam listados dois casais de pardos forros como agregados, sendo que um desses casais de pardos forros possuía um escravo. Subsequentemente vinha outro pardo forro, porém solteiro. Após os pardos forros, vinham descritos como agregados o genro Gervásio Pereira de Alvim e sua mulher Francisca Cândida de Resende com a posse de 9 escravos. Encerrava a lista das pessoas no fogo um branco livre agregado.
Segundo Maria Lúcia R. Chaves Teixeira (2006), o fogo era o maior domicílio em número de pessoas no distrito da Lage, e no quarteirão do Mosquito, listado no Rol de Confessados da Vila de São José. O distrito da Lage teve sua ocupação e povoamento a partir da segunda metade dos setecentos, como parte do processo de expansão da economia de abastecimento e ocupação das áreas de fronteiras. Sua paisagem foi marcada pelas fazendas e por escravos ocupados na produção de gêneros alimentícios. Na historiografia, o distrito se destaca pela alta concentração de cativos ocupados nas lavouras e pela atividade pastoril destinada ao mercado interno. Para Teixeira (2006), os primeiros ocupantes das terras do distrito da Lage não eram pessoas despossuídas, pelo contrário: a ocupação foi feita por fazendeiros bem situados e relacionados, revelada pelo perfil demográfico da região, encontrado no Rol de Confessados de 1795. Naquele ano, o perfil demográfico do distrito foi marcado pelo maior número de cativos em relação à população livre: o distrito contava com 354 pessoas livres e 486 escravos, isto é, no total de 840 almas, 57,8% da população era cativa. Esses índices permaneceram na década de 1830. De acordo com as listas nominativas da província, de 1831 a 1833, e de 1838 a 1840, o percentual de cativos se manteve superior ao de homens livres, variando, aproximadamente, entre 58%, no primeiro período, e 56%, no segundo. De acordo com Teixeira (2006), o distrito da Lage, com sua alta concentração de mão de obra escrava na década de 1830, apresentou dados demográficos quase proporcionalmente inversos aos da comarca do Rio das Mortes, que, segundo Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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dados compilados por Maria do Carmo S. Martins (1990), apresentava as cifras de 61,4% de homens livres e 38,6% de escravos. Imersos no universo de forte apego à escravidão, o casamento entre o português Gervásio e dona Francisca Cândida foi uma aliança bem arquitetada. De um lado, o sonho do jovem português em busca de melhor fortuna nos domínios lusitanos na América, que o faria alcançar seu objetivo ao se inserir entre os melhores da terra, tornando-se um membro das elites mineiras na comarca do Rio das Mortes. Por outro lado, a família de dona Francisca Cândida tentava assegurar sua sobrevivência enquanto membro das elites, tentando evitar o confisco dos bens em função da prisão do capitão José de Resende Costa. A prisão do patriarca e do filho primogênito deixou a família, em especial as mulheres da casa, desprotegidas, sem a presença de um homem na fazenda por mais de dois anos, e com um problema muito sério: o crime de conjuração. Sendo sentenciados, os inconfidentes sofreram, como parte da punição, o confisco dos bens em nome da Coroa portuguesa. Em maio de 1791, o casal capitão José de Resende Costa e dona Ana Álvares Preto teve arrolado seus bens no processo de sequestro impetrado pela justiça colonial. O escrivão, em duas visitas que fizera a fazenda do capitão, registrou todos os bens de raiz, as cartas de créditos, as datas minerais, os escravos, os animais e os utensílios domésticos como parte do processo de confisco. De acordo com o auto de sequestro dos bens, foram apreendidos: morada de casas no arraial da Lage, a fazenda da Boa Vista, 31 escravos, cinco utensílios minerais, 245 datas de exploração mineral e dez créditos no valor total de 333$461 réis (RODRIGUES, 2008, p. 59-213). Enfim, a família, e em especial as mulheres da casa, se encontravam numa situação delicada demais. Com certeza, foi este o grande momento de Gervásio, se não para arranjar, para apressar seu casamento com dona Francisca Cândida. Assim, para salvaguardar a família e evitar o confisco, numa estratégia audaciosa, imbuída de muito risco, a maior parte dos bens do capitão foi transferida para o novo casal, Francisca Cândida e Gervásio. Aproveitando-se dos procedimentos legais do processo, que devia observar a meação dos bens entre os cônjuges, e do fato da parte sequestrada ser passível de se ajuizar ação de cobranças de dívidas contraídas pelo réu, a família abriu uma brecha para burlar o fisco, que foi muito bem aproveitada pelo capitão José de Resende Costa com seu cunhado e compadre, Severino Ribeiro, e seu novo genro, Gervásio. Após realizar o casamento entre Gervásio e Francisca Cândida, o capitão José de Resende Costa assinou o contrato de dote da noiva no total de 2.340$000 réis, distribuídos em oito escravos (cinco homens e três mulheres), oitenta cabeças de gado sortidos, trinta cabeças de éguas sortidas, a fazenda do Rio dos Bois, no curato de Passatempo, e 800$000 réis em dinheiro. Por meio desse documento, parte significativa do
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patrimônio do capitão não poderia ser confiscada, devido ao compromisso de dotação da filha (RODRIGUES, 2008, p. 241-242). Todavia, para assegurar o completo pagamento do dote e ainda reaver mais uma parcela dos bens do capitão, Gervásio, que havia se tornado fiel depositário dos bens do sogro, impetrou uma ação de libelo cível de cobrança de dívidas contra a Fazenda Real. Segundo os termos do libelo, o autor alegou que seu sogro, José de Resende Costa, era-lhe devedor da quantia de 1.172$856 réis originários do restante do dote e de dívidas que havia pagado em nome do capitão. Junto com esse processo, Severino Ribeiro, cunhado do capitão, também entrou com ação de libelo cível de cobrança de dívidas nos bens sequestrados do capitão, alegando ser-lhe o capitão devedor há muitos anos. Diante de tal situação e para saldar outras dívidas menores, que não foram arroladas, Gervásio procedeu à separação e a avaliação dos bens do capitão que estavam sob sua administração, para serem levados a leilão. No leilão, o arrematante dos bens foi o próprio fiel depositário, ou seja, Gervásio assumiu o compromisso de quitar as dívidas da casa (RODRIGUES, 2008). Em 1º de dezembro de 1804, na prestação de contas do depósito, Gervásio Pereira Alvim informou à justiça “que todos os bens de Resende Costa foram arrematados em várias execuções por dívidas que o casal devia” (RODRIGUES, 2005, p. 7). Enfim, através de uma estratégia bem articulada, Gervásio conseguiu a transferência legítima de todos os bens do inconfidente para seu domínio. Apesar do sucesso, a estratégia não deixava de preocupar pai e filho, presos no Rio de Janeiro, aguardando a partida para o degredo de 10 anos em possessões portuguesas em África. Isso ficou muito evidente no pedido de Domingos a Manoel em nome dos Resende Costa. Domingos solicitou ao velho amigo que cuidasse da família do capitão José de Resende Costa, pois o maior desejo dele era que na pessoa de Manoel e seu sobrinho, Gervásio, as mulheres encontrassem “um pai e protetor a sua família, pelo favor com que vm. tanto me honrou e honra lhe suplico, a trate e proteja, como ambos tanto desejam e que seu alcançarão sua bondade” (APM-CC-Manoel Pereira Alvim, 1792). Os desdobramentos da participação e punição do capitão José de Resende Costa e seu filho na sedição deixaram a família em uma situação delicada, e a transferência dos bens a Gervásio influenciaria na perpetuação da família enquanto membro da elite regional. Assim, a prisão, o casamento, muito provavelmente precipitado, e a transferência da maior parte dos bens para Gervásio justificam as preocupações do capitão e de seu filho. Ainda que o novo genro detivesse certas qualidades que o abonava como bom partido, Gervásio Pereira Alvim não deixava de ser um forasteiro, um migrante sem muitos laços de família na comarca do Rio das Mortes. Assim, entendemos o pedido do capitão e, devido às circunstâncias, a solidariedade emergida da posição de réus da justiça metropolitana, e o reforço do pedido de Domingos ao velho amigo Manoel. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Por sorte, para a família, tudo terminara bem. Gervásio não apenas se esforçara para reaver e salvaguardar o patrimônio da família, como também, com muito esforço, o trabalho árduo e a tessitura de alianças certas com outros sujeitos, soube ampliar a fortuna e o prestígio da família no interior da comarca do Rio das Mortes. E, nesses termos, o desejo do capitão foi alcançado. Gervásio foi um bom administrador de seus bens, soube ampliar o patrimônio da família, como também perpetuou o prestígio e poder de seus membros, podendo, portanto, ser considerado um bom marido e um bom genro. Após o casamento, Gervásio mudou para a fazenda Boa Vista, Distrito da Lage, termo da Vila de São José, para viver ao lado da esposa e seus familiares, de onde tocaria seus negócios. Através do consórcio de atividades agrárias, mercantis e posse de cargos da administração, o casal Gervásio e dona Francisca Cândida reproduziu a riqueza, o poder e o prestígio herdados. Na década de 1830, Gervásio, então capitão-mor, seria um dos homens mais ricos e importantes no Distrito da Lage, com atuação política e administrativa na câmara de São José e nas atividades de defesa militar (PINTO, 2014). Para alcançar a projeção, a criação de novas alianças e o reforço de antigas parcerias foi uma das estratégias empregadas. Quando do nascimento dos filhos, as alianças de compadrio foram tecidas com pessoas abastadas e no mesmo estrato hierárquico, mirando uma “aliança para cima” (BRUGGER, 2007). Dois comportamentos se destacaram. De um lado, houve o reforço das relações familiares com o firmamento de compadrio com Manoel Pereira Alvim, José Pereira Alvim e Antônio Pereira Alvim, estes parentes de Gervásio; e com dona Ana Álvares Preto e José de Resende Costa, filho, estes parentes de dona Francisca Cândida. Por outro lado, as alianças fora da parentela foram tecidas com alguns portugueses que migraram para Minas Gerais em busca de melhor fortuna. Todos os padrinhos localizados nos registros de batismo da Vila de São José eram sujeitos detentores de poder e prestígio, dimensionados pela posse de patentes da milícia, enquanto as madrinhas eram filhas de fazendeiros abastados na região9. Acerca dessas alianças, há que se considerar o esforço de reestruturação da rede mercantil por parte de Gervásio, no eixo que ligava o sul de Minas com a Corte do Rio de Janeiro. Embora Gervásio tivesse mergulhado no mundo agrário, e houvesse se tornado grande proprietário de escravos e terras, seu vínculo com as atividades mercantis não desapareceu. Entre os bens listados no seu inventário, em 1837, percebe-se a produção de açúcar, aguardente e mais gêneros alimentícios (milho e feijão, sobretudo), voltados para o mercado interno e a criação de animais (gado vacum), além de um considerável número de muares, principal meio de transporte de cargas pelo interior do Brasil naquele tempo. 9 As alianças fora da parentela foram firmadas com o Capitão da Guarda Manoel da Costa Maia e os alferes João Antônio de Campos e Custódio Gonçalves Martins; já as madrinhas foram donas Quitéria Umbelina Gomes Ferreira, Maria Rita, Francisca de Paula Morais e Hipólita Justiniana Peregrina (AEMNSP-São José-BAT).
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Assim, mesmo com o processo de desarticulação da rede de Manoel Pereira Alvim, da qual Gervásio fazia parte, depois da delação da Inconfidência Mineira os anos que seguiram foram de reconstrução. Em especial, desde as últimas décadas dos setecentos, a economia mineira passava por um processo de reestruturação, no qual a produção mercantil-escravista voltada para o mercado interno tornava-se o núcleo dinâmico (MAXWELL, 2009; LENHARO, 1993; ALMEIDA, 1994; CARRARA, 2007). Em 1808, a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro solidificou essa natureza da economia mineira, sobretudo na região da comarca do Rio das Mortes (LENHARO, 1993). Consoante a isso, pensamos que a extensão dos laços familiares, via relações de compadrio, e o parentesco ritual, principalmente com portugueses, envolviam também o fortalecimento da amizade entre os compadres e a consolidação de uma nova rede de comerciantes, que atuaria no circuito mercantil São José - São João del Rei - Rio de Janeiro. A consolidação desse grupo de comerciantes mineiros atuando no abastecimento da Corte necessitaria (e gestaria) ainda outras alianças, tais como o matrimônio dos filhos do casal Gervásio e dona Francisca Cândida. O casamento foi importante solidificador da posição social e econômica da família, como também na atuação, reiterada no tempo, no comércio interprovincial mineiro. Assim, os laços matrimoniais foram tecidos com pessoas do mesmo padrão de riqueza dentro do Distrito da Lage, bem como na região de Carrancas, outro distrito que se destacou na historiografia como grande concentrador de escravos empregados em atividades agrárias voltadas para o mercado interno no interior da comarca do Rio das Mortes (ANDRADE, 1996 e 2008; GRAÇA FILHO, 2002). A partir dos casamentos, ampliou-se a extensão das famílias e dos espaços de atuação econômica, desdobrando os negócios dos fazendeiros mineiros na Corte do Rio de Janeiro, e permitindo a atuação em novos ramos do comércio. Na figura do tenente Gervásio do Carmo, filho de Gervásio e dona Francisca Cândida, a família passaria a atuar no tráfico interno de escravos africanos para a comarca do Rio das Mortes. Na década de 1820, o tenente Gervásio do Carmo fora um dos mais importantes atravessadores de escravos africanos do Rio de Janeiro para a comarca do Rio das Mortes, província de Minas Gerais. Atuando no circuito dos termos das Vilas de São José e São João del Rei, entre os anos de 1822 e 1830, o tenente Gervásio do Carmo, no total de 15 despachos, transportou 167 escravos africanos para a região sul-mineira (IPEA-Fragoso-Guedes, 2000). Sem dúvidas, esses laços familiares tecidos pelo casal Gervásio e dona Francisca Cândida contribuíram bastante para a reconstrução dos vínculos mercantis com o Rio de Janeiro. Na década de 1830, com o falecimento de alguns membros, incluindo o português Gervásio, novos sujeitos foram recrutados no círculo familiar e de amizade do falecido Gervásio e seus novos parentes Francisco Machado de Azevedo e Joaquim Pinto de Góis e Lara. Aquela década, de acordo com Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 81-104, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Alcir Lenharo (1993), assistiu à ascensão política de vários fazendeiros-proprietários da comarca do Rio das Mortes, então identificada como o sul de Minas na praça de comércio do Rio de Janeiro. Nem mesmo o regresso conservador, em 1837, e a Revolta Liberal, de 1842, impediram o estabelecimento e atuação dos mineiros no comércio de abastecimento da Corte (LENHARO, 1993; TEIXEIRA, 2009; PINTO 2014). Nas décadas seguintes, 1840 e 1850, o eixo mercantil São José - São João del Rei - Rio de Janeiro ainda era bastante dinâmico, e o comércio abastecedor do Rio de Janeiro mantinha seu vigor e as potencialidades de enriquecimento. O grupo familiar-mercantil, formado décadas atrás, permanecia atuante no ramo, tendo alguns membros, acompanhando o movimento de entrada e estabelecimento de comerciantes mineiros na praça do comércio do Rio de Janeiro, firmado com casas de negócio na cidade carioca, a fim de evitar o atravessador e facilitar os arranjos entre as duas regiões. Os primeiros a se estabelecerem com casas mercantis foram José Bernardino, Joaquim Carlos Máximo Pereira, natural de São José (atual Tiradentes), e Francisco Eugênio de Azevedo, cunhado do tenente Gervásio do Carmo (PINTO, 2014). A partir desses comerciantes, vários fazendeiros, tropeiros e comerciantes mineiros e, sobretudo, Gervásio Pereira Alvim, este neto do português Gervásio e dona Francisca Cândida de Resende, puderam participar do comércio abastecedor do Rio de Janeiro a partir dos anos finais da década de 1840 até a década de 1880.
Considerações finais
Versando sobre a história das elites, os processos de inserção de migrantes portugueses nas estruturas da administração colonial e na economia mineira, bem como os mecanismos produtores da riqueza, buscamos contribuir com estudos sobre o viver no mundo colonial, destacando as estratégias tecidas pelos sujeitos que implicaram na reprodução da economia e sociedades pré-industriais. Assim, através da trajetória dos comerciantes portugueses Manoel Pereira Alvim e Gervásio Pereira Alvim, o artigo buscou iluminar os mecanismos de produção da riqueza nas Minas setecentistas, destacando a inserção dos migrantes nas engrenagens da economia ultramarina portuguesa em um momento de intensas transformações políticas e econômicas. Acometidos pela delação da Inconfidência Mineira, nossos personagens vivenciaram o desmantelamento
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da extensa rede mercantil da qual faziam parte, bem como a desestruturação da dinâmica dos negócios fundamentada no consórcio de atividades mercantis e fiscais. Tais episódios se tornaram reais possibilidades de infortúnio e má sorte, uma vez que desconfiguraram o modelo reprodução da riqueza (e do poder) nas Minas colonial, posto em prática por estes sujeitos. Diante das dificuldades enfrentadas, os portugueses Manoel e Gervásio tinham apenas uma saída se quisessem permanecer no rol de membro das elites, qual seja: a reconstrução de laços que possibilitassem o acesso aos instrumentos produtores da riqueza e poder. Assim, por meio do controle de cargos político-administrativos, das alianças de clientela e de poder criadas (e recriadas) por vínculos familiares e de amizade, os personagens desta história puderam reconstruir parte do circuito mercantil. Recriada em novas bases, a rede mercantil de Manoel Pereira Alvim foi redirecionada para a região mais ao sul da capitania (a comarca do Rio das Mortes) e teve, na descendência do português Gervásio Pereira Alvim, agora importante fazendeiro do sul de Minas, membro da elite regional, com altas patentes da milícia, os principais personagens da história que se estende até o final do Império. Cheio de revezes, desde falências até o estabelecimento de negociantes mineiros como homens de grosso trato na praça carioca, esse novo circuito será bastante dinâmico e permitirá o desdobramento dos negócios dos mineiros na praça carioca em meados dos oitocentos.
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A prestação de contas com a morte: um olhar sobre os testamentos e inventários post-mortem (nordeste paulista, séculos XVIII e XIX) Charges and obligations with death: a study on inventories and wills postmortem (northeast of São Paulo, 18th and 19th centuries) Lelio Luiz de Oliveira Universidade de São Paulo
Resumo Este artigo é resultado de um estudo sobre os comportamentos e estratégias dos indivíduos frente à morte, relatadas em testamentos e inventários post-mortem, bem como sobre os bens e valores deixados para custear os rituais, funerais e instituições religiosas, com a intenção de preservar a alma. A pesquisa comprova a permanência das atitudes humanas influenciadas pelos ditames religiosos relacionados à morte, e as tentativas de demonstração de piedade para com as pessoas próximas durante a vida, mesmo diante do processo de laicização da sociedade. Para a análise foram selecionados documentos que representam comportamentos semelhantes entre os moradores do Sertão do Rio Pardo, nordeste paulista, entre os anos de 1786 a 1858, período de efetiva ocupação populacional e dinamização das atividades econômicas do território voltadas para o abastecimento interno.
Palavras-chave: Preço da morte; Testamentos; Inventários post-mortem.
Abstract This article is the result of a study of the behaviors and strategies of individuals facing death reported in wills and postmortem inventories, as well as on the goods and values left to pay for rituals, funerals and religious institutions, with the intention of preserving the soul. The research proves the permanence of human attitudes influenced by religious dictates related to death, and attempts to demonstrate piety towards people close to them during life, even in the process of secularization of society. For the analysis, there were selected documents representing similar behaviors among residents of the Sertão do Rio Pardo, northeast of São Paulo, between the years of 1786 to 1858, period of effective population occupation and dynamization of the economic activities of the territory, focused on internal supply.
Keywords: Death price; Wills; Post-mortem inventories.
Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 105-122, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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eterminados documentos podem ser analisados pelo historiador visando diversas abordagens. É o caso dos testamentos e dos inventários post-mortem. Quanto aos testamentos, Philippe Ariès (2014) demonstra, para a Europa, o percurso da produ-
ção deste documento desde seu ressurgimento com um novo perfil no século XII até o século XVIII, período em que a Igreja impôs aos homens o encargo de testar. Vale ressaltar que, desde meados do século XVIII, o testamento foi ao mesmo tempo perdendo o sentido religioso e ganhando o contorno civil. Era em primeiro lugar um ato religioso, imposto pela Igreja, mesmo aos mais desprovidos. Considerando um sacramental, como a água benta, a Igreja impôs-lhe o uso, tornando-o obrigatório sob pena de excomunhão: aquele que morria sem testar não podia, em princípio, ser enterrado na Igreja nem no cemitério (ARIÈS, 2014, p. 250).
Gradativamente o testamento tornou-se um ato formal de “direito privado [...] como era na Antiguidade romana” (ARIÈS, 2014, p. 250), destinado a fazer partilhas e transmitir as heranças dos bens terrenos. Contudo, o ato de testar, mesmo adentrando ao século XIX, em muitos casos não deixa de envolver tanto aspectos religiosos quanto civis, sendo composto geralmente por duas partes: “as cláusulas pias em primeiro lugar e, em seguida, a distribuição da herança” (ARIÈS, 2014, p. 251). Para a produção do documento, recorria-se ao pároco ou ao notário por várias razões. A preocupação era formalizar, o máximo possível, a situação, buscando alguém que tivesse habilidade no trato de demonstrar verdadeiramente as últimas vontades, que tivesse autoridade para guardar os originais ou cópias, e que também fizesse cumprir os interesses do testador. Além, é claro, do analfabetismo disseminado, que induzia à necessidade de alguém que escrevesse pelos testados e, às vezes, até assinasse por ele a rogo. Todos os documentos têm suas limitações e seus perigos para o historiador. Muitos questionamentos já foram feitos no que tange a utilização dos testamentos para o resgate do passado em suas diversas nuances, bem como o possível esgotamento do uso desta fonte pelo historiador
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(RODRIGUES, 2015b, p. 17-49). Documentos bastante explorados, mesmo na academia brasileira, com o intuito de desvendar as “atitudes perante a morte” (GUEDES, 1986), que vão desde as vaidades (DAVES, 1998), os ritos fúnebres (REIS, 1991a, 1991b), os medos, os arrependimentos e os ajustes de contas com o divino (RODRIGUES & DILLMANN, 2013). De forma semelhante, os questionamentos podem ser direcionados ao inventário post-mortem (VALENTIM, MOTTA & COSTA, 2013, p. 139-162; COSTA, 2013; LOPES, 2015; ARAÚJO, 2001, p. 54-58), que: é o registro oficial do patrimônio deixado por pessoa falecida, do qual consta o tipo e o valor monetário dos bens acumulados ao longo da vida, bem como a lista de créditos (dívidas ativas) e débitos (dívidas passivas) pendentes. É o registro feito por autoridade pública e o documento tem valor para definir, em caráter final, o que caberá por partilha aos herdeiros, após honrados os débitos com o Estado e com credores particulares (MAGALHÃES & SILVA, 2002, p. 67).
No momento de arrolar e partilhar os bens do falecido, ou seja, de realizar o inventário, geralmente levava-se em conta os interesses dispostos nos testamentos. Entre eles, a separação dos valores para custear os encargos relativos aos funerais e ritos correlatos, que correspondia a uma fração apreciável do valor dos bens a serem transmitidos em herança. Contudo, em cada período histórico e em cada espaço geográfico, dependendo das atividades desenvolvidas pelos indivíduos, os documentos produzidos têm suas especificidades (mesmo levando em conta as normas jurídicas e as mentalidades que pairavam sobre amplas realidades como a Colônia e depois Império brasileiro). Exemplo disso é que, mesmo que os testamentos e os inventários tenham sido redigidos baseados no Direito Canônico e/ou nas Ordenações Filipinas (e demais normas, inclusive as tradições), e reproduzidos constantemente em suas formas, as singularidades são visíveis em seus conteúdos, dependendo especialmente da dinâmica econômica das localidades ou regiões (ÂNGELO, 2013; RODRIGUES, 2015a).
Comportamentos diante da morte
Para a realização deste estudo, foi delimitado o nordeste paulista nas décadas finais do século XVIII e a primeira metade do século XIX. A região encontra-se no interior da Colônia e depois Império brasileiro, confluência de caminhos oriundos de São Paulo de Piratininga em direção às minas do Centro-Oeste (Estrada dos Goyases), e da Picada de Goiás oriunda do Sul de Minas
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Gerais (Comarca do Rio das Mortes). Área inicialmente adentrada de forma rarefeita por paulistas, a região teve, no período em questão, ampla ocupação de migrantes mineiros, que se dedicavam à economia de abastecimento interno, capitaneada pela pecuária. Assim, o espaço delimitado nesta pesquisa passou por transformações demográficas, sendo ocupado por populações oriundas de várias regiões, transformando a economia basicamente de subsistência em atividades dinâmicas produtoras de alimentos destinados aos mercados internos de curta e longa distância (CHIACHIRI, 1986; OLIVEIRA, 1997; CUNHA, 2009; OLIVEIRA, 2013). Espaço específico que merece e justifica uma análise de fatias do comportamento humano, especialmente no período de tempo em que – segundo a historiografia – as preocupações com os registros que ditavam os trâmites, ritos e custos da morte eram (supostamente) cada vez menos especificados, denotando o processo contínuo de laicização da sociedade. Diante do exposto, os objetivos deste artigo são: conhecer a origem e o perfil dos testadores e inventariados, as transformações e continuidades das formas de declarar a relevância da fé católica, algumas razões que levaram a elaborar os testamentos, possíveis benesses concedidas aos herdeiros, os ritos prometidos e a parte material devida ao sagrado. Serviram de suporte a esta pesquisa testamentos e inventários post-mortem selecionados no Arquivo Histórico Municipal de Franca, interior de São Paulo. Ao vasculhar o acervo, percebe-se grande recorrência dos termos empregados nos testamentos e inventários do período, tanto sobre as causas pias, quanto sobre o patrimônio legado às instituições religiosas ou aos descendentes e aparentados. Desta forma, caso a opção metodológica fosse por um estudo seriado dos dados, resultaria em conclusões muito saturadas1. Assim, após a análise do acervo foram selecionados documentos representativos que dessem o devido suporte para o alcance dos objetivos propostos2. Entre os vários testadores, encontram-se os procedentes da Vila de São Paulo e os oriundos das Minas Gerais ou ainda seus descendentes, que permaneceram em torno da Freguesia e, depois, Vila Franca do Imperador, e de outras localidades na fronteira mineira. Também indivíduos ou sucessores que carregaram certos cabedais dos locais de origem, e mantiveram ou reproduziram seus recursos no contexto da economia de abastecimento na região, casando-se ou induzindo seus filhos a casarem-se entre famílias conhecidas, de mesma origem e detentora de certas posses (CUNHA, 2014, 2015a, 2015b, 2016). 1 Há um amplo debate exposto na obra de Guedes et al (2015) sobre as metodologias a serem aplicadas em trabalhos que utilizam documentos eclesiásticos e civis que são tema deste artigo, e sobre a questão da padronização dos termos utilizados e, inclusive, sobre os modelos utilizados por clérigos e tabeliães. 2 Em torno de ¼ dos testamentos estão ilegíveis ou carecem de um tratamento especial para a leitura completa. Os inventários estão em bom estado de conservação e têm a leitura mais facilitada. É necessário ressaltar que somente possuidores de bens de maior valor, especialmente imóveis e escravos, realizavam os inventários formalmente, sabendo-se que estes eram somente uma fração da sociedade.
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O primeiro testamento analisado é o de João José de Souza, então casado com Luciana Angélica do Nascimento, que era uma das filhas do Capitão Hipólito Antônio Pinheiro3. João era natural do Arrayal de Nossa Senhora da Piedade, Freguesia de Congonhas do Campo, bispado de Mariana, filho legítimo do Capitão Alexandre José de Souza e de Anna Angélica de Jesus, [este] falecido no mesmo Arrayal, morador do Termo da Villa Franca do Imperador (Arquivo Histórico Municipal de Franca. Testamentos, 1835)4.
O segundo documento aqui comentado é a testamentária de Ritta Angélica de Jesus, que foi cunhada de João José de Souza e irmã de Luciana Angélica do Nascimento, acima citados. Ritta era natural da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro do Desemboque, e foi casada com seu primo de primeiro grau, Anselmo Ferreira de Barcellos (ANTÔNIO, 1999; SILVA, 1999). Nos anos iniciais do seu casamento, habitou com o marido, ambos na condição de agregados, o domicílio de Hypólito Antônio Pinheiro (pai de Ritta e tio/sogro de Anselmo). No ano de 1829, o mesmo casal encontrava-se em domicílio próprio, no Termo de Franca. Nesta ocasião, Ritta Angélica tinha 37 anos e seu marido, Anselmo, estava com 57 anos e era negociante. Conforme a Lista Nominativa de 1829, no domicílio deles foi arrolada, ainda, uma criança como agregada, e mais 11 escravos (Arquivo do Estado de São Paulo – Listas Nominativas de Habitantes, Franca, 1829. 2ª Cia. de Ordenanças, fogo n.139). Ritta decidiu realizar seu testamento em 1855, quando tinha 63 anos de idade (AHMF-TEST, 1855b). O terceiro testamento, de 1855, foi o de Joaquim Antônio da Silva, casado com Margarida Antônia, com quem não teve filhos. Joaquim era “natural e baptizado na Freguesia da Vila de Baependy, do Bispado de Mariana, filho de Cristina Antunez do Prado, já falecida, estando presente [no momento do testamento] na Fazenda de Monde Video, Distrito de Santa Ritta do Paraiso” (AHMF-TEST-1855a). E, por fim, o quarto testamento é de Manoel Jozé A. Pereira, “casado à face da Igreja com Francisca Joaquim de Sales, ela filha de Pedro Martins Pacheco e Ana Felícia de Jesus, moradores na Província de Minas Gerais, de cujo matrimônio tive uma única filha, por nome Umbelina Roza de Nazareth ” (AHMF-TEST-1858). 3 O referido Capitão Hipólito Antônio Pinheiro é originário de São José do Rio das Mortes, sul da Capitania de Minas Gerais, cuja parentela espalhou-se pelo sertão do Rio Pardo. Cabe citar que a mãe de Hipólito deixou testamento datado de 1798, elaborado no Arraial do Rio do Peixe, freguesia de Congonhas do Campo, Termo de Queluz, Comarca de São João. Ana Rosa de Jesus, mãe de Hipólito, pediu em testamento “uma missa de corpo presente pela esmola de uma oitava de ouro e queimar uma vela de [...] libra e cada um (sacerdote) dirá missas nos oito dias (da morte) com esmola de ½ oitava de ouro”. Isso era mais ou menos 30$000 réis, que correspondia à terça do inventário dela (AHMF-TEST-1798; INV-1798). 4 A partir deste ponto, serão utilizadas as siglas AHMF para Arquivo Histórico Municipal de Franca, TEST para Testamentos e INV para Inventário post-mortem. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 105-122, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Apesar de algumas passagens dos testamentos parecerem de praxe, todos os testadores fizeram a questão de declarar a fé católica, ou seja “no fim da vida, o fiel confessa sua fé, reconhece os pecados e os resgata por um ato público, escrito ‘ad pias causas’” (ARIÈS, 2014, p. 250), conforme comprovam os exemplos a seguir: Declaro que professo a Religião Cathólica, Apostólica Romana, em cuja fé pretendo viver e morrer (AHMF-TEST-1855b). Como Christão Católico A. R. q. Sou, em a qual religião nasci e fui criado e educado, e em que me tenho conservado, e espero morrer (AHMF-TEST-1855a).
As razões para a tomada de decisão para registrar as últimas vontades formalmente eram, geralmente, em decorrência de estar adoentado ou em idade avançada, porém, com a ressalva de que estavam gozando de perfeito juízo e que era de vontade própria, como podemos observar: [...] estando gravemente enferma, porém em meu perfeito juízo e entendimento, desejando dipor dos meus poucos bens, que Deos me confiou, como é minha vontade, faço este meo testamento (AHMF-TEST-1855b). [...] estando em meo perfeito juízo, e entendimento por estar em avançada idade [...] considerando a morte, e que por isso devo dispor dos meos bens em ordem a salvar a minha alma faço o meu testamento (AHMF-TEST-1855a). [...] tendo mesmo deliberado a fazer meu testamento, faço de minha livre vontade, e em meu perfeito juízo, declaro minhas dispuzições (AHMF-TEST-1858).
As nomeações dos testamenteiros levavam em conta o cônjuge, parentes próximos, pessoas com determinado vínculo, como o sogro, por exemplo, ou pessoas de estrita confiança. Nomeyo em primeiro logar por minha testamentária e herdeira [...] minha mulher Luciana Angélica do Sacramento, em segundo o meu sogro, o Capitão Hipólito Antônio Pinheiro, em terceiro lugar, Manoel Ferreira de Menezes, queirão por serviço de Deos, por me fazer o favor ser meus testamenteiros e cumprir o que deixo determinado com livre geral administração dos meus bens (AHMF-TEST-1835). Nomeio meos testamenteiros em primeiro lugar o Sr. Manoel Honório de Campos, em segundo o Sr. Joaquim Rodrigues Nunes, aos quais concedo os poderes em direito necessários e o tempo de quatro annos para prestação de contas no Juízo competente (AHMF-TEST-1855b). Nomeio meos testamenteiros, em primeiro lugar o Sr. José do Carmo Gabriel, em segundo o Sr. José Manoel de Carvalho, em terceiro o meu liberto Estanislau Antônio, aos quaes e a cada um
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concedo todos os poderes em direito necessário, e ao que aceitar a administração desta minha testamentária [...] e o tempo de dois annos para a prestação das contas ao Juízo competente (AHMF-TEST-1855a).
Em alguns casos, são especificados bens a serem deixados para determinados herdeiros, estes citados por nome, parentesco, vínculo afetivo ou condição social, como no caso de ex-escravos beneficiados por Joaquim Antônio da Silva. Porém, não havia por parte de todos a preocupação de relatar todos os bens, talvez devido à ciência de que o procedimento seria feito posteriormente por ocasião da abertura e tramitação do inventário post-mortem. Nem mesmo os escravos deixados aos sucessores são em todos os casos nomeados. Ritta Angélica de Jesus, mesmo tendo sido casada, não teve filhos e declarou não ter herdeiros necessários, descendentes ou ascendentes, instituindo como herdeiros os cinco filhos legítimos do seu primeiro testamenteiro, Antônio Honório de Campos, nomeados como Anselmo, Maria José, Antônio e Ritta em partes iguais. Porém, ressaltou que estes receberiam suas devidas partes somente depois de satisfeitas todas suas vontades especificadas no testamento (AHMF-TEST-1855a). A mesma Ritta, então, especificou que deixava, separadamente, “ao menino Anselmo, filho legítimo de Manoel Honório de Campos e sua mulher Maria Ferreira, seis escravos, que são os seguintes: João da Crioula, José, Benedito e Verônica, Thiago Pardo e Clara (filha) de Eva Crioula”. E que deixava, também, para a afilhada Ritta (homônima da madrinha), filha do citado Manoel Honório, “um crioulinho de nome Anselmo, filho de Eva Crioula”. Para além disso, deixou para o referido primeiro testamenteiro, pais dos seus herdeiros, “as casas que possuia no Arraial de Santa Rita”, sem citar a quantidade, localização exata ou valor (AHMF-TEST-1855a). Por sua vez, Joaquim Antônio da Silva, viúvo, sem “herdeiros necessários descendentes ou ascendentes”, instituiu como recebedores das “benfeitorias, trastes de casa, ferramentas e de tudo o mais que se achar”, os escravos a serem “libertos e igualmente aos que forão libertados pela finada [...] mulher”. Porém, não esclareceu quantos cativos libertados receberiam os bens. A concessão aconteceria desde que fossem “satisfeitas as dívidas e disposições funerárias” (AHMF-TEST-1855a). O testador Manoel José A. Pereira não esclareceu seus bens, porém, nomeou sua única filha, Umbelina Roza de Nazareth, como universal herdeira, a quem deixou por escrito um rol de todos os bens que poderia tomar posse por ocasião de sua morte. Por garantia, deixou “em mãos do testamenteiro outra lista igual” (AHMF-TEST-1858). Como era comum entre os testadores, chegava a hora de alforriar alguns de seus escravos, de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 105-122, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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forma condicional ou incondicional, com as alegações necessárias (Cf. TEIXEIRA, 2014). Foi o que fez Ritta Angélica de Jesus quando declarou: deixo forras as minhas escravas Eva e Manoela pela boa conducta e fidelidade que digo com que me tem servido; e cedo a cada uma dellas a sua roda de fiar. Declaro, igualmente forro e livre, o filho ou filha que a escrava Eva der à luz antes ou depois do meu falecimento (AHMF-TEST-1855b).
De forma um tanto diferenciada, Manoel Jozé A. Pereira concedeu os seus escravos à sua única filha Umbelina. Não obstante, recomendou que os cativos deveriam ser libertados somente após o falecimento da herdeira, como exposto: que três escravos que tenho, a saber, Pedro, Francisca e Tereza, ficão sujeitos a lhe servirem somente em sua vida, e que os trate com caridade, e recomendo muito à minha filha que antes de sua morte tenha o cuidado de lhes ter passado suas Cartas de Alforria liberta, para que depois de sua morte lhes serem entregues, e disto já eles estão cientes (AHMF-TEST-1858).
Quanto aos custos da morte, declarados monetariamente ou não, as encomendações procuravam especificar as providências em relação à mortalha a ser utilizada por ocasião do velório e enterro, ao acompanhamento do corpo e às missas de corpo presente. Se membro de uma irmandade, o testador comumente pedia que seu corpo fosse envolvido no hábito solene (vestimenta) de sua irmandade. É o caso de João José de Souza, quando declarou que, sendo “irmão do Santíssimo Sacramento”, que o corpo fosse “envolto na mortalha [...] da dita irmandade, e sepultado na Matriz da Freguesia onde falecesse” (AHMF-TEST-1835). Ritta Angélica de Jesus, pediu com firmeza que o seu cadáver fosse vestido pelo “hábito de Nossa Senhora do Carmo” (AHMF-TEST-1855a). De forma semelhante, Manoel Jozé A. Pereira implorou ao testamenteiro que “logo que faleça e tenha de dar-se o corpo à sepultura [...] que seja envolto em um hábito da Ordem de São Francisco” (AHMF-TEST-1858). O acompanhamento do féretro deveria ser feito pelos padres responsáveis pelas paróquias que também deveriam rezar as missas de corpo presente ou demais liturgias, como anotado: (que meu corpo seja) acompanhado pelo Reverendo Pároco da dita Freguesia, com mais rigor que possível for, e offício de corpo presente com a missa (AHMF-TEST-1835). Acompanhado solenemente á sepultura pelo meo Rdo. Párocho e mais sacerdotes que no lugar se acharem, os quaes dirão Missa de corpo presente por minha alma (AHMF-TEST-1855). Declaro que na Freguesia donde eu morrer meu testamenteiro mandará dizer pela minha alma cinco missas de corpo presente (Idem).
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As solenidades deveriam ser normalmente cumpridas, porém, os testadores presavam pela simplicidade e distanciamento de qualquer arrogância por acasião da morte. O cadáver exposto aos olhos de todos, depositado sobre terra ou no esquife de alguma irmandade, era apenas envolto numa mortalha, que poderia ser um simples lençol branco, símbolo do total despojamento das riquezas terrenas, ou o hábito de uma ordem religiosa cuja regra se baseasse na humildade e pobreza. A utilização do caixão era rara (DURÃES, 2000, p. 299).
Ao procurar seguir os conselhos de simplicidade no momento do passamento, assim ditou Ritta Angélica de Jesus: “meu cadáver (será) acompanhado à sepultura solenemente, porém, sem pompa ou vaidade mundana” (AHMF-TEST-1855b). De forma bem detalhada, inclusive excluindo a missa de sétimo dia, pediu Manoel Jozé A. Pereira: que o esquife em for encerrado seja na maior simplicidade, sem galão algum nem de prata, e menos de ouro, e quando muito seja de lã preta, forro se necessário apenas de baeta, sendo conduzido o meu corpo em um carro coberto com esteiras sem signal ou designação alguma aparente, sendo conduzido depois ao último jazigo [...]. Declaro mais que hé minha vontade e quero, que para minha morte não hajão mais signais ou toque de sinos, senão os recomendados pelo rito da Igreja em tais circunstâncias, e somente as encomendações que a Igreja ordena, com toda simplicidade que só exige ato religioso [...] também hé minha vontade que no dia subsequente ao meu enterro que se diga uma missa para minha alma, pois sempre julguei que o grande misterioso sacrifício que encerra o acto da celebração da missa não era necessário multiplicar-se para resgatar nossas almas. Igualmente é minha vontade que se evite a cerimônia da missa do sétimo dia, porque a considero como, ou uma oucazião pungente de dôres inúteis, ou como uma forma de affectação que dá lugar a comentários impróprios de uma oucazião tão lúgubre e melancólica. Desejo que meu testamenteiro faça todos os esforços para que este acto do meu desaparecimento seja tão inapercebido como foi a minha vida; a que muito lhe recomendo, para que o verdadeiro dó só está nos corações sensíveis, e não nas exterioridades de representação estéril (AHMF-TEST-1858).
Para além das missas de corpo presente e de sétimo dia, há casos em que eram encomendadas muitas outras missas, inclusive para outras pessoas aparentadas, às vezes, especificando os custos. João José de Souza declarou que o “testamenteiro mandará dizer quarenta e duas missas pela minha alma, e fora a do meu funeral, na forma que ordeno”. E mais, “mandará dizer dez missas pelas almas dos meus pays, e, e as esmolas delas serão as costumeiras pela freguesia” (AHMF-TEST-1835). Os membros das irmandades geralmente deveriam pagar os chamados anuais, um determinado valor que era uma forma de manter o vínculo, participar dos ritos e ter benefícios como Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 105-122, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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as orações pela alma após a morte (FREITAS, 1991). As preocupações com as pendências ou possíveis dívidas em relação às irmandades eram frequentemente citadas. João José de Souza ressaltou que era membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento e também irmão da Santa Casa de Nossa Senhora das Dores: “cujas irmandades o testamento satisfará os annuais que por meu falecimento ficar devendo” (AHMF-TEST-1835).
Preços da morte
No entanto, além de certas concessões prometidas por ocasião do testamento, somam-se os custos que eram declarados em valores monetários. Ritta Angélica de Jesus especificou pagamentos no total de 70$000 réis, assim distribuídos: Deixo quarenta mil réis (40$000) para se distribuírem em esmolas no dia do meu funeral para os pobres, com preferência os mais necessitados, cuja distribuição será feita a arbítrio e por conselho do Reverendo Párocho do lugar. Deixo de esmola para as obras da Capela da Santa Ritta do Paraíso, trinta mil réis (30$000). Deixo de esmola ao menino Fortunato, filho do finado Manoel Fortunato, que o criei em minha casa por caridade, cinquenta mil réis (50$000). (AHMF-TEST-1855b).
João José de Souza também se procupava, naquele momento, com as obras das paróquias da Freguesia e com os pobres, cujo despreendimento totalizava 80$000 réis, da seguinte maneira: Declaro que de minha [...] se dará para as Obras de Nossa Senhora da Conceição desta Freguesia, cincoenta mil reys (50$000). Declaro que deixo vinte mil reys (20$000) para que meu testamenteiro reparta pelos pobres, doentes do mal de Lázaro desta Freguesia. Declaro que deixo dez mil reys (10$000) de esmolla para as obras de Nossa Senhora do Rosário. (AHMF-TEST-1835).
Por sua vez, Manoel Jozé A. Pereira, pediu para ser conduzido ao “último jazigo da sepultura pelos pobres que aparecerem, a quem meu testamenteiro dará a cada hum a esmola de $320 réis” (AHMF-TEST-1858). Com outra preocupação que não as obras pias, Joaquim Antônio da Silva, mesmo nomeando seus três testamenteiros visando garantir as formalidades, avisou por escrito que deixaria “o prêmio de trinta mil réis” (30$000) para aquele, entre os indicados, que aceitasse a administração do testamento (AHMF-TEST-1855a).
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A outra base documental pesquisada, que também indica os custos da morte, é a dos inventários post-mortem. Como exemplo, separou-se aqui o inventário aberto em 1786, por ocasião da morte de José Barbosa de Magalhães, marido de Maria Pires de Araújo (ou Cordeira). O processo foi aberto no denominado Sítio das Lages, no Caminhos dos Goyases, então pertencente à Vila de São José de Mogi Mirim, cuja jurisdição correspondia, inclusive, ao Sertão do Rio Pardo. A descrição dos bens e seus valores foram separados em rubricas, especificando os valores (Quadro 1): Quadro 1 – Inventário de José Barbosa de Magalhães (1786). Relação de Bens
Valores
%
Lançamento da prata, cobres e ferramentas
9$560
1,05
Cela, freio, lombilho e cangalha
6$420
0,70
Trastes de casa
18$120
1,98
Espingardas
20$000
2,19
Cavalos
18$000
1,98
Gado vacum e cabras
63$760
6,99
Oratório
$960
0,10
Escravos
528$000
57,86
Bens de Raiz
100$000
10,97
Dívidas Ativas (a receber)
147$880
16,20
Monte Mor ..............................................................................
912$450
100,00
Dívidas Passivas (a pagar)(*)
- 32$720
(3,58)
Monte Menor ...........................................................................
879$730
(96,41)
Custas
- 28$000
(3,06)
Total líquido ............................................................................
851$730
(93,34)
Meação (total líquido : 2)
425$825
Terça (valor da Meação : 3)
141$955
Tercinha (valor da Terça : 3) .................................................
47$318
Partível aos 7 filhos órfãos
378$547
Valor a cada filho herdeiro
54$078
↔
←
(*) 20$875 réis referente ao funeral / Valores em mil réis. Fonte: Elaborado pelo autor a partir do inventário de José Barbosa de Magalhães, de 1786 (AHMF).
O valor total dos bens de José Barbosa de Magalhães, somadas as Dívidas Ativas (a receber), totalizava 912$450 réis. Subtraídas as Dívidas Passivas (a pagar), chegava-se ao Monte Menor Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 105-122, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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de 879$730 réis. Deste, deveriam ser subtraídos os custos do processo, que neste caso foi de 28$000 réis, chegando-se ao Total Líquido de 851$703 réis. O valor correspondente ao Total Líquido foi dividido na razão de 50% para a viúva e os outros 50% para os sete filhos. Da parte dos filhos é que foi calculada a Terça (uma terça parte dos 50% dos filhos, neste caso), correspondendo ao valor de 141$955 réis, e daí calculou-se a Tercinha (que corresponde a um terço da Terça): 47$318 = 5,55% do total líquido, ou 11,11% da meação dos filhos. Cabe ressaltar que o cálculo da Terça somente foi feito para a obtenção da Tercinha, ou seja, este valor não foi subtraído do valor dos herdeiros ou percebido por terceiros. Dos 425$825 réis foi retirado a Tercinha de 47$318 réis (para atender as causas pias), resultando em 378$547 reís, o que significou, para cada herdeiro, a soma de 54$078 réis. Por fim, consta que: “Acharam mais, que da meação do Inventariado se tirou a Terça e desta a Tercinha para sufrágios de alma do Inventariado, a quantia de quarenta e sete mil trezentos e dezoito réis (47$318)” (AHMF-INV-1786). Contudo, o valor dos custos com o inventariado referente às questões religiosas não se resumiu à Tercinha. Entre as Dívidas Passivas (a pagar), foi declarado o valor de 20$875 réis (63,74% das dívidas), referente ao funeral, a saber: “devendo ao Reverendo Padre Francisco Bueno de Azevedo, de funeral e sepultura, conhecença [prestação ou tributo que se pagava aos padres] e outras miudezas sem crédito a quantia de vinte mil oitocentos e setenta e cinco réis (20$875)” (AHMF-INV-1786). Então, somados os valores das dívidas com o funeral de 20$875 réis e a Tercinha “destinada aos sufrágios da alma” de 47$318 réis, totalizava 68$193 réis ou 8,08% do patrimônio líquido do inventariado José Barbosa de Magalhães. À parte das dívidas vinculadas às questões religiosas, cabe ressaltar que o falecido ficou devendo ao Padre Francisco Bueno de Azevedo o valor de 3$365 réis referente ao “abono” em uma negociação. Também devia “ao Padre Frei de Pádua, religioso de São Francisco”, a quantia de 4$000 réis, porém, neste caso não houve a especificação da causa. A soma dos valores correspondia a 22,50% das dívidas anunciadas. Noutros termos, especificamente estas dívidas inscritas aos sacerdores não têm qualquer vínculo com os funerais ou demais orações: eram notadamente dívidas de negócios mundanos. Em 1788, antes do encerramento do inventário foi concedida vistas ao pároco que, por sua vez, emitiu a seguinte certidão: “Certifico que disse pela alma de José Barbosa de Magalhães duzentos e nove Missas que lhe pertencia de sua Tercinha da Esmola, [...] cujas missas me encomendou a Inventariante Dona Maria Pires Cordeira, mulher que foi do falecido” (AHMF-INV-1786). Neste caso, o tabelião cercou-se de garantias para comprovar o pagamento das dívidas e, ao mesmo tempo, o pároco comprovou a quitação da parte que cabia à Igreja.
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De acordo com a certidão emitida, o referido padre afirma ter rezado 228 missas na intenção do falecido, isso correspondendo à Tercinha da Esmola estabelecida no inventário (47$318 réis). Caso a correlação seja correta, talvez poderia ser possível realizar o cálculo chegando ao valor de $226 réis cada missa. Um alto preço se comparados aos valores pagos por missas aos abastados em Portugal na mesma época, que era por volta de “80 rs. cada uma” (DURÃES, 2000, p. 335). Preço alto mesmo se a comparação for feita com valores dos bens anotados no inventário, conforme o Quadro 2. Quadro 2 – Inventário(Exemplos de bens: Cangalha/Trastes de casa/Gado bovino). Uma cangalha velha e desarreada
$320
Um catre tecido de cipó em bom uso
$480
Um par de botas
$800
Um par de esporas
$640
Três vacas com cria
6$000
Fonte: Elaborado pelo autor a partir do inventário de José Barbosa de Magalhães, de 1786 (AHMF).
O inventário facilita a análise na medida em que são declarados valores dos bens e das concessões. Por exemplo, o valor de 68$193 réis, separado do patrimônio líquido de José Barbosa de Magalhães para o velório e sufrágio da alma, era superior ao valor do gado escriturado no inventário, que era de 63$193 réis, sendo a pecuária uma das principais fontes de sobrevivência no sertão. O mesmo valor (68$193 réis) também superava o preço de uma escrava de oito anos de idade, avaliada em 60$000 réis. Era também maior que todos os chamados trastes de casa e bens usados no trabalho cotidiano (cela, freio, lombilhos e cangalha), que valiam apenas 18$120 réis (AHMF-INV-1786). Há outros exemplos de inventariados que separaram valores bem maiores para as causas pias, porém, eram pessoas estabelecidas no entorno da Vila Franca do Imperador nas décadas iniciais do século XIX, quando a pecuária exercida na região tornara-se próspera e vinculada a outras áreas de São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Isso resultou em inventariados de maior porte, que sendo oriundos de Minas, tinham provavelmente chegado ao nordeste paulista com certo cabedal, muitas vezes agraciados com heranças dos seus antepassados. Um exemplo é o inventário de Josefa Gomes Moreira, em que constam as suas dívidas com as instituições religiosas, entre elas a “quantia de 57$670 devida ao vigário referente ao funeral, 25$000 por direito ao Coral da Arqui Confraria da Vila Franca, e 48$000, em dinheiro para o Coral da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto”. Os valores são bem superiores àqueles referentes ao outro inventário acima descrito. Porém, a finada Josefa possuía um patrimônio total avaliado Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 105-122, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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em 5:654$403 réis, e assim suas dívidas na rubrica causas pias totalizavam 130$670 réis, o que correspondia a 4,62 da meação5. Inclusive, parte desta dívida deveria retornar às suas origens mineiras, Ouro Preto (AHMF-INV-1830). Outro caso exemplar é o processo da inventariada Rosa Maria de Viterbo, cujos bens foram avaliados em 8:461$650 réis (Monte Mor), incluindo terras (bens de raiz), escravos, gado e bens pessoais. Possuía dívidas (passivas) a pagar no valor de 449$000 réis, resultando o Monte Menor em 8:012$650 réis, que deveria ser dividido entre o inventariante, seu marido Antônio Vieira Velho (50,0%), e os outros 50,0% aos seus nove filhos. Apesar da abastança, se comparados aos outros inventários da região nesta época, consta que deixou 10$000 réis, ou 0,25% do valor da meação6, para os destinos da alma, assim anotado: “Haverão maz os mesmos Juiz Partidores que da meação da falecida inventariada clamo de facto se tirava para o Abenturado pela alma da mesma, a quantia de dez mil reiz (10$000).” (AHMF-INV-1822).
Considerações finais
No contexto analisado, foi possível observar a confiança nos párocos para elaboração dos testamentos em detrimento aos escrivães. Os sacerdotes seguiam uma espécie de modelo sequencial ao elaborar os testamentos para exprimir as vontades dos testadores baseadas na fé católica. A prioridade era para os rituais desejados por ocasião da morte. Os testadores solicitavam que as regras fossem as de praxe e sóbrias. As solenidades deviam expor os vínculos que teve em vida com as irmandades, corais, Santas Casas e demais instituições religiosas, como suas atitudes de boa vontade. Havia a preocupação com a simplicidade dos ritos, mas a morte deveria ser notada entre os vivos com um exemplo de descanso e redenção. Os testadores em idade avançada ou adoentados declaravam a vontade de realizar o acerto de contas com as pessoas próximas, e pedir a caridade e a misericórdia divina, fazendo bom uso dos bens terrenos, aquinhoando os parentes e apadrinhados, e até escravos, sem nunca esquecer das esmolas do enterro e da salvação da alma. Escolhiam a dedo os testamenteiros de confiança, que deveriam fazer cumprir os mandamentos. De forma semelhante, os inventários post-mortem indicam, em um sentido mais quantitativo do que qualitativo, como os testamentos, as inquietações dos inventariados que, possuidores de poucos ou muitos bens, indicavam a transmissão de valores às instituições religiosas com a 5 Sem levar em consideração as custas do processo. 6 Idem.
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pretenção de resguadar a alma. Foi possível ainda notar que estes valores monetários proporcionais à riqueza foram declinantes no decorrer do tempo. Os documentos aqui selecionados indicam a continuidade da ocupação de mineiros e seus descendentes na região, que foram sujeitos da dinamização da economia do nordeste paulista, sem perder vínculos com suas áreas de origem, inclusive manifestando interesse em retornar alguns recursos para instituições religiosas de Minas Gerais, por ocasião da morte. No momento em que a idade ou as enfermidades representavam o peso da vida, a morte estabelecia o seu preço e a necessidade dos acertos de contas. Dependendo dos acertos, quando bem formalizados via testamentos e inventários, poderiam ser mais do que um ajuste com a vida, sendo até uma maneira de controle dos mortos sobre os vivos ao expressar suas vontades.
Referências
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O registro de batismo de ingênuos no Vale do Paraíba paulista (1871-1888)* The baptismal record of “ingênuos” in the Paraíba Valley of São Paulo (1871-1888) Agnaldo Valentin Universidade de São Paulo
Resumo
Abstract
Este artigo analisa 3.891 registros de batismos de filhos de escravas pertencentes a proprietários nas localidades de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras, todas situadas no Vale do Paraíba paulista, entre 1871 e 1888. A investigação retoma estudo anterior que objetivava a análise comparativa de localidades paulistas com inserção econômica distinta, e o evolver demográfico da população escrava nos derradeiros anos da escravidão brasileira, sob a ótica dos nascimentos ocorridos após a promulgação da Lei do Ventre Livre. Privilegio no presente estudo localidades adjuntas como estratégia para minimizar a diversidade produtiva e seguimos o recorte metodológico já aplicado: a partir dos dados disponíveis para a população escrava, acompanho variáveis como a legitimidade, o intervalo temporal entre o nascimento e o registro e a condição social dos padrinhos. Nossos resultados sugerem a existência de um padrão comum a todas as localidades estudadas.
This paper discusses 3,891 baptism records of children born from slaves belonging to owners in the localities of Areias, Lorena, Queluz and Silveiras, all situated in Paraíba Valley (São Paulo state, Brazil), between 1871 and 1888. The research resumes a previous study which aimed at comparative analysis of localities in São Paulo with different economic insertion and demographic development of the slave population in the last years of slavery in Brazil, from the perspective of births occurring after the enactment of the so-called “Free Womb” Law (Lei do Ventre Livre). This study prioritizes nearby villages as a strategy to minimize the production diversity and adopts the methodological approach already applied: from the available data regarding the slave population, variables are followed, such as legitimacy, time interval between birth and baptism and social condition of godparents. Our results suggest the existence of a pattern common to all locations studied.
Palavras-chave: Batismo de ingênuos; Vale do Paraíba; Lei do Ventre Livre; Economia e demografia da escravidão.
Keywords: Baptisms of “ingênuos”; Paraíba Valley (São Paulo state, Brazil); “Free Womb” Law; Economy and demography of slavery.
* A presente versão agrega contribuições dos participantes dos Seminários Internos do HERMES & CLIO, do GT População e História da ABEP, durante o XVIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, e dos pareceristas da revista, aos quais agradeço Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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I n t r o d u ç ã o
E
m artigo anterior (MOTTA & VALENTIN, 2008), utilizamos como fonte primária os registros de batismos de filhos de escravas nascidos após a promulgação da Lei n° 2.040 de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre (BRASIL, 1871). Conforme
anunciado em seu preâmbulo, a referida Lei “Declara de condição livre os filhos de mulher es-
crava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação anual de escravos”. O registro próprio destinado aos assentos dos batismos de ingênuos está previsto no Parágrafo 5º do Artigo 8º: “Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro de nascimento e óbitos dos filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos à multa de 100$000”. A rigor, o funcionamento da referida lei conformava-se na execução de dois assentos: o registro de batismos e a matrícula de todos os escravos existentes no país. Em seu Parágrafo 4º, indicava o legislador: Serão também matriculados em livro distinto os filhos da mulher escrava, que por esta lei ficam livres. Incorrerão os senhores omissos, por negligência, na multa de 100$000 a 200$000, repetidas tantas vezes quantos forem os indivíduos omitidos, e por fraude nas penas do art. 179 do código criminal (BRASIL, 1871).
Argumentávamos em 2008: Além, é claro, da disponibilidade da fonte documental contemplada, foi fundamental a existência de marcada disparidade no que respeita aos seus respectivos panos de fundo econômicos [...] Imbricados a essa distinção de natureza econômica foram identificados, também, diferentes perfis demográficos, cuja descrição sucinta abre a análise comparativa dos assentos coletados, análise esta que é o objetivo maior da pesquisa realizada (MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 212).
Naquela ocasião, a comparação valeu-se de dados para duas localidades paulistas: Casa Branca, marcada pela forte expansão resultante da disseminação do café; e Iguape, no litoral sul paulista, que vivenciara na primeira metade do século XIX um impulso dinâmico baseado no cultivo do arroz, permitindo um significativo aumento da mão de obra cativa. Tal dínamo desapareceu nas décadas seguintes, tanto pela redução do valor relativo do arroz em relação aos
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cultivos transacionáveis via comércio externo, como por fatores intrínsecos à região, relacionados ao escoamento da produção agrícola e interiorização da ocupação de áreas alagadiças onde se cultivava a gramínea. Aqui, dou continuidade à investigação, focando quatro localidades próximas e com traços econômicos relativamente homogêneos. Compilei os assentos de batismos dos ingênuos nascidos nas cidades vale-paraibanas de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras (Figura 1)1. Figura 1 – Localidades do Vale do Paraíba paulista.
Fonte: Biblioteca Nacional (1879).
Além desta introdução, apresento um perfil da população escrava nas quatro localidades, tendo como referência o Recenseamento Geral do Império de 18722 e o “Relatório apresentado ao Exm. Sr. Presidente da Província de S. Paulo pela Commissão Central de Estatística”, que colige dados provinciais derivados dos relatórios das Comissões de Matrícula (BASSANEZI, 1998). Em seguida, procedemos à análise comparativa dos registros coletados. Na última seção, empreendemos uma investigação sobre os proprietários das mães escravas com maior frequência nas quatro localidades, bem como algum detalhamento sobre o padrão reprodutivo nessas maiores propriedades. 1 Os livros encontram-se preservados no Arquivo da Diocese de Lorena, instituição que prontamente permitiu a consulta. 2 Em São Paulo, 1874. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Visão geral da população escrava
As quatro localidades possuíam, em 1874, 7.530 escravos, ou pouco menos de 5% do total de cativos contabilizados no censo imperial para São Paulo. A povoação de Areias, emancipada da Vila de Lorena em 1816, possuía, em 1874, 1.898 escravos, representando 33% da população recenseada e produtivamente vinculada ao cultivo do café. O Almanak da Província de São Paulo indicava a presença de 36 fazendeiros e 60 lavradores, além de 6 capitalistas e 107 proprietários (LUNÉ & FONSECA, 1985, p. 244-250). Já a cidade de Lorena contava, no mesmo ano, com 1.338 cativos, ou 15% da população total, alocados principalmente no cultivo do café e da cana. Naquela localidade, segundo o Almanak, habitavam 22 fazendeiros de café, 5 que agregavam ao café o cultivo do fumo, e 13 que associavam a rubiácea com a cana, além de 22 fazendeiros dedicados exclusivamente ao cultivo de cana (LUNÉ & FONSECA, 1985, p. 219-224). Na cidade de Queluz, habitavam 2.198 escravos, a representar 25% da população total, quantidade assemelhada à registrada em Silveiras, com 2.096 cativos, porém com participação menor na população total (13%), todos dedicados ao cultivo do café, da cana e do algodão. Nesta, constavam 60 fazendeiros de café e algodão e, naquela, 67 fazendeiros e lavradores de café e cana (LUNÉ & FONSECA, 1985, p. 225-231 e p. 255-261)3. Vale destacar a diferença relativa do peso da população escrava nas quatro localidades, não obstante seus valores absolutos relativamente próximos. De um lado, Lorena e Silveiras, com participações ao redor de 15%; de outro, Queluz e Areias, com percentuais mais elevados. Conforme veremos adiante, tais distinções parecem se associar com perfil delineado pelo registro de batismo. A Tabela 1 apresenta os dados desagregados da população escrava nas quatro localidades para os anos de 1874 e 1886, assim como o peso relativo das mesmas na Província4. 3 Os informes econômicos também constam em Marques (1980, passim). Em complemento, identifiquei os seguintes proprietários de escravos no rol de moradores listados no referido Almanak: Areias, 40 proprietários associados a 854 batismos (64,0%); em Lorena, 20 escravistas responsáveis por 428 batismos (40,9%); Queluz com 23 proprietários vinculados a 427 batismos (51,4%) e em Silveiras, 12 escravistas ligados a 216 batismos (31,9%). 4 Conforme ressalta Maria Silvia Bassanezi (1998, p. 16), o relatório de 1886 “apresenta um ‘Resumo geral dos escravos matriculados até 30 de março de 1887’ - que contem o total de escravos para cada município segundo sexo, grupo de idade, estado civil e domicílio. Arrola, também, por município, os ‘Filhos livres de mulher escrava matriculados e averbados até 30 de junho de 1886’, por sexo discriminando-os em: matriculados, averbados por motivo de falecimento, entrados de outros municípios, ‘de quantos consta a renúncia dos senhores das mães’ e existentes”. Conforme pudemos verificar nos manuscritos originais, os dados correspondem ao período da matrícula realizada entre 30 de março de 1886 e 30 de março de 1887 e correspondem aos valores apresentados no relatório. O segundo bloco de dados, sobre os filhos livres, ajuda a compor a Tabela 2 deste artigo.
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Tabela 1 – População escrava segundo sexo. Localidades selecionadas, 1874 e 1886. Anos
1874
1886
Localidades
Homens
Mulheres
Total
N
%
N
%
N
%
Areias
1.003
52,9
895
47,1
1.898
100,0
Lorena
782
58,4
556
41,6
1.338
100,0
Queluz
1.243
56,5
955
43,5
2.198
100,0
Silveiras
1.130
53,9
966
46,1
2.096
100,0
Total (1)
4.158
55,2
3.372
44,8
7.530
100,0
Província (2)
88.040
56,2
68.572
43,8
156.612
100,0
(1) / (2) x 100
4,7
-
4,9
-
4,8
-
Areias
638
55,9
502
44,1
1.140
100,0
Lorena
635
56,2
494
43,8
1.129
100,0
Queluz
458
57,5
339
42,5
797
100,0
Silveiras
511
53,1
451
46,9
962
100,0
Total (1)
2.242
55,7
1.786
44,3
4.028
100,0
Província (2)
62.507
58,4
44.464
41,6
106.971
100,0
(1) / (2) x 100
3,6
-
4,1
-
3,7
-
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados coligidos por Bassanezi (1998).
O levantamento de 1886 não apenas evidencia a redução no número de escravos nas quatro cidades, como a menor participação dos escravos destas no conjunto da Província. Também sinaliza dinâmicas distintas entre as mesmas: as maiores reduções relativas concentraram-se justamente naquelas com maior número de cativos 12 anos antes: em Queluz, a redução atingiu 62%, seguida por Silveiras, com 54%, e Areias (40%), todas com valor acima do registrado para a Província (32%). Resultado distinto verifica-se em Lorena, com redução relativa de apenas 16%. Quanto à partição por sexo em 1874, Lorena (141 homens para cada 100 mulheres) e Queluz (130 homens para cada 100 mulheres) apresentavam as maiores razões de sexo, superiores inclusive à registrada para a Província (128 homens para cada 100 mulheres); nas demais, o indicador oscilou ao redor de 115 homens por grupo de 100 mulheres. No levantamento de 1886, todas as localidades possuíam razão de sexo menor que a observada na Província (141 homens para cada 100 mulheres), com valores entre 125 e 135, exceto Silveiras, com valor assemelhado ao anterior (113 homens para cada 100 mulheres). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Figura 2 - Distribuição etária dos escravos. Localidades selecionadas, 1874.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados coligidos por Bassanezi (1998).
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Ainda segundo o relatório, a porcentagem de casados e viúvos em Lorena atingiu, no lapso referido, 21,6% dos escravos matriculados, contra valores entre 11,9% e 15,3% para as demais localidades. Lorena ainda se destacava pelo maior percentual de escravos com menos de 30 anos: 46,4% contra valores entre 40% e 42% nas outras cidades. A diferença em favor de um comportamento reprodutivo diferenciado em Lorena torna-se mais evidente se observarmos a mesma distribuição, incorporando os nascimentos ocorridos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, apresentadas na Figura 2 como distribuições “corrigidas”5: nesse caso, a participação de crianças nascidas de mães cativas atingiria 29% da população total em Lorena, contra 23% em Silveiras e 18% em Areias e Queluz. Em síntese, a distribuição etária representava um fator que favorecia a redução do estoque total de escravos: em Lorena, conforme sugere a distribuição de 1874, a composição etária propiciaria uma redução em velocidade menor do que nas demais localidades, ajudando a compreender a menor taxa de decréscimo populacional entre 1874 e 18866. Ainda segundo o Relatório apresentado pela Comissão Central de Estatística, o número total de ingênuos matriculados nas quatro localidades representava cerca de 4% dos registros realizados na Província, conforme pode ser observado na Tabela 2. Consoante resultados acima expostos, no município de Areias concentrava-se a maior parte das matrículas, todas de ingênuos nascidos na própria localidade. As localidades de Lorena e Queluz possuíam quantidades assemelhadas de matrículas e Silveiras detinha o menor número de filhos libertos matriculados no período. Ao atentarmos para os dados de averbação por falecimento, vemos que os índices oscilaram entre 31% (Lorena) a 36% (Areias), relativamente próximos ao valor registrado para a Província (33%), exceto para o município de Queluz, com parcela de 42%7. A mesma equivalência pode ser inferida se observarmos a participação de libertos matriculados em outros municípios: para a Província, representava 5,3% do total de matriculados (ingênuos matriculados em outras províncias) e 5,7% no total das quatro loca5 A incorporação levou em consideração o total de registros nos assentos de batismo destinados aos ingênuos, ponderados por uma taxa de mortalidade de 50% no primeiro ano de vida e de 25% nos demais anos, estimadas a partir dos dados descritos por Maria Luíza Marcílio (1992, p. 59). 6 Outro indicador que corrobora a diferença de Lorena em relação às demais localidades é a relação entre o total de crianças com até 10 anos e total de mulheres entre 11 a 40 anos, atingindo 1.207 crianças para cada 1.000 mulheres, contra 858 em Silveiras, 765 em Queluz e 591 em Areias (calculado segundo a metodologia descrita na nota anterior). 7 Na cidade do Rio de Janeiro, a taxa de mortalidade infantil oscilava entre 578 e 604 para cada mil nascidos vivos durante a primeira metade da década de 1870 (MARCÍLIO, 1992, p. 59). Ainda que não possamos estimar tal indicador com os dados disponíveis, algumas simulações sugerem que a taxa de mortalidade infantil entre os ingênuos das localidades aqui analisadas deveria ser menor do que a calculada para o Rio de Janeiro, ao redor de 250 para cada mil nascidos vivos. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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lidades vale-paraibanas, porém com diferenças importantes entre elas: se tal rubrica assumia valor nulo em Areias, atingia praticamente 11% em Lorena, 8% em Silveiras e 6% em Queluz. Tabela 2 – Distribuição dos filhos de escravas após a Lei do Ventre Livre segundo matrículas. Localidades selecionadas, 1886. Batismos até
Cobertura do
30/06/1886
batismo
(3)
3/(1+2) x 100*
0
1.224
86,6 (87,3)
251
89
926
86,7 (87,5)
847
352
50
738
61,5 (61,9)
Silveiras
562
179
46
608
82,1 (82,3)
Total (1)
3.259
1.160
185
3.496
79,1 (80,4)
Província (2)
83.876
27.230
4.436
-
-
(1) / (2) x 100
3,9
4,2
4,2
-
-
Filhos matriculados
Averbados por
Originários de
(1)
falecimento (2)
outros municípios
Areias
1.035
378
Lorena
815
Queluz
Localidades
* Os valores em parêntesis incorporam os batismos ocorridos após 30/06/1886 segundo o tempo médio entre o nascimento e o batismo para cada localidade.
Fontes: Elaborado pelo autor a partir de dados coligidos por Bassanezi (1998) e registros de batismos.
Os dados fornecidos pelas estações responsáveis pela confecção das matrículas dos escravos podem ser cotejados com os livros de batismos, evidenciando uma cobertura bastante elevada dos batismos como representação do total de ingênuos nascidos. Assim, em Areias, por exemplo, o número total de batizados realizados até 30/06/1886, data oficial do levantamento feito pela referida Comissão, atingia 1.224 crianças, ao passo que a soma dos escravos matriculados mais os averbados por falecimento atingia 1.413, o que representa uma cobertura de 86,6%. Lorena e Silveiras apresentaram taxas semelhantes (87,5% e 82,1%, respectivamente), enquanto Queluz destoa das demais, com 738 batismos contra 1.199 crianças matriculadas, representando apenas 61,5% dos batismos realizados.
Os batismos nas localidades Vale-paraibanas Inicio a análise com a distribuição temporal dos registros. O Gráfico 1 apresenta os assentos, segundo localidade, entre os anos de 1872 e 18878. 8 Não consideraremos os registros efetuados nos anos de 1871 e 1888, exceto quando ressalvado. A adoção das médias móveis ameniza oscilações não explicadas pela simples observação dos valores brutos, como evidencia o relato do pároco de Areias Cassiano Rodrigues da Silveira em janeiro de 1874: “Em consequência da epidemia de bexigas que grassa nesta paróquia, o povo não tem concorrido para as funções religiosas o que leva a crer ser essa a causa de se ter feito um só batizado ingênuo no mês de novembro e no de dezembro não se ter feito nenhum” (APESP, Ofícios diversos de Areias, Caixa 20, Ordem 814, pasta 4, documento 92).
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Gráfico 1 – Distribuição dos assentos de batismo (médias móveis trienais). Localidades selecionadas, 1872 a 1887.
Fonte: Livros de batismos de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras.
A manutenção do número de registros ao longo do tempo constitui o principal resultado. Se confrontado com os dados da Tabela 1, a correspondência entre o número de batismos e a população escrava guarda maior relação com os dados de 1886 do que com os valores do Censo de 1874: naquele, Areias (82 registros por ano) e Lorena (64 registros por ano) apresentavam maior número de escravos e, correlatamente, maior número de ingênuos batizados. De outra forma, nota-se que o contingente indicado em Queluz e Silveiras no recenseamento de 1874 não se traduz em expressivo número de batismos, sugerindo uma rápida perda do estoque de mão de obra cativa nessas localidades ou, ainda, uma possível superestimação dos números do Censo Imperial. A redução da população cativa revelada na Tabela 1 parece não afetar substancialmente o número de ingênuos batizados após a promulgação da Lei do Ventre Livre. O próprio efeito da legislação que protegia as famílias escravas contra vendas fragmentadas provavelmente contribuiu para a manutenção do número de batismos. Porém, considerando a possibilidade de vendas e o envelhecimento ou morte destas mulheres, é necessário admitir a possibilidade de um crescente número de filhos por escrava, em adição aos possíveis fatores que expliquem os resultados do Gráfico 1; tal questão será retomada adiante. Quando cotejados os dados das localidades vale-paraibanas com os verificados no estudo anterior, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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que apontava a redução do número de batismos Iguape e, inversamente, a expansão dos registros em Casa Branca (cf. MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 219), nota-se que aquelas apresentaram um padrão “intermediário”, revelando, entre outros fatores, o próprio dinamismo imposto pela expansão do café. Grosso modo, a relativa estabilidade retratada no Gráfico 1 possivelmente associa-se à resistência da cafeicultura em suas regiões pioneiras à drenagem de braços escravos para as áreas mais dinâmicas do oeste paulista. Chama a atenção o abrupto aumento no número de batismos em três das localidades em fins da década de 1870: como entender tal fenômeno no contexto da redução da população escrava? Sem maiores evidências, arrisco uma hipótese, intimamente associada ao escopo da Lei do Ventre Livre, que previa ao proprietário da mãe, quando o ingênuo completasse 8 anos, de receber a indenização de 600 mil réis por parte do Governo Imperial, sob a forma de títulos da dívida, com vencimento em 30 anos à taxa de 6% ao ano, ou usufruir dos serviços do ingênuo até a idade de 21 anos (ABREU, 1996, p. 568). Os primeiros ingênuos sobreviventes do início da vigência da referida lei completavam 8 anos em fins de 1879 e início de 1880. Possivelmente, a opção pelo senhor em se manter com os serviços dos ingênuos, rejeitando a alternativa da indenização, conformou menor insegurança entre as escravas em idade fértil acerca do risco de perda dos filhos, estimuGráfico 2 – Participação relativa de ingênuos legítimos (Médias móveis trienais). Localidades selecionadas, 1872 a 1887.
Fonte: Livros de batismos de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras.
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lando a natalidade entre os anos de 1879 e 1882. Conforme veremos adiante, esse relaxamento parece ser também o motivo da ampliação do intervalo entre o nascimento e o batismo na década de 18809. A condição de legitimidade dos ingênuos nascidos nas quatro localidades pode ser observada no Gráfico 2, que indica a participação relativa de ingênuos legítimos (médias móveis trienais) entre os anos de 1872 e 1887. Ressalve-se que, diferentemente do ocorrido em Casa Branca, nenhum dos livros consultados informava de maneira explícita tal condição; assim procedemos de maneira análoga aos dados de Iguape, com a legitimidade inferida através da situação conjugal da mãe (cf. MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 218). Os resultados não diferem dos dados de Casa Branca e Iguape: a participação de ingênuos legítimos, que nunca ultrapassou a marca de 45% em todas as localidades, manteve-se em trajetória decrescente ao longo do período destacado, e de forma acentuada na década de 1880. A exceção, Lorena, apresenta uma recuperação singular no número de crianças legítimas, atingindo em 1884 a mesma participação relativa de 1872. Deve-se relembrar a estrutura etária peculiar da população escrava existente em Lorena, conforme indica a Figura 2. Possivelmente, parte da elevada parcela de legitimidade registrada no início dos anos de 1880 decorra do natural crescimento da população escrava concentrada na faixa etária mais jovem (até 10 anos) em 1874, além da maior participação de escravos casados e viúvos no estoque acumulado em 1886, conforme destacado anteriormente. Tratemos agora do lapso entre o nascimento e ato do batismo. Esse intervalo apresenta oscilações temporais e geográficas, porém os estudos sugerem uma dilatação do intervalo ao longo do tempo. Por exemplo, Iraci del Nero da Costa (1979, p. 64-65) verificou médias de 10,4 e 12,8 dias para os cativos batizados na paróquia de Antonio Dias em Vila Rica, nos intervalos 1719 a 1768 e 1769 a 1818, respectivamente. Além do cumprimento à norma prevista nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, ressalta o autor que a presteza na ocorrência do batismo vinculava-se ao reconhecimento oficial da posse do recém-nascido. Em Curitiba, a idade média de batismo apresentou notável aumento entre os séculos XVIII e XIX: no caso com maior frequência (escravos ilegítimos do sexo masculino), o intervalo passou de valores ao redor de 20 dias no século XVIII, para 40 dias entre 1839-1849, 71 entre 1850-1859 e 89 dias na década de 1860 (CARNEIRO, CHAGAS & NADALIN, 2010, p. 376). Nas localidades investigadas anteriormente, observamos um intervalo médio de 48 dias em Casa Branca e 58 dias em Iguape (MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 222). 9 Não se nega as tensões e indeterminações do período final da escravidão, tanto na perspectiva mais ampla sobre o final da escravidão como, especificamente, na administração dos casos de tutela de crianças separadas de suas mães escravas ao longo da década de 1880. Busco ampliar as possibilidades de leitura diante das contraditórias leituras coevas durante o período em tela. Sobre tais temas, ver Chalhoub (1990), Venâncio (1999), Pena (2001), Teixeira (2007). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Nas quatro localidades do Vale do Paraíba, o intervalo médio (48 dias) apresenta-se heterogêneo: em Silveiras, foi de 32 dias, seguido por Areias (47 dias) e tendo Lorena (53 dias) e Queluz (56 dias) os maiores lapsos de tempo. A Tabela 3 apresenta a distribuição relativa dos intervalos em faixas para os dados coligidos. Tabela 3 – Distribuição dos batismos segundo faixas de intervalo entre nascimento e batismos. Localidades selecionadas, 1871-1888. Faixas de intervalo (dias) Localidades
Até 7
8 a 30
31 a 60
Total
61 ou mais
N
%
N
%
N
%
N
%
N
%
Areias
49
3,7
655
49,6
344
26,0
273
20,7
1.321
100,0
Lorena
85
8,2
444
42,9
233
22,5
272
26,3
1.034
100,0
Queluz
34
4,1
351
42,6
213
25,8
226
27,4
824
100,0
Silveiras
58
8,9
409
62,4
108
16,5
80
12,2
655
100,0
Total
226
5,9
1.859
48,5
898
23,4
851
22,2
3.834
100,0
Fonte: Livros de batismos de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras.
O menor tempo médio registrado em Silveiras também pode ser verificado ao se constatar que praticamente 9% dos batismos ocorreram na primeira semana de nascimento, e sete décimos (71,3%) em até 30 dias. Em Lorena, apesar da participação similar na primeira faixa, a quantidade de batismos realizada no primeiro mês de vida alcançava 51,1%, valor assemelhado ao verificado em Areias (53,3%), ambos maiores do que o verificado em Queluz (46,7%). Revendo os resultados da localidade de Franca, Maísa Faleiros Cunha (2009, p. 94) apresenta-os agregados para o intervalo entre 1808 e 1888, indicando que a frequência de batismos com intervalo de até 7 dias perfazia 5,8% dos casos, e no intervalo até 29 dias, 55,3% dos batismos, concentrando cerca de quatro décimos na faixa entre 30 dias e 11 meses . Um dado que ajuda a compreender os diferentes tempos nas quatro localidades é a distribuição dos batismos segundo dias da semana (Tabela 4). No caso de Queluz, que possuía o maior intervalo médio entre o nascimento e o batismo, praticamente 65% dos batismos foram realizados aos domingos, com distribuição relativamente homogênea nos demais dias da semana. Nas outras localidades, o domingo também representava o principal dia dos batismos, porém com valores relativamente elevados para outras opções, como a segunda-feira (Lorena e Silveiras), o sábado (Silveiras e Lorena) e a quarta-feira (Lorena)10. Dessa forma, é possível admitir que a melhor distribuição denote maior acesso aos serviços eclesiásticos, colaborando com a redução do intervalo em tela. 10 A elevada frequência de registros aos sábados e segundas pode corresponder apenas a um erro na execução do assento, justamente pela proximidade com o domingo.
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Tabela 4 – Distribuição dos batizados segundo dias da semana. Localidades selecionadas, 1871 a 1888. Dias da semana
Areias
Lorena
Queluz
Silveiras
Total
N
%
N
%
N
%
N
%
N
%
Domingo
853
64,0
468
44,7
538
64,8
369
54,8
2.228
57,4
Segunda
104
7,8
108
10,3
50
6,0
71
10,5
333
8,6
Terça
71
5,3
70
6,7
47
5,7
28
4,2
216
5,6
Quarta
54
4,1
117
11,2
38
4,6
40
5,9
249
6,4
Quinta
85
6,4
110
10,5
71
8,6
42
6,2
308
7,9
Sexta
44
3,3
42
4,0
29
3,5
30
4,0
145
3,7
Sábado
121
9,1
133
12,7
57
6,9
93
13,8
404
10,4
Total
1.332
34,3
1.048
27,0
830
21,4
673
17,3
3.883
100,0
Fonte: Livros de batismos de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras.
No estudo anterior, verificamos também que o tempo médio de registro oscilou de forma significativa ao longo do intervalo. Como tendência, verificada tanto em Casa Branca como em Iguape, identificamos que ambas partiam de um intervalo médio relativamente alto, seguido de uma redução do tempo médio entre 1873 e 1877, retomando um intervalo médio maior até o ano de 1884/1885. Para a primeira parte, aventávamos como hipótese que: “ no contexto da promulgação da Lei do Ventre Livre e da realização da matrícula dos escravos, eventualmente muitos senhores ‘adiassem’ em certa medida o cumprimento das obrigações eclesiásticas”, estabelecendo uma rotina com intervalos menores nos anos seguintes. Para o segundo movimento, dizíamos que a incerteza quanto ao futuro da escravidão “poderia ser a responsável, ao menos parcialmente, pelo novo movimento de elevação das idades médias dos batizandos ingênuos” (MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 224). Conforme pode ser observado no Gráfico 3, as observações então registradas parecem válidas apenas para a segunda parte das considerações. Destaque-se que o comportamento não é uniforme nas quatro localidades. Durante a década de 1870, ao passo que a idade média manteve-se praticamente constante em Silveiras e em Areias, há um aumento súbito em Lorena e em Queluz durante os anos de 1876 e 1878; no entanto, é a partir de 1880 que se percebe uma tendência ascendente comum a todas as localidades. Se nossas hipóteses anteriores forem válidas para Casa Branca e Iguape, há que se relativizar o impacto das mudanças provocadas pela promulgação da Lei do Ventre Livre sobre os escravistas do Vale do Paraíba. Já sobre as incertezas da década de 1880, contudo, podem estar a compor o conjunto de causas que promoveram o crescente intervalo de tempo entre nascimentos e batismos. Também na década de 1880 registra-se a menor participação de filhos legítimos (ver Gráfico 2), o que pode denotar, como argumenta Cunha (2009), menor preocupação por parte dos escravistas no cumprimento do ritual religioso do batismo. No entanto, relembro que, no início da mesma década, houve um inesperado aumento no número de registros, o que permitiu relacionar os efeitos da permanência dos ingênuos dentro das propriedades e uma mudança no comportamento reprodutivo das escravas. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Talvez a percepção do baixo impacto da Lei do Ventre Livre possibilitada pelo longo prazo transcorrido tenha favorecido o afrouxamento no ato de execução do batismo ao longo dos anos 1880. Gráfico 3 – Idade média (em dias) dos ingênuos batizados, a cada ano (médias móveis trienais). Localidades selecionadas, 1872 a 1887.
Fonte: Livros de batismos de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras.
Encerro a seção com uma breve caracterização dos padrinhos. Como alerta, cabe destacar a dificuldade quanto à categorização da condição social dos mesmos, uma vez que os assentos, em geral, pouca informação continham sobre tal recorte. Dessa forma, partimos de premissas derivadas da própria documentação: os padrinhos classificados como “libertos” assim o foram por indicação explícita do pároco responsável pela confecção do assento, da mesma forma que os classificados como “escravos”. Por sua vez, os padrinhos categorizados como “supostos livres” reúnem todos os demais padrinhos. Portanto, os resultados aqui expressos devem ser compreendidos como uma possível situação limítrofe inferior, assemelhada à adotada na investigação anterior, quando aplicamos um procedimento de faixas mínimas e máximas de padrinhos categorizados como escravos ou libertos (cf. MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 231). A ausência de informação sobre os padrinhos para as localidades de Areias e Queluz11 permite a apresentação apenas os resultados concernentes a Lorena e Silveiras, apresentados no Gráfico 4. 11 Pelo critério lá estabelecido, apresentamos os padrinhos escravos e libertos tendo como valor mínimo os casos claramente identificados como tais nos assentos, e como valor máximo, o acréscimo gerado pela incorporação daqueles que não pudemos definir a condição social. O procedimento gerou faixas muito extensas nas duas localidades excluídas, principalmente na década de 1880.
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Gráfico 4 – Distribuição relativa dos assentos com padrinhos escravos ou libertos segundo legitimidade. Localidades selecionadas, 1871 a 1888.
50 45 40 35 30
%
25 20 15 10 5 0
Lorena
Silveiras
Lorena
Naturais
Silveiras
Lorena
Legítimos 1871-1880
Lorena
Naturais
Anos % mínima
Silveiras
Silveiras
Legítimos 1881-1888
% máxima
Fonte: Livros de batismos de Lorena e Silveiras.
Os resultados para a década de 1870 revelam, em Lorena, participação assemelhada de escravos e libertos, tanto entre ingênuos naturais como entre legítimos. Já em Silveiras, o mesmo arranjo de apadrinhamento destacava-se entre os legítimos, porém com participação total menor do que a verificada em Lorena. Conforme visto anteriormente, o Gráfico 2 já evidenciou a rápida redução na parcela de ingênuos legítimos em Silveiras, mantendo a menor participação relativa na década seguinte entre as quatro localidades aqui investigadas, quando o apadrinhamento para o acanhado número de ingênuos legítimos praticamente foi exclusividade de supostos livres, resultado também observado para os naturais. Essa mudança também possui como tributária a severa redução do contingente total de escravos naquela povoação, conforme mostra a Tabela 1. Resultado diverso do verificado em Lorena, pois além da menor redução da população cativa, é digno de nota o aumento na participação de legítimos nos últimos anos de vigência da escravidão. Na década de 1880, a parcela de ingênuos naturais com padrinhos escravos ou libertos manteve-se a mesma, porém o percentual para os legítimos aumentou significativamente, de 25% para 45%. Em alguma medida os resultados acima descritos recuperam parcialmente as diferenças registradas entre Iguape (com maior participação de escravos e forros entre padrinhos - de 14% Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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a 38%) e Casa Branca (de 2% a 11%). A diferença pode ser atribuída à intensidade do contexto econômico, favorecendo a opção por cativos pela primeira e dificultando-a na segunda (MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 231-232). Tal raciocínio merece acréscimos importantes. Em primeiro lugar, os dados aqui apresentados jogam em duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que reforça certa interpretação sobre a associação entre apadrinhamento escravo e filhos legítimos (como é o caso de Lorena e Silveiras, esta na década de 1870), a desfaz quando se observa o resultado de Silveiras na década de 1880. Outro ponto diz respeito ao próprio dinamismo econômico - fator comum subjacente a ambas as localidades e que possivelmente não poderia responder pelas diferenças observadas. A historiografia sobre família escrava evidenciou a importância do apadrinhamento na conformação de relações de sociabilidade entre os escravos e não é objetivo deste estudo repisar tais temas12. Relembro apenas que, nas duas localidades ora enfocadas, a população escrava já correspondia, em 1874, a parcelas minoritárias do total de habitantes se comparadas com as demais e com redução expressiva do estoque de cativos. Ainda que tal conjuntura implicasse maior coesão dentro do grupo social, avento que a mediação dependia, em certa medida, da própria condição de legitimidade dos ingênuos, sempre relembrando o contexto das instabilidades da própria escravidão no Brasil no período em tela. Dessa forma, a relativa segurança das relações estáveis - em maior frequência em Lorena - facilitaria a opção por escravos e libertos como padrinhos vis-à-vis o risco da desintegração da rede de solidariedade criada pela reiteração temporal desse comportamento. Os dados apresentados evidenciam a recuperação da parcela de ingênuos legítimos na década de 1880, concomitante à maior parcela de padrinhos escravos e libertos no mesmo período. Por oposição, entendemos que a menor parcela de legitimidade em Silveiras e a baixa frequência de padrinhos escravos e libertos revelam a necessidade da opção por livres ou supostos livres como protetores espirituais dos filhos das escravas nascidos durante a vigência da Lei do Ventre Livre.
Os proprietários das mães escravas O registro de batismo não se presta como fonte para o estudo da estrutura de posse de escravos, e um período relativamente curto como o delimitado na investigação em tela torna tal pretensão ainda mais complexa. No entanto, acredito que alguns indicadores sobre dados gerais daqueles que 12 Cabe referenciar os trabalhos clássicos de Gudeman & Schwartz (1984) e Rios (2000). Mais recentemente, os trabalhos de Engemann (2006), Weigert (2010) e Guedes (2011).
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detinham a posse das mães escravas possam ajudar a delinear o ambiente no qual se inserem os registros analisados anteriormente. Identifiquei em Silveiras 237 proprietários responsáveis por mães, que geraram 688 crianças, correspondendo a um valor médio de 2,9 batismos por proprietário. Em Queluz foram 209 escravistas associados a 830 batismos, representando 4 batismos por proprietário. Em Lorena, 337 escravistas compareceram nos 1.048 assentos, correspondendo a 3,1 batismos por senhor; e em Areias, a maior média, 5,1, gerada por 259 escravistas vinculados a 1.355 batismos. Em todas as localidades, a moda observada igualou-se à unidade, igual valor mediano em Silveiras e Lorena; nas outras localidades, a mediana atingia o valor de 2 batismos por proprietário. Os dados evidenciam a elevada concentração e a dispersão nas quatro localidades. Observando o extremo da distribuição, 50% dos batismos estavam vinculados a 11% dos proprietários em Areias, 10% em Queluz e Lorena, e 12% em Silveiras. O índice de Gini calculado a partir dos informes dos livros de batismo indica igual sentido, oscilando entre 0,515 em Silveiras a 0,632 em Areias, passando por valores intermediários em Lorena (0,561) e em Queluz (0,587). O Quadro 1 apresenta dados sobre os 17 proprietários com 30 ou mais presenças nos livros de batismo. A maior parte deles aparece ao longo de todo o período considerado e a variabilidade no conjunto das informações sintetizadas no quadro merece destaque13. Destarte, o intervalo médio entre o nascimento e o batismo oscilou de 11 dias para os filhos das escravas pertencentes ao padre Joaquim Ferreira da Cunha, a 143 dias nos 40 batismos associados a Antonio de Paula Ramos, morador em Areias. Se tomarmos o tempo médio de 48 dias, apenas 8 dos elencados constam com valores menores. De igual maneira, para apenas 6 proprietários, os ingênuos nascidos foram identificados como legítimos em porcentagem igual ou superior a 50%, sendo as menores pertencentes a escravistas moradores em Areias, e a maior, praticamente 100%, novamente ao padre Joaquim Ferreira da Cunha. Menor diversidade se verifica na presença de padrinhos escravos ou supostos escravos, superior a 50% em apenas 2 casos, ressaltando que mantive o mesmo critério de identificação exposto anteriormente, resultando em possível subestimação dos percentuais indicados. Ainda cabe destacar que, em 8 casos, o número de padrinhos escravos pertencentes à mesma propriedade da mãe superou a marca dos 50%, com destaque para as posses do já citado padre, Antonio de Paula Ramos, e Manoel Carlos de Oliveira Garcez, nas quais a marca atingia praticamente a totalidade dos padrinhos pertencentes ao segmento. 13 A exceção fica por conta de Joaquim Dias Novaes, provavelmente falecido em 1878. O acompanhamento da posse da herdeira, Lucia Brandina Novaes, indica que não ocorreu partilha ou, se houve, não afetou o núcleo com capacidade reprodutiva. Trata-se do único caso em que pudemos identificar claramente tal situação, motivando assim sua representação como um Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Quadro 1 - Proprietários com 30 ou mais presença nos livros de batismos . Localidade selecionadas, 1871 a 1888
a
Os valores em parênteses representam o intervalo médio, em dias, entre o nascimento e o batismo
b
Os valores em parênteses representam a porcentagem de padrinhos escravos do mesmo proprietário
Fonte: Livro de batismos de Areias, Lorena, Queluz e Silveiras
O numero médio de filhos por mãe merece atenção não apenas pela aparente homogeneidade (na faixa dos 2 filhos em praticamente todos os casos). Decerto contribui para o baixo valor a acentuada presença de escravas com apenas um único filho: a exclusão dos 144 casos (2 em cada 5 mães pertencentes aos proprietários acima listados) eleva a média geral de 2,3 para 3,3 filhos por mãe14. Se particionados entre legítimos e naturais, as médias passam a 2,7 e 2,1 filhos por mãe (ou 3,6 e 3,2, sem as mães com um único filho). Acrescentando a divisão por décadas, o número médio passa de 1,9 para 2,6 entre os naturais, e de 2,1 para 6,1 entre os legítimos. Tais resultados não devem surpreender: simultaneamente à queda da legitimidade, no subconjunto analisado há uma forte redução dos casais escravos com uniões sacramentadas (de 95 casos na década de 1870, para apenas 15 na posterior). Destarte, o maior valor na década de 1880 possivelmente decorra do amparo percebido através legislação, que garantia a estabilidade da união, e do menor risco de rompimento familiar transcorridos os primeiros 8 anos de validade 14 A primeira medida se assemelha à calculada por Faleiros (2009, p. 147) entre as 163 unidades familiares reconstituídas na localidade de Franca (2,6 filhos por família). Adota-se aqui a mesma preocupação expressa pela autora: “Temos então, por cautela, assinalar que o número médio de filhos por família pode ser considerado, para algumas, como limite inferior de filhos nascidos por família. Não conseguimos saber (...) sobre crianças nascidas e falecidas antes de serem registradas”, valores possivelmente relacionados à diferença entre batismos e matrículas apontados na Tabela 2.
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da Lei nº 2.040. Esse resultado corrobora a percepção anteriormente descrita sobre o aumento do número de filhos por escrava no final do período e sobre a constatação de que o fenômeno não se restringiu aos maiores proprietários, conformando o mecanismo que sustentou a manutenção dos registros indicados no Gráfico 1. Para alguns proprietários, há outras informações além das sintetizadas no Quadro 1. No entanto, começo a apresentá-las por um caso não pertencente ao rol, possivelmente devido a seu falecimento em meados do intervalo estudado. Trata-se do escravista lorenense Joaquim José Moreira Lima. Renato Leite Marcondes (1998, p. 142) pôde consultar um livro particular no qual constavam as distintas formas de obtenção de sua posse. Dos 171 escravos contabilizados entre as décadas de 1830 a 1870, 34 (ou 20%) nasceram no seio da própria posse contra a maior parte obtida por compra, arrematação ou como herança recebida15. Entre 1871 e 1878, pelo menos 16 crianças nasceram de 10 escravas pertencentes a Moreira Lima. Talvez seu registro não tenha se mantido com a mesma precisão ao longo do tempo, ou ainda o escravista não contasse as crianças falecidas em tenra idade. Porém, é notável que, em apenas sete anos, o número de nascimentos no interior da propriedade tenha atingido pouco menos do que 50% do total registrado nas três décadas anteriores. Destarte, é possível supor que a própria conjuntura derivada da promulgação da Lei nº 2.040 tenha colaborado de forma importante na “retomada” dos nascimentos naquela propriedade. Este provavelmente não é o caso do já citado padre Joaquim Ferreira da Cunha, de Silveiras. Classificado por Renato Leite Marcondes (1998, p. 191 e 237) como um capitalista, as dívidas ativas presentes em seu inventário representavam praticamente 82% da riqueza avaliada (pouco mais de 60 mil libras), aberto no ano de 1879. A diferença em relação a Moreira Lima, além da magnitude da riqueza inventariada, reside no número de escravos, totalizando 200 almas avaliadas. Conforme vimos, a posse de Ferreira da Cunha apresentava não apenas a maior frequência de legitimidade, como uma elevada participação de seus próprios escravos no caso de padrinhos identificados como tal, assim como realizava o próprio padre os batismos, a maioria na capela de Piquete. Em seu estudo sobre as escrituras de compra e venda de escravos, José Flávio Motta (2010, p. 177) descreve uma venda ocorrida em Areias, que se associa aos resultados do Quadro 1: trata-se de uma transação efetivada pelo Major Laurindo José de Carvalho Penna, no ano de 1877, que vendeu 5 escravos para José Joaquim Ferreira Penna. Segundo Motta, a venda envolveu uma família composta pela escrava Eva, seus filhos também escravos Estevão, Margarida, Delfina e Rita, além 15 Ainda segundo Marcondes (1998, p. 191), no inventário aberto em 1879 foram avaliados 54 escravos, porém a riqueza total superava a quantia de 460 mil libras. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 123-144, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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de dois filhos nascidos após a promulgação da Lei do Ventre Livre: João, de 3 anos, e outro menino nascido ainda não batizado. Ademais, contava com o filho de Margarida, também não batizado. Não foi possível localizar o assento de batismo do ingênuo João, porém há o registro do outro filho, Henrique, nascido em 23 de agosto de 1877, bem como o do filho de Margarida, Manoel, nascido em 2 de julho do mesmo ano. Margarida ainda teria outros dois filhos, assim como sua irmã Delfina. A tomar o resultado do Quadro 1, Carvalho Penna detinha uma posse considerável, pertencendo a ele 25 escravas, mães de 73 crianças batizadas entre 1871 e 1888.
Considerações finais
Reproduzo um trecho das considerações, apresentadas ainda em 2008: Evidenciamos, com base nos resultados alinhavados nas diversas seções (cuja repetição aqui nos parece ociosa), o impacto que diferentes panos de fundo econômicos e distintos perfis demográficos (particularmente da população cativa) causaram sobre os níveis e o ritmo do evolver dos batizados, sobre as idades dos batizandos, sobre os intervalos intergenésicos e, por fim, sobre a condição social dos padrinhos e madrinhas daqueles ingênuos (MOTTA & VALENTIN, 2008, p. 232).
Acredito que as evidências apresentadas ao longo do presente trabalho reafirmam as conclusões acima destacadas. Em linhas gerais, as localidades do Vale do Paraíba, envolvidas com atividades econômicas assentadas no cultivo do café e complementadas com outros produtos destinados à comercialização, apresentaram um padrão no registro de batismo de ingênuos compatível com a hipótese que norteia este veio de pesquisa, qual seja, a de fatores econômicos e demográficos a imbricarem sobre a dinâmica dos batismos de ingênuos. No caso aqui analisado, um novo conjunto de fatores deve ser acrescido, associado à proximidade física das localidades investigadas. A documentação consultada permite visualizar a influência de ligações de parentesco e de interesse econômico que envolvia os proprietários das mães escravas e possivelmente os próprios escravos. No entanto, alguns dos resultados acima descritos possivelmente guardam relação com práticas antigas gestadas ao longo de mais de um século de exploração produtiva através da escravidão, e que dão a cada grupo um requinte de singularidade, marca própria dos processos históricos.
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Referências
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Diocese de Lorena Paróquia de Areias – Livro de registro de nascimentos dos filhos de escravas nascidos desde 28 de setembro de 1871. Paróquia de Cunha – Livro de registro de nascimentos dos filhos de escravas nascidos desde 28 de setembro de 1871. Paróquia de Lorena – Livro de registro de nascimentos dos filhos de escravas nascidos desde 28 de setembro de 1871. Paróquia de Queluz – Livro de registro de nascimentos dos filhos de escravas nascidos desde 28 de setembro de 1871.
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Para onde foram as “Patacas” ? Patrimônio de portugueses na Amazônia (Belém, 1840-1909) Where were the “Patacas”? Portuguese Heritage in Amazônia (Belém, 1840-1909) Anndrea Caroliny da Costa Tavares Universidade Federal do Pará (UFPA)
Resumo
Abstract
O presente artigo analisa a evolução das fortunas de imigrantes portugueses em Belém, capital da então província do Grão Pará, entre os anos de 1840 a 1909, caracterizado pela historiografia como o período antecedente e o de efetivo boom da economia extrativa da borracha, reconhecida como atrativo aos diferentes grupos de (i) migrantes. A evolução das fortunas é sustentada sobre novas demandas sociais e econômicas que a borracha haveria de trazer às terras amazônicas, e que evidenciam novas tendências de investimentos, em grande medida, às estruturas modernas do capitalismo, que permaneceram mesmo nos períodos de crise da economia extrativa. O estudo esteia-se na análise serial de 345 autos cíveis de inventários post-mortem, e insere-se num período marcado por um crescimento demográfico acentuado, pela reorganização do espaço urbano de Belém e pelo recrudescimento econômico do mesmo espaço.
This paper, analyzes the evolution of portuguese migrants fortunes in Belém, capital of the then Grão Pará province, between the years of 1840 and 1909, characterized by the historiography as the prior period of the effective boom of the extractive economy of rubber, known as an attractive for the different migrant groups. The fortunes evolution is supported by the new social and economic demands that were brought over to the Amazon landscape and made clear the new investments trends, remarkably, to the modern capitalist structures, that remained even in crisis periods of the rubber extractive economy, demonstrating the solid consolidation of the power and wealth new symbols. The paper sustain itself in the serial analyses of 345 post mortem inventories civil suits and is inserted among a period which is trend marked by a sharp demographic growth, by the urban space reorganization and by economic rejuvenation of the city of Belém.
Palavras- chave: Belém; Imigração; Portugueses; Borracha; Fortunas.
Keywords: Belém; Immigration; Portugueses; Rubber; Fortunes.
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I n t r o d u ç ã o
O
s processos migratórios têm exercido constantes e amplas influências sobre a formação das sociedades em diferentes temporalidades. A historiografia existente acerca da imigração portuguesa assinala que esse fluxo exerce, há mais de um século, uma
profunda ação na sociedade lusitana, e embora fosse um fenômeno antigo, tomou novas for-
mas no século XIX, quando deixou de estar atrelada ao projeto imperial português e tornou-se uma resultante das distorções do desenvolvimento capitalista independente, após o rompimento com o antigo regime (PEREIRA, 2002, p. 11). Os portugueses constituíram o grupo mais numeroso de imigrantes que entraram no Brasil, com números na faixa dos 1,9 milhão de sujeitos, estando presentes em praticamente todo o território brasileiro (MATTOS, 2013, p. 34). Provenientes de distintas localidades do território português, viam no Brasil – sobretudo nos destinos mais conhecidos, como São Paulo e Rio de Janeiro, e nos emergentes, como a Província do Pará – uma oportuna possibilidade de estabelecimento, na perspectiva de inserção nos mercados de trabalho, acumulando fortuna e retornando à terra natal ou, como ocorreu com a maioria, sobrevivendo e esperando ora por uma oportunidade de retorno, ora pelo fim da vida. Nos últimos anos do século XIX, o Pará desponta como um dos principais destinos procurados pelos portugueses que partiam para o Brasil. No final do Império, ele surge com um percentual bem maior de escolha para os grupos de imigrantes do que a própria cidade de São Paulo, que atraia não somente mão de obra rural, mas também operária e intelectual, sobretudo pelo crescimento proporcionado pela economia cafeeira (ALVES, 1993). Entre 1898 e 1899, entraram no Pará 1.230 portugueses naturais do Distrito de Aveiro, número que fica abaixo apenas das entradas no Rio de Janeiro, que alcançaram 1.399 imigrantes; São Paulo registrava apenas 164 indivíduos adentrando seus portos (ADV – LRP – 1897-1900). O final do século XIX e início do XX, também foram caracterizados pela consolidação, expansão e decadência da economia extrativa da borracha, considerada uma das principais – se não a principal – força motriz da imigração para o Pará, tendo no trabalho com a borracha, ou com as
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atividades impulsionadas indiretamente por ela, a possibilidade de alcançar abastança. Esses sujeitos viveram em uma cidade portuária, ponto de partida de todo tipo de mercadoria para os interiores, e porta de saída das exportações da borracha para o mundo. Belém tornara-se uma cidade cosmopolita e atrativa a diferentes grupos (FONTES, 2002). Enquanto o Pará vivia às voltas com a economia da borracha, o Rio de Janeiro convivia sob a marcha do café, que entre os anos de 1889 a 1920 manteve-se na liderança das exportações brasileiras. O gênero foi o maior gerador de riqueza regional, promovendo impactos significativos na diversificação das atividades econômicas, assemelhando-se ao que a borracha promovera na Amazônia (MELO, 2002, p. 216-217). Em Minas Gerais, a economia centrou forças na consolidação da indústria têxtil, no início da década de setenta do século XIX, quando houve um surto de investimentos na tecelagem. O incremento industrial promovera o aumento das sociedades de capitais que estabeleceriam as primeiras fábricas, e cujos capitais se concentravam nas mãos de acionistas, indicando alterações nos padrões tradicionais de investimentos (OLIVEIRA, 2002, p.235-253), semelhante a Belém e à pulverização de instituições bancárias e companhias, que tinham no comércio de ações a garantia de rendimentos. Assim, entende-se que o crescimento e a liquidez econômica observados em Belém a partir da segunda metade do século XIX não foram fatos isolados e excepcionais, mas faziam parte de um conjunto de investimentos que consolidariam as bases para novos cenários socioeconômicos advindos da modernidade. Pela ampla e ativa participação dos portugueses no desenvolvimento de Belém, sobretudo a partir de 1840, junto ao incremento da borracha amazônica à economia, e por estarem envolvidos nas reconfigurações do mercado local, é de grande valia que analisemos como suas fortunas testemunharam os novos tempos da economia, demonstrando novos símbolos de valor, em uma sociedade que vivenciava de maneira intensa, porém não igualitária, os avanços capitalistas.
A imigração, a economia e a longa duração
Mesmo sendo de grande importância, a temática que aborda o fluxo migratório português para o Brasil consolidou suas bases recentemente, na medida em que as fontes se diversificaram e os questionamentos, para a ampliação das problemáticas, foram revisitados. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 145-166, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Como resposta à consolidação desses estudos para o Brasil, encontramos trabalhos interessados em analisar os deslocamentos, além dos condicionamentos demográficos, econômicos e sociais, e do paradigma da miserabilidade, superando os limites das necessidades estritamente econômicas, e observando questões referentes à política, assim como questões étnico-raciais, culturais, religiosas, geracionais e de gênero (MATTOS, 2013, p. 49-65). E encontramos, ainda, trabalhos que discutem a forma como esses sujeitos assimilaram, (res)significaram e tencionaram as condições sociais, através de suas agências e estratégias cotidianas. Entre idas e vindas da capital do Pará para os municípios do interior e demais regiões, um grande número de imigrantes permanecia em Belém, expressivo centro urbano à época. O português, seguido do espanhol, formou os grupos étnicos mais presentes no cenário da capital (CANCELA, 2011, p. 99). Ambos experimentaram na cidade a modernização da fase final do século XIX e início do XX, que fez com que Belém ficasse conhecida como uma das cidades-boom brasileiras (SARGES, 2010, p. 28). Boom, devido ao auge da extração e comercialização da borracha, promotora de avanços estruturais, reconfigurações demográficas e econômicas na região. Envolvidos nessa trama, os lusitanos desempenharam diversos papéis na cotidianidade da urbe. Dentre eles, destacam-se, especialmente, os ligados ao comércio de gêneros diversos, inclusive dos provenientes da exploração da borracha. Com o intuito de dar visibilidade a esses agentes, além de estudar suas fortunas como uma forma de inserção e participação nas dinâmicas socioeconômicas em Belém, optou-se pelos inventários post-mortem, muito utilizados em trabalhos interessados em analisar as sociedades e seus movimentos, sobretudo econômicos, como o trabalho de Zélia Cardoso de Mello (1985), preocupado em investigar as mudanças na composição das fortunas paulistas a partir do estabelecimento da economia exportadora capitalista ao final do século XIX. A autora se debruça sobre os inventários para compreender o impacto dos investimentos na economia cafeeira sobre a dinamização econômica e estrutural paulista, que resultou na criação de empresas ferroviárias, de serviços públicos urbanos, industriais e comerciais, fazendo de São Paulo a capital dos negócios. Para o Rio de Janeiro, o estudo de João Fragoso (1992) se esforça em analisar a composição das fortunas a fim de apreender o movimento econômico carioca entre os anos de 1790 e 1830. Embora tal composição fosse caracterizada pelo escravismo e investimentos agrários, os escravos correspondiam a menos de um quinto da riqueza analisada, e os bens rurais representavam menos de 16% dos montantes. Em contrapartida, os investimentos na área urbana e negócios do capital mercantil correspondiam, cada um, a mais de um quarto dos montantes brutos arrolados, representando mais da metade da riqueza inventariada, o que demonstra novas ten-
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dências acumulativas percebidas em diferentes praças comerciais brasileiras, que promoviam alterações nos portfólios conforme a nova disposição econômica. Mediante o uso da história quantitativa junto ao objetivo de se estudar a evolução e composição das fortunas em Belém, fez-se necessário buscar medidas temporais amplas, fazendo da longa duração um instrumento eficaz na percepção das mudanças ou permanências no corpo social que influenciaram, ou não, na composição dos patrimônios pessoais. No campo econômico, destaca Braudel (1990, p. 13-17), a longa duração vem descortinando os acontecimentos e obtendo êxitos inegáveis, de maneira que regularidades ou permanências de sistemas têm sido esclarecidas por estudos que envolvem os ciclos e interciclos, sendo responsável por apresentar uma série de traços comuns imutáveis e outros responsáveis pelas rupturas que renovam a face das sociedades. Em Belém, por exemplo, a borracha não significou uma total ruptura com o sistema agrícola, mas ajudou a consolidar novas formas de investimento na capital e interiores, como os créditos bancários, ações e letras comerciais. Braudel (1995, p. 19) reafirma que estudar as coisas – os alimentos, as habitações, o luxo, utensílios, os instrumentos monetários, em suma, tudo aquilo de que o homem se serve - é uma das formas de avaliar sua existência cotidiana. De maneira que o maior esforço está no estudo da simbiose dos objetos aqui analisados e a sociedade e cultura que os criaram, o mercado e a economia que permitiram sua existência funcional, e os sujeitos que os dominaram.
Difusão da borracha nas pautas de exportação, 1840-1869
Quando o missionário norte americano Daniel Kidder (1980, p. 163-177) passou por Belém, disse que a aparência do Pará era mais ou menos a mesma da maioria das cidades brasileiras, e as casas eram caracterizadas por um conjunto de paredes caiadas e de tetos vermelhos. Atraíam atenção dos transeuntes visitantes as embarcações, uma variedade de barcos desde corvetas até canoas para uso no tráfego fluvial e, também, nas atividades comerciais da cidade, que em muito recebia dos interiores produtos que faziam parte das levas de exportação e de abastecimento da cidade (KIDDER, 1980, p. 172). Porém, em geral, até o fim do período colonial, economicamente a Amazônia pouco tinha sua importância na balança comercial do país, até a efetivação da extração do látex em meados do século XIX. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 145-166, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Na década de 1850, quando pela primeira vez a borracha firmou supremacia no comércio regional, apenas um pequeno setor da classe dos proprietários tinha como base a economia extrativa, haja vista que o maior grupo nesse setor era a comunidade mercantil, expressivamente portuguesa. No Pará, como geralmente no resto do Brasil, a base econômica da classe superior tradicional era a terra, ficando para os estrangeiros as atividades comerciais (WEINSTEIN, 1993, p. 56). Não à toa que, dos portugueses encontrados nesse trabalho, 323 declararam exercer atividades ligadas ao setor terciário da economia, desde pequenas mercearias até firmas de ações, comissões e capitais. Nesse período inicial, entre os anos de 1840 a 1869, no qual a borracha vai assumindo supremacia na economia regional, identificou-se 17 inventários de portugueses, correspondentes a 4,9% do total analisado. Esse pequeno número se deve às dificuldades de identificação dos sujeitos, sobretudo pelo avançado estado de deterioração dos processos. Considerando os bens móveis, os mais representativos correspondem às dívidas ativas (19%, ou 4 indivíduos), junto com os móveis domésticos (14,3%, ou 3 indivíduos), joias (9,5%, ou 2 indivíduos), dinheiro (14,3%, ou 3 indivíduos) e firmas (14,3%, ou 3 indivíduos), conforme ilustra o Gráfico 1: Gráfico 1 - Bens Móveis (1840-1869)
Fonte: CMA – INV – 1840-1869
Em uma cidade em que o setor terciário da economia gira em torno do comércio do látex, ainda se percebe a proximidade com a ruralidade, em virtude da posse de embarcações, sugerindo o transporte de produtos e/ou de pessoas. Com a baixa concentração de ações, hipotecas e letras, entendemos que os investimentos nos serviços, instituições de crédito e equipamentos urbanos ainda eram tímidos, tomando fôlego nas décadas seguintes. A herança constituída em dinheiro
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era representativa para os 17 sujeitos, sem explicitarem, porém, de onde provinham as quantias, expressas em cadernetas de poupança ou como dinheiro em posse de alguém próximo. Dentre os investimentos na cidade, consideram-se ainda as firmas comerciais. Para esse período, encontrou-se um total de três firmas localizadas em Belém: uma de Manoel Marques, outra de Fernando Antônio da Silva Brandão de Abreu Freire e, finalmente, a de Antônio Teixeira Bastos. A firma de Antônio Teixeira Bastos junto com Antônio Mendes dos Reis funcionava na Rua do Imperador, canto do mercado, e correspondia a um estabelecimento comercial, sem maiores especificações sobre os investimentos. O inventário traz a folha de balanço, que inclui: as mercadorias, calculadas em 5:011$037 réis (503 £), o caixa, assessorias, dívidas perdidas e dívidas ativas, que totalizaram 99:850$922 réis (10. 026 £). Infelizmente, o documento é incompleto, estando ausente a pauta de partilha, ou o próprio cálculo do montante de Antônio Teixeira, o que impossibilita definir qual sua parte correspondente na firma, e a herança deixada em seu inventário (CMA – INV – CFL - 1867). O armazém ainda servia de espaço para a realização de leilões por ordem do Consul português no Pará, de bens deixados por falecimento de cidadãos portugueses em Belém (JGO – 1858). Quanto aos imóveis na capital, percebe-se uma tímida, porém crescente iniciativa de investimentos em casas e terrenos. Entre os 17 inventariados, 11 investiam em casas, 6 investiam em terrenos, e 12 voltam seus capitais para ambos. Mesmo com a tímida circularidade dos imigrantes dentre as áreas rurais, encontrou-se 3 portugueses declarando a posse de engenhos. Gráfico 2 - Bens Móveis (1840-1869)
Fonte: (CMA – INV – 1840=1869)
Luiz Monteiro da Silva, natural do Porto, tem seu inventário aberto juntamente com a esposa, Maria Bárbara da Cunha Barros, em 1858. No arrolamento dos bens, é declarada a existência de um engenho de água ardente, uma olaria e mais 4 embarcações, localizadas no Rio Anapú, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 145-166, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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na Ilha do Marajó. Ainda se declarou a posse de cativos, plantações de cana-de-açúcar e cacau, além de 7 casas e 3 terrenos espalhados por Belém (CMA – INV – CFL – 1858). A Ilha do Marajó era conhecida por sua intensa atividade pecuarista, sendo comum encontrar em suas extensões propriedades de tamanho consideráveis, como resquício ou memória das sesmarias concedidas pela coroa portuguesa aos donatários no Pará, propriedades que mais tarde serão áreas de exploração da borracha, como nas outras regiões de ilhas. Quanto ao cacau e ao açúcar encontrados nas propriedades de Luiz Monteiro, é importante atentar-se a alguns aspectos. O cacau e o açúcar foram gêneros que permaneceram na pauta de exportação durante a crescente expansão da borracha, além da castanha e do couro. No quinquênio de 1862 a 1867, quando a economia da borracha já se encontrava com preços mais estáveis e uma grande demanda de exportação, foram vendidas pouco mais de mil arrobas de cacau, contabilizando um total de 6.284:203$103 réis (RPP – PA – 1867) (631.007 £)1. Já o açúcar passou a decrescer na medida em que a produção dos engenhos declinara, sobretudo pela escassez de braços escravos e/ou indígenas para o trabalho na lavoura, vencidos pela maior facilidade de fabricação e prontidão do consumo de água ardente (CRUZ, 1996, p. 50-54). Importante destacar, ainda, a importância de embarcações em áreas de ilha, como no Marajó, e a dinâmica de produção dos engenhos e olarias. Os rios eram os condutores das produções, das riquezas na região amazônica; as embarcações mais extensas, que eram utilizadas como regatões, comercializavam com comunidades afastadas das áreas mais urbanizadas, sobretudo após a abertura oficial dos rios amazônicos à circulação de embarcações estrangeiras, responsáveis pelo incremento no transporte de mercadorias e pessoas, onde se pode observar a atuação de várias companhias de navegação, a citar a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, de propriedade do Barão de Mauá, e a Companhia Fluvial Paraense, que garantiam não somente a circulação de pessoas, mas também de mercadorias entre as cidades (CANCELA, 2006, p. 59). O único sítio encontrado na amostra pertencia a Manoel Monteiro dos Santos. Com a posse de 15 cativos, mantinha sua propriedade no distrito de Aycarau, município de Barcarena, nordeste do Pará. No entanto, seu inventário não deixa claro o uso que dava às suas posses e nem o trabalho pelo qual mantinha o uso da mão de obra escrava. Deixa, porém, um forno de cobre que, provavelmente, era usado para o beneficiamento e produção de algum bem por meio do trabalho escravo. Seu montante foi calculado em 12:738$000 réis (1.191 £) (CMA – INV – CSR – 1868).
1 Valor calculado sobre a cotação anual de 1867, no valor de 9,959 £.
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Nesse momento em que o interior se mantinha importante para a realização das atividades comerciais da capital, a cidade ganhara relevância como local para a realização de investimento, sobretudo pela dinamização das relações comerciais e sociais estabelecidas. Na medida em que a urbe crescia, os aluguéis de imóveis passaram a ser vistos como um bom investimento para o sustento dos indivíduos e famílias que, por ventura, viessem a ter mais de uma propriedade disponível. Localizou-se 5 portugueses declarando possuir mais de uma propriedade de casas. O dito José Antônio dos Santos, natural do Porto, não declara profissão, porém, lega 6 casas em Belém, aos filhos e à viúva, além de 8 cativos. As casas estavam entre as ruas Formosa (atual 13 de Maio), Boa Vista, dos Mercadores (atual João Alfredo) e na Travessa da Companhia (CMA – INV – COR – 1866). A Rua dos Mercadores, em Relatório Provincial de 1880, ainda era citada como uma das vias que devia receber calçamento em paralelepípedo, logo após o término de benfeitorias na Rua Santo Antônio; no entanto, nos relatórios seguintes, encontra-se uma série de reclamações e justificativas para os atrasos em beneficiamentos na cidade, como os calçamentos, em virtude da falta de braços e do custo de materiais, o que poderia causar desvalorização dos imóveis em seus entornos (RPP – PA – 1880), entre eles, os de José Antônio. Entre os bens semoventes, destacam-se os cativos. O número de inventariados donos de escravos perfaz 9 proprietários, que possuíam, ao todo, 378 cativos, com a posse média por indivíduo em 42 sujeitos. Nessa amostra, dois sujeitos se destacaram dos demais, por possuírem um plantel acima dos 50 cativos; juntos, detinham 87% dos escravos encontrados. Entre eles, destaca-se o tenente coronel Francisco Marques d’Elvas Portugal, dono de uma fazenda e um engenho contíguo, o famoso Murucutu, movido à água e com alambiques e tonéis de cobre para armazenamento da produção. Para o trabalho na propriedade, contava com um total de 141 cativos, entre homens e mulheres, sem indicação de características etárias. Possuía, ainda, uma sorte de terras no Rio Acará Miri com árvores frutíferas. Sua fortuna também incluía móveis, prataria, peças em ouro, três terrenos, um prédio na cidade de Belém e dívidas ativas (CMA – INV – CSR – 1840).
Consolidação e expansão da borracha, 1870 – 1909
Durante os 39 anos de maior crescimento da borracha, levantou-se um total de 328 inventários, aproximadamente 95,% do total analisado, devido ao maior número de anos que esse período Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 145-166, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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compreende – um total de 39, em comparação com o anterior, de apenas 29 – e o melhor estado de conservação dos inventários como elemento facilitador para o agrupamento das fontes. O impacto demográfico e econômico do negócio da borracha só viria a ser plenamente sentido com o advento dos “anos dourados” da Amazônia, entre 1880 e 1910, mas desde os meados do século XIX, as exportações de borracha exerciam efeito claramente perceptível sobre as “estatísticas vitais” do Pará (WEINSTEIN, 1993, p. 55-56). No relatório de 1889, o presidente da província, Antônio Braga, lamenta a desorganização dos órgãos ligados à migração, que não souberam aproveitar melhor “os retirantes das províncias flagelados pela seca”, que já disputavam espaço na província do Pará com a leva de imigrantes estrangeiros, a maioria portuguesa. A expansão da economia gomífera trouxe consigo não somente o incremento demográfico, mas também a necessidade da urbe proporcionar a essa população estruturas básicas de acomodação, acentuando a demanda por moradia e por melhorias urbanas. Demanda por moradia que fica evidente pelo número de portugueses declarando a posse de casas, conforme se observa no gráfico seguinte. Gráfico 1 - Bens Móveis (1870-1909)
Fontes: (CMA – INV – 1870-1909.)
As casas, que incluem sobrados, prédios térreos e quarto de casas, representam 54,7% dos bens, compondo a fortuna de 151 imigrantes. Nesse cenário, a posse de mais de um bem habitacional representaria uma quantia extra à renda do indivíduo e da família, se não sua renda total, especialmente em uma cidade que, a cada instante, tinha maiores demandas populacionais. Os imóveis se configuravam a alternativa mais viável de investimento, tendo em vista as oscilações do sistema de crédito bancário, que geravam desconfiança entre os proprietários (CANCELA, 2011, p. 306), embora os investimentos em ações bancárias, firmas e prestadoras de serviços também estejam entre os mais frequentes e numerosos investimentos arrolados.
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Em muitos casos, sugere Weinstein (1993, p. 106), muitos lotes em áreas suburbanas haviam sido adquiridos por uma família décadas antes dessa expansão acelerada da cidade, tornando-se um imóvel de qualidade e bem localizado, na medida em que a cidade ia além de seus limites iniciais. Comerciantes ou não, indivíduos com certo cabedal começaram a adquirir residências, terrenos, prédios comerciais nessas zonas, tornando-se, em muitos casos, os únicos bens descritos nos inventários. Em 1877, Antônio da Silva Maia declara a posse de 28 imóveis em Belém; sem informar ocupação, o inventariado leva a crer que sua renda provinha dos aluguéis dos numerosos imóveis. As propriedades estavam localizadas em 12 endereços distintos, incluindo a Travessa São Mateus (atual Pe. Eutíquio, com 4 casas), Rua Formosa (3 casas), Rua dos Mártires (atual 28 de Setembro, com 3 casas), Rua do Bailique (com 3 casas) e a Travessa das Mercês (atual Frutuoso Guimarães, com 3 casas), próximas às áreas de comércio popular da cidade. A travessa das Mercês havia recebido o “tão reclamado” calçamento em paralelepípedos no ano de 1873, o que pode insinuar valorização de imóveis no entorno (RPP – PA – 1873). Na Rua São Mateus, as casas são pareadas, já que Antônio era dono dos imóveis de número 63, 65 e 67. Na Rua Formosa, a escolha não muda: as casas de número 49, 53, 55 e 57 pertenciam também ao português (CMA – INV – COR – 1877). Um dos imóveis situados na Travessa São Mateus correspondia a um sobrado de dois andares, de número 5A. No térreo, havia duas janelas com grades de ferro, alcova, varanda, dois quartos, dispensa e cozinha, todo espaço forrado, exceto a cozinha. Neste andar, o sobrado ainda contava com um pavimento para armazém, com paredes de pedra e cal. O segundo andar tinha sala, alcova e varanda, espaços todos forrados. Paredes de pedra e cal, ares de perna manca, medindo 13 braças e um palmo de frente, por 11 braças e meia de fundos, avaliado em 16:000$000 réis (1.697 £), maior valor atribuído entre os tantos imóveis. Ainda na São Mateus, o português dispunha de uma casa térrea, sem número, com alcova, varanda, puchada2 com três quartos, cozinha e saguão, tendo em um telheiro dois fornos para padeiro, ares de perna manca, ripas e caibros, toda assoalhada, medindo duas braças e seis palmos de frente, com dezessete braças de fundo, avaliada em 6:000$000 réis (636 £). Percebemos, pela avaliação dos imóveis de Antônio, que não bastava este ser bem localizado, importava também sua utilidade. Embora o segundo disponibilizasse fornos para padaria, o primeiro possuía espaço para armazém, o que, em uma área próxima ao centro comercial, como era a Rua São Mateus, poderia ser mais passível de lucro, especialmente pelo valor da locação. As quintas/sítios nesse período sofrem um aumento em relação ao período anterior, saltando de 1 para 11 descrições. Dos 11 portugueses com essas propriedades, 6 informavam suas localizações. Quatro as mantinham dentro da Província, nas regiões de Chaves, Acará, Ourém e Bujarú, 2 Puchada corresponde a uma construção simples, geralmente externa à construção do imóvel para alocação de compartimentos extras Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 145-166, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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porém sem informações adicionais sobre seu uso. Dois deles mantinham quintas em Portugal: o comerciante Manoel José Pereira Junior (CMA – INV – COR – 1886) e o proprietário José Pereira Barbosa (CMA – INV – CFL – 1904), cujas propriedades estavam situadas no distrito de Viana do Castelo, de onde eram naturais. Por esses bens, poderiam agregar capital simbólico junto não apenas à comunidade lusa local mas, também, aos que viviam em Portugal, o que era sustentado pelo mito de riqueza que girava em torno do Brasil, ou mesmo pela manutenção dos laços com sua terra e pelo apoio ao sustento da família que lá ainda fixava moradia. Os bens foram referidos, mas não eram partilhados nos autos do processo aberto no Pará, não informando suas avaliações. Em torno desse ideário de manter laços com a terra natal, podemos inserir ainda a perspectiva do retorno, seja ele temporário ou definitivo, uma vez que, para muitos portugueses, a ideia era migrar, e agregar rendimentos que pudessem garantir junto ao retorno melhores condições de vida, para ele e para os seus. Como esclarece Alves (1993, p. 12), no refluxo do movimento migratório, muitos emigrantes voltam episódica ou definitivamente. Este [o migrante] retornado sem capital acumulado, mais discreto, procurava fazer passar desapercebido o seu infortúnio, ou evidenciava a doença que lhe corroeu o corpo e o ânimo. Aquele [migrante] marcado pelo sucesso, com sotaque na fala, indumentado de calças brancas, casado de ganga, chapéu de Chili, adereçado de cadeia de oiro e anel de brilhante, num exotismo de modos que o romantismo, fixará para sempre, recriando o estereótipo do brasileiro (ALVES, 1993, p. 12). Na quinta de José Pereira Barbosa, ainda havia uma morada de casas e um campo de lavrar com vinha, o que deveria ajudar no sustento da família. Os engenhos representam 1% da amostra, no total de três unidades, a mesma quantidade do período anterior. Localizados na região de Acará, Distrito de Benfica e Estrada de Bragança, se desconhece quais eram suas produções, uma vez que nos autos apenas eram citados como engenhos, exceto aquele localizado na Estrada de Bragança, voltado à fabricação de água ardente e rapadura. Os três inventários não trazem o valor dos montantes de cada proprietário, não permitindo comparar aos valores encontrados para o período anterior. Em relação à região do Acará, há tempos essa área havia sido ocupada por diversos sujeitos, estrangeiros e nacionais, em virtude de sua maior oferta de terras e facilidade de acesso à capital. Na mesma região, foram doadas ao menos cinco sesmarias, que revelam uma lógica particular de ocupação do território pela agricultura, a partir do sistema fluvial composto pelos rios Acará, Moju, Capim e Guamá (CHAMBOULEYRON , 2010, p. 104). As fazendas se resumiram em duas unidades: uma em Mosqueiro e outra em Soure, na Ilha do Marajó. Esta última área foi definida por Weinstein (1993, p. 57) como a zona preferida para a pecuária, onde era possível encontrar pastagens prontas a serem utilizadas na criação de gado. Na descrição da fazenda de Manoel José Lourenço de Carvalho, em Mosqueiro, havia apenas animais bovinos, sem menção ao valor final do montante (CMA – CFL – INV – 1885). Em Soure, na propriedade de Fernando Maria da Cunha, são descritos animais bovinos e cavalares, tendo montante calculado em 484:930$128 réis (38£) (CMA – INV – CFL – 1887). Nesse período, a novidade dos bens inventariados são as estradas de seringa, que aparecem
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em 6 processos, num total de 329 estradas. Embora pareça um número pequeno em relação à amostra, é importante por apontar, além do investimento direto na borracha, a posse de terras em áreas rurais, tradicionalmente concentradas em mãos de nacionais, principalmente na região do Marajó, marcada pelas sesmarias doadas aos da terra. E mesmo por serem os portugueses mais frequentes no setor terciário ligado à borracha, com casas de aviamento, consignações e comissões. Este é o caso de um dos maiores comerciantes de borracha do Pará, Bento Rebelo de Andrade, sócio na firma Darlindo Rocha & Companhia, voltada ao comércio de aviamento, importações e comissões, com sede em Belém e filial em Manaus (CMA – INV – COR – 1900). Quantos aos bens móveis, sobretudo aos investimentos financeiros, percebe-se um considerável aumento em comparação à primeira amostra, sobretudo quanto à presença do dinheiro (32,8 % da amostra, correspondente a 135 portugueses), ações comerciais (19 %, 78 investidores), seguida das letras (27 investidores, 6,6 % da amostra), dívidas ativas (6,1 % da amostra, correspondendo a 25 investidores) e, finalmente, as apólices diversas (3,2%, 13 portugueses), além das firmas comerciais (16,3% dos portugueses, 67 investidores), conforme o Gráfico 4. Gráfico 4 - Bens Moveis: Investimento financeiron(1870-1909)
Fontes: (CMA – INV – 1970-1909)
Junto ao crescimento econômico que Belém vivenciava, muitos paraenses e estrangeiros ricos possuíam restrições para conseguir crédito a longo prazo – justificadas pelo capital escasso e fragmentado em pequenas fortunas particulares e, ainda, pela escassez de recursos privados,
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que seriam responsáveis pelo baixo nível de progresso agrícola e industrial da região – optando, por fim, investir na prosperidade dos negócios da borracha, como em ações bancárias, que ofereciam rendimentos maiores e mais rápidos, e nos imóveis urbanos de onde os lucros eram mais viáveis (WEINSTEIN, 1993, p. 107). Até o ano de 1880, havia apenas um banco de capital na região, o Banco Comercial do Pará, com um capital de mil contos até os anos de 1870, insuficiente para atender à demanda comercial que a comunidade mercantil do Pará precisava à época. Mobilizados pela expansão econômica promovida pela borracha, foram fundados outros cinco novos bancos, com capitais investidos do Pará e do Amazonas. Essa expansão do setor de crédito não era restrita à região amazônica e à produção de borracha; em regiões como o Vale do Paraíba paulista, os avanços são perceptíveis, sobretudo a partir da década de 1850, com o estabelecimento do Código Comercial e da Legislação Hipotecária de 1864/65 (MARCONDES, 2002, p. 147). Longe de limitarem seus investimentos em ações bancárias, os portugueses aproveitaram a remodelação da cidade para garantir boas aplicações na área de serviços públicos. Um dos empreendimentos mais importantes nesse sentido talvez tenha sido a Companhia das Águas do Grão-Pará, que dirigiu a construção, o funcionamento e a manutenção do abastecimento de água em Belém entre 1881 e 1895. Com ações no valor de 100 mil réis, a companhia conseguiu atrair um grande número de acionistas, entre eles, José Augusto Correa, estabelecido com firma comercial em Belém que, à data de abertura do inventário, em 1892, possuía 1200 ações da Companhia das Águas, tendo declarado ainda investimentos em imóveis em Portugal, 120 ações da Companhia Urbana, 2 ações da Companhia de Seguros Paraense, 100 ações do Banco Comercial do Pará, 307 letras hipotecarias, 5 apólices, 14 apólices do Estado do Pará e dinheiro (CMA – INV – OR – 1892) Cabe ainda destacar a presença e representatividade das firmas comerciais como um dos investimentos que alcançou o maior índice de crescimento do primeiro período para este, passando de 3 a 67 unidades, entre pequenos comércios de varejo, livrarias, grandes empresas de consignações e comissões, importados, entre outros. A maior parte destas empresas eram ligadas a indivíduos com montantes acima dos 100 contos. A Casa Pekin, firma João Costa & Cª, era do português José da Costa Braga (CMA – INV- CST – 1903) e de João Moreira Costa (nacionalidade desconhecida), especializada em louças, cristais, vidros e candeeiros, e estabelecida na Rua Conselheiro João Alfredo, nº 96. A loja tinha seis sessões: “louças e porcelanas, cristais e vidraçaria, lustres e candeeiros, christofle e eletro-plate (talheres, artigos de mesa, serviços para chá e café, porta joias e bibelôs), artigos de bohemia
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e vários artigos”. Trabalhava com importações da França, Inglaterra, Alemanha, Áustria, China, Japão e América do Norte, e aceitava consignações de toda espécie. Considerada como um empreendimento “digno da prosperidade” pela qual passava a Amazônia, fez parte do livro O Pará Commercial, distribuído na Exposição de Paris de 1900, a fim de que fosse do conhecimento dos “países cultos o progresso e prosperidade do estado do Pará” (CACCAVONI, 1900, p. 5-30). A Ribeiro da Silva & Companhia, uma das maiores firmas de Belém, voltada para o comércio de ferragens e de aviamento, era propriedade de José Caetano Ribeiro da Silva (CMA – INV- COR – 1900b), matriculada na Junta Comercial do Pará em 1899, em sociedade com seu filho José Caetano Junior, Antônio José Alves e Manoel Rodrigues de Santana, os dois últimos, respectivamente, português e brasileiro. Um elemento que chama atenção na composição da firma é a presença de um sócio brasileiro, possivelmente paraense, o que poderia garantir ao negócio maior credibilidade e confiança no mercado provincial, principalmente quando consideramos os conflitos que, de antemão, nortearam a relação entre lusos e paraenses, e culminaram na Cabanagem. Além disso, a presença de um sócio português leva a entender que, por estarem distantes de sua terra natal, os imigrantes buscavam manter laços com seus conterrâneos, estabelecendo redes de solidariedade. A fortuna de José Caetano foi calculada em 1.169:638$819 contos de réis (45.615£). Era composta por casas, num total de 18 unidades, terrenos (2 unidades) e o capital proveniente da firma comercial. Claramente, a fortuna do português retratava a nova tendência de investimento presente em Belém, onde as estruturas ligadas à terra decrescem, dando espaço aos investimentos na cidade, principalmente em imóveis nas áreas de expansão do centro urbano. José Caetano também se destaca por sua atuação na Praça do Comércio, que mais tarde mudou seu nome para Associação Comercial do Pará, onde, ao lado do também influente comerciante português Bento Rebello de Andrade, participou das reuniões que reorganizaram aquela associação, tendo seus nomes revezados nos seus diversos cargos, desde a presidência às diretorias (CANCELA, 2011, p. 366). Além dos investimentos financeiros, localizou-se uma variedade de bens móveis, entre embarcações, móveis domésticos, joias e mercadorias, estas últimas especialmente em inventários de comerciantes, como o processo de Francisco Xavier Pinheiro Braga, proprietário de uma livraria, onde se lê uma expressiva e vasta relação de livros (CMA – INV – CFL – 1889). Há ainda Manoel Joaquim de Souza, estabelecido com a firma Moreira Gomes & Companhia, destinada à venda a grosso ou a retalho de mercadorias, sobretudo ferragens, trabalhos de compra e vendas, exportação e importação de ferragens, trânsito e comércio bancário, havendo a descrição Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 145-166, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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de vários itens de ferragens no arrolamento de bens (CMA – INV – CFL – 1907). A descrição desses bens materiais no decorrer dos anos vai sendo substituída pela citação ampla dos investimentos financeiros, que incluem ações, letras, apólices e outros, notadamente pela maior valorização destes em meio ao cenário de intensas mudanças sobrevindas com a exportação de borracha. Gráfico 5 - Bens Moveis: Materiais (1870-1909)
Fontes: (CMA – INV – 1870-1909)
Entre os bens semoventes, especialmente os escravos, o número de proprietários de cativos sofre um aumento em comparação aos anos anteriores, porém com quantitativos em declínio. Os animais, em posse de 6 proprietários, se distribuem entre as fazendas e as quintas/sítios, sendo, sobretudo, gado vacum, garrotes e cavalares. Neste recorte, foram localizados 13 proprietários de escravos que juntos possuíam um plantel
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com 42 indivíduos, contrastando com os 378 encontrados em mãos de 9 proprietários no primeiro período analisado. A maior parte dos cativos, em número de 10, pertencia ao comendador Joaquim da Silva Arantes (CMA – INV – COR – 1876), que possuía entre terrenos e casas, um sítio sem localização exata. Entre junho de 1885 e maio de 1887, a taxa de declínio da população escrava no Grão Pará alcançou 47,9%, diminuindo de 20.218 cativos para 10.535 cativos, sendo então a quinta maior do Império, atrás de localidades no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraíba e Paraná. Essas elevadas taxas de declínio podem ser explicadas como resultado de falecimento, pela aplicação da legislação emancipadora ou pelo avanço do abolicionismo nessas localidades nos anos finais da escravidão, tanto que, entre 1871 e meados de 1885, 3.962 escravos haviam falecido. Além disso, o número de ingênuos filhos de mulheres escravas libertos pela Lei do Ventre Livre era da ordem de 10.685 crianças; o número das libertações dos escravos sexagenários no Pará, da ordem de 919 pessoas entre 1885 1887; o Fundo de Emancipação no Pará libertou mais de 687 indivíduos por alforrias pagas pelos escravos; e as concedidas pelos senhores, entre 1871 e 1885, libertou 7.258 cativos (BEZERRA NETO, 2001, p. 116).
Considerações finais
O destino dos imigrantes é construído na cidade de Belém pelas oportunidades que ela os apresenta no momento da chegada, sobretudo na área urbana, onde estabeleceram, majoritariamente, suas redes de sociabilidade, entre os enlaces familiares e profissionais. Os anos de 1840 abrem as portas para uma série de mudanças em praticamente todas as estruturas de Belém. Com o fim da Cabanagem, a década de quarenta dará prosseguimento ao crescimento econômico da Província, que chegará à década de sessenta como uma das mais expressivas e promissoras economias do país, em virtude da exportação gomífera, responsável por aumentar consideravelmente a arrecadação dos cofres públicos e por patrocinar uma série de beneficiamentos na cidade, que irão atingir e dar oportunidade aos portugueses, como a aquisição de imóveis, firmas e alguma terra que conseguissem arrematar. Na Belém rica, dos grandes seringalistas, dos barões e viscondes, crescente na economia, na população e no traçado urbano, os portugueses puderam projetar a sonhada árvore das patacas, a fonte da riqueza, e dela se apropriaram, tornando-se tão conhecidos e influentes quanto os naturais.
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No primeiro período, de 1840 a 1869, o patrimônio se mostrou concentrado em torno das dívidas ativas, das casas e terrenos na cidade, engenhos e escravos, aquisição de joias, móveis domésticos e dinheiro. A circularidade dos sujeitos se refletirá, sobretudo, na manutenção de engenhos nos interiores e na fixação de moradias na capital, além de na participação em diferentes ocupações, ora como agricultores, proprietários, ora como comerciantes. As fortunas com maiores montantes concentram os investimentos em bens rurais, novamente os engenhos, junto de embarcações e plantações. As firmas comerciais surgem como um tímido investimento para, então, tomarem fôlego nos anos seguintes, quando a cidade consolida o ritmo de crescimento. Como foram localizados poucos processos, não se pode afirmar que esse padrão representa o dos demais imigrantes, mas garante margem para comparar com outros grupos da cidade. No segundo momento, entre os anos de 1869 e 1909, na Bélle Époque paraense, a área urbana já se mostrava mais desenvolvida, concentrando boa parte dos portugueses no setor terciário da economia. A distribuição do patrimônio não se difere totalmente daquela identificada no período anterior. Observou-se a ampliação nos investimentos em imóveis e a diminuição já esperada do acúmulo de cativos e, como novidade, as estradas de seringa. Nesse período, os imóveis dividiram espaço com as dezenas de firmas, dezenas – por vezes, milhares – de ações das mais variadas companhias e instituições bancárias, de clubes e empresas de serviços públicos, que vieram junto à criação de uma Belém moderna, à altura da riqueza que a borracha garantia aos cofres da província. Não à toa, o dinheiro corrente se torna um elemento comum na maioria das heranças. As fortunas acima dos cem contos de réis pertencem a indivíduos atuantes no setor terciário da economia, reafirmando a importante participação que os portugueses tiveram para a consolidação de uma ampla rede mercantil na cidade. Com as devidas observações, entendemos que a borracha e a rede capitalista a ela agregada foram importantes mecanismos de investimento e acumulação entre os portugueses, colaborando para a elevação dos montantes e promovendo, por vezes, o enriquecimento de diversas famílias e sujeitos de origem portuguesa. Riqueza da borracha que se estendeu pelas vias públicas, pelas áreas de entretenimento, pelos portos, por propriedades em Portugal, mas que não necessariamente se estendeu a todas as parcelas da população. Os bens adquiridos durante os anos de maior liquidez econômica tornaram-se constantes entre os portugueses nas diferentes temporalidades, de modo que não é possível identificar mudanças bruscas entre a composição dos patrimônios e as formas de adquiri-los, demonstrando estabilidade entre os negócios empreendidos em Belém durante a maior parte do século XIX e início do XX.
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Entre escravos e livres: economia e força de trabalho no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista no terceiro quartel do século XIX* Among slaves and free workers: economy and labor force in São Paulo in the second part of the 19th century Marcelo Freitas Soares de Moraes Cruz Universidade de São Paulo
Resumo
Abstract
O artigo traz uma análise da estrutura da força de trabalho posicionada no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista. A partir dos dados do censo de 1872, buscamos verificar empiricamente a proporção de trabalhadores livres e escravizados na força de trabalho, e sua segmentação entre as atividades econômicas. Constatou-se que a expansão da economia agrícola, puxada pela lavoura cafeeira, foi responsável pela mobilização de uma parcela da força de trabalho livre muito maior do que foi previsto nos estudos clássicos da história econômica.
This paper presents an analysis of the structure of the labor force positioned in Vale do Paraíba and the west region of São Paulo state, in Brazil. Relying on data from the 1872 census, our main effort was to find, based on empirical methods, the ratio between free and slave labor force, and its distribution among economic activities. It has been found that the expansion of agricultural economy, driven by coffee production, was responsible for mobilization of free labor, in far higher levels than originally presumed in traditional studies on economic history.
Palavras-chave: Força de trabalho; Escravidão; Trabalho livre; Economia cafeeira.
Keywords: Labor force; Slavery; Free labor; Coffee economy.
* Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Simpósio “Metodologia e fontes para os estudos de família, gênero, qualidade e mestiçagem nas sociedades do passado. Etapa protoestatística e estatística”, no âmbito do 8º Congresso Internacional CEISAL, realizado em Salamanca, Espanha, entre 28 de junho e 1º de julho de 2016.
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I n t r o d u ç ã o
O
presente artigo remonta à estrutura da força de trabalho nas duas regiões rurais paulistas mais dinâmicas do ponto de vista econômico: o Vale do Paraíba e o Oeste Paulista. Os dados do Recenseamento de 1872 serviram como base empírica para o estudo. No
terceiro quartel do século XIX, a cultura cafeeira do Vale deixava para trás seu apogeu produtivo, enquanto a região do Oeste Paulista experimentava uma voraz expansão da cafeicultura. A pesquisa foi guiada por dois objetivos. O primeiro foi buscar contornos empíricos para a proporção entre trabalhadores escravos e livres na força de trabalho engatada na agricultura paulista. O segundo foi verificar a participação da população livre e escrava em atividades não agrícolas, como a manufatura/artesanato, em um contexto marcado pela expansão da fronteira agrícola, aumento da demanda por trabalho e encarecimento do braço cativo. Enfrentamos essas problemáticas de pesquisa utilizando as tabulações do recenseamento que dividem a população paulista ao largo das mais variadas profissões. Circunscrevemos as regiões rurais destacadas para o estudo através de amostras formadas por cidades de cada uma delas. Do Vale, foram selecionadas as cidades de Bananal, Areias, Taubaté, Jacareí, São José do Barreiro, Pindamonhangaba e Paraibuna. A amostra do Oeste Paulista foi composta pelos municípios de Jundiaí, Casa Branca, Campinas, Piracicaba, Rio Claro, Sorocaba e Atibaia.
Expansão da economia e a dificuldade na reprodução do capital escravista mercantil
Havia dois complexos escravistas montados no Brasil durante a segunda metade do século XIX. Tratam-se do complexo nordestino e o do centro-sul (SLENES, 2004, p. 326). Ambos eram caracterizados pela produção de uma miríade de gêneros orientados para os mercados interno e externo. Entretanto, o foco na camada superior da economia rural jogava luz, no caso nordes-
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tino, sobre a produção de açúcar e de algodão. Aplicado ao do centro-sul, esse foco mostrava uma lavoura exportadora escravista dividida em torno da produção de açúcar, algodão e café. O dinamismo econômico destes complexos escravistas era dado, na segunda metade do século XIX, através de suas interações estabelecidas com o centro do capitalismo mundial. Esse momento coincide com a disseminação de sistemas industriais modernos na Europa e nos Estados Unidos. O avanço da industrialização para segmentos tecnologicamente avançados conferiu protagonismo aos centros urbanos e promoveu a expansão dos grupos sociais de renda média, marcando a emergência de padrões de consumo em massa. Segundo Tomich (2010, p. 110), essas transformações foram responsáveis pelo aumento da demanda no mercado internacional de commodities. A reação apresentada pelos dois complexos escravistas do Império, diante dos estímulos externos, foi distinta. De um lado, a produção nordestina de açúcar foi incapaz de competir com a mais eficiente e moderna produção cubana. De outro, o centro-sul do Império apresentou reação agressiva aos estímulos colocados no âmbito do mercado mundial. Neste caso, o dinamismo da demanda encontrou resposta adequada pelo lado da oferta, expressa na expansão da fronteira agrícola e no vigoroso crescimento das exportações da rubiácea. Posicionemos as duas regiões rurais de São Paulo nessa trajetória de avanço da lavoura cafeeira. O Vale do Rio Paraíba do final dos setecentos era uma região pobre, caracterizada pela policultura sem orientação comercial. Nas primeiras décadas dos oitocentos, o café se alastrou rapidamente das proximidades da Capital Imperial em direção ao Vale do Paraíba. Em sua parcela paulista, a onda verde foi responsável pela formação de importantes municípios cafeeiros, como Areias e Bananal. A gênese da lavoura escravista de exportação imprimiu dinamismo econômico e demográfico aos núcleos populacionais cafeeiros do Vale. Ele se manifestou através da pujante absorção de mão de obra escravizada; da disseminação da plantation; e da integração dessa lavoura no comércio internacional. A produção foi ascendente nessa região. Em meados da década de 1830, Areias e Bananal estavam no grupo das principais regiões exportadoras do Império (MOTTA, 2012, p. 40). Cabe lembrar que a especialização na cultura cafeeira não era uma marca geral da camada superior do agro valeparaibano. Lorena, São José do Barreiro e Taubaté dividiam seus principais fatores de produção entre as lavouras cafeeira e canavieira. O Oeste Paulista apresentou trajetória econômica diferente. O impulso para o desenvolvimento do capital escravista mercantil (PIRES & COSTA, 2010, p. 13) ocorreu no final do século XVIII, Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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através da lavoura canavieira. Petrone (1968) remontou o desenvolvimento do quadrilátero do açúcar, formado por Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí. Sua produção abastecia os mercados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro com derivados da cana. A partir da década de 1840, a região passou por uma transição para o café. Utilizando dados da Barreira de Cubatão, rota para o porto de Santos, a autora percebeu que, já em 1850, o volume exportado de café havia ultrapassado o de açúcar e de aguardente. Esta mudança envolveu transferência dos principais ativos de uma cultura para a outra: os escravos e as terras mais férteis (PETRONE, 1968, p. 162). Sua motivação foi a dinâmica de preços do açúcar e do café no mercado internacional. Entretanto, foi uma transição parcial, uma vez que a maior parte dos municípios, como Piracicaba, continuavam produzindo derivados da cana. Tabela 1 - Produção de Café na Província de São Paulo (em arrobas). Localidade Vale do Paraíba* Oeste Velho** Província de São Paulo
1854
% do total
1886
% do total
2.737.639
77,5
2.074.267
20
796.617
22,5
7.729.083
74,5
3.534.256
100
10.374.350
100
Fonte: Milliet (1982, p. 21-22). *Engloba a região do Litoral Norte. **Engloba as regiões central, paulista e mogiana.
As evidências presentes na Tabela 1 indicam que ambas as regiões passavam por processos econômicos distintos durante a segunda metade do século XIX. De um lado, houve a perda de fôlego produtivo por parte da cafeicultura valeparaibana, devido ao esgotamento dos solos. De outro, ocorria rápida expansão desta lavoura no Oeste Paulista, onde fora notável o ímpeto exportador dos produtores de Campinas. O censo estudado foi produzido em 1874. Trata-se de um momento situado em meio a estes dois processos, mais especificamente quando o esgotamento dos solos apenas iniciava o processo de solapamento dos fundamentos econômicos da acumulação no Vale. Portanto, devemos salientar que essa região ainda mantinha sua primazia, na Província, nos quesitos produção e exportação da rubiácea durante a década de 1870 (HOLLOWAY, 1984, p. 22). A Tabela 2 permite a visualização dos dados referentes à produção de café nas cidades selecionadas para o estudo. São estimativas arroladas por Milliet (1982). É notória a importância dessa lavoura nas localidades que formam nossas amostras.
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Tabela 2 - Produção de Café nas cidades que compõem as amostras (em arrobas). Localidade
1836
1854
1886
Bananal
64.822
554.600
100.000
Areias
102.797
186.094
-
Taubaté
23.607
354.730
300.000
Jacareí
54.004
240.000
56.000
Paraibuna
3.179
7.261
11.159
São José do Barreiro
-
-
173.333
Pindamonhangaba
62.628
350.000
200.000
Amostra - Vale do Paraíba
311.037
1.692.685
840.492
335.550
1.500.000
Campinas Piracicaba
4.699
-
300.000
Rio Claro
-
99.670
600.000
Sorocaba
770
12.750
-
-
1.750
300.000
60.000
133.333
520
6.100
-
5.958
515.820
2.833.333
Casa Branca Jundiaí Atibaia Amostra – Oeste Paulista
Fontes: dados para o ano de 1836: Müller (1978, p. 124-127); dados para os anos de 1854 e 1886: Milliet (1982, p. 41, p. 48, p. 53-54).
Apesar do peso relevante na estrutura produtiva, havia grande disparidade no que diz respeito à quantidade de café produzido nas localidades. Infelizmente, não dispomos de uma base de dados sobre produção de café com cobertura sobre todas essas cidades para a década de 1870. Porém, podemos inferir que Bananal, Pindamonhangaba, Areias e Taubaté, pelo lado do Vale, ainda continuaram se destacando como grandes produtores na primeira metade da década de 1870. Já pelo lado do Oeste Paulista, Campinas, Piracicaba, Rio Claro, Casa Branca e Jundiaí foram importantes arenas da expansão cafeeira. O Almanak da Provincia de São Paulo (1873 apud LUNÉ & FONSECA, 1985) traz informações que nos ajudam a remontar o panorama produtivo das cidades que compõem as amostras regionais deste estudo. A fonte menciona as culturas de destaque de cada uma das cidades. Foi possível resgatar o papel preponderante do café, da cana e do algodão nas regiões. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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A produção deste último gênero também apresentou crescimento em São Paulo entre as décadas de 1860 e 1870. As causas desse florescimento residem na desarticulação da economia do sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão. A redução da oferta no mercado internacional estimulou a produção em regiões de menor produtividade relativa. Essas aproveitaram a conjuntura favorável ao vincular-se à demanda da manufatura têxtil europeia. Sorocaba era a principal zona produtora de algodão da Província. Tabela 3 - Principais culturas nas cidades que compõem a amostra (1873) Localidade
Principais culturas
Bananal
Café
Areias
Café
Taubaté
Café, Cana e Algodão
Jacareí
Café
Paraibuna
Café e Algodão
São José do Barreiro
Café e Cana
Pindamonhangaba
Café e Algodão
Campinas
Café e Cana
Piracicaba
Café, Cana e Algodão
Rio Claro
Café e Cana
Sorocaba
Algodão e Gêneros Alimentícios
Casa Branca
Café, Cana, Algodão e Fumo
Jundiaí
Café, Algodão e Cana
Atibaia
Café, Algodão e Gêneros Alimentícios
Fonte: Luné e Fonseca (1985, p. 147-158).
O pujante crescimento apresentado pela economia rural paulista ao longo do terceiro quartel do século XIX foi marcado pelo aumento no nível de especialização produtiva nas culturas mais nobres e pelo protagonismo dos agricultores escravistas na expansão do produto. Cabe ressaltar, entretanto, a faceta relativa deste processo, uma vez que tal expansão não negava a
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presença de pequenos agricultores não escravistas, e nem a produção de alimentos na estrutura produtiva. O panorama das realidades econômicas em tela só se torna completo com uma apreciação acerca da principal relação social de produção, responsável pela maior parte da riqueza produzida nas duas parcelas do agro paulista: a escravidão. No terceiro quartel dos oitocentos, a elevação do preço dos cativos trouxe dificuldades para a reprodução do capital escravista mercantil. Essa elevação era causada pelo encerramento do tráfico atlântico e por um descompasso entre demanda e oferta de trabalho (EISENBERG, 1989, p. 230). Esse último problema era latente no Oeste Paulista, onde uma voraz expansão da fronteira agrícola estava em movimento. Tendo em vista a importância econômica do escravismo, é possível dizer que esse efeito de elevação dos custos afetava o mercado de trabalho e a lucratividade do setor. A valorização do braço cativo no principal mercado brasileiro, o Rio de Janeiro, foi de 200% entre 1850 e 1874. Houve viés de alta dos preços durante essa última década. O ano de 1872 marcou o início de uma escalada nos preços, interrompida apenas em 1877. A valorização foi de 30% nesse curto período (GOLDSMITH, 1986, p. 30-31). As estimativas de preços apresentadas por Dean (1977, p. 66) para Rio Claro indicam que o valor médio dos escravos do sexo masculino aumentou 54% entre as décadas de 1850 e 1870. Cabe salientar também que o tráfico interno atingiu o auge de sua intensidade nessa última década (MOTTA, 2012, p. 163). Ele foi importante no Vale e, sobretudo, no Oeste. A dinâmica do preço dos cativos representou um problema real para os fazendeiros que precisavam ampliar seus planteis. Porém, a intensidade desse problema apresentou manifestações distintas nas duas zonas agrícolas. Por um lado, os fazendeiros valeparaibanos foram menos afetadas por essa problemática relacionada à oferta do braço cativo. Em torno dos núcleos urbanos da região estavam assentadas sociedades escravistas maduras, formadas através de intensa relação com o tráfico atlântico até 1850. Portanto, a reposição de trabalhadores escravos só era necessária quando as famílias escravas constituídas nas fazendas não eram capazes de exercer esta função. Por outro lado, a gestação da lavoura cafeeira escravista no núcleo do antigo quadrilátero do açúcar apresentou maior dependência em relação ao tráfico interno e ao recurso ao trabalho Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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livre, sobretudo na montagem das fazendas durante a segunda metade dos oitocentos. Essa é a região que apresentava maior demanda por mão de obra. Tal conjuntura complicada enfrentada pelos agentes econômicos não impediu a reprodução da plantation no Vale do Paraíba e nem sua expansão no Oeste Paulista. Apesar da alta nos custos da aquisição de escravos, a população cativa cresceu 33% em São Paulo entre a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz e a realização da pesquisa censitária na Província. Devemos encarar o aumento absoluto do número de cativos à luz de duas modificações demográficas em curso no terceiro quartel dos oitocentos. Em primeiro lugar, seu crescimento não impediu a redução do peso relativo dos escravos na totalidade da população. O número de cativos saltou de 117.238, em 1854, para 156.612, em 1874. Entretanto, o peso relativo destes na população total declinou de 28,5% para 18,7% (EISENBERG, 1989, p. 225). Em segundo lugar, ocorreu um processo de concentração de escravos nas parcelas mais dinâmicas do agro, identificadas com o café (MATTOS, 2015, p. 146). Tal processo corroborou o papel essencial da escravidão na organização do sistema de grande lavoura entre as décadas de 60 e 70 do século XIX (LUNA & KLEIN, 2010, p. 91). Tabela 4 - Condição Social da População – Vale do Paraíba e Oeste Paulista (1874)
Localidade
Livres
Escravos
Vale do Paraíba*
80,7%
19,3%
Oeste Paulista*
77%
23%
Amostra Vale do Paraíba
71,8%
28,2%
Amostra Oeste Paulista
69,5%
30,5%
Província de São Paulo
82%
18%
*Fonte: Eisenberg (1989, p. 226). Obs: Os dados para o Vale do Paraíba e do Oeste Velho incluem, respectivamente, o Litoral Norte e a Zona Central.
A Tabela 4 é estratégica em nossa análise por três motivos. Em primeiro lugar, ela informa que a presença cativa continuava sendo muito elevada nos dois espaços econômicos estudados. Ou seja, traz a evidência empírica do processo de concentração de escravos ao qual fizemos menção. Trata-se, também, de um indicativo importante acerca do desenvolvimento da agricultura
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comercial sob a égide da escravidão em São Paulo. O padrão de lucratividade alcançado por esse tipo de lavoura permitiu que as dificuldades na reprodução do escravismo fossem contornadas. Em segundo lugar, podemos afirmar que o peso relativo dos escravos no total da população do Oeste Paulista era ligeiramente superior ao do Vale. Significa dizer que a primeira região operava com taxas de investimento mais elevadas que a segunda – fato explicado pelo Oeste ter composto a fronteira agrícola da Província. Segundo Motta (2012, p. 153), a população cativa de Piracicaba quadruplicou entre 1850 e 1870. Por fim, as amostras retiradas do censo para as duas regiões apresentam maior peso demográfico relativo para a população escrava do que a realidade captada nos dados compilados na obra de Eisenberg (1989, p. 229), que é mais ampla do ponto de vista geográfico. Significa dizer que nossas amostras captam franjas das duas regiões dotadas de maior capacidade em concentrar escravos.
Análise da estrutura da força de trabalho
Nesta seção, a estrutura da força de trabalho das duas regiões será analisada. Os dados censitários formam a base empírica da análise. Utilizamos os dados do censo de 1872 tabulados pelo Núcleo de Estudos de População “Elza Brequó” (Nepo/Unicamp). Os dados da província de São Paulo estão organizados na publicação São Paulo do Passado: Dados do Passado, organizada por Maria Silvia Bassanezi e sua equipe (BASSANEZI, 1998). Primeiramente, serão apresentados os dados demográficos básicos, que fornecem uma visão geral sobre a divisão da população entre livres e escravos e sobre as dimensões da população em idade ativa (PIA) em cada uma das localidades. Apesar de cobrir regiões nas quais o braço escravo se concentrava, notamos que o peso relativo desse grupo no total da população variava bastante entre os municípios. Bananal e São José do Barreiro, no Vale, e Campinas, no Oeste, destacavam-se enquanto zonas de altíssima concentração de cativos. Como mencionamos, eram localidades líderes do setor exportador. Nas cidades do Vale, com exceção dos habitantes de Bananal e de São José do Barreiro, a população livre forResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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mava, em média, 80% da população. No Oeste, com exceção da população de Campinas, os livres atingiam 76% do total. Portanto, era nítido o predomínio dos livres na estrutura demográfica. Tabela 5 – População e Condição Social (1874). Localidade
Livres
Escravos
Total
7.325 (47%)
8.281 (53%)
15.606 (100%)
Areias
3.819 (66,8%)
1.898 (33,2%)
5.717 (100%)
Taubaté
15.225 (80,4%)
3.708 (19,6%)
18.933 (100%)
Jacareí
8.629 (84,5%)
1.574 (15,5%)
10.203 (100%)
Paraibuna
9.048 (89,3%)
1.084 (10,7%)
10.132 (100%)
São José do Barreiro
3.125 (55%)
2.544 (45%)
5.669 (100%)
Pindamonhangaba
10.918 (74,6%)
3.718 (25,4%)
14.636 (100%)
Campinas
17.712 (56,4%)
13.685 (43,6%)
31.397 (100%)
Piracicaba
13.566 (71,5%)
5.414 (28,5%)
18.980 (100%)
Rio Claro
11.100 (73,8%)
3.935 (26,2%)
15.035 (100%)
Sorocaba
10.543 (75,3%)
3.456 (24,7%)
13.999 (100%)
Casa Branca
8.649 (78%)
2.414 (22%)
11.063 (100%)
Jundiaí
5.953 (76%)
1.852 (24%)
7.805 (100%)
Atibaia
5.080 (82,7%)
1.066 (17,3%)
6.146 (100%)
Vale do Paraíba
58.089 (71,8%)
22.807 (28,2%)
80.896 (100%)
Oeste Paulista
72.603 (69,5%)
31.822 (30,5%)
104.425 (100%)
São Paulo-Província
680.742 (81,3%)
156.612 (18,7%)
837.354 (100%)
Bananal
Fonte: Elaboração própria a partir das tabulações organizadas em Bassanezi (1998, p. 37).
A análise da força de trabalho requer a delimitação da população em idade ativa. Essa categoria permite avaliar a participação relativa das pessoas arroladas no censo em cada uma das profissões diante da parcela da população com potencial participação na força de trabalho. Dessa forma, é possível verificar, por exemplo, a participação dos escravos vinculados à faina agrícola diante dos potenciais trabalhadores da sociedade em tela. Diante de uma sociedade rural e escravista, consideramos que apenas as crianças menores de 11 anos estariam necessariamente excluídas da força de trabalho. Idosos não têm o mesmo vigor físico dos jovens, mas é possível que boa parte deles continuassem exercendo tarefas em
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fazendas, sítios ou nos acanhados ambientes urbanos constituídos em meio à lavoura exportadora. Por isto, utilizamos um conceito amplo de PIA, que não exclui os idosos. É preciso adaptar o conceito de PIA à realidade escravista. A cisão da população e, consequentemente, da força de trabalho entre livres e escravos requer a divisão da PIA de acordo com a condição social. De um lado, temos a população livre em idade ativa (PLIA). De outro, a população escrava em idade ativa (PEIA). Os dados seguem abaixo: Tabela 6 – População em Idade Ativa – Livres e Escravos. Localidade
Livres (PLIA)
PLIA/ PLT
Escravos (PEIA)
PEIA/ PET
PIA Total
PIA/PT
Bananal
5.055 (41%)
69%
7.272 (59%)
89%
12.327 (100%)
79%
Areias
2.949 (64%)
77,2%
1.651 (36%)
86,9%
4.600 (100%)
80,4%
Taubaté
11.519 (79,6%)
75,6%
2.954 (20,4%)
79,6%
14.473 (100%)
76,4%
Jacareí
6.413 (82,8%)
74,3%
1.334 (17,2%)
84,7%
7.747 (100%)
75,9%
Paraibuna
6.137 (88,6%)
67,8%
783 (11,%)
72,2%
6.920 (100%)
68,2%
São José do Barreiro
2.435 (52,9%)
77,9%
2.174 (47,1%)
85,4%
4.609 (100%)
81,3%
Pindamonhangaba
8.004 (73,2%)
73,3%
2.936 (26,8%)
78,9%
10.940 (100%)
74,7%
Campinas
11.838 (51,4%)
66,8%
11.193 (48,6%)
81,7%
23.031 (100%)
73,3%
Piracicaba
9.789 (69%)
72,1%
4.383 (31%)
80,9%
14.172 (100%)
74,6%
Rio Claro
7.331 (67,9%)
66%
3.470 (32,1%)
88,1%
10.801 (100%)
71,8%
Sorocaba
7.289 (70,6%)
69,1%
3.043 (29,4%)
88%
10.332 (100%)
73,8%
Casa Branca
6.261 (75,6%)
72,3%
2.027 (24,4%
83,9%
8.288 (100%)
74,9%
Jundiaí
4.210 (72,3%)
70,7%
1.615 (27,7%)
87,2%
5.825 (100%)
74,6%
Atibaia
3.897 (81%)
76,7%
919 (19%)
86,2%
4.816 (100%)
78,3%
Vale do Paraíba
6.073 (69%)
73,1%
2.729 (31%)
83,7%
8.802 (100%)
76,1%
Oeste Paulista
7.230 (65,5%)
69,7%
3.807 (34,5%)
83,7%
11.037 (100%)
73,9%
Fonte: Elaboração própria a partir das tabulações organizadas por Bassanezi (1998, p. 95; p. 361; p. 792). Observação: PLT, PET e PT significam, respectivamente, população livre total, população escrava total e população total
Os dados da Tabela 6 permitem afirmar que a maior parte dos escravos mencionados no censo para ambas as regiões se encontravam dentro de nosso conceito amplo de PIA. Cerca de 16% da população escrava era composta por crianças. No caso dos livres, a população com 11 ou menos anos formava cerca de 30% da população. Essa diferença pode ser explicada por caracResgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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terísticas demográficas que costumam marcar sociedades escravistas. De um lado, os escravos apresentavam taxa de crescimento vegetativo menores que a da população livre. De outro, o predomínio de escravos em idade ativa, sobretudo jovens, comercializados no tráfico interno, inflava essa parcela da população. Antes de avançar a análise pela estrutura da força de trabalho, é preciso realizar alguns apontamentos acerca da fonte utilizada. O censo traz o conceito de profissão. Ele é bastante amplo, pois mistura trabalho por atividades econômicas com ocupação. Também agrupa pessoas inseridas em diferentes inserções na base produtiva. No caso da agricultura, por exemplo, trabalhadores dependentes, proprietários de plantations e posseiros são todos arrolados na categoria “lavoura”. Outra manifestação da amplitude desse conceito é o fato de não separar as pessoas que trabalham em ambiente doméstico daquelas que exercem sua atividade produtiva em fazendas ou estabelecimentos manufatureiros. Também é impossível separar as pessoas ativas das inativas, do ponto de vista produtivo. Nada nos autoriza a afirmar que a quantidade de indivíduos encaixados em cada ramo profissional corresponda, de fato, ao número de trabalhadores ativos naquele segmento. Afinal de contas, ter uma profissão pode significar a mera dotação de habilidades para atuação em uma determinada atividade. Não significa seu exercício pleno. Para que a pesquisa evoluísse, foi necessário conferir atividade a um conceito que não traz implicitamente essa característica. O censo permite que se verifique como a população total era distribuída ao longo das mais variadas profissões apresentadas. Trata-se da principal amostra sobre a distribuição da população pelas atividades econômicas para o Brasil oitocentista, que nos permitiu remontar a uma estrutura da força de trabalho para as áreas estudadas. Optamos por organizar todas as profissões mencionadas no recenseamento em 10 categorias. São elas: religiosos; profissionais liberais (inclui funcionários públicos); militares; manufatura e artesanato; comércio; agricultura (que engloba pesca e pecuária); serviços domésticos; criados e jornaleiros; capitalistas e proprietários; e, por fim, sem profissão. Dessa forma, poderemos visualizar os elementos mais notáveis desta seção das tabulações do censo organizadas por Bassanezi (1998): a presença de muitas pessoas divididas entre a lavoura, a manufatura (urbana e rural) e os serviços domésticos. Também chama atenção a diminuta participação dos profissionais liberais e dos comerciantes na composição geral da população. Centremos nossa análise sobre as parcelas mais ricas do agro paulista. Apresentamos, primeiramente, os dados representativos da manifestação da força de trabalho na região cafeeira mais antiga da província: o Vale do Paraíba.
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Tabela 7 - População por profissões - Vale do Paraíba. Profissão
Livres
Escravos
Total
NA*
%PLIA(a)
%PIA
NA
%PEIA(b)
%PIA
NA
%PIA(c)
Religiosos
5
0,08%
0,05%
0
0%
0%
5
0,05%
Profissionais Liberais
50
0,8%
0,5%
0
0%
0%
50
0,5%
Militares
17
0,2%
0,19%
0
0%
0%
17
0,19%
Manufatura/Artesanato
606
10%
6,9%
141
5,1%
1,6%
747
8,5%
Comércio
160
2,6%
1,8%
0
0%
0%
160
1,8%
Agricultura
3.580
59%
40,6%
2.320
85%
26,3%
5.900
67%
Serviços Domésticos
1.112
18,3%
12,6%
331
12,1%
3,7%
1.443
16,4%
Criados e Jornaleiros
409
6,7%
4,6%
160
5,8%
1,8%
569
6,5%
Capitalistas e Proprietários
33
0,5%
0,3%
0
0%
0%
33
0,3%
Sem Profissão
2.318
38%
26,3%
305
11%
3,4%
2.623
29,8%
Total
8.290
3.257
11.547
Fonte: Elaboração própria a partir das tabulações organizadas por Bassanezi (1998, p. 146-154; p. 619-627; p. 852-860).
*NA é o número absoluto, tal qual aparece no censo. a= população livre em idade ativa. b= população escrava em idade ativa. c= população em idade ativa.
Os dados em tela captam a realidade global do agro, e não apenas a lavoura escravista produtora de café – essa representava a camada superior da produção agrícola. Por apresentar maior lucratividade e produtividade, detinha maior potencial em mobilizar mão de obra cativa. As inferiores, identificadas com reduzidos estoques de riqueza, eram muito mais heterogêneas e mais identificadas pelas vendas no mercado interno, pelo limitado uso de escravos e pela maior mobilização relativa de trabalhadores livres. De acordo com os dados da Tabela 7, mais de dois terços da população valeparaibana em idade ativa estava inserida na faina agrícola. É notável o alto aproveitamento dos escravos nessa atividade, uma vez que em seu entorno ocorria a exploração de 85% da população escrava em idade ativa. Não é exagero supor que a maioria desses cativos estivesse inserida na produção cafeeira. Aqueles inseridos nos mega-plantéis vivenciavam a experiência do trabalho nas plantations. De maneira geral, é correto afirmar que havia especialização da utilização do braço cativo na atividade principal. Essa amostra apresenta uma utilização intensiva do potencial de força de trabalho materializado nos cativos, já que apenas 11% dos escravos maiores de 11 anos foram relacionados, no censo, na categoria “sem profissão”. É bem possível que estes fossem divididos entre idosos, inválidos ou, até mesmo, escravos de ganho. Também chama atenção o predomínio dos trabalhadores livres sobre os escravos na principal Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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atividade econômica do Vale. Os escravos da lavoura representavam pouco mais de 25% do total da população em idade ativa, enquanto a participação das pessoas livres atingia mais de 40%. Em termos absolutos, pouco mais de 60% da população inserida na agricultura era formada por livres. Cabe lembrar que o Vale estava entre as regiões econômicas do Império mais identificadas com a plantation. A elevada participação dos livres na força de trabalho potencial mostra a relevância que eles tinham na economia rural em tela. Entendemos que a plantation esteve imersa em um panorama rural mais amplo, organizado em torno do trabalho livre. Os braços livres da lavoura, parcela majoritária da força de trabalho, deviam estar disseminados no agro entre a cafeicultura, a produção de derivados de cana e, principalmente, a produção dos gêneros orientados para o mercado interno, como arroz, feijão, milho e a farinha de mandioca. É possível que a própria concentração de cativos na camada superior da produção agrícola tenha representado a abertura de espaços ainda mais amplos para a utilização econômica da população livre na agricultura, principalmente nos estratos subalternos do agro. O fato de ter havido um fluxo comercial intrarregional de braços cativos do patrimônio de pequenos produtores para o dos grandes potentados corrobora esse argumento. Como mencionamos, o grupo dos profissionais da lavoura, captados no censo, engloba uma vasta gama de agentes sociais, desde proprietários de grandes fazendas a posseiros. O censo não permite qualquer tipo de desagregação. Com o intuito de separar a camada dos proprietários da massa de pessoas que compunha a mão de obra explorada no campo, utilizamos o já citado Almanak da Província de São Paulo (LUNÉ & FONSECA, 1985). Essa publicação arrola os nomes dos maiores fazendeiros de cada comarca. Separamos o número de fazendeiros produtores de café, cana e algodão para cada uma das cidades que formam as amostras. A média para as cidades do Vale era de 84 fazendeiros, 1,4% do total de pessoas vinculadas à lavoura pelos agentes recenseadores (LUNÉ & FONSECA, 1985, p. 149-253). Essa evidência permite afirmar que as elites posicionadas nessas localidades eram minúsculas do ponto de vista demográfico. Esta forma de circunscrever os limites da elite rural é mais verossímil do que centrar apenas na categoria “capitalistas e proprietários”, presente do censo, devido à maior amplitude abrangida. A dimensão do artesanato na vida material do Vale devia ser bastante limitada. Essa atividade era desempenhada em oficinas situadas nos núcleos urbanos e, sobretudo, nos próprios domicílios. Porém, ela não era irrelevante do ponto de vista do engajamento de mão de obra, uma vez que mobilizava 8,5% da PIA. Essa não representa uma taxa desprezível de mobilização de mão de obra, tendo em vista a marcante especialização agrícola dessa economia. Quatro quintos das pessoas vinculadas a essa atividade eram livres. Um décimo dos livres em idade ativa estavam vinculados a essa atividade, enquanto 5% da população escrava em idade ativa se dedicava a ela.
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Menos relevante era a parcela da força de trabalho potencialmente assalariada, representada pela categoria “criados e jornaleiros”. Cobriam 6,5% da PIA. Por um lado, trabalhadores rurais pouco qualificados que tinham engate eventual na lavoura, como os camaradas, estavam inseridos nessa categoria. Por outro lado, trabalhadores qualificados também constavam nela, como pedreiros, carpinteiros ou técnicos da manufatura dos derivados de cana. Em termos absolutos, a presença de jornaleiros livres era mais de três vezes superior à dos escravos. Dentre esses, uma parcela poderia ser composta por escravos de ganho. Chama atenção a imensa participação de pessoas livres em idade ativa terem sido arroladas pelos agentes recenseadores na categoria “sem profissão”. Compunham mais de um quarto da PIA. Nossa interpretação para essa constatação segue a análise de Lamounier (2012, p. 244), para quem parcela substantiva desses indivíduos supostamente sem profissão pode ser encarada como trabalhadores temporários. Tratar-se-ia de uma parcela fluída da força de trabalho, que garantia seu sustento através da realização de tarefas ou empreitadas que exigiam pouca qualificação. Se esse pressuposto de Lamounier estiver correto, podemos aproximar o pessoal “sem profissão” dos jornaleiros. Dessa forma, ampliamos para mais de um terço da PIA os contornos demográficos da parcela fluída da mão de obra, estratégica em uma economia caracterizada por oscilações de demanda por trabalho, determinadas pelo próprio ciclo da agricultura. Tabela 8 - População por profissões - Oeste Paulista Profissão
Livres
Escravos
Total
NA*
%PLIA(a)
%PIA
NA
%PEIA(b)
%PIA
NA
%PIA(c)
Religiosos
4
0,05%
0,03%
0
0%
0%
4
0,03%
Profissionais Liberais
74
1%
0,6%
0
0%
0%
74
0,6%
Militares
15
0,2%
0,1%
0
0%
0%
15
0,1%
Manufatura/Artesanato
931
12,9%
8,5%
274
7,2%
2,5%
1.205
11%
Comércio
252
3,5%
2,2%
0
0%
0%
252
2,2%
Agricultura
2.892
40%
26,2%
2.715
71,3%
24,6%
5.607
51%
Serviços Domésticos
1.289
17,8%
11,6%
552
14,5%
5%
1.841
16,7%
Criados e Jornaleiros
549
7,6%
5%
243
6,4%
2,2%
792
7,2%
Capitalistas e Proprietários
24
0,3%
0,2%
0
0%
0%
24
0,2%
Sem Profissão
4.339
60%
39,3%
761
19,9%
6,9%
5.100
46%
Total
10.369
4.545
14.914
Fonte: Bassanezi (1998, p. 146-154; p. 619-627; p. 852-860).
*NA é o número absoluto, tal qual aparece no censo. a= população livre em idade ativa. b= população escrava em idade ativa. c= população em idade ativa.
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Os serviços domésticos eram a atividade que mais mobilizava trabalhadores, depois da agricultura. A amostra colhida indica que 16% da PIA realizavam as tarefas típicas dos lares valeparaibanos. Do total absoluto, cerca de 23% eram indivíduos escravizados. Eles formavam 12% da população escrava em idade ativa. Os percentuais das mesmas categorias para o Oeste Paulista são semelhantes. Esses serviçais deviam estar vinculados aos fogos mais abastados da região. A tendência de alta do preço da mercadoria humana deve ter estimulado a redução do estoque de cativos nesta atividade improdutiva. Verifiquemos a estrutura da força de trabalho posicionada no Oeste Paulista em comparação com a do Vale. Lembremos que o Oeste compunha, na época, a base a partir da qual era promovida rápida expansão da fronteira agrícola, que se estendia pelo interior da Província. A disseminação da malha ferroviária, que atingia a marca de 306 km na região (CAMARGO, 1981, p. 174), facilitava este processo. Tal qual no Vale, a agricultura era a atividade mais importante do ponto de vista da mobilização da força de trabalho: mais de 50% da PIA encontrava-se engajada no ofício. Enquanto 40% da população livre em idade ativa estava vinculada à lavoura, mais de 70% dos escravos na mesma faixa etária foram ligados à lavoura pelos agentes censitários. É notável o fato de a faina agrícola apresentar, no Oeste, participação semelhante de livres e de escravos, em termos absolutos. Isso demonstra a capacidade apresentada pelos agentes econômicos de promover altas taxas de investimento nas décadas anteriores, apesar da dinâmica desfavorável do preço dos escravos. Indica um padrão de lucratividade elevado. O esforço realizado no âmbito do investimento e a incorporação de novas terras à agricultura de exportação foram estratégicos para que a região, poucas décadas à frente, viesse a ser a principal produtora mundial de café. Também buscamos localizar no Almanak a dimensão demográfica da elite rural do Oeste Paulista através da listagem dos grandes fazendeiros de cada município. Realizamos o mesmo procedimento descrito linhas atrás para o caso do Vale. Chegamos à conclusão de que essa elite fazendeira compunha apenas 1,7% das pessoas ligadas à lavoura de acordo com os agentes censitários (LUNÉ & FONSECA, 1985, p. 246-509). Portanto, a elite do Oeste era tão pequena quanto a do Vale. Diferentemente do caso valeparaibano, as localidades que formam nossa amostra para o Oeste Paulista não eram sociedades escravistas maduras. As localidades recém-incorporadas à agricultura comercial eram povoadas por trabalhadores livres: os camaradas, utilizados na forma-
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ção e disseminação dos cafezais; os jornaleiros e empreiteiros, responsáveis pela construção ferroviária; os estrangeiros, que chegaram à região nas primeiras experiências imigrantistas; os agricultores não escravistas, que davam sentido ao seu uso da terra através da subsistência e da produção para mercados locais; além de um heterogêneo grupo de agricultores escravistas, dentre os quais uma pequena elite que dominava os grandes plantéis de escravos. De maneira geral, trata-se de uma estrutura social em constante transformação, organizada em torno dos grupos sociais promotores da expansão da fronteira agrícola. Remontar esse contexto social é imperativo para a compreensão da grande dimensão da população livre com potencial participação na força de trabalho inserida pelos agentes censitários na categoria “sem profissão”. Assumindo que, exceto idosos, parte substancial das pessoas arroladas nessa categoria fosse trabalhadores temporários não qualificados que vivenciavam experiências sociais semelhantes à dos jornaleiros, podemos afirmar que quase metade da população em idade ativa formava uma mão de obra volante capaz de se inserir nos mais diversos estratos do agro ou na construção das ferrovias, assim como na agricultura, no levantamento dos cafezais e na própria colheita de café como mão de obra subsidiária nos momentos de alta demanda por trabalho. No caso dos escravos, poderiam ser cativos de ganho ou disponíveis para o aluguel. Essa forma de enxergar essa parcela da população é verossímil tendo em vista o fato das posições sociais e ocupacionais na região de fronteira agrícola não estarem tão bem definidas como nas sociedades rurais já amadurecidas. Parceiros, posseiros, camaradas, empreiteiros eram componentes de uma sociedade cuja estrutura social e força de trabalho eram caracterizadas, em essência, pela fluidez. No que diz respeito ao engajamento da força de trabalho no artesanato, podemos afirmar que, no Oeste, essa atividade apresentava ainda maior capacidade em mobilizar trabalhadores. Dedicavam-se à manufatura 11% da PIA da região. O predomínio de livres nesse ramo da produção era notável. Tendo em vista que a cafeicultura era uma atividade intensiva em trabalho e que ela representava o motor da expansão da renda, consideramos que o artesanato apresentava, relativamente, alta capacidade em mobilizar trabalhadores. Devemos lembrar que ambas as regiões, no começo da década de 1870, estavam envolvidas na produção de algodão, cujo cultivo estava intimamente ligado à sua manufatura. O principal produtor desse gênero, dentre as cidades da amostra, era Sorocaba, que elevou a média da amostra do Oeste paulista. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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As amostras apresentaram uma força de trabalho cindida entre escravos e livres. No Vale, os últimos predominavam, enquanto no Oeste a força de trabalho era mais bem dividida entre ambos. Também notamos, para ambas as regiões, que parte relevante da população tinha vínculos intermitentes com a base produtiva. Diante dessas constatações, o seguinte questionamento vem à tona: a lavoura cafeeira estava assentada sob uma força de trabalho dual? Esse questionamento tem a concentração de cativos nessa lavoura como pressuposto real. Cabe especular se escravos e livres dividiam o mesmo espaço de trabalho na camada superior do agro. Foge aos objetivos deste artigo propor uma explicação definitiva para esta questão. Porém, é possível lançar uma hipótese explicativa. Sua apresentação requer que dois elementos novos sejam somados à análise. Em primeiro lugar, a compreensão de padrões de relações sociais de produção que uniam livres pobres aos grandes fazendeiros. Em segundo, a articulação entre a dinâmica do preço do café no mercado internacional e a do câmbio. É conhecido o fato de o mercado de trabalho rural ter sido caracterizado pela instabilidade e irregularidade da oferta e da demanda por trabalho. Como mencionamos, a oferta de escravos já não era mais abundante como fora nas décadas anteriores. A própria trajetória ascendente do preço dos cativos sinalizava esse fenômeno. Para além do braço escravizado, a força de trabalho também era composta por camaradas e parceiros. Nossa reflexão recai sobre essas duas últimas figuras sociais. Os camaradas formavam uma reserva de mão de obra mobilizada durante a elevação da demanda por trabalho. Tessari (2012, p. 119) demonstrou a forte presença desse trabalhador volante no Oeste Paulista na passagem do século XIX para o XX. Além disso, como mencionamos, a atuação desses era estratégica para a disseminação dos cafezais na região de fronteira. A parceria, por sua vez, era uma relação de dependência comum nas regiões agrícolas do Império. Prova disso é o fato da primeira experiência imigrantista para Rio Claro e Limeira, promovida por uma elite de fazendeiros, ter reproduzido essa forma de relação social de produção. Nela, o parceiro é inserido na terra do grande proprietário, cabendo a ele cuidar de determinado número de pés de café da fazenda. Isso envolvia limpeza dos cafeeiros, além da colheita, beneficiamento e secagem dos grãos. Além disso, os parceiros desfrutavam do direito costumeiro de levantar roças para o cultivo de alimentos nas fazendas. Tanto o café produzido quanto o excedente de alimentos eram comercializados, e o rendimento de ambos era dividido entre parceiro e proprietário (DEAN, 1977, p. 97). Esse sistema era bastante confortável para o fazendeiro, já que era uma forma barata de mobilizar mão de obra em torno da lavoura. Além disso, era marcado pelo compartilhamento dos
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riscos inerentes a atividades entre o fazendeiro e seu parceiro. Os principais riscos que recaíam sobre a renda desses agentes econômicos eram as oscilações do câmbio e do preço do café. O preço do café apresentou crescimento vigoroso no mercado norte-americano durante a segunda metade do século XIX. O ano de 1870 marcou o início de uma vigorosa disparada dos preços da rubiácea, encerrada sete anos depois. Neste curto intervalo, que cobre o momento da realização da pesquisa censitária, o preço do café aumentou 71%. Esse crescimento pode ser explicado tanto pela redução das produções cafeeiras de Java e da América Central, quanto pelo dinamismo até então apresentado pela demanda externa. Segundo Delfim Netto (2009, p. 24-25), a emissão de moeda por parte do governo durante a Guerra do Paraguai foi responsável pela elevação dos preços internos e pela desvalorização do câmbio. Assim, o câmbio favorável aos exportadores, as ascensões do preço e do volume exportado apontam para a vigência um padrão de lucratividade formidável entre 1850 e o final da década de 1870, sobretudo em moeda nacional. Isso demostra que, durante todo o terceiro quartel do século XIX, formava-se uma conjuntura favorável tanto ao investimento quanto ao engajamento de parceiros na cafeicultura. Em síntese, a mesma conjuntura econômica mesclava aumento da demanda por trabalho; elevação do preço dos escravos, sobretudo no Oeste Paulista; ascensão do preço da rubiácea no mercado internacional; e desvalorização cambial. Portanto, tratava-se de uma conjuntura dentro da qual a disseminação da relação de parceria era estratégica para a expansão da oferta paulista de café, uma vez que as condições do mercado favoreciam a expansão da renda de fazendeiros e de seus parceiros. Nesse sentido, é possível inferir que a proporção entre escravos e livres na força de trabalho, e a presença de muitos trabalhadores livres de participação intermitente nesta, sejam indicativos de que trabalhadores livres exercessem funções produtivas semelhantes às dos escravizados na lavoura exportadora montada em São Paulo em meados do século XIX. Demonstramos que a economia rural posicionada nas regiões mais dinâmicas do agro paulista apresentou, já no terceiro quartel do século XIX, grande capacidade de mobilizar mão de obra livre, além da escravizada. Levando em consideração as condições de mercado, é possível que escravos e livres tenham compartilhado o mesmo espaço produtivo na faina cafeeira. Nossa interpretação representa mais um capítulo da desconstrução da clássica interpretação de Celso Furtado (1980) acerca da ausência da mão de obra livre na expansão agrícola na segunda metade dos oitocentos. Na contramão deste, traçamos um panorama mais complexo e potencialmente flexível do mundo do trabalho rural, composto por agentes de diferentes condições responsáveis por formar um dos fundamentos da acumulação da riqueza na Província. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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A análise dos dados do Recenseamento de 1872 confirma a interpretação de Lamounier (2012, p. 215) acerca do fato dos trabalhadores livres representarem um potencial significativo de mão de obra a ser utilizada de maneira produtiva nos momentos de elevação da demanda por trabalho, sobretudo durante a expansão da fronteira agrícola. A pesquisa de Costa (1992, p. 65) sobre a economia rural durante as três primeiras décadas do século retrasado demonstrou o predomínio dos agricultores não escravistas durante o arranque da cafeicultura no quinhão paulista do Vale do Paraíba, em 1830. Eles formavam 70% do total de produtores arrolados na amostra organizada para essa região. Segundo o autor, os não proprietários de escravos também participavam da produção dos gêneros mais nobres. As evidências produzidas por nosso trabalho empírico indicam continuidade em relação ao panorama traçado por Costa. Não negamos a nova dimensão tomada pela plantation na Província e nem a preeminência dos grandes proprietários de escravos na forte expansão do produto experimentada em ambas regiões durante o terceiro quartel dos oitocentos. Porém, indicamos a relevância da participação das pessoas livres na força de trabalho durante essa expansão. Do ponto de vista lógico, a realidade remontada pela pesquisa para o terceiro quartel do século XIX apresenta conexões importantes em relação à traçada por Tessari (2012, p. 96) para o Oeste Paulista durante a virada do século XIX para o XX. A Abolição desfez a natureza dual da força de trabalho. Entretanto, alongamos para toda a segunda metade do século XIX e ampliamos para o Vale do Paraíba o caráter combinatório do vasto arranjo de força de trabalho sobre o qual esteve baseada a acumulação cafeeira. Em um primeiro momento, a combinação entre escravos e livres marcou a estrutura desse complexo arranjo. Em um segundo, colonos italianos dividiam o espaço produtivo com os trabalhadores volantes nacionais. Consideramos problemáticas as interpretações dicotômicas que separam analiticamente trabalho livre, de um lado, e trabalho escravo, de outro. Acreditamos que a efetivação do potencial produtivo da força de trabalho tenha aproximado escravos e livres naquelas formações sociais rurais. A própria transição para o trabalho livre deve ser matizada por essa convivência entre indivíduos de diferentes condições sociais. É correto afirmar que São Paulo passou por uma transição particular devido à maciça presença dos trabalhadores estrangeiros. Porém, essa passagem foi realizada através de uma ruptura menos intensa do que a prevista em estudos clássicos de história econômica, devido à forte presença do trabalhador nacional livre nos arranjos de força de trabalho sobre os quais esteve alicerçada a economia cafeeira paulista. Seguimos, então, a visão de Eisenberg (1989, p. 167) acerca da existência de um lento processo de transição para o trabalho livre no Brasil durante a segunda metade do século XIX.
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Considerações finais
O artigo remontou a estrutura da força de trabalho no Vale do Rio Paraíba e no Oeste Paulista. Nossa análise se desenvolveu no sentido de verificar como a força de trabalho, composta por escravos e livres, era dividida entre as atividades econômicas desenvolvidas nas regiões mais importantes de São Paulo. A fonte utilizada nos obrigou a manter uma visão geral de nosso objeto de estudo. Ou seja, não houve foco na manifestação da força de trabalho apenas na lavoura exportadora. A vantagem dessa perspectiva é representada pela possibilidade de análise da totalidade da economia rural, que unia a plantation, a produção de alimentos para o mercado interno, o artesanato etc. O trabalho escravo predominava na agricultura bananalense e campineira durante o terceiro quartel dos oitocentos. Entretanto, as evidências levantadas durante a pesquisa demonstraram que essas cidades eram exceções nas respectivas regiões em que estavam inseridas. Nessas, o trabalho livre predominava sobre o cativo. Isso não nega a essencialidade do escravismo no processo de acumulação do setor exportador, mas nos ajuda a compreender a importância dos trabalhadores livres dentro desses sistemas de grande lavoura, convivendo e trabalhando lado a lado com os cativos. Famílias de trabalhadores livres e uma minoria dos escravos também se dedicavam à produção de alimentos que sustentavam uma sociedade que crescia e se tornava cada vez mais complexa do ponto de vista demográfico. Se vista a partir de sua totalidade, a produção social da riqueza nas parcelas mais dinâmicas do agro paulista esteve baseada na exploração de uma força de trabalho dual durante a segunda metade do século XIX. Durante os meados dos oitocentos notamos que a mesma conjuntura socioeconômica era caracterizada tanto pela dificuldade na reprodução do capital escravista, quanto pelo crescimento demográfico e pelos estímulos para a mobilização de mão de obra livre. A consequência real dessa conjuntura foi a maior mobilização de mão de obra livre. Parceiros, camaradas, ao lado dos escravos, formaram mão de obra estratégica para o abastecimento da população e para o desenvolvimento da agricultura exportadora. A alta do preço do braço cativo favoreceu a concentração de escravos nas mãos dos proprietários mais ricos. É possível que esse processo, expresso no comércio, tenha estimulado o aumento da participação dos livres na força de trabalho rural. As evidências levantadas pela pesquisa indicam que a população livre manteve papel estrutural nos arranjos de força de trabalho nas duas regiões. Dessa forma, o principal argumento desse artigo corrobora a interpretação de Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 167-190, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Lamounier (2012) acerca da forte presença de trabalhadores nacionais livres na força de trabalho de São Paulo durante a segunda metade do século XIX. Consequentemente, negamos o panorama da força de trabalho traçado por Furtado (1980, p. 120), marcado pela exclusão do trabalhador nacional. Consideramos importante o fato de essa pesquisa ter conferido contornos empíricos à força de trabalho empregada na manufatura/artesanato. Cerca de 10% da força de trabalho potencial das localidades do Vale e do Oeste estavam ligadas a esse setor. Trata-se de uma alta mobilização de trabalhadores, em termos relativos, tendo em vista a marcante especialização agrícola das regiões estudadas. É muito provável que o nível de mobilização de mão de obra não tenha sido exceção no Brasil oitocentista. A evidência em tela joga luz sobre a necessidade de aprofundamento do estudo sobre a manufatura rural no período anterior ao desenvolvimento do capital industrial no país.
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Reconstituição de famílias e estudos por geração: linhagens fundadas por imigrantes alemães em Curitiba, séculos XIX e XX* Reconstitution of families and studies by generation: lineages founded by German immigrants in Curitiba, 19th and 20th centuries Sergio Odilon Nadalin Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Resumo
Abstract
O presente texto foi construído para demonstrar as possibilidades teórico-metodológicas do arranjo de fichas de família de um grupo etnocultural, em função da seleção de 63 imigrantes que se instalaram na capital do Paraná na década de 1850, bem como de seus descendentes, até a terceira geração.
This text has been built to demonstrate the theoretical and methodological possibilities of the arrangement of family records of an ethnocultural group, due to the selection of 63 immigrants who settled in the capital of Paraná in the 1850s, as well as their descendants to the third generation.
Palavras-chave: Fecundidade; Concepções; Gerações; Imigração; Contatos culturais.
Keywords: Fertility; Conceptions; Generations, Immigration; Cultural contacts.
* Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Simpósio “Metodologia e fontes para os estudos de família, gênero, qualidade e mestiçagem nas sociedades do passado. Etapa protoestatística e estatística”, no âmbito do 8º Congresso Internacional CEISAL, realizado em Salamanca, Espanha, entre 28 de junho e 1º de julho de 2016.
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I n t r o d u ç ã o
E
ram os primeiros dias do ano de 1855. Christian August Strobel, antes carpinteiro em Glauchau, na Saxônia, desembarcou com a família em São Francisco do Sul com destino à Dona Francisca, na Província de Santa Catarina. Desesperançado por causa do estado
da Colônia, decidiu fazer o caminho de muitos imigrantes, subindo a serra em direção a Curitiba, uma vila que se fazia cidade. Com efeito, em 1853, foi alçada como capital da nova Província do Paraná. Não teria mais do que 8 mil habitantes, e era o lugar para onde Christian August pretendia trazer sua família, depois de arranjar trabalho e um lugar para se estabelecer. Foi assim que a cidade assistiu à chegada de um bom número de estrangeiros de origem ger-
mânica, oriundos de uma sociedade do tipo “tradicional” que apenas começava a alterar suas estruturas. Foi justamente esse mundo que estavam perdendo1 que levou os “alemães” a emigrar. É coerente com essa motivação o fato de o casal Strobel e muitos dos seus companheiros de viagem terem sido alcançados pelas contradições da modernização, fugindo – por exemplo – das consequências das revoluções de 1848. Devo centrar o foco, particularmente, no fato de que muitos desses “alemães” trouxeram em sua bagagem valores que eu rotularia, com as devidas aspas, como “conservadores”; entre outros, destaquem-se aqueles relacionados ao sexo, ao amor e aos comportamentos reprodutivos – por ricochete, à família. Nesse âmbito, a prole regulava-se, para a maioria, pela vontade da Divina Providência – protestante, naturalmente (NADALIN, 2016). De modo que estará pautado neste texto, principalmente como exemplo metodológico, a sexualidade dos imigrantes e descendentes antes do casamento. Assim, provavelmente eram esses valores, concernentes à cultura tradicional camponesa e, provavelmente, pequeno burguesa, que autorizavam uma convivência sexual entre os jovens noivos antes do casamento. Como consequência, se não era plausível “que os jovens solteiros pudessem praticar a contracepção numa altura em que [...] os jovens casados não a praticavam” (SHORTER, 1995, p. 97), talvez seja essa a razão da elevada taxa de concepções anteriores ao matrimônio. Entre 100 noivas 1 A paráfrase ao título do livro de Peter Laslett (1969) foi intencional.
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educadas num meio imigrante e que se casaram no período de 1866 a 1894, quase 30 estavam grávidas ao chegarem ao altar2. Voltando a mencionar o casal Strobel, é possível que eles estivessem entre aqueles imigrantes que teriam transmitido aos seus filhos uma ética sexual e familiar mais condizente com os novos tempos, o que poderia explicar, pelo menos em parte, um difuso comportamento malthusiano, ou, talvez melhor, neomalthusiano (MACFARLANE, 1990, p. 45), na primeira coorte analisada (BIDEAU e NADALIN, 2011, p. 79-80; NADALIN, 2016).
Coortes e gerações
Os mencionados imigrantes de origem germânica, oriundos de diversas regiões da Alemanha, organizaram-se como um grupo religioso no final de 1866. Nos seus arquivos, as paróquias que constituem atualmente a “Comunidade Evangélica Luterana de Curitiba” guardam séries praticamente completas dos registros de batismos, casamentos e óbitos, sem mencionar as listas de confirmações. Foram, no principal, estas informações que permitiram a reconstituição de famílias do grupo, até um final de observação atribuído para a data de 31 de dezembro de 19393. Este período de quase 74 anos, iniciando-se com a fundação da paróquia em novembro de 1866, marca a construção e a simultânea desconstrução do grupo étnico. Inicialmente, eu o dividi em três, considerando a necessidade de se estudar a dinâmica da fecundidade no grupo em questão, o que norteou o agrupamento de fichas de famílias em coortes de casais. As histórias matrimoniais destes subgrupos de homens e mulheres iniciaram-se, por conseguinte, nos períodos de 1866-1894, 1895-1919 e 1920-1939 (BIDEAU & NADALIN, 2011). Este texto complementa trabalho anterior (NADALIN, 2016), com propósito mais específico de confrontar e demonstrar as possibilidades de outro recorte geracional e, com esse intuito, selecionei do conjunto de fichas de família, primeiramente, as informações concernentes ao casal 2 Estou desconsiderando aqueles casais que já viveriam juntos antes do casamento, pois tiveram filho ou filhos antes do casamento. 3 Esta decisão técnica foi tomada considerando dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito ao fato de
que o processo de construção (e desconstrução) étnica tem sua história profundamente balizada pela era Vargas, especialmente o Estado Novo, e pelo final da Segunda Guerra Mundial. De fato, se considerarmos a importância da língua para a comunidade etnocultural, o terreno perdido em função desses tempos de exceção nunca seria retomado (BLANCPAIN, 1994, p. 205). Em segundo lugar, pela dificuldade em se determinar o final de observação das coortes mais recentes, uma vez que as fontes mencionam raramente eventuais “desquites” apontados como final da história de alguns casais do grupo. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 191-208, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Christian August Strobel e sua mulher Christianna Friederike (née) Herold. Meu objetivo era, naquele momento, estudar processos de nominação e, assim, nesta primeira experiência, agreguei todas as fichas de família concernentes ao casal (geração “zero”) aos seus filhos (geração 1), seus netos (geração 2) e bisnetos (geração 3) (NADALIN, 2007a; 2012). Apesar da pequenez dos números obtidos, a experiência, enquanto demonstração, foi positiva. Seguindo este exemplo, investiguei, na coleção de fichas de família, linhagens que preenchessem dois requisitos: (1) seus “fundadores” deveriam ter imigrado no Brasil por volta dos anos de 1850, como aconteceu à família Strobel, e (2) cobrir pelo menos quatro gerações na história da paróquia (os pais – a geração “zero” –, os filhos, netos e bisnetos). Consegui, dessa forma, 63 casais, incluído o casal nominado, compondo a base de dados deste experimento, juntando outros tantos pacotes de fichas. A metodologia assim planeada fundamenta-se numa proposta teórica que considera os conceitos de coortes e gerações. Ou seja, estou supondo que descendentes dos casais fundadores podem ser reunidos em função das experiências distintas que tiveram como filhos, netos e bisnetos de imigrantes; essas experiências foram enriquecidas pela sua congregação numa comunidade definida por “fronteiras étnicas” (BARTH, 1998) que a “separa”, de certo modo, de outros grupos étnicos e, numa perspectiva mais ampla, da sociedade curitibana4. Em outros termos, os sujeitos que estou analisando estão unidos por um nexo concreto, a noção de que participam de um destino comum, seja da comunidade étnica, seja da comunidade religiosa5. Outrossim, esses sujeitos pertencem às “suas” gerações e esse pertencimento traduz trajetórias marcadas pelo devir geracional caracterizado biologicamente pelo envelhecimento e, concomitantemente, pela temporalidade “atravessada” por “n” recortes transversais. Pensando em termos de durações, diria que se trata de uma quarta temporalidade que naturalmente está articulada às três outras, “braudelianas”. Um dos filhos do casal Strobel, acima referido, chamava-se Gustav Hermann, autor de uma memória recentemente republicada (STROBEL, 2014). Saliento alguns aspectos de sua biografia, para ilustrar questões teórico-metodológicas: quando desembarcou, já havia completado 5 anos de idade. Além da convivência com os irmãos, ficou evidente nas suas lembranças a relação que teve com hóspedes dos seus pais e agregados à empresa familiar. Da mesma forma, 4 Essa dinâmica da etnicidade no âmbito pode ser vislumbrada pelo menos até a conjuntura da Segunda Guerra Mundial, antecedida de um período ditatorial denominado “Estado Novo” (1937, Getúlio Vargas) (NADALIN, 2007a). 5 De outro modo, geração é um “coletivo de indivíduos que vivem em determinada época ou tempo social, têm aproximadamente a mesma idade e compartilham alguma forma de experiência ou vivência” (MOTTA, 2004, p. 350). Mais do que nascer dentro da mesma região histórica e cultural, é necessário “um nexo mais concreto para que a geração se constitua como uma realidade. Esse nexo mais concreto poder ser descrito como a participação do destino comum dessa unidade histórica e social” (MANNHEIM, 1982, p. 85-86 – grifo do autor).
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lembrou os folguedos com crianças “brasileiras” do bairro em que se estabeleceram, em São José dos Pinhais6. Educado pela sua mãe7, logo que foi capaz, começou a trabalhar com seu pai: além de encarregado de diversos serviços, trabalhou como ajudante de cozinha e aprendiz de carpinteiro – depois ajudado pelo seu irmão mais novo, que também se formou na mesma profissão. Era naturalmente bilíngue e, como parte do seu aprendizado étnico, provavelmente (tal qual outros imigrantes) deve ter se entusiasmado com a unificação da Alemanha em 1870. Mais ou menos nessa época (1875), casou-se na Igreja Paroquial, igualmente com uma imigrante. Ele estava com 25 anos; sua mulher, Emma Wendt, já havia completado seu 18º aniversário8. Gustav Hermann e sua noiva ajudam-me comprovar a hipótese de que os jovens casadoiros do primeiro subgrupo de casais, que eu arrolo na categoria ampla de “imigrantes”, chegaram ao Brasil ainda crianças ou adolescentes, a maioria acompanhados dos seus pais. A educação desses jovens foi sublinhada pelo enclave: eram originados de uma sociedade que eu rotularia, como afirmei acima, de “tradicional”. Presumo, por conseguinte, que, tanto uns como outros – pelo menos, a maioria deles – foram educados de acordo com valores recriados na sociedade de adoção, resultado também da socialização escolar. De tal modo, os filhos dos imigrantes conviviam na Deutsche Schule (Escola Alemã) – no início sustentada pela comunidade luterana. Igualmente frequentavam os cultos e as atividades promovidas pela Igreja9. Essa socialização (na qual é possível incluir a constituição de um mercado matrimonial) completava-se na camaradagem com outros jovens de origem germânica, a partir da fundação dos primeiros clubes de alemães em Curitiba, onde se encontravam, confraternizavam e namoravam10. Em outro texto (NADALIN, 2016), aventei a hipótese de que uma primeira coorte de casamentos na comunidade dos luteranos em Curitiba (1866-1894) era constituída de gerações nascidas num enclave. Refiro-me, principalmente, às gerações de filhos e filhas de imigrantes nascidos 6 Município limítrofe de Curitiba. 7 Nas regiões de colonização, é a mãe que ensina à criança as “verdades incontestáveis”, o sentido da ação de graças cotidiana, um certo sentido interior da obediência à autoridade paternal e da prudência reservada em presença do estrangeiro. Num meio onde, na origem, a falta da escola é por todos cruelmente ressentida, ela lhe ensina a ver “o mundo em alemão”, o inicia nos contos, canos e jogos – do Maikäferlied ao Weizenpickelspiel –, inculca as virtudes do trabalho, da disciplina e de pontualidade (BLANCPAIN, 1994, p. 194). 8 Emma ainda não tinha 1 ano quando sua família tentou o estabelecimento na Colônia Dona Francisca. Desembarcaram em São Francisco do Sul em 30 de julho de 1857. Acompanhava seu pai, Ferdinand Wendt (mestre pedreiro), sua mãe e dois irmãos. Outras três meninas nasceram na Colônia e, depois de 1867 (ano do nascimento de Bertha Martha, a caçula, em Joinville (Dona Francisca), seguiram para Curitiba. Todos os filhos casaram-se na Igreja Luterana entre 1875 e 1889. De acordo com a proposta deste trabalho, foram também agregados à primeira geração (Cf. BÖBEL, 1999). 9 Sobre a Escola Alemã em Curitiba, em 1914 rebatizada como Colégio Progresso, ver Souza (2002; 2006). 10 Refiro-me em especial ao Gesangverein Germania (1869) e ao Gesangverein Concordia (1873), que se fundiram em 1884, com o nome de Verein Deutscher Saengerbund (NADALIN, 1972, p. 8-12). Vale lembrar que, de 1856 – quando foi fundada a associação do cemitério evangélico – até 1926, cerca de meia centena de associações foram criadas pelos alemães e descendentes em Curitiba, organizadas com fins diversos (NADALIN, 2007a). Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 191-208, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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aproximadamente entre as décadas de 1840 e 187011. Seus pais (que incluem os 63 imigrantes selecionados para esta investigação – ver anexo), marcados pelos traumas da emigração e do impacto da chegada, tinham como preocupação básica a organização do “estabelecimento” e a sobrevivência (não necessariamente nesta ordem). Voltavam-se aos seus semelhantes, mesmo que a cultura original fosse marcada por identidades regionais distintas (ANDREAZZA & NADALIN, 1994): apesar das variações dialetais, era mais fácil o contato com outros imigrantes germânicos – a maioria da mesma profissão de fé luterana – do que com a sociedade anfitriã, embora relações profícuas com a cidade fossem vitais para que o estabelecimento vingasse (ver anexo). Assim sendo, reiterando a hipótese já colocada, as gerações que se agregam como filhos dos casais fundadores teriam sido marcadas por este contexto: isso se deu em função dos contatos que os jovens mantinham com a herança acumulada, por meio da experiência da imigração. O idioma priorizado era derivado Muttersprache (a língua mãe), e os jovens mal se relacionavam, inclusive social e culturalmente, com a comunidade curitibana12. Dessa forma, parecem ter desenvolvido sociabilidades marcadas pelas relações com pessoas de mesma origem, constituindo um grupo relativamente endogâmico. No entanto, no devir geracional, gradativamente as circunstâncias e uma maior facilidade obrigaram esses filhos dos primeiros imigrantes a aprenderem a língua portuguesa (tornando-se caracteristicamente bilíngues), começando a apreender, da mesma forma, os costumes brasileiros. Foi o que aconteceu com Gustav Hermann. Junto com os tratos de sua profissão e os contatos com sua clientela curitibana, aprendeu a conhecer um mundo distinto daquele apreendido por seus pais, construindo uma Weltanschauung eivada de novos valores, étnicos. Envelheceu e amadureceu, solidificando uma teuto-brasilianidade característica: entre outros sinais, muitos manifestados nas entrelinhas do seu texto, apreciou, por exemplo, os progressos de Joinville (a antiga Colônia Dona Francisca), enaltecendo a cultura, a arte e o trabalho bem feito, “trabalho alemão”! Como quero enfatizar, essa formação ideológica não teria sentido com seu pai, cujo trabalho deveria ser naturalmente bem feito. Suas memórias mostram, implicitamente, que tomou partido pelo Reich, quando se avolumava a crise que viria com a eclosão da Grande Guerra de 1914 – levou, mesmo, um filho muito doente para ser tratado na Alemanha, tendo ficado retido naquele país, com sua mulher, até o final da guerra. Suas memórias denunciam esse aprendizado étnico, mas as entrelinhas não demonstram acintes de radicalismo. Maçom 11 Ver, no trabalho em referência, a Tabela 1. 12 Esta observação é coerente com a nota de Hobsbawm (2004, p. 277-278) a respeito da reação dos imigrantes ao se estabelecerem.
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vinculado a uma loja teuto-brasileira (Concordia IV)13, manifesta um certo anticlericalismo; demonstra, também, relativo conservadorismo, ao externar sua etnicidade – inclusive, nunca se naturalizou. Quase tudo isso, de um lado, e talvez um pouco mais, de outro, permite vislumbrar na sua escrita uma situação étnica (STROBEL, 2014)14 . Generalizando, e pautado ainda pelo exemplo do mesmo ator, a minha hipótese é de que o ritmo dos ciclos matrimoniais desenvolvidos na primeira geração levam-os, gradativa e espontaneamente, a romperem com o enclave, articulando-se ao grupo num processo original de contatos culturais e etnicização: teutobrasilianizaram-se. Inseridos na sociedade brasileira, viveram os últimos dias do Império, a abolição da escravidão e os clamores pela República. Sem dúvida, além de outros acontecimentos similares próprios da história da paróquia e da comunidade teuto-brasileira, essas circunstâncias conjunturais devem ter marcado as gerações concernentes. De modo que, se cada um desses casais conviveu com pessoas nascidas na mesma época, sofrendo a influência das mesmas circunstâncias históricas, também é verdade que conviveram com pessoas de idade diferentes, num mesmo tempo. Com efeito, as memórias de Gustav Hermann também são “memórias de memórias”, pois muito escreveu lembrando o que seu pai lhe lembrara e confessara, em longas noites de conversas ou na convivência do trabalho. Realmente, as memórias são muito vivas e muito detalhadas, de modo que é difícil acreditar que o memorialista teve condições de tudo lembrar, no que diz respeito à sua vida de criança, pelo menos antes de chegar a Dona Francisca. Além disso, o autor não vivenciou, evidentemente, a história de seu pai antes do seu nascimento ou, por exemplo, como escolheu sua profissão em vez de ser um chacareiro, como foram seus ancestrais. Foi assim que o pai de Gustav Hermann ascendeu a uma situação social característica da pequena burguesia. Imigrou com 36 anos, aniversariando justamente no dia que seu navio, o veleiro Florentin, arribou em São Francisco (11 de novembro de 1854). Emigrou por ter participado numa versão local das Revoluções de 1848. Sem dúvida, era um revolucionário em Dresden e Glauchau, mas dificilmente, para além de querer melhorar sua vida na Saxônia, poderia ser colocado no rol daqueles que pretendiam fundar um Parlamento nacional na Alemanha. Gustav Hermann, ao escrever sobre essa experiência de seu pai, que o motivou a emigrar, não o endossa. Ou seja, se seu pai era um homem da Revolução de 1848, o contexto do memorialista era outro, e isso se revela no seu texto. Não tendo vivenciado a Revolução, a não ser por ouvir falar, evidentemente a construção do Império alemão em 1870 teve para ele um sabor étnico que, 13 Nas suas memórias, nenhuma informação a respeito. Os dados que tenho estão disponíveis na página do Museu Maçônico Paranaense (2017). 14 O texto provavelmente foi completado após a Guerra, depois que quem? voltou da Alemanha. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 191-208, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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provavelmente, não tinha o mesmo gosto para o seu pai. Assim, explica-se o “conflito” de gerações. Karl Mannheim (1982, p. 83) enxerga a “modernidade” da juventude colocando-a mais próxima dos problemas “atuais”, com a geração mais velha agarrando-se à “reorientação que foi o drama de sua juventude”; entretanto, dada as circunstâncias dos contatos culturais com a sociedade brasileira, esse “conflito” verifica-se em duas vias e, numa certa medida, a juventude poderia ser mais conservadora do que os pais. O processo da aquisição de valores étnicos comprova. Tal observação permite uma generalização, baseada nas questões teóricas colocadas. Se pensarmos nas diversas gerações que agregam os sujeitos da pesquisa, independente da cronologia definindo suas balizas, o “mesmo tempo” de um conjunto de casais de coortes diferenciadas, era um “tempo diferente”, se tomarmos cada uma das coortes independentemente (MANNHEIM, 1928, p. 124 apud MOTTA, 2004, p. 232). Dito de outra forma, trata-se de temporalidades distintas ligadas contraditoriamente por um mesmo contexto, ensejando reações diferentes às diversas gerações que experienciaram os mesmos acontecimentos. Como já tentei mostrar, a história da linhagem Strobel permite-me historicisar esses conceitos. Christian e Christianna emigraram acompanhados dos seus filhos, Emilie Bertha (1846), o referido Gustav Hermann (1849) e Robert Emil (1853) – todos nascidos na Saxônia. Em Curitiba, a família completou-se com os nascimentos de Maria (1855), Anna Luisa (1858) e Fanni (1861) – a mãe estava com 31 anos, o que não permite incluir o casal entre aqueles que tinham um comportamento pré-malthusiano (NADALIN, 2016). Pela experiência da imigração e do estabelecimento em Curitiba, agregaram-se num enclave “cultural”15 caracterizado por contatos limitados com a sociedade receptora (NADALIN, 2016). De modo que é fácil afirmar que estas crianças constituíam parte da mesma geração16. Por outra parte, agregavam-se aos filhos dos outros 62 casais fundadores, compondo a amostra de uma primeira geração de filhos de imigrantes, definida pela metodologia. Mais tarde, as gerações dos netos, à sua maneira, poderiam ter experimentado o mesmo fenômeno ocorrido com seus pais e avós sobreviventes. Na perspectiva das temporalidades, as durações concernentes aos recortes transversais articulam-se contraditoriamente àquelas referentes aos recortes longitudinais, das coortes e gerações. A compreensão dessa complexida15 Coloquei aspas na palavra pelo seu caráter, nesse caso, abstrato. Afinal, de origens diversas, muitos dialetos originais eram incompreensíveis para o vizinho imigrante, e cada um era obrigado a se utilizar de uma língua alemã comum. De qualquer modo, ligavam-se pelo mesmo destino, pela profissão de fé luterana, pela identificação com uma “pátria” distante etc. 16 Na direção de um senso comum do termo, o “tamanho” de uma geração pode ser considerado como de 30 anos, referente a um período histórico que corresponderia à duração da renovação dos homens na vida pública, e medida pelo espaço de tempo que separa a idade do pai daquela do filho. Por outro lado, alguns autores consideram uma geração o conjunto de pessoas que “têm mais ou menos a mesma idade” (SEGALEN, 1993, p. 191). Ver, também, Dicionário Demográfico Multilíngue (1969, p. 18).
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de, ou dessa dialética, é fundamental para percebermos as reações do grupo etnocultural aos acontecimentos vivenciados pela comunidade constituído pelos teuto-brasileiros em Curitiba. Gráfico 1 – Cronologia das gerações: 1865-1971.
Fonte: CELC – Registros Paroquiais. Fichas de Família (NADALIN, 2013, p. 797)..
Quero, ainda, observar o que já estava implícito: ao enquadrar os filhos, netos e bisnetos dos casais fundadores no conceito sociológico de geração, cabe anotar a dificuldade em se definir exatamente este recorte, “mesmo porque são discutíveis as possibilidades de utilização de qualquer critério objetivo para a demarcação geracional” (COLOGNESE, 2011, p. 143) – geração é uma abstração. Analisando o problema na perspectiva das coortes, como fiz recentemente (NADALIN, 2016), estimei que a temporalidade arbitrada é, aproximadamente, a que o sentido comum toma como geração. Todavia, é importante frisar que suas “fronteiras”, aparentemente concretas, não consideram a nebulosidade própria dos seus limites. De fato, tal evidência fica clara ao agregar as gerações concernentes aos filhos, netos e bisnetos dos casais fundadores, como se verifica na distribuição do total de nascimentos (Gráfico 1). Porém, penso que pode ser aí que se encontra o nó da questão, ainda mais porque é nas zonas fronteiriças que “se constroem e se reconstroem as identidades geracionais, assim como os conflitos e as estigmatizações” (COLOGNESE, 2011, p. 140).
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Ainda algumas questões metodológicas O experimento metodológico foi viabilizado com um estudo das concepções pré-nupciais. Além do arrolamento dos casos (ver Tabela 2, anexa), organizei os dados brutos de modo a visualizá-los numa distribuição (Gráfico 2). Por sua vez, a Tabela 1, a seguir, mostra as frequências das concepções pré-nupciais, tais como foram calculadas para este artigo, e dispostas lado a lado com cálculos realizados para coortes de casamentos (NADALIN, 2016). Para ilustrar, examinei as fichas concernentes à linhagem Strobel, e encontrei somente uma prova de relações mais intimas que levaram à gravidez antes do casamento. Foi na segunda geração, e me refiro a um neto do casal fundador, sobrinho de Gustav Hermann; sua jovem esposa, entre 18 e 19 anos, teve constatada sua gravidez cerca de 3 meses antes do matrimônio (casamento realizado em 1902). Como já aventei (NADALIN, 2016), com um compromisso de noivado provavelmente definido, dificilmente tal fato seria o resultado de uma única relação entre os noivos. Tabela 1 – Comunidade Evangélica Luterana de Curitiba. Procedimento 1: Idade ao casar
Procedimento 2:
Coortes de casamento
Coortes de descendentes de imigrantes
1
1866-1894
1895-1919
1920-1939
1869-1909
1876-1934
1926-1959
Coorte I
Coorte II
Coorte III
Filhos
Netos
Bisnetos
15-19
26,5%
17,3%
11,4%
21,1%
13,3%
8,1%
20-24
32,3%
11,0%
8,3%
25,0%
11,1%
4,8%
25-29
[18,0%]
0%
8%
11,1%
3,9%
2,9%
30+
--
--
--
[50,0%]
--
--
Indeterminado
--
--
--
[20,0%]
[16,7%]
[11,1%}
TOTAL
28,2%
12,4%
9,3%
21,9%
10,7%
5,6%
Fontes: CELC – Registros Paroquiais / Fichas de Família.
Frequência das concepções pré-nupciais em função da idade da mulher no primeiro casamento. Coortes de casamento (1866-1939) e coortes de descendentes de imigrantes (1869-1959).Todavia, uma vez que as jovens estão sendo observadas numa perspectiva geracional, a questão que é possível colocar tem como referência a possibilidade de examinar a ocorrência das concepções pré-nupciais em gerações diferentes, mas num mesmo contexto (1869 a 1909). Por exemplo, ao investigar os casais que compõem a linhagem fundada pelos sogros de Gustav Hermann, o mestre-pedreiro Ferdinand Wendt e sua mulher Johanna17, não detectei nenhum flagrante de concepções pré-nupciais. Não obstante, me deparei com uma filha do pedreiro, cunhada do nosso 17 Ficha de família 9943.
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memorialista, que concebeu uma criança com apenas 13 anos18 (seu parceiro deveria estar com 17 ou 18 anos – não tenho a idade exata), tendo dado à luz com 14. Os jovens contraíram núpcias em 1879, quase dois anos depois do nascimento da criança19. Evitando cometer o pecado do anacronismo, não consigo imaginar a possivelmente confusa situação para a família. De qualquer maneira, nascer uma criança antes do casamento configurava, muito mais do que uma concepção pré-nupcial, uma coabitação anterior, difícil de ser pensada para uma moça, quase ou praticamente pré-adolescente20. Adito que, mesmo num contexto no qual esses costumes pudessem ser comuns (NADALIN, 2016), o problema é difícil. Explico: uma longa tradição que envolve uma cultura acerca do casamento, da família e da sexualidade (sem mencionar o tema da procriação), característica das sociedades europeias, camponesas e pequeno-burguesas, poderia hipoteticar a respeito dos comportamentos anunciados pelas concepções pré-nupciais. Mas, como reduzir todos os flagrantes detectados à vala comum de uma teoria? Quando se abstraem os casos individuais, quantificando as análises, as percentagens beiram uma aparente normalidade, por seguir um padrão consistente: numa perspectiva linear, a tendência da diminuição, no tempo, das gravidezes antes do casamento, é evidente. Acompanha a diminuição da fecundidade nas mesmas coortes (BIDEAU e NADALIN, 2014), coerentemente com o processo de “modernização” e de “urbanização” da sociedade curitibana. Gráfico 2 – Distribuição das concepções pré-nupciais: 1869-1959.
Fonte: CELC/Registros paroquiais – fichas de família. 18 Se considerarmos a distribuição da idade ao casar na época e a idade média (BIDEAU e NADALIN, 2011, p. 79), em torno de 21 anos, e considerando que a idade da puberdade deveria ser posterior aos dias que correm, é possível avaliar esse acontecimento como extraordinário. 19 A criança faleceu ao completar o primeiro aniversário, em 1878. 20 Ver os dados na Tabela 2, anexa. Todas as idades de casamento reunidas, e excluídas do total as concepções pré-nupciais. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 191-208, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Não é o caso de examinar, neste trabalho, a problemática dessa démarche. Entretanto, sem outro compromisso, examino o Gráfico 2, abaixo, que concerne à distribuição das concepções nos 91 anos cobertos pelos anos de 1869 e 1959, mostrando, de forma semelhante à distribuição mostrada no Gráfico 1, como as gerações se interpenetram transversalmente nos anos de 1876 a 1909 (as duas primeiras gerações), e 1926 a 1934, a segunda e terceira geração. Ao mesmo tempo mostram, tal qual é verificável no mencionado Gráfico 1, como, quando os dados são comparados aos estudos já realizados por coortes de Casamento (Tabela 1, em seguida), as fronteiras cronológicas das gerações não só se interpenetram como também têm uma grande amplitude (1869-1909, 1876-1934 e 1926-1959, respectivamente). Esse fato poderia explicar porque as concepções pré-nupciais, neste segundo procedimento, são ligeiramente inferiores àquelas obtidas no procedimento anterior. De todo modo, assinalo uma constatação na distribuição que resultou no desenho do Gráfico 2: em primeiro lugar, os anos de 1876 s 1909 (34 anos) correspondem à 48 concepções (61% do total) que ocorrem simultaneamente, entre os filhos e netos dos casais fundadores. No que se refere à semelhante simultaneidade ocorrida entre as gerações 2 e 3 (netos e bisnetos), a ocorrência foi muito menor, de somente 8% (6 casos, para 79 concepções no total). Evidentemente, uma sincronia entre as três gerações é praticamente impossível, uma vez que demandaria uma abrangência cronológica extraordinária das gerações observadas.
Considerações finais Quis colocar em relevo, neste trabalho, o tema da utilização de uma temporalidade característica das gerações. Entretanto, a perspectiva geracional utilizada apresenta alguns problemas, principalmente no que tange à sua amplitude. A metodologia proposta resultou da juntada de 63 pacotes de fichas de família, agregando filhos, netos e bisnetos de imigrantes, mas os dados obtidos precisam ainda ser devidamente problematizados. Afinal de contas, as famílias em evidência constituem parte de uma comunidade que não está isolada no seu estabelecimento, mas em contato com uma sociedade distinta do ponto de vista cultural, à qual, de um modo ou de outro, os imigrantes e descendentes procuravam se integrar. Da mesma forma, o grupo deve considerar uma dinâmica que coloca também em contato gerações distintas, pondo em relevo, portanto, contatos intra e intergeracionais. Nessa trama complexa, essas gerações, em conformidade com as atitudes do grupo como um todo, construíram memórias e visões de mundo diferentes, resultando na complexidade constituída pela construção da etnicidade.
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Considerando, mais especificamente, as constatações realizadas, verificou-se que os dados obtidos a partir de dois procedimentos relativamente diferentes produziram resultados muito semelhantes: como sugeri, sem considerar a possibilidade de uma aleatoriedade nas cifras calculadas, é possível que as percentagens calculadas no segundo procedimento resultem de uma abrangência cronológica maior das gerações dos filhos e netos, e a maior contemporaneidade das coortes relativas aos bisnetos dos casais fundadores. Penso que, assim, o trabalho sugerido em seguida aos dados preliminares da investigação deve se deter num exame microscópico das informações, linhagem por linhagem, considerando as três gerações em análise.
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ANEXOS Tabela 2 – Linhagens imigrantes – Distribuição concepções pré-nupciais por geração de descendentes. Séculos XIX e XX.
GER
1ª.
2ª.
3ª.
INTERVALOS PROTOGENÉSICOS
IDADE
FICHAS
SEM
CPNup
EF
FILHOS
%
CASAM
0
1
2
3
4
5
6
7
SUBT
8+
NEG
TOT
15-19
1
1
1
2
5
-
2
3
15
56
3
74
21,1
20-24
-
2
2
-
2
2
4
4
16
49
7
72
25,0
25-29
-
-
-
1
-
-
-
1
2
15
2
19
11,1
30+
-
-
-
-
-
1
-
-
1
1
-
2
[50]
Indet.
-
-
-
-
-
-
-
1
1
4
-
5
[20]
TOTAL
1
3
3
3
7
3
6
9
35
125
12
172
15-19
-
-
-
3
3
2
2
3
13
85
5
103
13,3
20-24
-
1
2
-
7
1
2
1
14
112
2
128
11,1
25-29
-
-
-
-
-
-
-
1
1
25
3
29
3,9
30+
-
-
-
-
-
-
-
-
-
5
-
5
----
Indet.
-
-
-
-
-
-
1
-
1
5
-
6
[16,7]
TOTAL
-
1
2
3
10
3
5
5
29
232
10
271
15-19
-
-
1
2
-
1
1
3
8
79
1
88
9,2
20-24
-
-
1
-
4
-
2
7
14
116
3
128
10,5
25-29
-
-
-
-
-
-
1
-
1
33
-
34
2,9
30+
-
-
-
-
-
-
-
-
-
8
1
9
----
Indet.
-
-
-
-
1
-
-
-
1
8
-
9
[11,1]
TOTAL
-
-
2
2
4
2
4
10
24
244
5
271
28
80
24
16
52
72
21,9
10,7
9,0
Fontes: CELC - Registros Paroquiais (Fichas de Família).
A geração “0” é constituída dos seguintes casais fundadores21:
1. Heinr Ludwig Adam (Hannover) e Chrise Henre Emma (Hannover); n/c.; 2. Bernhard Amhof (Saxônia) e Wilhelmine David (Saxônia?); marceneiro; 3. August Blitzkow (Pomerânia) e Mathilde Stephens (Holstein); lavrador/pedreiro; depois comerciante; 4. Ernst Wilhelm Born (Pomerânia) e Louise Jese (ou Gess) (Pomerânia); (lavrador); 5. Hermann Boutin (Oldenburgo) e Wilhelmine Kähler (Schleswig-Holstein); lavrador/depois comerciante; 21 Eu os anotei neste anexo, porque servirão, a partir deste texto e, como está sendo proposto nas considerações finais, como instrumento de trabalho. Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 191-208, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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6. Hermann Czech (Pomerânia) e Emilie Millarch (Pomerânia); n/consta; 7. Fried.Wilh.Herm Krüger (Pomerânia) e Louise Johanne Müller (Pomerania); lavrador (mais tarde, comerciante); 8. Carl Fried.Wilh Krüger (Pomerânia) e Justine Eleonore Florentine (Pomerânia); n/c.; 9. Joh. (Pomerania) e Auguste Borchard (Pomerania), n/c.: 10. Friedrich Diedrichs (Pomerânia) e Dorothea Klingebiel (Pomerânia); (Lavrador); 11. Chris Fried Dumke (Pomerânia) e Charlotte (?) (Pomerânia); 12. Friedrich Gärtner (Pomerânia) e Charlotte Tönnies (Pomerânia); Pastor; n/c.; 13. Heinrich Günther (Lüneburg) e Verena Müller (Suiça); lavrador (kolonist) / Wegoffizier estrada Graciosa; 14. Christian Gottschild (Saxônia) e Julie Seibt (Saxônia); lavrador; 15. Friedrich Gumz (Pomerânia) e Louise Daegener (Pomerânia); n/c.; 16. Friedrich Gumz (Pomerânia) e Louise Hellwig (Pomerânia); n/c.; 17. Aug. Hannemann (Hamburg) e Wilh61 Louise Blitzkow (Hamburg); 18. Carl Hannemann (Pomerânia) e Friederike Prey (Pomerânia); lavrador; 19. August Hecke (Posnânia) e Juliane Steinecke (Posnânia); professor; 20. Friedrich Hein (Prussia) e Luise Riese (Prussia); lavrador / operário; 21. Chris Fried Janz (Pomerânia) e Dorothea Quandt (Pomerânia); n/c.; 22. Joh Gottlieb Klems (Pomerânia e Joha. Schmöckel (Pomerânia?); 23. Otto Krelling (Saxonia) e Maria Ganzel (S.-Holstein); “Carpínteiro de carros” 24. Carl Fried Wilh Krüger e Justine Eleone Florente Waldow (Pomerânia); 25. Karl Lange (Morávia?) e Maria Krisch (Morávia); n/c.; 26. Johann Lessnau (Pomerânia) e Louise Pahnke (Pomerânia); n/c.; 27. August Löper (Pomerânia) e Maria Bührer (Suiça); carroceiro; 28. Georg Mäder (Suiça) e Maria Wanner (Wander) (Suiça); cordoeiro;
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29. August Marquardt (Pomerânia) e Caroline Wilhe. Zug (Pomerânia); n/c.; 30. Samuel Marty (Suiça) e Maria Müller (Suiça); sapateiro; 31. Heinrich Mehl (Prussia?) e Karoline Adam (Hanover); carroceiro/comerciante; 32. Johann Mehl (Prussia) e Emilie Schlottag (Pomerânia); lavrador; 33. Hans Meister (Suiça) e Anna Werner (Suiça); sapateiro; 34. Christoph Melzer (Saxonia) e Anna Milker (Saxonia); lavrador; 35. Wilhelm Millarch (Pommerânia) e Wilhelmine Schulz (Pomerânia); n/c.; 36. Rudolph Müller (Suiça) e Verena Heuber (Suiça); padeiro; 37. Christian Osternack (Hamburgo) e Emma Wegener (Hamburgo); lavrador/oleiro; oleiro e lavrador; 38. Aug Herm Gottfried Paske (Pomerânia) e Wilhe. Kühntopp (Alem.); 39. Chris. Gottlieb Petersen (S.-Holstein) e Cath Marg Gärtzen (S.-Holst.); n/c; 40. Pöplow, Ferdinand (Pommern) e Dorothea Biens (Pommern); n/c.; 41. Johann Prohmann (Hannover) e Catharina Bellmann (Holstein); fabricante de charutos / agricultor; 42. Johann Roggenbaum (Pomerânia) e Maria Kohn (Pomerânia); (lavrador); 43. Franz Joseph Rohmfeldt (Alem.) e Johanna Schön (Alemanha); (industrial); 44. Carl Roloff (Pommern) e Friederike Giese (Pommern); n/c.; 45. Heinrich Roskamp (Hannover) e Margarethe Mäder (Suiça); (?) 46. Wilh. Fried. Sänger (Prússia) e Joha. Wilhe Klubach (Prússia); lavrador; 47. Wilh. Karl Sauer (Pomerânia) e Emilie Krause (Pomerânia); n/c.; 48. Heinrich Sass (Mecklenburg) e Wilhelmine Hahn (Alemanha); lavrador; 49. Johann Schaffer (Morávia) e Johanna Müller (Morávia; açougueiro; comerciante; 50. Bartholomeus Schmidlin (Suiça) e Elisabeth Weber (Suiça); n/c.; 51. Friedrich Schmidt (Holstein) e Christina Lohrberg (Holstein); mineiro; açougueiro; 52. Wilhelm Schneider (Pomerania) e Elwine Wilhelmine Schier (Pomerânia); n/c.; Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 191-208, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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53. Friedrich Schulte (Alemanha) e Dorothea Maria Walter (Alemanha); empreiteiro; marceneiro; 54. Carl Chr. Fried. Schünnemann (Prússia) e Ida Henre Thormann (Prússia); lavrador; pedreiro; 55. Aug. Ad. Otto Schütze (Alem.) e M. Carola Adelina Clara Meyer) (Alem.); mestre-ferreiro; 56. Ernst Seibt (Saxonia) e Bertha Gumz (Pomerania); n/c.; 57. August Strobel (Saxonia) e Friederike Herold (Saxonia);22 carpinteiro; 58. Carl Joh Fried Vossgrau (S.-Holstein) e Marg Cath Doroth Gotsch (S.-H.); n/c.; 59. Friedrich Vossgrau (S.-Holstein) e Margarethe Paasch (S.-Holstein); n/c.; 60. Fried Wilh Bernh Weigang (Brandenburgo) e Margareth Lohse (Holstein); cervejeiro; 61. Wilhelm Weigert (Silésia) e Rosine Kühn (Silésia); (Industrial? - Serraria em Curitiba); 62. Ferdinand Wendt (Pomerânia) e Johanna Selcke (Pomerânia); pedreiro; 63. Carl Ziemer (Pomerania) e Henriette Knies (Pomerânia); lavrador.
22 A linhagem fundada por este casal serviu para fundamentar parcialmente a problemática desenvolvida neste trabalho.
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Relação de pareceristas ad hoc (2017)
Resgate, volume 25, números 1 e 2 [33 e 34] Agnaldo Valentim Doutor em História Econômica (USP). Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP). São Paulo (SP) Alcides Goularti Filho Doutor em Ciência Econômica (Unicamp). Professor de Ciências Econômicas da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Criciúma (SC) Alexandre Macchione Saes Doutor em História Econômica (Unicamp). Professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Américo Oscar Guichard Freire Doutor em História Social (UFRJ). Professor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Rio de Janeiro (RJ) Ana Gonçalves Magalhães Doutora em História e Crítica da Arte (USP). Professora livre-docente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP). São Paulo (SP) Ana Maria de Almeida Camargo Doutora em História Social (USP). Professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Ana Paula Medicci Doutora em História (USP). Professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador (BA) Andre Luiz Moscaleski Cavazzani Doutor em História Social (USP). Coordenador da Licenciatura em História do Centro Universitário Internacional (Uninter). Curitiba (PR) Antonia da Silva Mota Doutora em História (UFPE). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) São Luís (MA) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 209-216, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Demografia Histórica
Antonia Terra de Calazans Fernandes Doutora em História Social (USP). Professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Antonio Otaviano Vieira Junior Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém (PA) Áureo Busetto Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Assis (SP) Cacilda da Silva Machado Doutora em História Social (UFRJ). Professora do Departamento de Fundamentos do Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro (RJ) Carlos André Silva de Moura Doutor em História (Unicamp). Professor do Departamento de História da Universidade de Pernambuco (UPE). Recife (PE) Carlos Gabriel Guimarães Doutor em História Econômica (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ) Cristina de Campos Doutora em Arquitetura e Urbanismo (USP). Professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) Cristina Donza Cancela Doutora em História (USP). Professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém (PA) Daniel Souza Barroso Doutor em História Econômica (USP). Professor de História da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém (PA) Deborah Oliveira Martins dos Reis Doutora em História Econômica (USP). Professora do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB). Brasília (DF)
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Eide Sandra Azevêdo Abrêu Doutora em História Social do Trabalho (Unicamp). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá (PR) Esther Império Hamburger Doutora em Antropologia (University of Chicago). Professora livre-docente do Departamento de Cinema Rádio e Televisão da Universidade São Paulo (USP). São Paulo (SP) Francisco Palomanes Martinho Doutor em História Social (UFRJ). Professor livre-docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Guilherme Grandi Doutor em História Econômica (USP). Professor doutor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP). São Paulo (SP) Gustavo Acioli Lopes Doutor em História Econômica (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Recife (PE) Helder Alexandre Medeiros de Macedo Doutor em História (UFPE). Professor do Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES/UFRN). Caicó (RN) Heloisa Helena Pimenta Rocha Doutora em Educação (USP). Professora livre-docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) Heloisa Maria Teixeira Doutora em História Econômica (USP). Pesquisadora residente da Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro (RJ) Hildete Pereira de Melo Hermes de Araújo Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia (UFRJ). Professora do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 209-216, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Demografia Histórica
Iara Lis Franco Schiavinatto Doutora em História (Unicamp). Professora do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) Ilka Stern Cohen Doutora em História Social (USP). São Paulo (SP) Iraci del Nero da Costa Doutor em Economia (USP). Professor livre-docente da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP). São Paulo (SP) João Paulo Garrido Pimenta Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Jonis Freire Doutor em História (Unicamp). Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ) José Carlos Barreiro Doutor em História Social (USP). Professor livre-docente do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Assis (SP) Joseli Maria Nunes Mendonça Doutora em História (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba (PR) José Newton Coelho Meneses Doutor em História (UFF). Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte (MG) Josianne Francia Cerasoli Doutora em História (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP)
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Pareceristas Parte 1
Júlio Manuel Pires Doutor em Economia (USP). Professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto (SP) Karina Anhezini Araújo Doutora em História (Unesp). Professora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Franca (SP) Lauro José Siqueira Baldini Doutor em Linguística (Unicamp). Professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) Lelio Luiz de Oliveira Doutor em História Econômica (USP). Professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto (SP) Lina Maria Brandao de Aras Doutora em História Social (USP). Professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador (BA) Lucia Grinberg Doutora em História (UFF). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Rio de Janeiro (RJ) Márcia Eckert Miranda Doutora em Economia (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Guarulhos (SP) Márcia Regina Capelari Naxara Doutora em História (Unicamp). Professora livre-docente do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Franca (SP) Marcia Regina Berbel Doutora em História Econômica (USP). Professora livre-docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 209-216, jul./dez. 2017 – e-ISSN: 2178-3284.
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Demografia Histórica
Maria Claudia Bonadio Doutora em História (Unicamp). Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora (MG) Maria Lemke Doutora em História (UFG). Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia (GO) Maria Silvia Casagrande Beozzo Bassanezi Doutora em Ciências Sociais (Unesp). Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo/Unicamp). Campinas (SP) Marisa Varanda Teixeira Carpintero Doutora em História (Unicamp). Campinas (SP) Maximiliano Martin Vicente Doutor em História Social (USP). Professor livre-docente do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Bauru (SP) Michel Deliberali Marson Doutor em Economia (USP). Professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas (Unifal). Varginha (MG) Miriam Dolnikoff Doutora em História Econômica (USP). Professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Milton Carlos Costa Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Assis (SP) Olga Rodrigues de Moraes Von Simson Doutora em Ciências Sociais (USP). Professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP)
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Patrícia Maria Melo Sampaio Doutora em História (UFF). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Manaus (AM) Paula Chaves Teixeira Pinto Doutora em História (UFF). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). São João Del-Rei (MG) Paulo Cesar Gonçalves Doutor em História Econômica (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Assis (SP) Paulo Henrique Martinez Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Assis (SP) Paulo Teixeira Iumatti Doutor em História Social (USP). Professor livre-docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). São Paulo (SP) Rafael Augusto Urano de Carvalho Frajndlich Doutor em Arquitetura e Urbanismo (USP). Professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura, Urbanismo da Unicamp. Campinas (SP) Raquel Glezer Doutora em História Social (USP). Professora livre-docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Regina Célia Lima Xavier Doutora em História (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grando do Sul (UFRGS). Porto Alegre (RS) Renato de Mattos Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ) Renato Leite Marcondes Doutor em Economia (USP). Professor livre-docente do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto (SP)
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Demografia Histórica
Rita de Cássia da Silva Almico Doutora em História (UFF). Professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ) Rodrigo Turin Doutor em História Social (UFRJ). Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Rio de Janeiro (RJ) Solange Ferraz de Lima Doutora em História Social (USP). Professora livre-docente do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo (SP) Tarcísio Rodrigues Botelho Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte (MG) Teresa Cristina de Novaes Marques Doutora em História (UnB). Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Brasília (DF) Valter Martins Doutor em História Social (USP). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Irati (PR) Wilton Carlos Lima da Silva Doutor em História (Unesp). Professor livre-docente do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Assis (SP) Wlamir José da Silva Doutor em História Social (UFRJ). Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). São João del Rei (MG)
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