Combates & Rituais
Criatividade na produção de textos: a concepção da criatividade entre professores de Português que ZlJLA
lecionam de 5a a 8a série
Garcia Giglio Tese de doutorado defendida no Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação-Unicamp Orientador: Professor Dr. Carlos Alberto Vidal França
Se entendemos educação como um proces-
literatura e a redação. Esta última, por sua vez,
so contínuo voltado para o desenvolvi-
subdivide-se em redação criativa e utilitária. Estes
mento da pessoa como um todo, é im-
rótulos passam então, inadvertidamente, de au-
portante refletirmos sobre o espaço concedi-
xiliares na organização das aulas para denomi-
do à criatividade no contexto da educação re-
nadores de diferenças tomadas como absolu-
gular.
tas. Deixa-se de levar em conta que a criatividade Temos nos acostumado a associar ensi-
também teria um papel na escrita do tipo utili-
no escolar com habilidades racionais e lógicas
tário, como na dissertação, por exemplo. Uma
e com aprendizado daquilo que já é conhecido
das conseqüências é que a criatividade, como
e tido como verdadeiro, certo e útil; associa-
objeto de atenção por parte do professor, fica
mos criatividade com imaginação, fantasia e
relegada praticamente só às aulas demarcadas
descobertas, que podem ser socialmente rele-
como de "redação criativa", cisão que repercu-
vantes ou não. Entretanto, na prática educativa,
te na formação do estudante, dificultando seu
percebemos que esta separação entre o que é
processo de desenvolvimento. Assim também
eminentemente escolar e a criatividade, que
o professor é compelido a esquecer as relações
serve como um recurso descritivo didático,
mútuas entre a competência lingüística, a capa-
acaba por relegar o desenvolvimento da
cidade de pensar e a manifestação da criati-
criatividade para uma posição secundária na
vidade.
escola, limitando de certa forma a esfera de
Um outro aspecto da questão é que a
ação do professor, a qual pode estender-se até
criatividade, sendo uma potencialidade, tende
a prevenção primordial em Saúde Mental.
a fluir de qualquer forma como um mecanis-
No caso do ensino de língua materna, exis-
mo de saúde que é, carreando consigo os seus
te uma divisão entre o estudo da gramática, a
fortes componentes emocionais, provocando
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desconforto num contexto que não esteja
ce do papel que lhe cabe desempenhar? Que
preparado para ser continente dela.
preparo tem para lidar com a responsabilidade implícita em sua área de atuação junto
Objetivo e justificativa
aos adolescentes? A escola, como instituição, concede o espaço adequado para que ele exer-
Neste estudo, pois, com a finalidade de
ça sua função de educador? Dentro dos li-
entender as condições do desenvolvimento
mites de nossa pesquisa, já referida, pode-
da Criatividade no contexto escolar, especi-
mos também trazer algumas respostas que
almente no campo da escrita, focalizamos
elucidam o contexto brasileiro e que podem
fatores ligados ao processo criativo e que
servir a outros educadores.
dependem da competência lingüística dos alunos e trazemos para discussão alguns aspec-
Metodologia
tos da função do professor de língua materna, os quais emergem de seu trabalho com a redação escolar.
Abordamos os professores com uma única pergunta: O que é Criatividade na produ-
Para tal, interpelamos aleatoriamente
ção de textos? formulada na moldura da
um grupo de professores que lecionam a dis-
Fenomenologia, e cujas respostas foram ana-
ciplina de Português de 5a. a 8a. série do 10.
lisadas com base na Psicologia Fenomenológica,
Grau em diferentes escolas de Campinas.
proposta por GIORGI (1985). Este autor es-
Nossos entrevistados trabalham com uma população adolescente, podendo-se su-
boça um "modelo" de escansão de texto, que seguimos passo a passo.
por que se constituem em figuras interferen-
Os dados que obtivemos através da aná-
tes no processo de formação da identidade
lise das respostas preencheram um largo es-
de seus alunos. Ainda, sendo professores da
pectro, o qual inclui a conceituação de
língua materna, estão comprometidos com a
criatividade, seus pré-requisitos, e o papel do
própria formação básica do pensamento da-
professor no desenvolvimento do processo
queles adolescentes, uma vez que linguagem
criativo do aluno.
e pensamento estão intrinsecamente ligados na consciência (VIGOTSKY, 1991). Por fim,
Resultados e discussão
a linguagem verbal é um fator constituinte
Conceituação da criatividade na produção de textos
do processo criativo, o qual, por sua vez, pertence à esfera da saúde mental, como já assinalaram vários autores.
A criatividade na produção de textos foi definida pelos sujeitos de nossa pesquisa
O papel do professor de língua mater-
como a liberdade de expressar um novo,
na adquire, nesta perspectiva esboçada aci-
seja ele manifestado por uma maneira pesso-
ma, uma relevância maior do que a que é nor-
al de usar a Língua ou pela apresentação de
malmente percebida à primeira vista. É per-
idéias originais, produzidas a partir da elabo-
tinente indagar: Ele próprio percebe o alcan-
ração individual de experiências. Nesta ela-
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boração participam os sentimentos do sujei-
sendo professores de 5a. a 8a., lidam mais
to. A Criatividade manifesta-se como um
com a sistematização gramatical e com o gê-
rompimento com o que já existe, tanto no
nero dissertativo, e parecem não se lembrar
nível formal como no nível conceptual, sen-
de que a imaginação é uma auxiliar poderosa
do resultante da realização de uma "soma"
para pensar hipóteses, exercer a crítica e de-
original dos conhecimentos adquiridos.
senvolver argumentos, coisas que a disserta-
Os entrevistados acreditam que os seus
ção deve incluir.
alunos são criativos, mas dizem que lhes fal-
A capacidade crítica -reflexiva, segundo os
tam alguns pré-requisitos para manifestar esta
professores, desenvolve-se a partir das
capacidade nas redações. Desta forma justi-
vivências dos alunos, que podem ser diretas
ficam ocuparem o tempo das aulas de reda-
ou indiretas, ou seja, adquiridas através de lei-
ção com atividades que qualificam como an-
turas. Reconhecem que ela implica também
teriores a um trabalho específico com o de-
num componente emocional que seria a segu-
senvolvimento da Criatividade, tais como am-
rança e a auto estima. Assim, a liberdade men-
pliação de vocabulário, leituras de textos de
cionada na conceituação de Criatividade tem
revistas e jornais sobre temas diversos, estu-
uma conotação muito mais psicológica do que
do de literatura, entre outras.
factual. O ambiente do aluno é visto como res-
Condições para a criatividade na produção de textos
ponsável pela extensão e pela qualidade das vivências do estudante, pela sua motivação
Segundo as falas dos professores, a
em relação à escola e pelo registro de lingua-
Criatividade na produção de textos relacio-
gem que ele usa habitualmente (culto, popu-
na-se com: a imaginação, a capacidade críti-
lar urbano, ou rural). O ambiente é dado pela
co-reflexiva, o ambiente em que o aluno vive,
família, pelas características do bairro onde
sua auto estima e segurança, o domínio que
mora e estuda, que se refletem dentro da es-
o aluno tem da Língua e, finalmente, com o
cola que freqüenta, e pelo local e tipo de tra-
cabedal de conhecimentos de que dispõe, ao
balho, no caso dos alunos do período notur-
qual os professores se referem pelo termo
no.
"repertório". Surpreendeu-nos que a imaginação, que é tão valorizada nos estudos sobre processo criativo, tenha sido o fator menos apontado pelos professores de nossa amostra ao dis-
O domínio da Ungua pelo aluno é o que aparece em primeiro plano dentre as tarefas do professor. O aluno necessita; 1. conhecer as diferentes formas do uso da Língua e saber lidar com elas;
correrem sobre os requisitos da Criatividade.
2: saber ler, isto é, entender o texto com
Nossa hipótese é que a imaginação seja vista
que se defronta, ser capaz de inferir o signifi-
como necessária para o gênero narrativo, com
cado de um termo pelo contexto;
o qual se costuma trabalhar nas séries anteriores, com as crianças. Nossos entrevistados, RESGATE (9), 1999/2000. Giglio, Z. G. p. 87-96
3: dominar um registro culto, primeiro na fala, depois na escrita; 89
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4: estar familiarizado com o ato de escrever.
tuguês trabalham com a Língua tendo como ponto de partida e de chegada o eixo
A aquisição de domínio da Língua é ba-
sintagmático. Este trabalho é básico, já que a
sicamente relacionada pelos professores en-
efetividade da comunicação verbal depende
trevistados com atividades de leitura, a qual é
da fidelidade a padrões de organização que
muitas vezes referida como a melhor, senão
conferem lógica seqüencial às frases. Entre-
a única forma de instrumentalizar lin-
tanto, é no eixo paradigmático que reside o su-
güisticamente o aluno e proporcionar-lhe
porte para uma boa montagem no eixo
vivências vicárias. O uso da expressão
sintagmático, que, de certa forma, garanta a
"instrumentalizar" revela, no contexto das fa-
expressão adequada do emissor e a recepção
las, o conceito de instrumento visto como
fidedigna da mensagem.
auxiliar para, e não como constitutivo de. A lin-
No eixo paradigmático é que estão as
guagem é vista como uma aquisição instru-
possibilidades de riqueza lingüística. Aí está o
mental para que o aluno adquira sua identi-
repertório do emissor, a multiplicidade. Entre-
dade, para que tenha acesso aos livros, à in-
tanto, para que o emissor experimente um es-
formação, à cultura letrada. Não aparece
tar à vontade no eixo paradigmático e possa fa-
como sendo constitutiva dessa identidade,
zer as melhores escolhas, é essencial que te-
como algo que ame simultaneamente como
nha clareza quanto à significação da mensa-
construtora e construída.
gem que quer construir. Ora, esta clareza é
Os professores referem-se com insis-
mental, e exige do sujeito saber pensar e ter
tência às dificuldades lingüísticas dos alunos,
consciência do que pensa. RICOEUR (1969),
o que indica uma constatação de que o aluno
falando sobre a compreensão, afirma que ela
tem, entre outras, dificuldades de abstração,
se exerce no plano da linguagem. Levanta o
a qual é responsabilizada pelo índice, que os
problema "da relação entre a força e o sentido,
professores consideram baixo, de Criati-
entre a vida portadora de significação e o espírito
vidade. O aluno é percebido como estando
capa^ de os encadear numa seqüência coerenteP E
aquém do pensamento simbólico, no senti-
diz em seguida: "Se a vida não é originariamente
do piagetiano desta expressão. Isto, a nosso
significante, a compreensão é impossível para sem-
ver, guarda estreita relação com o desenvol-
preP Ora, o significado não está nas coisas; é
vimento mesmo da capacidade lingüística,
a reflexão, atividade da consciência, que atri-
mas ressaltamos que esta capacidade não
bui significado. Há, portanto, um encadea-
aparece, nas falas dos professores entrevis-
mento entre a problemática da linguagem, a
tados, explicitamente relacionada com o ní-
da reflexão e a da existência.
vel da criatividade.
A reflexão, ou clareza mental, supõe capacidade de abstração, pois o indivíduo terá
0 uso da linguagem verbal e a capacidade simbólica
que lidar com signos não-concretos; estará imerso num mundo de possibilidades na es-
Percebemos que os professores de Por90
fera da Língua.
Quanto mais souber lidar
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com símbolos, melhor, e quanto mais for
gradativa capacidade simbólica, a qual, por
capaz de simbolizar, mais chances terá de
sua vez, habilitando o indivíduo a lidar com
adequar sua linguagem à expressão de seus
símbolos, habilita-o também a simbolizar e
pensamentos originais, uma vez que as pala-
isto é a característica essencial do processo
vras são signos simbólicos. Capacidade de sim-
criativo.
bolizar significa a capacidade de encontrar
O processo criativo leva o indivíduo a:
partes que podem ser postas em relação, de
1) aprimorar seus canais de expressão para
forma a gerar significados.
manifestar sua Criatividade, e a linguagem be-
Parece haver um mecanismo de
neficia-se disto; 2) a fazer novas sinapses, a
"feedback" entre a capacidade lingüística, o
tornar-se mais atento às relações possíveis
pensamento lógico e a capacidade de simbo-
entre coisas habitualmente não conectáveis;
lizar. Dito de outra maneira, mergulhar no
3) a ampliar seu repertório (informações e
eixo paradigmático da Língua é o precedente
conhecimentos).
necessário, mas sair dele de forma adequada
Esta interconexão entre pensamento e
supõe a passagem por uma série de opera-
fala torna-se cada vez mais estreita e o ápice
ções-não-exclusivamente-lingüísticas. A lin-
do desenvolvimento atinge o nível da
guagem verbal (como outras linguagens), sen-
racionalidade, isto é, da capacidade de abstra-
do
mediação
ção, e de apreender e formular conceitos. Aí
(VIGOTSKY, 1991), tem seu uso qualifica-
encontramos a fala interna, que, segundo
do por outros aspectos que não são exclusi-
VIGOTSKY (cit) é a transformação, em fase
vos da Língua e que dizem respeito aos está-
posterior do desenvolvimento, daquele "falar
gios complexos do desenvolvimento do in-
sozinho" que PIAGET(1926) chamou de fala
divíduo que a utiliza — desenvolvimento que
egocêntrica. E aí encontramos a Criatividade,
ultrapassa a mera aquisição de habilidades, e
definida como capacidade de simbolizar, isto
estende-se por toda a vida adulta. E ainda, é
é, de estabelecer novas conexões, numa rela-
o desenvolvimento, como um todo comple-
ção necessária com a linguagem e o pensa-
xo, que alimenta o eixo paradigmático, dan-
mento, cujo entrelaçamento permite a
do-lhe a profundidade necessária para que o
simbolização.
um
instrumento
de
indivíduo disponha de uma linguagem capaz de expressar sua própria individualidade.
Assim como o social é a base para o desenvolvimento da linguagem e é a instân-
Numa dinâmica dialética, cada transfor-
cia onde o código verbal organiza-se e en-
mação em um aspecto redimensiona os ou-
contra sua razão de existência, a linguagem
tros, num jogo de interdependência. E esta
verbal é a base do pensamento conceptual, é
hipótese de interdependência que nos per-
onde ele encontra sua configuração. Sem pa-
mite inferir o papel da Criatividade na lin-
lavras não nos tornamos conscientes de nos-
guagem verbal. E o vice-versa.
sas idéias.
Sem criar, não re- novamos os
O gradativo domínio da linguagem ver-
conceitos e não ampliamos os significados.
bal determina e é determinante de uma
Não aconteceriam as transformações sociais.
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0 papel da linguagem verbal na Criatividade
ela mergulha no pensamento inconsciente só pode ser imaginada, mas seguramente a fala
Criatividade, como qualquer outro processo em curso no desenvolvimento (de in-
interna funciona como ponte, servindo a um trânsito entre as esferas intrapsíquicas.
divíduos e de grupos), acontece e manifesta-
A evolução imaginada da fala interna
se de modos diferentes. A medida em que o
acontece de modo coincidente com o ápice
indivíduo evolui, torna-se capaz de elabora-
da linguagem verbal no nível do pensamento
ções mais abstratas, que podem permitir-lhe
lógico, racional e simbólico. As característi-
um grau superior de Criatividade, isto é, atin-
cas inferidas da fala interna (WERTSCH,
gir o nível da invenção. Esta evolução vem
1988) poderiam, talvez, ser tomadas como
do pensamento, que vem da linguagem, por-
índice de como funciona o pensamento num
tanto o grau de Criatividade depende de am-
alto nível de consciência.
bos.
Poderíamos supor que, nos níveis O processo criativo, para completar-se,
transracionais, a evolução da linguagem ver-
supõe uma produção concreta. STEIN (1974)
bal (e de outras) muda qualitativamente. Ha-
afirma: "Criatividade é um processo que re-
veria uma condensação cada vez maior de sig-
sulta em uma produção nova que é aceitável
nificados (predominância da função poética
como útil, factível ou satisfatória por um gru-
sobre a função referencial, na terminologia
po significante de pessoas em um determi-
de JACOBSON,1973), em seguida uma pul-
nado momento."(STEIN, 1974: Prefácio,
verização, ou melhor, uma implosão do
xi).{14!.
seqüencial, do linear, do causai, chegando à
Então, da mesma forma que a lingua-
constituição de uma significação em Moco, e
gem é essencial para constituir um sujeito
depois a linguagem, não mais necessária, de-
pensante, capaz de criar, ela é necessária para,
sapareceria.
sob a forma de fala interna, traduzir o pen-
Recupera-se, num outro nível, portanto de
samento criativo para o sujeito em termos
forma transformada, o pensamento sem pa-
lógicos e torná-lo apto a agir, isto é, a
lavras; não mais o primitivo - "baixo nível"
transformá-lo em produto.
de consciência - mas o supra-superior, no
Para ser trazida de volta, e reverter à
nível da Consciência Plena [!]•
esfera social — no mínimo a das relações
Todo o domínio de linguagem que o
interpessoais — para completar-se e existir (a
indivíduo adquiriu nos caminhos de ida, ele
última etapa do processo criativo, que STEIN
vai usar agora para trazer à consciência sua
(cit), por exemplo, chama de comunicação),
criação, e depois partilhá-la, transformada em
a criação precisa percorrer o mesmo cami-
produto criativo, com seu grupo social. Sem
nho pelo qual seus elementos (dos quais ela
linguagem não há trânsito possível. O "ca-
já não é a mera soma, devido ao fenômeno
minho" é redimensionado nesta volta, pois
da sinergia) já passaram. Este caminho de
os signos, re-significados, alteram sua quali-
volta começa pela fala interna. A forma como
dade. Podemos então dizer, sem nem ser tão
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metafóricos, que o desenvolvimento (indivi-
aprendiz torna-se capaz de ter sua própria
dual e grupai) se dá por um processo de re-
linguagem, uma que seja suficiente para co-
significação.
municar seus pensamentos, idéias, desejos e
Isto confere uma importância crucial ao
emoções, enfim, para expressar a si mesmo
ensino/aprendizagem da linguagem verbal,
com fidelidade. Mas para que o indivíduo
que é hoje ainda, neste estágio evolutivo da
possa expressar-se com fidelidade, ele neces-
sociedade humana, a mediação fundamental
sita conhecer-se, isto é, trazer à sua própria
entre as pessoas e, no indivíduo, a mediação
consciência o que ele é. O processo de ama-
intrapsíquica.
durecimento pelo qual uma pessoa conhece
A questão do repertório, abordada pelos
a si mesmo implica num mecanismo que tam-
professores ora de forma superficial, como
bém passa pela linguagem, conforme descre-
mera soma de informações, ora de modo
vemos acima. Assim, o professor de língua
enigmático, através de palavras como transfi-
materna participa do processo fundamental
guração ou elaboração, é a que mais aparece nas
de constituição do próprio sujeito, uma vez
entrevistas como a condição de produção cri-
que a linguagem é articulação de sentidos. E
ativa, cuja qualidade compete à esfera de ação
na sala de aula, com adolescentes, como é o
do Professor.
caso de nossos entrevistados, que este pro-
Por estarem convencidos de que os alu-
fessor sente mais agudamente a extensão de
nos precisam conhecer o assunto sobre o qual
seu papel. Sua angústia deriva do simplismo
são solicitados a escrever, é que os professo-
como sua função lhe é institucionalmente
res incluem as atividades de leitura como fa-
colocada, como se bastasse a ele indicar lei-
zendo parte da preparação para as aulas de
turas, ensinar gramática e pôr o aluno em
redação. Entretanto, ao trazerem para a sala
contacto com "modelos" para que a produ-
de aula temas diversos escolhidos para des-
ção de textos acontecesse.
pertar a motivação dos estudantes, os Professores se vêem chamados a extrapolar sua
O papel do professor de língua materna
função de ensinador de 'Língua porque os alunos aproveitam a oportunidade para proje-
Os professores entrevistados vêem o
tar nas discussões suas questões existenciais
seu papel como sendo o de levar o aluno a
e esperam do professor também orientações
preencher todos estes pré-requisitos. Obser-
para sua própria vida. Este fenômeno é um
vam que há uma resistência em escrever por
dos aspectos que leva os professores a afir-
parte dos alunos. Os professores assinalam
marem que o trabalho com criatividade é
que os alunos sabem reproduzir informações
muito difícil e a se sentirem pouco prepara-
originalmente codificadas em um registro de
dos para fazê-lo.
linguagem culta, mas não sabem expressar
O domínio de uma Língua talvez não
seus próprios pensamentos e sentimentos
tenha um limite, mas podemos dizer que é
dentro daqueles mesmos padrões, que são os
suficiente a partir do momento em que o
exigidos pela escola. As diferenças entre fala
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e escrita explicam isto. A escrita tem outra
de aula lhe mostra que o aluno necessita fa-
configuração, possui uma linearidade mais
zer um uso da aula de redação não previsto
marcada e exige maior exercício do pensa-
no programa: ela constitui o espaço de ex-
mento analítico. Nossos entrevistados atri-
pressão livre e pessoal que o aluno tem den-
buem essa resistência dos alunos a escrever
tro do esquema escolar. Um professor che-
não só a uma dificuldade de pensar, mas tam-
gou a utilizar a palavra "terapia" para des-
bém à uma recusa em realizar um esforço
crever a função que as aulas de redação pas-
mental e ao medo de expor as próprias idéias.
sam a ter para os estudantes.
Ao descreveram sua prática, detalhan-
Os professores afirmam que os alunos
do suas atividades com os alunos na prepa-
esperam que o professor se dedique ao exa-
ração deles para a produção de textos, de-
me de cada um de seus textos e explique as
monstram que, sobretudo, é necessário mo-
razões das alterações que propõe. Ele quer
tivar o aluno e fazê-lo gostar de escrever, o
ter o professor como interlocutor de seu tex-
que pode acontecer se o estudante perceber
to em todos os aspectos.
que é capaz de usar razoavelmente a Lín-
Acreditam que os alunos trazem para
gua, sentir-se livre para expressar suas idéi-
a aula de redação seus problemas pessoais
as e interessar-se pelo assunto sobre o qual
porque buscam na Escola respostas que não
vai escrever.
obtêm em casa. Entretanto isto nem sem-
Os professores afirmam que é sua fun-
pre acontece de forma explícita, pois os ta-
ção tornar o aluno consciente de usos cria-
bus culturais tolhem muitas vezes a expres-
tivos que faz da Língua; isto significa que o
são mais espontânea do adolescente. A po-
professor reconhece que há mecanismos dis-
sição do adulto - professor é percebida pelo
poníveis para a produção do novo, que
aluno como um "lugar de poder", fazendo-
Criatividade em Linguagem pode ser ensi-
o sentir-se inibido para expressar conteú-
nada. Se o aluno dominar esses mecanismos,
dos que possam não ser bem acolhidos,
ele estará apto para produzir textos criati-
como, por exemplo, homossexualismo ou
vos. A Criatividade em Linguagem, então, é
drogadição. O receio de não ser compreen-
vista pelos professores entrevistados como
dido e/ou aceito pelos colegas também é
gerada no nível formal.
fator de inibição. Ainda as propostas de te-
Tendo sido a Criatividade definida
mas específicos e as imposições de uma
como atribuição original de sentido, cabe ao
tipologia determinada de texto (descrição,
professor apontar ao aluno as diferentes for-
dissertação)
mas lingüísticas que surgem nos textos, tanto
que inibem a expressão mais pessoal do alu-
nos lidos como nos produzidos, explicitando
no, na qual estaria o elemento mais criativo
que elas constituem maneiras de fazer sen-
de suas composições.
são apontadas como fatores
tido. Compete oficialmente ao professor de
Embora à primeira vista pareça que a
Português normatizar e só no âmbito das
avaliação do texto do aluno deva limitar-se
regras da Língua. Mas sua vivência de sala
à forma lingüística e à estruturação do con-
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teúdo, o Professor vê-se envolvido numa
de de compreender os significados expres-
esfera imprevista, a dos sentimentos, con-
sos verbalmente por outrem e a capacidade
flitos, e questionamentos pessoais dos ado-
de expressar as próprias idéias, no que resi-
lescentes. A inseparabilidade entre escrita
diria a Criatividade. Acrescentaríamos que
(forma) e valores (conteúdo), cria no pro-
o domínio da Língua implica também, cir-
fessor uma sensação de angústia e de inca-
cularmente, na capacidade de pensar sobre
pacidade para avaliar, sobretudo porque ele
o próprio pensamento. Pensamos ainda que,
não foi preparado para lidar com isto, o que
enquanto a Criatividade em linguagem exi-
vem somar-se ao fato de que seu trabalho
ge um conhecimento e um domínio mais
com a Criatividade o obriga a lidar com os
sofisticado da Língua, inscrevendo-se na
sentidos do texto.
esfera da Arte, a Criatividade na produção
Dentro dos limites oficiais de sua fun-
de texto não artístico exige simplesmente, e
ção, o professor de Português conta com re-
no mínimo, uma capacidade lingüística sem
ferências objetivas que lhe permitem esta-
lacunas.
belecer o certo e o errado na maioria quase
Não se pode dizer a rigor se o pensa-
absoluta dos casos. Entretanto, quando se
mento simbólico — essencial à Criatividade
sente chamado a exercer um papel mais am-
— permite o aprendizado e o domínio da Lín-
plo, o de Educador, o professor sente-se de-
gua ou se, ao contrário, é o conhecimento
samparado. A Escola laica tem contem-
da Língua que permite o desenvolvimento
poraneamente se furtado a lidar com valo-
da capacidade mental de simbolizar. O mais
res, conservando em primeiro plano normas
provável é que ambos caminhem juntos, um
e regulamentos gerais, que lhe permitem uma
dando feed back ao outro, interligados de tal
organização apenas suficiente.
forma que uma escolaridade precária prejudique o amadurecimento intelectual e men-
Conclusão
tal do sujeito, ao mesmo tempo em que um ambiente social apassivador, prejudique o
A condução das aulas dedicadas à redação descrita pelos nossos sujeitos mos-
domínio de estruturas lingüísticas mais complexas.
tra-se, em geral, bastante coerente com as
Por sua própria natureza, a aula de Re-
afirmações teóricas expressas pelos sujeitos
dação é o lugar que permite a emergência
no decorrer das entrevistas, e nossa análise
de problemas pessoais existenciais dos ado-
revelou que os professores percebem intui-
lescentes. O professor vê-se confrontado
tivamente a existência de relações necessá-
com esses aspectos; como adulto e como
rias entre diferentes habilidades e a compe-
Educador sente-se eticamente exigido a to-
tência lingüística, para que o processo cria-
mar posições, mas nada na estrutura esco-
tivo se dê.
lar lhe dá respaldo para isso, nem sente-se
O domínio da Língua significa, segun-
preparado para lidar com esses emergentes.
do os professores entrevistados, a habilida-
Além das diferenças naturais entre a gera-
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ção dos adultos e a dos adolescentes , a si-
quando é alcançado plenamente. Se, em ter-
tuação agrava-se pela contradição entre os
mos de hipótese de evolução da consciência,
valores presentes em nossa cultura, aliada à
chegamos à esfera do conhecimento direto, a
confusão entre conceitos expressos pelas
função comunicativa da linguagem, que é sua
palavras; respeitar, aceitar, pactuar.
essência, deixa de existir.
Baseados nas colocações feitas pelos professores que entrevistamos, inferimos
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como um objetivo educacional. Sobretudo, a escola de fato não cuida da formação integral do aluno, provocando uma alienação
RICOEUR, P. (1969) 0 Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica. Trad. M. F. Sá Correia. Porto: Rés, s/d.
de todos os seus profissionais em relação à prevenção primordial de Saúde, onde lhe
STEIN, M.I. (1974) Stimulating Creativity. Vol.I.
cabe atuar.
New York: Academic Press, Inc..
Seria desejável que o currículo do pro-
VIGOTSKY, L.S. (1991) Pensamento e linguagem.
fessor de língua materna incluísse disciplinas
Trad.: J.L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.
como Filosofia da Linguagem, Psicodinâmica da Criatividade, Psicologia e Ética.
VIGOTSKY, L.S. (1991) A. formação social da mente. Org: M. Cole et ali. Trad.: J.C. Neto, L.S.M. Barreto e S.C. Afeche. São Paulo: Martins Fon-
Notas
1- A evolução da consciência, no
tes. WERTSCH,J.V. (1988) Vigotskyy Iaformadón so-
referencial junguiano, caminha na direção da
da/ de la mente. Buenos Aires: Paidós.
superação das barreiras entre o Ego, visto como
WERTSCkf, j.V (1989) Dialogue and dialogism in
um complexo, e o Se/f. O contacto com o Se/f
a sodocultural approach to mind. In Dynamics of dialo-
não necessita de instrumento de mediação
gue, I. MARKOVA (Ed.)
96
RESGATE (9), 1999/2000. Giglio, Z. G. p.87-96
Empório Literário
^Poesias Zula Garcia Giglio
IMPRECISÃO A Por tudo e por nada preciso da lágrima em segredo, do sabor da letra da música antiga, das imagens que a memória edita, da história composta e posta à mesa sem grandes fidedignidades... Quem não precisa do lugar de segredo para a lágrima e a história, da memória para a imagem e a letra? Quem não precisa de editar a mesa pra servir a música? de um eu fidedigno pra compor a letra?
RELEMBRANÇAS Exploro dentro de mim ressonâncias, intermináveis túneis. Cavo desníveis, entradas de luz, sombrias reentrâncias, espelhos opacos. Tudo eu toco entre vácuos e ossos. Posso fazer este percurso
r
infernal porque antes engoli rosas cor de púrpura com seus caules desterrados, e trago na minha flauta um nome doce...
Ilustração: Cristina Quilici
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RESGATE (9), 1999/2000. Poesias