O vento e a vela - a trajetória de Luis Tenderini (primeira parte)

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VENTO EE AA VELA VELA OO VENTO A TRAJETÓRIA DE LUIS TENDERINE A TRAJETÓRIA DE LUIS TENDERINI



LUIS TENDERINI E HELENA TENDERINI

O VENTO E A VELA A TRAJETÓRIA DE LUIS TENDERINI

PERNAMBUCO 2022




SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE

ABERTURA 9 A VELA ABERTA 12 DO SOPRO DAS MONTANHAS 15 O VENTO ÀS VEZES É TEMPESTADE

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VENTO RUMO AO SUL 18 O VENTO SOPRA, MAS A VELA TEM QUE ESTAR ESTENDIDA

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escrito por Luis Tenderini e Helena Tenderini, num juntar de mãos


I PRIMEIRA PARTE


1 ABERTURA

Iniciar esta história parecia tarefa fácil, pois é uma fascinante história. De luta. De sacrifícios. De lágrimas. De sorrisos. Chegadas e partidas. Nascimentos e lutos. Mas a história de um pai sempre é difícil de escrever pois é também a sua própria história. É a sua vida antes ainda dela existir. É difícil de conceber... Graças a Deus e à vontade do destino nosso pai está aqui vivo escrevendo sua própria história hoje conosco, com seus netos, com sua família. Levamos anos até conseguir – juntos - construir essas páginas que se tornam públicas agora. Ser filha ou filho de pessoas como Luis (e Djanira¹) não é fácil, ao mesmo tempo que é um orgulho, não é nada fácil! Tivemos que nos acostumar desde a infância até hoje a conviver com a ausência, por conta de suas “viagens militantes” e a “compartilhá-lo” com muitas pessoas que, como nós, o admiram.

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Vivenciamos momentos de dor por mortes de pessoas queridas, que compartilharam histórias e lutas com Luis Tenderini. Perdas de pessoas que participaram da vida de meu pai em São Paulo e em Pernambuco. Que como ele contribuíram para construir a história política do país: João Francisco, Carlúcio! O que mais me comoveu nos momentos de adeus a eles (velórios, enterros e missas) foram exatamente os filhos ali presentes. Me solidarizei com eles. Vi seu sofrimento e compartilhei a emoção (dor e alegria) de ser filha de pessoas como seus pais, como meu pai, como minha mãe. Lembrei-me também de Peggy e de Chico e Arnaldo (nossos amigos de infância) quando sua mãe virou estrela no céu. Lembrei-me ainda de Lucas e Rafael, (filhos e) irmãos levados cedo, contrariando a “lei natural das coisas”... Hoje, sendo mãe, percebo ainda mais a importância de ser filho. E mais do que tudo, ao escrever a história de meu pai, vieram muitas lembranças de mainha, que faz doze anos também se encantou e virou estrela no céu. Reescrevo ainda esse texto, hoje, 19 de janeiro de 2022, com a perda de nosso tio Vital Nolasco, irmão de nossa mãe, comunista, grande guerreiro das causas das/ os trabalhadoras/es. Falando da ditadura militar e de sua primeira prisão, Luis² disse que quando foi preso em 1974 (em São Paulo), o militar do Dops começou a passar as fotos de várias pessoas perguntando quem ele conhecia e ele percebeu que de fato conhecia muita gente que estava sendo procurada! Depois de confirmar conhecer alguns deles

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(principalmente os que ele sabia já estarem presos...), o militar virou-se para ele e em tom sarcástico disse: “italiano, tu tá fudido!” Começei a perceber a importância de meu pai quando fui entendendo e vendo quantas pessoas importantes ele conhecia! Pessoas aguerridas, envolvidas com a luta social, a luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Gente ‘comum’ e diversa, como diversa é a sociedade, pessoas que aprendemos a querer bem mesmo muitas vezes distantes. Pessoas que de diferentes maneiras contribuíram e contribuem para diminuir as injustiças no mundo. Hoje vejo que tantas destas pessoas me conhecem sem eu nem conhecê-las, pois eu cresci no meio delas. Nós, filhas e filhos de Luis Tenderini e Djanira, crescemos nos encontros, passeatas, manifestações, na militância, enfim! Com outros filhos, crianças que como nós eram “levadas” por seus pais a viver uma vida coletiva, mais bela e humana, crescemos correndo, chorando, dançando, sorrindo, brincando, dormindo, participando da luta, vivendo a batalha por uma sociedade mais justa desde muito cedo. O destino quis assim, o destino quer assim. por Helena Tenderini, janeiro de 2022

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Este livro conta a história de meu pai, por isto falamos mais dele, mas nossa mãe, Djanira, está presente

sempre conosco nestas páginas, mesmo quando não aparece. 2

Estranho falar seu nome, porque me acostumei – e isso muitas vezes é motivo de sorrisos entre os colegas

de trabalho – a chamá-lo de “meu pai” ou então, como aqui no Nordeste do Brasil chamamos, “painho”)

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2 A VELA ABERTA

Na vida as coisas acontecem e o importante é estarmos abertos a este ritmo de acontecimentos aos quais não estávamos preparados. Muitos fatos na minha vida foram assim: simplesmente aconteceram e eu tive que me adaptar. Os imprevistos... Quando tinha uns doze, treze anos, escrevi uma redação na escola (não lembro muito bem o tema, mas lembro que era sobre a nossa vida pessoal). Então, coloquei que minha vida foi orientada por um fato trágico (a perda de meu pai aos 2 anos) e, que por conta disso tive que sair de Premana muito pequeno. E isto me abriu o mundo. O fato de ter que sair de Premana, abriu uma oportunidade na minha vida de ter contato com um mundo para além do meu lugar. Como dizia o Abbè Pierre: “se a vela não estiver aberta, o vento não serve para nada, pois é o vento que dá a direção!” Então, o vento e a vela se complementam, pois

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o barco não anda sem a vela estendida e a direção quem dá é o vento que sopra na vela! A morte de meu pai determinou minha saída de Premana. Eu era o caçula dos homens e minha mãe ficou sozinha com dez filhos e não tinha condições de criar todos sozinha, estando em Premana. Meu pai morreu em 22 de dezembro de 1944. Eu completaria 2 anos um mês depois. Carlo, meu irmão mais velho tinha 11 anos e estava no seminário fazia três meses. Meu tio Giovanni (irmão de meu pai) foi buscá-lo no seminário próximo de Brescia. Tinha muita neve neste dia. Era véspera de Natal e o caixão descia em procissão para o enterro no cemitério, quando, de longe, avistou-se duas pessoas a pé marcando as pegadas na neve, em Piazzo, do outro lado do vale. Eram meu tio e meu irmão. Todos esperamos quase uma hora no frio de dezembro, na neve até que eles chegassem para que meu irmão Carlo pudesse ver meu pai pela última vez. 1. O orfanato: o fato de estar no orfanato me fez, através do diretor do colégio entrar em contato com os jesuítas e este contato me fez decidir seguir a vida no seminário e me tornar padre. 2. Na chegada ao Brasil: como missionário, já era membro da ordem dos jesuítas. A decisão de ir à Teresina não foi minha, foi de meus superiores. Mas esta decisão me levou a outra escolha: a de não continuar mais como jesuíta, mas de fazer uma opção de vida totalmente integrada à realidade da população. 3. Eu escolhi ir a São Paulo pra fazer uma experiência de integração com a vida do povo. A presença de Padre Ângelo e Don Evaristo em São Paulo me levaram

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a fazer uma opção de ter uma vida operária e ligada à igreja popular, engajada, da Teologia da Libertação. A presença deles e este contato foram determinantes na minha vida. Se não fosse este contato, a minha vida teria tido outros rumos, com certeza! 4. A decisão de viver como operário no contexto do Brasil daquele tempo, implicou correr todos os riscos de quem se opunha ao poder dos ditadores. A experiência da prisão e da tortura fortaleceram cada vez mais em mim a vontade e a disposição de lutar na defesa dos trabalhadores e na denúncia das injustiças sociais. Este mesmo engajamento no Movimento sindical nos levou (eu e Djanira) à decisão de mudar para Recife para trabalhar na escola de formação profissional e sindical. 5. O vento que sopra em diferentes direções me levou a Recife. Aqui conheci Dom Helder que também deu novos rumos para minha vida: a Comissão de Justiça e Paz e Trapeiros de Emaús.

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2 DO SOPRO DAS MONTANHAS

“De repente, veio do céu um ruído, como o agitar-se de um vendaval impetuoso...” (Atos dos Apóstolos, 2,2) “O vento sopra, dá a direção, mas para permitir a navegação, a vela tem que estar sempre estendida” (Abbé Pierre)

Frequentemente se costuma dizer que o lugar onde uma pessoa nasce determina o futuro de sua existência. Nasci em Premana, uma pequena aldeia nas montanhas do norte da Itália, com 2.300 habitantes, guardada no fundo de um vale dos Alpes de Orobie. Conhecida na Itália e no exterior pela produção artesanal e exportação de tesouras e facas de primeira qualidade, atividade herdada das gerações anteriores, que extraíam e forjavam o ferro das pequenas minas da região.

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Premana é conhecida também por outras características. Uma ativa vida social, expressa pela presença de múltiplas associações de caráter religioso, esportivo, cultural, de caridade e de voluntariado. Em Premana toda a população fala ainda um dialeto típico, e que encontrou sua expressão escrita em diversas publicações, entre elas um volumoso Dicionário do Dialeto Premanese, o proman. Uma pequena aldeia, capaz de organizar eventos culturais e esportivos a nível nacional e internacional, capaz de manter viva entre seus habitantes uma religiosidade profunda, manter a cultura local do trabalho manual, do respeito ao ambiente, da solidariedade. Por estas e outras razões, um lugar diferente. Um lugar especial onde sopra o vento das montanhas.

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3 O VENTO ÀS VEZES É TEMPESTADE

Tive que deixar Premana aos 6 anos de idade, e fui acolhido num orfanato na cidade de Como, onde cursei os cinco primeiros anos do primário. Mas sempre mantive um forte vínculo com meu lugar de origem, e com o passar dos anos, e vivendo em lugares muito diferentes, descobri a riqueza histórica, social e humana do povo premanês. Há circunstancias na vida: o destino, a providência, o encontro com uma pessoa, a família, uma ‘coincidência’, um imprevisto, um acontecimento trágico, uma amizade, a leitura de um livro... que fazem amadurecer ou favorecem as escolhas pessoais de cada um de nós. Para mim, o encontro com uma pessoa foi determinante: “quero ser padre e missionário!”

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4 VENTO RUMO AO SUL

Garoava. A visão que eu tinha do navio decepcionou minha expectativa de chegada ao Brasil, país tropical! Era a primeira vez que eu pisava em solo estrangeiro e chegando à cidade maravilhosa o céu estava nublado... O navio Enrico Costa (Enrico C) foi minha morada durante treze dias de viagem, desde que eu havia saído do porto de Genova. Dezoito de novembro de 1968. Ao desembarcar me aguardava um padre que de imediato entregou em minhas mãos uma carta de Tarcisio Botturi, superior dos Jesuítas. Estava escrito que meu destino seria o Nordeste, cidade de Teresina, capital do estado do Piauí. Não pude esconder um certo desapontamento, não porque não quisesse ir para lá e sim pelo fato de não ter sido sequer consultado antes. Mas como uma das principais virtudes, característica dos jesuítas é a obediência... A única coisa que eu sabia era que o trabalho que me esperava em

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Teresina era numa escola, o Colégio diocesano. A cara do Brasil foi se desenhando aos poucos para a mim a partir do Nordeste e à medida em que fui me integrando na realidade local. O superior do colégio, Padre Carlo Bresciani, me deu a liberdade de manter um contato mais freqüente com uma comunidade da periferia de Teresina. A realidade do país, seus enormes contrastes foram se escancarando a partir dos dois lugares que eu começava a conhecer: a comunidade e o colégio. Pobreza e precárias condições de vida da comunidade gritavam a desigualdade com a escola freqüentada pelos filhos das classes abastadas da região. Sentia grande satisfação no meu trabalho com a comunidade, no contato direto com o povo. Sonhara com isto! Mesmo trabalhando a maior parte do tempo no colégio, me sentia satisfeito. O que me incomodava, porém, era o fato de ser encarado como estrangeiro presente em outro país e a língua dificultava um contato mais próximo com as pessoas. Isto fez amadurecer em mim um sentimento de ter uma experiência de vida comum, mais próxima da realidade do povo. Deixei crescer a vontade ir pra São Paulo. Lá o fato de ser estrangeiro não me fazia sentir tão longe da realidade, pois lá haviam muitos estrangeiros. São Paulo era uma cidade cosmopolita, uma metrópole com pessoas de vários lugares do Brasil e de outros países. Depois do primeiro ano de estágio em Teresina eu deveria ir à Porto Alegre viver lá por 4 anos, freqüentar o curso teológico. Isto também me motivou a pedir uma experiência mais próxima ao povo. A isto se juntou a ideia

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de fazer uma experiência no meio operário de São Paulo, conseguindo um emprego numa empresa italiana de gás, a Liquigás, através de um amigo. A partir deste trabalho entrei em contato com o movimento operário organizado, através das comunidades de base na região sul de São Paulo. Morei alguns meses com Padre Angelo Gianola, meu conterrâneo de Premana, até a volta ao Nordeste. Esta experiência em São Paulo durou de março a novembro de 1970. Fui à Salvador, onde se situava a sede dos jesuítas italianos no Nordeste, para definir a continuidade ou não dos estudos para que me tornasse padre. Foi o momento em que fiz a opção de continuar uma vida operária em São Paulo, para onde voltei em seguida.

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5 O VENTO SOPRA, MAS A VELA TEM QUE ESTAR ESTENDIDA A decisão de ir viver em São Paulo, ditada inicialmente pelo desejo de “romper” com o fato de ser estrangeiro, me levou a uma nova opção de vida: testemunhar os valores do Evangelho vivendo com o povo mais humilde, como operário. Sem perder, pelo contrário dando novo impulso à escolha fundamental de minha vida. A proximidade com Padre Angelo Gianola, conterrâneo e missionário do PIME, presente no Brasil já há muitos anos, foi o “vento” que me orientou na nova escolha. Ao mesmo tempo, no contato cotidiano com a vida, o trabalho, as dificuldades, os problemas, a luta do mundo operário no difícil contexto político brasileiro, a “vela” da minha vida se abriu cada vez mais. Pude definir com mais clareza e determinação o objetivo de uma vida operária, inserida na realidade de uma Igreja popular, comprometida em viver e testemunhar o

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espírito renovador do Concilio Vaticano II. Durante os primeiros meses fiquei morando com Padre Angelo. Em março de 1971 arranjei um emprego numa metalúrgica de autopeças trabalhando como operador de torno. A partir daí me inscrevi no curso noturno do Senai de torneiro-mecânico. De imediato comecei a participar da oposição metalúrgica de São Paulo, as assembléias... Coincidentemente, nesta época começavam a se formar os primeiros núcleos de Pastoral Operária (PO) em São Paulo. A PO era constituída de grupos de operários cristãos que buscavam viver sua fidelidade ao Evangelho no meio operário. Isso se dava através de grupos de reflexão, que, partindo de textos evangélicos, buscava formas concretas de atuar no meio operário. Nessa época de regime militar o objetivo principal da luta operária era reconquistar a direção dos sindicatos das mãos dos ‘pelegos’ que estavam a serviço do regime, para transformá-los novamente no principal instrumento da organização e da luta da classe trabalhadora. Deste período eu lembro dois momentos que me marcaram. O primeiro foi junto ao movimento operário, participando das assembléias da categoria na sede do Sindicato dos Metalúrgicos. Foi quando comecei a perceber a real dimensão do contexto operário onde eu me encontrava, o que significava pertencer e participar daquele universo, foi aí que comecei a ter clara a visão de classe. Fui vivenciando os valores da classe trabalhadora que eram opostos aos valores do capitalismo defendidos pelas

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lideranças sindicais da época. Valores de solidariedade, contrapostos ao individualismo; do desapego às coisas materiais em contraposição ao consumismo desmedido; o respeito à pessoa humana ao invés do lucro a todo custo; valores ligados ao trabalho humano como capacidade criativa em contraposição ao trabalho que visa unicamente o lucro. O outro momento significativo foi o encontro com D. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo. Era mês de abril de 1972. Me chamaram para participar de uma reunião de membros da PO com o cardeal, em sua residência. Nos encontramos aproximadamente trinta pessoas e ele nos acolheu com a amabilidade que lhe era característica. O tema do encontro foi o seguinte: D. Paulo nos colocou que no momento de preparar a homilia para a missa de 1º de maio daquele ano ele se perguntou: “o que é que eu devo dizer aos trabalhadores de São Paulo no dia 1º de maio?” E a resposta a esta pergunta foi uma outra pergunta: “o que é que os trabalhadores esperam que o pastor diga a eles no dia 1º de maio?”. Então ele nos reuniu pra conversar sobre isso. Naquela noite preparamos junto com ele a homilia de 1º de maio. O impacto daquele encontro me marcou para o resto da vida, porque foi um gesto de abertura, de respeito à pessoa humana, de sensibilidade pastoral que, infelizmente, não é comum encontrar em nossos pastores. Essa é a razão pela qual daí pra frente minha vida ficou marcada definitivamente pelo compromisso com a classe trabalhadora e com a igreja dos pobres. O envolvimento direto com o movimento sindical

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e com a vida operária naquela época significava colocarse numa atitude de enfrentamento com o regime. Todos aqueles que participavam desta luta eram vistos como subversivos e portanto inimigos do regime militar. Com tudo o que isso implicava de riscos pessoais e familiares, segurança pessoal, estabilidade no emprego... Por causa deste compromisso em 1974 enfrentei a prisão e a tortura. A experiência que vivi na prisão me ajudou quando fui seqüestrado pelo esquadrão da morte, quinze anos depois em Recife. Naquela ocasião revivi a situação de estar frente a pessoas que podiam fazer de mim o que quisessem, sabendo que ficariam totalmente impunes. A postura de não submissão e ao mesmo tempo de ‘tranqüilidade’ que consegui manter naquela circunstância foi resultado também do aprendizado nas sessões de interrogatórios e torturas sofridas no DOICODI de São Paulo durante a ditadura militar. A idéia de vir para o Nordeste foi assunto de várias conversas entre mim e Djanira. Mas até então eram apenas projetos, não existia algo muito concreto ainda. Em janeiro de 1979 recebemos a visita de um amigo do movimento operário3 de São Paulo acompanhado de um homem que não conhecíamos, que vinha de Recife e procurava em São Paulo alguém que estivesse disposto a trabalhar no Centro de Trabalho e Cultura (CTC) na capital de Pernambuco. Foi assim que conhecemos Carlúcio Castanha Júnior. Ele era militante político e _______________ Alcides, conhecido por Antonio. Ele era casado com Isa e vinha de Belo Horizonte foragido por causa de sua militância política lá. Em São Paulo participava do movimento sindical. Foi lá que nos conhecemos. 3

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operário em Recife, esteve preso durante este período de ditadura por causa de seu engajamento e, por motivo de sua atuação na categoria metalúrgica em Recife ficou ‘marcado’ pelos empresários de Recife e por conta disso não conseguia emprego em lugar nenhum. Foi quando tomou a decisão de ir para São Paulo trabalhar e continuar sua participação na luta operária. Era ele quem estava lá naquele 25 de janeiro (feriado, aniversário de São Paulo). Ele que fez o convite para virmos ao Recife. Naquele período eu tinha um bom emprego na Wallita e Djanira estava se formando como assistente social, trabalhava no SOF (Serviço de Orientação da Família) e também estava no sétimo mês de gravidez de nossa terceira filha, Anaê. Conversamos bastante e analisamos os prós e os contras de aceitar o convite, mas antes de tomar a decisão definitiva eu resolvi viajar ao Recife para ver se a proposta feita ‘valia a pena’. Djanira disse que só aceitaria a mudança se também tivesse um trabalho garantido para ela em Recife. Falei com meu chefe sobre a proposta que havia recebido, solicitei uma semana de licença e, aproveitando o período de carnaval, eu vim ao Recife, passei uma semana, conheci o CTC e também descobri que na arquidiocese havia um possível trabalho para Djanira. Voltei a São Paulo, esperamos o nascimento de Anaê, pedimos demissão de nossos empregos e arrumamos a mudança. Optamos pelo Nordeste. Estávamos ambos bem empregados, ganhando salários razoáveis, com um círculo de relações bem estabelecido e era o momento de maior

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crescimento no movimento sindical... Mas, optamos pelo Nordeste porque acreditávamos que poderíamos contribuir muito mais lá, com as lutas populares. O Nordeste era conhecido como a região mais ‘carente’ do Brasil e achávamos que poderíamos colocar nossas experiências, potenciais e capacidades a serviço do povo daqui. O primeiro impacto foi com o mundo operário do Nordeste através dos operários que freqüentavam todas as noites o CTC, no curso de Ajustagem Mecânica. Uma coisa me chamou atenção desde o começo: como os empresários daqui desrespeitavam as mínimas regras das relações de trabalho. Um fato relacionado a isto me deixara indignado na época: Abraão, um aluno meu do curso, havia sido demitido da empresa em que trabalhava e não recebera nenhuma indenização por conta da demissão. A empresa lhe disse que ele procurasse seus direitos na justiça! Como os processos trabalhistas sempre eram muitos demorados, os trabalhadores acabavam fazendo um acordo e recebiam muito menos do que eles tinham direito. Essa prática era muito comum e também demonstrava como o sindicato da categoria era ineficiente. Nesses primeiros meses tive contato com um grupo de metalúrgicos que estava se organizando para tirar o sindicato das mãos dos ‘pelegos’. Foi quando conheci o grupo do ‘Zé Ferrugem’. Fui me engajando na luta junto a eles. Saíamos de madrugada com o nosso fusquinha panfletando em todas as fábricas desde o município de Pontezinha (Cosinor – Companhia Siderúrgica do Nordeste), ao sul de Recife até o de Igarassu (Motogear),

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ao norte da capital para ganhar o apoio da categoria para as eleições sindicais previstas para aquele ano. Graças a este trabalho de mobilização e organização, a chapa do ‘Zé Ferrugem’ ganhou as eleições. Foi o começo da reconquista dos sindicatos da região das mãos dos pelegos. O trabalho no CTC se tornou para mim um espaço privilegiado de conhecimento e de contato com a classe trabalhadora. O encontro cotidiano e intenso durante dez meses com um grupo de uma centena de trabalhadores possibilitou um envolvimento progressivo com os problemas, as lutas e a organização da classe trabalhadora da região. Porque paralelamente ao ensino profissionalizante havia um trabalho de formação política e cidadã que permitia conhecer e participar mais de perto das angústias e dos anseios dos trabalhadores. O meu engajamento junto à classe trabalhadora local motivou o convite de D. Helder – feito nesta mesma época – para colaborar no trabalho pastoral da Diocese incentivando os trabalhadores cristãos através da Pastoral Operária. Como surgiu este convite, se nem Dom Helder, então arcebispo de Olinda e Recife, me conhecia e nem eu conhecia D. Helder pessoalmente, me perguntei! Ainda em São Paulo, um ano antes de vir para Recife, um padre da Diocese daqui me conhecera num dos encontros da PO. Tendo tomado conhecimento de minha transferência para Recife ele sugeriu ao Dom que ele me fizesse este convite. Dom Helder me convidou para uma conversa, onde manifestou sua preocupação pastoral com os problemas da classe trabalhadora e me propôs de colaborar com a diocese nesta atividade.

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Na noite de Natal de 1967 (eu nem sabia ainda que viria ao Brasil) eu fui com um padre amigo meu, celebrar a missa do Galo num pequeno vilarejo nos Appeninos italianos (uma cadeia de pequenas montanhas que corre ao longo da Itália). Enquanto esperávamos chegar a meia noite para iniciar a missa assistíamos um programa de televisão que falava do Nordeste brasileiro onde a figura de destaque era Dom Helder. A imagem dele e força das suas palavras denunciando a situação de injustiça daquela região me marcaram profundamente. Quando cheguei ao Brasil eu já tinha uma idéia muito marcante e positiva de Dom Helder. Tudo o que eu imaginava a respeito dele foi confirmado no primeiro encontro que tive com ele. A figura de um homem franzino e pequeno de estatura, mas que falava com uma força e um entusiasmo fora do comum! E daquele primeiro encontro nunca esqueço o final: quando terminamos a conversa ele levantou junto comigo e me acompanhou até a saída e ficou esperando no portão aberto até eu dobrar a esquina.Quando anos depois fui trabalhar na Obras de Frei Francisco, na Igreja das Fronteiras, onde Dom Helder morava, descobri que este seu gesto era comum, ele fazia isto com todo mundo: desde a maior autoridade até a mais humilde pessoa ele sempre acompanhava até a saída, demonstrando seu respeito com a pessoa humana. Após três anos de atuação na Pastoral Operária de Recife, em 1982, surge o convite para integrar a Comissão de Justiça e Paz. Atendendo ao apelo do papa Paulo VI em 1976, Dom Helder criou na Diocese de Olinda e Recife a Comissão de Justiça e Paz, instrumento da Igreja na

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defesa dos Direitos Humanos. A primeira grande tarefa da comissão era de denunciar as atrocidades cometidas pela ditadura militar contra milhares de cidadãs e cidadãos que se opunham ao regime, além disso a comissão cuidava de defender os que estavam nas prisões e proteger os que eram procurados pelo regime. Com o fim do período mais duro da repressão as atenções da comissão se voltaram para os problemas da moradia: frente às ocupações urbanas e conseqüentes ações de despejo com repressão policial, a comissão intervinha para defender o direito dos cidadãos a ter um lugar onde morar. Com muita freqüência o próprio Dom Helder se fazia presente no lugar do conflito, respaldando desta forma o trabalho da comissão. Uma terceira fase de atuação da Comissão de Justiça e Paz deu prioridade à denúncia da violência policial e a uma série de ações legais em defesa das vítimas desta violência, principalmente contra crianças e adolescentes, fato que chamava atenção a nível local e internacional. Pois é neste período (19751980) que aparecem nas periferias das grandes cidades vários grupos de extermínio, conhecidos também como “esquadrões da morte” e a comissão se posiciona publicamente, denunciando e cobrando uma intervenção mais enérgica do poder público com relação a atuação destes grupos. Todo trabalho desenvolvido na comissão, primeiro como membro e depois como presidente, me permitiu conhecer mais de perto e de maneira mais intensa a

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realidade da pobreza no Nordeste. Vivenciar de maneira mais direta e concreta os grandes contrastes sociais do Recife que sem dúvida retratam a realidade da maioria das grandes cidades brasileiras. Foi a atuação na comissão que causou um confronto ideológico, pastoral e de compromisso de fé com a autoridade eclesiástica local que assumiu o comando da diocese depois de Dom Helder, Dom José Cardoso Sobrinho. Acredito que também por conta da atuação na comissão, em 1990, Dom Helder me convida para coordenar os projetos sociais que eram desenvolvidos pela “Obras de Frei Francisco”, entidade social por ele criada ao deixar o comando da Diocese em 1985. Quando em 1990, Dom Helder lançou aqui no Recife a “Campanha Ano 2000 sem Miséria” surgiu uma nova oportunidade de engajamento na luta mais ampla em defesa da cidadania. As diversas iniciativas que foram surgindo na “Obras de Frei Francisco” na luta contra a miséria e a fome passaram a integrar a campanha nacional promovida pelo sociólogo Betinho “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”. A minha atuação na “Obras” e a participação no Comitê da “Ação da Cidadania” foi se encerrando à medida que, por incentivo do próprio Dom e apoio de um grupo de amigos iniciamos um novo projeto: a Comunidade Emaús no Recife.

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