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Algarve Médico e um percurso de 5 anos - Elementos de uma identidade

Nuno Vieira, Daniel Cartucho

"The art of surgery can only be carried to a certain point of excellence. That we have nearly if not quite reached the final limite, there can be little question".1

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Sir John Erichsen, 1873

A partir desta sua edição, número 20, Algarve Médico entra no seu sexto ano de vida.

É-nos difícil, enquanto editores da revista, ficar indiferentes a um percurso que tomou forma, o percurso desta revista e que - a dado passo num aniversário - ao revê-lo avivamos a evidência que este caminhar já tem uma certa expressão. Revista que nasce da confluência de várias iniciativas, todas com a intenção de quebrar cadeias de inatividade e de permitirem o crescimento contínuo neste magíster do exercício da Medicina.

Curioso o paralelo que verificamos neste que vem sendo o circuito da revista, com aquele que vimos fazendo na medicina. Para trás, depois da fase da aprendizagem, ficaram as etapas probatórias à entrada num universo, como um exame final que vem tornar patente, como todos os exames, o que já existe, mas cujo reconhecimento toma expressão só a partir desse dia: a Revista iniciou o seu percurso.

Depois, tal como na medicina, com o provimento e algumas movimentações propiciadoras da sedimentação, do emergir dos nossos méritos e limitações, a revista vai fazendo o seu percurso. De facto, neste paralelismo de circuito, quando optamos pela medicina e saímos para a universidade, não antevíamos minimamente todo o trabalho - e simultâneo encanto – que esta profissão acarreta. Nem de como a Especialidade que mais tarde iriamos abraçar, no caso Medicina Interna e Cirurgia Geral, é exigente em termos de devoção.

Nessa altura não antevíamos sequer que a progressão nesta senda, tão cheia de desafios, sucessos memoráveis, mas igualmente de fracassos, iria decorrer numa época de mudança, numa época de substituição aos mais diversos níveis, dos paradigmas vigentes. Época de novos paradigmas emergentes em que assistimos à tentação de substituir a compreensão de uma linguagem habitual à medicina milenar, a linguagem dos sinais e dos sintomas, por uma ultrapassagem - marca do tempo que atravessamos - expressa na mudança para uma outra linguagem feita de um mero somatório de exames complementares. Mas, igualmente, época assombrosa onde nos damos conta que evoluímos mais em termos clínicos nas últimas décadas, do que nos últimos 3000 anos. Veja-se a declaração acima neste texto de Sir John Erichsen, um dos cirurgiões mais proeminentes de então, que a esta distância ganha uma perspectiva que terá certamente paralelismo hoje. Quando se fala da excelência que atingiram na cirurgia daqueles dias e que dificilmente seria ultrapassada, sabemos hoje que a arte e ciência cirúrgica naqueles dias, meramente, estava a iniciar-se. A nossa excelência de hoje será certamente meramente uma etapa neste caminhar na Medicina.

Para além disto, na medicina há a possibilidade e o gosto de sermos um factor dessa mudança. De poder ser simultâneamente espectador e participante neste processo da evolução do conhecimento. Daí este gosto por escrever, por comunicar, por propiciar elementos que levem a uma melhoria sistemática da prática médica que uma revista propícia. Todos sabemos o que é o sinal de Babinski. Mas o que nem todos sabem é que quando a sua descrição foi comunicada o texto tinha o tamanho de meia página!2 O conteúdo, a singularidade do que se transmite não vem só numa formatação. Por vezes ocorrem momentos breves mas singulares.

O caminho que a revista Algarve Médico vem trilhando é um percurso onde, tal como nas narrativas bem construídas, há um momento em que se começa a antever um novo ciclo.

Esta é a altura em que se inicia um novo ciclo: Algarve Médico começou as etapas para a sua indexação.

Não abdicando das características que vêm marcando a sua identidade, tal como numa medicina em equipa, é importante que uma revista esteja em sintonia com as melhores práticas do meio. E pela importância determinante da equipa, no caso dos Editores, para esta progressão, estas palavra de um entendimento, de um ponto de vista estruturante, enquanto Editores do Algarve Médico, será repartido por esta e pela próxima edição da revista.

E um dos elementos de identidade mais claros da revista, como dissemos anteriormente, queremos com Algarve Médico pugnar por uma Medicina Humana e culta3. Acerca do entendimento do conceito de humanista, lemos recentemente do autor do livro "El sueño del humanismo" que graças à recuperação de escritos antigos, os primeiros humanistas descobriram que não vivemos em uma essência eterna, mas na história, na mudança e na diversidade, no relativismo. Daí surge a esperança de que a vida pode mudar, pode melhorar4. E acrescenta Francisco Rico que, com o tempo, este conceito se restringiu para a filologia clássica e aquele que era um “fermento cultural revolucionário” se tornou numa “disciplina especializada”. Para esses gregos de então o objeto da arte é a realidade, não a que vemos, mas sim a ideal.

Na Medicina esta noção de “fermento” do humanismo não se extingiu completamente. Se verificarmos através da MeSH (Medical Suject Headings)5, dicionário de sinónimos de vocabulário referenciado pela National Library of Medicine, usado para indexar artigos para o PubMed, a palavra Humanities - MeSH Descriptor Data 2022 6 - é associada ao entendimento que constitui matéria de investigação na edificação da expressão humana, em oposição a eventuais processos naturais e relações sociais, sendo que estas matérias decorrem tradicionalmente do estudo da literatura, filosofia e religião. Este entendimento, edificação da expressão humana que vem de encontro ao que expressamos na identidade desta revista. Neste sentido, a titulo de exemplo, no quinto centenário da morte de Leonardo da Vinci - génio do Renascimento onde o Humanismo ganhou expressão - em 2019, Algarve Médico publicou trabalho original acerca de elementos do entendimento deste imenso génio aplicados à anatomia7,8. Efetivamente não sendo factual no detalhe, Leonardo da Vinci, na globalidade, exprime uma antevisão apropriada com o seu entendimento da função do apêndice ileo-cecal, num códice onde pela primeira vez na história da humanidade, em simultâneo, se representa imagem do órgão e se escreve acerca da sua função.

Na presente edição da revista verificamos desta perspectiva um componente mais alargada do humanismo que Juan Rachadel iniciou com a publicação de um trabalho acerca de Medicina Narrativa9 .

Cruzando este entendimento com o encontrar do "momento". Encontrar o momento e ter a perceção que é um dessa momentos chave. Como verificamos em Momento monumento10, de Pedro Romero, existe toda uma serie de situações, de acontecimentos secretos, de momentos nos quais o mundo muda, ou melhor, um mundo muda. Momentos que não são fáceis de identificar, mas que existem.

São fatos menosprezados, muitas vezes reduzidos à categoria de anedotas. Mas constituem momentos em que nasce uma ideia, surge um afeto, algo nos move e muda o mundo. Com o tempo, funcionam como a borboleta que, batendo as asas no mar da China, causa maremotos na Europa. Há momentos na vida em que vemos algo, lemos algo, alguém nos beija, e suas consequências são irreversíveis. Depois disso, tudo muda. Tem coisas que nos mudam e não podemos fazer nada com esse conhecimento, com esse amor, com esse tanto faz. Ainda não percebemos. Mas, a longo prazo, suas consequências são devastadoras, nesse sentido monstruoso que se dá à palavra. Porque uma "devastação" é o melhor, o revés construtivo da vida10 .

Que felicidade se um desses momentos fundadores de uma mudança, aqui antevistos, vier desses elementos de leitura enunciados pelo artigo Humanismo e Medicina Narrativa que este artigo de Juan Rachadell reporta. Que regozijo que o hospital com uma biblioteca possa produzir esse efeito tanto para a pessoa internada, como para o familiar que o acompanha. Porque tudo isto também é Medicina.

Referências:

1. Gibson J. The Development of Surgery. London: Macmillan, 1967 citado por Kapadia HM. Sampson Gamgee: a great Birmingham surgeon J R Soc Med. 2002 Feb; 95(2): 96–100. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1279323/ pdf/0950096.pdf. Visualizado a 12 maio 2022. 2. Babinski JF. Sur le rιflexe cutanι plantaire dans certaines affections organiques du systθm nerveux central. Comptes Rendues de la Sociιtι de Biologie de Paris 1896;3:207-8. Disponível em https://www.neurologyindia.com/viewimage. asp?img=ni_2007_55_4_328_37090_3.jpg. Visualizado a 12 maio 2022. 3. Cartucho D. Da Identidade da Revista Algarve Médico - Cada vez mais para uma Medicina Humana e Culta. Algarve Médico, 2017; 1 (1): 4 - 5. Disponível em https:// www.chualgarve.min-saude.pt/wp-content/uploads/sites/2/2017/06/AM01_revista.pdf. Visualizado a 12 maio 2022.

4. Marcos JR. Francisco Rico: La RAE es un mito porque el diccionario da poder. Babélia - El País 14 maio 2022. Disponível em https://elpais.com/ babelia/2022-05-14/francisco-rico-la-rae-es-un-mito-porque-el-diccionario-da-poder. html?mid=DM117145&bid=1039070475. Visualizado a 15 maio 2022.

5. National Library of Medicine. Welcome to Medical Subject Headings. Disponível em https://www.nlm.nih.gov/mesh/meshhome.html. Visualizado a 15 maio 2022. 6. National Library of Medicine. MeSH - Humanities. Disponível em https://www.ncbi. nlm.nih.gov/mesh/?term=humanities. Visualizado a 15 maio 2022. 7. Vieira N. Do génio em Leonardo da Vinci e da Medicina. Algarve Médico, 2019; 9 (3): 4 - 5. Disponível em https://www.chualgarve.min-saude.pt/wp-content/uploads/ sites/2/2021/03/ALGARVE-MEDICO-9.pdf. Visualizado a 15 maio 2022. 8. Cartucho D. Do apêndice ileocecal em Leonardo Da Vinci (On the ileocecal appendix thought the vision of Leonard da Vinci). Algarve Médico, 2019; 9 (3): 30 - 41. Disponível em https://www.chualgarve.min-saude.pt/wp-content/uploads/sites/2/2021/03/ ALGARVE-MEDICO-9.pdf. Visualizado a 15 maio 2022. 9. Rachadell J. Medicina e Humanidades uma relação que se mantém - Medicina Narrativa. Algarve Médico 2022; 20 (6): 30-35. 10. Romero PG. Momento monumento. Babelia - El País ,14 maio, 2022. Disponível em https://elpais.com/babelia/2022-05-14/momento-monumento.html. Visualizado a 15 maio 2022.

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