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Psiquiatria Comunitária no Barlavento do Algarve
Diogo Mota da Silva1, João Mariano Marques1
1 Serviço de Psiquiatria 2, Unidade Hospitalar de Portimão - Centro Hospitalar Universitário Algarve
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diogo.m.silva@chalgarve.min-saude.pt
Evolução do serviço comunitário
Historicamente, à semelhança de outras regiões periféricas do país, a capacidade assistencial em saúde mental no Barlavento Algarvio foi, durante muito tempo, bastante deficitária1 . Com a criação dos Centros de Saúde Mental distritais nos finais dos anos 60 do século XX, e mais concretamente na cidade de Faro no ano de 1968, surgem os primórdios da atividade clínica em Psiquiatria de cariz estatal no território do Barlavento, na forma de “brigadas” constituídas por médico e enfermeiro, que partiam da sede de distrito para prestar cuidados de saúde mental em ambulatório nas cidades de Portimão e Silves com uma periodicidade mensal. Durante as décadas de 70 e 80 manteve-se este modelo, com alargamento do seu alcance até Lagos, e posteriormente a Monchique2 .
É apenas em 1999, com construção do Hospital do Barlavento na cidade de Portimão, que é criado um Serviço de Psiquiatria nesta região do país, sendo ainda recente a sua história. À data da fundação, este serviço contava com três médicos psiquiatras e dava uma resposta importante às necessidades crescentes desta população ao nível da saúde mental, tendo em conta as limitações ao nível dos recursos humanos. Mantiveram-se as consultas médicas descentralizadas nos Centros de Saúde (CS) e ocorria a administração de medicação crónica nestes espaços e no domicílio de uma porção dos doentes.
A implementação dos cuidados de saúde mental de base comunitária nesta região, tal como são atualmente conceptualizados, resultou da convergência nacional nesse sentido, explanada no Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 (PNSM 07-16)3, aliada à necessidade sentida diretamente pelos técnicos, doentes e seus familiares, de facilitar a acessibilidade aos cuidados de saúde mental e alcançar um acompanhamento mais frequente, mais próximo e mais assertivo das pessoas portadoras de doença mental, promovendo a adesão terapêutica, prevenção e deteção precoce de descompensações e episódios inaugurais, bem como a reabilitação, integração e autonomização do doente, fora do contexto hospitalar4 .
A primeira equipa de saúde mental comunitária (ESMC) de caráter multidisciplinar formou-se em Lagos e iniciou funções em março de 2011, com atendimento semanal, abrangendo os utentes provenientes dos concelhos de Lagos, Aljezur e Vila do Bispo. Operava a partir das instalações da Consulta Externa da Unidade Hospitalar de Lagos, contando com médico psiquiatra, enfermeiro especialista, psicólogo e terapeuta ocupacional, e mantém a sua constituição sobreponível desde a criação, sob a coordenação do Dr. Orlando Tur. As atividades desenvolvidas incluíam consultas de Psiquiatria e Psicologia e cuidados de enfermagem, bem como grupos terapêuticos, procurando otimizar os recursos disponíveis. Complementarmente, foi feita uma aposta nas intervenções domiciliárias por forma a prevenir o abandono terapêutico, personalizar a abordagem terapêutica e recrutar o apoio dos familiares disponíveis. Como principais dificuldades, foram identificadas as limitações de horário dos diferentes profissionais (acumulação de outras funções e disponibilidade de apenas um dia por semana para o trabalho da equipa), bem como a dispersão geográfica dos doentes, reduzindo o tempo útil de intervenção devido aos períodos de deslocação.
O défice de recursos humanos foi o principal fator limitante para o desejado desenvolvimento de equipas comunitárias para os restantes concelhos do Barlavento. Esta situação observou uma inversão recentemente, com contratação de novos técnicos, especialmente ao nível médico, permitindo assim expandir este tipo de cuidados.
A atividade da ESMC de Monchique teve o seu início de forma informal e abrupta no final do verão de 2018, motivada pela situação de calamidade associada aos incêndios florestais que assolaram de forma significativa este território e deixaram a descoberto a elevada necessidade sentida pelos médicos de família e populações ao nível da intervenção em crise e referenciação precoce a acompanhamento nas situações de ajustamento e/ou descompensação de doença mental.
Em 2019, verificou-se um avanço assinalável na atuação do serviço ao nível comunitário, com a oficialização das ESMC de Monchique e de Silves. Estas são constituídas por médico psiquiatra, enfermeiro e psicólogo, e desenvolvem a sua atuação a partir do espaço físico das respetivas Unidades de Cuidados de Saúde Primários (UCSP), com periodicidade semanal. Em simultâneo, realizou-se a transição da atuação da ESMC de Lagos das instalações da unidade hospitalar de Lagos para a UCSP da mesma localidade, o alargamento do seu horário para uma frequência bissemanal, e a deslocação mensal às UCSP de Aljezur e Vila do Bispo, de forma a melhorar a articulação com os Cuidados de Saúde Primários (CSP) e reduzir as desigualdades no acesso aos cuidados por parte destas populações.
Capitalizando um interesse renovado da tutela, através dos primeiros mecanismos de contratualização direta para este fim4, em 2021, dez anos após a criação da primeira equipa estruturada, iniciou tarefas a ESMC de Portimão e Lagoa, encontrando-se em fase de implementação da sua atuação no terreno.
Áreas de intervenção
A Psiquiatria Comunitária do Barlavento Algarvio tem como missão intervir a vários níveis na comunidade, com aumento da acessibilidade aos cuidados de saúde, promoção da saúde mental e diminuição do estigma. As equipas dispõem de consultas de proximidade nas valências de Psiquiatria, Psicologia, Terapia Ocupacional, Serviço Social e Enfermagem nas instalações das UCSP de Lagos, Aljezur, Vila do Bispo, Monchique e Silves, e existem reuniões multidisciplinares semanais para discussão de casos selecionados. A interação com os CSP é de índole clínica e formativa, já que não se procura apenas a deslocalização física das consultas hospitalares para os Centros de Saúde, mas antes uma ação facilitadora da comunicação com os utentes, famílias e outras estruturas da comunidade.
As ESMC têm como objetivo central a recuperação e integração do doente na comunidade, mantendo uma abordagem centrada no doente, promovendo o seu empoderamento, autodeterminação, participação ativa no seu plano de tratamento e reintegração sociolaboral. Para atingir esse fim, as equipas encontram-se em contacto direto e promovem reuniões com as autarquias, instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e outras estruturas relevantes.
Figura 1. Projeto de intervenção comunitária no Barlavento Algarvio (adaptado de Cruz, Maria do Carmo 2020). Legenda: CSP – Cuidados de Saúde Primários; UCC – Unidade de Cuidados Comunitários; ETET-DICAD – Equipa Técnica Especializada de Tratamento - Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências; GASMI - Grupo de Apoio à Saúde Mental Infantil; CCISM – Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental; DGRSP – Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; PSP – Polícia de Segurança Pública; GNR – Guarda Nacional Republicana; IPSS – Instituições Particulares de Solidariedade Social; CPCJ - Comissões de Proteção de Crianças e Jovens.
Entre as atividades específicas levadas a cabo pelas ESMC destacam-se:
• Intervenções individualizadas: treino de atividades de vida diária (AVD), de técnicas de gestão da ansiedade e mecanismos adaptativos de coping; apoio na procura ativa de emprego e elaboração de currículo profissional; visitas domiciliárias de intervenção em situações específicas e em crise. • Intervenções de grupo: programa psicoterapêutico para pessoas com experiência de depressão; treino de competências básicas e competências sociais elaboradas; programa de adesão terapêutica para jovens com experiência de psicose.
• Sessões de consultadoria, supervisão e discussão de casos com os clínicos e técnicos de saúde dos CSP.
• Sessões de esclarecimento e formação, quer por iniciativa própria quer a pedido das instituições, como é exemplo a presença em escolas, lares, IPSS e meios de comunicação social locais, abordando temas relacionados com a promoção da saúde mental, a prevenção da doença e, como seja o abuso e dependência do álcool, o suicídio, e no caso específico dos técnicos de lares residenciais, a gestão de agitação psicomotora e de comportamentos agressivos.
• Administração de medicação injetável de longa duração.
Projetos em curso e desafios futuros
A meta do Serviço de Psiquiatria de Portimão é alcançar uma cobertura completa de cuidados de saúde mental de vertente comunitária para a sua área de referenciação. A escassez de recursos humanos tem sido o fator mais determinante para limitar a evolução neste sentido, apesar das conquistas já obtidas.
Atualmente pretende-se fortalecer a resposta das equipas já em funcionamento e estabelecer protocolos de seguimento estruturados, com metas bem definidas e planos individuais de tratamento e recuperação. O projeto delineado para os próximos anos centra-se na necessidade de estender e aperfeiçoar a articulação das ESMC com as restantes estruturas da comunidade, de modo a gerar sinergias no acompanhamento dos utentes e transpor para a esfera dos cuidados comunitários alguns dos protocolos implementados ao nível hospitalar, nomeadamente com outras entidades sanitárias (CSP, Saúde Pública, UCC, CCISM, ETET-DICAD, GASMI), justiça e forças de segurança (DGRSP, PSP, GNR), proteção social (CPCJ, IPSS), instituições educativas e poder político5. O projeto encontra-se esquematizado na figura 1. O futuro vislumbra desafios e oportunidades na área da saúde mental comunitária. Será fundamental incrementar de forma robusta a resposta ao nível de soluções para o emprego apoiado e de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental, nomeadamente através de residências de apoio moderado e de apoio máximo (inexistentes no Algarve) e de unidades sócio-ocupacionais (atualmente apenas uma no Barlavento). A fixação e alocação de recursos humanos continuará a ser um fator importantíssimo na desejada evolução da Psiquiatria Comunitária, pelo que a contratualização e financiamento direcionados especificamente à conceção de equipas e projetos comunitários poderá ser um mecanismo eficaz para a aceleração deste processo.
Agradecimentos Os autores remetem uma sentida nota de agradecimento à Dr.ª Maria do Carmo Cruz e ao Dr. Orlando Tur pela colaboração na elaboração deste artigo. Referências:
1. Caldas De Almeida JM. Community psychiatry in Portugal. Epidemiologia e Psichiatria Sociale. 1996;5(2):92-95. 2. Trindade AC. Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Algarve. In: P. Cintra e N. Pessoa Gil (Coord.) História dos Serviços de Saúde Mental. 1ª Edição. Lisboa: Parsifal; 2016. Vol. 2, pp 269-288. 3. Coordenação Nacional para a Saúde Mental. Plano Nacional de Saúde Mental 20072016 — Resumo Executivo. Lisboa: Ministério da Saúde; 2008. 4. Comissão Técnica de Acompanhamento da Reforma da Saúde Mental. Relatório da Avaliação do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 e propostas prioritárias para a extensão a 2020. Lisboa: Ministério da Saúde; 2017. 5. Cruz MC. Projeto de Gestão Clínica para o Serviço de Psiquiatria 2 - CHUA Portimão [Documento de trabalho não editado, cedido pela autora]. Portimão; 2020.