FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E FICÇÃO: ENTRE A RETENÇÃO E A RECONSTRUÇÃO DO EFÊMERO Karine Perez RESUMO O presente texto problematiza o caráter contraditório da fotografia: sua compreensão como rastro da presença física do referente, que a coloca como espécie de atestado da memória passada, e a consciência do aspecto ficcional implícito nas imagens fotográficas. Este entendimento da fotografia ora como detentora de memórias e veracidade, ora como meio para a criação de ficções, relaciona-se com meu projeto artístico pessoal, em desenvolvimento no PPGAV/UFRGS, cuja proposta consiste na criação de retratos e autorretratos pautados no cruzamento entre roupas, memórias e narrativas de outras pessoas. Assim, pretende-se discutir questões de ordem teórica e prática, fundamentadas principalmente em Flores (2011) e Fontcuberta (2012), tecendo-se relações com o processo artístico pessoal. PALAVRAS-CHAVE Fotografia; Ficção; Memórias narradas.
Frente à rapidez, descartabilidade, fragilidade e individualismo comuns na esfera das relações humanas, nas metrópoles globalizadas, uma sensação de amnésia, gerada pelo excesso de informação e estímulos, parece assolar o sujeito contemporâneo. Na contracorrente desse quadro que permeia os vínculos sociais, cotidianamente, a fotografia tem sido encarada como um meio de reter as memórias vividas e testemunhar/atestar a realidade passada. Basta nos atermos às páginas dos estimados álbuns de família: neles, o importante é a “presença” das pessoas amadas, capturadas em rituais que marcam momentos significativos, simbólicos e felizes da vida. Esta necessidade humana de reter o efêmero e criar “duplos”, através da imagem, não remonta apenas ao tempo atual, podendo ser visualizada nas mais diversas culturas, inclusive anteriormente ao advento fotográfico, por exemplo, na valorização das máscaras mortuárias. A própria origem mítica da representação, na fábula de Plínio, o Velho, citada por Dubois (1993), aponta para essa necessidade de retenção. Trata-se de uma história, cuja personagem é a filha do Oleiro Dibutades, de Sícion. A jovem, ao ver a sombra do rosto de seu amado projetada numa parede, por intermédio de uma fonte luminosa, contornou-a com carvão na parede (figura 01), para guardar-lhe a
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imagem, antes que ele partisse para uma longa viagem. Como se isto não bastasse, posteriormente, seu pai modelou o relevo humano em argila, preenchendo aquele contorno vazio da sombra e queimando-o junto com outros vasos de barro, para posterior conservação.
Fig.01 – Representação iconográfica do mito de Dibutades, realizada por Joseph Benoît Suvée, em 1791. Título: Dibutades, or The Origin of Drawing. Óleo sobre tela. 267 x 131.5 cm. Groeningemuseum, Bruges. Fonte: http://minisite.louvre.fr/saison18e/en/antiquite_revee/ar47.html
A fábula aponta para uma origem da representação relacionada à afetividade, à presença/ausência do referente e à memória. A partir da fábula, Dubois (1993, p. 116) constata que “a representação nasceu por contato.” Sendo assim, o que importa não é necessariamente que a imagem se pareça com o referente, mas que guarde um traço de sua presença física.
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Estas propriedades indicial 1 e mnemônica, contidas na fábula originária da representação, aproximam-se da fotografia, pois se encontram implícitas na concepção ontológica do meio fotográfico, incessantemente pensada por autores como Barthes (1984), Krauss (2002) e Dubois (2006), os quais vislumbram que a essência da fotografia está na sua característica de rastro. Assim, é possivelmente esse atributo que torna a fotografia um material equivalente à memória. Ao pensar as relações entre fotografia e memória, Flores (2011 p. 125) afirma que: “no nível ontológico, a memória e a fotografia funcionam de maneira parecida, trazendo ao presente as imagens do passado de um modo visual. Uma, a memória, faz isso de modo mental, enquanto a outra, a foto, o faz de modo material”. A autora critica a concepção comum e dominante de memória entendida como neutra, transparente e mecânica, pois as emoções modificam a percepção. Flores se apega, então, ao caráter seletivo e transitório da memória. Esclarece que somente permanecem arquivadas as experiências significativas, apagando-se as vivências que não são úteis. Assim, concebe a memória como processo ativo e criativo em constante reciclagem de perceptos e conceitos. Nesse mesmo sentido, Fontcuberta (2012, p. 43) assegura: “Recordar quiere decir seleccionar ciertos capítulos de nuestra experiencia y olvidar el resto. No hay nada tan doloroso como el recuerdo exhaustivo e indiscriminado de cada uno de los detalles de nuestra vida”. Este atributo seletivo da memória é explicado pelo autor através do relato da novela The man who never forgot (1957), de Robert Silverberg. Nela, é elucidado o aspecto negativo de se ter uma memória extraordinária, já que o personagem Tom Niles, dotado de uma memória sobrehumana, não consegue esquecer-se de nada, tornando-se incapaz de perdoar erros e superar traumas, por não apagar das lembranças aspectos negativos da vida. Isso torna sua relação com os outros uma catástrofe, insinuando Silverberg que é o esquecimento que nos permite sermos felizes. 1
Referente à “Índice”, termo desenvolvido por Krauss (2002), na publicação francesa “Le photographique”, de 1990, pautada nas teorias de Charles S. Peirce e Roland Barthes. Na obra, Krauss aponta para a condição de traço fotoquímico da fotografia, a qual só pode existir a partir de vínculo inicial com um referente material, dependendo do contato físico entre dois corpos presentes no mesmo lugar.
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Por isso, Fontcuberta afirma que fotografamos para esquecer. Explica que, em fotografias pessoais, aparentemente só se incluem situações agradáveis, como ritos, celebrações, viagens e férias. Fotografiamos para reforzar la felicidad de estos momentos. Para afirmar aquello que nos complace, para cubrir ausencias, para detener el tiempo y, al menos ilusoriamente, posponer la ineludibilidad de la muerte”. (…) seguimos condenados a fotografiar para olvidar: resaltamos unos hechos para postergar los intervalos anodinos y tediosos que fatigan el espíritu. (FONTCUBERTA, 2012, p.44)
Dentro dessa concepção, percebe-se que a fotografia possibilita a retenção de momentos que queremos lembrar futuramente, mas também a supressão daquilo que não queremos recordar. Fotografamos determinadas ocasiões em detrimento de outras que preferimos esquecer, para que se apaguem nos entremeios de uma fotografia e outra, restando intervalos de tempo, lapsos entre as imagens. Tal qual a memória, a fotografia é maleável, falível e seletiva. Portanto, ambas sempre envolvem um caráter ficcional: as memórias, quando narradas, podem incorporar ocultações e reinvenções criadas pela imaginação; já a fotografia admite esses elementos, por decisão do autor. Minha pesquisa artística, em Poéticas Visuais, relaciona-se com estas questões apontadas acerca da fotografia e da memória, encaradas como ficção, já que desenvolvo o que denomino “(autor)retratos” 2 , embasando-me em narrativas de outras pessoas rememoradas através de suas roupas. Até o presente momento, a produção parte do convite de fotografar sujeitos familiares vestidos com roupas, a partir das quais possam contar-me histórias, sejam elas significativas ou banais. Tais histórias primeiramente são ouvidas e gravadas em áudio. Posteriormente, ocorre a tomada fotográfica dos sujeitos. Apesar da inicial diversidade de tipologias de imagens coletadas, percebi que havia um modo de retrato que se repetia: a
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Pretendo usar o termo “(autor)retrato” para indicar a união dos conceitos de retrato e autorretrato, nos trabalhos produzidos. Discuto, também, a questão da autoria do trabalho, já que estou produzindo imagens do “Outro”, complementadas pela minha subjetividade.
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silhueta
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. Foi então que decidi criar uma série de trabalhos, ainda em
desenvolvimento, que envolvem a apreensão de fotografias em silhueta (figura 02). As cenas são montadas a partir de elementos presentes nas histórias narradas pelos sujeitos fotografados, recriando-as.
Fig.02 – Algumas silhuetas ainda em processo de trabalho, 2013.
Quanto aos modos de impressão das imagens, estou desenvolvendo experimentos em suportes transparentes e/ou translúcidos, com a intenção de constituir uma espécie de instalação, a qual será apresentada no espaço expositivo juntamente com o áudio de fragmentos das histórias narradas. Para a concepção desta ideia, 3
Imagem constituída de sombra, vista contra forte fonte de luz. Seu advento remonta a um costume do século XVIII, atrelado à satisfação da demanda por métodos de preservação imagética e pela necessidade humana de fixar/representar traços do real. Tratava-se da apreensão do contorno pictórico da sombra do perfil de rostos, projetados sobre papel, frente a uma lamparina, desenhados ou recortados um a um e colocados em quadros. Este era um modo econômico de produzir imagens, porém de difícil reprodutibilidade, pela dificuldade na obtenção de cópias. A nomenclatura “silhueta” advém do nome do ministro das finanças Francês, Étienne de Silhouette. Este dava preferência à realização dos simplificados e econômicos “retratos de contorno”, ao invés de grandiosas e detalhistas pinturas. Em 1786 Gilles-Louis Chrétien criou a primeira máquina reprodutora de cópias da mesma imagem, o Physionotrace. O princípio era parecido com o anterior, mas era acoplado a um pantógrafo, que possibilitava a obtenção de uma cópia de perfil gravada em cobre, o que permitia a tiragem de cópias.
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estou experimentando materiais e processos técnicos. Um deles foi trabalhar a imagem fotográfica, em laboratório digital, por camadas (figura 03) e imprimir cada uma em adesivo transparente. Tais adesivos foram aplicados sobre placas de acrílico, resultando em um objeto fotográfico (Figura 4).
Fig.03 – Fotografia digital trabalhada em camadas, pronta para impressão, 2013.
Fig.04 – Objeto fotográfico impresso sobre adesivo aplicado sobre placas de acrílico, 2013.
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O que me motivou inicialmente a trabalhar a fotografia, como um dos procedimentos da pesquisa, é a sua já mencionada característica indicial. Isso em razão de querer utilizá-la como uma tentativa de preservar a subjetividade de pessoas importantes para mim e de transpassar seu esquecimento. Destarte, busco eternizar suas memórias e revelo uma vontade de reter o efêmero, tal qual citado na fábula de Dibutades, em que a protagonista captura e retém um traço da presença física do ser amado. Mesmo instigando-me esse caráter indicial e mnemônico da fotografia, meu trabalho artístico vem apontando possibilidades que não consistem na fixação das memórias narradas pelos sujeitos, pois o que capturo não é o momento em que as ações foram vivenciadas, mas interpretações minhas dessas memórias narradas por outros, remontadas para a cena fotográfica. Nesse sentido, interessa-me a dimensão relacional contida no encontro com as pessoas durante o processo, cabendo enfatizar que não tenho uma relação indicial com as histórias contadas, pois não as testemunho. Somente as imagino, interpreto e busco remontá-las para a cena fotográfica, juntamente com os sujeitos, usando elementos simples que as pessoas tenham em suas próprias casas, local onde as fotografias são feitas. Essas seleções e criações, operadas ao longo do processo, apontam para a dimensão ficcional presente nas imagens fotográficas, assim como ocorre também com qualquer memória narrada. Indago-me sobre quais detalhes das histórias narradas foram ocultados ou esquecidos por seus protagonistas e, também, tento imaginar como a mesma história seria contada por outras pessoas que a vivenciaram, sendo possível que agregariam outras interpretações e olhares sobre uma mesma realidade. Ao colocar a imagem de diversos sujeitos em conjunto, no espaço expositivo, evidencia-se uma situação só existente na série de trabalhos, já que as imagens foram apreendidas em espacialidades e temporalidades diferentes, pois os referentes são pessoas que não necessariamente se conhecem. Isso somado ao fato de apresentar os sujeitos retratados em silhueta, mantendo seus traços fisionômicos ocultos e preservados por meio da sombra, aponta para uma
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coexistência da ficção e do anonimato dos sujeitos fotografados. Desse modo, já que as figuras apresentam-se quase anônimas, ao transitar entre elas o público não poderia transportar imaginariamente às imagens rostos que lhes pareçam familiares ou estranhos? As silhuetas apenas remetem a algumas peculiaridades dos sujeitos, tais como detalhes do corpo, modos de posar ou mover-se, mantendo os traços fisionômicos ocultos e preservados por meio da sombra. Em razão deste “ocultamento” de variados aspectos físicos dos sujeitos retratados, o trabalho poderia parecer incoerente, pois as roupas que sugeriam ser a motivação inicial tornam-se quase imperceptíveis nas imagens. Cabe mencionar que o emprego dessas roupas importa ao trabalho na medida em que provoque nos sujeitos a capacidade de ativar memórias relacionadas ao seu uso anterior, possibilitando a narração de histórias, sejam estas marcantes ou banais, recordadas a partir das vestes. Portanto, a semelhança física, não é um dado importante, mas sim a presença dos sujeitos diante da câmera, seu vestígio. No momento em que os sujeitos se encontram diante da câmera, são desafiados a reviver ações passadas, recorrendo à seletividade mnemônica, teorizada por Flores (2011) e Fontcuberta (2012). Em razão da emotividade percebida na fala e nos gestos de cada um, ao rememorar suas histórias, é perceptível que enquanto as recordações são ativadas e narradas são, também, revividas. O período de trabalho parece funcionar como um momento de pausa, de suspensão, nas atividades diárias, permitindo-lhes um tempo destinado às lembranças. Contudo, ocorre uma tensão nessas imagens, pois caso fixem-se como memória, tal reminiscência corresponde à ocasião em que os retratados me confiaram suas histórias, não às vivências narradas por eles. As imagens fotográficas produzidas distanciam-se das lembranças arquivadas pelos sujeitos, pois quando elas são ouvidas e imaginadas por mim, ocorre sua descontextualização e sua reconstrução, fixada por intermédio da fotografia. Nesse sentido, mais do que registrar episódios vividos, busco ressignificar memórias e (re)construir fatos passados, produzindo novas realidades para a tomada fotográfica.
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Desse modo, esta série de silhuetas ao mesmo tempo em que retém os trejeitos de cada um, reconstitui as memórias narradas, possibilitando-lhes novas significações. Assim, a organização dos elementos fotografados obedece às leis da imaginação e não à objetividade do acontecido, admitindo uma dimensão ficcional e encenada que permeia o trabalho.
REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 9.ed. Campinas: Papirus, 2006. FLORES, Laura Gonzáles. Fotografia e pintura: dois meios diferentes?. São Paulo: Martins Fontes, 2011. FONTCUBERTA, Joan. El beso de Judas: fotografía y verdad. 2.ed. Barcelona: Gustavo Gili, 2012. KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
Karine Perez Artista e mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (bolsista CAPES 2008-2010). Doutoranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Graduada em Desenho e Plástica - Bacharelado (2005) e Desenho e Plástica - Licenciatura Plena (2007) pela UFSM. Foi professora substituta do Departamento de Artes Visuais, UFSM, atuando nos Cursos de Graduação em Artes Visuais - Licenciatura Plena e Bacharelado, de 2011 a 2013. Realizou estudos na Escuela Nacional de Bellas Artes, IENBA - UDELAR, mediante Programa ESCALA Estudantil da AUGM (2004). Participa do Grupo de Pesquisa Arte e Tecnologia/CNPQ, na UFSM, e do Grupo de Pesquisa Processos Híbridos na Arte Contemporânea/CNPQ, na UFRGS. E-mail: karine gperez@ hotmail.com. Página: https://www.facebook.com/artekarineperez?ref=hl
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