O TEMPO COMO IMAGEM

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O TEMPO COMO IMAGEM Carolina Kazue Morita RESUMO O tempo é um dos elementos centrais ao pensarmos a construção dos processos imagéticos na arte. Buscando delinear alguns conceitos sobre a temporalidade intrínseca e extrínseca ao signo fotográfico, faremos um pequeno percurso na história da fotografia criando relações a partir do trabalho poético da artista Patricia Gouvêa e as tensões temporais que reverberam na imagem fotográfica. PALAVRAS-CHAVE Fotografia; Movimento; Tempo,

Os senhores ficarão surpresos ao ouvir minha resposta à sua pergunta sobre o que acredito ou estimo estar acima de tudo: é a transitoriedade. Mas a transitoriedade é muito triste, dirão os senhores. Não replico eu, ela é a alma do ser, é o que confere valor, dignidade e interesse à vida, pois a transitoriedade produz o tempo – e o tempo é, ao menos potencialmente, a maior e a mais útil das dádivas (MANN, 2013, p.23). A afirmação do escritor Thomas Mann, nos convoca a reflexão sobre o modo que a transitoriedade, de fato, age na existência. Já que, como aponta o escritor, ela produz o tempo, passamos a questionar, então, que espécie de tempo é esse? E se deslocarmos a ideia de transitoriedade para o campo da arte, como poderemos perceber o tempo na imagem? Será possível a fotografia eternizar o transitório? Tais questionamentos nos inserem em um universo infinitamente amplo, a começar pelo tempo, uma palavra pequena que nos remete a uma imensa possibilidade de significados. No tempo, podemos pensar o estar sendo em algum lugar no espaço. Como inúmeros instantes que se somam, o tempo é a sucessão. Ele interroga a percepção, dialogando com o visível e o invisível, o real e a imaginação. Tempo está no “entre” das coisas, no vir a ser de algo que está acontecendo e que já aconteceu, ficando nas relíquias, nos objetos empoeirados que deixamos dentro da casa, como indício de algo que foi vivido. O filósofo Santo Agostinho, dentro das suas inúmeras indagações sobre este tema, apresentou uma ideia bastante elucidativa ao questionar-se sobre o que é o tempo. Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu

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sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente (AGOSTINHO, 2004, p. 322). A partir do pensamento Agostiniano, ainda que possamos ter alguma percepção acerca do tempo, este conceito permanece em um terreno nebuloso, beirando a impossibilidade de uma conceitualização clara e precisa. A existência do tempo parte de uma incógnita que circula as esferas do passado, presente e futuro, porém, suas reais delimitações estão contornadas por uma linha invisível, como uma fronteira de demarcações imprecisas. Contudo, o tempo a que nos referimos, caminha ao encontro da imagem, como um registro do transitório. Assim como a ideia de vestígio ressaltado por Jean-Luc Nancy em O Vestígio da Arte, no qual aponta que “o que resta é também o que resiste mais” (NANCY, 2012, p. 289), este artigo busca refletir sobre as possíveis impressões do tempo na fotografia. Seja pela resistência a ele ou pelo refluxo do contemporâneo, o que será buscado é a forma peculiar que a língua do tempo fala nas imagens. Na origem da fotografia, o tempo não é direcionado por um caminho linear, ao contrário, ele aparece como um vestígio de passagem que sustenta sua experiência. Mas para percebermos este vestígio, não podemos anular, contudo, a existência de, pelo menos, três tempos diferentes: o do fotógrafo, o da imagem e do espectador. A partir das reverberações que o tempo traz ao território da imagem, poder-se-ia questionar, portanto, se é ele o elemento fundamental para a origem da fotografia. De acordo com a hipótese levantada pelo teórico brasileiro Maurício Lissovsky, a fotografia manifesta sua originalidade a partir da passagem do domínio espacial, para uma esfera temporal.

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Lissovsky, contudo, constrói sua hipótese a partir do conceito de origem formulado por Walter Benjamin em Origem do drama barroco alemão, no qual o termo não pode ser compreendido como o início de algo novo e singular, e sim, a consumação de sua história. A origem não designa o devir do que nasceu, mas sim o que está em via de nascer no devir do declínio. A origem é um turbilhão no rio do devir, e ela arrasta em seu ritmo a matéria do que está em via de aparecer. A origem jamais se dá a conhecer na existência, nua, evidente, factual, e sua rítmica não pode ser percebida senão numa dupla ótica (BENJAMIN, 1984, p. 69). 1

LISSOVSKY, Maurício. O tempo e a originalidade da fotografia moderna. In Tempo dos tempos (org. Marcio Doctors). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003, p. 142.

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Como uma fratura diante do tempo, o nascimento da fotografia, com o daguerreótipo em 1839, é saudado como porta voz da verdade, tornando-se um espelho da real, um acontecimento enquadrado e fixado pelos olhos do fotógrafo.

A fotografia como

representação da modernidade, torna-se um meio capaz de legitimar a realidade, registrando o visível, de modo que o desenho e a pintura não conseguiam ter acesso da mesma maneira. A partir dos avanços da fotografia instantânea, com a ajuda da ciência, a imagem fotográfica tornou-se “mediadora do invisível”, ou seja, através da fotografia era possível registrar o efêmero, o instante em que o movimento acontecia de modo imperceptível aos olhos, como os retratos espirituais e os registros de Muybridge e Marey com o deslocamento dos seres humanos e animais. Desta forma, o instante fotográfico e o instante do tempo tornam-se um elemento fundamental para a concepção da imagem,2 algo que permaneceu e permanece acompanhando a experiência fotográfica. Durante muitas décadas, a fotografia foi conceituada como a reprodução fiel do mundo. No livro A câmera clara, Roland Barthes, destacou a natureza da fotografia como ça-a-été, podendo significar “isto foi” ou “isto aconteceu”, salientando que sua leitura ontológica residia no passado, sendo um registro transparente do real.

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Mas, diferenciando ou ampliando este pensamento de Barthes na atualidade, o teórico espanhol Juan Fontcuberta, destaca já nas primeiras páginas do livro O beijo de Judas que “toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira [...] e o bom fotógrafo é o que mente bem a verdade”. (FONTCUBERTA, 2010, p. 13). Ou seja, dentro do novo paradigma da imagem contemporânea, a fotografia é conceituada como uma mentira e não mais um registro fiel da realidade. Sua verdade permeia um campo arenoso, no qual o real e a ficção tornam-se algo nebuloso, de difícil distinção. No entanto, o mais importante no contexto atual da fotografia, não é a questão da mentira ou verdade, mas, de acordo com Fontcuberta, o que deve ser refletido é a forma como o fotógrafo atribui o “sentido ético à sua mentira” (FONTCUBERTA, 2010, p. 13).

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SANZ, Cláudia Linhares. O tempo e a Fotografia. Texto inserido nos Cadernos de Fotografia do Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, organizadores: Sinara Sandri, Carlos Carvalho – Porto Alegre: Brasil Imagem, 2010, p. 39.

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GOUVÊA, Patrícia. Membranas de luz: os tempos na imagem contemporânea/ Patrícia Gouveia. – Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 25.

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Ao vincularmos a fotografia, como uma experiência em processo contínuo, inserida no ato de fazer, produzir e repensar a imagem, o tempo na fotografia emerge como um rastro no espaço, o visível do tempo na imagem torna-se um instante mergulhado pela transitoriedade. Nesse contexto, é aberta uma fenda para que possamos mergulhar no trabalho da carioca Patricia Gouvêa, Imagens Posteriores (2000/2013). A artista coloca o seu corpo parado dentro de um carro, trem, ônibus ou barco que se movimenta, e a partir desse deslocamento, o transitar por entre as belas e inquietantes paisagens, é o momento do nascimento das suas imagens. São fotografias que mostram os rastros de onde passou, como contornos de uma natureza distorcida, borrada na paisagem.

Fig.01 - Patricia Gouvêa, Imagens Posteriores, 2012. Cruzando diversos territórios em várias partes do Brasil e fora do país, a artista resignifica sua memória, traduzindo pela experiência ao atravessar esses lugares o instante em que fotografia deixa de ser puramente congelamento para tornar-se duração. Suas imagens refletem paisagens moventes, aproximando-nos do cinema com a sensação de que o olhar se movimenta no mesmo fluxo contínuo da cena. Algo que se assemelha ao conceito formulado no texto Efeito filme: figuras, matérias e formas do cinema na fotografia, publicado em 1999, por Philippe Dubois, denominado “efeito filme”. Segundo o pesquisador, esta teoria poderia ser aplicada para designar uma imagem que traduz a união entre a fotografia

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e o cinema. Como se de alguma forma esses dois suportes se transformassem em um único corpo, sendo tanto uma questão de imagem [...] quanto de dispositivo [..]; tanto uma questão de percepção quanto de intelecção; tanto de sensação quanto de emoção. Ele é o testemunho do poder, imaginário e real, do cinema na Arte Contemporânea (p.230, 2004). Ao discorrer acerca das mutações entre a imagem estática e a imagem-movimento, o pesquisador brasileiro Antonio Fatorelli salienta que “a passagem do sinal de luz para o sinal eletrônico, marca a transição da modernidade para a contemporaneidade, colocando em perspectiva os valores materiais e simbólicos, associados à representação fotocinematográfica baseada no modo analógico de inscrição, projeção, difusão e apreensão da imagem” (2013, p. 174). Ou seja, as marcas que as inovações tecnológicas registram nas imagens produzem mutações estéticas na perspectiva contemporânea.

Fig.02 - Patricia Gouvêa, Imagens Posteriores, 2012. No trabalho de Patricia Gouvêa, esta linguagem aparece como uma mancha no espaço, uma paisagem apressada que dialoga com a temporalidade, seja pelo tempo de exposição, ou ainda, pela forma como ela resolveu a apresentação das suas imagens. Indo ao encontro do pensamento bergsoniano, no qual a duração é privilegiada em detrimento do instante, a artista conta que:

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Nesta série, coloquei em questão a popularizada noção de que a imagem fotográfica é a morte do fluxo, congelamento do tempo, instante mumificado da vida. O material desse trabalho foi a paisagem, com a intenção de libertá-lo de seus atributos geográficos e produzir um novo olhar que abrangesse o espaço entre a partida e chegada. [...] Eu queria fazer cinema com a fotografia, queria expandir a fotografia para além das amarras da instantaneidade de seu ‘tempo próprio’ (GOUVÊA, 2011, p.16). Fazendo grandes ampliações em forma de cartaz, Patricia Gouvêa selecionou locais estratégicos no espaço urbano para expor suas imagens. São lugares com muito cinza, muros pichados, túneis escuros, ruínas que criam certo estranhamento com suas imagens repletas de cor e luz. Para documentar suas intervenções, que ocorreram nas cidades do Rio de Janeiro, Fortaleza e Brasília, durante os anos de 2012 e 2013, Gouvêa fez um vídeo4 que serve não apenas como registro, mas também como forma de transitar o seu olhar por entre os enquadramentos da cidade. A música do vídeo, composta pelo piano de Caio Senna, adiciona um caráter intimista, nos convocando à desaceleração do olhar diante de imagens libertas de referente.

Fig.03 - Patricia Gouvêa, Imagens Posteriores, intervenção no Rio de Janeiro, novembro de 2012.

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Link para o vídeo: http://vimeo.com/80082707

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A série de Patricia Gouvêa conduz nosso olhar para além da fotografia enquanto imagem fixa. O tempo na imagem permanece pulsante, criando relações justapostas de cenas que continuam ativas na memória. Para percebermos o tempo na fotografia, a pesquisadora Claudia Linhares Sanz relaciona-o com a visão de um escombro: A ruína de um edifício em permanente e eterna demolição. [...] O tempo está ali e não está, desaparecendo em permanência. Ele emerge e desaparece, em constante oscilação, como a imagem do prédio que não para de ser arruinado, mas nunca é destruído inteiramente. Se olharmos bem, o tempo aparece na fotografia como uma espécie de miragem ilusionista, oscilante e conflituosa, atrás de uma poeira, algumas vezes invisível, outras vezes absolutamente nítida (SANZ, 2010, p. 36). Como a imagem de uma ruína, as fotografias são a memória, o escombro que desaparece, mas que continua permanecendo. Não se pode afirmar, no entanto, que no escombro, o tempo deixou de existir, como uma memória que está soterrada no passado. Ao contrário, a memória retoma o passado, mas sua construção está alicerçada no presente, como um meio capaz de recriar uma vivência. 5 Para ativarmos a memória, é preciso uma escavação cautelosa, coletando os fragmentos deste escombro movente. Desta forma, podemos constatar que se o tempo na imagem não existe sozinho, é necessário, portanto, que haja o movimento do pensamento para que ele possa existir. Didi-Huberman fala que “sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo” (HUBERMAN, 2008, p. 31). Assim como as imagens de Patrícia, que caminham para além de um instante, convocando nossa percepção externa para uma experiência desterritorializada, na qual o tempo é o espelhamento do nosso interior.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Escavando e Recordando. In Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. _________________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. Coleção “Pensadores”. Santo Agostinho - Confissões. São Paulo, Editora Nova Cultural, 2004. DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo – 1ª ed. 1ª reimp. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2008.

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BENJAMIN, Walter. Escavando e Recordando. In Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 246.

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DUBOIS, Philippe. Efeito filme: figuras, matérias e formas do cinema na fotografia. In: A fotografia nos processos artísticos contemporâneos. / Alexandre Santos e Maria Ivone dos Santos, Org. – Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria da Cultura: Editora da UFRGS, 2004. FATORELLI, Antonio. Variações do tempo – mutações entre a imagem estática e a imagemmovimento. In Imagens: Arte e Cultura. CARVALHO, A. M. A. (Org.); SANTOS, A. (Org.) 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. Volume 1. FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas. Fotografia e Verdade. – Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2010. GOUVÊA, Patrícia. Membranas de luz: os tempos na imagem contemporânea/ Patrícia Gouveia. – Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. LISSOVSKY, Mauricio. Máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro: Maud X, 2008. _________________. O tempo e a originalidade da fotografia moderna. Texto publicado em: DOCTORS, Márcio. (Org.) Tempo dos tempos. Rio de Janeiro, 2003. MANN, Thomas. Elogio da transitoriedade. Serrote n. 13, mar. 2013. NANCY, Jean-Luc. O vestígio da Arte. In Fragmentos de um Teoria da Arte/Stéphane Huchet (org.). São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2012. SANZ, Cláudia Linhares. O tempo e a Fotografia. Texto inserido nos Cadernos de Fotografia do Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, organizadores: Sinara Sandri, Carlos Carvalho – Porto Alegre: Brasil Imagem, 2010.

Carolina Kazue Morita Jornalista e mestranda no programa de Pós-Graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte, sendo orientada pelo Prof. Dr. Paulo Silveira. Sua pesquisa está relacionada à forma como o tempo se movimenta nas imagens fotográficas e no vídeo.

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