Para o ser enigmático que me explicou que não... que a Lua não estava me perseguindo enquanto eu a observava pela janela do banco de trás de um sedan azul que percorria estradas vazias do interior paulista. E que sim... que as idas e vindas dele eram, de fato, guiadas pelo reto-íris.
Essa estória começa de noite. Começa à meia-noite porque é à meia-noite que o dia começa. Do jeitinho como canta a canção, “midnight is where the day begins...”
O que é muito interessante, além de curioso... Uma coisa, no caso o dia, começar bem no meio de outra coisa que, nesse caso, é a noite!!
E, tanto faz se é noite de Lua crescente, Lua cheia, Lua minguando ou de Lua nova (que é a noite sem Lua)... É sempre no meio da noite que o dia começa.
Na verdade, na verdade, dia e noite nem existem assim como coisas separadas ou como algo independente um do outro, do tipo um começa aqui e o outro acaba ali...
O que acontece é só uma mudança no pano de fundo (ou de cima???) que é o céu. E com o pano, muda o cenário que são as coisas que a gente enxerga mais ou melhor na frente de cada pano.
Interessante, também, é o que acontece nessa troca de panos quando o céu não está pingando a chuva...
Uma espécie de arco-íris no horizonte! E, num ângulo de visão meio fechado, é quase o que se poderia chamar de reto-íris!!!
O reto-íris é uma pintura que o Sol faz sempre que sobe ou desce na linha do horizonte e tanto faz onde a Lua está. É um trabalho solo...
do Sol!!!
E que some como o efeito de aguarrás passada forte logo acima da linha do horizonte, assim que o Sol solo se afasta dele. E isso acontece num piscar de olhos.
E a Lua até que participa de vez em quando... Brilhando fininha, uma letra C fechando o ato da aguarrás...
ou minguando branquinha logo ali, além do reto-íris que se dissolve (num piscar de olhos).
Tem vezes que o trabalho solo ĂŠ dela e o Sol assiste de cima, bem escondido da gente, que assiste de baixo.
Tem vezes em que eles atuam abraçados... Mas aí, a gente não a vê.
A gente não a vê porque o abraço do Sol é fogo!!!
Tudo o que ele abraça fica invisível pra gente.
Mas, tudo isso acontece no mundo da superfície...
Nos mundos onde ninguém cumpre a lei da gravidade a estória é bem outra!
No espaço sideral tanto faz se você está estacionado na garagem da nave mãe ou se está viajando na velocidade da luz...
lá, o dia é sempre noite! Além de tudo, lá não faz o menor sentido consultar o relógio que se usa na aqui na superfície. Lá é bem como se canta naquela outra canção “when the day is as dark as the night is long...”
E no mundo submerso??? Como sĂŁo os dias e as noites das sereias que moram (dia e noite, noite e dia) em gotas d'ĂĄgua submarinas?
A impressão que dá para quem olha de fora é que o fundo do mar, para quem está lá dentro, deve ser mais ou menos o que acontece para quem está no cinema...
Só que muito melhor porque lá, mesmo que tenha algum inconveniente falando alto ao nosso lado, a gente não ouve. E, se espetáculo no lugar onde a gente está não estiver agradando é só nadar um pouco ou olhar para o outro lado, sem precisar de novo ingresso ou pegar as filas do cinema. No fundo do mar não se sabe direito o que está rolando lá fora, se chove ou se faz Sol, se está um dia escuro ou se está uma noite clara, tal como no cinema!
E certamente que, de lá, nunca ninguém viu um reto-íris... (essa é a parte chata!)
A noite tem muitas vantagens. Digo isso porque ninguém troca a noite pelo dia... Mas, muita gente já trocou, pelo menos uma vez na vida, o dia pela noite! Além disso, é de noite que todos os gatos são pardos, não faz a menor diferença a cor que eles usaram de dia.
Algumas formas de vida só conseguem levar a vida se for de noite. Outras só conseguem levar a vida se for de dia. Agora, felicidade mesmo é ser um plâncton!!! Ele não leva a vida... ele apenas vive a vida... E a vive ao sabor das ondas. Elas, ondas e vida, é que o levam!
E o levam facinho, facinho para onde ele precisa ir.
Plâncton vem do grego planktos, que significa errante e que não quer dizer que seja errado. Apesar de parecer que não faz nada a vida inteira, ele é muito importante porque se encontra na base da cadeia alimentar dos ecossistemas aquáticos, uma vez que serve de alimento (e de exemplo!) para organismos maiores.
Mas, no mundo de superfície nem todos são assim, seres tão evoluídos em consciência e desprendidos (literalmente), como os plânctons!!! Alguns desses seres passam os dias sem viver...
...ocupam-se em resolver quebra-cabeças ou problemas sem solução que eles mesmos criaram e que, na maioria das vezes nem existem ainda.
Mas, isso é tão corriqueiro e desagradável (isso não é vida!) que até inventaram um escape! Ou, talvez façam isso para poderem ter inventado esse escape! E esse escape é tão bom que até batizaram... de happy hour.
E hoje já é quase uma instituição. Para o dia que não nasceu feliz poder ter, pelo menos um começo de final feliz!
Como nos mundos onde a lei da gravidade não é cumprida não tem essa estória de dia e noite, nem de horas marcadas para ser feliz, existem outras questões...
Nos oceanos e no espaço sideral, muita gente teme coisa bem mais assustadora que a noite.
Temem morar num planeta onde brotam flores quem sĂŁo de plĂĄstico preto e com um perfume que envenena...
quase imitando as que se tentam esconder nos aterros sanitários da Terra, mas que brotam mesmo assim. Isso é bem terrível!
Outra coisa assustadora, a injustiça, por exemplo...
que é realmente bem assustadora e que, diferentemente do dia que começa à meia-noite e das flores de plástico preto que começam nas nossas latas de lixo, ninguém sabe bem (ou já conseguiu determinar, sem o risco de ser injusto) onde a injustiça começa. Mas, uma sereia sabe onde a injustiça pode acabar, diferentemente do dia que não acaba... que só continua, mas trocando os nomes num ritmo cíclico e trocando os panos de fundo também. Ela, injustiça, pode muito bem acabar na gente. Basta a gente não julgar para não cometê-la, repeti-la ou mantê-la viva. É o que acontece no fundo do mar.
E a sereia, que é cheia de truques tem lá os seus para não aumentar a injustiça no mundo submerso. Alguns ela aprendeu com seus amigos plânctons!!! Eles são muito discretos e só falam quando é para ajudar a melhorar a situação de vida de alguém, senão ninguém ouve um pio deles. Eles são paz e amor!
A sereia, para não julgar, substitui esse pensamento por outro que não resulte em nada tão assustador como a injustiça. Uma coisa que a sereia faz é, na hora em que percebe que está julgando ou que vai começar a julgar... lembrar de congelar essa atitude!
Mas, congelar com ternura e muita doçura... transformando-a num sorvete bem cremoso! Numa energia fresca e gelatinosa como um antídoto contra a intolerância que ela sente quando julga.
Isso dá certo quando é feito à moda dos plânctons
Ela já tentou usando a força e não funcionou.
Porque é assim, terno e doce, o mundo das sereias, doçura de sereia de água salgada, mas que sabe ser doce. O mundo das bailarinas também é assim, mas isso fica pra depois.
Mas, quando isso não resolve totalmente o assunto e o alvo dos dardos da sereia ameaça voltar, ela o transforma numa coisa parecida, mas muito mais inofensiva!
Um pirulito colorido que, por maior que seja, sempre acaba na última mordida ou lambida que ele recebe da gente. Assim, como a que a injustiça recebeu quando a gente se absteve de julgar.
Então, a sereia fica bem satisfeita e animada porque não julgou nem teve opinião, além de imaginar um sorvetão! Aí ela sai com seu cata-vento colorido que ela adora ver girar enquanto pedala sua bike!
Pedala maneiro, de carona no vácuo de uma corrente marítima vendo o cata-vento girar.
E, em cada giro do cata-vento girando, a sereia viaja como quem assiste um caleidoscópio. Tem visões de coisas do mundo da superfície. Coisas quentinhas e perfumadas como pizza com tomate e manjericão.
É que pedalar, mesmo no vácuo de uma corrente marítima, sempre desperta o apetite das sereias!
Sereias que pedalam para além do reto-iris e ficam querendo carboidratos... E, pensando no reto-iris, conclui que ele é uma saudação...
Uma feliz saudação que o Sol faz para a noite e ela pede bis antes de ir totalmente embora!
E pedala sem pressa e sem destino para além do reto-iris porque uma sereia não gosta de ter que cumprir horários e nem curte uma rotina, a não ser que for só para poder quebrá-la. E uma rotina quebrada pode formar um mosaico que é um quebracabeças resolvido...
daqueles que as pessoas ficam rotineiramente tentando resolver, não conseguem e vão para o happy hour para se esquecer dele!
Enquanto curte a sua liberdade, a sereia não deixa de lembrar que lá na superfície as pessoas se preocupam e se ocupam muito com o tempo... o cronológico, o psicológico e o meteorológico.
Logo pensa no tempo cronológico que é aquele que se mede com aqueles relógios que só valem na superfície e se pergunta uma pergunta que ouviu outro dia:
“What time is it in the world?”
Então, ouve um amigo muito sabido responder com uma voz que vem de longe, mas que ela ouve de dentro d'água:
“It's now!”
Satisfeita com a resposta, continua pedalando e começa a pensar no tempo psicológico, que é o mais terrível porque guarda ao mesmo tempo as lembranças do passado e os medos e esperanças do futuro.
O tempo psicológico é uma prisão onde a gente se enfia mesmo estando legalmente livre! É onde a gente se encontra sempre que não está no agora. E, como toda prisão, não é o melhor lugar pra se estar.
Sem querer continuar pensando nessa prisão, sobe rápido à tona para ver a quantas anda o tempo meteorológico. Contemplar esse tempo em movimento, que significa o deslocar das nuvens, a troca do pano de fundo do céu e o vai e vem das ondas, sempre resgata as sereias que se aventuram nos labirintos do tempo psicológico.
E o tempo meteorológico vai muito bem, obrigada, com um “barquinho a navegar no macio azul do mar”, entre azuis, verdes e entre o Sol e a Lua. Mais relaxada, pedala até uma praia, onde um guarda-sol lhe chama atenção. Isso porque ele é a cara do seu cata-vento!
Então imaginou como uma coisa leva a outra e como seria bom um guarda-sol que girasse como o seu cata-vento limpando e refrescando as ideias das pessoas que estão com suas cabeças tão quentes e presas nos tempos.
E pensou como seria engraçado ir até a praia e causar o maior espanto! Certamente que isso abriria algumas portas da prisão do tempo psicológico... mas também não ia passar de um golpe baixo porque quando esse susto fosse passado, poderia representar uma nova prisão.
Assim, desistiu de sair da água e nadou porque já estava cansada de pedalar e tinha deixado a bike estacionada num recife de corais.
Nadou beirando a costa e observando as pessoas da praia, tentando adivinhar quem estava preso no passado ou no futuro e quem estava em liberdade no eterno agora... como ela.
Depois ela mergulhou e pensou... pensou que pode até ser mais fácil para uma sereia estar no agora porque lá no fundo do mar não se veiculam notícias ruins... mas a poluição é bem visível e não deixa de causar certa ansiedade.
Mas, quanto ao passado, as sereias sabem que “what you leave behind you don't miss anyway”.
Gira rápido e rápido e se enrola nos seus cabelos azuis porque, na verdade, futuro ou passado nem existem para elas, é pura ficção! O melhor é ficar no agora e limpar a poluição!
Então não há como se prender por lá. Seria como estar preso num filme de cinema. E isso é bem complicado de fazer! Se não acredita, pergunta para o cara da Rosa Púrpura do Cairo...
Chegou à tona girando e fazendo um rocambole com seus cabelos e sossegou.
Encontrou uma bola de praia jĂĄ meio murcha porque nĂŁo estava cheia de tanto permanecer no ali e agora ensolarado da areia da praia e viajou novamente, como quando imaginou a pizza marguerita ou tantas outras coisas.
Viajou nas bolas de praia porque elas têm desenhos que parecem mares, manchas e continentes de outros planetas, com nuvens e vapores atrapalhando a visão que a gente tem deles. Os planetas são bolas de praia, que são como os plânctons, só que ninguém se alimenta deles, até onde se sabe... São como plânctons porque também estão sujeitos a que uma ordem superior os tire de órbita ou alterem sua rotação. Os planetas seguem seu sistema solar e a filosofia dos plânctons.
Eles são descritos e classificados no Guia
do
Mochileiro das Galáxias! Um guia do Douglas Adams, realmente indispensável para quem viaja pelos planetas que parecem bolas de praia...
Vai ver é por isso que o guia recomenda que o único item que não pode faltar na mochila de um mochileiro das galáxias é uma toalha, que pode ser muito útil na praia!
E esse guia, que tem a despedida dos golfinhos e até o itinerário para o restaurante no fim do Universo, classifica a Terra como “praticamente inofensiva”. Então, não há porque temer qualquer ameaça de qualquer natureza na Terra, praticamente.
Mas, se mesmo sabendo que as ameaças são praticamente inofensivas, elas continuarem causando stress, o jeito é torná-las invisíveis. E o guia indica a maneira mais rápida, barata e eficiente de tornar alguma coisa invisível. Basta jogar um campo de POP nelas, sendo que ignifica Problema
de Outra Pessoa.
Mas isso, quem quiser aprender vai ter que ler lá no guia como fazer.
Porque, para a Sereia, ensinar isso é um POP... que no caso, é do Guia
do Mochileiro das Galáxias!!!
FIM
Sereia em série... A série da Sereia “Metade o busto de uma deusa Maia Metade um grande rabo de baleia” Paralamas do Sucesso / Gilberto Gil
Sobre a autora
Claudia Schmidt, artista visual, frequentou a pintura clássica na adolescência, mas profissionalmente trilhou os caminhos da engenharia eletrônica onde se familiarizou com a criação de conteúdo via software, explorando a animação de formas geométricas e a agregação de fotos e cores. Dessa familiaridade nasceu o impulso de se manifestar artisticamente por meio dessas ferramentas.
Suas ilustrações iniciais lhe inspiraram reflexões corriqueiras que, reunidas, deram origem à Sereia e sua série. https://cschmidt303.wixsite.com/ilustras reúne o seu trabalho visual e um blog.