A Sereia e os Amigos Invisíveis

Page 1



Para o Udo e a Toné, que eram sempre os últimos na lista da chamada, mas só até esta começar a ser lida de trás pra frente ou de ponta cabeça.





Amigo é coisa pra se guardar debaixo de 7 chaves...

dentro do coração e ser cantado pelos 7 mares.


É o que todo mundo canta na América, África, Ásia, Antártida... Se for pra ficar só no “A”. E, se for pra completar, na Europa e Oceania também, além de nos oceanos...

e nos cantos de Sereia, claro.


Porque a Sereia tem amigos, sem dúvida! Todo muito sabe das andanças dela por aí. Mas esse texto não se trata dos Cavalos-Marinhos que ela encontrou quando foi tomar um Vento no Litoral.


Nem da Arraia de abdĂ´men negativo, que treina com ela na academia, emprestando a cauda pra Sereia pular corda.


Também não se trata dele... o Boto! Que apesar de ser da água doce, é um perito em ondas.


Poderia se tratar da galera da trupe dos 5

elementos, mas

também não é, até porque, apesar de serem invisíveis para muitos, eles já aparecem em outra estória...


Embora, fazendo um parêntesis, o

Boto já tenha sido convidado pra fazer parte dessa trupe. Mas ele não aceitou o convite porque está envolvido em muitos processos de paternidade que o impediriam de sair do planeta, ou até mesmo de ir para o deserto ou para as montanhas.

Se ele tivesse podido aceitar, ele seria do elemento água, é claro. Ele seria da água doce e a Sereia da água salgada.

Da mesma forma, poder-se-ia ter elementos ar parado e ar em movimento que, nesse caso, seria o Vento

Quanto à terra, só pra simplificar, já se pensou em terra vermelha e terra roxa.

E o elemento fogo, que pode estar aceso ou apagado, ser fogo de palha ou até um fogo amigo.

no Litoral.


E, como os dessa estória são invisíveis, não são os peixinhos que fazem borbulhas de amor num aquário límpido...

E nem aquelas espécies que lotam as festas de fim de ano.


O assunto dessa estória são os amigos que a Sereia tinha quando mal saía da concha.

Daquela concha dos Vieiras & Sea Scallops & Cocquilles St. Jacques da família dela.

Naquela época ela não ia à tona, nem para tomar um Vento no Litoral...

Também, não tinha idade para performances que não fossem do tipo derrubar leite no pijama ou queimar a boca na sopa. Então, nada de 5

elementos

nessa ocasião.

Os amigos que ela tinha moravam no armário e voltaram, hoje, para a memória dela.


Eles são de antes das questões www, que é como a Sereia abrevia as questões básicas da existência dela, que são:

WHO am I? WHERE do I come from? WHEN do I go back? (que ela discute à exaustão com a facção Sea Scallops da família dela)

Naquela época, essas questões e a rede mundial de computadores eram um lugar que não existia...


Desses amigos do inĂ­cio da vida dela na Terra, mas que era no mar, ela se lembra que eram dois. Uma menina e um menino. E deles com ela na concha.


E se lembra vividamente dos cabelos deles. O menino era ruivo e o nome dele era Udo.


A menina tinha cabelos azuis, como os dela, sĂł que num tom mais intenso. O nome dela era TonĂŠ.


Eles tinham uma particularidade... eram invisíveis para quem não fosse a Sereia amiga deles. Mas, fora isso, eram bastante comuns.

E os três brincavam brincadeiras comuns. O Udo tinha a mais fantástica coleção de bolinhas de gude.

A Toné tinha todos os planetas da Via Láctea.

A Sereia tinha bonequinhas que eram feitas de papel e papelão à prova d’água. E eles recortavam papel pra fazer roupas pra elas. Também montavam quebra-cabeças e gostavam daqueles joguinhos de montar palavras com letras que deslizavam numa espécie de mini lousa.


Eles acordavam, almoรงavam e jantavam com a Sereia, sincronizados com a sirene da fรกbrica de cerveja que tinha no aquรกrio onda a Sereia morava.


É que, hoje, a Sereia mora naquele condomínio de gotas d’água, mas não foi sempre assim.


Antes, ela morava numa concha dentro de um aquário espelhado que ficava dentro do oceano e ela achava que o mundo era aquilo lá que a parede do aquário refletia pra dentro dele mesmo.

Depois, acabou fazendo curso de alemão e inglês na TV e viu que tinha muita coisa pra ver e aprender.

Mas, o esquema do aquário era como aquela música que fala do cotidiano, só que esse era regido pelas sirenes da cervejaria:  6 horas da manhã, xixi e hortelã  meio-dia comer feijão  6 da tarde, esperar o pai dela aparecer no portão

Se tinha sirene à meia-noite ela não sabe, porque ia dormir cedo, mas ela acha que não tinha, não. O que tinha às vezes, na noite, era o sino da igreja badalando.


A Sereia se lembra deles almoçando juntos e das horas das conversas que se propagavam no vácuo, porque e entre o feijão e o portão, brincar e assistir televisão. Assistiam Perdidos no Espaço.

Achavam o Robô muito bacana e o Dr. Smith muito sacana.


Assistiam e brincavam de Jeannie é um Gênio, também. E a

Sereia, às vezes, era o Major Healey e, às vezes, o Dr. Bellows.


A Feiticeira eles achavam meio machista... mas amavam a Tia Clara e a Endora, que tinha cabelos iguais ao do Udo.

E a Sereia curtia o estilo da prima Serena.


A Sereia só saía da concha se eles pudessem ir junto.

Eles eram inseparáveis, até onde se podia ver.


Sutis como eram, em algum momento tomaram outras formas e sumiram, engolidos pelo anonimato do armĂĄrio.

Afogados no mar de novidades que inundava cada dia mais a concha da Sereia, ocultados de todos que ensinavam a ela que a vida acontecia de verdade sĂł do lado de fora da concha.

Assumiram outros papĂŠis conforme a concha ia se tornando apertada e desinteressante. Mas nĂŁo eram mais eles mesmos.


Depois, sumiram nas vilosidades da memória dela, também.

Não compartilharam mais as descobertas e as frustrações dela e não eram mais chamados pra brincar.

Os sussurros deles, baixos demais para serem ouvidos na arrebentação.


E, assim, a vida da Sereia prosseguiu, um pouco mais vazia sem eles.

Mas nĂŁo mais leve por causa disso.


É que, às vezes, na superfície está tudo claro como num aquário.


Embora bem lรก no fundo esteja tudo meio turvo e nรฃo se enxergue com nitidez nem o que estรก a um palmo da nadadeira... Nem a Lua nem a รกgua viva.


ร que a Sereia quer ter voz ativa No prรณprio destino mandar Mas eis que chega a รกgua-viva e carrega a Sereia pra lรก.


A Sereia leva trança pé e aprende que tentar não controlar é um estilo como o da prima Serena, que ela curtia tanto... só que é um estilo mais de vida e menos de moda.

Então ela começa a pensar quando é que começou nesse estilo de controlar. De nadar contra a corrente até não poder resistir. E só na volta do barco sentir o quanto deixou de curtir.

Tem que voltar muito no tempo pra descobrir.

E isso às vezes leva tempo...


Então apela pra memória e encontra outro programa que ela assistia, que ia pra muitos lugares no tempo, mas não era o Doctor Who, que não passava lá no aquário onde ela morava no começo de tudo.

E ela entrou no túnel...


No TĂşnel do Tempo, ela nĂŁo encontrou a resposta que ela estava procurando...

Mas encontrou partes de si mesma que estavam largadas por lĂĄ e que talvez saibam responder muitas coisas.


E achou, também, não cavalos-marinhos, mas os seus amigos invisíveis.


Do jeito que eram antes de partirem para o armário e de se dissolverem na memória dela como leite em pó.

Leite que a Sereia não derruba mais no pijama.

Assustada com a sirene da cervejaria que não toca mais.


O Udo, mais contemplativo, deve ter pensado assim. A Sereia foi para o mar e eu fiquei a ver navios...


Já a Toné, mais pragmática, quando não tinha Sereia à vista, provavelmente pensou. É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar...


É que pra eles, nadar contra a corrente, é só pra exercitar. E a Sereia, que se acha sabichona, vai acabar aprendendo. Nem que tenha cãibras. Mas está constrangida com esse lapso.

E não tem certeza se eles vão aceitá-la de volta...


Ela sonha com isso.

E sonha com isso começando num balão porque é assim que os sonhos dela sempre começam.


E depois vão conversar. Ela não sabe se o Udo e a Toné ficaram nos mesmos lugares ao mesmo tempo, nem em quais dimensões. A Toné pode ter ido ser artista visual no México... ou no Novo México.


Mas a Sereia poderia jurar que Udo teria sido visto lá pelas bandas da Rússia no tempo do Malevich. Isso porque é só essa a dimensão que ela se lembra de conhecer.


Ela sonha com a ĂŠpoca quando eles brotavam das rachaduras que sempre apareciam em rejuntes antigos.


E de quando se esgueiravam pelas pregas dos tecidos perseguindo um raio de Sol.


E sonha com eles felizes fazendo festa. Fazendo festa pra ela num poema assim:

Hoje a gente homenageia a nossa amiga Sereia Pra ficar bem perto dela a Lua logo fica cheia


E a gente dança na areia e a alegria incendeia


Mas eis que chega a Ă gua-Viva e nos dĂĄ nova rasteira.


E assim vão levando... Levando rasteira ou trança pé num lance sem

Fim

até onde vista enxerga e a onda alcança ou o vento faz a curva...

nas gotas d’água e além do reto-íris.


Sereia em série... A série da Sereia “Metade o busto de uma deusa Maia Metade um grande rabo de baleia” Paralamas do Sucesso / Gilberto Gil


Sobre a autora

Claudia Schmidt, artista visual, frequentou a pintura clássica na adolescência, mas profissionalmente trilhou os caminhos da engenharia eletrônica onde se familiarizou com a criação de conteúdo via software, explorando a animação de formas geométricas e a agregação de fotos e cores. Dessa familiaridade nasceu o impulso de se manifestar artisticamente por meio dessas ferramentas.

Suas ilustrações iniciais lhe inspiraram reflexões corriqueiras que, reunidas, deram origem à Sereia e sua série. https://cschmidt303.wixsite.com/ilustras reúne o seu trabalho visual e um blog.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.