Assenhora JosĂŠ Luiz Passos
De Capuxú,
fazenda de criação na Paraíba, trouxe duas memórias de infância: um olho d’água, a terra minando água de dentro de uma pedra imensa, e um touro malhado com sua máscara preta, as narinas furadas com um aro de latão, ele correndo atrás de mim, eu menina; eram várias disparadas até que alcançasse o pulo da cerca ou fechasse a taramela. Quando esse touro morreu, as vacas urraram um dia inteiro, pavorosamente, lembro disso: a impressão que me ficou foi de um choro sincero. Dessa mistura de minerais com gado e gente vem minha cozinha; e essa foi a melhor escola.
Um gosto que me chega desse tempo é o do leite ferrado. Com o dia nascendo, meu pai levava todo mundo até os estábulos. O leite saía morno, alvíssimo, puxado de dentro da vaca. No fogão à lenha ele deitava seixos na brasa; as pedras vermelhas, jogadas em copos de estanho, queimavam o leite cru, que tomávamos com mel e matruz amassado. Por isso, associo o leite ferrado à extrema disciplina de meu pai. A disciplina é o principal motor de qualquer cozinha. Não lembro de brincar de panela, ou lembro muito pouco. Ajudar em casa, sim, sempre. É normal entre as filhas, mas querer ajudar é o que conta; e quis isso desde cedo. De duas avós, uma gorda, outra magra, chegaram receitas dos estados vizinhos, de outras fazendas, da Espanha e da Itália. Estas são as origens de fora, datam das bisavós. Já meu pai, tomou a genealogia por uma medida mais curta; não se sabe de onde veio. Batizou os filhos com nomes do Antigo Testamento. Adonai, Baruque, Joatã, Ruth e Sulamita, além do meu. Mas o sobrenome foi inventado por ele próprio. Fugia de quê? Olho para uma foto de meu pai e penso, sírio-libanês, negro,
maçom? O fato é que ainda não tenho certeza. No final da vida, após ser desenganado pelos médicos, saiu de um coma de dois meses; fez exercícios e levantou um pequeno prédio de apartamentos, em Campina Grande, onde viveu e de onde tirou a última renda. As novas gerações também se encarregaram de dilapidar isso. Concluo que, mesmo uma receita estando próxima à perfeição, poderá sempre, na prática, ser estragada por terceiros. De minha mãe, aprendi a dedicação aos outros, o trato das carnes e alguma coisa com massas batidas na pedra de casa. Ela, agora esquecida do presente, fala com os olhos voltados para o marido morto; a simplicidade de ervas, molhos e xaropes é, em minha mãe, um traço natural e difícil de imitar. Quem cozinha se dá: a oferta nunca é paga na mesma medida. Não falo mais dela por respeito, pois no estado confuso em que está, ainda acha forças para me corrigir com um sorriso que me parece alheado e, de repente, se mostra adivinha de alguma coisa aqui na rua Bom Pastor. Como pode saber, se está tão longe? Minha mãe, agora mais idosa,
quando assim for a minha vez, creio eu, nunca chegaremos a ser iguais. É que saí de casa muito nova. Diz um ditado, quem cedo sai muda por demais. E é certo. Cheguei ao Recife jovem, trabalhei para um fornecedor de cana, louro, amante da mesa e das artes; nas propriedades da família estiveram dois presidentes e vários maestros de orquestra. Não alcancei nenhum deles, mas recebi pessoas da mesma estampa: empresários que iam ao campo ou vinham à casa da cidade, enquanto ele, fornecedor, depois marido meu, se perdia aturando gente de chapéu, apenas para não ser visitado por nenhum deles, em seu leito de morte, num hospital público. Quando São Paulo passou a cana do Nordeste, minha cozinha precisou mostrar outra ciência. Primeiro foi a ruína de meu pai, criador; depois, a de meu marido, sem a renda das plantações. Mas a queda faz caldeirão de bom gosto. Tudo que o dinheiro comprou foi gasto; as receitas que melhoramos, não. O que agrada a um, agrada a mil. Que prato cabe a qual ocasião? Em que ordem a novidade merece a boca alheia? Esse aprendizado vem de longe, toma tempo, não tem fim.
Agora, aqui, o dono da casa me comprou um pedra nova, que eu precisava para bater massas e moer ervas, eu disse a ele. Ele me chama de Assenhora. É um granito escuro, e não pedrês ou alvo, como os que vêm do agreste. Com exceção dessa pedra, tudo em São Paulo é mais claro. Em São Paulo tem pelo menos uma pessoa de cada cidade do Brasil; em nenhuma outra cidade do Brasil caberiam todas essas pessoas. Assenhora vai passear neste fim de semana, êh!, o dono da casa me diz, com todo o respeito de uma perturbação. Vou ver a minha mãe, respondo. Assenhora ainda tem mãe viva, hm! Muito bem. Aos sábados e domingos eu não cozinho. No casarão da Bom Pastor eles saem para rezar, ou recebem gente próxima: dizem que o fim de semana serve para isso. O dono uma vez quis saber se eu não sentia falta das grandezas do Norte. Que norte, se não venho da Amazônia? O Brasil não cabe no Brasil, diz o filho da casa. Ramil. Respondo: uma cozinha são tantas cozinhas; como numa derrota, em que muitas outras derrotas vêm à tona. Nessas situações, eles riem, falam, sou espirituosa: nortista é assim. Mas quem
provou daquilo, de debaixo, por assim dizer, sem dúvida vai concordar comigo. Hoje, longe de minha terra, me sinto em casa, mesmo com esse cheiro de gás no ar. São Paulo afinal é sertão e aeroporto, me disse um taxista. Não discordo, mas também não venho do sertão. De viver da cozinha, vieram ideias para outros problemas; a origem é importante, mas não é tudo. Várias origens, sim: cozinho para agradar quem gosta de estar à mesa, seja quem for. Uma boa receita é sempre mais longa do que uma vida inteira de comida-rápida. E novas misturas também são um modo de se matar o tempo, conversando sobre como melhorar o que ainda pode ser melhorado. Assenhora sempre filosofa, Ramil fala, como o pai, com os olhos para o alto, rindo. Ramil é jovem. São Paulo, o Ipiranga, aqui, no casarão da Bom Pastor, vejo que começam a tomar como deles a ruína dos outros, a minha. Um pouco, pelo menos. Fecham as portas e agora falam em vender a casa. Essa seria minha última mudança. Tem gente que se acostuma com quase tudo, eu sou assim. Assenhora vai para
onde, se for isso mesmo? Quem me pergunta é Maura, copeira. Ela é jovem, ri para os lados quando Ramil lhe faz uma graça, passando a mão em seus ombros. Menina, bezerro também cabeceia, cuidado. Com as sobrancelhas grossas, escuras, tatuagens e o brinco no nariz, esse rapaz tem as marcas do touro de minha infância. Assenhora pensa em fazer o quê? Pode deixar uma berinjela recheada para o fim de semana, hm? Hoje à tardinha todos eles vão sair. É sexta-feira. Se soubessem das histórias que gosto de repassar, de cabeça, na janela, mudariam as receitas da casa, não mudariam? Passear, não gosto; ficou para trás. Mas passo o tempo comparando as coisas como elas eram antes. Quando não vem ninguém, os pedidos são mais simples. Claro que posso. O dono da casa é advogado mas não advoga, fez a vida com uma fábrica de ventiladores. Acho São Paulo mais fria do que quente. Mesmo assim todo mundo compra um ventilador, não compra? Concordo. E um prato de berinjela é fácil, não me custa o tempo de um banho. A berinjela com carne moída também faz parte dos
jantares mais demorados. E afinal a cozinha não seria a verdadeira língua universal? A pergunta não é minha, é de alguém da universidade, um freguês da casa, professor de Ramil. Assenhora não acha? E me foi feita quando entrei na sala, trazendo uma sopeira. São Paulo tem cursos sobre tudo, até para se abrir uma lata. Entrar, sair da cozinha dos outros, para quem perdeu a sua, é serviço que nos cobra certa destreza. Acho a questão interessante, essa, da língua universal: a ela respondo que é preciso não ter vergonha de onde viemos, e cozinhar com graça, da melhor maneira possível. Assenhora sabe.