A Florianópolis dos Esquecidos

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Fato&Versão REVISTA LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNISUL - PALHOÇA, NOVEMBRO DE 2015 - EDIÇÃO #25

a florianópolis dos esquecidos

A Praça X V é o esconderijo dos sobreviventes de uma cidade que desper ta quando os cid adãos normatizados da vida diurna se retiram. Matéria-prima para Edgar Allan Poe, Gay Talese, João do Rio e Eliane Brum. Fonte de inspiração para uma comunidade de 26 repór teres que renovam aqui o amor às ruas e a prática da flânerie, essa escrita andarilha dos esquecimentos.


EDITORIAL Um convite à Flânerie ou Ode do Repórter em amor à Rua Por Raquel Wandelli

Atraído pelo aspecto extraordinário da vida ordinária nas metrópoles, o flâneur busca na leitura do que está oculto, no que está por baixo do cotidiano das cidades, a matéria-prima de sua escritura. Ao ziguezaguear pelas praças, becos, estações, esconderijos urbanos, o escritor-repórter descobre a vida noturna que acorda quando a maioria dos cidadãos normatizados retorna ao conforto dos seus lares. Nascida nas vésperas da revolução francesa, a narrativa andarilha ganhou notoriedade no século XIX e início do século XX. Ela está na origem da reportagem e nunca se extinguiu de todo. “O jornalismo é a base social da flânerie”, afirma Walter Benjamin, ao mostrar que a escrita de observação das ruas tornou literatura e reportagem indissociáveis. Pelo segundo ano consecutivo, o Curso de Jornalismo da Unisul promove uma flânerie no centro da cidade, tendo no horizonte a perspectiva de torná-la um acontecimento cíclico no calendário de Florianópolis. Crônica-reportagem baseada na observação das ruas, a flânerie se caracteriza por um relato que ilumina cenários, acontecimentos, pessoas, seres, coisas e situações do cotidiano invisibilizadas pelo olhar distraído dos passantes. Personagem típico da modernidade que ama perambular pelas ruas, o flâneur surgiu com o florescimento das cidades como uma espécie de ave noturna que vai salvar a multidão ofuscada pelo excesso de signos e pelas luzes do progresso. Apesar de ter sido condenada desde o seu nascimento pela pressa, pelo individualismo e pelo taylorismo, que declarou guerra a essa espécie de ócio criativo, a flânerie ressurge em épocas de crise e mudanças de valores para dar o testemunho das sobrevivências. O que ela tece nada mais é do que o diário das mil e uma noites

Sob o véu da noite, evento dedicado à flânerie reúne estudantes de jornalismo e moradores de rua na Ágora da Praça XV


de histórias de povos singulares que resistem ao progresso e à destruição dos espaços coletivos. Dessa prática constrói-se a memória das preciosidades que estão sempre prestes a desaparecer diante dos olhos do contemporâneo. Caminhar é ver e denunciar as contradições dessa sociedade. Seus personagens preferidos não são as celebridades que vivem sob os holofotes da mídia, mas justamente os anônimos que habitam o escuro da nossa época. No dia 20 de outubro, o trabalho teve início com uma espécie de tributo à rua, ao flâneur e aos seus personagens, na Ágora da Praça XV, Centro de Florianópolis. Ali, nessa ruína arqueológica dos espaços de convívio e debate democrático da polis, a reportagem foi reavivada pelo retorno à rua. A repórter Elaine Tavares conduziu nossos alunos por um passeio em pontos significativos para a memória da cidade-jornal. Com uma intervenção poética e musical, os alunos da turma de Narrativas e Gêneros do Segundo Ciclo homenagearam os habitantes da Praça XV, seus cicerones nesse passeio pelas reminiscências da velha Florianópolis. Frases de escritores/repórteres de rua de Florianópolis, do Brasil e do mundo celebraram essa prática que nunca perde a sua potência. A referência nestes textos

aqui reunidos a autores que inspiraram sua experiência, como Walter Benjamin, Baudelaire, João do Rio, João Antônio, George Orwell, Gay Talese, Raul Caldas, Raimundo Caruso e Eliane Brum, fundamenta-se em um semestre inteiro dedicado ao estudo do jornalista andarilho. Flâneur das mais aguerridas ao trabalho de comunicação popular e de valorização de um jornalismo iluminador dos povos originários e periféricos de Florianópolis, a jornalista Elaine Tavares (IELA) falou sobre seus afetos como repórter e sobre a relação entre o jornalismo, a rua, os povos, a cidade e o olhar. Seu testemunho foi uma espécie de encorajamento aos 26 futuros profissionais que aqui deixam sua experiência com a reportagem andarilha e observadora pelo Centro de Florianópolis. Durante duas semanas, eles perambularam pelas ruas escuras, esquinas, delegacias, praças, marquises, botequins, em busca do que Edgar Allan Poe chamou de “o homem da multidão”. Tudo que aqui se lê é uma forma de dizer que dar vida ao flâneur é proclamar longa vida à reportagem.

Ver e ouvir o mundo que resiste no anonimato e revelar-se para ele: dois grandes desafios para uma equipe de repórteres


Atentos, alunos e professores demonstram o respeito aos moradores que os cercavam

Qual finalmente o sentido da experiência flâneur no terceiro milênio, quando a arte do deambulismo físico perde sua força em favor da andança virtual? Para que esse eterno retornar? Seria preciso continuar a pensar sobre o impacto que o devir-rua ainda pode exercer sobre a narrativa. Seria preciso indagar se esse organismo híbrido, meio humano, meio animal, meio máquina, portando caneta e bloco, câmera fotográfica ou de vídeo, ainda flana pelas galerias eletrônicas sua fome de multidões e de não-eu. Ou, ao contrário, se está condenado a fundir-se com a própria imagem, sem o delírio de conhecer a musa das ruas. Nas esquinas onde jornalismo e literatura cruzam os estilhaços do passado e do futuro, o jornalismo pode espiar, no gesto de se virar para trás, o ponto cego de intersecção com essa escrita de palpitação das sombras. Espiar o repórter que, flanando anoni-

mamente em meio à multidão, funda-se de vez à massa, tirando dela a narrativa também massa que pode fazer flanar pelas grandes redes. Profanar os dispositivos do ego, fazer acontecer a multidão da escrita, ali onde jornalismo e literatura se reencontram e redescobrem a saga-motor da vida, a volição de ver o que está detrás e a atitude de se deixar olhar pelo que se vê. Afirmar a reportagem em sua possibilidade de auscultar o teatro do mundo, de desarmar o jogo das engrenagens, de desnudar o mecanismo das representações e as armaduras do sujeito. E entrever nesse mistério de pássaro uma sobrevivência forte de narrador que enxerga, no escuro do contemporâneo, as faces noturnas do cotidiano dos povos. Jornalismo assim também é literatura, puro reencontro com a potência-flâneur, em cuja essência está a saga-caminhante dos homens pelo planeta, que já eram migrantes e nômades quando nem havia demarcação de territórios.

‘‘Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós”

João do Rio


EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul/Campus Pedra Branca Segundo Ciclo de Aprendizagem Narrativas e Gêneros Professoras Claudia Schaun Reis Raquel Wandelli Viviane Bevilacqua Reportagens e Fotografias Beatriz M. Wagner da Rocha Bruna Nicoletti Bruna Tomaselli Bruno Bach Albornoz Claudiany Wagner Schutz Cláudio Souza da Rosa Elio Quaresma Gabriela Meira Guilherme Martins da Cunha Ingrid Bezerra Jéssica Daussen Leidiane Sampaio Santos Maiara dos Passos Nascimento

Marcela Silva Teixeira Natalia Santos de Pinho Nathalia Soria Rafaella G. de Moraes Ricardo Toledo Thuani Regis Mendes Tiago Bento Vinícius Marinho Flausino Vitória Zardo Wellinton Skinner Farias Ysttéphani Jurak Sinhorini Foto da Capa Bruno Bach Albornoz Foto da Contracapa Tiago Bento Capa da Revista Bruno Bach Albornoz Coordenação de Editoração Vinícius Marinho Flausino Agradecimentos Paulo Henrique de Abreu

comunicaunisul.com.br editorial@comunicaunisul.com.br


A sabedoria que vem da rua População em situação de rua que habita o centro de Florianópolis fala de sua saudade, receio, conta histórias e mostra seu conhecimento Por Marcela Silva Teixeira

Os passos, quase todos sempre acelerados, se intercalam com as buzinas intermitentes. Ao final do dia, a luz natural vai se apagando. Aos poucos, o badalar do sino na igreja denuncia a chegada da noite. De frente para a catedral, a figueira irradia sua iluminação esverdeada que dá morada aos que não são vistos durante a correria diária no centro de Florianópolis. Ou, simplesmente, são ignorados. Invisibilizados. A Praça XV é a casa dos sem casa. O lar nem tão doce, mas que abriga a todos. Quando a lua toma conta do céu, a praça se torna palco dos talentos anônimos. Como exclamam seus jovens moradores: “A rua tem muito talentos!”. Aglomerados perto da figueira, um grupo de estrangeiros treina malabares. Com idades variadas entre 18 e 30 anos, suas nacionalidades também se divergem. O paraguaio, colombiano, uruguaio e os argentinos decoravam a praça com os seus treinamentos antes de seguirem para a sinaleira. Apesar de todos terem feito longas viagens, nenhum pretendia se fixar em Florianópolis. “Somos viajantes, ficamos na rua porque é mais barato, e o nosso dinheiro é pouco. Mas somos viajantes”, afirma o argentino Franco, o

rei do malabares. Dos seus poucos pertences, um deles, talvez o mais importante, é o mapa de Santa Catarina, do qual se orgulha ao abrir e mostrar quais lugares já havia visitado e quais eram os próximos da lista. Percorrendo cidades e países de ônibus ou caronas, o colombiano se destacava pela posse de um meio de locomoção diferente: a bicicleta. Sempre pesada, com muitas mochilas, ela está sendo a sua maior parceira nas viagens dentro do

“Nunca tive laços familiares tão fortes quanto com os meus parceiros da rua” Brasil. Para quem já veio do Nordeste até Santa Catarina pedalando, como ele, não vai ser tão complicado realizar seu sonho de retornar à Colômbia sob duas rodas. Já na sinaleira, o show estava prestes a começar. Só bastava a luz verde dar lugar à vermelha. A despeito de terem treinado por horas e serem artistas profissionais, quanto mais malabarismo fazem, menos janelas se abrem.

Conforme a luz do semáforo se alterna e dá passagem para os carros seguirem, os estrangeiros retornam para a calçada sem sucesso. Um show sem plateia. Um espetáculo onde, na hora de efetuar o pagamento, o vidro da bilheteria não se abre. Foi aproximadamente meia hora entre sinal vermelho, calçada, sinal verde, rua, malabares, carros, vidros fechados, sinal vermelho, calçada... Na volta para a praça, Franco e seus companheiros encontram o amigo Marcelo, 41 anos. Nascido em Cascavel, no Paraná, o sotaque gaúcho revela que morou grande parte da vida no Rio Grande do Sul. “A realidade da rua não me assusta tanto, já convivi com coisa muito pior”, diz relembrando o passado. A mãe entrou no mundo da prostituição para conseguir sustentar os filhos. Mais tarde, faleceu de câncer, mesma doença que levou embora também o pai e a tia. Com seis anos, o paranaense começou a engraxar sapatos para ajudar em casa e sentiu, desde cedo, a dor do preconceito. “O que mais doía era andar na rua e, ao me verem, as pessoas segurarem forte suas bolsas e pertences. E eu só tinha seis anos; tu imagina como é isso agora então”. Com 12 anos, virou padeiro, mas nunca trabalhou de carteira assinada. Quando sua filha fez 11 anos, todos os salgadinhos da festa de aniversário foram feitos por ele. Mas não pôde


comparecer, pois estava brigado com a família. Essa mesma filha tem hoje 23 anos e há 12 Marcelo não a vê. A saudade se materializa em uma foto dentro da carteira, onde a menina aos três anos de idade, sorri para o pai que tirou a foto. Duas tatuagens paradoxais mostram faces distintas de sua personalidade: de um lado do braço uma tatuagem dedicada à filha e, do outro lado, os dizeres “Que se Dane a Lei”. Em suas passagens pela polícia e audiências presenciadas, surgiu um desejo: ser advogado. “Só tenho até a quarta série. Claro que não é impossível, mas assim fica difícil cursar direito. Mas gosto muito de ler, livro espírita principalmente, sabe?” O semblante entristece ao falar da sonhada profissão. “Já fiz coisa errada na vida, mas não faço mais. Deus perdoa tudo. Em uma audiência, falei para a juíza: posso te fazer uma pergunta? Tu já viu uma criança passando fome? Chorando de fome? As pessoas costumam julgar sem nunca ter sentido na pele o que é vivenciar uma cena dessas.”

Marcelo divide um sentimento comum entre os moradores de rua, o companheirismo. Podem até mexer com ele, mas não mexam com seus amigos. “Morando na rua foi que conheci minha família de verdade. Nunca tive laços familiares tão fortes quanto com os meus parceiros da rua”, confirma Jonatan, 24 anos. “A gente não tem nada. Mas quando consegue, tipo um pão, a gente divide entre todos. A gente se ajuda, é parceiro. Ninguém ganha nada sozinho aqui. Porque não somos monstros, moramos na rua, só”, completa Marcelo. Essa irmandade ficou muito clara no momento em que a praça se esvaziou. Assim que um deles soube que estavam servindo comida perto do antigo terminal de ônibus, começou a espalhar a notícia para os outros. Cada um foi passando a informação para que todos na praça e arredores soubessem. Quando questionado sobre sua alimentação na rua, Marcelo menciona a importância do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o

POP. “Não consigo entender como alguém ainda tem coragem de reclamar da comida de lá; se não fosse ela não sei o que faria”. No POP, a população em situação de rua consegue tomar café da manhã, almoçar e, no final da tarde, fazer um último lanche, além de poder tomar banho e lavar as roupas. A varanda do Centro dá lugar aos mais variados hobbies durante o dia. As distrações vão desde jogos de cartas, leitura de livros e criação de artes, até jogar conversa fora. A possibilidade de poder usar o telefone para fazer ligações a conhecidos e familiares também faz brilhar os olhos dos que guardam um coração cheio de saudade. Na hora das refeições, os que passam despercebidos durante todo o dia se transformam em pessoas com nome e sobrenome. São chamadas pelo microfone para

Crédito: Marcela Teixeira

No Centro POP, pessoas em situação de rua, se reúnem todas as tardes para leitura e jogos


pegar suas fichas e se direcionar ao refeitório. Numa conversa sobre o preconceito sofrido pelos usuários do centro, Mariana De Oliveira, estudante de serviço social e estagiária no POP, descreve: “Tudo teu o seu lado bom e o lado ruim, trabalhar aqui é a mesma coisa. É igual na faculdade, no trabalho, em qualquer lugar, sempre tem as pessoas boas e aquelas más”. As cores neutras do ambiente se mesclavam com o colorido das roupas secando no varal. Fica evidente na fala desses habitantes da praça a resistência contra o preconceito. A rua é muito rica para prejulgamentos. Caveira, amigo de Jonatan, sustenta a ideia da rua como aprendizado: “Tu nunca vai aprender tanto na vida quanto aprende morando na rua; cada dia é um novo aprendizado”. Valdeci, 43 anos, nascido na serra catarinense, mostra o conhecimento de quem mora na rua há mais tempo: “O que importa de verdade, minha jovem, é o tamanho do coração da pessoa. A alma dela. Mas que a sabedoria vem da rua, ela vem, sim!”. José Jenielson, 21 anos, afirma que todos guardam incríveis histórias, mas ninguém para contar ou sequer ouvir. “Mesmo que o mundo de vocês seja diferente do nosso mundo, ainda assim existem semelhanças entre a vida na rua e a vida fora dela”, argumenta Cíntia, namorada de José. Maranhão, aproximadamente 25 anos, ao ouvir a amiga, deixa uma questão no ar: “Mas Cíntia, não vivemos no mesmo mundo que eles?”

O Observador O incrível mestre da reportagem, Gay Talese, retrata em sua obra Fama e Anonimato o lado oculto da cidade de Nova York e a vida das pessoas desconhecidas. Com uma riqueza imensurável de detalhes, o livro, caracterizado como jornalismo literário, conta a narrativa dos invisíveis nas grandes cidades, os quais são ofuscados pelos “olhos de vidro”- como ele próprio define- da sociedade. São esses mesmos olhares que não conseguem enxergar a rua como extensão de suas casas e, especialmente, como morada das histórias, cenários e personagens mais fascinantes. O grande admirador daqueles que nunca são vistos e ouvidos consegue prender a atenção de todos durante a leitura de sua obra. Sendo um verdadeiro flâneur, Talese se interessa pelas pessoas do dia a dia, seus verdadeiros protagonistas. A rua se torna palco para a realidade do cotidiano, seus momentos e ações, perceptíveis somente a aquele observador que está atento às particularidades. A rua passa a ser o seu lar e seu porto seguro. No contexto atual que nos encontramos, fazer esse movimento de flânerie, parar e observar a nossa volta, as pessoas e os lugares, está se tornando cada vez mais importante e necessário. São nesses momentos que as inúmeras realidades, que antes passavam despercebidas, são nota-

Crédito: Marcela Teixeira

das e analisadas. Essa atividade, além de trazer grandes emoções e novas interpretações, nos aproxima do jornalismo. Afinal, como já dizia Walter Benjamin, a base social do flâneur é o jornalismo. Fama e Anonimato é um trabalho fundamentado em uma profunda reflexão e apreciação das ruas e dos seus elementos. Não sendo somente um

“As coisas dessa cidade passam despercebidas” tipo de escrita, mas um estilo de vida, a flânerie manifesta a característica de abrilhantar os mais diversos acontecimentos, pessoas e cenários. O flâneur possui um papel muito importante de trocar esses olhos de vidro por olhares sensíveis e de interesse no novo, no próximo. O autor procura, principalmente, por temas e espaços rotineiros. O amor pela noite também é uma característica muito marcante, pois é quando todos voltam para suas casas que a magia nas ruas acontece. A escrita é assinada juntamente com a literatura, fato que torna a obra muito mais rica.

Artista uruguaio, novo morador da Praça XV, aperfeiçoa as técnicas de artesanato: viver nas ruas é ser eternamente estrangeiro


Crédito: Guilherme Martins

“O que importa de verdade, minha jovem, é o tamanho do coração da pessoa. A alma dela.”

A Mágica das Ruas A possibilidade de contato com algo novo é sempre repleta de surpresas. O coração bate mais forte e se mistura com uma variedade de sentimentos. A dúvida do que está por vir se confunde com a ansiedade pelas descobertas. Na vivência no centro de Florianópolis não foi diferente. Surpreendidos, logo no primeiro dia, com a intensa participação dos habitantes da Praça XV em nossa abertura do trabalho, nós, estudantes, nos tranquilizamos ao perceber que o objetivo de nossa ocupação no local estava sendo compreendida. Uma compreensão que estava prestes a ir além de qualquer reportagem ou barreira

social. Atrás do rótulo de morador de rua, existem pessoas com profissões, histórias, sentimentos e superações. E, então, isso iria ser contado. Médicos, escritores, viajantes, cantores e artistas. A rua está repleta de talentos. As narrativas de vida, além de impressionantes, despertavam sempre reflexões. Eram pensamentos e perguntas que eu me fazia durante os dias vividos ao lado deles. Dias de aprendizados. Com a pouca idade que possuíam, já haviam experienciado mais do que eu talvez consiga a minha vida inteira. Adquirir sua confiança foi um passo essencial. Demonstrar que o trabalho estava

sendo feito para, principalmente, dar-lhes voz fez total diferença. As falas traziam sempre o sentido de resistência ao preconceito que sofrem diariamente. “A mídia costuma impor essa ideia de morador de rua. Generalizam todos, como se fôssemos todos iguais e marginais” relata Marcelo, 41 anos. Ouvir tantas histórias, presenciar inúmeros cenários e descobrir os mais variados personagens foi uma imensa oportunidade profissional, acadêmica e social. Os dias junto com os que residem na Praça XV foram memórias que serão guardadas ao lado de todas as reflexões e pensamentos.


A desbravadora do sul da América Por meio de caronas e com determinação, a jovem argentina de 24 anos cruza o Brasil

Por Wellinton S. Farias

Agosto de 2015. No clima semi-árido da Patagônia argentina, Liliana San Martin, uma desbravadora de 24 anos, prepara sua próxima aventura. Sem um rumo específico ou muita preocupação com as adversidades, ela une seu espírito viajante aos poucos trocados que leva com suas roupas. Liliana é estudante universitária de Educação Física na cidade de Bariloche. Natural de Cipolletti, na província de Rio Negro, vive com seu pai e três irmãos. Após tomar um ônibus até Buenos Aires, Liliana aceita a primeira carona. A próxima parada seria Foz do Iguaçu, no Brasil. A peregrinação, com certa dificuldade é amenizada graças à bondade daqueles que cruzam seu caminho. Caronas a levaram até Balneário Camboriú, onde conseguiu um espaço cedido para ficar algumas noites. Em suas andanças pela cidade, Liliana conheceu um catador de latas recicláveis, também argentino, que aparentava ter uns oitenta anos. Sua experiência de vida e força para o trabalho a motivaram ainda mais. Ela comenta: - Ver que um conterrâneo meu, já numa idade avançada, luta para sobreviver aqui no Brasil me chamou muito

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a atenção. Passei um dia com ele catando latinhas e me senti revigorada de espírito, ele era realmente muito sábio. Além de tudo me senti mais perto de casa, já que compartilhamos do mesmo idioma e país. Continuando sua trajetória, o acaso a deixou em Florianópolis, mais precisamente na praia da Armação. Liliana se recorda de já ter ouvido falar neste belo recanto, mas comenta que não imaginava ser um lugar tão atraente. Tendo criado uma certa empatia com o viajante que lhe ofereceu carona, ela acampou com ele na orla da praia por cinco dias. Já conhecendo as belezas da Ilha da Magia e desejando ficar mais tempo, Liliana comenta: - Já sem dinheiro e há vários dias longe de casa precisei ir ao centro. Eu só consegui ganhar dinheiro para o ônibus. Pensei em fazer malabarismos de rua e, por sorte, aprendi em uma semana com uma garota que conheci numa sinaleira. Além dos trocados ganhos com os malabarismos, são as sobras dos restaurantes que a mantêm. Dormindo nos bancos da Praça XV ela, unindo força e delicadeza, suaviza a rotina dura dos amigos da rua que lhe ensinam um pouco de português. -Não achei tão difícil aprender português, mas ainda que eu entenda quase tudo o que me dizem eu não consigo falar muito bem.

Crédito: Tiago Bento

Corajosa, Liliana já conheceu a Bolívia, o Paraguai e a região sul do Brasil: “na Praça XV sou protegida e acolhida pelos companheiros”


- Esta não é minha primeira aventura; já fui a Bolívia no ano passado. Aqui na Praça XV sou protegida e acolhida pelos companheiros de rotina, pois como sou mulher, aventuras assim se tornam um pouco mais difíceis. Até hoje nunca passei por nenhuma situação ruim que envolvesse minha integridade física, incrivelmente só tem cruzado pessoas

boas pelo meu caminho. Liliana presume seu retorno à Argentina para breve, embora não goste de planejar nada. É por meio de redes sociais que ela manda notícias aos familiares, dependendo da ajuda das pessoas que emprestam o telefone celular para que ela envie mensagens. A saudade dos familiares e amigos são a única coisa que a pren-

dem a algum lugar. Com muitos sorrisos para distribuir e uma admirável disposição para viver a vida, ela nos ensina que o errado é não arriscar. Como ela mesmo diz: - Há um mundo grande para se descobrir e eu tenho uma única vida para conhecê-lo.

Eliane Brum A vida que ninguém vê Por Bruna Tomaselli e Wellinton S. Farias

Eliane Brum e seu estilo único e surpreendente de escrever. Em seu livro “A vida que ninguém vê” que conta 21 de suas melhores histórias já feitas. São fatos tão simples vividos por pessoas tão comuns que jamais virariam uma pauta jornalística, e somente alguém com coragem foi capaz de transformar essas maravilhosas “notícias” em um livro de histórias encantadoras. É através dessas histórias, que se pode perceber no decorrer do livro, como há pessoas e lugares impercebíveis, não apenas nos acontecimentos que a autora conta, mas fazendo ligação com o dia a dia de qualquer um. Quem nunca caminhou do trabalho até em casa sem olhar por onde estava? Por esses e outros motivos, o livro de Eliane Brum é caracterizado como

flanêur. Mais especificamente falando, um flanêur é aquele que flana pela cidade, em busca de acontecimentos inéditos, para conhecer aquilo que talvez nunca será conhecido ou reconhecido. Flanêur é aquele que sente a cidade e as pessoas que nela estão. A flânerie nos proporciona um olhar mais humano e um pensar mais autocrítico. Assim dizemos porque toda vez em que tentamos compreender a singularidade no meio da multidão se percebe que podemos tornar especial histórias e personagens que jamais pensaríamos desvendar. A nobreza do desamparado ou os mistérios da rua amadurecem nosso conhecimento sobre o mundo, e sobre como o enredo que cruza nossas vidas e diferentes histórias eleva o espírito.

Eliane Brum ao escrever “A vida que ninguém vê” vai ás ruas de sua cidade, Porto Alegre, para trazer á tona fatos incríveis de pessoas impercebíveis, ora pela história do homem que fica na sinaleira e todo mundo o conhece como “Sapo” ou contando sobre funeral de uma criança, cuja família não tinha dinheiro para pagar seu caixão, como ela mesmo fala, “A morte de Pobre”. São passagens que você se comove durante a leitura, ora chora ora ri, e se identifica com a leitura, pelo simples fato de também não perceber incríveis histórias que se passam durante o seu dia a dia. Como diz Eliane Brum: “É que as piores deformações são as invisíveis.”

No contrafluxo da multidão Na companhia do entardecer nublado na capital, eu e meus colegas, ouvimos boas histórias que até então passavam despercebidas entre a multidão. Sem saber exatamente o que esperar ou como seria esse contato com as ruas, partimos em busca do

surpreendente, e encontramos. Em meio ao fluxo de idas e vindas do centro da cidade, encontrei Liliana, uma jovem argentina que desbrava a América do Sul praticamente sem dinheiro, mas com muita simpatia e coragem. Sua última andança lhe permitiu

conhecer as cataratas do Iguaçu, as belas praias de Balneário Camboriú e finalmente a Ilha da Magia. O que mais me chamou a atenção em nossa hermana foi a despreocupação com o amanhã e a incrível facilidade para viver intensamente.

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A prisão do relógio e a liberdade das ruas Mesmo estando à mercê dos desafios diários, a rua também traz a tranquilidade de não se estar refém do tempo

Por Vinícius Marinho Flausino

“Eu penso grande, lá na frente, eu vou conseguir!” Encontrei Rodrigo, morador da ponte Colombo Salles, de Florianópolis, procurando algo nas lixeiras do terminal rodoviário Rita Maria. Vindo de Porto Alegre, o homem de 35 anos, que há doze decidiu morar sozinho na Ilha da Magia, caminhava incessantemente de lixeira em lixeira procurando algo que, pelo visto, não encontrava. Sentou. Pegou as poucas latas de tinta que tinha, quase vazias, e começou a escrever num azulejo, usando os dedos como pincel. O toque caprichoso no objeto delineava formas que me aguçavam a imaginação: o que estaria desenhando?

Fiquei de longe observando, quieto, até que não consegui resistir. Com o olhar de quem virou a noite, ele nem se deu conta de que me aproximei. A confiança foi facilmente adquirida. Educado e gentil, nem precisei perguntar-lhe sobre sua vida: ele foi logo puxando conversa. Atento ao trabalho encomendado, não olhava para nada ao redor a não ser o azulejo branco, que ganhava escritos em preto. “Passou um cara aqui querendo dar um presente pra mulher dele”, disse. E aí começou a escrever a seguinte frase: “Mesmo que eu falasse a língua dos homens, que eu falasse a língua dos anjos, sem amor nada seria.” Logo o rapaz chegou para pagar a encomenda e levá-la à esposa, mas Rodrigo, que não tinha estipulado um va-

Crédito: Vinícius Marinho Flausino

Perto de onde dorme, Rodrigo observa o movimento das pessoas

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lor para o produto, questionou-o: “Só isso? Cara, isso é só pro azulejo que eu arrumei.” O dinheiro foi pago, o assunto morreu e o jovem levou o presente. Não demorou muito e Rodrigo foi abordado por um guarda do terminal: “Ei, você não pode vender nada aqui! Desculpe, mas a gente é cobrado disso.” A situação foi o suficiente para que ele lembrasse de um caso acontecido alguns anos atrás. “Uma vez vim pra cá e vendi bem rápido pra ninguém me ver. Quando a mulher me deu dois reais, levei um soco de um guarda”, contou. Depois disso, não se recorda de quanto tempo se passou até retornar à rodoviária. Disse que muitos moradores de rua já vivenciaram situações semelhantes, pois não é permitido comercializar


qualquer coisa dentro do terminal. “Sei que não posso vender aqui; só vim por causa da chuva”, respondeu, ao ser questionado pelo guarda. Outro dia, no Centro, um homem se aproximou de mansinho. Envergonhado e com pavor nítido nos olhos, disse: “Por favor, queria muito um trocado pra comprar alguma coisa pra comer. Cheguei ontem e tive a pior sensação da vida. É muito ruim dormir na rua.” Sentou-se ao meu lado e foi logo dizendo: “Vim de Criciúma, briguei com a mulher e deixei ela e a minha filhinha de dois anos e meio.” As mãos trêmulas denunciavam a ansiedade do novo morador da Praça XV. Rápido como um flash, saiu em busca da única preocupação do momento: achar algum lugar onde pudesse saciar sua fome. Nem sempre a rejeição da sociedade é responsável pela realidade em que vive grande parte dos moradores de rua. Os motivos são os mais diversos e inesperados, como mostram essas situações. Escolher as ruas acaba sendo a alternativa quando as pressões da família parecem insuportáveis, quando a droga já não os deixa viverem como “pessoas normais” ou quando as desilusões se tornam fortes demais a ponto de a desistência do ciclo social ser a única saída para solucionar os problemas. “Não gosto de prédios, gosto do mato.

Aí descobri que sou gente-bicho”, sentencia uma moradora que pediu para não ser identificada. Ela foi chegando como quem não queria nada, durante um momento de conversa dos colegas da turma na ágora da Praça XV. Aproximou-se de onde estávamos, sentouse e ficou observando. Depois de um tempo, tirou uma maçã da mochila abarrotada e começou a comer silenciosamente. A curiosidade aumentava: enquanto terminava sua refeição, olhava para as pessoas, como se as analisasse, até que me acheguei e começamos uma longa e empolgante conversa. Por problemas na família, decidiu morar sozinha em outro canto de São Paulo. A fuga começou a partir da maconha, que a levou para longe das frustrações. Ela afirma que a droga não a completa, pois a solidão persiste mesmo quando a utiliza. “Ainda que eu conheça algumas pessoas aqui, me sinto sozinha. É triste viver só”, diz. Os dois meses que já passou em Florianópolis não fez com que se adaptasse à rotina da cidade barulhenta: ainda não se sente parte do lugar. Contou que “são tantos desencantos que todos os encantos perdem seu valor”. Nesses momentos, a filosofia também faz parte do dia e se torna a sua outra fuga. Em meio à correria, as pessoas passam com os olhos vidrados nos celula-

res ou não se apercebem dos que vagam pelo Centro. Mas quando escurece, o comportamento muda: passam alertas a tudo, reparando cada movimento, cada olhar. O medo de ser assaltado, de ser assediado ou agredido torna-se nítido nos rostos que passam correndo pela Praça XV à noite, ainda assombrados pelo pensamento comum de que os moradores são perigosos, vivem drogados e estão ali porque não querem fazer nada. Muitos são vítimas do enlouquecimento das metrópoles, mas outros preferem estar na rua porque se sentem livres nesse ponto de encontro de culturas e saberes que a maioria desconhece. E mesmo com tantas dificuldades enfrentadas por quem abdica de um teto, a rua ainda é o que há de mais belo na vida dessas pessoas. É a rua que proporciona o sentimento de completude, de liberdade, de escolher o que fazer a cada dia sem preocupações com horários. A rua torna-se a morada contínua, o lugar onde se deseja estar ou de todas as formas sair, como Rodrigo, que tenta deixar a rua, mas permanece aguardando por compaixão: “Estou à espera do amor, do amor ao próximo.”

Viver nas ruas vai muito além de abdicar-se Ao caminhar pela cidade de Florianópolis, muita coisa encanta. As ruas com suas construções históricas, suas grandes e longas figueiras, a tradição impressa em cada canto. Mas o lugar também é palco de outras belezas da alma: as histórias. A noite cai e o centro começa a ficar vazio. Enquanto grande parte das pessoas está saindo do trabalho e chegando em casa, outras, ganham vida na escuridão solitária da noite. É o que acontece com a Praça XV, ponto de encontro de culturas e saberes

distintos. Não só ponto de encontro, mas de chegada, de moradia. Nela palpitam as mais interessantes histórias, à espera para serem ouvidas por aqueles que se desafiam a atravessar a linha da exclusão. Deambular por esses caminhos é uma experiência um tanto quanto surreal. Encontrando pessoas de diversas origens, percebi que para eles, a rua não é o pior lugar para se viver. O pior é a prisão frenética aos aparelhos eletrônicos, a escravidão à um trabalho indesejado e a falta de amor. Vis-

tos muitas vezes como perigosos e drogados, os moradores noturnos da Praça XV trazem a lição de que para viver bem não se precisa estar preso ao capitalismo, aos bens materiais. A amizade, o companheirismo, a liberdade e a humildade tornam a vida mais bonita e agradável. Estar na rua não significa abdicar-se de viver; apenas desprender-se das coisas passageiras e efêmeras desse mundo. Afinal, diz a musa das ruas, para viver basta estar vivo.

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A beleza é do outro Abrindo mão da dependência ao dinheiro, das facilidades e da comodidade de se escrever sobre o que não se vê em uma redação, o flâneur busca na rua a completude da sua alma andarilha. É nesse caminhar ambulante, sem rumo e pautas prontas que a flânerie acontece. Sua essência é olhar para o invisível, a fim de buscar a inspiração necessária que não vem de um simples olhar, mas de uma completa imersão no que é o outro. Como Raimundo e Mariléia Caruso, al-

“O flâneur busca na rua a completude da sua alma andarilha” guns de nossos flâneurs modernos que não têm filiação a partidos ou instituições e que fazem seu trabalho autonomamente. Ao longo dos seis meses percorridos pelo litoral nordestino, eles reuniram em Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste, relatos de jangadeiros, historiadores, geógrafos, entre outros profissionais que fizeram parte da construção desse livro que resgata a história dos mais fantásticos personagens brasileiros. Os autores abrem mão da sua voz em favor da

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voz dos personagens, que contam suas histórias livremente, a partir da enunciação de uma primeira pessoa que não é a do repórter, mas a hibridização do eu do narrador com a pessoa do entrevistado. Ou seja, o eu da narrativa pertence ao outro. A interessante vida desses bravos lutadores torna-se um acontecimento histórico através da intensa pesquisa, que, nas andanças pelo litoral, foi sendo construída. O espírito andarilho do flâneur também é político. Revela o que esta oculto ou por baixo dos panos o que muitos desejam que se esqueça. Caruso reaviva a própria memória dos pescadores nordestinos, ando a importância de suas histórias e conquistas que ajudaram o país a crescer. Em meio às dificuldades e perigos ao mar, esses homens tornaram-se fortes e corajosos. É nessa busca pelo que diz o outro que se encontra a flânerie, pro-

porcionando experiências profundas que vão além de mera contação de história, mas buscam a troca, a completude do eu no outro. Raimundo e Mariléia Caruso pesquisam, percorrem, se esvaem. Com amor às histórias e aos que estão à margem de interesses, os repórteres estão sempre reacendendo e reavivando acontecimentos importantes que tendem a desaparecer. Como os moradores de rua de Florianópolis, que tornam-se invisíveis aos olhos de quem passa sem enxergar além de si mesmo. Histórias marcantes circundam cada um dos personagens que se encontram pelo Centro, que trazem experiências de vida, chocam, dão lições de humanidade e amor. E a flânerie caminha ao seu lado, pois são o seu maior combustível. As histórias do outro constituem o saber-flâneur, onde nada mais importa relatar a não ser a beleza, essa que é do outro.

Crédito: Vinícius Marinho Flausino

Trabalho concluído nas mãos do artista dos azuleijos


Em cada rosto há uma história Num passeio observador pelas ruas do centro da capital, descobre-se extraordinárias histórias escondidas no anonimato.

Por Maiara Passos

O vaivém das pessoas no entardecer de uma quarta-feira no centro de Florianópolis expõe uma situação muito comum: todos que transitam a passos rápidos pelas ruas estão preocupados com seus afazeres e, como descreveu Gay Talese na série de reportagens sobre Nova York, em Fama e anonimato, parecem andar com “olhos de vidro” que nada visualizam. As despedidas, a empolgação entre duas crianças que saboreiam seus algodões-doces e encontros inesperados passam batido. Nem a moça que fala ao telefone enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto, nem o cão que caminha junto ao dono, muito menos os vendedores de artesanato que tentam fazer as últimas vendas do dia chamam a atenção. E as senhoras que jogam conversa fora nos bancos do

mercado fazem parte dessa mobília urbana invisível. A rua acolhe diariamente em seus paralelepípedos, marquises, viadutos e praças muitos episódios que se desenrolam sem expectadores. Bermuda com estampas coloridas, uma camiseta bege, um boné e um chinelo compõem o vestuário de Jonas, mas, o que chama a atenção nesse ilhéu vai muito além do que ele veste. Por trás do olhar desconfiado e da expressão marrenta, há um rio de generosidade. Na rua Marechal Guilherme, sob a marquise do prédio antigo da Previdência Social, Jonas conta que não mora em sua casa, localizada no Continente, logo após a Ponte Hercílio Luz. Ele relata que tem uma relação difícil com a mãe. Inquieto, sem dormir há dois dias e com um com-

Crédito: Maiara Passos

Por volta de 18 horas, todos caminham rumo ao conforto das suas casas

portamento visivelmente alterado por alguma droga química cujo nome substância prefere não revelar, ele conversa com o amigo Éder. Ambos são íntimos daquela que apresentou um ao outro: a rua. Anoitece, e fica fácil perceber a diferença entre a rua do dia e a da noite. O trânsito de carros e de pessoas diminui aos poucos. Luzes começam a acender ao longo das avenidas e praças. Um pequeno grupo de adolescentes divide uma garrafa de vinho suave enquanto caminha pela Praça da Alfândega. O vendedor de cachorro quente conversa com seu cliente enquanto prepara o pedido de uma forma bem mais desacelerada que quando iniciou as vendas, às 12 horas. A dona da banca de jornal encerra o expediente. O próximo dia, como todos os outros, exigirá empenho para desligar o despertador e encarar a madrugada vazia do centro. Duas caixinhas iguais de uma conhecida marca de chocolate revelam por baixo de suas tampas transparentes, que o conteúdo original já foi substituído por outro. Com alguns relances se percebe um tom amarelado. Mesmo assim, é difícil saber o que contêm, pois as mãos que a protegem não

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param de gesticular durante a animada conversa na frente do prédio público que durante a noite serve de abrigo aos que preferem ou precisam estar na rua. No meio de toda a desabitada e silenciosa parte central da Florianópolis noturna há um barulho feliz. São sons que se misturam: da conversa animada, de copos, de botecos. Um pequeno pedaço da cidade de décadas atrás ainda preservam sua identidade. Estudantes, hippies, escritores, prostitutas, travestis, compositores, bêbados, jogadores de xadrez e figuras conhecidas do carnaval da Ilha se misturam sem barreiras ou preconceitos. Os bares têm traços rústicos que remetem a outra época. As lajotas da calçada formam notas musicais e o trajeto é proibido aos carros. Na esquina, o prédio da UFSC é utilizado pelo Instituto Arco Íris com oficinas de diversas atividades culturais. Enfim, a revitalização desse espaço plural, chamado Travessa Ratcliff com menos de 50 metros, devolveu vida ao centro de Florianópolis.

Jonas convida seu amigo e juntos descem pelas ruas em sentido à Praça XV. Cumprimenta uns e outros no caminho enquanto afirma que precisa ser corajoso para encarar a vida que leva. “Já morei em outras capitais, mas as pessoas são muito ruins para quem mora na rua. Aqui eu durmo, lá não dava; numa dessas de dormir tu poderias nem acordar”, fala enquanto faz um malabarismo com

‘‘Numa dessas de dormir tu poderias nem acordar” as caixinhas do produto misterioso. Em pleno outubro, faz uma temperatura mais baixa e cai uma garoa fina, dessas que prometem durar a noite inteira. Em um dos bancos da praça, um homem parece dormir sem nem se importar que está ficando com a roupa molhada. Marcelo, que também mora na rua, comenta que em Curitiba não dá para dormir tranquilo assim. “Há

pessoas que põem fogo na gente, são ruins, acham que incomodamos, sei lá”. Nesses grupos que vivem à margem da correria do dia a dia de uma capital, a solidariedade e a nobreza do ser humano surpreendem em pequenas atitudes. Mesmo após presenciar tanta crueldade contra quem vive nas ruas, Marcelo ainda acredita nas pessoas. “Há cinco anos um senhor vem aqui toda madrugada e traz café para nós, simplesmente porque quer, se sente bem fazendo isso. Sem esperar nada em troca. Isso é gente”. Ao chegar à Praça XV, Jonas abre um sorriso quando avista seus conhecidos. Antes mesmo dos cumprimentos com abraços e gracejos entre os companheiros, solta uma pergunta: “quem quer bolo?” A euforia toma conta do ambiente. O visitante abre as caixinhas para compartilhar com seus amigos o presente. Os pedaços já estão cortados em pequenos quadrados e o cheiro que exala quase revela seu sabor. A massinha amarela com uma calda cremosa de chocolate faz sucesso entre os participantes. Em questão de minutos não sobra nada. Um dos presenteados, com sua fatia de bolo na mão, apenas avisa: “Vou até ali pegar um café pra ficar melhor”.

Crédito: Maiara Passos

Tomabada pelo patrimônio histórico municipal, a Travessa Ratclif é peça fundamental no Centro da cidade

As histórias estão à procura de quem ultrapassa o óbvio Ao mergulhar nessa reportagem, o que mais chamou minha atenção, certamente, foram a generosidade e o companheirismo entre os que vivem nas ruas. Por opção ou necessidade, a

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rua abriga e se torna cúmplice de suas histórias, sejam elas quais forem. Compartilham suas roupas, suas comidas, assim como cigarros e bebidas. Talvez no verão um vá para cada lado da cidade, do estado ou do país, mas os registros e

marcas ficam nos bancos da praça ou por onde passam. Que eu me permita quebrar quaisquer barreiras levantadas por pré-conceitos e nunca perca a sensibilidade de ter o prazer em ouvir as histórias espalhadas pelas ruas do mundo.


Um trabalho inspirado no observador da modernidade Uma cidade é recheada de histórias. Elas acontecem diariamente em todos os cantos. Esbarramos em desconhecidos pelas ruas, durante esses agitados dias e noites, o tempo todo. Mesmo assim, criamos barreiras invisíveis em todos os níveis, de escala social, cultural ou gênero e deixamos de perceber que sempre há uma biografia, uma experiência, uma alegria, uma imagem, uma razão, algo que pode ser compartilhado e agregado ao nosso processo de aprendizagem. Estudantes de jornalismo despertam seus olhares para o outro. Entre as sombras das árvores e o brilho das luzes na noite de Florianópolis escondem-se muitas histórias. Há gritos silenciosos que clamam diariamente por um pouco de tempo, de atenção, de ouvidos, de um olhar frente aos milhares que passam por seus espaços. Um resgate do gesto mais genuíno do Jornalismo inspirou o projeto dessa reportagem coletiva. Sem pauta, sem horário e sem restrição de tamanho, o trabalho apostou no inesperado, na ampliação do campo de visão e no aguçar da percepção do repórter para o que encontra pelo seu caminho. Walter Benjamin (1892 – 1940), sociólogo, filósofo, ensaísta e autor do ensaio “O flâneur”, foi o grande teórico desse escritor-repórter observador da modernidade. Flanar vem do francês e significa vagar ou passear pela cidade, sem roteiros, sem a limitação de perguntas ou respostas pré-definidas. Ao se propor à tarefa de trabalhar em meio à multidão, o repórter sente o que acontece, ou seja, não apenas anda, mas observa e investiga. Segundo o filósofo, a flânerie é a base social do jornalismo. Esse trabalho foi um resgate desse modo de reportar as histórias que acontecem por baixo do cotidiano sem serem percebidas,

fazendo das ruas o seu escritório itinerante, como em Benjamin: “A rua se torna moradia para o flâneur, que entre as fachadas dos prédios sentese em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente”.

Ao exercitar essa prática em meio ao mundo moderno movido pela tecnologia, no qual não se olha mais nos olhos, não se aprende nada com o outro e o individualismo sobressai, o flâneur traz à tona uma reflexão sobre o que realmente vale a pena mostrar. Ele faz aflorar a ideia que o repórter deve sair de si para imergir no mundo da narrativa que vai contar e tornar-se a ponte do leitor para o outro.

“Muros são a escrivaninha onde apoia o bloco; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente”

Walter Benjamin, o sociólogo observador da modernidade

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O talento que vive as ruas de Florianópolis A vida nas ruas e o olhar de quem vive nela, a felicidade pode ser encontrada nos menores detalhes

Por Leidiane Sampaio Santos

Poderia ter sido só mais uma, como muitas outras vezes que passo pela Praça XV, Centro de Florianópolis, mas dessa vez era para ser diferente. Tínhamos um propósito: sair às ruas e flanar, conhecer pessoas, histórias, o cotidiano das ruas. Estávamos dispostos a ouvi-las e olhar para elas de uma forma diferente, despidos de preconceitos e suposições. A chuva caía fraca, mas de repente deu uma trégua e com ela desabaram choros e risos. O barulho dos carros que passavam ao redor da praça não foram suficientes para calar as pessoas que vivem ali e que nos receberam de forma acolhedora. Foi uma noite emocionante, de

compartilhar experiências, de aprender com o outro. Enquanto um dos moradores falava, outro levantou-se e interrompeu afirmando: “Já penso que as pessoas colocam rótulo em nós”. A firmeza do rapaz ao defender seu ponto de vista me chamou a atenção. Era José Jenielson. G, como prefere ser chamado, dispensa apresentações. Ouvilo é a melhor forma de conhecê-lo: “Eu não sei quem sou; eu só sei que eu vivo, respiro, tenho sonhos igual a todo mundo e quero algo de melhor pra mim e pra minha familia”, disse. Natural de Senharó, em Pernambuco, divide uma casa com o amigo Gabriel (Lúcifer), no Morro da Queimada, localizado na região central da cidade.

Apesar disso prefere passar as noites na rua, onde, segundo ele, é mais feliz. “Eu ainda gosto da rua, criei um apego muito grande porque eu moro há quatro anos na rua, em Floripa, mas minha caminhada é maior. Quando você mora na rua, é como se ela se tornasse sua casa”. Aos 21 anos, G passou por várias cidades. Já morou em São Paulo e Itajaí, saiu da cidade natal devido à vida que levava. Estávamos no meio da praça quando G teve um diálogo com a própria consciência: “Eu era um drogado, usava cocaína, pegava as coisas de casa pra vender ou passar a noite na rua, três, quatro dias, cheirando e fazendo essas merdas todas, até que eu parei num canto e pen-

Crédito: Tiago Bento

Em um mundo onde poucos são capazes de sorrir, ele encontra razões para viver

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sei, conversando comigo mesmo: Você não tá fazendo bem, isso não tá legal, você tá destruindo a tua própria familia, para com isso. - Mas como é que eu vou parar? - Não tem como parar, então, se afaste. - Mas pra onde que eu vou, o quê que eu vou fazer, como eu vou viver? - Aprendendo, sobrevivendo, foi o que eu fiz”. Veio para Florianópolis em busca de emprego, trabalhou como segurança, mas a dificuldade de encontrar lugar para dormir durante o dia o fez largar a função. Seu primeiro passo nas ruas foi procurar um albergue, no qual passou uma noite, mas não se sentiu acolhido. Foi quando soube que existia um lugar que dava apoio, onde poderia comer, tomar banho e fazer ligações para a família. Até hoje ele frequenta o Centro POP, localizado na Passarela Nego Quirido, que oferece auxílio a pessoas em situação de rua. Empenhado em

“Gosto de respeito e de ser respeitado e adoro a família que eu tenho, aquela que criei na rua” largar a droga, G começou a tomar atitudes e a construir uma vida diferente: “Aprendi a me virar a partir desse momento. Se eu continuasse na droga, na rua, eu ia pra uma coisa bem pior que era o crack, uma coisa que não quero pra ninguém. Comecei a ter respeito por mim mesmo, comecei a cuidar do meu corpo, parei com as drogas, não uso nada há mais de três anos. O único vício que tenho é cigarro, e a bebi-

da, consumo controladamente”. Com os olhos brilhando e a praça agora silenciada, ele conta o motivo de ter mudado sua vida, sua rotina e de ter se jogado no mundo: “Um dia a minha mãe me disse: ‘Se você sair de casa, aprende a ser um homem, não um trombadinha, um coisa ruim. Faça o bem, não roube, não mate, não sequestre, não use drogas, seja um menino de verdade’. Isso pesou na minha consciência e como eu sempre gostei de rap, escutei uma música que me deixou mais sentido ainda, que foi a letra da Facção Central, Desculpa Mãe. Essa música pesou a minha mente, fez meu subconsciente ficar pesado, mais sentido, foi onde fui melhorando, por etapa, a cada dia, criando forças, vontade. Nenhuma mãe merece sofrer”. A sábia conselheira materna hoje não está muito longe, mas ele justifica a escolha das ruas justamente para não lhe causar mais sofrimento. Pergunto o que sente ao falar da mãe e ele começa a falar num ritmo frenético: - Falta eu não sinto, porque a gente nasceu pra viver longe ou perto, saudades a gente tem, a emoção de querer rever também é bom ter, mas eu sou um pouco meio pedra, eu gosto de aprender as coisas sozinho, viver sozinho, nem que seja pra sofrer ou na felicidade, mas assim eu vou tá aprendendo com meu próprio erro e assim eu posso mostrar pra minha familia quem eu sou de verdade. Falo com a minha mãe todos os dias. Isso mata um pouco a saudade dela. Eu já sumi várias vezes de perto da minha mãe sem dar notícia nenhuma, eu prefiro tá aqui e ela lá, sabendo que eu tô bem e ela tá bem, do que tá lá e fazendo mal pra minha própria familia pra depois eu me afastar. Então eu prefiro já me afastar sem fazer o mal. Além da mãe, G tem outros amores: rap, poesia, xadrez, whisky e tatuagens pelo corpo todo, feitas pelo amigo Gabriel. “Quem é feio quando faz tatuagem fica bonito”, diz sorrindo. Embora brincalhão se considera irritante, talvez, segundo ele mesmo, pelo

fato de interromper a fala dos outros, cutucar, arrancar risos e caras feias, que se desmancham em um instante. Dos amigos que criou na rua, mantém por Gabriel um afeto de irmão. Por ele G é capaz de fazer muitas coisas. “Gosto de respeito e de ser respeitado e adoro a familia que eu tenho, aquela que criei na rua”.

“Eu não sei quem sou; eu só sei que eu vivo, respiro, tenho sonhos igual a todo mundo” Talvez a maior demonstração de carinho pelo amigo tenha sido no momento em que poucos seriam capazes de agir com tamanha solidariedade. Gabriel estava doente, cerca de 40º de febre e delirava no meio da praça. Muitos passaram pelo local, onde ele incessantemente chamava por G, que ao vê-lo jogou-o nas costas e correu para o hospital Governador Celso Ramos. Foi uma caminhada longa, mas próximo ao local um taxista se sensibilizou com o esforço para salvar o amigo e lhe ofereceu uma carona. A princípio dispensou a ajuda, mas acabou aceitando. No hospital encaminhou-o ao atendimento e deu por comprovado o apreço pelo amigo. Nas ruas essa história ganhou fama. Basta perguntar a qualquer conhecido para ouvi-lo contar a bravura da mesma forma. G diz que não se preocupa muito com a vida e com o momento que está passando. Quer curtir a juventu-

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de, mas não julga aqueles que pensam de forma diferente e tentam se adaptar à realidade. “Eu tô vendo alguns serviços, tô vendo se volto a trabalhar de segurança, uns bicos de carga e descarga por aí”, diz. Em vários momentos ele fala de Deus e Jesus, demonstrando devoção. Foi evangélico e frequentou a Igreja quando criança, mas o mundo o fez se afastar. “Não acredito no ser humano quando fala de Deus, porque o ser humano é muito corrupto. Eu tenho minha fé; acredito em uma coisa boa, como todo mundo crê sem ver”. Um dos seus grandes sonhos nasceu após ver a ponte

Hercílio Luz pela televisão: morar em Florianópolis. Depois de realizá-lo, já tem outro: “Tenho sonho de morar em Nova York, mas primeiro quero rodar o Brasil, nem que isso demore a minha vida inteira, porque sonho não tem fronteira e nem limite”. Sentado sob uma garoa fria embaixo da Figueira, G se manteve sorridente, falando ao mesmo tempo com várias pessoas, sempre assim, comunicativo e atencioso. Por um momento lembro a minha vida e ouso perguntar se ele é feliz. Fiquei apreensiva com o retorno. Fitei-o nos olhos e ele me respondeu quase de imediato. “Felicidade é uma coisa inexplicável, tem gente que é feliz bebendo, tem gente que é feliz com a familia, eu sou feliz no meu mundo. Criei um mundo cheio de possibilidades. Quando eu morrer quero uma

estátua minha aqui na praça, vai tá escrito: ‘Aqui esteve o pior de todos os peregrinos’. Sou feliz como sou, onde eu vivo, com o que eu faço, com quem eu ando. Conheço gente nova todo dia, aqui eu vivo momentos únicos”. Naquele dia G estava resfriado, com tosse durante toda a noite. Soube que ele passou três dias muito mal, mas se recusou a sair das ruas e ficar longe dos amigos. Disse que quando chove aproveita para pensar. Foi durante uma noite de chuva que presenciei uma atitude reveladora do caráter do meu entrevistado. Após se despedir, ainda com fortes sintomas de gripe, saiu sob o chuvisco, pegou sua jaqueta e a ofereceu à Cintia, a namorada, antes de se dirigirem ao local onde passariam mais uma noite de suas vidas.

Crédito: Leidiane Sampaio

O silêncio das ruas revela uma outra cidade

Diante do invisível Final de tarde, nos encontramos em frente à Catedral no Centro de Florianópolis, estávamos ansiosos e apreensivos para começar a vivência. Atravessamos a rua e nos posicionamos na ágora da Praça XV, ali as professoras deram início à flânerie, por mim muito aguardada. A partir do momento que elas começaram a falar, os moradores foram se aproximando e conquistamos a atenção e participação

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de muitos, dividimos conhecimento e ouvimos histórias. O momento foi marcado por emoções, rimos e choramos, naquele instante todos eram iguais, esquecemos o preconceito, as suposições e interagimos. Fomos recebidos da melhor forma que poderíamos ser, sem barreiras. Conhecemos pessoas incríveis, histórias tristes e de superação, mas acima de tudo pesssoas, que não moram na rua, elas vivem a rua. Fui preparada para tudo, sem-

pre tive a curiosidade de conhecer e ouvir essas pessoas, mas nunca tive coragem ou talvez apenas não soubesse como fazer isso. Naquele dia, tudo fluiu, não tínhamos nada combinado, e isso foi o melhor, estávamos desarmados e abertos a novas experiências. Olhamos para o Centro da cidade sob um outro ponto de vista, daquele que realmente habita e convive todos os dias, em um lugar onde muitos estão só de passagem.


A repórter flâneur e o olhar para o outro Flanar. Muitos autores entendem como vagar vadio e preguiçoso. O flâneur vai às ruas, cria um vínculo intenso com o outro, com a vida social. Se preocupa com o cotidiano, vai em busca das histórias, dos conflitos da realidade. Ao mesmo tempo em que esses autores fazem parte da história, dedicam parte dele para narrar a vida de outras pessoas, pois sua atenção está voltada para os personagens da rua. O olhar para o outro é uma das principais características da flânerie. O flâneur entende o ser humano de um outro ponto de vista, percebe seus sentimentos, privações, tem um envolvimento incomum com o narrador. A visão do todo e o detalhe caracterizam a flânerie. Típica jornalista flâneur, Eliane Brum é conhecida pelo seu modo de reportagem. Em seu dia a dia ela prefere conhecer normalmente as pessoas que não são percebidas pela sociedade, consideradas por ela mesma como “pessoas invisíveis”. No livro “O olho da rua”, Eliane traz ao final de cada capítulo depoimentos sobre suas dificuldades e percepções enquanto jornalista. Em um deles diz: “Eu acredito que, nas ruas do mundo, o grande desafio é olhar pra ver. E olhar para ver é perceber o invisível - ou deliberadamente colocado nas sombras.” Eliane não mede esforços para fazer uma reportagem, ela vai aonde seu personagem estiver. Detalhista, se envolve no ambiente onde se encontra e valoriza a linguagem do entrevistado. Procura ambientar o leitor por meio da descrição de cenários, de características físicas, gestos e sensações. É facilmente considerada uma inspiração para futuros profissionais. Elia-

ne diz que não costuma fazer muitas perguntas a seus entrevistados e acha que a reportagem se desenrola melhor dessa forma. Durante a flânerie procurei lembrar da Eliane e de como ela se comportaria em algumas situções, fui sem preconceitos e disposta a me surpreender. Não foi difícil, logo me encantei pela vida das ruas. Pelas pessoas e suas histórias. Andei pelo Centro da cidade sem me preocupar com o tempo. Assim como ela, evitei fazer perguntas em excesso e procurei ouvir meu entrevistado. Deixei que ele

falasse e se mostrasse para mim. Eliane procura não invadir o espaço do personagem, permitindo que ele se revele. Utiliza-se das percepções para construir uma narrativa. Nasce daí uma relação que vai muito além da que se estabelece em uma simples reportagem entre entrevistador e fonte. Ela cria um vínculo como ser humano. Vai aonde a história estiver e a torna visível.

Crédito: Lilo Clareto

A repórter que vai às ruas em busca da realidade

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Sob a luz de Orwell A realidade de George Orwell está viva nas ruas de Florianópolis

Por Bruno Bach Albornoz

Não foi minha intenção. Parecer chato, usar a ausência para ser um destaque. Não seguir pela mesma linha que o resto do grupo do qual faço parte foi uma decisão minha e conto o porquê. Não fui ao primeiro encontro, que serviria de inspiração e contato inicial com o estilo de reportagem que fora colocado em pauta. Acredito não ser o único a não fazer o depósito de fé, mas fiz minha parte, indo por apenas três dias nos encontros, com o intuito de vivenciar o proposto, a flanerie. O insight da pauta veio alguns dias antes: falar com taxistas era a melhor opção.

Neles eu poderia encontrar histórias únicas, já que o número de pessoas que passam pelo banco de cada táxi deve resultar em alguns causos ao longo dos anos na profissão. Conversar e relatar a vida de moradores de rua não basta para mim. Não excluo a figura desses personagens do cenário que é o Centro de Florianópolis, mas também não deposito fé em relatar o mesmo pelos olhos de quem nele o faz de sua casa. Nos relatos de George Orwell, escritor e jornalista inglês que viveu por anos como um vagabundo pelas terras inglesas e francesas, vê-se uma realidade romantizada. Toda sua trajetória nas ruas parece ser parte de

Crédito: Bruno Bach Albornoz

O mendigo que mantem a reputação à base da ameaça

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uma história inventada, por mais que seja o que Orwell passara por anos a fio para então escrever três obras e diversos artigos. Cheguei a conversar com moradores de rua, mas isto apenas no fim, em situações que eu mesmo não planejei. O grupo se reuniu no Terminal Rita Maria, a rodoviária da capital. Florianópolis estava em clima de chuva, sem trégua, mas a sensação de ar abafado continuava. Todos foram atrás de seus personagens e eu fiquei parado. O gancho da matéria seria o taxista que passou pela ponte Hercílio Luz, aquela mesma que ainda continua desativada desde 23 de abril de 1991. Bastaria qualquer


taxista com pouco mais de 25 anos de profissão, provavelmente ja teria transitado nela. Conversei com um taxista que me apresentou ao grupo e depois ao mais velho deles. Puxei papo, mas ao ouvir a palavra ‘jornalismo’. me ignorou completamente. Mais tarde percebi que o ignorar faz parte da rua, desde que a rua é rua. Eu estava ali para o contrário, notar. Na Inglaterra, na França, no Brasil. Não importa qual seja o lugar, a rua mantém seu aspecto. Pessoas que não se olham, não sabem que formam um conjunto. O que Edgar Allan Poe mostrou em O Homem da Multidão, Orwell detalhou, focando na camada mais pobre da cidade. As rua é um lugar de todos e ao mesmo tempo o lugar de um só. Ninguém fica parado e se coloca no lugar do outro, porque ninguém se importa. Essa é a realidade, que não parece mudar depois de décadas. Os poucos que param, ou que se colocam na pele, são casos de estudo, ou melhor, de obras. Não é à toa que Eric Blair morreu para dar vida à George Orwell. Sem rumo e com a pauta de lado, segui com o grupo para a Praça XV, um dos pontos históricos da capital. Todos desciam as ruas, mas tomei o caminho contrário. Talvez porque dentro da Praça XV os moradores de rua se encontram e se de dia a praça parece um ambiente estranho aos prédios, como uma fortaleza de mundo próprio, à noite sua imagem cresce ainda mais. As histórias de grandes ratos que habitam o interior das árvores e que já chegaram invadir cofres de bancos é possivel, bem possivel. Sob suspeita destes e dos moradores de ruas, sua grande maioria sob o efeito de drogas e ansiando por dinheiro, não me convenço a passar por dentro da praça nem à luz do dia. Ganhei a companhia de dois colegas e seguimos para outros lados, de olhos abertos para tudo.

É o olhar romancista dos relatos que atrai o leitor. Aquele que admira o feito mas que não o faria. Poucos são aqueles que passariam fome, frio, desolação e muito mais coisas que eu mesmo não posso descrever, pois não passei. Tratei a leitura de “Como morrem os pobres e outros ensaios “ com fascínio. Aquele mesmo George Orwell que li em Revolução dos Bichos agora me surpreendeu com os relatos de um vagabundo. Mais uma vez ele mostra que a história humana pode ser conhecida por meio de outros olhares. A crítica social que Orwell faz em todos os seus livros e ensaios não parece ter sido escrita por um mesmo homem, que antes era policial e se deixou despertar o jornalista, crítico como deve ser em sua natureza. Me dei conta mais tarde de que não tive nenhum esforço para conhecer essas histórias. O jor-

‘‘Não é à toa que Eric Blair morreu para dar vida à George Orwell” nalismo é consequência da fome pelo saber, basta parar e ouvir para se dar conta que a fome não acaba com o tempo, ela aumenta. Após caminharmos por diversas ruas fomos ao Mercado Público. A construção, de 1889, é um marco do comércio da Ilha de Santa Catarina e sua recente restauração fez reviver sua cor amarela e o ar boêmio nos fins de tarde e noites. Garçons ficam à porta, mostrando cardápios convidativos. Aceitamos o convite e acompanhados de uma bebida gelada, vieram histórias de vida, entre elas a de João, 20 anos, rapaz

de porte pequeno e falante. O papo surgiu sem expectativas. O recém empregado garçom completava naquele dia uma semana de emprego. Ele estivera em Dublin, na Irlanda, por um ano. Trabalhava doze horas por dia e comparecia, não tanto quanto deveria, em um curso de inglês. O cansaço derrubava o ânimo e por isso ficou com presença abaixo do necessário para retornar para o intercâmbio, mas nutre esperanças de voltar. Ele se mudara a pouco menos de um mês para Florianópolis, e até então gostava da cidade, e o trabalho puxado no bar foi o que conseguiu. Já o dono e fundador do estabelecimento, Renato, está no mesmo ponto há 28 anos. Conseguiu se manter mesmo depois da reorganização do Mercado. Pouco falante mas amistoso, Renato me conta que figuras como Zeca Pagodinho e Paralamas do Sucesso já estiveram em seu bar. No segundo dia me peguei em uma conversa com um morador de rua, acompanhado de meus dois colegas, no Largo da Alfândega, em meio a uma batalha de rap e nuvens de cigarros suspeitos. José, 47 anos e mãos grossas, contou sua história por mais de uma hora, sem interrupções. Fugiu de sua cidade natal por ameaça de morte. A família de sua ex mulher não aceitava que ele fosse negro e pobre. Já foi preso por crimes que nem quis falar. Falou a respeito de como descobriu uma filha. “Ela me contou que foi prostituta em vários lugares, e que falando com os clientes, descobriu onde o pai dela tava”. Depois do choque, José conta que aceitou a filha mas não manteve mais contato. A necessidade pela

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bebida se potencializou com o caso. “Entre a cachaça e a forca, eu escolhi a cachaça”. E em meio a essa encruzilhada uma segunda figura apareceu. A boca torta, os olhos fixos nos meus e o andar cambaleante denunciavam um vício. Nada surpreendente. Cabelo, apelido de Alexandre, nos abordou com a história de que já sofrera uma tentativa de decapitação por outros moradores de rua, na Praça XV, mas revidou com duas facas em um dos dois agressores.

Mostrou uma caderneta de dentista, com a última consulta feita há dois dias. Quando pedimos uma foto sua, o ar mudou. Sua fala era pausada, para nos convencer de que com ele o perigo era real. “Se eu ver minha foto em qualquer jornal, caço vocês até o inferno”. Comicamente, ele não nos caçaria até a faculdade, pois em Palhoça estava jurado de morte pelo Comando. Fui para praça para anunciar que meu trabalho estava feito. Ao chegar lá, fui tentado a ficar um pouco mais ao ouvir a fala de um morador. Marcelo falava sobe O Centro de Referência Especiali-

Crédito: Bruno Bach Albornoz

A mesma luz continua a mostrar o oculto

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zado de Assistência Social para População em Situação de Rua, ou brevemente, Centro Pop. Lá, os sem-teto podem tomar um banho, recebem café e pão para se alimentar e podem lavar suas roupas. Na Inglaterra do século XX, eles podiam ao menos passar uma noite. George Orwell relata o tratamento que recebia nos albergues do Império Britânico. A situação continua a mesma, salvo o café, que lá, era o chá, e a presença das assistentes sociais. Um nome mais apresentável foi dado, e só. As críticas de Orwell não ficaram em 1930. Elas são eternas.


Quando a poesia transforma a vida Dos sons às letras, jovem vende seus poemas de bar em bar

Por Ysttéphani Jurak Sinhorini

Crédito: Ysttéphani Jurak Snhorini

A Travessa Ratclif reavivou a vida noturna do centro, oferecendo um ponto de encontro e descontração, onde se toma uma cerveja ao final do dia ou ao final de semana e onde os boêmios se estendem até mais tarde na sua peregrinação de bar em bar. Passando de mesa em mesa, um jovem vende pequenos livros com poesias de sua autoria em troca de qualquer moeda. Aproximei-me dele querendo saber sobre sua vida. Ele não revela seu nome, nem assina seus poemas. Mas no twitter assina como Jony Mazoni. Tem 33 anos, nasceu em Belo Horizonte, mas foi criado em Santos. Antes de fazer poesia, experimentou de tudo um pouco como profissão: “TrabaO pequeno livro de poesia de Jony traz reflexões sobre liberdade, felicidade e o amor lhei com muitas coisas na rua, desde capinar lote – cobrando barato, pois não sabia cobrar –, até limpar vidro sozinho”. Jony revela que já usou de bit que tu fizer com a boca eu condo Subway”. Chegou a conquistar uma clien- tudo, “desde maconha até pedra, me- sigo fazer no lf Studio, eu entro em qualquer estúdio, qualquer mesa, tela para a qual limpava vidros, mas nos heroína”. Antes de vir morar em Florianó- sem medo”. Jony lembrou que gaentão descobriu a poesia e passou a gostar cada vez mais de escrever. polis, ele se voltou aos sons. “Eu era nhava dinheiro com trabalhos “Isso me ajudou a compor melhor músico, trabalhava com música e vi- nessa área, mas parou depois porque eu tinha um vocabulário via disso, tive inclusive uma banda”. Já que se apaixonou. “Comecei a morou em Santos, na Nova Zelândia, gostar de uma guria e me enmuito fraco”, contou. Ele relata que, junto à sua família, na Argentina e em muitos lugares, treguei totalmente a esse amor, que desde 2010 me persegue. Ela vivia em condições financeiras razo- conta. Estudou até o primeiro ano do é uma pessoa muito especial”. áveis, mas sempre se manteve afastado, pois usava drogas dentro de casa ensino médio, mas se considera for- Apesar disso ele se lembra dela e o seu pai não sabia lidar com a situ- mado em música: “Sei fazer traba- com muito carinho e vive por ação. “Eu não gostava de usar droga lhos em estúdio; qualquer platafor- aí transmitindo seus senticom ninguém, gostava de usar droga ma digital hoje eu domino, qualquer mentos em palavras.

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Ver realidade de uma forma diferente No ensaio “A pequena história da fotografia”, Walter Benjamin fala sobre a forma como a imagem foi banalizada e sobre as pessoas perderem a habilidade de analisar uma fotografia. Conforme Benjamin, “a Natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar”. Da mesma forma, tirar uma fotografia não é o mesmo que vivenciar um momento e poder observá-lo. Podemos comparar isso com a vida das pessoas que moram nas ruas, pois desapegadas de uma rotina, elas veem a vida de uma forma diferente. A vida de Jony, por exemplo, tomou outro rumo a partir do momento em que conheceu a poesia, pois seu vocabulário ficou mais amplo e cheio de novas palavras. A forma como as pessoas que vivem na rua são vistas pela mídia é diferente da forma como elas veem. Por exemplo, elas podem ver uma imagem em algum jornal ou televi-

são que tenham acesso, sobre como são vistos, mas eles veem isso de outra forma. “Cada um de nós pode observar que uma imagem, uma escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na realidade”, afirma Benjamin. Independente da origem, raça e costumes das pessoas, elas tem que se

acostumar com a forma como são vistas, ou a forma como ela é mostrada, pois existem muitos rótulos. Muitas vezes são vistas de uma forma, mas nem sabem de sua história e de como foram parar onde estão. “Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos”.

Crédito: Ysttéphani Jurak Snhorini

A vida de Jony tomou outro rumo depois que conheceu a poesia

Expectativas para o desconhecido Antes de chegar à Praça XV, no dia 20, onde iria acontecer a nossa frânerie, fiquei um pouco apreensiva de como seria o desenrolar de tudo. Estaríamos na casa dos moradores e poderiam não gostar disso e acabar nos mandando embora, mas não foi bem assim que tudo ocorreu. Os alunos se apresentaram, fazendo performances: par-

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te da turma declamou trechos de textos literários de jornalistas que escreveram sobre personagens anônimos das cidades e, outra, por música composta pelos estudantes em homenagem à vida nas ruas. Os moradores, que já estavam próximos, interagiram com a gente; um deles, chamado G, até fez um rap inspirado pelo acontecimento da noite. Depois disso, fomos conhecer os espaços de

convívio no centro e conversamos com alguns passantes e habitantes da praça. A praça tem muitas árvores, cães. Durante o dia é muito movimentada; muitas pessoas passam com por ali, alguns fazem dali seu lugar para ter suas refeições, para dormir. Chega o fim do dia e tudo muda a praça ganha vida, os que não eram muito vistos de dia, passam a ser de noite.


Aglomerado de histórias Quando a alma da cidade se torna lar e os amigos de rua tornam-se família

Por Rafaella G. de Moraes

Passos largos e olhares fixos. As pessoas não possuem mais tempo, correm contra o relógio e entre a multidão. Nunca saberemos todos os segredos que as assombram, ou a história mais romântica que ocorrera em suas vidas. O narrador de Allan Poe, em O homem da multidão, já afirmara, “há certos segredos que não consentem ser ditos”. Fazia um mês ou mais que chovia sem parar, graciosamente o sol tímido havia aparecido naquele dia enquanto eu estava chegando no centro de Florianópolis. Fui para a Praça XV de Novembro, a mais tradicional da cidade. Em dias como esse, muitos senhores reúnem-se no local para ler o jornal e jogar conversa fora. Sentei em um banco próximo à centenária Figueira, uma grande árvore onde escoras ainda sustentam seus galhos. Há rumores de que a árvore nasceu em 1871, em frente à Catedral, mas teria sido replantada para o centro da praça em 1891. Como tudo na Ilha da Magia, a Figueira é repleta de superstições. Quer atrair casamento ou dinheiro? Dê algumas voltas ao redor dela, diz a sabedoria popular. A variedade do centro de Florianópolis exige um olhar sutil integrado com o ouvido apurado para o som que vai desde barulhos insuportáveis de buzinas até graciosas canções. São vendedores ambulantes, trabalhadores engravatados, índios, moradores de rua, pessoas que passeiam e encantam-se com as peculiaridades da cidade...

Com a chegada da noite, a multidão desaparecia e as luzes da praça começavam a ser acesas. Muitos moradores de rua estavam nas proximidades, qual seria o principal motivo dessas pessoas permanecerem ao relento, no coração da cidade? Resolvi achar a resposta dessa pertinente questão. Surpreendentemente, muitos moradores de rua estão ali por

opção. Carregam um passado que não transparece. Fui em direção de um jovem que chamara minha atenção devido ao seu estilo: roupas largas, tatuagens coloridas, alargador e um gorro na cabeça. Não aparentava ser da rua, e realmente não era, mas já foi. Ga-

Crédito: Rafaella G. de Moraes

A chuva na praça XV também era de gente. A movimentação constante fazia com que não houvesse espaço para

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briel, 21 anos de idade. Saiu de casa aos 16, pois sua mãe se casou com um novo homem com quem ele não simpatizava. A princípio, era apenas um susto que daria em sua mãe, na esperança de que ela procurasse por ele. A expectativa não se tornou realidade. Gabriel morou na Praça XV durante dois anos, mas não vive mais na rua. Seu sonho é abrir um estúdio de tatuagem que está montando em parceria com um amigo. Contou que quando morava na rua não tinha como guardar de forma segura os pertences ou sempre mantêlos junto consigo, então dividia uma mala com seu melhor amigo, o G, e normalmente a mantinham em esconderijos. Certo dia deixaram os pertences atrás de uma árvore e foram roubados. Perderam equipamentos para a realização de tatuagens, roupas e até os essenciais perfumes que dividiam. Essenciais, porque como disse o amigo “Sem perfume não dá para ficar, não. A gente pode até estar sujo, mas fedido nunca”, brinca G. Não há calada da noite para um flâneur. Segui adiante e deparei-me com uma jovem garota: cabelo curto e escuro, baixa estatura, olhos saltados e um sorriso pertinente. Trocamos algumas palavras, mas foi o suficiente para descobrir um pouco a respeito dela. Argentina de 22 anos, decidiu que gostaria de conhecer o Brasil; oportunamente conheceu uma pessoa que viria para o país e pegou uma carona. Gostou do jeitinho brasileiro e resolveu permanecer. É uma amante da rua. Não a julgo, a rua em algumas ocasiões é realmente envolvente. Questionei: “Você tem contato com seus pais?”. Ela sorri. “Não,

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não tenho celular”. O dia havia chegado ao fim e, conforme a tradição, terminou na Travessa Ratcliff. Rua estreita, composta por lajotas e bons bares. Na terça-feira não há música ao vivo, mas não há problema, pois o som baixinho nos bares, assim como o barulho das conversas e a chuva que começava a cair compunham o fundo musical. Vinte e um de outubro, segundo dia de flânerie. A chuva era forte, o dia havia escurecido cedo devido ao mal tempo, fazendo com que a Praça XV ficasse mais vazia do que o comum. Insistente, peguei minha sombrinha e fui flânar.

“A gente só ama uma vez na vida, é impossível amar mais de uma vez” Conheci então Marcelo, um extaxista, nascido em 13 de novembro de 1977, que foi casado com Valéria. Desde que ele se divorciou está na rua, onde diz ter se refugiado porque a mulher tinha muito ciúmes dele, mas conta que ainda não a esqueceu: “A gente só ama uma vez na vida; é impossível amar mais de uma vez”. E o Jonathan, que mora na rua há três anos, veio de Caxias do Sul. Já estudou Medicina, mas somente porque o pai dele obrigara. Adorava ir para a balada e assim gastava muito dinheiro. Mas o local dele é nas ruas, e foi na de Florianópolis que se encontro. Meu destino inicial seria o Mercado Público, que eu não havia visitado após a reforma. O Mercado Público foi construído em 1898, substituindo o local de um antigo mercado com 45 anos, que foi demolido em 1896. Lojinhas, peixarias, bares, em-

pórios, loja de artigo de pesca, entre outros estabelecimentos fazem parte desse ambiente. Em 2005, um grande incêndio destruiu completamente uma das partes do mercado, que foi reconstruído e modernizado. Em julho de 2015, foi finalizada uma nova reforma e restauração, que é um dos principais pontos turísticos da cidade e encontra-se sempre movimentado. Não há dúvida que os trabalhadores que habitam o Mercado Público são extremamente simpáticos. “Tenha um bom dia” e “Olá, seja bem-vinda”, eram frases frequentes. Aliás, devo dizer que o cheiro presente é o característico de peixe. O vaivém de pessoas, murmurinhos e guardachuvas se batendo faziam parte do cenário ao redor do mercado. O local agora era outro, Rodoviária de Florianópolis. Entrei e fui observar. Muita gente e muita mala. As cadeiras mais movimentadas certamente eram as que possuíam tomadas. Ouço uma conversa paralela que me encanta: “Olha, eu não tinha nem 10 centavos para comprar a passagem. Fui na prefeitura e eles me deram uma. Quero voltar para minha terra; aqui é difícil conseguir emprego. Graças a Deus tenho uma casa lá! Nunca morei na rua, não. Quando a gente não tem emprego, pega um terreno e vai capinar! Graças a Deus”. Cheguei mais perto na possibilidade de me enturmar e conversar com ele. “Mas agora tenho que ir, já deu o horário do meu ônibus.” E o senhor que aparentemente deveria ter uns 50 anos, de bigode e barriga farta levanta e vai em direção ao embarque. Florianópolis, a cidade repleta de lendas, também possui um coração cheio de histórias marcantes e segredos que nunca serão descobertos nem por mim e nem por ninguém que ouse arriscar. Afinal, Immanuel Kant já dizia “Mesmo a mulher mais sincera esconde algum segredo no fundo do seu coração”.


Autor e aprendiz: escritas andarilhas Foi muito bem dito, a respeito de um certo livro alemão, que ‘er lasst sich nicht lesen’ — ele não se deixa ler. Há certos segredos que não se deixam contar. Homens morrem toda noite em suas camas, torcendo as mãos de fantasmagóricos confessores e fitando-os lamentosamente nos olhos — morrem com desespero no coração e convulsões na garganta, por causa do horror de mistérios que não aceitam ser revelados. (O Homem da Multidão, Edgar Allan Poe) A correria de um homem na alma de uma cidade foi minha maior inspiração para a realização da flânerie no Centro de Florianópolis. Apesar do conto de Poe se passar no começo do século XIX, em Londres, durante a expansão dos centros urbanos, nossas experiências têm muitas semelhanças, começando pelo fato de se passar no meio de um centro movimentando. Abordar as pessoas sem nenhum contato anterior faz com que os segredos sejam mais difíceis ainda de serem revelados, como afirma o narrador ao final de O Homem da Multidão.

“A definição dos léxicos nos mostra é que as multidões não possuem tempo” Multidão, segundo o dicionário, é um “conjunto de pessoas de um mesmo território, nação etc.; agrupamento, aglomeração”. Mas o que a definição dos léxicos não mostra é que as multidões não possuem tempo. Elas correm contra o relógio com seus segredos e vidas armazenados sem compartilhá-los: passam horas em um mesmo lugar sem trocar uma única palavra. Assim como no século XIX, multidão, solidão e modernidade continuam sendo as palavras chaves no ano de 2015... Passamos diariamente por muitas pessoas com as quais nos “refregamos” nos lugares públicos, como dizia Baudelaire, sem nos dirigirmos a elas ou sabermos seus nomes, suas histórias, ou trocarmos um simples bom dia. O homem da multidão está sempre rodeado de pessoas, embora sinta, paradoxalmente, o mal da solidão. Isso talvez explique porque as pessoas que vivem na Praça XV sentem-se confortáveis ali, onde há o movimento fugidio das ruas: elas têm fome de multidão.

Da teoria às ruas Tudo que eu sabia sobre flânerie vinha de livros e aulas. Tinha um referencial apenas teórico, quando chegou a hora de colocar esse conhecimento em prática. Eu deveria me inspirar em Edgar Allan Poe, João do Rio, George Orwell e outros célebres escritores flâneurs da modernidade... Cheguei à Praça XV com muito receio e também cheia de expectativas. Antes de toda entrevista, meu maior medo sempre foi a abordagem. Como eu poderia deixar o entrevistado à vontade? O primeiro contado que tive com o entrevistado já fez com que ficasse mais tranquila e confiante. O carisma das pessoas que habitam as ruas de Florianópolis nos deixava cada vez mais à vontade. Meus melhores amigos durante essa experiência foram, com toda certeza, o papel e a caneta, os quais eu não largava sequer um minuto. Cada passo que nós, futuros jornalistas, dávamos era uma sensação única. Materiais coletados, histórias escritas e fotos encantadoras... Não há sensação melhor da certeza e do alívio de cumprir o desafio de atravessar a ponte do outro. Crédito: Vanessa Gerônimo

O olhar atento tomava conta da experiência

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“Hotel XV” O segredo de uma praça Crédito: Guilherme M. da Cunha

Por Guilherme Martins da Cunha

Abril de 2015 Valentina – Será que devemos contar a verdade? Luna – Não sei, tenho medo de que as pessoas fiquem surpresas. Valentina – Mas não foi para isso que fomos lá? Para tirá-los do esquecimento? Luna – Acho que foi, mas não sei se é isso que eles querem.

Novembro de 2020 As camas são duras como rocha e em dias de chuva as goteiras tornam quase impossível a estada no local. Feito praticamente de pedras, o hotel tem um jardim encantador que abriga uma árvore com mais de 100 anos, quase tão antiga quanto a edificação, construída antes de 1800. Abrigando muitos viajantes e até pessoas que largaram suas casas para viver nele, o hotel não é dos mais luxuosos. A falta de serviço de café e almoço faz com que os hóspedes tenham que acordar cedo, para os padrões de um hotel, e partir em busca de comida. O jantar é servido de vez em quando, sem horários e dias marcados. Muitas vezes os hóspedes dormem de barriga vazia. Os vizinhos do XV são um pouco mal-educados; desde cedo caminham pelos cômodos do hotel sem ao menos pedir licença ou desculpas pelo barulho. Parecem nem perceber que o XV e seus hóspedes existem. Em dias de sol, o XV

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tem um dos amanheceres mais bonitos da cidade. De frente para todos os quartos, a velha figueira ergue-se abrigando centenas de pássaros que cantam incansavelmente para os hóspedes antes da partida em busca do café. Após o almoço eles caminham por diversos pontos da cidade, como os lindos parques ou o famoso mercado público, e até pelas lojinhas do terminal rodoviário. Ao anoitecer eles retornam para as áreas comuns do hotel e conversam. À noite, a tranquilidade reina no XV; os vizinhos mal-educados já não passam mais por dentro dos cômodos, e a não ser por barulhos de carros, o hotel fica no mais absoluto silêncio após os hóspedes irem se deitar. Pelo menos até a volta dos indesejáveis vizinhos ao amanhecer. Apesar da simplicidade, o XV atrai grandes personalidades, nacionais e internacionais. Entre os hóspedes fixos, estão um famoso médico brasileiro, um mestre em xadrez e um promissor escritor, alguns apaixonados por animais e outros jovens e senhores que largaram suas vidas para viver no

A velha figueira ergue-se abrigando centenas de pássaros que cantam incansavelmente


Crédito: Guilherme M. da Cunha

O hotel tem um jardim encantador que abriga uma árvore com mais de 100 anos

hotel. Entre os hóspedes mais recentes estão um trio formado por dois argentinos e uma jovem chilena, que viajam a América Latina se apresentando com seus malabares flamejantes. Há, ainda, um massagista vindo do Uruguai e um ciclista aventureiro que chegou recentemente e que pretende voltar pedalando para seu país de origem, a Colômbia. O hotel serve de sede a eventos que recebem artesãos de toda a América do Sul para encontros em que os participantes dividem experiências. Também já recebeu por alguns meses um renomado tatuador. Esses e muitos outros hóspedes, ficaram esquecidos pela cidade durante anos, assim como o XV, pelo menos até a vinda delas. Valentina e Luna chegaram com um pouco de receio ao hotel e demoraram até se aproximar dos outros hóspedes. Elas eram jovens estudantes de jornalismo e decidiram ter como tema de seus trabalhos o XV e seus hóspedes. Durante três dias ficaram

no hotel e seguiram a rotina dos que se hospedavam ali. Após o primeiro dia já estavam familiarizadas com todos e começaram seus trabalhos sem muita dificuldade. Ouviam muitas histórias; assustaram-se com algumas e se encantaram com outras. Entre um relato e outro, aprenderam malabarismo, jogaram xadrez, fizeram pulseiras e andaram de bicicleta. No fim do dia, quando já estavam exaustas, receberam de presente do novo amigo uruguaio uma massagem digna de SPA de luxo. No final dos três dias, após voltarem para casa, Valentina e Luna deram de cara com um grande problema: a vontade de contar sobre tudo e todos crescia dentro delas, mas o medo de não retratar cada pessoa com a profundidade necessária deixava-as preocupadas. Ao mesmo tempo carregavam uma dúvida: deveriam ou não revelar o segredo dos hóspedes e do hotel XV? – Lembro-me como se fosse hoje... Eu e todos os meus colegas ouvimos

Abril de 2015 Valentina – Você tem razão. Às vezes viver na mentira é mais confortável. Luna – Sim, talvez eles prefiram nossa história sobre hóspedes e hotel. Valentina – Na verdade eu também prefiro assim. Luna – Eu também. Prefiro fingir que eles são hóspedes de um hotel no centro da cidade, a afirmar que são moradores de rua de uma praça. Valentina – O mais importante nós fizemos. Contamos as verdadeiras como cada um é. Mesmo que muitos dos que os enxergam não os vejam.

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O segredo da paciência Certa vez, no sul dos Estados Unidos, Joseph Mitchell apontou um binóculo na direção de um pica pau. O passarinho fazia o que fazem os pica paus: martelava o tronco de uma árvore. Mitchell acomodou se no chão e ficou observando. Laboriosamente o pica pau avançou tronco adentro, rasgando a madeira de casca a casca. A façanha durou quase duas horas e terminou com a árvore vindo ao chão. Mitchell não arredou pé até o final. Mais tarde, disse: “Foi a coisa mais sensacional que já testemunhei”. (João Moreira Salles) A paciência de Joseph Mitchell serviu de inspiração nos três dias em que caminhei pela Praça XV e ouvi

dos passantes e moradores o desenrolar de suas histórias. Olhar nos olhos, saber ouvir e dar atenção àqueles que sempre foram invisíveis para a sociedade é uma

“Foi a coisa mais sensacional que já testemunhei” tarefa prazerosa, traz frutos e aprendizados que levarei para a vida toda. Deixar de lado bloquinho, caneta, câmera e gravador parece ser impossível para um jornalista. Porém, a partir do momento que nos desapegamos desses instrumentos e voltamos nossa atenção e olhares para a pessoa que está à nossa frente, entramos em seu mundo, em sua história e resgatamos

algo precioso que nela resiste. E, desta forma, após as conversas, fica muito mais fácil sentar e escrever, não o que queremos dizer, mas sim o que o entrevistado quer contar. Crédito: Anne Hall/The New Yorker

Joseph Mitchell em 1989

Do portunhol à minha casa

Enquanto os pinos e bolas sobem e descem, histórias são vividas e contadas Esperava ansiosamente a semana seguinte, pela segunda vez no ano chegava a hora de sair à rua e colocar em prática os ensinamentos recebidos. Se no primeiro semestre a missão era na simpática Costa da Lagoa, com seus moradores receptivos, acostumados à segurança que só um bairro isolado tem, a segunda vez reservava mistérios e segredos que só a Praça XV, seus moradores e passantes poderiam desvendar. Após um dia de vivência, minhas atenções voltaram-se para os estrangeiros. Os colegas de viagem Katia e Franco vieram da Argentina e foram os que mais intrigaram. Katia me ensinou, ou tentou me ensinar,

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o segredo de sua arte: os pinos de malabarismo. Após muitas tentativas fracassadas, fui tentar a sorte com as bolinhas que Franco usava, e desta vez me saí muito melhor. Ela só ficou conosco uma noite e partiu para Itajaí, mas Franco permaneceu em Florianópolis e nos ensinou malabarismo. Assim foi toda a vivência: divertidas conversas que duravam horas e tinham como idioma oficial o portunhol. Histórias de viagens eram contadas, enquanto bolinhas e pinos subiam e desciam, caíam no chão, eram recolhidas e partiam de novo, no ritmo frenético do sobe e desce, direita e esquerda. A volta para casa é a parte mais difícil.

Deixar para trás o ritmo intenso de conversas que tivemos na praça faz parecer que a vida nunca mais será a mesma. Pior ainda é escolher um tema para escrever, falar de todos ou escolher um único personagem. Essa dúvida assombra minha cabeça até hoje. Mesmo com o texto acabado, sinto vontade de apagá-lo e reescrevê-lo de outra forma. Acho eu que se tivesse mais tempo, escreveria um perfil de cada morador e viajante, mas o tempo é curto e temos que seguir um caminho. Escolhi o da alucinação, da loucura, da verdade. Escrevi um texto fictício e verdadeiro. E no fim, o que fica é o desejo de voltar, ouvir mais histórias e escrever ainda mais.


“Imagina ficar menstruada e ter que morar na rua” Cíntia já dormiu em um bueiro para escapar do frio. Lili está com o braço quebrado devido a uma queda dormindo. Aline é usuária de crack. Todas essas histórias se cruzam na Praça XV e têm um elemento em comum: mulheres em situação de rua

Por Beatriz M. Wagner da Rocha

Já era o quarto dia que retornava à praça, procurando uma história. Uma ideia se fazia fixa: a entrevista com uma travesti, porém os mais diversos obstáculos fizeram com que esta pauta caísse. E então eu conheci a Cíntia. A Cíntia produz filtros dos sonhos para vender. Disse que aprendeu a fazer isso para viver. Eram os filtros ou a prostituição. “Eu não teria coragem de me prostituir. Precisa de muita coragem”. Está em Florianópolis há um mês e meio, vindo do Paraná. Foi pegando passagens com a assistência social das cidades onde parava. Contou que em alguma cidade mais para o interior de Santa Catarina, ela chegou no final de semana, quando a assistência social não estava disponível. Fazia muito frio e não tinha onde ficar. Dormiu em um bueiro. No domingo muito cedo, foi à casa do prefeito da cidade e pediu auxílio com a passagem. Ele lhe deu R$ 50 e ela seguiu a sua viagem. Namora o G, o cantor de rap da praça. Cíntia tem 31 anos e mora na rua há cinco. “Mas eu sempre fui da rua” - ela me disse. Passou metade da vida no Paraná e a outra metade em São Paulo, onde criou as filhas. São duas. Seriam três, mas a mais nova faleceu aos oito meses em um acidente de carro muito grave, o mesmo que deixou Cíntia quase um

ano no hospital. Foi quando a mãe dela assumiu a responsabilidade pelas netas. “Minha relação com elas (as filhas) é maravilhosa, nos damos muito bem! Minha mãe que é muito difícil de lidar com ela, não aceita muito eu morar na rua”. - E por que você foi parar na rua? - Por causa de droga, crack. Fui usuária por cinco anos. Comecei a usar crack por causa das más influências, influência das pessoas. E depois de tudo que me aconteceu, né Bia? Mas agora eu não uso mais. Consegui parar sozinha! - enfatizou orgulhosa. Tudo isso ela me contava enquanto terminava de fazer mais um filtro dos sonhos em uma parte escura da praça. Naquela noite, o único lugar que não estava iluminado era ali onde conversávamos com os moradores de rua, certamente para tentar inibir a nossa presença no local. No dia anterior, até o pastor e suas marmitas foram revistados pela polícia. A Cíntia é uma pessoa muito tranquila e está sempre sorridente. Não é de falar muito, parece um pouco tímida. A única coisa que ela me pediu foi que, se eu tivesse sobrando, precisava de uma mochila. A que ela carregava suas coisas estava rasgada e era ruim de usar. Eu disse que levaria. Perguntei sobre como era ser mulher e morar na rua. Me contou que por serem mulheres, precisam con-

viver com muitas coisas e estão mais vulneráveis. Também quis saber se já havia sofrido alguma violência, me disse que não - ainda não. Que é preciso ter muito cuidado. - E tem mais mulheres que ficam por aqui? - eu questionei. - Tem várias, várias. Mas assim, as outras, a maioria, usa crack. Quem não usa assim, só eu, a Lili e mais umas outras que são casadas, que ficam mais com seus maridos pra lá (apontando para uma rua depois da praça). Por isso que a gente vive no meio. Eu e a Lili, minha boneca. Ela é a minha melhor amiga! Só tenho ela, né? Pensa em uma pessoa pura, que tem o coração mais puro desse mundo. É ela. Não tem como não se apaixonar por ela! Só que ela tá indo embora. Lili é uma jovem argentina. Está com o braço quebrado por causa de uma queda enquanto dormia e pretendia voltar para sua cidade na quinta-feira (29/10). No dia seguinte, no centro POP, perguntei se ela iria mesmo e me respondeu que achava que “no más”. Os demais moradores cuidam bastante da Lili, dizem que ela é a “bonequinha” deles, mas ela prefere ser independente, mesmo estando um pouco impossibilitada. Alguém chegou a perguntar: “Lili, você é feminista?”.

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Acho que o teor da palavra a assustou. Ela disse que não, que apenas preferia fazer suas coisas por conta própria. Quando estávamos na praça, também passou por lá uma moça jovem, um pouco alterada, negra, com os olhos verdes e muito bonita - uma beleza esquecida pelos maus tratos do crack. Descobri depois que se chamava Aline. Eu queria ter conversado com ela, mas acho que não seria possível estabelecer algum diálogo. Na hora de ir embora, começava a cair uma chuva fina em Florianópolis e uma pessoa do nosso pequeno grupo testemunhou a seguinte cena: o G tirou o casaco que estava usando, colocou nos ombros da Cíntia e os dois foram embora,

de mãos dadas, para algum lugar protegido da chuva. No dia seguinte, fomos ao Centro POP – local onde os moradores de rua podem passar o dia, tomar banho, recebem café da manhã e da tarde e almoço, além de fazerem os cadastros para programas sociais, utilização do albergue da prefeitura e atendimento médico. Quando cheguei, a Cíntia veio e me abraçou, me convidando para entrar. Entreguei a mochila. Ela me agradeceu com um abraço meio desajeitado. Nesse dia quase não conversamos. Ela estava mais fechada. Lá também absorvi mais informações sobre as mulheres em situação de rua. Elas são muitas, sim, e a grande maioria é usuária de crack. “Imagina tu ser mulher e morar na rua. Imagina ficar menstruada e morar na rua”, disse a Mariana, funcionária de lá. A droga é uma fuga.

Crédito: Beatriz Rocha

O sonho de uma vida melhor nos escritos em uma das mesas do CentroPOP

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As mulheres que vivem na rua acabam buscando por companheiros na mesma situação para evitar a violência dos outros homens, mas algumas delas acabam sofrendo isso com os próprios companheiros e outras ainda são obrigadas a se prostituir para garantir o sustento do vício nas drogas de ambos. Existe no centro POP um grupo de mulheres, que é conduzido por duas educadoras e se reúne todas as quartas-feiras, porém são poucas as que frequentam, pois a maioria sofre com a pressão dos companheiros, por medo da denúncia pelas violências sofridas. Um dia, uma chegou local em choque. Viu o companheiro segurando uma moça para outro homem estuprá-la. Durante esses dias convivendo com os moradores de rua, uma frase de um deles me marcou muito: “Moça, muito obrigado por ouvir minha história, porque na maioria das vezes, as pessoas nem olham pra gente.”


A flanêrie de Baudelaire Em “O pintor da vida moderna”, Charles Baudelaire coloca o flâneur como alguém que desposa as ruas, que estando fora de casa, sente-se em casa. Como viver desta forma nos dias de hoje, com a necessidade de se estar sempre correndo, em busca de algo que nem sabemos ao certo o que é? Consome-se o tempo de uma maneira que não há tempo para além das obrigações diárias. Não há tempo de viver e observar a cidade ao seu redor. A cidade corre e seu ritmo é frenético. Para desposar da cidade foi necessário tirar um tempo e observar seu movimento. As pessoas apressadas chegando ao terminal no fim do expediente, os ambulantes que ficam na avenida do terminal, o burburinho que começa a se formar nas áreas noturnas tradicionais do Centro. As descrições de Baudelaire tratam da obra do pintor autodidata Constantin Guys, um repórter que tinha uma visão apurada sobre as mudanças de uma Londres pós-guerra, que rumava para os tempos modernos, onde o que se vivia era breve, transitório, passageiro e que era o verdadeiro lar do flâneur, que buscava estar em constante contato com o que a cidade oferecia aos seus olhos sempre atentos. Passar os cinco dias da vivência no Centro e poder experimentar os hábitos, cheiros e sons que a noite da cidade proporciona foi uma verdadeira experiência de flânerie, - como aquelas descritas por Baudelaire e Poe, como aquelas vividas por Guys - mas foi, principalmente, compreender quea cidade ainda é uma célula viva e pulsante e que seus habitantes possuem histórias maravilhosas, basta saber ouvir.

Créditos: Marcelo Noah/flickr

“Assim, o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se num reservatório de eletricidade” (Charles Baudeleire, em O pintor da vida moderna)

Viver é ouvir histórias Cinco dias de rua. O centro de Florianópolis nunca foi tão pródigo em tantas histórias. Os que geralmente são ignorados e até evitados tinham agora muitos ouvidos interessados no em suas ideias e narrativas de vida. A antiga imagem de um morador de rua miserável e maltrapilho caía por terra. O que surpreende é como algumas pessoas conseguem viver com menos do que a sociedade julga necessário. É gente que não vemos no noticiário, a não ser nas páginas policiais. Gente que tem um passado, acredita que a vida é um presente e que o futuro a Deus pertence. Cantor de rap, tatuador, artesãos, malabaristas, escritor, ex-funcionários públicos e até um bacharel em medicina: todos vivendo sob o mesmo teto - o teto sem cobertura da Praça XV de novembro, local histórico e também cheio de histórias no coração da cidade. Quantas pessoas acreditam que #viversc é conhecer os pontos turísticos, as praias, as baladas de Jurerê Internacional? Nesses cinco dias na rua eu pude entender: viver a cidade, o estado ou até mesmo o país, é ouvir histórias. Histórias de gente que muita gente nem vê.

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Streetaholic, o viciado em rua Aventuras, desapegos e encruzilhadas, até aonde você iria por um sonho?

Por Elio Quaresma

Em uma bela noite de chuva, ele passou. Não atraiu quase nenhum olhar da multidão, que se aglomerava para vibrar e rir das emoções de uma batalha de rap. O evento ocorria em pleno Largo da Alfândega, local ícone das rendas de bilros, com seus bilros gigantes e de um chafariz muito conhecido na capital catarinense e onde muitos já experimentaram um banho. Nesse lugar representativo da nossa cultura, estava ocorrendo uma épica batalha de ritmos originalmente estadunidense. E nesta miscelânea de culturas, ele passou.

O desaculturado, o que está à margem da literatura, o que ignora o conhecimento. Tanto ignorante quanto ignorado, Rodrigo passaria despercebido por qualquer lugar. São tantos iguais a ele, porém, algo em seus artefatos feitos de lata chamava a atenção. Não seu brilho, que certamente se extinguiu no mesmo momento em que deixaram de ser recipientes de cerveja ou refrigerante. Mesmo assim algo brilhava e se não as latas, o quê? Não houve jeito e o primeiro contato foi não apenas, mas um aperto de mãos, firme, como tem que ser. Não havia mais nada ao redor, sem multidão, sem barulho, sem risadas. Apenas Rodrigo e seu ouvinte. E a

Créditos: Elio Quaresma

Artesanato de lata feita por Rodrigo, vendida por quanto quiserem pagar, garantem a sobrevida do aventureiro

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primeira frase foi, além de uma risada, um tapa na cara de todo preconceito: “Você achou que minhas latinhas eram para fumar crack, né?” E agora? Quem nunca? O ouvinte nunca optou por manter suas proteções. Com a confirmação de sua pergunta, Rodrigo continuou com seus ensinamentos crus: “Sem problemas, tenho minhas viagens, mas cada coisa na sua hora, agora é meu trabalho, meu viver. ” Pronto, o brilho aquele voltara e estava definida sua origem, vinha de Rodrigo, o viciado em rua. Rodrigo Machado de Almeida, 32 anos, carioca da gema, como ele costuma se definir, conheceu as ruas aos sete anos e seu coração se apaixonou. Decidiu naquele momento, que seria aventureiro e conheceria o mundo. Ou pelo menos o Brasil. Sua família, tradicional do estado carioca, era obviamente contra. Houve resistência, recusa em fornecer a base para a aventura de Rodrigo, mas o que poderia impedi-lo? Tentaram garantir-lhe uma casa, deram-lhe uma motocicleta. Quando fala dela, os olhos brilham ainda mais, mostrando uma paixão antiga, daquelas que não se esquece. Mas não deram o que ele mais queria. Ele queria as ruas. Bastou uma irmã vir para Santa Catarina, mais precisamente para Timbó, que ele veio também. E aos 18 anos, decidiu que não esperaria mais pelo seu so-


nho e se a família não lhe concedesse recursos, a vida daria. E assim saiu na sua jornada. Primeiro Blumenau. Depois cruzou o País, foi parar no Ceará, onde se deparou com a face da violência, o lado oculto das ruas. “Muita loucura, muita morte, pouca segurança para uma capital de nome Fortaleza”. Em São Gonçalo do Amarante, ainda cearense, sobreviveu aos tempos de morte. Não era incomum moradores de rua serem encontrados mortos em plena praça, justo na sua morada. Era hora de sair. Ainda na capital da moda, aprendeu só de olhar a fazer artesanato, o que lhe garantiria a sobrevida de sua aventura em outros lugares, como Teresina, no Piauí, e São Luís, no Maranhão. Na terra dos Sarney, Rodrigo descarregava caminhões. Foi escondido em um deles que dormiu em São Luís com medo da violência nas ruas e acordou em Feira de Santana, na Bahia. Com um sorriso completo, mas fosco pela falta de cuidados, Rodrigo conta rindo que o povo de lá tem realmente outro tempo. Sair do frenético ritmo que as ruas por onde andou impuseram, para depois defrontar-se com a realidade dos que têm outras prioridades mexeu demais com Rodrigo. E ele voltaria então para casa, agora com 25 anos.

O filho pródigo voltava, mas não acharia em seu pretenso lar o que o mundo já tinha lhe dado. E como ele mesmo diz “a rua é um vício”. Como o maior dos viciados não poderia parar. Três meses de abstinência o fariam criar asas novamente. Seu voo o trouxe para Florianópolis, onde está agora. Mas não por muito tempo, garante. Sobre como é viver nesta casa sem paredes, Rodrigo conta por fragmentos e usa frases que na cabeça do ouvinte atento formam lições: “Aprendi a viver na rua”, “Na rua não se confia em ninguém”, “Aprendi a não ter regras”, “Escolhi conhecer o mundo, conhecer a vida”. Conhecer a vida é realmente o sentido da flanêrie, e com Rodrigo se pode ir além. Com quem mais se poderia sentir na pele o clima misto de gratidão e desconfiança que vem nas gotas de chuva que molham os que ganham um prato de comida ao lado do Hemosc, ao anoitecer, sob a promessa de ganhar também um teto a poucos metros dali? Ninguém do grupo de aproximadamente 20 pessoas parece se empolgar. Os iniciantes da arte da moradia passageira se excitam e os mais experientes ficam mais perto da saída, mas por quê? Rodrigo contaria que

os que vão para este lar que surge fácil, seriam pela manhã forçados a irem embora da cidade, sem direito à justificativa. Da casa que os acolheu, só sairiam para outra cidade. Florianópolis não mais seria seu lar. Viver há mais de dez anos na rua, nunca ter tido problemas com polícia e ser respeitado somente pelo que é, torna Rodrigo um homem realizado, mas não feliz. Não há como ser totalmente feliz morando nas ruas, garante ele. A idade vem pesando e vem chegando a hora de parar, de voltar para casa, de vencer o vício das ruas. Assim será com Rodrigo, assim é com todos que têm um lugar para voltar. A rua é um lar provisório, de falsa liberdade e aprendizado e de vida, própria. E por ser viva, certamente a cidade chora quando vem chegando a hora dessas estrelas marginais perderem o brilho e talvez, somente talvez, em um certo período da vida chova tanto. E a vida comece a se arrastar nos pingos de chuva nas folhagens novamente, aguardando mais algum ouvinte se surpreender.

PREFIRA VER! Mais uma das humanas! Foi o que pensei. Perambular pelas ruas de Florianópolis esperando a vida me surpreender sem nenhum ponto de partida é mais que audacioso, é ineficaz! De certeza. Ledo engano. Não que eu tenha ido desacreditado, certo que daria errado. Após leituras de mestres como João Antônio e Eliane Brum, tinha certeza que encon-

traria algo, desde que eu olhasse para o que preferimos não ver. Decidi ir de alma e coração desarmados até porque, para entrar neste universo de contadores de histórias, estar aberto ao desconhecido é essencial. Mais do que isso, não se contam histórias sem personagens e os personagens que mais marcam são os que surgem, não os que criamos. E assim me propus e conhecer a

cidade dentro da cidade, enxergar os mesmos lugares sob outra ótica. Proponho o mesmo a você que está lendo agora. Aja, perambule pelo mesmo local que você passa sempre, mas note o que antes você não notava. Fale com quem você não falava, escute o que o vento te joga na cara , seja dele o único ouvinte . A recompensa é imediata para as duas pontas.

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Também sou rua! O ator virou personagem. Foi o que mais me marcou na história de João Antônio, jornalista, escritor e mestre na área da flanêrie, que consiste em descrever o que a rua lhe traz, as histórias que se tem que reinventar o olhar para ver. Li as obras desse mestre e me preparei para sair às ruas e repetir a sua mesma aventura em direção ao outro. Inspirado em suas obras, principalmente em Casa de Loucos, procurei deixar a rua me contar suas histórias. Agora, junto de João Antônio, reproduzo abaixo, um pouco do que vi e ouvi: À primeira vista, a rua é crua. Não consigo achar outro adjetivo que a descreva melhor. Crua como a realidade, talvez até gelada (a chuva que caiu durante toda minha aventura complementou este sentimento), mas decididamente crua. Olhando melhor, percebe-se que a rua continua crua, mas os que fazem dela seu lar já não estão mais. Cansados de pagar o preço que a rua cobra pela aparente liberdade, mas com o humor do brasileiro e do abrasileirado, esses habitantes do relento ensinam: “Não se pode confiar em ninguém na rua” / “Viver na rua te ensina tudo” / “Na rua se aprende a viver de verdade” / “Aprendi a não ter regras” / “Escolhi conhecer o mundo, conhecer a vida”. Quando nos dispomos a ouvir a rua, escutamos a cidade sem filtros. Ha-

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fluminense, o que levamos da rua são os ensinamentos que ela nos traz, como mostra João Antônio: “Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os botequins, universidade. Algumas frases apanhadas lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, como aparentes tipos-a-esmo:

João Antônio, Jornalista e escritor da vida boêmia carioca

bitantes memoráveis como Cabelo, morador de rua que jurou vingança caso sua foto fosse publicada em algum lugar. Rodrigo, que tem casa, mas prefere o teto de estrelas. Marcelo Augusto, o menino de 19 anos que jura ser bandido, mas tem medo de pessoas, tem em comum um sentimento: a união de amor e ódio por sua atual residência, a rua. As ruas a que me refiro não são apenas aquelas em que revi com outro olhar, mas as ruas de todo Brasil. Seja em Florianópolis ou na capital

“Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”

“Está ruim pra malandro” - o advérbio até está oculto. “Quem tem olho grande não entra na China”. “A galinha come é com o bico no chão”. “Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte”. “Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”• “Não leve uma raposa a um galinheiro”. “Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro”. “Há duas coisas em que não se pode confiar. Quando alguém diz ‘deixe comigo’ ou ‘este cachorro não morde’. “Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque”. “Da fruta de que você gosta eu como até o caroço”. “A vida é do contra: você vai e ela fica”. No fim da aventura, percebi que eu mudara, mas a rua não. A rua continua crua e eu voltei com lições. Ouvir a rua é uma delas. Ouvir seus personagens é outra. Ao ouvir o personagem o escritor se une a ele, ambos se arrebatam e quando isso acontece não tem volta. Foi assim comigo, foi assim com João Antônio que se tornou o personagem esquecido sobre o qual ele tanto escreveu.


O missionário das ruas Um homem de personalidade forte e sem máscaras. Uma história emocionante de luta e superação

Por Natalia Santos de Pinho

Avistei-o sentado em um canto, quieto e sério, logo que cheguei à ágora da Praça XV. Vestia uma camiseta preta de banda de rock e um boné de Bob Marley. Seus olhos azuis cristalinos, pareciam esconder emoções misteriosas. Logo descobri que era um silêncio de muitos tormentos. Na conversa descontraída do primeiro encontro, comentou que seu maior sonho era ser escritor. O nome desse homem de 37 anos que veio de Caxias do Sul é Éder, ou simplesmente Caveira, conhecido assim pelas estampas de

sua coleção de camisetas de rock. À medida que falava de sua vida duríssima com inesperada ternura, mais aguçava minha curiosidade, a ponto de pedir-lhe para que me contasse a sua história do princípio ao fim. Seu sofrimento começou com a morte do pai, ainda quando criança. A mãe, que nunca lhe deu um abraço, casou-se de novo. Era espancado todos os dias pelo padrasto com o consentimento dela. “Ela é minha mãe só no documento”, dispara. Ainda assim, seu padrasto lhe deu a única família

que conhece, sua irmã Joice. Éder esteve no mundo do crack durante 17 anos. Trabalhava de dia e usava de noite. O que recebia era usado para sustentar o vício. Muitas vezes chegava o final de semana sem ter o que comer. Durante 12 anos sofreu incontáveis internações, sempre lutando contra as recaídas. No momento mais obscuro dessa fase, chegou a pedir a Deus para morrer. “Só eu e Ele sabemos o que aconteceu naquele apartamento”, relembra.

Crédito: Tiago Bento

Éder contando sua história de superação e fé com um brilho no olhar

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Deus não lhe deu a morte, e por isso pediu com mais força ainda que Ele desse um sentido para a sua vida. “Pedi para Ele me mostrar o porquê de tanto sofrimento na minha vida se eu sei que sou do bem. Então, por que eu sempre recebi tudo de tão ruim?” Naquele dia questionou a existência de Deus, pediu para que Ele provasse sua existência livrando-o do vício. Desde o dia 6 de janeiro deste ano, afirma que nunca mais usou o crack. Quando tentava fumar passava mal com a fumaça, então decidiu que não precisava mais da droga. Hoje reconhece que não é mais escravo do vício. Acredita que a missão que Deus lhe deu é a de missionário. Seu destino é levar a palavra divina para quem estiver disposto a ouvi-la, do seu jeito, sem igrejas e sem religiões. Esse caminho começou a ser trilhado pelas ruas de Florianópolis. Um ex-viciado, que consumia crack enquanto tinha casa, deixou o vício para cumprir sua missão na rua. Apesar de não ter tido uma família como a maioria, valoriza ao máximo essa instituição e está à procura da sua. Pelo caminho encontrou al-

guns amores. Foi casado duas vezes. Seu primeiro casamento durou cinco anos, “Eu achava que tinha aprendido a amar, que sabia o que era o amor”, conta. Sua família, racista segundo ele, não aceitava a esposa negra, o que foi deixando a situação cada vez mais complicada.A segunda esposa era totalmente o oposto dele. “Foi à primeira vista. O sorriso e o olhar dela naquele dia, eu nunca mais vou esquecer”, lem-

“O sorriso e o olhar dela naquele dia, eu nunca mais vou esquecer” bra com um olhar que vaga nas lembranças distantes e com um sorriso nos lábios. “Ela me ensinou o significado da palavra amor”. O romance acabou cedo e da forma mais cruel: ela foi assassinada grávida de seu primeiro filho. Ele estava com os olhos já rasos d’água, e pensei duas vezes antes de perguntar o motivo. Não me arrependo de ter optado pelo silêncio. Mesmo nas dificuldades Éder ten-

ta ver o lado bom. Sua fé em Deus faz com que acredite haver um motivo e um significado muito fortes para o destino ter trilhado esse desvio. Encontrou uma pessoa de uma igreja que fez com que enxergasse que ainda havia possibilidades brilhantes em sua vida. “Entender não entendo, mas aceitar sou obrigado. Ele vai me dar a resposta na hora certa”, declarou, apontando para o céu. Apesar das dificuldades que passou, Éder não perde as esperanças e tenta sempre enxergar o lado bom da vida. As lágrimas ofuscavam-me a visão quando me contou que seu maior sonho, assim como o meu, é ser escritor. Carrega na mochila vários fragmentos do livro que está escrevendo, manuscritos em folhas de papel higiênico. O primeiro, afirma, será uma autobiografia. Quer ser aquele escritor que escreve sobre tudo, sobre a vida como ela é. Quando perguntei qual o dia mais feliz de sua vida, surpreendeu-me com a resposta: “Ninguém é um dia inteiro feliz, felicidade são momentos”. Reformulei então a pergunta e desta vez respondeu-me que o momento mais marcante foi quando sua irmã Joice lhe pediu para ser padrinho de seu primeio filho, Axel. Esse convite o fez querer mudar e ser melhor.

Quando se ouve o invisível “Cada um daqui veio de um lugar diferente, mas construímos uma família e ninguém sabe disso”, diz G, morador da rua. No dia marcado para a primeira flânerie no Centro de Florianópolis, a chuva, que já durava semanas, resolveu dar uma trégua. Na hora e local combinados estávamos todos reunidos nas escadarias da Catedral, visivelmente ansiosos e apreensivos. Alguns sentiam até medo do que encontrariam logo em frente, na ágora da

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Praça XV. Não demorou muito para encontrarmos os moradores do lugar e aos poucos fomos nos aproximando. Tínhamos como objetivo conhecer as histórias dos moradores e dar voz ao invisível. Fui surpreendida com o conhecimento que os moradores tinham para compartilhar. A experiência que as ruas proporcionam parece instigar a capacidade de superação e a fé em momentos difíceis. De alguma forma esses habitantes do relento nos deram essa lição. Apesar de algumas dificuldades nos dias

seguintes, como a chuva constante, os desencontros e algumas tensões entre os colegas, a flânerie fez com que enfrentássemos o medo e outras barreiras do preconceito. Ouvimos dessas pessoas histórias tão incríveis que parecem ficção, o que tornou a experiência surpreendente e única. A flânerie nos trouxe a oportunidade de conhecermos a nós mesmos e aos nossos colegas, que ao longo dos três dias tornaram-se verdadeiramente amigos. Juntos vivemos experiências e momentos que levaremos por toda a vida.


Na lama dos acontecimentos A jornalista brasileira Eliane Brum tem um jeito diferente de escrever. Ela é repórter de verdade e não faz perguntas que induzam a resposta. Gosta mesmo é de ser surpreendida e acredita que a reportagem se desenrola melhor assim, fluindo naturalmente. “Eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta”, conta ela em O Olho da Rua. O livro traz making of ’s no final de cada reportagem, que foram muito significativos para mim. Neles mostra como é difícil adaptar-se a determinadas situações tão diferentes das habituais, fala sobre as inseguranças que teve, mesmo sendo uma jornalista há muito tempo. Essa franqueza de repórter me deu uma certa coragem durante a flânerie: Eliane me ensinou que sentir dúvidas e apreensões é perfeitamente normal nessa profissão. Suas reportagens enfocam os perso-

gonista de sua história. Nessa vivência com os moradores de rua, tentei seguir a linha de Eliane como repórter. Tive um primeiro contato descontraído, conversei com meu entrevistado, falamos sobre assuntos variados para que ele pudesse ficar mais à vontade comigo. Na conversa conhecemos um ao outro. Os moradores de rua são povos assim como os que Eliane retrata em

seu livro. Ela me mostrou que como repórter atravessa a rua de si mesma para encontrar o outro, se preciso for, senta ao seu lado para conversar olho no olho. Eliane é a repórter que tira os sapatos para literalmente colocar os pés na lama.

“Eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta” nagens da vida real, seu modo de falar e seu conhecimento, valorizando os mais velhos e experientes. Sem preconceitos. É detalhista, mergulha no cenário da vida real, onde está acontecendo o mundo enquanto escrevo este texto. Assim como Eliane, tentei por meio da escrita do meu perfil dar voz ao meu personagem, fazendo com que ele fosse realmente o prota-

A jornalista Eliane Brum acredita que, nas ruas do mundo, o grande desafio é olhar para ver.

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A riqueza de quem não tem dinheiro “Vim para as ruas porque não suportava mais ver o sofrimento que tava trazendo pra minha família”, desabafa Seu Ismael Por Tiago Bento

A rua é um livro secreto. É preciso atenção para perceber as páginas com histórias que nunca foram lidas. Nas ruas se entende porque só os anônimos têm o que dizer. A palavra cabe aos humildes. “Nasci pelado e hoje tô vestido; então não tenho do que reclamar”, sentencia Elizandro Azevedo, conhecido pelos amigos como “Percival”. Vindo do estado vizinho, o Rio Grande do Sul, hoje ele se encontra em situação de rua.

Após envolver-se com as drogas, começou a criar uma situação insustentável com a família. “Vim para as ruas porque não suportava mais ver o sofrimento que tava trazendo pra minha família”. Foi flanando pelas ruas que conheci seu Ismael, um senhor muito carismático e sorridente. As marcas no rosto trazem à tona tudo o que ele passou. Há mais ou menos seis meses começou a dormir nas ruas por conta de uma traição do “amor da sua vida”. Traído, ficou sem chão, divorciou-se, deixou a casa para a mulher,

Crédito: Tiago Bento

Seu Ismael (E) diz que sua família, hoje, são amigos que fez na rua

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com quem teve cinco filhos, e foi morar com a mãe. Nunca mais a viu, mas ainda tem o sonho de que ela volte a amá-lo. Ao falar da ex-mulher, o largo sorriso dá lugar a olhos inundados de tristeza. Mas o tom muda e o sorriso volta quando o assunto são os amigos que encontrou nas ruas, amigos que, segundo ele, o tiraram do buraco. “Hoje durmo na rua porque me sinto bem aqui, meus amigos me ajudam muito. Aqui me esqueço de tudo, o tempo passa mais rápido”. Mesmo com a opção de dormir na


casa da mãe, ele ainda assim prefere as ruas. Para muita gente sem a ajuda de instituições ou programas do governo, a rua serve de alento. Conhecido como “Chinelo”, Robson conta que largou o crack há dois anos. “A rua funcionou como um retiro espiritual pra mim; deixei as coisas ruins para trás e hoje não faço mais ninguém sofrer”.

Viver nas ruas é viver num mundo invisível, que na maioria das vezes é visto com preconceito. Cada um tem uma história, um motivo, ou dezenas deles para preferir viver nas ruas. Confrontar-se com essa realidade não é nada fácil, olhar para fora é olhar para dentro, é perceber que somos todos iguais dentro das nossas particularidades. O medo talvez venha do fato de saber-

mos, intuitivamente, que também estamos expostos às armadilhas da vida. O morador de rua não tem um teto. Em seu lugar, tem paredes que o cercam de preconceitos, e cimento nos ouvidos de quem os ignora. Nessa sociedade com teto de vidro, atiram-se palavras feito pedras, mantendo o ciclo robotizado da ignorância. Crédito: Tiago Bento

As lamparinas, ao longo do tempo, iluminam a Praça XV

Derrubar os véus Era chegada a hora. Após um dia inteiro de muita chuva, pairava sobre nós a incerteza de que fosse de fato acontecer a nossa flânerie. Minutos antes da hora marcada chegou a confirmação. O ponto de encontro seria a Catedral. Pessoas feito formigas andavam de um lado para o outro de uma maneira robótica. E lá estávamos nós, ansiosos para nossa viagem ao outro lado da cidade, o lado de dentro, o lado de quem vive às margens, mas que está no dia a dia ao nosso lado. Conhecemos pessoas famintas, umas de atenção, outras de pão. Havia ainda aquelas que pareciam já estar acostumadas

à invisibilidade, mas angustiadas para ter suas vozes ouvidas e suas histórias contadas. Eu já tinha em mente o que faria como audiovisual. Com a câmera a postos, comecei a registrar tudo que julgasse válido. Aí começou meu problema: tudo tinha uma relevância para meu projeto, e sabia como ia ser difícil depois na edição com tanto tempo de gravação. Além do vídeo, também precisava desenvolver o material escrito. Deixei essas preocupações de lado para ficar atento a tudo que se passava. Sabia que minha pauta iria aparecer. Então comecei a ajudar alguns amigos gravando entrevistas e fotografando.

Foi uma experiência maravilhosa em que tive a oportunidade de ajudar e, além disso, conhecer as histórias de alguns habitantes das ruas. Ao longo dos outros dois dias, com o projeto do meu audiovisual mais maduro, pus-me a captar imagens que estavam faltando. Andei pelas ruas, mas como é diferente andar por andar e andar para ver, me dei conta de coisas que passam despercebidas e de quantas possibilidades de narrativas são ignoradas. De uma coisa eu sei, depois desta experiência vai ser difícil vestir novamente os óculos dos ignorantes, aqueles que nada veem.

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Pessoas do dia nas cidades escuras A vida de uma varredora das ruas e as histórias dos muitos centros da cidade

Por Vitória Zardo

Nos terminais de ônibus, corredores largos e apressados de guarda-chuvas se movimentam freneticamente. Olhares baixos e sem vontade de reparar onde se está indo. No fim da tarde, enquanto as lojas fecham suas entradas e as pessoas procuram seus caminhos para casa, o centro tumultuado da cidade se transforma completamente em outro cenário de vida. Um ambiente novo, desconhecido e estranhamente reparado, por quem raramente esperou a noite cair até enxergá-lo. As principais ruas do centro da cidade que sempre ficam aglomeradas de pessoas vendendo, cantando, gritando, pedindo, estão agora vazias com janelas e portas fechadas. Sacos de lixo espalhadas pelos cantos dos caminho. Logo, alguns homens montados no caminhão de limpeza vem para recolher das esquinas os últimos sinais do dia. É o único som a quebrar o silêncio das rus noturnas. Antes do anoitecer, seu Vilmar às vezes se programa para dar uma relaxada ao lado do Mercado Público, se diverte ao dar pedaços e migalhas de pão para os pombos que vêm de todos os lugares. A disputa por espaço e alimento causa certa implicância entre as aves. Mas Vilmar adora vê-las ao seu redor; ele sorri, ri e solta algumas gargalhadas dependendo do que fazem. Não muito longe de onde ele se senta,

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as barracas da feira começam a se fechar e a desmontar as estruturas. Alguns carros se aproximam, as caixas se empilham e as poucas sobras são guardadas. Em pouco tempo, o movimento acaba, e o espaço se torna um amplo pátio vazio. As luzes amareladas e bem dispostas nos contornos do Mercado e da Alfândega se acendem quando a penumbra cai. O ar esfria e os pombos somem. Alguns poucos restaurantes abrem chamando clientes no meio do silêncio. Os terminais diminuem drasticamente o seu fluxo, e a pressa de ir embora de algumas pessoas faz com que uma ou outra corra para pegar o último ônibus que vai direto pra casa. O chão brilhante de chuva faz com que as pessoas desviem com cautela cada grande poça pelo caminho. Alguns escorregam, outros se sujam, mais alguns se divertem com botas de borracha. Outros poucos, sem nem mesmo se importar com elas, passam de chinelo pelos trechos empoçados. Reparam na reação de quem os notou com espanto, e continuam andando. Enquanto isso, na praça maior que representa um dos corações da cidade com a sua mais que imponente figueira, as luzes também se acendem aos poucos. Começam a aparecer alguns moradores que vivem por ali mesmo, que chamam a cidade como um todo, de casa. Eles se reúnem, conversam, trocam comida e objetos, gritam baixinho, se abraçam. Mais tarde, dois homens bem vestidos, se reúnem em torno de uma mesa

de onde passam a distribuir sanduíches e cafés para os moradores que se aproximam. E vários deles se aglomeram em volta. Um dos homens prega um sermão e canta uma música, enquanto a maioria mais se dedica a matar a fome, que parece nunca ter saciedade. Uma mulher morena, com cerca de 30 anos, resmunga baixinho. Quer ir para casa, mas seu marido está do outro lado da praça, resolvendo um problema. Ao mesmo tempo que sente urgência de ir embora, ela canta junto as músicas do homem que distribui os lanches. E exclama: “Essa é muito linda!”. Desde julho ela estava morando em Florianópolis e vivera as primeiras semanas na rua, na mesma situação em que agora via os homens comendo os sanduíches doados. Nascida em Pernambuco, ela é sem dúvida uma mulher que vive e trabalha para poder viajar. Já conhece quase todos os continentes, e se orgulha em dizer que ainda não pretende deixar de ir a novos lugares com seu marido. A noite também dá início a mais um dia de trabalho de uma mulher quem vem de longe fazer o seu serviço diário ao lado da praça. Antes mesmo do fim da tarde, ela já está pronta e arrumada. Pega seu ônibus em Paulo Lopes e chega ao centro de Florianópolis perto das 18h. São aproximadamente 60 km de distância de sua casa, onde mora hoje apenas na companhia de um gato e um cachorro que não tinham dono. Seu trabalho é fazer a limpeza, manter o cui-


De cima da praça vê-se a catedral de frente para a cidade

dado e receber um real de cada moça que precisar utilizar o banheiro público feminino. Ela trabalha no turno da noite e retorna após às 22h, mas só chega em casa depois da meia noite. Percorre mais de 100 km diários para cuidar do banheiro no centro da capital e receber o suficiente para dizer que vive feliz e bem satisfeita com o que faz No ano que vem, Sueli Neira Pedro, pretende festejar os 60 anos com os amigos do centro, de Paulo Lopes, da Serra, e de outros lugares também. Lembra-se de cada um com muitos sorrisos e gargalhadas. Ao se tornar funcionária da Companhia de Melhoramento da Capital (COMCAP) no início da década de 80a sua vida mudou completamente, segundo ela. Um trabalho melhor, uma rotina feliz, companheiros amigos, chefes gentis e mais oportunidades em diversos setores. Sente muito orgulho de fazer parte desse conjunto. – Só parei de passar fome depois que entrei na empresa. Durante vinte anos, ela varreu as ruas do centro da cidade, incluindo as praças, escadarias. Antes disso, seu trabalho era varrer a antiga rodoviária na rua Mauro Ramos, até deixar de

ser terminal de ônibus e ganhar uma sede nova no aterro da Baía Sul, em 1981, com o nome de Rita Maria. Seu lugar de trabalho fixo tornou-se então a parte mais central de Florianópolis, entre o Mercado Público, a Praça XV, o Teatro Alvares de Carvalho, etc.. Ela percebia as pequenas curiosidades do dia a dia e as transformações da cidade com o passar do tempo. Velhos na praça a esperar o dia acabar, pessoas apressadas que nem ouviam o sino da catedral, artesãos sentados no banco à espera de admiradores, cantores vendendo sua música nas esquinas das ruas. Múltiplas histórias, cenas paralelas atravessavam as intermináveis horas diárias que permanecia no local. A Sueli que varria as ruas, retirando as folhaS secas, o lixo deixado pra trás e as sujeiras do vento, era uma pessoa das mais queridas da região, conta ela. Depois de se despedir da cidade onde nasceu na parte serrana do estado, onde trabalhava plantando fumo, escolheu a capital para morar com o marido e os três filhos. Depois de um curto período nasceram mais duas filhas, e sua família cresceu em tama-

Crédito: Vitória Zardo

nho e alegria, exigindo mais espaço e mais trabalho. Na década de 90, nasceram duas netas, e ela ficou ainda mais radiante. Amigos, família, vizinhos, faziam parte da alegria de ser varredora das ruas, o que para uns poderia ser motivo de vergonha. “Sempre fui mais feliz do que poderia”. No início do ano 2000, separouse do marido que veio a falecer um ano depois. Já morando sozinha em Paulo Lopes, seu amigo do trabalho e vizinho assumiu o posto de companheiro e fiel confidente de Dona Sueli. Transformaram a antiga amizade em um namoro moderno, onde cada um faz questão de permanecer em sua própria casa. Ainda hoje ela se gosta de recontar suas histórias, que ficam melhores na memória do que em fotos, na sua opinião. Nos últimos cinco anos, passou a exercer o trabalho no banheiro feminino. Ter um espaço definido para cuidar significa um pouco menos de exigência física. Todas as noites ela se senta na cadeirinha ao lado da porta do banheiro, que

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fica exatamente de frente para a Praça XV, onde permanece até às 21h, hora de fazer a limpeza. Seu chefe passa diariamente e recebe um bocado pesado de moedas. Depois de tudo, tarde da noite, ela retorna para casa. O tempo passa mais rápido quando amigos e conhecidos aparecem e batem um papo demorado. Os mais próximos, aproveitam sua companhia para desabafar e pedir conselhos. Conta que durante muito tempo tinha que reservar um espaço na rotina para conversar com uma mulher. Assim, simpática e fraternal, dona Sueli foi criando vínculos. Moradoras de rua aparecem com frequência, utilizam o banheiro sem poder oferecer um real, e perguntam-lhe, de vez em quando, o que fazer com determinada situação. Objetos para vender, comida para arranjar, vícios para controlar; casos de conversas inesperadas com a “mulher do banheiro”. Apareceu uma vez um mulher carregada de bijuterias, os cabelos secos, as unhas sujas, uma bolça vazia e um cigarro na mão. Ela falava com pressa e só olhava pra baixo. Tremendo um pouco os braços e ajeitando a roupa, pegou um anel

do bolso e perguntou: “É prata, né? Deve ser, né, é igualzinho. É prata. A senhora quer comprar? Faço um preço camarada. É prata, minha senhora! ”. E antes mesmo que dona Sueli dissesse algo, sua feição negou a proposta, e a mulher, inquieta, saiu apressada como chegou, com o cigarro na mão. - Agora há pouco eu tava com o rádio ligado, veio uma da rua e tocava uma música no rádio. Ela adorou a música, eu comecei a conversar uma coisinha, mas ela tava tão assim “deixa eu curtir!”. Um copo de bebida na mão... Eu peguei o radinho daqui com a minha gentileza, que tava na gaveta, e botei perto pra ela escutar melhor.” Ela conta também as histórias de antigos pedintes que se vangloriavam de não precisar trabalhar. Ganhavam mais moedas dos passantes da praça do que com empregos de um salário e encargos. Alguns outros que nem por isso pediam, arranjavam melhores roupas e sapatos confortáveis com a maior facilidade. Hoje, ela acredita que grande parte das pessoas em situação de rua, sem casa, família, amparo, são levadas por sua própria história, a escolher esse caminho na tentativa de serem mais felizes. -Agora, eu queria entender o ser humano. Como eu vejo muitas pessoas, todo ano elas fazem uma coisa na

casa. Uma comadre minha mesmo, que tem uma mansão, sabe, ela vive em função a vida inteira daquela casa pra construir. E aqueles da rua não constroem nada. E se eles falassem sinceramente e as outras pessoas falassem também, talvez a gente da rua que nunca teve nada na vida tá mais feliz do que aquele que construiu, tem casa, carro e ficou sem nada. Apesar das histórias mais complicadas que viveu quando era mais jovem, não conhecia Florianópolis, não trabalhava no que gostava e não tinha grandes amigos com boas conversas, ela se satisfaz hoje, com pequenos momentos do dia e viajando de uma cidade para outra a fim trabalhar no que lhe faz bem. Encontrar, reencontrar, receber, indicar, ver, abraçar. O flâneur que caminha e observa os detalhes, os lugares e as pessoas, conseguindo lhes dar um flagrante de atenção, percebe as situações invisibilizadas pela maioria. Sente o distanciamento que as pessoas causam nelas mesmas, achando estranho tudo aquilo que não lhes é familiar. O estranho é repudiado e afastado do olhar das multidões. E por não atravessar a rua, o muro invisível que separa o visto do não visto, as pessoas perdem grandes oportunidades de conhecer mais, e aprender muito mais com as ruas e as pessoas da cidade.

Obsevacões nas noites do centro Em nossa vivência no centro da cidade, como o observador das pessoas, do lugar, das histórias e da noite, o resultado final do trabalho foi admiravelmente bonito. Fiquei mais inspirada ao me dar mais conta de pessoas com histórias envolventes e situações inesperadas!. Só indo, vendo e perceben-

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do o que achávamos ser, é que notamos a realidade de nossas ideias. No decorrer do trabalho, a confiança nas aproximações com as pessoas gerou ainda mais coragem de fazer, ver e ouvir mais. Encontrarmos mais pessoas e histórias, perdendo aos poucos, o receio de que algo ruim pudesse acontecer.

Gerar confiança, criar um mínimo de intimidade e bater um papo com pessoas que estão, por um lado, aliviadas de contar o que sabem ou que sentem que precisam falar para ter um sentimento de realização especial, bastando parar para ouvi-las. Foram momentos únicos para lembrar mais tarde sempre.


Nas multidões, encontra-se o homem Ver uma pessoa caminhar pelas ruas de uma cidade, sem pressa e compromisso, sem nada que a impeça de apenas andar com tranquilidade e paciência, faz com que os pequenos detalhes que passam diariamente desapercebidos tornem-se grandes eventos de curiosidade. Ao reparar no anonimato, as situações ganham a luz de quem vê o mundo pela primeira vez. Há muitos homens nas ruas que vivem e andam em multidões sem pausa de respiro e sensibilidade. Sem coragem de olhar para a direita ou para esquerda e correr os risco de ver outras pessoas do lado Há dois séculos, em pleno desenvolvimento das futuras e prósperas cidades do mundo, a modernização da industrialização ditou novas configurações sociais e provocou mudanças nos padrões de comportamento e convívio humano. O observador flâneur se efetua com esse andamento da sociedade do século XIX, quando o narrador começa enxergar a sua volta as riquezas desapercebidas e os gestos ocultos nas cidades. As esquinas perdidas do centro da cidade

Edgar Allan Poe escreveu um conto ambientado em Londres, sobre o homem que está na multidão para suprir e acalentar sua solidão em meio a outras solidões perdidas na metrópole. O homem da multidão fala do isolamento de um velho perdido num aglomerado de pessoas, em busca de algum entendimento para compreender a sua própria solidão. É como se encontrasse um asilo em meio ao fluxo das multidões que seguem cegamente suas rotas sem perceber as pessoas, lugares, histórias, detalhes à volta. Ainda nessa época, Charles Baudelaire enfatizou os homens anônimos das multidões, que vivem, percebem, flanam e buscam compreender a solidão que mora às sombras. No século XXI, os homens ainda desempenham as histórias das massas e grandes fluxos ininterruptos de gente, que não encontram respostas nem compreensões para o que está a sua volta. Nas praças e nos bancos das ruas, há gente que vive sem ao menos um assento macio para descansar. Usam roupas ve-

lhas e têm um comportamento particular que impressiona os demais. O medo generalizado de se aproximar dessas pessoas gera o grande muro que divide o desconhecido do outro e carrega consigo a rejeição e os preconceitos que caracterizam o distanciamento social. Tudo que foge do modelo de civilidade torna-se um incômodo que seria melhor descartado para não precisar ser encarado. Talvez o medo domine qualquer impulso ou tentativa para fazer unir as pessoas com sua plenitude de multidão. Unir pessoas com pessoas, histórias com histórias de igual valor e interesse. À medida que as pessoas de redescobrem como multidão nas ruas, diante daqueles que têm a rua como casa, a liberdade e o conhecimento atingem altos níveis de amorosidade, união, cumplicidade... Basta virar para os lados a nossa volta e ver o que sempre esteve onde esteve. Crédito: Vitória Zardo

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A metarmorfose ambulante das ruas Com uma mochila nas costas e o artesanato como profissão, eles escolhem morar nas ruas como opção de vida

Por Jéssica Daussen

De um lado a arrogância de espírito, do outro a liberdade e o desapego. Seja na esquina, embaixo da ponte, na praça do bairro, pessoas com essa aparente contradição lutam para o sustento da alma, sem apego e sem rumo. Elas estão sempre a nossa volta sem saber o que farão nos próximos 20 minutos. E nem querem saber: deixam se surpreender, à diferença dos que se submetem à realidade imediata e às regras da sociedade, onde a correria do dia a dia os limita a trabalhar para ter o sustento material. Muitos de classe média escolheram a rua para procurar conforto, como no caso de alguns moradores sem teto do Centro de Florianópolis. Eles passam a maior parte do seu dia no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (POP) onde recebem café da manhã, almoço e café da tarde. Conversando em um dos bancos da Praça XV com um morador de rua que veio de Porto Alegre, Marcelo Damacena, 37 anos, classe média alta, considera morar na rua bom, pois não se paga luz, água e ainda a se dispõe de comida, de bebida, de roupa e de fumo. Esse vício, aliás, levou-o a se separar de uma mulher por quem ainda é apaixonado. Apesar disso, não conseguiu deixar a maconha diária por

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amor. Acha que o governo e a sociedade acomodam os moradores de rua, dando comida e roupa, levando-os à acomodação. “Eles não têm aquele sonho, um desejo, eles não têm amor nem por eles mesmos”, opina Marcelo sobre os colegas da rua. Indignado, critica a ação de ONG’s e igrejas que tentam, com um pedaço de pão e um copo de suco, manipular os moradores de rua. “Eles se aproveitam dos que não têm cabeça, pensando que podem influenciá-los com qualquer coisa. Depois usufruem dessa ação com o dízimo de cristãos, levando-os a acreditar que fazem muitas caridades”. Marcelo diz que está na rua por opção, pois para ele a vida é uma ousadia e não precisa de muito para viver. Filho de pai e mãe abastados ou “patacudos”, já foi playboy e fumou todo tipo de droga. Não se considera um exemplo para ninguém e ainda critica os ex-usuários de droga que aparecem como modelo para seus colegas. Diz que o pai de família, que fez faculdades e luta pelo sustento e pela educação de seus filhos, sim, merece ser admirado e copiado. Diariamente, Marcelo vende filtros dos sonhos feitos por seu colega nos arredores do centro. Sonha em montar uma biblioteca no Centro POP, mas sabe que enfrentaria muitos obstáculos por causa do desinteresse de seus colegas pela leitura. Surpreendo-me mais uma vez ao conhecer duas mulheres mochileiras. Elas largaram a vaidade para se aven

Crédito: Tiago Bento

Artesanatos feito por Marcio.


turar pelo mundo e não sonham com uma casa no lugar mais badalado da cidade ou com um carro moderno e aconchegante. Uma tem 52 anos e está há 12 viajando. A outra tem 20 e está com todo o gás para começar a vida na estrada. Sentadas na Praça XV com os moradores de rua, expressam suas emoções sobre a vida e os valores que não encontrariam trancadas em um escritório. Para se manter com o mínimo necessário à sobrevivência, fazem artesanatos. Já viajaram por quase todo o Brasil pedindo carona e dormindo em barracas ou alojamentos e dizem estar se programando para partir em uma “turnê internacional”. Suas aventuras são uma forma de viver intensamente. Pasma, observo a multidão cheia de fome correndo para pegar a sopa noturna, que é servida diariamente.

Pessoas que ali vivem realmente necessitam de ajuda, mas me surpreendo novamente ao conhecer o olhar sobre a vida na rua de um artesão. Humilhado ao passar uma semana em um albergue chamado de Abrigo para indigentes de Florianópolis, ele depõe: “Minha mãe perguntou onde eu estava e tive que dar esse nome, você acredita? ”, diz Márcio, de 39 anos, que desde os 14 já tinha esse espírito aventureiro ao pegar sua mochila e passar dias na praia com os amigos. Movido pela vontade de conhecer o mundo, saiu de casa aos 22 anos com um amigo também artesão, que o ensinou tudo que sabe fazer hoje. Já conheceu boa parte do Brasil e diz que Florianópolis é um dos melhores lugares para morar na rua. Não se queixa do governo, pois, segundo ele, tem muitos amigos que estão na rua

porque querem, gostam e não conseguem levar uma vida normal como a sociedade determina, mas se queixa do preconceito que sofre. “É humilhante. - A sociedade, às vezes, passa e olha a gente dormindo -embaixo da marquise, com um papelão, sempre com preconceito. Não conhecem, acham que estamos ali jogados e que somos mendigos. Pensam que somos usuários de crack, que nossa família nos colocou na rua. Ninguém quer saber. ”, relata, triste. Márcio gosta de trabalhar e espera ansioso a chegada da alta temporada para vender seu artesanato na Lagoa da Conceição a fim de conseguir alugar um quarto para dormir e se alimentar bem.

O faro aflorado pela rua Ao me preparar para dormir dia antes de nosso encontro com a rua, percebi que a ansiedade já aflorava em mim; com ela, a suposição de como seria esse momento me rondava, misturada com o turbilhão de conhecimentos, sensações e emoções despertados pelos seminários de artistas Flanêur apresentados por mim e meus colegas durante as aulas da professora Raquel Wandelli. Quando o esperado dia, 22 de outubro de 2015, chegou, fomos até a Ágora da Praça XV. Chovia, e pude ver no olhar de todos meus colegas, tudo aquilo que pensei e senti durante a noite anterior. Começamos a nos sentir mais à vontade depois que as professoras Raquel, Cláudia e Viviane apresentaram nosso grupo aos moradores de rua, contando quem éramos e o que estávamos fazendo ali. Eliane Tavares, jornalista que se dedica a contar histórias da rua, trouxe o sentimento puro de amor e deliberdade expresso em sua voz. Assim, seguimos nossos rumos à procura do nosso homem na multidão.

Crédito: Tiago Bento

Entrevistando Elizandro Azevedo para a produção audiovisual.

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Relembrando histórias de Raul Caldas Ao passar dos anos, Florianópolis tem perdido seu aspecto provinciano. Mudanças como a modernização do Mercado Público, a desativação da Ponte Hercílio Luz e o desenho urbano nos levam a relembrar as histórias que Raul Caldas conta em seu livro “Oh que delicia de ilha”. Raul é um escritor flanêur que costumava perambular pela cidade de Florianópolis, de botequim em botequim,entre a Praça XV, a rua Felipe Schmidt, o Mercado Público e a rua João Pinto, buscando os típicos personagens ilhéus. No livro, Raul traz histórias passadas no Centro de Florianópolis, tendo a cultura açoriana como pano de fundo, e contos sobre o sotaque e as características do manezinho ilhéu e urbano desde o ano de

1960. Histórias que partem da praça da cidade até os centros urbanos. “Comecei a coletar o material para o livro no começo dos anos 90, e a cidade já estava se modificando.Eu tinha a intenção de preservar pelo menos uns

a pouco”,relata Raul. Com a nossa vivência, pude conhecer melhor a história rica de nossa ilha, muito parecida com a escrita por Raul. Senti e busquei compreender a vastidão da alma do ou-

“A partir dos anos 70 deu uma virada, surgiram as pontes novas, a beira mar, a universidade. Esse lado pitoresco, provinciano, foi se extinguindo pouco a pouco” 40 anos anteriores, que foi o que vivi. A partir dos anos 70 deu uma virada, surgiram as pontes novas, abeira mar, a universidade. Esse lado pitoresco, provinciano, foi se extinguindo pouco

tro, como um flanêur que persegue o desconhecido, a fim de se deixar surpreender pela pauta inesperada, fazendo a exultação do acontecimento de troca.

Crédito: Jéssica Daussen

Raul Caldas recebeu a aluna Jéssica e a professora Raquel para uma entrevista em sua casa.

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O advogado viajante O peregrino que busca em Florianópolis sua verdadeira felicidade

Por Bruna Tomaselli

Um brinco discreto, porém brilhoso. Um orgulho autêntico de expressar a data de nascimento tatuada no pescoço, 13 de novembro de 1977. Advogado. Barman. Garçom. Porteiro. Taxista. Como preferir chamá-lo, ele atenderá. Escolha a profissão que for que ele irá desempenhá-la. –Eu sou de Porto, néh, me criei ao redor do Gasômetro, e como todo gaúcho, sou amante das águas do Guaíba. É com um sorriso e uma conversa convincente que este homem conta sobre o amor, das épocas em que mais lhe agradava trabalhar como pedreiro apenas porque, apesar de o sol bater na pele o dia inteiro, ele conseguia ganhar seu sustento junto com a mulher amada. Ele se transformava em motoqueiro levando a esposa na garupa de seu “canhão”, a sua moto. –As pessoas só amam, realmente, uma vez na vida; duas vezes é impossível, porque se você se separar do seu verdadeiro amor, sempre levará consigo uma mágoa. A frase poderia ser famosa se fosse retirada de alguma obra de Chico Xavier, das músicas de Gabriel Pensador ou de alguma reflexão mais profunda de Serginho Groisman, seus ídolos, porém, é apenas um verso da mente de mais um dos bilhões de apaixonados que existem nesse mundo. Após perder o grande amor da vida por conta do ciúme obsessivo, hoje ele usa de todo esse sentimento que transborda de seu coração para ajudar uma amiga a se livrar da brisa fria da noite, compartilhando 20 reais de sua mísera renda diária para ela dormir em um lugar um pouco melhor que os bancos da rua. Penas leves de um filtro dos sonhos e o horóscopo lhe dão a crença

de que está protegido dos males que este mundo pode lhe causar. – Faz assim: coloca este filtro dos sonhos em cima ou do lado da sua cama, que você dormirá como um anjo; todos os pesadelos ele irá desviar de você. Caso isso não aconteça, volta aqui e eu troco por um doce de leite condensado”.

“ As pessoas só amam uma vez na vida. ” Filtros dos sonhos à parte, o pesadelo de cair no mundo das drogas se tornou real. Este amante do mundo já teve que ser internado quatro vezes para tentar se livrar de um vício, o álcool. Após separar-se de sua amada esposa, saiu da idolatrada cidade para vagar nas mais diversas ruas de diferentes municípios, em busca da verdadeira paz. F o i d e s s e m o d o que ele veio parar na Ilha da Magia. Deslumbrado com seus encantos, resolveu montar seu pequeno abrigo em um lugar por ele considerado muito mais

que privilegiado, às margens da Ponte Hercílio luz. Passa os dias vagando de praia em praia vendendo artesanato, ou, então, rondando o centro de Florianópolis, indo da rodoviária à praça XV, da catedral aos becos mais escuros, mas sempre para “pra tomar um cafezinho e fumar um cigarrinho ao lado da figueira, néh”. Convidou todos seus amigos para sua festa de aniversário que vai ser embaixo da ponte, “só precisa levar morango, leite condensado e vodca”, para ele fazer drinks e lembrar da época em que era barman. Este é Marcelo Damasceno, até o momento, um viajante que parou alguns dias nas ruas de Florianópolis.

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O encanto da rua Toda a galera estava sentada na escadaria da catedral de Florianópolis. Éramos uns trinta alunos. Não sabíamos se olhávamos o céu, que naquele dia, exatamente, deu um show e se exibia com suas cores, ou se cuidávamos as pessoas caminhando, porque, afinal, a galera estava lá para ser percebida, ou melhor, para perceber. Foi assim até que toda a turma se reuniu e seguiu em direção ao centro da praça XV, para começar a tal da vivência. Havia rostos assustados, porque estávamos no centro da cidade à noite. Era um tanto quanto perigoso. Porém, o que mais queríamos era viver esse perigo e descobrir o que a praça XV, o centro, a cidade, mais precisamente, nos contaria. E foi desse modo que embalamos a conversa com as pessoas que estavam por lá, os morador-

es e até alguns apaixonados daquele local. A chuva começava a cair. Toda a vivência teve apenas um único problema. A gente pensava que o pessoal que nos “receberia” lá, não ia querer conversar por livre e espontânea vontade; foi aí que nos enganamos. Bastaram poucas palavras para os mais extrovertidos compartilharem seus pensamentos e até alguns sentimentos com nosso grupo. Quando vimos, havia colegas aprendendo a fazer malabarismo em meio a nuvens de fumaça de cigarro e outros conversavam até em espanhol para ver se conseguiam uma história a mais. Foi no meio de nuvens de fumaça que conseguimos as melhores histórias para contar das mais diversas formas. Foi em baixo de de chuva que conhecemos pessoas encharcadas de amor. Foi nessa vivência que percebemos pessoas e lugares impercebíveis.

Crédito: Bruna Tomaselli

Através a música na Praça XV, o artista ganha sua vida.

Crédito: Bruna Tomaselli

Os brilhosos raios de sol que embalam o dia na Praça XV.

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A vida que ninguém viu “Se quiser um conselho, vá. Vá com medo, apesar do medo. Se atire. Se quiser outro, não há como viver sem pecado. Então, faça um favor a si mesmo: peque sempre pelo excesso.”

Por Bruna Tomaselli e Wellinton S. Farias

Eliane Brum e seu estilo único e surpreendente de escrever. Em seu livro “A vida que ninguém vê” que conta 21 de suas melhores histórias já feitas. São fatos tão simples vividos por pessoas tão comuns que jamais virariam uma pauta jornalística, e somente alguém com coragem foi capaz de transformar essas maravilhosas “notícias” em um livro de histórias encantadoras. É através dessas histórias, que se pode perceber no decorrer do livro, como há pessoas e lugares impercebíveis, não apenas nos acontecimentos que a autora conta, mas fazendo ligação com o dia a dia de qualquer um. Quem nunca caminhou do trabalho até em casa sem olhar por onde estava?

Por esses e outros motivos, o livro de Eliane Brum é caracterizado como flanêur. Mais especificamente falando, um flanêur é aquele que flana pela cidade em busca de acontecimentos inéditos, para conhecer aquilo que talvez nunca será conhecido ou reconhecido. Flanêur é aquele que sente a cidade e as pesoas que nela estão . A flânerie nos proporciona um olhar mais humano e um pensar mais autocrítico. Assim dizemos porque toda vez em que tentamos compreender a singularidade no meio da multidão se percebe que podemos tornar especial histórias e personagens que jamais pensaríamos desvendar. A nobreza do desamparado ou os mistérios da rua amadurecem nosso conhecimento sobre o mundo, e sobre como o enredo que cruza nossas vidas e diferentes histórias eleva o espírito. Eliane Brum ao escrever “A vida que ninguém vê” vai ás ruas de sua cidade, Porto Alegre, para trazer á tona fatos incríveis de pessoas impercebíveis, ora pela história do homem que fica na sinaleira e todo mundo o conhece como “Sapo” ou contando sobre funeral de uma criança, cuja família não tinha dinheiro para pagar seu caixão, como ela mesmo fala, “A morte de Pobre”. São passagens

Crédito: Bruna Tomaselli

Malabarista mostra suas “mágicas” encostado à um banco no centro da Praça XV.

que você se comove durante a leitura, ora chora ora ri, e se identifica com a leitura, pelo simples fato de também não erceber incríveis histórias que se passam durante o seu dia a dia. Como diz Eliane Brum: “É que as piores deformações são as invisíveis.”

Na foto, Eliane Brum aos 42 anos de idade.

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Diário dos esquecidos A rua é como uma grande biblioteca que abriga histórias épicas, trágicas e cômicas. E não há um só dia em que não se aprenda algo perambulando por ela

Por Bruna Nicoletti

Ele escuta e escreve histórias dos moradores de rua em pequenos papéis achados pelo caminho. Tem sonhos pretensiosos: compor o livro que dará a toda essa experiência de vida um sentido. Daqui a três anos ele deverá ter montado sua “kombicasa-escritório”. Caveira quer fazer dela um lugar inspirador não só para ele, mas para todos que terão suas histórias narradas. A história paralela de FlorianóCrédito: Guilherme Martins da Cunha

A figueira das promessas

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polis tem muitos personagens. Alguns deles, esquecidos pelo tempo, não cessam de desaparecer. A Praça XV sempre acolheu o povo e suas rebeldias, os protestos estudantis, a onda hippie, as andanças boêmias. Mas hoje quem ocupa esse coração urbano são os moradores de rua. À noite, quando ninguém mais se lembra do lugar, são eles que fazem a praça renascer como palco de uma cidade clandestina. Algumas das histórias que um dia darão vida às páginas do livro de Caveira encontram-se neste diário que agora escrevo. É uma tenta-

tiva de começar a história oral dos que passam despercebidos diante dos olhos de vidros que rondam a cidade. Mais do que reportar o que se viu e ouviu, este diário quer reconstituir o clima da vivência, do convívio e da troca de experiências com os que sobrevivem nas ruas. Primeiro Dia: “Grandes homens do mundo” As viagens, a rua, a liberdade são elementos fundamentais para Jonathan. Formado em medicina, deixou tudo para trás e foi seguir seu destino. Caxias do Sul se tornou pequena para a alma deste grande homem do mundo. “Vocês conhecem a lenda da Figueira? Duas voltas e logo arrumam um namorado, se quiserem casar dão três”, explicou G, o pernambucano para mim e Manoella. Sua história convenceu e logo nos viu dando voltas em torno da árvore lendária. Gabriel, ou “Lúcifer Arcanjo Gabriel”, como é conhecido, morou na rua por um pequeno período, mas está sempre complementando a paisagem da praça. Parafraseando o ditado popular: “você sai da rua, mas a rua não sai de você”. Tatuador, que notadamente ama o que faz, demonstra com os desenhos que cobrem o corpo a paixão pela profissão. Quando lhe disse que sempre quis fazer um elefante no braço, o anjo nem me esperou terminar para falar de seu desenho: “Eu tenho um muito bonito, com estruturas de metal e uma casa em cima; tenho que te mostrar!”.


Todas as expectativas sobre o que ocorreria no desenrolar desse primeiro dia foram ultrapassadas. O sentimento de distância e receio foram substituídos pela convicção de que qualquer barreira social pode ser derrubada. Eles, que em um primeiro momento se assustaram com nossa chegada, voltaram, debateram nossas ideias e nos situaram na realidade de suas vidas. Segundo dia: “Eis que chegam os malabares!” Terminal Rita Maria. Pessoas saindo e chegando com malas nas mãos, alguns com pranchas de surf, outros com animais. Uma aula de kung fu ocorria no segundo andar da rodoviária. O recémchegado de Caxias do Sul contou que escolheu a feirinha da Lagoa para vender sua arte. Os ônibus chegavam e partiam naquele fim de tarde chuvoso, muitas histórias que bem caberiam no livro de Caveira acabavam ou então estavam apenas começando. “Pra tu conhecer a rua e a verdadeira história de quem está nela, tens que passar fome, frio, chuva e calor. E é só assim que tu vai começar a entender”. A frase de um dos moradores no dia anterior não me saía da cabeça. Apesar da chuva, do frio e de todos os empecilhos, precisávamos ir para as ruas. O terminal ficou para trás, e as ruas do Centro nos acolheram novamente com suas surpresas. Repentinamente, surgiram os malabaristas, um pouco afastados da ágora da Praça XV onde estávamos inicialmente. Franco e Kátia treinavam com bolas e pinos. Um massagista uruguaio descendente de italianos os acompanhava, insistindo em vender suas pulseiras e marcar massagens. A chuva havia cessado, mas a água continuava a escorrer entre as pedras que co-

brem a cidade. Kátia estendeu os pinos, peguei-os, ela riu da minha primeira tentativa e fez novamente os movimentos. Nas suas mãos, parecia mais fácil. Deixei cair novamente e mais uma vez. Cruzamento entre avenida Paulo Fontes e Rua Arcipreste Paiva. A sinaleira abre, mas o amigo de Franco e Kátia ainda está de mãos vazias em meio aos carros que começam a partir. Na calçada, encostado no poste com um chapéu panamá, outro viajante da América do Sul olhava fixamente o mapa da Ilha e decidia qual seria seu próximo destino: Ingleses ou Canasvieiras?! Na despedida, tentaram nos Crédito: Marcela Silva Teixeira

Surgiram os malabaristas

impressionar uma última vez com a sua mágica. Terceiro dia: O recém-chegado Cada pontinho desenhado no mapa lembra uma experiência. Os amigos que fizeram, as dificuldades que passaram. Para quem viaja, cada lugar descortinado produz uma sensação única, principalmente para os que mudam de praça sem sair da rua, onde está o pior e o melhor da cidade. A rua é o meio que proporciona essa migração intensa e contínua. Kátia já não pertencia mais às ruas de Florianópolis, enquanto Itajaí recebia uma nova visitante. À espera de sua companheira de jornada, Franco deseja encontrá-la novamente antes da data de sua partida. Ele aguarda apenas a Convenção de Malabarismo e Circo para cruzar a fronteira do estado e seguir a viagem que tem como rumo o carnaval da Bahia. O argentino nos recebeu empolgado, cumprimentando com mãos e beijinhos e logo, sem perguntar, ofereceu as bolas russas para treinarmos, repetindo as façanhas do dia anterior. Franco nos apresentou aos novos moradores da Praça recém-chegados do Paraná e da Colômbia. O colombiano era Oscar, artesão que utilizou um meio de transporte um tanto inusitado para viajar da Colômbia ao Brasil: uma bicicleta. A companheira de viagens já presenciou muitas aventuras entre os oito mil

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km que hoje separam Oscar de sua casa. “Ainda levo muita coisa, mais da metade é só artesanato”, disse, apontando para o “bagageiro” da bicicleta. Sobre o Brasil, mostrou encanto pelas pessoas. Sua primeira experiência no país foi na Região Norte, onde logo se apaixonou por uma brasileira. Contou também que seu trabalho era muito valorizado. “As pessoas daqui gostam de artesanato, mesmo que não queiram pagar muito por ele”, ele, alegando que isso não ocorria em países como Argentina e Venezuela. Oscar notou muitas diferenças entre os países que visitou, mas a que mais lhe chamou a atenção foi na Venezuela, quando graças a crise se sentiu obrigado a abandonar seu meio de transporte “tradicional”. “Lá eu preferi andar de coletivo porque a passagem é muito barata e a comida é muito cara. Então se eu passasse muito tempo na Venezuela gastaria muito dinheiro me alimentando”. Conterrâneo do emblemático traficante Pablo Escobar, relatou o clima político da Colômbia onde, apesar de notáveis melhorias, as pessoas continuavam sempre desconfiadas. “Um amigo meu sempre me dizia: aqui você não sabe com quem está falando. Pode ser um guerrilheiro, um traficante, um policial”. Esse clima tenso faz com que as pessoas se fechem mais em relação a outros países. Já mais descontraído, tentava nos convencer de que viajar de bicicleta não era tão absurdo quanto parecia. “Quando a gen-

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“Ainda levo coisa demais, mais da metade é artesanato”.

e espanto, mais um dia da nossa “vivência jornalística”. Esses artistas que conhecemos hoje são moradoras de rua, mas acima de tudo são viajantes. Para eles, não importa o hoje, o que os motiva é saber para onde vão amanhã. E isso é fascinante. Voltei pra casa pensando quantas histórias fascinantes Caveira poderá reunir.

te fuma consegue pedalar uns 30 km sem parar”. O próximo destino Quarto dia: “Vem olhar que tu do colombiano e sua companheira é a Patagônia. Há apenas um dia aprende” em Florianópolis, o peregrino coOs usuários conversam na vameça a planejar seu novo caminho randa, fazem bonecos com massa rumo ao desconhecido. Avisados da sopa que estava de modelar, jogam pife ou xadrez. sendo oferecida em um cruzamento perto da praça, os amigos da rua nos pediram para que cuidássemos de seus pertences. E ficamos ali, com tudo o que eles possuíam, pensando justamente em como confiaram na gente, um grupo de estudantes que tinham acabado de conhecer. Depois nos despedimos, vendo passar, com um misto de encantamento

“Quando a gente fuma consegue pedalar uns 30 kms sem parar”

Crédito: Marcela Silva Teixeira

As pedaladas colombianas


Crédito: Guilherme Martins da Cunha

As pedras refletem o talento dos artesões

Quando saem da escuridão das vielas noturnas, o centro POP é para eles como uma casa onde, todos os dias, encontram abrigo e alimento. “Vem olhar que tu aprende”, disse Gê, enquanto me desafia a entrar na próxima rodada da jogatina. Entramos eu, Lúcifer, Gê e Lili. Na primeira, eu estava apenas aprendendo a jogar pife, mas na segunda, já ganhei e, no fim, já tinha tirado o “professor” da mesa. “Hora do chafé: vão colocar seus nomes na lista!”, convidou Jonathan. Chamados pelo nome completo, eles vão um por um, comer talvez sua última refeição do dia. Acabou o café, acabou a ordem. Agora voltam os velhos hábitos, os banhos e os jogos. Marcelo pede como sempre o dinheiro da pinga. Oscar, Gê e Lili, uma garota argentina aprendiz de malabares, voltam a jogar cartas. Um outro lê o livro de autoajuda. Cíntia, namorada de G, faz filtro dos sonhos. Uma ambulância chega, atende o paciente e desaparece novamente. Quando se entra no POP não é

possível imaginar quanta história é escrita no lugar. Os camarotes da passarela Nego Quirido dão vez a oficinas de desenho, música, bailes e campeonatos de dominó. Mas também há o outro lado: devido à falta de segurança que existia antes da Guarda Municipal cuidar do centro, facadas eram trocadas no banheiro e brigas só acabavam quando um dos envolvidos saísse inconsciente. Hoje os moradores de rua, chamados de usuários do centro pelos funcionários, passam por um processo de revista antes de entrarem no local. Os objetos que podem ser usados como armas são confiscados e devolvidos quando seus proprietários deixarem o centro. Mas as drogas têm que ser deixadas para trás. O drama das mulheres e transsexuais foi contado por Mariana, estagiária do POP. “Elas sofrem muito preconceito nas ruas, mas aqui fazemos de tudo para tentar ajudá-las”. Para as mulheres, a rua é uma questão de sobrevivência diária. Muitas se sujeitam a parceiros que

as usam como prostitutas e saco de pancadas apenas por segurança. Preferem sofrer com um, do que viver fugindo de todos diariamente. As transexuais encontram todas as dificuldades das mulheres de rua, porém agravadas pela estrutura social vigente. Não é apenas a rua que as oprime, e não apenas os homens. Nada disso, porém, rouba o seu desejo de glamour: “Quando se montam, elas ficam radiantes”, relata Mariana. Eram quase seis da tarde, ainda estava claro graças ao horário de verão, mas já era “hora de subir” para casa. E, como todos os dias, os personagens de Caveira partiram em direção à Praça XV, que já ensejava a volta de seus habitantes noturnos. Moradores do relento, alguns já tiraram de si tudo que possuíam, menos essa essência rueira e vira-lata, pois isso nem eles conseguem arrancar da alma.

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O amigo das ruas Perdido, sem dinheiro, casa, ou alguém para se preocupar, sentiu que não tinha mais volta, e se entregou ao que a vida podia lhe oferecer no momento Por Gabriela Meira

Sete horas da noite, eu estava na praça da Bandeira no Centro de Florianópolis. Dois moços conversavam, aparentemente dois moradores de rua. O dia estava calmo e não muito frio, algo bem agradável, considerando que nas últimas semanas só chovera. Parei para conversar com um deles e percebi que havia outro moço um pouco escondido se preparando para usar seu cachimbinho. A cabeleira cacheada, coberta por um boné com abas, moldava o rosto mal encoberto por uma barba rala. Escondido em um cubículo que servia de esconderijo das ruas, me observava atentamente. Quando terminei meu pequeno diálogo com os outros dois moradores, decidi ir embora, mas ouvi um chamado e automaticamente olhei para trás. Foi aí que conheci meu colega da vida, Diego. Carioca, 33 anos, há cinco morando na rua. Fala bem três línguas, para ser exata, incluindo um francês impecável. Nunca arrumou encrenca. Embora tenha muitos conhecidos, dá abertura a poucos para serem seus amigos. Sempre dono de si, não depende de ninguém. Aos 12 anos, conheceu as drogas em Florianópolis, para onde havia acabado de se mudar com a mãe. Mas aos 16, quando a vó chorando presenciou uma cena que caracterizava seu neto como um usuário de crack, decidiu mudar. Ela lhe ofereceu ajuda e ele aceitou. Conseguiu retornar os estudos e teve

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Crédito: Reprodução

O pequeno livro de poesia de Jony traz reflexões sobre liberdade, felicidade e o amor

uma vida boa. Formou-se na UFRJ em Turismo e Hotelaria trabalhou por quase 10 anos no Sheraton Hotel, onde começou com humildade, atuando como garçom . Depois de mostrar seu grande potencial, virou gerente de recepção, chegando a ganhar um salário de quase R$ 5mil mensais. Teve dois relacionamentos na vida, um ainda na faculdade, que durou cerca de um ano, e o mais recente, que se manteve durante oito anos. Já estabilizado na vida, Diego passou por dois momentos dolorosos, a perda da vó e por fim da mãe. Quando a vó faleceu ele conseguiu se manter em pé, trabalhando, pois podia contar com a mãe. Sua relação com ela sempre foi muito boa, sempre incentivado a buscar conhecimento de tudo e se destacar em tudo que fazia. No meio de nossa conversa, ele me disse: “Ela era minha base; eu fazia tudo por ela, tudo para ela dizer: ‘Olha lá, meu menino’ com um sorriso

no rosto e muito orgulho”. Após uma série de problemas respiratórios, a mãe precisou de uma cirurgia. Foi aí que, como bom filho, decidiu voltar para Florianópolis, na época já casado. Veio com a mulher, genro e sogro, vendeu carro e casa. Um tempo antes da cirurgia, a mulher o deixou e, para o seu desespero, a mãe teve complicações na cirurgia e faleceu. Ficou por Floripa só para providenciar o velório, mas quando decidiu voltar se viu perdido. Não tinha mais alguém para se espelhar, ou alguém que o incentivasse. Com o dinheiro da passagem no bolso, desistiu de voltar ao Rio e subiu o morro para comprar drogas. Depois, quando se viu perdido, sem dinheiro, casa, ou alguém com quem se preocupar, sentiu que não tinha mais volta e se entregou ao que a vida podia lhe oferecer no momento, que era a rua. Nunca procurou abrigo. Disse que após voltar ao


vício, ele serviu como válvula de escape da realidade. Diego nunca precisou de um lugar concreto para ficar. Ele diz que usa seu cachimbo para tentar ficar acordado o máximo possível, depois acha um canto pacato pelo centro e apaga, muitas vezes acordando sem lembrar onde está ou o que fez nos últimos dias. “Algumas pessoas se sentem bem com isso e se torna normal, natural, como é natural para você chegar em casa e tomar um banho. Por isso é natural para nós pegar um papelão, uma calçada, conseguir uma comida em algum lugar, é o cotidiano. Sabe, não penso totalmente dessa forma, mas preciso de repente de algo a mais, de alguém, de repente, que eu tenha que fazer sentir orgulho; acho que é isso, alguém que se orgulhe de mim, alguém que aponte e sorria ‘aquele lá, ó, eu conheço ele, que legal cara, me orgulho dele’. Acho que meu esforço todo, na minha vida inteira, foi para isso, para essa pessoa, minha mamãe, dona Ana Maria, para que se orgulhasse. E como o filho não veio, fica a questão, talvez seria uma pessoa para me apontar e dizer ‘aquele ali é meu pai’. Talvez pudesse ter sido diferente, se eu tivesse tomado outra decisão. Hoje eu estaria bem, com certeza, porque eu não deixaria tudo isso acontecer, jamais iria deixar alguém da minha família passar por alguma dificuldade.”

A sinceridade por trás da lente

Existe pessoas que passam a vida inteira no nosso lado e não notam a nossa essência, muito menos os detalhes da vida. Não sentem, não veem a beleza das coisas se eles não estiverem escancarados, por outro lado existe pessoas que conseguem observar cada detalhe, que conseguem captar a nossa alma. A fotografia de rua é um exemplo do flânerie, porque só podemos controlar a lente e não o que vamos ver, e que por meio de imagens mostra os detalhes de pessoas que passam por nós diariamente, que capta a essência, o gesto não esperado, o sorriso torto, a expressão facial menos esperada e mais bonita e sincera. Walter Benjamin escreveu um pequeno ensaio intitulado ‘A Pequena História da Fotografia’ (1931) onde analisa as transformações que se deram na criação das obras de arte. Com a finalidade de entender como a reprodutibilidade técnica transformou e repercutiu a área da formação artística e como tal transformação precisa criar novas categorias estéticas para poder pensa-la. Partindo da análise de ensaios de fotógrafos como David Hill, Benjamin apura como a imagem é capaz de reproduzir momentos desconhecidos da nossa realidade, gerando reflexão e novas formas de analisar. É a partir da perda da essência da fotografia que Benjamin faz uma avaliação crítica da fotografia, sendo assim o auge da fotografia vai de sua origem em 1839 esticando-se até 1850 onde a fotografia começa a decair devido ao processo de industrialização. Sendo assim a história da fotografia passa por três processos, o primeiro é exemplificado com imagens onde mostra gestos simples que não são exigidos pelo fotografo e onde fotografado se sente inibido sem saber qual será o resultado do processo. O segundo mostra que a essência da singularidade da fotografia foi se perdendo e que a tentativa de voltar só piorava com a facilidade até então da reprodução, e o terceiro Benjamin afirma que a industrialização modificou muito a forma de analisar a fotografia, porém ainda existe fotógrafos que conseguem captar essa essência que existia no início e que as qualidades das fotos iriam melhorar com esse avanço das formas de tirar foto.

A Plateia Desconhecida Minha ideia sobre o Flânerie começou a desenvolver-se após as aulas e muita leitura, com um semestre e meio eu já comecei a formular como seria a minha experiência direta com o ato de flanar. Dia 20 de outubro, o tão esperado dia em que começaria a me aventurar pelo centro de Florianópolis, o céu estava bem apagado, e apesar do desanimo com a possível chuva me mantive confiante. Sai mais cedo do serviço e fui ao encontro das professoras e colegas, nos encontramos na escadaria da catedral e de lá seguimos junto para o coreto da Praça XV. As apresentações foram minuciosamente pensadas, de tanto que de começo o texto inspirador das professoras fez que não só nós alunos prestássemos atenção como os moradores que ali estavam. Não invadimos seu espaço porque fomos convidados a estar ali, fomos aceitos e acima de tudo muito bem recebidos. O grupo da música começou e a experiência de estar ali foi magnifica, de tanto que a maior recompensa foi ver um dos moradores cantando junto conosco. Depois o próximo grupo nos mostrou o quanto tantas pessoas passam despercebidas e ao dizer “eu existo” percebemos o quão pequenos somos em meio a esse conturbado mundo que não para. Encerramos o dia com muita alegria, choros de emoção e conversas inspiradoras. Após isso a facilidade de conversar com outras pessoas só foi aumentando, a curiosidade para saber como é a vida de cada pessoa que por ali passa, quais são suas angustias, seus sonhos, quais foram suas maiores felicidades, se estar ali é uma escolha, e se o amanhã é recomeço ou está chegando o fim.

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Quando a rua é mãe e madrasta Gabriel tem apenas 20 anos e foi parar na rua aos 16. Sua mãe nunca o procurou.

Por Thuani Regis Mendes

Ele saiu de casa aos 16 anos por conta de brigas constantes com o padrasto, além de ter chegado recentemente na família, ele já queria mandar em todo mundo e qualquer coisa já partia para a agressão física. Quem mais sofria essas agressões era a mãe. Mas Gabriel tinha consciência de que fazia muita besteira, “coisas de moleque” como ele mesmo se referiu. Sua mãe então mandou-o morar com a avó em Balneário Camboriú, mas por não se dar bem com as primas, não aguentou muito tempo por lá e voltou para Floripa. Foi de-

mitido do estágio e largou os estudos e então resolveu ir morar com uns colegas. Ele tinha aprendido a tatuar com um primo, e então começou a se manter com isso. Mas aí conheceu as drogas com esses mesmos colegas com quem foi morar e começou a vender suas coisas, partindo do computador. Logo depois eles voltaram para a casa dos pais, mas ele não queria voltar para casa, então passou sua primeira noite na rua. Fazendo sua mochila de travesseiro, e um papelão de cobertor, foi para a marquise do INSS. Fazia muito frio naquela noite, então ele não conseguiu dormir e mais ou

Crédito: Tiago Bento

“Saí de casa achando que minha mãe viria atrás de mim. Mas foi passando aniversário, Natal, Reveillon e nada”

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menos às 2 da manhã resolveu dar uma volta na Beira-Mar Norte, o que não foi bom. Conheceu alguns caras e teve seu primeiro contato com a cocaína. No outro dia, foi fazer o cadastro no Centro Pop, tomou banho e deixou suas coisas num armário. Ficou na rua por mais ou menos um ano e meio, até parar pra pensar e ver que essa vida não ia levá-lo a nada. Conseguiu refazer seus documentos e arrumou emprego de telemarketing. Todo seu salário era gasto com drogas. Aos poucos foi diminuindo o consumo, largou o emprego e foi morar com um amigo na Lagoa da Conceição. No estúdio de um amigo, começou a tatuar, mas depois de quatro meses, voltou a morar na rua. “Comecei a faltar, a minha credibilidade com tatuagem comparada a dos outros tatuadores era muito menor, eram tatuadores de quinze e vinte anos, aí eu comecei a tatuar em casa”. Só conseguiu ficar três meses em casa, enquanto o padrasto não estava. Mesmo em casa, não parou de consumir drogas. Depois de algumas overdoses graves, por misturas de entorpercentes, Gabriel saiu de casa de novo e resolveu parar com as drogas. Conversou com um amigo, o G, que também era morador de rua, e resolveram alugar uma quitinete no Morro do Mocotó, onde vivem até hoje, mas estão sempre na praça pra conversar com os amigos que fizeram.


Meu colega Tiago Bento, que estava gravando a entrevista, perguntou a ele: - O que a rua oferece que faz muitos que têm uma vida estável, mesmo assim preferirem estar na rua? - Existem dois caminhos: um é o das drogas e o outro é a comodidade e medo de enfrentar o mundo. Perguntei como lidava com o preconceito. - Não ter baixa autoestima e não ter vergonha da sua real situação. Acho que as pessoas aceitam. O preconceito vem da negação - de ambos os lados. A maior saudade dele são os irmãos. Há um tempo encontrou no terminal a irmã de 15 anos, de quem ele parece se orgulhar muito. A emoção tomou conta, mas depois desse dia nunca mais se viram. No futuro ele espera estar fora do Brasil com um estúdio de tatuagem famoso e com uma família. O maior medo de Gabriel é que seus filhos sigam seus passos e não os ensinamentos que foram fruto de sua experiência e sofrimento.

Crédito: Tiago Bento

Making Of

Um aprendizado para a vida Era uma terça-feira nublada, e nós alunos do segundo ciclo do curso de Jornalismo, fomos para a praça XV fazer nossa primeira flânerie. Nos sentamos no pequeno teatro aberto que se esconde embaixo das árvores, onde as professoras fizeram a introdução do trabalho, falando um pouco sobre os objetivos da atividade. Depois nós, alunos, homenageamos os habitantes das ruas e a prática da reportagem com uma performance que preparamos para eles. A jornalista Elaine Tavares também estava lá para nos contar um pouco de suas experiências. A certa altura da noite, começamos

a ser surpreendidos pelos moradores de rua que começaram a se aproximar e participar conosco daquela inesperada “tribuna”. Histórias lindas, frases impactantes, sabedoria de rua. Quando cada um foi para o seu canto me aproximei de um garoto que conversava com a professora Raquel Wandelli. Dez minutos de diálogo foram o suficiente para me deixar curiosa para saber mais coisas sobre ele. Demos uma volta pela praça e na Travessa Ratcliff antes de encerrar a flânerie e voltar para casa. No ônibus fiquei o tempo todo com a história dele na cabeça. Entrei na internet para falar para o meu namorado tudo o que tinha ouvido, e

quando cheguei em casa não foi diferente ao encontrar minha mãe. No outro dia, voltamos para o centro, mas como estava chovendo e tivemos que ir para a Rodoviária, me senti perdida. Já estava com a história do Gabriel na cabeça e precisava contá-la. Por sorte, parou a chuva e fomos para a praça. Assim que o vi, corri para perguntar se aceitava contar sua história para mim. A narrativa que transcrevi foi muito mais que a realização de um trabalho jornalístico, foi um transpor barreiras e um aprendizado para toda a vida. Certo ele ao dizer que as ruas ensinam.

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Memórias de um músico esquecido Guizo tem o sonho de se tornar imortal através das palavras

Por Ricardo Toledo

Naquela esquina, entre as ruas Trajano e Conselheiro Mafra, onde o vento sul atrapalha o caminhar e esfria o início do dia de quem vai ao trabalho, o som do violão de “Guizo” ecoa os primeiros acordes. Raul Seixas, Cazuza, Legião Urbana. O repertório é amplo e o artista de rua começa a percorrer os dedos enrugados no braço de sua bem-cuidada viola. Há dois mil anos, se ao longo do Rio Jordão pregasse ou cantasse, a longa barba e o cabelo comprido de Guizo poderiam os mais distraídos confundir. A boca do povo exclamaria: profeta! Na Grécia de Platão diriam: filósofo! E neste campo ele também joga. Além da paixão pela música, gosta de filosofar sobre os acontecimentos do cotidiano social e político brasileiros. O cenário é sempre o mesmo. Sente-se bem no canto do prédio da esquina oposta ao famoso Senadinho, no centro da Capital. Guizo é receptivo. Faltam-lhe alguns dentes, mas o sorriso brota do rosto com facilidade. Concede espaço para quem quer conversar como quem recebe alguém em casa para um café. A proposta da conversa o anima. Acostumado a dividir suas experiências com outros jornalistas, Guizo não se intimida, não se envergonha. E, conta sua história, sem desconfiar. A rua é o palco, mas não sua morada. Guizo tem “um canto” no continente. Costuma acordar cedo. Seu digestivo, pão com café. O centro da cidade é onde atua, portanto. Logo cedo toma o ônibus, ou a caminhada lhe conduz ao destino. Guizo não deixa saudades em casa pois mora sozinho. Sua companheira é a viola. Diz ser feliz e agradecido pela vida que leva, apesar de alguns desconfortos. Ao se aconchegar na esquina onde se apresenta, as músicas fluem nos seus pensamentos. Pouca é a ajuda que no cesto cai. O tilintar das moedas não animaria o cidadão mais otimista. Guizo, no entanto, não se abala, segue sorrindo, dá de ombros e valoriza a música que apresenta. No fim das contas, a soma das moedas lhe proporciona o almoço e paga algumas outras despesas.

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Guizo e seu inseparavel violao, arte e ganha-pão


O vento continua a soprar. A primavera é de chuva, a aparência da estação das flores é de outono. As pessoas, agasalhadas. O guarda-chuva, um assessório obrigatório. Naquela esquina, toca o violão. Os mais desavisados, contudo, podem não perceber. A música disfarça a solidão e a tristeza no semblante nos momentos de pausa. É uma sensação abstrata e sutil, mas não pode deixar de ser registrada. Naquela alma, um oceano de sentimentos e batalhas anônimas e sem importância para o público. Guizo parece não se sentir confortável ao falar do passado. Prefere trocar de assunto e dizer que eu não era o primeiro repórter que o abordava. Estava acostumado. Num determinado momento, muda o foco e conduz a conversa. Com orgulho indiscreto assume um papel desafiador. Teria muito a dizer ao povo brasileiro. Seu sonho seria escrever um livro sobre o cenário político nacional. Disse passar longas horas por dia refletindo sobre como a corrupção tomou conta das negociações políticas. O ex-presidente Lula era seu alvo preferido. Guizo afirma que o ex-presidente se tornou um dos homens mais ricos do Brasil após se aproveitar da cadeira da presidência. O músico tinha inocência e convicção no falar. Fiquei com a impressão de que ele seria capaz de escrever esse livro, ou outro qualquer. Da mesma maneira que desconfiei se ele não estaria divagando sobre suas ideias. Se conviver na rua por tanto tempo não afetava sua noção de realidade. A vida não lhe impusera limites e cujos obstáculos não seriam insuperáveis até o último dia de sua vida? Várias perguntas me ocorreram. Escrever um livro estaria dentro das possibilidades de um cidadão invisível? Ele teria realmente a consciência das entranhas políticas e das jogadas de sustentação do poder e do enriquecimento? O vento sopra e a chuva continua. O prédio nos dá proteção. Guizo volta ao violão, despreocupado. Me despeço de Guizo e volto à rotina perseguido por um desejo: ver seu livro exposto em alguma livraria, o sonho de um homem esquecido realizado.

A argila do narrador Objeto de estudo de Walter Benjamim, o escritor Nikolai Leskov dizia: “A literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim que se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais.” E o que é o trabalho do narrador, senão colocar as mãos na argila e moldá-la, dar forma ao barro, dar vida a um amontoado de lama espalhada? Lapidar o pensamento, transformar a pedra sólida na escultura de Moisés, o mais perfeito trabalho de Michelangelo. O gênio, absorto pela própria criação, expressa em italiano em direção ao que antes era rocha: “Parla, Moisés”. Fale, Moisés, tu que eras antes pedra morta, te trouxe à vida, e agora, a eterna admiração humana será tua companhia. A desafiadora, recompensadora experiência de dar vida ao esquecido e entregar-se à narrativa começa com a compreensão do bombardeamento de informação em que estamos inseridos. Segundo Benjamim, a informação matou a narrativa. A

cada segundo, milhares de explicações diante de nossos olhos. Mas o que nos surpreende? Como a informação não está a serviço da narrativa, a explicação se faz necessária. E a autonomia de absorvermos e interpretarmos o episódio narrado foge das nossas ações. A história não fala por si, pois a informação só tem utilidade quando é novidade. E a narrativa atinge a amplitude nunca alcançada pela informação, viaja através dos séculos, conserva sua força, nos impacta. Mas como formar vaso de argila, esculpir Moisés de pedra? Enquanto estivermos presos à informação, impossível. A rocha continua rocha, a argila, lama. É no encontro consigo mesmo que o dom da palavra e a voz do invisível surge. Ao assimilar o que o outro tem a dizer coloca-se em jogo a própria dignidade. E nas camadas da sociedade surgem histórias inspiradoras de onde o observador coleta sua inspiração. E dali parte com o material adequado daqueles que nunca tiveram voz.

Memória armada Munido de um gravador, saio pelas ruas da Capital em busca de um personagem que poderia habitar as linhas do meu texto. O equipamento era mais uma forma de garantia. A memória, desta vez, seria minha arma. Precisava contar com ela e provar pra mim mesmo que era capaz de me lembrar dos pontos mais importantes da conversa. Sem dúvida, me apresentar a Guizo foi a parte mais difícil. Não medo, nem preconceito. O desconhecido me deixava com um certo receio. Mas foi preciso apenas um “olá, tudo bem?” para descons-truir a ansiedade. Foi sentar e deixar a conversa fluir.

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A rua por um acaso Desempregado, Gilberto sonha com um emprego para deixar a rua, que habita há 21 dias

Por Claudiany Wagner Schutz

Num passado não tão distante, a rua era vista com um local de brincadeiras e aventuras, cenário de uma infância de gerações. No entanto, também serve de abrigo, de desafio e de questionamento. “Quando cheguei estava muito eufórico, feliz, me senti bem, mas no dia seguinte já caiu a ficha”, declarou Gilberto Brissant, natural de Recife, que vivencia a rua há 21 dias. Um período que separa Gilberto do mundo em que ele distinto do que ele vivia.

A curiosidade e a vontade de conhecer outros lugares são desejos de Gilberto há muitos anos. Seu principal destino sempre foi São Paulo. Mas essa necessidade que habita seu coração estabeleceu a primeira parada o Rio de Janeiro. Distância entre sua cidade natal, o Recife, capital de Pernambuco, até Rio de Janeiro – mais curta, se comparada à que percorreria até São Paulo –, fez o nordestino optar pela cidade. A viagem de três dias teve pouco conforto; foi feita dentro de uma carroceria de caminhão, na companhia de doze cavalos de corrida. A passagem pela cidade durou

pouco tempo. Assim que chegou ao Rio de Janeiro, Gilberto conseguiu trabalho, moradia e alimentação. Não passou necessidade. Porém ele queria mais; São Paulo ainda estava em seus planos. Deixou o trabalho, aluguel e partiu. Dessa vez de carona com caminhoneiros. Lá permaneceu por mais tempo, também conquistou trabalho logo após sua chegada, e conta: “Tive muita facilidade, lá na grande metrópole é fácil entrar no mercado de trabalho”. Alguns pingos de chuva começam pender em nossas roupas, na tão majestosa praça XV. Gilberto logo me

Crédito: Claudiany Schutz

Entre diversos pilares da Praça XV de Novembro vivem os habitantes das ruas como Gilberto

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revela que em São Paulo sua felicidade não estava completa. A distância do litoral fazia falta para o amante do mar. Foi então que o novo destino se traçou. “Aqui é o lugar mais desenvolvido do país cara, o povo aqui é limpo, é educado, é finos” elogia Gilberto, ao se citar Florianópolis. Ao chegar à Capital Catarinense, logo na rodoviária, indicaram que fosse para as praias, onde, na temporada, há muitas vagas de emprego. “Ah, como eu já vinha com essa tal de Joaquina na cabeça, fui logo para lá. Fui a um, dois restaurantes, para fazer um teste, e consegui uma vaga. O Chefe perguntou: ‘ Tem residência?. ’Eu falei sim, tenho’. Só que nem conhecia nada” Gilberto fez o teste e ao final do primeiro dia após todos que irem embora, dormiu na garagem do estabelecimento. No dia seguinte com os colegas chegando para o trabalho. “Cara, vou dizer a verdade para vocês, não tenho onde ficar, mais não diz pro patrão se não ele me manda embora. Imagina um garçom morador de rua”. No final desse mesmo dia, um colega, também garçom, o convidou para dividir um quarto. Mesmo desconfiado, Gilberto aceitou, já que não tinha outra opção. E a partir daí que se deu bem, passou por outros restaurantes também, e por supermercados da região e também

se casou. Porém, como esse relacionamento não durou muito, o viajante resolveu voltar para São Paulo. “Eu não queria ficar aqui e ver minha mina com outro cara, sou muito sentimental”. Em seu retorno para São Paulo, passou por alguns apertos, mas nada comparado ao que está passando em Florianópolis hoje. “Já saí daqui garantido, tinha levado dois meses para o aluguel. Lá trabalhei em serviços gerais, panfletagem, em obra, mais nada como aqui”. Após um ano em São Paulo, retornou a Florianópolis. Dessa vez, sem dinheiro para se manter, veio apenas com o valor da passagem, e um dos trechos da viagem ainda foi custeado pela assistência social da rodoviária. Ele conta que, a partir daí, sua vida transcorreu “como uma bola de neve”. “Quando cheguei aqui estava super eufórico, me senti bem. Mas no dia que cheguei já vi que não tive acolhimento. No restaurante onde trabalhei o chefe não pôde me dar uma vaga, por causa da temporada baixa e das chuvas”. Após ficar uma semana no albergue público, não conseguiu mais vaga, devido o grande número de procura por abrigo. A própria dificuldade atual não está relacionada ao uso de química, afirma. Desde seu retorno a Florianópolis, no dia 2 de outubro, assegura não ter utilizado subs-

tâncias químicas, como álcool e cocaína, o que era habitual em São Paulo. O nordestino conta que teve uma reação alérgica, e toda vez que utiliza alguma dessas drogas, surta, apresentando comportamentos alterados. Desde então, decidiu evitá-las. “Meu pior dia limpo não se compara ao meu melhor dia na droga. E eu não troco meu dia limpo por nada”. Toda essa trajetória só o fez repensar nas necessidades, na ânsia de um futuro com mais livros e informações. O sonho de ingressar no ensino superior faz parte dos objetivos de Gilberto, que já é formado no segundo grau e tem curso profissionalizante. “Quero fazer Psicologia, só que eu falo demais, e lá tem que escutar”.As reviravoltas de sua vida transformaram conceitos estabelecidos por Gilberto, que conta não ligar para seus familiares desde que chegou a Florianópolis, pois tem vergonha de sua situação. “A gente passa na rua e vê alguém deitado ali e acha que é invisível, mais agora eu não julgo mais aquela pessoa; eu sei o que ela tá sofrendo ali, eu sei o que é delirar por comida, isso mexe com o psicológico”.

Em busca de poesias no ato de flanar Ao rumor de chuva, se misturando com os sons de relatos e contos foram quando os alunos do 2° ciclo de Jornalismo da Unisul visitaram a Praça XV de novembro, no centro de Florianópolis. Aplicando e enriquecendo seus aprendizados e estudos realizados durante todo o inicio do semestre em salas de aula. Após conhecer e compreender o universo de diversos escritores e jornalista nomeados puderam desenvolver suas próprias “flâneries”. Um ato que por sua vez expressa perambular com

inteligência, conversar sobre o espaço urbano e conhecer sua relação com a crônica com as pessoas ali inseridas. Durante a primeira e mais extraordinária noite, em minha opinião, foi possível passar por momentos de troca e diálogo com os moradores da rua, que foram se acomodando pouco a pouco a nossa volta. E assim seguiram dias de prática e conhecimento. Com a presença de grandes personagens da Ilha, como Elaine Tavares, jornalista, que trouxe sua vivência na primeira noite, guiando nosso expe-

rimento. Seguindo os outros dias, também vantajosos, mas que já não obtivemos o mesmo desenvolvimento quanto na primeira data – pois na primeira noite fomos acolhidos de forma excepcional, com maiores diálogos. Entretanto essa experiência que inicialmente englobou medos, receios e ansiedade de muitos ali presentes, finalizou com a vivência – idas à praça - porém deixa recordações, textos, histórias e lembranças do que jamais ficarão para trás.

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Andanças por uma Praça Majestosa A observação entra em cena num universo único, mas ao mesmo tempo tão natural. O que é visto todos os dias, e, no entanto não é notado transforma o bom narrador em um investigador apaixonado que elege seu domicílio no meio da multidão. Durante três dias, tivemos a oportunidade de viver essa experiência como estudantes de jornalismo, saindo às ruas, na tentativa de conhecer quem vive delas. O simples fato de poder compartilhar com eles suas histórias, escolhas, desilusões, erros, acertos, frustrações, modos de pensar nos deixou cada vez mais entusiasmados nessa aventura. Como almas de um bairro, as ruas, o centro da cidade são o coração de um município que acolhe personagens do anonimato e encantam o flâneur. Esse contexto está no caminho do jornalista catarinense Raul Caldas. Não se pode falar do ato de flanar sem se referir a ele, um grande escritor apaixonado por registrar os pequenos acontecimentos da rua e as coisas simples da vida. Natural de São Francisco do Sul, passou quase toda a vida em Florianópolis, formado em direito, jornalista profissional, cronista e ficcionista, exerceu diversas funções jornalísticas, mas além de todos os cargos exercidos atuou como um inconfessado perambulante das ruas. Embora não

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Crédito: Vitor Carlos

Raul Caldas, escritor Catarinense, costuma transcrever Florianópolis constantemente em suas publicações, que abordam desde a Ilha aos seus nativos e culturas

se autodenomine como tal, é legível em suas crônicas que perfilam os personagens da Ilha, o sofisticado e delicado ato de flanar. Em “Oh! Que delícia de Ilha” ressalta com clareza a habilidade em contar causos folclóricos ocorridos no cotidiano da cidade. O livro apresenta uma cole-

tânea de crônicas, reportagens, personagens e histórias passadas em Florianópolis. Muitas narrativas ocorrem na Praça XV de Novembro, que foi também cenário da nossa experiência de flânerie. Caminhando sem destino certo, sem rumo, em busca do homem da multidão.

“... as ruas, o centro da cidade são o coração de um município que acolhe personagens do anonimato e encantam o flâneur” - Raul Caldas


Um exemplo de mulher Solange, dona da banca de jornais, tem muitas histórias para contar aos seus herdeiros Por Cláudio Souza da Rosa

Força de vontade e garra não faltam na vida de Solange, que administra a banca mais antiga de Florianópolis. Localizada na Praça XV Novembro, de frente para um ponto de táxi e rodeada pelas árvores, a banca funciona desde 1904, há mais de cem anos, portanto. Nessa época, o mar ainda costeava a praça, que era cercada, e para entrar havia horário estipulado pela prefeitura. À frente do negócio estava o casal Irival Costa (67 anos) e sua esposa Solange Maria Costa (64 anos), uma senhora loira com cabelos brancos, de óculos com um olhar de cansaço, mas muito simpática e atenciosa. Como seu esposo encontra-se debilitado, Solange acabou assumindo o negócio da família e, desde então,

vem tocando a banca sozinha: organizando, repondo o estoque e atendendo os clientes. Apenas no período da tarde, quando o movimento é bem maior, uma pessoa a auxilia. Profissionalmente, fez amizades, manteve-se sempre bem informada e acompanhou as transformações no segmento. Desde que assumiu a Banca Praça XV, dona Solange viu as vendas caírem drasticamente, especialmente após o avanço das tecnologias e o acesso ao mundo digital. Outro fator que contribuiu para a queda das vendas foi o crescimento do comércio na região, o que resultou numa concorrência com as padarias, posto de conveniência, pequenos mercados, dentre outros. Ela conta que o segredo para manter o sucesso do comércio está na exce-

lência no atendimento e no preço justo: “Abro a banca às 8h, todos os dias, e só saio às 22h. Se não tem taxista saio um pouco mais cedo, pois o local fica muito inseguro. Só descanso no domingo porque a banca não abre, mas como é daqui que tiro o meu sustento e o da minha família, acaba sendo um prazer vir trabalhar”. Enquanto conversávamos, disse com uma voz suave e um pouco cansada: “Está difícil se manter no ramo. Atualmente, o nosso lucro vem da venda de bebidas, guloseimas, cigarros, recarga de celulares. O que é um lucro bai-

Crédito: Cláudio Souza da Rosa

Dia após dia Solange atende os clientes na banca da Praça XV

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xo”. Hoje, as edições de jornais em papel, revistas, livros, dentre outros, estão perdendo espaço para o formato digital. A solução encontrada para manter o negócio foi ampliar os serviços, o que transformou a banca em uma pequena loja de conveniência. Ela também relembra os velhos tempos, quando ao chegar à banca se deparava com uma enorme fila de leitores para comprar o jornal “O Estado”. “Recebíamos 200 exemplares do jornal de manhã. No início da tarde, meu marido tinha que sair para buscar mais, pois as prateleiras já estavam vazias, assim era com outros jornais”. Agora está vendendo meia dúzia de cada exemplar. Mas, conforme a dona da banca, ainda existe um pequeno público de leitores que buscam pelo impresso, mas eles consomem um material bem específico, entre

os mais procurados estão palavras cruzadas (como entretenimento), cadernos de vestibulares, apostilas de concurso. Geralmente, esses materiais são encontrados na internet, porém, os clientes preferem as edições impressas, como revistas segmentadas e palavras-cruzadas. A vida corrida de uma cidade grande faz com que os leitores, que vão todos os dias até a banca, não percebam o que há por trás daquele rosto de mulher lutadora. Ela dedicou grande parte de sua vida a esse trabalho, que representa o sustento de sua família. Solange e seu marido adquiriram a banca na década 70, exatamente em 1974, e desde então eles têm dedicado suas vidas a cuidar do negócio. O casal teve dois filhos que foram criados dentro da banca. Solange lembra que muitas vezes o filho chorava embaixo do balcão, quando seu marido saía para pegar alguma mercadoria, e ela não sabia se atendia o filho ou o cliente.

Quando começou a trabalhar na banca, Solange ficou grávida do seu primeiro filho e três anos depois veio o segundo. Porém, com a voz embargada e lágrimas nos olhos, conta que há nove anos perdeu seu primogênito: “Meu coração está machucado e nunca irá sarar, por mais que o tempo passe nunca irá tirar a dor que tenho no meu peito”. O filho havia completado 31 anos em maio e faleceu em julho, dei-xando três órfãos: um do primeiro e dois do segundo casamento. Graças à banca ela consegue ajudar financeiramente na criação dos netos. Com apenas 20% do coração funcionando, o marido chegou a entrar em coma. Enquanto estava hospitalizado, ela se revezava com o cunhado para cuidar da banca e também do companheiro, que depois de duas semanas de tratamento consegiu se recuperar. Uma vida difícil, mas como uma grande guerreira nunca se deixa abalar, acorda todos os dias pronta para mais uma batalha.

Novas experiências Ao longo do segundo semestre de 2015, nós, graduandos de jornalismo da Unisul, imergimos no emaranhado mundo das flaneries. Após conhecermos as reflexões propostas por alguns autores, demos inicio à arte de flanar. A Praça XV de Novembro, loca-lizada no centro de Florianópolis, foi o lugar proposto para a nossa flanerie. No início da noite, mesmo com chuva, percebemos um movimento, aparentemente normal de trabalhadores voltando para o aconchego de seus lares. Típico de cidade grande, a poluição sonora não passou despercebida: o barulho de pessoas conversando, carros em circulação, sirenes ligadas, rádios tocando, dentro outros. Em meio a tantos sons, um em especial chamou

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minha atenção: a sinfonia composta pelo barulho das árvores, a brisa do mar e o cair da chuva. Como flanar é conhecido como o hábito de andar sem rumo e sem pressa, observando o mundo que nos cerca de maneira real e descritiva, descrevemos a praça, as ruas, nos preocupando com detalhes que talvez possam passar despercebidos pelo resto da sociedade. Já no primeiro dia interagimos com os moradores de rua e com as pessoas que fazem da praça seu segundo lar. Uma noite inexplicável, pois estávamos preocupados com a forma com que iriam nos receber ali. Pouco a pouco os moradores de rua foram chegando, conversando com muita simpatia e receptividade. Acabei me vendo meio que sem reações, de tão hospitaleiros que eles foram.

O primeiro dia se passou e alguns dos meus colegas flaners já estavam com suas pautas definidas, outros até com pautas prontas, sendo que eu ainda estava sem saber o que fazer. Entre idas e vindas e muitas conversas com as professoras, acabei encontrando uma simpática senhora que trabalha em uma banca de jornais há 40 anos. Logo vi que ela teria ótimas historias a serem contadas. Por fim, flanei. Andei. Corri. Observei. E pude perceber que por trás dos prédios históricos, do cartão postal da cidade, do céu cinzento de uma metrópole, existem detalhes de uma vida que a pressão capitalista do mundo moderno acaba nos impedindo de contemplar. Uma delas, certamente, é a dona da banca da praça XV.


Olho no olho Charles Baudelaire desenvolveu um significado para flâneur como “uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la”. Foi a partir deste conceito que nós, graduandos em jornalismo, saímos a flanar. Nossa flanerie buscou encontrar nas entranhas de Florianópolis histórias que foram encobertas pelo mundo capitalista. É preciso salientar que nos dias de hoje, cada vez mais, nossa sociedade tem como base de sustentação o capitalismo. Comer, vestir, trabalhar, falar ao telefone, dentre tantas outras atividades básicas possuem o dinheiro envolvido. Trata-se de uma relação em que o dinheiro tem mediado grande parte de nossas interações sociais. Nada é de graça. Viver custa caro. O capitalismo somado à chegada da modernidade tem afetado fortemente as relações sociais. Isto fica visível quando você caminha pelas ruas do centro de Florianópolis durante a hora do “rush”. Pessoas correndo para todos os lados, ninguém se olha nos olhos. Em meio ao cinza da cidade você ouve a poluição causada por veículos e pedestres. Enfim, certamente a vida não é mais a mesma depois da chegada do capitalismo e tem piorado muito mais com o avanço da modernidade. As rodas de conversas, o contato físico, o olho no olho, tem sido substituído por conversas de whatsapp. Portanto, a ausência de pequenos detalhes na vida social nos motivou a sair pela cidade afim de experimentála, tal qual fez Baudelaire. Cartão postal da cidade de Florianópolis, a Praça XV foi o local esco-lhido para experimentar uma vivência com mais intensidade. Em meio a tanta beleza, que talvez passe despercebida pelo corre-corre da

vida moderna, encontrei uma singela banca de jornais. Receoso do que poderia encontrar e mais ainda de como deveria me comportar diante do que poderia encontrar dentro dela, enchi-me de coragem e fui até lá. No inicio, meio que sem jeito para interagir “pessoalmente”, tentei dialogar com a dona da banca, o que resultou em uma conversa cheia de lacunas e

“Éramos dois desconhecidos tentando superar a barreira da desconfiança” truncamentos. Percebi logo de inicio o quanto a vida moderna tem afetado nossas vidas, pois já não conseguimos nem conversar com os desconhecidos pessoalmente. Talvez se a conversa tivesse acontecido pelo celular ela tivesse fluído muito mais. Sinceramente, uma pena que isso aconteça. Aos poucos, consegui resgatar aquilo que o capitalismo e a modernidade afastaram de nós, o diálogo, a confiança, o olho no olho. Foi então que co-nheci Solange, a dona da banca. Atrás do balcão avistei uma senhora como tantas outras: cheia de histórias para contar, no entanto, ela perdeu o direito de voz, ou talvez o tempo tenha lhe arrancado esse direito [desejo] de compartilhar momentos de sua

vida com alguém desconhecido. Sim. Éramos dois desconhecidos tentando superar a barreira da desconfiança para travarmos um diálogo amistoso. Ambos tínhamos muitas histórias para contar. Mas eu, na posição de flaneur, pus-me a ouvir e observar, eu desejava mais que tudo (re)conhecer essa experiência que Baudelaire mencionou: experimentar a cidade, as pessoas, as coisas... A arte de flanar possibilitou-me co-nhecer uma história de vida única, que se perde em meio a tantas outras que vagam pelas ruas da cidade. Solange, uma mulher de fibra, mostrou que o tempo é capaz de marcar a vida de uma pessoa. Eu digo mais: o tempo é capaz de transformar uma sociedade e transformou. Atualmente, Solange recebe dezenas de pessoas em sua banca, no entanto, poucas ou quase nenhuma se dispõem a conversar. A vida não permite. A arte de flanar nos mostrou, como diria Elis Regina, que “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre...” A música chama-se ”Maria, Maria”, mas poderia chamar-se Solange, Cláudio, João, Rafael... “Quem traz no corpo a marca Mistura a dor e a alegria Mas é preciso ter manha É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania É preciso ter graça...”

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Sobre raízes, lendas e peregrinos Por Ingrid Bezerra

No centro de Florianopolis, bem no meio da praça XV de Novembro, há uma figueira, centenária e imponente. A figueira centenária, com seus galhos bruxólicos, possui poderes sobrenaturais, dizem os manezinhos, e por isso virou o principal ponto turístico da cidade. A tal árvore já esteve em outro local, na praça da Igreja Matriz, onde ficava o Palácio do Governo naqueles tempos. O governador tinha o hábito de observar da janela, uma moça que aparecia na sacada de um dos casarões que circundavam a praça. Porém contam que a figueira, bem entre o Palácio e a sacada na qual a moça aparecia, atrapalhava a bela vista. Foram feitas tentativas de domar os galhos que se espalhavam pelo cobiçado campo de visão, podas e mais podas na esperança de controlar a natureza rebelde da árvore, que culminaram na decisão governamental de mandar removêla do solo em que estava e a replantar noutro local, no qual encontra-se atualmente. No século XX, mais precisamente em 30 de novembro de 1979, a Praça XV foi palco de um fato histórico importantíssimo para o cenário político nacional. Um ato político, a Novembrada, protesto contra a ditadura, desencadeado pela visita do General Figueiredo à cidade de Florianópolis. A manifestação, organizada pelo movimento estudantil, reuniu cerca de quatro mil pessoas e resultou em prisões, violência e apreensão do material de cobertura produzido pela imprensa presente, TV Cultura e TV Barriga Verde. Anos mais tarde, em 1995, o ato foi contado em um livro, Revolta em Florianópolis, do cientista político Luís Felipe Miguel, e virou o curta-metragem, Novembrada, dirigido pelo cineasta Eduardo Paredes. O centro histórico da cidade acontece ao redor da Praça XV, por onde circulam estudantes, trabalhadores, reúnem-se aposentados, políticos, turistas e aqueles grupos de pessoas que geralmente não são tão visíveis e desejáveis quanto os citados anteriormente, os que estão em situação de rua. Muitos chegaram ao local em busca de melhores condições de vida, emprego, moradia, e por não conseguirem, desanimaram. Contentaram-se em sonhar e viver um dia após o outro, perambulando com pouca bagagem material,

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Crédito: Camila Valerim

dormindo ao relento. Alguns foram levados para a rua pelas drogas, desavenças com a família, por problemas psíquicos e as mais diversas fugas. Fato é que todas essas pessoas têm história, às vezes contada em diferentes versões, às vezes cantada com belíssima voz, como a de Olga Emily Montanhini, usuária de crack, com um repertório de clássicos de samba, choro e MPB, que inclui Elis Regina, Chico Buarque e Jacob do Bandolim. Quem mora em espaço público aprende a lidar com a repulsa dos transeuntes, dormir já noite alta e acordar com os primeiros raios de sol e quem passa para trabalhar. Alguns insistem em repousar enquanto a cidade fervilha, mas há poucos espaços nos quais podem permanecer em descanso diurno sem que sejam expulsos para saírem em busca de locais úmidos e protegidos pela escuridão. Exposta às intempéries, sem um mínimo conforto e proteção, a população em situação de rua vive dramas e surtos de doenças infectocontagiosas, como a tuberculose, que alcançou níveis alarmantes em setembro deste ano. O surto de tuberculose fez com que o Procurador Geral do Ministério Público Federal, Maurício Pessuto, mobilizasse as Secretarias Municipais de Saúde e da Assistência Social para o combate à epidemia. A dificuldade nestes casos é fazer com que o tratamento seja contínuo; no caso da tuberculose, entre seis e nove meses, a fim de se evitar que o paciente desenvolva um tipo de tuberculose super resistente, ou mesmo outras doenças, simultaneamente. Apesar da existência de casas de passagem e apoio social aos moradores de rua, a busca pelos locais de abrigo esbarra nas regras para poder permanecer durante a noite no local. Muitos preferem ficar nas ruas por não quererem ser identificados, revistados, por serem dependentes químicos ou alcoolistas. Nessas casas, há horário estipulado para entrar nos abrigos e os assistentes sociais não admitem manifestações de agressividade ou uso de drogas nos aposentos de acolhimento. As travestis também ficam de fora, pois não são bem-vindas nas casas que acolhem mulheres, nem nas acomodações masculinas. Dizem que a figueira da Praça XV traz amor e fortuna a quem dá várias voltas ao redor dela. Turistas e moradores, por via das dúvidas, já tentaram a sorte e espalham a lenda pela Ilha afora. Será que quem dorme na rua fica resistente à magia da árvore centenária?


Enfim, jornalistas! Das salas de aula às ruas: a primeira vivência de um repórter

Por Nathalia Soria

A chuva incessante finalmente dava trégua e o sol timidamente aparecia no centro de Florianópolis. Sentados na escadaria da Catedral da Ilha de Santa Catarina, os alunos do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Unisul programavam as intervenções do primeiro dia de suas flâneries. “Quem é do grupo do texto?”, “quem é do grupo da música?”, “aqui tá a tua parte”, “cadê a professora?”. Animada e apreensiva, a maioria não tinha ideia do que esperar da

atividade proposta em sala de aula: flanar o centro de Florianópolis à noite. Quando todos reunidos, direcionaram-se à ágora da Praça XV. Eram sete e meia da noite e em virtude do horário de verão, a noite chegava lentamente. Alguns pingos ameaçavam cair, mas parecia que nada levaria embora a empolgação daqueles alunos. Ao chegar naquele pequeno anfiteatro já ocupado pelos moradores de rua, as professoras que acompanhavam o grupo pediram licença

para utilizar o espaço e os convidaram para participar daquele momento. Atentos à introdução e instruções dadas pelas professoras, alunos e moradores, de olhos arregalados, não escondiam a excitação de estar fazendo algo diferente. Todos tiveram a oportunidade de interagir. Percival foi o primeiro entre os moradores de rua a pedir permissão para falar, e depois dele tudo foi

Crédito: Tiago Bento

O sorriso estampado no rosto - Beatriz Wagner animada com a experiência

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Crédito: Tiago Bento

Dividindo histórias - Welliton Farias e Lilliana San Martin, jovens, estudantes que compartilham de momentos diferentes da vida

perdendo a rigidez, a formalidade e ganhando cara de vivência. Os alunos, ainda acanhados, ouviam atentos com medo de perder alguma coisa caso piscassem. Aos poucos a postura deles foi mudando. Indagados sobre o que estavam achando deste primeiro contato com as ruas, eles foram emitindo suas opiniões, largando as câmeras e soltando as canetas, aproveitando o momento e a interação com cada um dos personagens que ganhavam forma diante de seus olhos: G, Caveira, Jonathan, Lucifer, Marcelo, Lili... E com o passar da noite e o com a confiança estabelecida, câmeras e canetas de volta às mãos, pautas começaram a

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ser estabelecidas. “Eu vou contar a história de tal pessoa…”, “Eu quero contar a história de todo mundo!”. Houve quem se emocionasse, quem lembrasse o real motivo de querer ser um jornalista _ emocionando todo mundo. Houve quem se assustasse com a dura realidade à sua frente, quem achasse que seria uma tarefa simples ir ao centro da cidade à noite e escrever uma matéria, e descobriu que não é. Houve quem sentisse medo, e quem simplesmente travasse com a ideia de falar com um completo estranho. As noites seguintes foram um misto de alívio para aqueles que já sabiam quem procurar e onde ir; e aqueles que ainda embaraçadamente buscavam alguém ou algo que quisesse dividir sua história. Aos poucos

a rodoviária Rita Maria, o Largo da Alfândega, os terminais de ônibus, a Travessa Ratcliff, cada cantinho do Centro foi explorado em busca de uma história, de uma voz, de alguém que quisesse contar alguma coisa, qualquer coisa. Os traços de cada futuro jornalista afloraram naquelas noites. Os mais tímidos, os destemidos, os ousados, os atrevidos até demais. Os fotógrafos, os repórteres, os escritores, os produtores e os radialistas. Cada qual com seu perfil. Nada é permanente, mas todos têm suas características marcantes que os diferenciam, que os tornam únicos. Marcas que ficam ainda mais evidentes em cada texto escrito, cada audiovisual produzido, corajosamente publicado e aqui exposto.


O que só a rua sabe Em três noites de flânerie os alunos tentaram ao máximo seguir todos os ensinamentos adquiridos em sala de aula. Eliane Brum, Edgar Allan Poe, João do Rio, George Orwell... Bagagem teórica eles possuíam para ir às ruas e extrair delas toda a sabedoria que somente ali poderiam adquirir. Walter Benjamin já dizia “(...) O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais.”

Um pouco mais sábios do que antes, os futuros jornalistas puderam experienciar causos, ouvir histórias, aumentarem seus acervos de vida e imprimir suas marcas nas narrativas que escreveram. Todos terminaram esta experiência um pouco mais experientes, um pouco mais conselheiros, um pouco mais narradores, um pouco mais jornalistas.

“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos”

Walter Benjamin

E assim eles observaram, examinaram atentos aquela realidade diante de seus olhos. E de forma prática esco-lheram as histórias que gostariam de dar atenção. Em “O Narrador”, Walter Benjamin analisa a obra de Nikolai Leskov que afirma: “A literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual.” Diz ainda que “Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim que se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.”

Papel, caneta, emoção Lá estava eu. Pronta! Caneta, bloquinho, jornalista à procura de um personagem. De repente me deparo com um grupo de jovens adultos, colegas de sala de aula, colegas jornalistas, reagindo ao ambiente em que se inseriram com emoção, com coração e o mais importante: com dedicação.

E tudo o que eu havia planejado caiu por terra. Eles passariam a ser a história da minha flânerie. Os olhos brilhavam, o coração batia forte – parecia que dava para ouvir o “tum-tum-tum”, e as mãos?! Ah, as mãos não paravam de forma alguma! Era anotações pra cá, fotos pra lá, era bonito de

ver! Como não contagiar-se com a paixão pelo ofício que exalava pelos poros destas pessoas? E assim me deixei levar, observei-os sem interferir, percebi como cada um conduzia sua en-trevista, escolhia seu personagem e fazia da sua flânerie um momento único e apaixonante.

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OUTRAS VOZES

O repórter e a rua Nesses tempos internéticos, quando os jornalistas preferem escrever suas matérias apenas consultando o google ou fazendo entrevistas por email, as professoras do Curso de Jornalismo da Unisul, Raquel Wandelli, Cláudia Reis e Viviane Bevilacqua, insistem nas velhas práticas de repórter, que nada mais são do que o encontro amoroso com as gentes e as ruas. Na noite dessa terça-feira (20 de outubro) elas levaram a turma do segundo ano para um passeio pelo centro da cidade, buscando realizar a beleza do corpo-a-corpo com a vida, como diria o grande repórter João Antônio. E o que vivenciaram foi o assombramento que só é possível para aqueles que saem de suas zonas de conforto e se embriagam da existência vertiginosa dos caminhos da margem. A aula ao ar livre começou no coreto da Praça XV, esquecido espaço de retretas e alegria. Hoje ele serve de cama para um bom número de moradores em situação de rua. Pedindo licença para os que ali ajeitavam suas poucas coisas, os estudantes chegaram, meio tímidos. Licença dada, Raquel começou sua fala, contando da experiência de observar a vida das ruas que começou lá longe, na França, com os famosos “flâneurs” (caminhantes) e que, depois, foi tomando corpo como uma prática jornalística. No Brasil temos bons exemplos como João do Rio, João Antônio, Marcos Faermann, Eliane Brum. Depois, os alunos apresentaram cantos e falas, tudo relacionado a esses que, nas ruas, são invisíveis para o jornalismo normótico, acostumado às salas acarpetadas e às fontes oficiais. Enquanto tudo isso acontecia, os moradores de rua foram se aproximando. Mais um pouco e eles já estavam sentados no coreto, junto com a turma. E um pouco mais, estavam falando e contando suas histórias, ensinando sobre a vida e sobre ser quem são. Foi um momento mágico. Estava feito o encontro, essa coisa bela em que um olha para o outro, sem medo. Percival, Caveira, Gê, Junior, Lúcifer e outros tantos que ali foram se acercando estabeleceram a relação de confiança. Famintos de palavras e atenção, eles transformaram a aula em espaço

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Elaine Tavares conta sobre sua paixão pelo jornalismo de rua

de diálogo fraterno e terno. Teve de tudo, discursos, emoção, lágrimas, risos, canto, chuva, vento fresco. E os estudantes puderam perceber que há múltiplos universos circulando na vida real e que é ali que moram as histórias e os seres mági-


Na ágora da praça XV, estudantes prestam homenagem às pessoas em situação de rua

cos que constroem o mundo. Depois de trocas e abraços, a turma seguiu caminhando pela Praça XV, descobrindo os lugares já mortos, desaparecidos, como a feira hippie que vicejava no meio da Praça, ou o Miramar, cujo fantasma se levanta em frente ao antigo terminal de ônibus. Caminhando pelas ruas, eles foram descobrindo uma Florianópolis antiga, mas que ainda vive na memória, uma cidade tomada, tirada das gentes. Depois circularam pela Travessa Ratclif, onde ainda resiste parte da vida cultural. Flanando na noite fresca, os futuros jornalistas foram tocados pela asa do repórter, esse ser que pergunta, que questiona, que narra. Esse ser que caminha pelas ruas, pelas margens, pelos cantos escuros onde ninguém quer passar, que destapa as mentiras, que descortina verdades. O repórter, esse inconformado, esse contador de histórias que, ao contá-las, diz do mun-

do inteiro. O repórter, o ser das ruas, da vida real. E tanta magia se fez que até se pode ver o espírito o Mosquito (Hamilton Alexandre), um desses históricos caminhantes da cidade, que andava sempre com seu notebook na mão, auscultando a vida do Desterro. A aula de Raquel, Cláudia e Viviane foi uma dessas coisas inesquecíveis, que só acontecem porque ainda há os que insistem no jornalismo real, esse que analisa o dia, que busca na vida mesma a essência do que se pode narrar. Convidada que fui para falar de minha prática, sempre pautada nesse suporto de que a rua ainda é o melhor lugar para buscar histórias, eu pude viver esse momento. Agradeço! Foi lindo! - Publicado originalmente em 21/10/2015 no blog Palavras Insurgentes, de Elaine Tavares (eteia.blogspot.com.br)

Um outro olhar para a cidade Era noite alta, fazia frio e as ruas da cidade estavam desertas. Gê chega à Praça XV, no Centro, e confirma o que tinham lhe contado: o seu melhor amigo delirava deitado num banco. Daquela vez, pelo menos, não era cachaça nem droga. O rapaz, sempre tão franzino, de saúde frágil, ardia em febre. Era por isso que dizia coisas desconexas, num estado de semi-consciência. Chamar ambulância não mudaria a situação — talvez se esperasse pelo socorro o amigo morreria antes mesmo da viatura chegar. — Morador de rua não é público preferencial — dona. Ele sabe disso porque também vive na rua há quase quatro anos. Sem alternativa mais fácil e rápida, Gê colocou o amigo nas costas e saiu caminhando, da Praça até o Hospital Celso Ramos. Era um passo e um suspiro. Um passo e um gemido, de febre, de dor, de cansa-

ço, tudo misturado. Nas ruas escuras, a figura dos dois, assim, grudados um no outro, parecia uma miragem. Ou cena de um filme surreal. Já perto do hospital um taxista passou devagar pelos dois. Parou, voltou, ofereceu ajuda. Um alívio para Gê, que, mesmo arqueado e quase sem forças, dizia o tempo todo para o amigo que tudo iria acabar bem. A carona foi mais do que providencial. Um alívio. Enquanto o amigo esteve internado, Gê não arredou pé de lá. Voltaram para Praça XV alguns dias depois. E assim eles seguem, um cuidando do outro. — Temos vários parceiros aqui, a gente se ajuda. Mas eu e ele somos família. Coisa de irmão mesmo, parceria pra vida — contou Gê, para uma pequena plateia que o fitava de olhos arregalados e curiosos. - Publicado originalmente em 23/10/2015 no site Diário Catarinense, por Viviane Bevilacqua (diario.com.br)

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