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UMA sobrevivência sobrevivênciA utópica RAQUEL WANDELLI
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio... (Caetano Veloso – Um índio)
Ao entardecer, as águas salobras da Lagoa
seus “diques” na medida justa para que as benesses
de Fora lambem com seu vaivém manso o casco
paradoxais dos centros urbanos cheguem duran-
dos barcos que contornam a Costa da Lagoa. Re-
te o dia e partam no mesmo barco que as trouxe.
fletido na onda fria, o céu promete a essa comuni-
dade de rendas e benzeduras, de ladeiras e casas
ao qual só se chega de barco foi escolhido pela
risonhas, de crianças soltando pipa e contadores
turma do Primeiro Ciclo de Jornalismo da Unisul
de histórias nada mais do que a medida do seu
do primeiro semestre de 2015 para realizar sua ex-
sonho. Desde que o povoado se consolidou, no
periência inaugural de reportagem-vivência. Foi
início do século XVIII, a água leva, a água traz, a
antes de tudo a eleição de um povo que oferece
água integra, conduz, mas também marca o limite
uma alternativa de vida num mundo cansado de
que une e separa. Poucos minutos de barco dis-
si mesmo. A decisão de se hospedar três dias na
tanciam essa “pequena ilha” da “grande Ilha”, onde
comunidade durante o feriado do Dia do Traba-
a ideologia do progresso já destruiu os sonhos de
lho também partiu da própria turma. Do encontro
vida comunitária e mergulhou a cidade no futuro
entre essas duas autonomias, a comunidade que
sem horizonte das grandes metrópoles. Mas as dis-
luta para autodeterminar os seus destinos e a ju-
tâncias simbólicas foram mantidas. Lugar onde o
ventude que é encorajada pelo novo projeto pe-
contato com a sociedade autodestrutiva da “outra
dagógico do curso de jornalismo a se tornar prota-
margem” não esmagou a experiência da tradição, a
gonista de seu processo de ensino-aprendizagem
Costa da Lagoa é um pequeno oásis social no ser-
nasceu a revista multimídia O olho da multidão.
Entre inúmeras outras opções, o povoado
tão-litoral de Florianópolis. A comunidade parece ter encontrado o segredo de como abrir e fechar
Há nestas narrativas, nestes vídeos, nes-
tes registros de texto, imagem e som muito mais
rico. Os povos são capazes de alcançar com a
do que a aplicação de técnicas jornalísticas com
linguagem, com a arte, com suas experiências
a pretensão de mostrar a verdade ou o retrato de
culturais, possibilidades inimagináveis de existên-
um lugar. O esforço de múltiplas linguagens aqui
cia. Essas experiências resistentes não configu-
expressado traduz a ânsia desses jovens repórte-
ram uma utopia única, solução mirabolante para
res de encontrar perspectivas de continuidade de
onde todos devem convergir, mas oferecem, nos
vida saudável para o ser humano e para o trabalho
termos de Michel Foucault, pequenas e podero-
jornalístico. Ele passa pela vontade de compreen-
sas heterotopias, múltiplos e diferentes contralu-
der o delicado e tenso diálogo entre a moderni-
gares, onde se constroem sonhos de uma vida
dade e a tradição, que está também nas relações
em comum verdadeiramente mais plena e feliz.
entre o tempo do trabalho e o tempo para “entrar na graça de viver”, valendo-nos de uma expres-
Nesses tempos de cidades-fake, construí-
são recorrente em Clarice Lispector. Há, sobretu-
das para satisfazer o desejo de exotismo de um tu-
do, um esforço para compreender o que significa
rismo predatório e individualista, a Costa da Lagoa
para a criança, para o jovem, para a mulher, para
é uma resistência e uma sobrevivência. Os siste-
a velhice estudar, trabalhar, criar os filhos sem se
mas alternativos e exitosos de educação, de trans-
separar do meio ambiente e das práticas culturais.
porte, de destinação do lixo, a política comunitária democrática, o ecletismo religioso, a vizinhança
Durante o Ciclo de Conferências Mutações
2015, que abordou o tema utopia, o músico e pensador José Miguel Wisnik lembrou que a verdadeira utopia está contida no presente. Isso significa que o novo espírito utópico da época deveria apostar em sonhos compossíveis que não são nem uma projeção para o futuro nem um recuo para o passado, mas
uma
sobrevivên-
cia forte no presente. Apesar da síndrome cientificista
oci-
dental, que teima em depositar nos avanços
tecno-
lógicos
nossas
melhores
espe-
ranças de futuro, a
humanidade
ainda
não
per-
cebeu em si mesma as potências de
transformação,
disse ainda o teó-
solidária, entre muitas outras preciosidades, en-
cerram aprendizados para a cidade grande, tão po-
des de explorar o turismo local sejam afastados e
bre de soluções. No fundo verde da mata atlântica,
para que a comunidade faça valer os seus próprios
bordado pela linha horizontal do casario colorido,
arranjos, diante do assédio do poder político cen-
mas praticamente livre dos contrastes e desigual-
tral e dos grandes grupos econômicos. Sobretudo
dades sociais, moram lições para a Florianópolis
a luta interna da comunidade contra a própria ga-
desfigurada pelos problemas de criminalidade e
nância fortalece a crença na permanência desse
pela especulação urbana. Longe de ser produto
sonho chamado Costa da Lagoa.
do atraso de uma comunidade que viveu durante
muitas décadas isolada, como apregoam deduções
Essa comunidade onde o coletivo prevalece, é
rasas, essa conquista é fruto de uma opção políti-
povoada de existências singulares. O artista que
ca do seu povo. Fruto de um trabalho comunitá-
mora na cachoeira e instalou aos seus pés um
rio vigilante na regulação do turismo, para que os
atelier ao ar livre. O pescador autodidata que es-
forasteiros se integrem à cultura do meio, em vez
tudou até a quarta série, mas aos 80 anos decla-
de imporem a ela suas políticas de subjetividade.
ma os próprios versos e os de escritores famosos,
Para que empresários afoitos com as possibilida-
o Adão que fez o parto da maioria dos 11 filhos. A professora que ganha prêmio internacional com um projeto que aposta na relação entre a comunidade e a escola. O agente de saúde que aprofunda o conhecimento da medicina popular em vez de esmaga-la com a medicina ortodoxa. Em todas as personagens aqui evocadas, o interesse afetivo dos repórteres por essas sintaxes de vida traduz o desejo quase dramático
de
encontrar
na própria cidade, pequenas heterotopias. Longe de ser o lugar sem conflitos e sem incompletudes que
caracteri-
zam as utopias famosas, a Costa da Lagoa é uma ilha de felicidade social
dentro
de
um mundo infeliz. Nesse sentido, podemos dizer que a comunidade é quase um milagre.
EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul/Campus Pedra Branca Primeiro Ciclo de Aprendizagem Tecnologia e Produção Jornalística Professores Daniela Fachini Germman Daniel Signorelli Luciano Bitencourt Raquel Wandelli Reportagens e Fotografias Andreza Martins Candido Beatriz M. Wagner da Rocha Bruna Nicoletti Bruna Tomaselli Bruno Bach Albornoz Claudiany Wagner Schutz Cláudio Souza da Rosa Elio Quaresma Neto Fernando Silveira Gabriela Meira Guilherme Martins da Cunha Jéssica Daussen
Leidiane Sampaio Santos Luana Martendal Maiara dos Passos Nascimento Marcela Silva Teixeira Marcela Borba Marcelo Martins Natalia Santos de Pinho Rafaella G. de Moraes Sofia Mayer Dorner Thuani Regis Mendes Tiago Bento Vinícius Marinho Flausino Vitória Zardo Wellinton Skinner Farias Ysttéphani Jurak Sinhorini Foto da Capa e Contracapa Sofia Mayer Dorner Capa da Revista Bruno Bach Albornoz Coordenação de Editoração Bruno Bach Albornoz Vinícius Marinho Flausino Luciano Bitencourt
DE FRENTE PARA A
COSTA DA LAGOA SUMÁRIO 23 10 26 60 44 39 46 49 34 81 79 64 14 90 77 57 70 72 61 84 89 35 20
Personagem para um conto de Franklin Cascaes Segurança é não trancar a porta da frente A última benzedeira da Costa está doente Mãe, esposa, estudante e trabalhadora Jornalismo estreia na comunidade De Macau para a Costa da Lagoa Pescador nas férias e nas folgas Entre casa e escola, um menino Perspectivas distantes de casa Orgulho do lugar onde ela vive Uma ilha de muitos povos A jornada das marés Um líder carismático O pé de valsa da Costa Pequeno grande pescador Os segredos de viver na Costa Perfil de mulher, mãe natureza Lembranças do velho pescador Sonho de ser o craque da Costa A vida pelas mãos de um pescador O visitante que chega de helicóptero Naelzo, personagem de saberes legendários “Se amar fosse pecado, eu jamais seria inocente”
PERFIL
TRADIÇÃO
Benzedura pode estar com os dias contados Desigualdade no privilégio a forasteiros Histórias da Costa em “A Antropóloga” De barco ou internet, há navegação Taxa de ocupação ameaça nativos Comunidade: uma grande família Do engenho açoriano ao turismo Tradição e sonhos conciliados Tradição celebrada na vida A orquestra das rendeiras Uma comunidade política Cultura que desafia a lei Segredos da logevidade Cotidiano inspira a arte Do rádio à internet Cultura religiosa
25 88 92 74 33 59 41 30 50 18 80 82 21 38 67 36
A cachoeira da Costa Uma filosofia para morar Pelos caminhos da saúde Vidas ancoradas em barcos Caminhos do “Celeiro da Ilha” Moradia no deslizar das águas Turismo sem perder a identidade A vida que acontece o ano inteiro Girando com os ponteiros do sol Caminhos inusitados para o paraíso Convivência pacífica com os animais Consciência ecológica mobiliza comunidade Homem e natureza convivem em harmonia
52 56 66 78 68 53 62 47 86 13 54 16 28
MEIO AMBIENTE
PROD SONORAS Agricultura
Lendas
Vida
Seu Ad茫o
Dona Joana
Dona Vadinha
Hist贸rias de Pescador
UÇÕES AUDIOVISUAIS Cotidiano
Educação
Gravidez
Vida
Saúde e Bem estar
Pesca e Culinária
Patrimônio Histórico
SEGURANÇA É NÃO TRANCAR A PORTA DA FRENTE
As crianças brincam na rua e casas ficam abertas
POR MARCELLA BORBA
Uma ilha dentro de uma ilha. É assim
vez que a assistência policial demora
veio aqui pra roubar e a gente botou
que pode ser vista a Costa da Lagoa,
muito para chegar, a população cria
pra correr”, conta João Schmitt da Ro-
um bairro tranquilo, onde todos os
suas próprias estratégias para se
cha, nativo da Costa. Para o morador,
moradores se conhecem e todas as
defender do que consideram amea-
a vida comunitária e os laços familia-
famílias são amigas, dentro de uma
ças.
res são o que garantem a segurança
cidade movimentada como Florianó-
do bairro e a solução dos problemas
polis. A diferença começa no acesso.
quando eles surgem.
Na Costa da Lagoa não tem estradas para carros nem ônibus e só se chega a pé ou de barco. Dos 1.600 moradores, cerca de 80% são nativos, segundo informação dos próprios moradores, mas também há gente de várias outras cidades e estrangeiros que foram morar no local. Ainda é
“Essa tranquilidade é sinônimo de qualidade de vida”
A vida pacata da Costa é motivo de orgulho para os moradores e de atração para os turistas. As crianças podem brincar pelas redondezas à vontade, sem a preocupação dos pais quanto aos perigos comuns nos centros urbanos. “Aqui as crianças crescem sem traumas, sem aquele medo de já sair
hábito no bairro deixar a porta aberta e ir trabalhar. Dona Claudete, por
Quando alguém desembarca em um
na rua e ser assaltado ou até seques-
exemplo, conta que apenas encosta
dos vinte e quatro pontos de parada
trado”. Esse não é um ponto positivo
a porta da frente e segue a pé para
do barco, sempre tem um morador
apenas para os moradores. Muitos
sua pequena loja de roupa e artesa-
observando para saber se é conheci-
turistas são atraídos por esse motivo,
nato, que fica umas cinco casas de-
do ou se poderia apresentar alguma
e algumas vezes, acabam permane-
pois. Essa tranquilidade, é sinônimo
ameaça. Quando há algum conflito
cendo na Costa. A paz de caminhar
de qualidade de vida.
com pessoas “de fora”, a comunidade
sem medo pelo bairro, o conforto de
se mobiliza e quem não faz parte dela
ver as crianças brincando na rua e a
Mas não significa que eles não se
pode ser expulso do bairro e proibido
tranquilidade de não precisar trancar
preocupem com a segurança. Uma
de voltar. “Já teve caso de gente que
a porta de casa, formam esse lugar.
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Os moradores da Costa da Lagoa se orgulham do tipo de
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seguranรงa que tem Foto: Marcelo Martins
Um lugar inspirador que encanta atĂŠ mesmo aqueles
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que jĂĄ viveram outras realidades Foto: Bruno Bach Albornoz
CAMINHOS INUSITADOS PARA O PARAÍSO
Da Península Ibérica à Ilha de Santa Catarina
POR BRUNO BACH ALBORNOZ
No encontro de ruelas e na germina-
ção começou a melhorar. Segunda ela,
de última geração enquanto residen-
ção de residências vive uma mulher
os europeus não demonstram senti-
tes na Espanha, mas a beleza e a ma-
que, de tanto ver culturas e costumes
mento de união e são preconceituosos
gia da Ilha de Santa Catarina conquis-
diferentes, escolheu uma casa verde
com estrangeiros. “Se você precisar
taram seus corações.
de madeira morro acima, beirando a
de ajuda, ninguém vai te dar a mão”,
Costa da Lagoa, como recanto. O so-
conta ela, com olhar vago, preenchido
Em 2012, na primeira visita a Floria-
nho de muitos brasileiros de viajar e
de lembranças, para o céu claro porta
nópolis, Josiane teve a oportunidade
morar fora do país foi realidade para
afora.
de conhecer a Costa da Lagoa e se
Josiane Martins da Silva, de 34 anos,
encantou, conta ela com um sorriso
nascida na cidade de Itapeva, interior
Sua estada foi de curto período se
amplo no rosto, que reflete o gosto
de São Paulo. Em sua visita ao Brasil, a
comparada à próxima aventura. Após
de sua casa nova. O filho Daniel teve
tia, Claudeli, casada com um espanhol,
dois anos e três meses em Barcelona,
dificuldades na Escola Desdobrada
José, convidou-a a morar com ela na
Josiane foi para Galícia, comunida-
da Costa da Lagoa, destaque na edu-
Espanha. Como tinha apenas segundo
de autônoma espanhola situada no
cação pública. Por estar acostumado
grau incompleto em tempos econo-
noroeste da Península Ibérica, para
com o idioma castelhano, as professo-
micamente conturbados pela alta do
trabalhar em uma cafeteria chama-
ras não entendiam algumas palavras,
desemprego, o convite acendeu-lhe as
da Malakas a convite de uma amiga.
mas bastou alguns meses para que a
expectativas de uma mudança de vida.
Nessa cafeteria Josiane encontrou em
dificuldade ser vencida. “Pensei que
um colega de trabalho um parceiro
meu marido não fosse aguentar viver
O contraste cultural pesou na deci-
de vida e aventuras, Denilson da Con-
em um lugar tão quieto e isolado. O
são de batalhar por uma nova vida na
ceição, natural de Vila Velha, Espírito
barco foi uma surpresa pra ele. Na
Espanha ou utilizar sua passagem de
Santo, com quem residiu 12 anos na
vinda, ele só perguntava: ‘Quando a
volta no primeiro mês de estada. As-
Europa. Dessa união nasceu Daniel da
gente vai chegar?’”, brinca Josiane. O
sim como o português Dom Pedro I,
Conceição Martins, de sete anos, na-
marido não estava em casa na hora da
ela disse “fico”, e com o emprego de
turalizado espanhol. A família tinha
conversa, mas a vontade do casal é a
“camarera” (garçonete) em uma cafe-
dinheiro para sair quando desejasse.
mesma: continuar a viver na Costa da
teria brasileira em Barcelona, a situa-
Eles possuíam celulares e eletrônicos
Lagoa.
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UM LÍDER CARISMÁTICO
Jajá tem papel importante na comunidade
POR MARCELLA BORBA
Ele pertence a uma família que está
Tulio, por sua vez, sonha com uma
ção de desavenças internas e na inte-
há cinco gerações na Costa da Lagoa.
profissão totalmente fora da tradição
gração dos moradores, ele acaba por
Dono de um dos restaurantes mais
da comunidade: ser piloto de avião.
colaborar também para a manutenção da segurança local.
famosos da comunidade, o Sabor da Costa, ele mesmo se responsabiliza pela pesca dos peixes servidos no estabelecimento. Com poucos minutos de conversa, Djalma Naelzo Laureano, 43 anos, mais conhecido como Jajá, cativa pela simpatia e pelo poder de se comunicar, característica que não perde mesmo quando ocupado preparando “ao vivo” uma tainha assada na folha de bananeira em frente aos seus
Essa cultura amistosa evita a ocorrência de crimes por meio da autodefesa da comunidade
A criação desse ambiente favorável à vida comunitária serve para coibir a presença de estranhos mal-intencionados. Como ele afirma, a grande integração do povoado permite que todos se conheçam e ajam conjuntamente em casos de atitudes suspeitas na região. Essa cultura amistosa evita a ocorrência de crimes por meio da autodefesa da comunidade. Assim, ele
clientes. Ao exercer sua tarefa como líder paro-
exerce importante papel de porta-voz
Simpatia e convivialidade são caracte-
quial e dono do restaurante, Jajá pro-
e articulador da comunidade, colabo-
rísticas determinantes para um líder
move a união, o diálogo e a convivência
rando para promover um bom relacio-
da Paróquia da Igreja da Costa, car-
entre as pessoas. Visto como referência
namento entre os moradores. Afinal,
go que assumiu há dois anos. Djalma
por seu trabalho na Paróquia, ajuda a
sua personalidade comunicativa o
mostra gostar do seu dia a dia corrido
promover a importância da religião para
coloca em posição de destaque e per-
com o acúmulo de tantos afazeres. En-
a comunidade. Jajá é uma referência de
mite que seja um grande articulador
tretanto, essa rotina atrai apenas um
pai de família e amigo, sempre prestan-
dentro do bairro. Jajá traduz o amor
dos seus filhos, Alyson, que vê o pai
do serviços para quem precisa, missão
que sente pela Costa da Lagoa com
como um exemplo a seguir e o ajuda
na qual se sente reconhecido por todos.
uma simples frase: “Privilégio enorme
nas tarefas do dia a dia. O outro filho,
Com esse importante papel na resolu-
nascer nesta terra tão abençoada.”
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Responsabilidade grande: pescar e preparar os pratos no
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restaurante
Foto: Marcelo Martins
CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA MOBILIZA COMUNIDADE
Costa da Lagoa prioriza a preservação da cultura e do meio ambiente
POR MARIA EDUARDA HADDAD
A Costa da Lagoa, bairro da Lagoa
estrada, facilitando o acesso.
monio histórico-cultural, conforme o
da Conceição, é conhecida por suas
Decreto Municipal n.247/86. Uma ou-
belezas naturais, atrai turistas de
tra trilha para a Costa parte do Can-
todos os lugares do mundo em busca do segredo de como um bairro, colonizado por açorianos, consegue ser um dos únicos na cidade de Florianópolis que ainda mantém nítidos, no seu cotidiano, os costumes, a arquitetura e as ideias dos seus colonizadores. É uma comunidade tradicional que possui toda sua região zoneada como Área de Preservação Cultural.
Inúmeras leis de preservação mantêm a Costa, o mais próximo possível, do habitat original de mais de dois séculos.
to da Moreira, em Ratones, cruzando também a exuberante Mata Atlântica, num percurso de aproximadamente 90 min. Inúmeras leis de preservação mantêm a Costa, o mais próximo possível, do habitat original de mais de dois séculos. O Plano Diretor, estabelecido em 1987 pela prefeitura, nunca foi analisado diretamente pelos moradores, que, dessa forma, não participaram
O difícil acesso, de barco ou trilha, é
da demarcação das áreas de preser-
um dos fatores que ajudam a manter
vação. Mesmo com a elaboração de
viva a cultura açoriana, o que per-
A maioria dos moradores posicio-
um Plano Diretor Participativo de
mite que os residentes convivam, o
nou- se contra. O Caminho da Costa,
Florianópolis em 2006, as demandas
mais perto possível, com a realidade
como é conhecida a trilha, que come-
e necessidades da comunidade da
de antigamente. A população local
ça pelo Canto dos Araçás, medindo
Costa da Lagoa continuaram sendo
possui uma admirável consciência
cerca de oito quilômetros e com du-
ignoradas. Em 2008, a comunidade
ecológica. Certa vez a Prefeitura de
ração de cerca de 1h30min de cami-
concebeu um projeto de zoneamen-
Florianópolis realizou uma pesquisa
nhada, passando por um corredor de
to e o apresentou na Câmara De Ve-
para saber se os moradores gosta-
Mata Atlântica que margeia a Lagoa
readores, que também não foi levado
riam de transformar a trilha em uma
da Conceição, é definido como patri-
em conta. Já em 2012, mais uma vez
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Leis asseguram preservação, mas moradores nunca discutiram o Plano Diretor do município. (Foto: Maria Eduarda Haddad)
a prefeitura apresentou uma Propos-
monitoramento da estação detrata-
ta de Plano Diretor, e que ficou só no
mento de esgoto. A vistoria final, por
papel. A comunidade da Costa ainda
conta da Vigilância Sanitária Munici-
Algumas casas são consideradas pa-
tem como meta se integrar ao Progra-
pal, analisa eventuais prejuízos à La-
trimônios históricos, isto é, algo que
ma da Reserva da Biosfera ( Programa
goa da Conceição.
ficaria para sempre guardado na me-
internacional da UNESCO para preservação ambiental).
tros por corte de vegetação.
mória dos moradores, e poderia ser Mesmo sendo famosa por sua área
mostrado aos filhos como exemplo da
verde, coberta pela Mata Atlântica e
arquitetura dos colonizadores. Com o
A legislação proíbe a construção em
cercada pela Lagoa, a região da Cos-
passar do tempo, esses patrimônios
áreas de preservação, cabendo a
ta também está visivelmente tomada
precisam ser recuperados. O poder
fiscalização á prefeitura. Para comprar
por edificações irregulares; O diretor
público, infelizmente, não costuma li-
ou construir casas em áreas autoriza-
de fiscalização da Fundação munici-
berar as verbas necessárias para esta
das, precisa haver uma distância de
pal do Meio Ambiente (Floram), Bruno
finalidade, nem disponibiliza profis-
ao menos 30 metros da Lagoa, exi-
Palha informa que somente naquela
sionais habilitados para o trabalho.
gindo também um profissional espe-
localidade estão tramitando mais de
O impasse é uma ameaça a mais que
cializado legalmente habilitado como
110 processos por danos ambientais,
justifica o medo da comunidade de
responsável técnico pelo plano de
alguns por construção irregular, ou-
perder esse patrimônio para sempre.
17
A ORQUESTRA DAS RENDEIRAS
Tradição não cessa de desaparecer
POR NATALIA SANTOS DE PINHO
O cenário é um paraíso, com uma lagoa
motivação. A ex-rendeira Zinha France-
imensa de fundo, uma natureza cerca-
lina Albino, de 84 anos, por exemplo,
da de vegetação e árvores centenárias
alega que parou de fazer a renda por
Antigamente, segundo essas rendeiras
em volta e embalada pelo som do bilro.
falta de tempo e quando sobra uma fol-
mais antigas contam por experiência
Trazida pelos descendentes açorianos,
ga “é pra descansar”.
própria, a renda era admirada pelas
sentada horas a fio tecendo uma peça.
a prática da renda de bilro é muito co-
menininhas da Costa, que ficavam
mum na comunidade da Costa da La-
encantadas ao ver suas mães criando
goa, ou era. Essa parte da cultura açoriana transmitida de geração em geração, de mãe para filha, a cada ano vem perdendo força. O desinteresse das jovens traz a preocupação de que uma parte única da história seja perdida e só nos reste as lembranças do que foi a vida de uma rendeira.
“Quando eu era pequena [...] fiz o meu primeiro vestido. Até hoje não esqueço do desenho do vestido”
algo tão bonito. Seus olhinhos ficavam hiponitizados com a velocidade das mãos ágeis, com o movimento dos bilros e com a mágica de pontos e agulhas configurando as linhas em diferentes mosaicos e desenhos. Durante várias gerações essa visão alimentou curiosidade e desejo de aprender esse talento das mais velhas. Com os cabelos cinzas e simpatia con-
As jovens da comunidade têm outras
Outra dificuldade nesse aprendizado,
tagiante, Maria Rosa Filha Pereira, 67
ambições. Com a modernidade e com
segundo Maria da Cida Laureano, 57
anos, fala desse antigo fascínio com
o conhecimento crescendo a cada
anos, seria a dificuldade em aprender
todo o amor do mundo: “Quando eu
dia, elas não têm interesse em apren-
a renda que é muito delicada e exige
era pequena, sentava ao lado de minha
der a renda de bilro. Essas mulheres
tempo, paciência e esforço na execu-
mãe, fiz uns 15 metros o primeiro, aí a
estudam e trabalham cedo, quase
ção.As meninas querem sair da Costa e
moça que comprava levou e me trouxe
sempre fora da comunidade. Mesmo
abraçar o mundo, querem correr atrás
uma peça de pano e fiz o meu primeiro
as mais velhas perderam um pouco a
dos sonhos e não têm paciência de ficar
vestido. Até hoje não esqueço do de-
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O movimento dos bilros e a mágica de pontos e agulhas configuram linhas em diferentes mosaicos (Foto: Natalia Santos de Pinho)
senho do vestido”, ela conta com uma fala que se mistura ao som dos bilros no malabarismo das mãos que estão a todo o momento traçando pontos na peça de renda sobre a almofada. Segundo as rendeiras mais antigas, a renda se tornou também profissão por necessidade financeira. O aparecimento de outras atividades modernas mais lucrativas ou menos trabalhosas acabou se tornando outro motivo pelo qual as artesãs pararam com essa cultura. O que manterá a força dessa parte da cultura açoriana viva, o que manterá o som do bilro na casa dessas mulheres é a vontade de continuar fazendo o que mais sabem. É a esperança de que a tradição nunca se acabará e a vontade de ensinar para outras menininhas curiosas, assim como elas um dia foram.
Curiosa quando menina, hoje Dona Maria esbanja talento. (Foto: Natalia Santos de Pinho)
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“SE AMAR FOSSE PECADO, EU JAMAIS SERIA INOCENTE”
Dona Maria tece os sonhos na almofada
POR NATALIA SANTOS DE PINHO
A cena se desenrola no deque de uma
combinar o que sempre gostou de fa-
amor que sente pelas pessoas: “Se
casa com o gramado aparado sob a
zer com o trabalho, que se tornou sua
amar fosse pecado, eu jamais seria
vista de uma lagoa imensa e um pôr
fonte financeira. Para Maria, rendeira
inocente”.
de sol inigualável. Foi nessa paisagem
mesmo é aquela que ainda faz a ren-
que conheci Maria Rosa Filha Pereira
da e tem todos os seus projetos guar-
Quando pergunto se tem algum so-
(faz questão de dizer que só aderiu ao
dados, o que ela de fato mostra com
nho, pensa em poder ajudar todos os
nome do marido depois de 34 anos
muito orgulho. Ela comentou inclusi-
filhos. Não sabe se vai morrer com ele,
de casados), que vai completar em
ve que está animada com um curso
mas tem a esperança de que se torne
breve 67 anos. Rendeira e mãe coruja,
de renda de bilro que está fazendo no
realidade porque “apesar de aconte-
me atendeu com o rosto sorridente e
Rio Vermelho, onde também ajuda a
cerem coisas ruins, sempre aconte-
os olhos brilhando.
professora com base nos seus muitos
cem as coisas boas”. Apegada a Deus,
anos de experiência. Alimenta a es-
conta que tem um lugar guardado
Cabelos grisalhos amarrados, vestido
perança de que cada vez mais outras
no céu, pois acredita que colhemos o
florido e riso frouxo quando conta a
mulheres se interessem em manter a
que plantamos e ela se esforça para
própria história, Dona Maria nasceu na
tradição viva.
plantar sementes boas e no futuro colher somente frutos bons.
Praia do Sul, na Costa da Lagoa e aos 12 anos se mudou para o Rio Verme-
Ela se emociona ao falar da infância
lho com a família, mas retornou tem-
difícil que teve e diz que se sente
Durante toda a conversa, com o som
pos depois. Pergunto por que decidiu
hoje uma guerreira, ainda mais por
do bilro ao fundo, Maria não deixou
voltar. “Nasci na Costa e quero morrer
ter criado tão bem todos os filhos.
a peça de renda de lado. As mãos in-
aqui”. Menina curiosa que era, come-
“Eles me dão muito orgulho”, diz ela,
cansáveis, com a aliança de casamen-
çou a fazer renda de bilro aos sete
que afirma ser uma mãe coruja e fica
to apertada e o relógio no pulso, con-
anos. Postava-se ao lado da mãe e in-
sem palavras ao falar do amor que
tinuaram rápidas e ágeis, traçando
sistia para que lhe ensinasse a prática.
sente pelos filhos, netos e por todos
caminhos, ligando pontos, transfor-
que conhece. Conta que guarda sem-
mando a renda em desenhos impre-
pre uma frase para tentar explicar o
visíveis.
Prosseguindo na atividade, conseguiu
20
SEGREDOS DA LONGEVIDADE
Uso de ervas medicinais ainda é forte
POR SOFIA MAYER DöRNER
Em meio ao crescente ceticismo que
nho, Dedeco elogia o posto de saúde
bi que existia um hiato e uma descons-
tem comandado a cabeça de boa par-
da comunidade e consulta o médico
trução do meu saber anterior sobre
te da população desde a Idade Moder-
quando a situação aperta. Segundo
plantas”, afirma o médico, que, ao en-
na, parece loucura acreditar que, em
reclama, tem sido difícil o cultivo dos
trar na Costa chegou a ser confundido
um cantinho da Ilha de Santa Catarina,
chás na Costa da Lagoa, porque muita
com um hippie, por causa dos cabelos
hábitos primitivos e naturais em rela-
gente ao passar pelos arredores acaba
longos. Devido ao engajamento com
ção ao cuidado da saúde ainda sejam
levando as plantas para casa. “Não dá
a pesquisa da medicina natural e ao
preservados. Embora tenha sofrido
pra plantar, roubam tudo!”, diz o mo-
prestígio que conquistou com o traba-
influência de métodos modernos para
rador ilhéu.
lho na comunidade, ele é, ainda hoje, procurado pelos corredores no posto
o cuidado do corpo e da alma, a Costa da Lagoa é considerada, ainda, um
Ao conversar com os habitantes acerca
de saúde do Rio Tavares, onde trabalha
exemplo em destaque da medicina na-
do tratamento de doenças com ervas,
no momento.
tural e de uma boa longevidade.
um nome sempre mencionado era o de César Simionato, médico que aten-
Segundo pesquisas, a Costa da Lagoa
Melissa, poejo, feijão guandu e bol-
deu no posto de saúde da Costa da
tem um dos maiores índices de longe-
do. Essas são algumas das plantas que
Lagoa por cerca de 15 anos. Um sim-
vidade dos habitantes. César acredita
Manuel Zé Pereira, 78 anos, conhecido
ples questionamento — e uma respos-
que essa liderança não se deve so-
pelos vizinhos como Dedeco, exibe
ta ainda mais simplória — fez o doutor
mente ao fato de os moradores usa-
com orgulho no quintal de sua casa.
se tornar um autodidata em medicina
rem medicamentos naturais, mas à
Homem de fala rápida, típica de quem
natural. Quando no início da carreira
forma como encaram as complicações
nasceu e viveu por muito tempo em
perguntou o que uma moradora usava
na vida diária. Muitas doenças, para
Florianópolis, tem na ponta da língua
para tratar a tosse, recebeu uma res-
ele, como a pressão alta e a depres-
as funções de cada uma das ervas, que
posta que o deixou intrigado: flor de
são — comumente diagnosticadas nes-
vão desde o tratamento para dor no
mamão macho. “Nada nos meus livros
te século — não são doenças de fato,
estômago a um alívio de coceira na
de medicina falava dessa erva como
mas males provenientes da grande
pele. Embora não dispense um chazi-
remédio para tosse. A partir daí, perce-
corporação que vende medicamentos.
21
Cesar cultivava plantas na Costa da Lagoa como forma de incentivar a população à medicação natural. (Foto: Sofia Mayer Dörner)
Em geral, no período em que o médi-
para procurar comida nas casas), o re-
camentos modernos. “A gente precisa
co realizou seu ofício, as pessoas da
canto é um convite para se levar uma
acompanhá-los, porque não adianta
comunidade tratavam essas angústias
vida mais leve. Embora guarde resquí-
tomar um medicamento se eles não
com chá da folha da laranjeira ou ape-
cios do que foi um dia, o hábito de
verificam a pressão a fim de saber se a
nas com água e açúcar. Não existia a
tratar e prevenir doenças apenas com
substância é realmente indicada”, pon-
ideia de que um choro significasse um
ervas naturais tem perdido a força. A
dera uma das profissionais que atende
motivo para ser tachado de deprimido.
mudança de comportamento se deve,
os moradores, Charlene Duarte.
Cesar, no entanto, não gosta de fazer a
principalmente, à introdução de há-
contraposição entre os remédios natu-
bitos da cidade moderna: se antes a
O que salta aos olhos na Costa da La-
rais e os fabricados: “De vez em quan-
Costa da Lagoa formava uma socieda-
goa é a força da crença. Mesmo que a
do a gente usa um remédio de síntese
de mais fechada, hoje dispõe de linha
ideia de se medicar por conta própria
que é bom também; eu falo é do uso
regular de barco, celular e internet.
não seja mais a única opção — e o povo, em sua maioria, de fato, está aberto
excessivo e da criação de doenças que, na verdade, não existem. Eles não ti-
O posto de saúde, hoje totalmente
a novas ideias — há uma ciência nas
nham esse problema, hoje eles têm,
revitalizado, não mantém a mesma fi-
próprias convicções dos que lá vivem.
claro”.
losofia de anos atrás. A visita de agen-
Quando eles tomam um chá receitado
tes de saúde nas casas da comunida-
há várias gerações para ficar tranquilos,
Rodeado de plantas, paisagens encan-
de para prestar orientações, medir
por exemplo, eles, de fato, ficam. Eles
tadoras e animais (inclusive os saguis
a pressão arterial e fazer as vacinas
acreditam. Essa fé, por fim, tão rara e
traquinas, que descem das árvores
necessárias incentivou o uso de medi-
curadora, não pode ser perdida.
22
PERSONAGEM PARA UM CONTO DE FRANKLIN CASCAES
“Acho que existe muita fé porque as pessoas ficam boas. Por isso acredito”
POR SOFIA MAYER DöRNER
Acredito cegamente que nada aconte-
e, ao mesmo tempo, rico em experiên-
ce por acaso. Era domingo, alguns es-
cias e crenças.
lesterol. Em tom de lamúria, a aposentada me
tudantes já haviam ido embora, outros empacotavam os seus pertences e eu
Sentada à mesa, observo a mulher que
disse não poder tomar o chá de sete san-
sonhava com o chuveiro de casa, cren-
se encontra na minha frente. A entre-
grias, embora a mãe fizesse uso constan-
te de que já estava com todo o trabalho
vista foi precedida por um momento de
te. Tudo bem que ela nem tem colesterol
de pautas finalizado. Engano meu. Um
reconhecimento mútuo, uma recíproca
alto, mas diz que a planta, áspera, pare-
imprevisto, nos 45 do segundo tempo,
troca de olhares que é a linha tênue da
ce espetar a garganta. O fato, para ela,
me fez seguir por uma pequena trilha e,
conquista de confiança ou do esquivo.
é algo tão misterioso e intrigante que
literalmente, bater na porta da casa de
Depois de algumas experiências no bair-
despertou também a minha curiosida-
Dona Leka.
ro, tive a certeza de que essa senhora de
de: — “Quando eu tomava o chá, parecia
pensamentos reservados teria muito
que eu ficava com dor no corpo!” — O
para compartilhar.
enigma chamou tanta atenção que até
Marina Leandra Goés, de 63 anos, ca-
o antigo médico da comunidade, César
sada, mãe de quatro filhos, foi a última pessoa que conheci na jornada pela
Um chá de manhã, no meio dia e à noi-
Simionato, foi em busca de resposta do
Costa da Lagoa. Ela, que sempre morou
te. É assim o ritual de Marina quando a
motivo de ela não poder tomar o chazi-
na mansa comunidade, recebeu-me, na-
saúde resolve pregar umas peças. Juran-
nho.Lembro, então, de Franklin Cascaes,
quela tarde, em sua cozinha. Seu sem-
do não saber o motivo do apelido, Leka,
que nos contos de “O fantástico na Ilha
blante confuso — justificável quando se
acredita fielmente no poder das ervas e,
de Santa Catarina” falava de ervas em
tem dois intrusos dentro de sua casa às
sempre que possível, faz a sua própria
benzeduras. Perguntei se ela teria algum
13 horas de um dia de descanso — atra-
medicação. Nas falas, intercala histórias
caso interessante para contar.
sou o desdobramento de uma conversa
da família com receitas de chás, assim
natural. Não foi preciso muito tempo,
que elas vêm à memória: chá de louro,
- O meu filho mais velho, José Nilton, es-
porém, para aquele cômodo passar a ser
por exemplo, é bom para labirintite e
teve no hospital por dez dias, com diar-
palco de risadas fáceis e de contos de
para dor de estômago; de alecrim, bom
reia e vômito. Quando teve alta, levei à
um cotidiano manezinho típico: singelo
para acalmar, e sete sangrias, para o co-
senhorinha que mora na Barra da Lagoa.
23
Ela o benzeu três vezes. Ficou bom de
ressa ainda por outro motivo: embora
houve uma mudança de hábitos em re-
arca caída. Tinha saído do hospital para
cultivasse costumes dos antigos habi-
lação ao modelo de medicação na Costa
morrer.
tantes da ilha, tinha hábitos, digamos,
nos últimos tempos. A cultura, em todos
de vanguarda. Chegou a fazer ginástica
os lugares, está cada vez mais homoge-
Ao relatar algumas de suas experiências,
no postinho de saúde do local e, até, em
neizada, e isso se reflete nas práticas dos
Leka falou algo sobre sua convicção nos
bairros mais movimentados, como o Ita-
moradores. Com pesar, me diz que nem
métodos naturais que me fez pensar:
corubi, onde um dos filhos mora. Parou
os netos tomam mais chá, apesar da re-
“Acho que existe muita fé porque as pes-
de se exercitar, porém, por conta de um
comendação que faz às mães.
soas ficam boas. Por isso acredito.” A mu-
problema no joelho e tudo quanto é do-
lher que estava sentada à minha frente,
ença, segundo ela, começou a aparecer
A conversa gerou uma visível nostalgia:
narrando histórias de sua vida para dois
desde então: problemas no coração, va-
histórias de família relembradas e his-
desconhecidos, é o tipo de gente que
rizes…
tórias presentes refletidas. A cada fala,
inspiraria o bruxo da Ilha, Franklin Cas-
era comum um período de silêncio, em
caes, a compor um de seus causos e
Engana-se quem pensa que a serenida-
que dona Leka parecia viajar na própria
contos. Nos olhos dessa gente simples,
de de Dona Leka se deve somente à be-
memória. Se Franklin Cascaes estivesse
vi uma fé capaz de superar qualquer
leza natural do recinto. É bem verdade
vivo, provavelmente adaptaria seus con-
avanço tecnológico da medicina ou de
que o local, cercado de árvores, plantas
tos às diversidades modernas do mun-
superar remédio de médico, como diz a
e cheirinho de mar é um convite à paz
do ilhéu de hoje. E essa manezinha, com
ilhoa. Fé de mãe que viu o seu filho ser
de espírito, mas não é só isso. Contou-
suas histórias de benzeduras, de medi-
curado não tem limites.
me que fez, durante três anos, medita-
cação com chás e de envolvimento com
ção na escola da comunidade.
a arte da ioga, seria, com certeza, uma
Dona Leka, entretanto, lamenta que
personagem digna da literatura.
Aquela mulher de fala rápida me inte-
Marina Leandra Goés, também conhecida como “Dona Leka” (Foto: Sofia Mayer Dörner)
24
BENZEDURA PODE ESTAR COM OS DIAS CONTADOS
A tradição se mantém viva na Costa graças a Dona Joana
POR Thuani Regis Mendes
Muitas pessoas procuram as benze-
problemas de saúde, a idosa garante
estão acertando com a gente, não tá
deiras alegando que os médicos não
que só faz o bem às pessoas e traba-
fazendo bem, se a gente vai na ben-
conseguem dar um diagnóstico cor-
lha por amor, sem cobrar.
zedeira, benze a gente fica bom”. Geralmente a benzedura é feita com
reto. Arca caída, mau-olhado, quebranto e cobreiro são os principais
Tradição forte em Florianópolis, prin-
alguma erva, como folhas de laranja
problemas tratados pelas mulheres
cipalmente nas Comunidades do Ri-
ou limão, acompanhada do santinho
que cultuam essa tradição.
beirão da Ilha, Ratones, Pântano do
com a imagem de Jesus Cristo.
Sul e Costa da Lagoa, a benzedura é Em busca de benzedeiras na Costa da
uma questão de crença. Para dar cer-
Mas até quando essa prática vai per-
Lagoa, em Florianópolis, encontrei
to, precisa acreditar no que está sen-
durar? As novas gerações não querem
Vaudelina Felomena Laureano (dona
do feito.
saber de aprender os rituais e, por isso, as benzedeiras vão sumindo. A
Vadinha), moradora da comunidade, que por sua vez indicou dona Joana
- Já foi falado por um casal que veio
cura através das ervas e de uma boa
Rita Bernardes, a última curandeira
aqui do Rio, e o marido disse: “O que
dose de fé sempre foi um mistério
da região. Aos 83 anos, e sofrendo de
há dona Joana, agora os médicos não
que a medicina procura ignorar.
No caminho da cachoeira podemos encontrar um pouco da crença da comunidade da Costa. (Foto: Mateus Bianchini)
25
A última benzedeira da Costa está doente
Aos 83 aos, Dona Joana sofre com os problemas de saúde
POR Thuani Regis Mendes
Joana Rita Bernardes, mais conhe-
nhecido como “Zé Tainha”, fez uma
médico disse que ele teria que quei-
cida como dona Joana, 83 anos, é a
entrevista com ela. “O Zé Tainha
mar uma veia, mas a mãe não teve
única benzedeira da Costa da Lagoa
veio aqui na Costa, fez a entrevista
coragem e a procurou. Então dona
hoje. Manezinha desde nascença,
comigo, aí o pessoal viu na televisão
Joana benzeu:
cresceu e vive na Costa até hoje. Lu-
e vieram me procurar.”
gar bom de se morar, calmo e silen-
- São Lucas, São Mateus, vou afu-
cioso, mas que hoje está mudando:
gentar capim santo seu, São Lucas
“Agora já não é como antes, porque antes não tinham pessoas de fora, estranhas. Agora a gente já tem mais medo, podem fazer mal a gente, mas graças a Deus está cheio de gente de fora aí e nunca fizeram mal nenhum, com a graça de Jesus.” Hoje, com nove filhos, conta que até pediram para que ela parasse de benzer, para não se estressar ou
Dona Joana encontra na reza uma maneira de fazer o que mais gosta: o bem para as pessoas
cortava, São Mateus benzeu; Ô sangue, assossega em ti como o Senhor Jesus Cristo assossegou em si; Ô sangue, assossega na veia como o Senhor Jesus Cristo assossegou na ceia; Ô sangue assossega no corpo como o Senhor Jesus Cristo assossegou no outro. Essa prece que eu fiz tá entregue a Jesus que sara o corpo de (daí a gente diz o nome da pessoa né, Manoel, do Antônio).
se cansar. Mas não adiantou porque
Em nome de Deus da virgem Maria
ela encontra na reza uma maneira
e amém.
de fazer o que mais gosta: o bem
Muito procurada também por pesso-
para as pessoas. Quando era nova,
as de outros estados, como Rio de
Logo o sangue estancou e o vizinho
já sabia benzer. Às vezes cuidava de
Janeiro e São Paulo, dona Joana é
ficou bom. Aos 83 anos, e sofrendo
algumas crianças doentes, e então
uma senhora muito humilde e queri-
com problemas de saúde gerais e
elas melhoravam. Mas mergulhou
da por todos. Ela conta também que
dor nas costas, Joana é a última es-
mesmo nessa prática depois que o
já curou uma hemorragia no nariz
perança da comunidade para man-
comunicador Eduardo Bolina, co-
de um morador da comunidade. O
ter viva a tradição da cura.
26
“Zé Tainha veio aqui, fez a entrevista, o pessoal viu e vieram
27
me procurar.”
Foto: Sofia Mayer Dörner
HOMEM E NATUREZA CONVIVEM EM HARMONIA
Sustento vem da conscientização e preservação
POR TIAGO BENTO
O Escorpião surge ao crepúsculo. É o
passando o recado de que ali lugar de
barco que faz a coleta dos resíduos da
lixo é no lixo.
Com o passar dos tempos, a mudança foi inevitável, como conta Savas Naelzo
Costa da Lagoa. O barqueiro desata os nós do trapiche para sair em mais uma
Com o início da coleta pública em me-
Laureano. “Após esse processo de in-
noite de oficio. Ele faz esse trajeto ao
ados de 1991, vieram também outros
dustrialização, também começamos a
menos quatro vezes na semana. Cor-
cuidados no sentido de preservar o
gerar muito lixo, mas a coleta municipal
tando as águas às margens do povoa-
meio ambiente: nos 23 trapiches ao
chegou, graças a Deus, pois não tínha-
do, a vegetação se mescla com os te-
longo da Costa foram instaladas lixeiras
mos a cultura de retirar os resíduos do
lhados das construções, que remetem
que dão a possibilidade de os turistas
lugar. Se não fosse a coleta, a Costa não
à colonização açoriana, descaracteriza-
se livrarem de pequenas quantidades
seria preservada como é hoje”, explica.
das gradativamente com o levantar das
de resíduos para não descartá-las nas
novas edificações.
trilhas.
Em um mundo onde o avanço da urbanização deixa rastro de degradação do
As belezas da Costa da Lagoa são mes-
Ao que parece funciona, pois as ruas e
próprio ambiente onde se habita, mui-
mo admiráveis. Nesse meio ambiente, o
vielas que cortam o povoado têm um
tos bares, restaurantes, hotéis e resi-
homem e a natureza convivem em har-
aspecto simples e limpo, que dá um ar
dências ainda jogam o óleo utilizado na
monia, e surpreendentemente dá cer-
de cooperação entre o meio ambiente
cozinha direto na rede de esgoto, des-
to. Com moradores conscientes de que
e as pessoas que vivem na localidade.
conhecendo os prejuízos dessa ação. O produto prejudica o solo, a água, o ar
seu sustento depende da preservação ambiental, fazem o papel junto com
Antes de a coleta de resíduos do muni-
e a vida de muitos animais, inclusive o
o poder público de passar as lições de
cípio atender aos moradores, não havia
homem. Mas a comunidade foge desse
respeitar a natureza da Costa. Os mora-
tanta preocupação. Na época, cerca de
péssimo hábito com boas práticas de
dores e turistas recebem essa mensa-
90% dos alimentos consumidos eram
destinação correta do lixo.
gem de muitas formas, seja nas placas
produzidos pela própria comunidade,
das trilhas ou até mesmo com as “boas
sem necessidade de embalagens, co-
Os índices de saneamento mostram
vindas” de um local limpo e preservado,
muns aos produtos industrializados.
que a Costa está no caminho certo para
28
preservar a harmonia com o meio am-
rantes são encaminhados a ACIF, de
na comunidade o maior percentual de
biente, resultado da consciência dos
onde é destinado para confecção de
ligações regulares (59,3%). acima da
moradores que querem “manter tudo
produtos como o óleo é a matéria
média do município que é de (50,7%).
como era no tempo dos nossos avós”.
prima, evitando que o óleo seja descar-
O programa é uma parceria entrePre-
Alguns exemplos dessa consciência
tado de maneira imprópria.
feitura Municipal de Florianópolis e a CASAN que tem por objetivo a regula-
merecem destaque: 100% do óleo descartado pelos restau-
A Costa da Lagoa foi destaque no pro-
rização das ligações prediais de água
grama Se Liga na Rede, que encontrou
pluvial e esgoto sanitário.
Escorpião, barco de coleta de lixo, vai à Costa ao menos
29
quatro vezes por semana Foto: Tiago Bento
TRADIÇÃO E SONHOS CONCILIADOS
Jovens desejam mudar os horizontes na comunidade
POR VINÍCIUS MARINHO FLAUSINO
Ser acordado pelo barulho do mar,
sidão do oceano, com a perspectiva de
trabalho deles? A preocupação de pai
ter a oportunidade de ver os peixes
juntar o suado dinheiro para poder dar
traz à tona a tendência de seus filhos
pulando na lagoa e poder apreciar o
uma vida digna à família.
partirem para outra atividade. Tulio, fi-
silêncio da mata fazem parte do dia
lho do pescador Jajá, não quer viver da
a dia do pescador da Costa. Mas hou-
Por intermédio da cultura pesqueira, a
tarrafa “porque é muito trabalho pra
ve um tempo em que isso ficou só na
Costa da Lagoa se desenvolveu de tal
pouco retorno e muito cansaço tam-
lembrança. Tudo estava tão longe, a
forma que possibilitou a profissiona-
bém”, diz. Nem todos seguem o dita-
família estava viva na memória e a sau-
lização e a regularização da atividade
do “filho de peixe, peixinho é”. Alguns
dade batia cada vez mais forte, de tal
na região, eliminando a necessidade
preferem não repetir a profissão do pai
modo que o pensamento de derrota
de se afastar de casa por longos dias
para não viver as mesmas dificuldades.
vinha à tona.
para buscar sustento. A criação de restaurantes especializados em frutos do
Por esses motivos, a preocupação não
A preocupação de pôr o alimento na
mar também contribuiu para trazer de
está mais tão voltada à manutenção
mesa e educar os filhos, contudo, era
volta a terra o pescador que trabalha-
da cultura, mas sim ao futuro promis-
maior que a possível desistência. E
va em alto mar.
sor que os jovens podem ter, fazendo
assim continuava sua jornada de em-
o que gostam, sem a obrigação de sus-
barcado, como se chamava o pescador
Hoje, são mais de dez restaurantes em
tentar a casa ou ajudar nas contas. Os
que ia trabalhar em alto mar como
toda a Costa da Lagoa que atraem mui-
pais preferem que os filhos conheçam o
tripulante de barcos de empresas pes-
tos turistas para a região, mesmo num
mundo e estudem para que a realidade
queiras. “A última vez que eu estava
lugar onde só se chega de barco ou por
mude, para que tenham a oportunida-
embarcado, eu fiquei mais de cinco
trilha. Hoje, os recursos para manter os
de de dar passos maiores. É o caso de
meses fora. A gente ficava 22 dias e
filhos em uma boa faculdade vêm dos
Tulio Djalma Laureano, 17 anos, filho de
voltava, ficava uma semana em casa
ganhos na própria comunidade.
Simone e Djalma, moradores da região.
e ia de novo”, diz Valter Miguel de An-
Em vez de seguir a profissão do pai, seu
drade, 63 anos. Era essa a rotina de um
O cenário é de crescimento, mas uma
maior desejo é se tornar piloto, e estan-
pescador da Costa: se afastar da famí-
pergunta paira na mente dos pesca-
do nos ares, quer ver as embarcações
lia e passar dias ou até meses na imen-
dores: será que os filhos continuarão o
na imensidão do oceano lá de cima.
30
Filhos de pescadores mantêm distante a perspectiva de
31
continuar a tradição Foto: Guilherme Martins da Cunha
Mesmo estando em um lugar preservado, moradores sofrem
32
com legislação inadequada Foto: Wellinton da Silva Farias
TAXA DE OCUPAÇÃO AMEAÇA NATIVOS
Cobrança de 5% por edificação contraria moradores
POR WELLINTON DA SILVA FARIAS
Bom é viver em um lugar onde os índi-
porque nossa cultura é essa, vivemos
para os barcos. A nossa calçada na Costa
ces de violência, furtos ou qualquer ou-
da pesca e aqui estamos presentes há
da Lagoa são os deques e os trapiches
tro crime são praticamente nulos. Onde
várias gerações. A legislação ambiental
que são essenciais para o deslocamento
os moradores podem deixar as casas
não permite que façamos melhorias ou
dentro da costa, complementa Savas.
abertas quando saem e ainda desfrutar
novas construções e não entende que
de uma das mais belas paisagens de Flo-
iremos ocupar o mínimo de área, apenas
Em entrevista ao jornal Notícias do Dia,
rianópolis. Esse lugar é a Costa da Lagoa,
para subsistência, comenta Savas Laure-
o engenheiro cartógrafo Obéde Pereira
um dos bairros que melhor preservou a
ano, morador tradicional do bairro.
Lima disse considerar o método presumido de demarcação da SPU (Secretaria
cultura açoriana ao longo dos séculos na A taxa deve ser cobrada de todas as
do Patrimônio da União) “equivocado,
edificações que estejam na faixa de 33
impróprio, inadmissível e ilegal”. Djalma
Por ser reconhecido como comunidade
metros ao longo da costa da Lagoa da
Naelzo, morador nativo da Costa da la-
tradicional, o lugar dá direito de ocupa-
Conceição. Além disso, todas as obras de
goa, comenta que a população sente-se
ção aos moradores nativos. Em seu con-
melhoria ou novas construções devem
abandonada pelos poderes públicos.
junto, eles ocupam apenas 2% de todo
ser realizadas mediante autorização da
o território de mata atlântica preservada
SUSP (Secretaria de Urbanismo e Servi-
A principal reivindicação da comuni-
que integra o recanto. Porém, a cobran-
ços Públicos de Florianópolis).
dade é que os órgãos ambientais e po-
Ilha de Santa Catarina.
líticos tenham mais sensibilidade com
ça de uma taxa anual de 5% sobre o valor de cada edificação tem causado uma
- Já tivemos vários casos de demolição;
os moradores que sofrem uma pressão
grande e negativa repercussão entre os
meu pai, por exemplo, fez uma melhoria
constante com a possibilidade de desa-
habitantes.
no restaurante, construiu um deque, e
propriação e a burocracia legal. Ela não
tivemos que demolir. Foi tempo perdi-
só impede novas construções, como
- Isso vai sobrecarregar nossa realidade,
do. O deque se fazia necessário porque
ameaça apreservação da cultura tradi-
pois o IPTU já é caro e essa taxa nos pa-
nosso ambiente é externo, é o atrativo
cional. As novas gerações podem não
rece desnecessária. Não queremos mo-
para os clientes dos nossos restauran-
encontrar espaço para permanecer na
rar aqui por ser um lugar agradável, mas
tes e, além disso, serve como atracador
Costa da Lagoa.
33
PERSPECTIVAS DISTANTES DE CASA
Dificuldades afastam os jovens da pesca
POR VINÍCIUS MARINHO FLAUSINO
As dificuldades de uma vida notur-
sui o restaurante Sabor da Costa, de
cordam com a afirmação e dão total
na, silenciosa, que depende da épo-
onde tiram o sustento.
apoio à decisão dos filhos, mesmo
ca e o serviço árduo de um pescador
que a profissão escolhida os leve
que ganha o necessário, são os mo-
para longe de casa. Djalma conta,
tivos que afastam muitos jovens da
descontraído, uma brincadeira que
pesca, como Tulio Djalma Laureano,
Tulio faz com Alyson, o irmão mais
17 anos. Tulio iniciou seus estudos na Escola Desdobrada da Costa da Lagoa, de onde não queria ter saído. Mas a falta de continuação do ensino , a escola vai até o quinto ano aoenas, levou o jovem para o outro lado da Lagoa, onde concluiu o ensino médio. Sonhando estar nos ares, so-
Sonhando estar nos ares, sobrevoando as nuvens, o jovem não pretende lançar rede ao mar
velho quando vai pescar com o pai. “Vai lá fazer esforço vai. Amanhã vou passar por cima aí pra ver vocês”. Já na infância, o jovem olhava para o céu imaginando-se dentro de um helicóptero. Djalma afirma que apoia a decisão do caçula. “Que bom que ele realize esse sonho, a gente tá lutando e trabalhando pra isso.”
brevoando as nuvens, o jovem não
Mesmo sabendo que a pesca foi o
pretende lançar rede ao mar. “Meu
sustento da família durante anos, o
plano profissional é estudar pra ser
anseio de estar nas nuvens conquisFilho da terceira geração de pesca-
ta o coração de Tulio. Ele se orgu-
dores, Tulio conta que o pai, Djalma
lha de todo o esforço que o pai faz.
Sua infância foi tranquila. Desde
Naelzo Laureano, trabalha muito e
Mas não se imagina na pesca, “já
muito cedo o pai passava longos
tem pouco retorno. “O pai conquis-
fui pescar uma vez mas não gosto”,
dias em alto mar pescando, mas ele
tou bastante coisa, mas o cara fa-
comenta. E mesmo que seja forte o
não lembra dessa época, quando ti-
zendo uma faculdade vai ganhar mil
desejo de estar perto da família, “sei
nha cinco anos. Hoje, a família pos-
vezes mais”, diz. O pai e o avô con-
lá, sonho é sonho né”.
piloto de helicóptero”.
34
NAELZO, PERSONAGEM DE SABERES LEGENDÁRIOS
Leis de preservação ambiental arriscaram fonte de renda familiar
POR WELLINTON DA SILVA FARIAS
Em meio a um dos mais belos cená-
biental e regularização dos terrenos
Apesar de todo impasse com as novas
rios da Ilha de Santa Catarina encon-
de Marinha a demolir o trapiche, Na-
leis e o descontentamento com as ex-
tra-se um personagem de saberes le-
elzo acabou arriscando a fonte de sus-
periências passadas, o que não falta
gendários. Marcado em sua veia pela
tento de sua família. “Foi uma grande
em Naelzo é disposição para contri-
tradição açoriana, Naelzo Brasiliano
surpresa pra mim e uma das maiores
buir com a melhoria das condições de
Laureano, 66 anos, nascido e criado
dificuldades que enfrentei na vida.
vida no lugar onde cresceu. A chave
na Costa da Lagoa, detém muito co-
Sem poder realizar reformas ou novas
para o otimismo está em um belo sor-
nhecimento sobre a cultura da pesca.
construções, todos os moradores so-
riso e no suor da luta de cada dia.
Ali onde vive constituiu família, teve
frem com a falta de sensibilidade dos
três filhos, e hoje trabalha no deslo-
poderes públicos”, comenta. A fisca-
camento de moradores e turistas até
lização ficou mais rígida nos últimos
a Costa da Lagoa com a Cooperbarco.
anos, quando a Secretaria do Patrimônio da União decidiu impor limites ao
Naelzo tem um perfil empreendedor
avanço urbano além de cobrar taxas
e já foi dono de restaurante. Hoje é o
de ocupação dos moradores. Hoje,
filho quem dá continuidade no traba-
várias famílias como a de Naelzo sen-
lho. Aliado aos saborosos pratos típi-
tem-se ameaçadas.
cos do pescado, o que sempre contribuiu para manter uma boa clientela foram os deques, que além de servirem de parada para os turistas apreciarem a paisagem e a gastronomia, são o que podemos chamar de “calçada” em toda orla da costa da Lagoa da Conceição. Forçado pelas leis de preservação am-
Hoje, várias famílias como a de Naelzo sentem-se ameaçadas
Perfil empreendedor, montou restaurante que hoje fica a cargo do filho. (Foto: Wellinton da Silva Farias)
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CULTURA RELIGIOSA
A cada ano cai o interesse de jovens e crianças pela religião
POR GUILHERME MARTINS DA CUNHA
Na Costa da Lagoa, restaurantes, ran-
Pão por Deus são algumas das contri-
moradores são os donos dos 14 es-
chos, decks e barcos dividem o es-
buições culturais que a religião traz
tabelecimentos espalhados pela co-
paço à beira da Lagoa da Conceição.
para a comunidade. Mas há alguns
munidade e, porque os restaurantes
Atrás do Ponto 16, uma das paradas
anos a igreja anda vazia.
vivem cheios de turistas, dizem que
do barco que leva moradores e turis-
não têm tempo para ir à igreja. Eles
tas até o bairro, corre uma trilha de
afirmam que nos dias de missa, ge-
lajotas ou de barro que dá acesso
ralmente no domingo de manhã, es-
às casas dos moradores da comunidade. No alto de uma escadaria, de frente para a lagoa, destaca-se uma igreja branca com portas e janelas compridas e estreitas. Dentro, bancos em madeira acomodam os fiéis. À esquerda do altar, podem ser vistos o círio pascal e uma cruz de madeira. À direita, um púlpito onde fica a equipe de canto. Imagens de nossa
Dona Vadinha auxilia os celebrantes que se deslocam até a Costa para a realização das missas.
tão trabalhando. Dona Vadinha, que há anos ajuda na administração da igreja e é mãe de um dos donos de restaurante, discorda do argumento. Ela acredita na falta de interesse das pessoas. Dona Vadinha auxilia os celebrantes que se deslocam até a Costa para a realização das missas. Na ausência de
Senhora dos Navegantes e São José
um padre residente, muitas vezes
chamam atenção atrás do altar. A
ela mesma se encarrega das missas.
Capela da Santa Cruz ergue-se como
A frequência nas missas não passa de
Segundo ela, nos últimos 16 anos a
uma remanescência da religião que
meia dúzia de fiéis.
igreja tem ficado cada vez mais va-
já teve um papel preponderante nes-
Uma das justificativas para esse
zia, chegando ao ponto de as cele-
se povoado. Em comunidades com
abandono, segundo alguns mora-
brações não conseguirem arrecadar
descendência açoriana, o catolicis-
dores, é a falta de tempo. A pesca,
fundos para mantê-la. Em diversas
mo sempre foi um pilar importante
que era a principal fonte de renda da
ocasiões, a coleta entre os fiéis não
da cultura. Festa do Divino, Festa da
comunidade, acabou se desdobran-
consegue nem pagar a ida do padre
Santíssima Trindade, Terno de Reis e
do no negócio dos restaurantes. Os
que vai de barco para a comunidade.
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Capela da Santa Cruz, onde Dona Vadinha presta auxilio com muito carinho. (Foto: Marcelo Martins)
Ela se preocupa muito com a situa-
cada dois anos, passou a ter um ce-
sentam 64,6% da população brasi-
ção em que está a igreja. A cada ano
lebrante diferente a cada semana.
leira. Os evangélicos subiram 17% e
menos crianças entram para as cate-
Essa relação mais duradoura criava
representam no momento 22,2% dos
queses de comunhão e crisma, e até
um vínculo maior entre comunidade
brasileiros. Esse aumento não se dá
os mais velhos, que reforçavam a reli-
e igreja.
pela conversão de católicos em evan-
gião, têm perdido o interesse.
gélicos, mas pela escolha das novas
A falta de um padre fixo foi outro
Enquanto os católicos deixam de ir
gerações, que têm maior proporção
ponto levantado pelos fiéis para jus-
à igreja e se tornam um número me-
entre os evangélicos. Se os números
tificar a falta de interesse. Em uma
nor na comunidade, os evangélicos
continuarem subindo e descendo no
comunidade na qual a confiança en-
têm ganhado cada vez mais espaço.
mesmo ritmo das últimas décadas,
tre os moradores é visível para quem
A baixa no catolicismo e a ascensão
futuramente teremos uma igualda-
vem de fora, ter a cada final de sema-
dos evangélicos não é uma particu-
de entre as religiões no Brasil. Mas a
na uma pessoa diferente realizando
laridade da Costa da Lagoa. Segun-
Costa traz uma singularidade interes-
as missas causa um desconforto. Há
do o Censo realizado pelo IBGE em
sante, as duas religiões conseguem
16 anos, a igreja da Costa da Lagoa,
2010, o índice de católicos, teve uma
conviver em harmonia, a ponto de o
que era regida por Freis trocados a
queda de 12,2%, agora os fiéis repre-
pastor frequentar as missas.
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COTIDIANO INSPIRA A ARTE
Nesse lugar, a arte está em tudo que se vê, toca ou respira
POR MANOELLA CORREA DA ROSA
sencial no nosso mundo.
esse dom, sempre gostei de desenhar”.
pescadores, que, enquanto andamos
Mas um lugar tão intocado pelo ho-
Esta arte passa despercebida por eles,
pela tarde, podemos ver fazendo suas
mem, a Costa da Lagoa, é fonte de inspi-
esses artistas que nem se dão conta que
redes, como nas rendeiras que tecem
ração para artistas como Oscar Florianni.
fazem arte, pois o cotidiano pleno não
peças únicas e bem detalhadas, num
Um artista plástico que mora em uma
permite. Sair para pescar de madrugada,
artesanato que é passado de mãe para
barraca na trilha da cachoeira, e pinta
voltar abastecido, prover o sustento da
filha. Arte sempre fez parte do que
seus quadros inspirados pela natureza
comunidade, que também se mantém
somos. Aprendemos a nos expressar
ímpar do local. E também Leewei Chan,
pelos tantos restaurantes desses pesca-
e comunicar através dela. E defini-la
caricaturista que escolheu a Costa para
dores, pode se tornar invisível no dia a
beira o impossível. Mas podemos dizer
morar, e produz sua arte quando os ani-
dia. A rendeira, que desde pequena vê
que ela está em tudo o que a gente vê,
mados “exploradores” vêm passar o dia
a mãe ou a avó fazendo as rendas numa
lê, toca, respira ou escuta. Ser artista,
na região. Retratando seus rostos exube-
almofada de bilro, não consegue en-
pode demandar uma habilidade espe-
rantes e maravilhados com a natureza,
xergar arte em algo que desde sempre
cial, um dom, ou talvez apenas uma
Chan repara, com atenção, suas expres-
considerou apenas mais uma fonte de
aptidão. E isso é o que a faz ser tão es-
sões e as rabisca no papel. “Nasci com
renda.
A arte pode ser encontrada em todas as formas na Costa da Lagoa. Desde
Habilidade especial nas mãos da rendeira. (Foto: Manoella Correa da Rosa)
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DE MACAU PARA A COSTA DA LAGOA
Leewie Chan sobrevive por 15 anos fazendo caricaturas
POR MANOELLA CORREA DA ROSA
Vi o Chan logo que cheguei à Costa da
Rodou muito o mundo até parar final-
como as letras não saem como ele quer,
Lagoa. O movimento de estudantes o
mente na Costa da Lagoa, onde vive há 15
acaba ficando irritado, Em Macau traba-
atraiu para o restaurante em que estáva-
anos. De início, o povo não o aceitou mui-
lhava como piloto de hidroavião em uma
mos almoçando. Primeiro apareceu meio
to bem, por não gostar de sair e nem de
empresa de táxi aéreo chamada Airtax:
tímido, com um caderno de desenho de-
falar muito. Diziam: “Esse cara não presta,
“Sou piloto formado”, diz com orgulho.
baixo do braço, olhando acuado para os
não vale nada”. Mas depois se acostuma-
Seu pai também era piloto, mas morreu
alunos barulhentos que estavam entre os
ram. “Como um cão malcriado, põem no
no fatídico desastre do avião da Air Fran-
bares à beira da lagoa. Depois de se am-
cantinho quando ele não se dá com as
ce no ano 2000. Apesar da perda, Chan de
bientar com a algazarra, veio de mesa em
pessoas, mas depois vão se acostuman-
sente feliz, porque, segundo ele, seu pai
mesa perguntando se queríamos fazer
do”, ele disse quando perguntei sobre sua
morreu fazendo o que mais gostava, voar.
uma caricatura. Prestei atenção para ver
adaptação na Costa. Antes de sair de Macau fez um roteiro por
quantos visitantes encomendariam seu retrato desenhado e, escutando mais não
Começou a fazer caricaturas depois de
vários países da Europa que gostaria de
do que sim, Chan não demorou para bai-
escutar vários “não estamos precisando”
visitar, como França, Inglaterra e Itália.
xar o preço.
enquanto procurava trabalho. Então a
Ficou cerca de um ano em cada país e en-
necessidade falou mais alto. No inverno,
tão foi para Madagascar, de lá os Estados
Fiquei intrigada com ele. Pelo sotaque,
quando o movimento de turistas na Cos-
Unidos e Canadá, para finalmente parar
podia perceber que não era dali, mas
ta da Lagoa cai consideravelmente, vai
no Brasil. Veio para o Brasil pelo idioma e
também não conseguia identificar sua
até os cafés da Lagoa da Conceição e faz
também porque procurava uma ilha para
origem. Logo vi que por trás daquele
seus desenhos por lá. Mas, na verdade, o
morar. Não procura nada em continentes;
sotaque não havia só um país diferente,
que mais gosta de fazer é ficar sozinho
gosta de ver o mar sempre que possível.
mas alguém que resolveu sair pelo mun-
em casa na frente do computador crian-
Morou em Fernando de Noronha e em
do para espairecer e já estava há 20 anos
do e modificando jogos. Se não precisas-
mais algumas ilhas no Nordeste do país
longe de casa.
se de dinheiro para sobreviver faria isso
até finalmente chegar em Florianópolis
para sempre. Também gosta de ler; lê de
há 15 anos e enfim fincar raízes de novo.
Macau, um dos primeiros países a falar
tudo, mas prefere história geral. Perdeu
Faz dez anos a última vez que esteve em
português no mundo, com cerca de 500
o costume de escrever porque, devido
Macau. Visitou suas velhas casas, as esco-
mil habitantes, é o berço do gravurista.
ao álcool, tem ‘tremeliques’ nas mãos, e
las nas quais estudou e os amigos de in-
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fância que ainda estavam vivos. Fala três idiomas fluentes: português, inglês e candoles, o chinês tradicional. Todos os três aprendeu nas escolas que frequentou em Macau.
Posso perceber um saudosismo quando fala sobre sua vida em Macau. Como se o tempo das aventuras pelo mundo tivesse se esgotado e agora já fosse hora de voltar para casa. Saiu de seu país porque achava que não havia mais nada lá para ele; já não tinha mais família; permanecia horas trancado em um quarto sozinho, sem nada para fazer. Agora, mais velho, com 50 anos, praticamente a metade deles passada fora de sua pátria, a saudade é visivelmente grande. Pergunto se ele não quer voltar e a resposta é imediata: “Sim, ainda este ano”. Chan só está esperando os papeis da extradição saírem. Como não tem dinheiro para pagar a passagem de volta, teve que entrar com pedido de extradição. Tem esperança de que até setembro já esteja tudo resolvido. Em Macau, pretende ser instrutor de futuros pilotos de avião e também quer cuidar da sua saúde, que segundo ele está precária.
Quando a conversa acaba, desligo o gravador e pergunto se quer escutar a gravação. Ele diz que sim, contente por lhe dar a possibilidade. Assim que escuta sua voz, faz uma careta. “Odeio escutar minha voz. Só gosto dela cantando”. Ele compõe músicas desde criança e canta uma. Emocionado, o artista pega a marmita sobre a mesa e segue em direção à sua casa na Costa.
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Chan pretende voltar para a terra natal. Depende ainda de documentação Foto: Manoella Correa da Rosa
DO ENGENHO AÇORIANO AO TURISMO
Reduto histórico açoriano, lugar único na formação humana
POR VITÓRIA ZARDO
A Costa da Lagoa foi oficialmente po-
devastada para o plantio e extração de
por historiadores, dentre eles, o profes-
voada no fim do século XVIII por imi-
madeira destinada a diferentes consu-
sor da Universidade do Estado de Santa
grantes açorianos. Durante o período
mos: construções de barcos e canoas,
Catarina, Esdras Pio Antunes da Luz, um
de instalações ergueram-se as primei-
uso próprio das famílias, abastecimento
apaixonado por história. Em 2014, seu
ras edificações e engenhos de farinha e
dos engenhos e venda para outras lo-
trabalho de mestrado na Costa, contri-
aguardente. As casas tipicamente aço-
calidades próximas. Nas montanhas de
buiu com informações de cada época
rianas surgiram no mesmo momento,
encosta da Lagoa, o trabalho era ainda
da ocupação humana na região e seus
e em torno desses marcos nasceram os
mais rigoroso e cansativo, mas fez com
desdobramentos.
primeiros núcleos e vilas da Costa. Gran-
que se destacasse e se transformasse em
des plantações de mandioca, milho e
referência por aproximadamente meio
Mas com o tempo, a falta de minerais e
cana se desenvolveram com o trabalho
século.
nutrientes na terra tornou-se uma consequência séria para o andamento das
árduo de escravos e famílias tradicionais Na metade do século XIX, o café passou
plantações, assim como a falta de lenha
também a ser comercializado, gerando
para abastecer os engenhos e madeira
Moradores nativos e atuais da região
exportações para outros estados brasi-
para a construção privada. Um agravan-
relembram com saudades dos anos
leiros. Junto com a farinha de mandioca,
te constatado pelos moradores foi que a
de juventude em que se dedicavam às
o café ganhou espaço nas capitais do
extração tornara-se superior ao tempo
plantações com suas famílias. Meninos,
Rio de Janeiro e São Paulo.
da terra se revigorar. Não consideravam
de posse.
viável trabalhar numa terra pobre e sem
meninas, homens e mulheres fazendo de suas vidas o vínculo com a terra, do
Assim como na Costa da Lagoa, diver-
árvore alguma para o consumo ardente
amanhecer ao entardecer na roça. Co-
sas partes da Ilha se tornaram lavoura.
dos engenhos. A degradação fez com
lhendo, semeando e aguardando da ter-
Os colonos transformaram a terra vir-
que em questão de anos, o setor agrí-
ra os frutos para se viver com segurança
gem em ricos campos de produção. Se
cola perdesse sua força e se extinguisse
e tranquilidade.
isso trouxe subsistência, também ge-
aos poucos do cenário na Costa.
rou nessa época um desmatamento de A paisagem da Mata Atlântica nativa
aproximadamente 75% do território de
A vitalidade da terra começou a se res-
dos morros da Costa foi absolutamente
Florianópolis, segundo dados coletados
tabelecer novamente e os engenhos
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elétrica e telefone.
passaram a ser esquecidos com o tem-
canto da Lagoa até então quase desco-
po, virando lembranças para a história.
nhecido, algumas se mudaram anima-
A mata foi lentamente ressurgindo e
das e compraram terrenos nesse perí-
Em 1986, através de um decreto muni-
tomando seu espaço de sempre; uma
odo de reconhecimento. Aos poucos a
cipal, o município reconhece o cami-
floresta secundária cheia de histórias
nova economia foi se estabilizando com
nho da Costa da Lagoa como Patrimô-
gravadas no solo trazendo a beleza e a
o transporte náutico de pessoas, o turis-
nio Histórico e Natural de Florianópolis,
diversidade de volta.
mo gastronômico e a pesca em pequena
que foi tombado para a conservação do
escala. A criação de novos empregos fez
local e arredores, assim como as duas
Com o fim da agricultura em meados do
com que os homens não precisassem
construções remanescentes da época
começo do século XX, era inevitável a
mais ir embora, acabando com as migra-
do colonialismo: o casarão chamado
procura por outro recurso para a renda
ções.
D. Loquinha e o engenho de farinha na Vila Verde. Atualmente propriedade
das famílias. Houve um êxodo de pessoas nesse período para outras locali-
Ainda nos anos 80, outro grande fator
privada, as obras de reforma do casarão
dades, e as famílias que permaneceram
mudou a relação de toda a história na re-
alteraram sua identidade arquitetôni-
não conseguiam se manter com as pes-
gião: a inserção das leis ambientais, que
ca açoriana. O engenho também é de
cas sazonais, o que levou os homens e
gerou confrontos e desconhecimentos
propriedade particular, do professor
jovens a migrarem para o norte do Es-
de normas impostas a moradores nati-
Esdras, que junto com a comunidade
tado e para o Rio Grande do Sul à pro-
vos. Desde a década de 60 e 70, quando
mantém o cuidado necessário com a
cura de trabalho em barcos de pesca. O
o código florestal entrou em vigor, as
construção.
salário mensal era enviado às mulheres
matas não poderiam mais ser mexidas,
que viviam na Costa fazendo trabalhos
porém foi o plano diretor de 87 que no-
A Costa da Lagoa, salvo proporções, é
domésticos, rendas de bilro e artesana-
meou as APP (área de preservação per-
um retrato da nossa ocupação huma-
tos tradicionais açorianos.
manente) e as APL (Área de Preservação
na. Começamos com o que sabemos
Limitada) em toda a região da Lagoa,
e possuímos e depois com a ambição
Assim, a Costa da Lagoa viveu por dé-
inclusive em terrenos de famílias cente-
provocada pela abundância, saímos do
cadas; os homens saíam jovens de casa,
nárias que viviam no local.
nosso espaço e iniciamos as trocas e comercializações. A partir de então as tro-
pescavam fora, mandavam o dinheiro para suas esposas e retornavam para
Os moradores passaram a conviver com
cas passam também a ser humanas, com
casa quando lhes sobrava tempo. Esse
novas limitações ambientais mais seve-
pessoas de outros lugares chegando e
roteiro de vida durou até a década de
ras, mas concordaram a respeito da ar-
trazendo novas informações, educação
80, quando a partir de então a vida na
gumentação sobre a beleza intacta das
e ciência, um processo de movimento
região mudou drasticamente de ritmo.
matas no intuito de conservação e atra-
que cresce naturalmente com a histó-
ção turística. E com o passar dos anos,
ria de nosso desenvolvimento. Dessa
O turismo nasceu com a abertura do
as pessoas se apressam para fazer dos
forma, a Costa reconhece sua história
primeiro restaurante para visitantes em
seus direitos algo legal e ético de preser-
como algo compreensível e natural,
1980, o que estimulou de forma rápida o
vação, mesmo havendo preocupações.
cada momento de transformação foram
crescimento de novos estabelecimentos
Com o turismo ganhando cada vez mais
lembranças que hoje aprendemos e re-
e originou novos negócios na área. Pes-
autonomia, o governo libera verbas na
conhecemos de uma forma única para
soas começaram a conhecer esse novo
década de 1980, para a instalação de luz
cada lugar.
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O reflexo de um lugar que conduz hist贸ria, simplicidade
43
e beleza
Foto: Vit贸ria Zardo
JORNALISMO ESTREIA NA COMUNIDADE
A familiarização com as câmeras, o cenário e o povo
POR RAFAELA MORAES
Era a primeira vez de quase todos. Está-
de sentimentos, o significado pessoal.
vocês e no dia que cheguei lá comentei
vamos ansiosos, afinal, nosso maior de-
Todos sempre receptivos esperavam-nos
isso”.
sejo era o de sucesso na missão. Tivemos
com um café sobre a mesa e uma con-
uma longa preparação, dois meses de
versa generosa. Quando o indivíduo per-
As noites chegavam cedo e o trabalho
pesquisa, decisões e finalmente havia
cebia que estávamos ali para realmente
não parava. Cada hora era única e tra-
chegado o grande dia. O que nos espe-
ouvi-los, as histórias fluíam com entu-
zia uma nova experiência. Houve noites
rava?
siasmo. Esse foi o caso de Dona Maria,
mais conturbadas que outras mas que
rendeira e moradora da Costa da Lagoa.
nos fizeram trazer instantes de euforia.
Chegamos entusiasmados, nos desmem-
Ela nos falava com os olhos brilhando ao
O caderno e as máquinas fotográficas
bramos de nossa turma, e, separados por
lembrar os momentos de luta e determi-
tornaram-se nossos confidentes, afinal,
equipe, fomos fazer o reconhecimento e
nação. Revelaram segredos que apenas
sempre acontecia algo novo que não po-
a investigação de nossas temáticas por
os mais íntimos poderiam saber. O orgu-
deríamos perder.
grupos. Todos queríamos conhecer no-
lho de ser moradora, de ter uma família
vas pessoas, aprender novas práticas e
que ela ama e admira foi captado por
Hoje, depois de um mês de vivência, po-
produzir uma vivência marcante.
nós com singularidade.
demos responder que o povo que nos esperava era afável, que nos acolheu
Descobrir o lugar foi intenso, o cenário
A experiência favoreceu a união da
de braços abertos e compartilhou suas
era cativante e envolvente. Sempre ouvi-
equipe; todos os grupos se ajudavam e
histórias de vida. Vivenciamos três dias
mos que o tempo na Costa da Lagoa era
unidos conseguimos fazer uma grande
de intensa profissional e acima de tudo
diferente do nosso. Era um tempo deva-
corrente para compartilhar os recursos
extremamente humana. Afirmo com
gar. Na prática, o aluno Marcelo Martins
e equipamentos necessários ao nosso
convicção que a turma de Jornalismo da
confirmou isso: “Aqui a questão do tem-
trabalho. Houve dificuldades, mas com
Universidade do Sul de Santa Catarina de
po é verdade como o Zéca nos disse, o
a colaboração de todos os alunos e pro-
2015 carrega uma eterna gratidão pela
tempo é mais demorado.”
fessores foi simples superar. O professor
troca de conhecimentos vivida em um lo-
Daniel afirma: “A quantidade de histórias
cal rico de costumes. Trouxemos conosco
Ouvir o outro foi gratificante, captar as
lá na Costa da Lagoa era incrivelmente
novas amizades que serão inesquecíveis.
palavras ditas e não ditas, a tonalidade
grande. Percebi também a união forte de
A todos o nosso muito obrigado!
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Conhecendo algumas técnicas, alunos começam a produzir conteúdos Foto: Rafaela Moraes
Olhos e ouvidos atentos aos ensinamentos fizeram parte
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dos dias vividos no local Foto: Rafaela Moraes
PESCADOR NAS FÉRIAS E NAS FOLGAS
O gari e, às vezes, pescador, não quis seguir a tradição
POR MAIARA PASSOS NASCIMENTO
O dia nublado com uma temperatura
como única fonte de sustento.
anos, vive uma vida tranquila ao lado da família. Nas horas vagas, além da pesca
abaixo dos 20 graus, as casas fechadas e uma delas com a porta e janelas aber-
“Gosto de pescar, mas por hobby, ainda
gostava de um futebol com os amigos.
tas. Tarrafas pelo pátio, o rádio e a xícara
mais agora que estou de férias. Acordo
“Não ando mais jogando; quebrei a perna
de café dividindo o espaço sobre uma
de madrugada, vou lá e horas depois já
duas vezes, se eu quebrar de novo serei
pequena mesa na varanda. O rádio toca
estou de volta com muitos peixes para
expulso de casa”, brinca dizendo que fu-
uma música em um volume quase imper-
nosso consumo, mas já divido com a raça
tebol agora só pela TV. De preferência os
ceptível. Do café sai aquela fumaça avi-
toda”, conta.
jogos do Figueirense, o time do coração.
Estudou até a 5ª série, mas sempre gostou
Advogada já foi consultada para enca-
de ler e discutir sobre vários assuntos. Con-
minhar aposentadoria que deve acon-
Com a faca na mão, chinelos de dedo e
ta que sente falta do estudo na sua vida e
tecer dentro de poucos anos. Viajar, ver
uma roupa surrada, Cláudio Manoel Pe-
por isso incentiva o máximo que pode a
a formação dos filhos, pescar de vez em
reira, 52 anos, remenda sua rede. Sempre
educação dos três filhos. A esposa Eliane
quando e nem pensar em deixar a Costa
faz os remendos quando volta da pesca,
Pereira, 50, cuida da casa e faz renda, uma
da Lagoa; esses são os planos de Cláudio
por culpa dos siris que arrebentam os
atividade cada vez mais rara na região.
que acabou sua xícara de café insistindo
perfeitos quadradinhos das tarrafas.
Funcionário da Comcap há mais de 25
para que eu também bebesse uma.
sando a temperatura e o aroma de uma bebida quente e fresca.
Filho de pescador, aprendeu a pescar quando era criança; os tios e o pai foram os professores. Mal sabiam eles que ensinavam o que se tornaria um hobby, não uma profissão. Ainda assim acompanhou -os em grandes pescas por cerca de 10 anos. Conheceu os perigos das tempestades em alto mar e sobreviveu a elas. Apesar de gostar da pesca, não quis tê-la
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A pesca, atividade tradicional na Costa, é só um hobby para Seu Cláudio (Foto: Maiara Passos)
A VIDA QUE ACONTECE O ANO INTEIRO
Sem turistas, nem acontecimento extraordinário, um retrato da Costa
POR MAIARA PASSOS NASCIMENTO
A ida de barco até a comunidade pa-
a montanha e do outro a lagoa. E no
zarra do dia, cantam em sua máxima
rece ser uma preparação para o que
meio de toda essa riqueza natural, a
performance. Com o arzinho que corre
se encontra do outro lado. Os únicos
Costa da Lagoa.
entre a floresta, as folhas caem vagarosamente, os galhos balançam com
barulhos que se escutam nesse trajeto são o motor barulhento, as conversas
Um bairro cheio de lombinhas e des-
entre prováveis vizinhos que sentam
cidas, uma trilha do início ao final
perto um do outro para colocar o papo
com trechos calçados. Já em outras é
em dia e quem fica ao lado da porta
necessário cuidado para não escorre-
percebe a água batendo no barco.
gar entre as pedras, afastar as folhas e manter a atenção.
Os pontos de parada vão do um ao 23.
suavidade mato adentro.
“É um pouco complicado; trabalho fora daqui, divio com minhas irmãs a tarefa de cuidar da minha velha”
É possível visualizar alguns telhados
Ao amanhecer o silêncio predomina
entre a floresta, quanto mais próximo
nesse refúgio do barulho. Domingo,
do ponto 15, mais visíveis se tornam.
por volta de 10 horas, a movimenta-
Bem próximas umas das outras as ca-
ção ocorre no ponto 16. O ponto da
sas parecem formar um vilarejo muito
igreja. A missa está prestes a começar.
distante do que estamos acostuma-
As crianças caminham de mãos dadas
dos. A igreja, o centro comunitário, o
com suas mães rumo à igreja, não por
posto de saúde, os restaurantes, a es-
medo, pois desconhecem o perigo,
cola, a cachoeira e a trilha, que vai do
mas talvez para fortalecer a importân-
início ao fim do lugarejo, os moradores
cia do ritual. No pequeno riacho que
De volta ao ponto principal, a missa
donos de sorrisos largos quando pas-
corre em direção à lagoa, a água pro-
em andamento, uma ou outra pessoa
sam uns pelos outros, as crianças que
duz um barulho agradável, espécie de
caminha pela rua, uma senhora sen-
brincam pelas ruas, os cachorros que
sinfonia contínua que não incomoda.
tada sob o sol da manhã no seu pátio,
saem de seus pátios e passeiam pelo
Ao se afastar e andar um pouco mais,
junto do colo, uma bacia de laranjas e
local tranquilamente, um pequeno
o silêncio pretende retornar, mas os
ela a devorá-las com avidez que só se
comércio aqui, outro lá. De um lado
pássaros não querem abafar a alga-
tem por frutas muito suculentas. Ao
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Serenidade e tempo aparentemente diferente, essas são impressões dos que passam pela Costa da Lagoa. (Foto: Maiara Passos)
lado da igreja, uma casa verde claro.
está o pescador tarrafeando sua rede,
suas atividades antes do anoitecer. As
Da rua avista-se uma salinha de estar
Abenir dos Santos, 58, afirma com or-
crianças guardam suas bicicletas. O ar
bem aconchegante, o sofá e um casal
gulho que uma das maiores qualida-
mais ameno faz com que as pessoas se
de idosos sentados assistindo televi-
des do bairro que vive é poder dormir
mantenham no aconchego das casas.
são. A filha se aproxima, abaixa e põe a
e acordar sem medo. “O chinelo fica na
Os ponteiros do relógio fazem suas
pantufa no pé da mãe que aos 69 anos
rua, a porta a gente não tranca e não
voltas normalmente, mas a impressão
foi apanhada pelo Alzheimer. Hoje,
tem perigo nenhum”.
de quem passa pelo lugar é que a vida
quatro anos depois não reconhece a
Noite é sinônimo de tranquilidade e
acontece num ritmo próprio e tudo
própria filha. “É um pouco complicado;
serenidade. Os restaurantes encerram
fica tão natural.
trabalho fora daqui, divido com minhas irmãs a tarefa de cuidar da minha velha”, comenta Gabriela. Num lugar onde há casas pequenas, outras maiores, de cores e estilos variados, não poderia faltar um castelo. Parece castelo de filme, todo de pedra, cheio de árvores em volta, impossível não querer entrar. É uma propriedade privada e muito restrita para visitas. No pequeno espaço entre duas casas,
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No refúgio do barulho, o som mais alto é o das gaivotas. (Foto: Tiago Bento)
Entre casa e escola, um menino
Quem conhece o pequeno sabe que nem sempre é tão tímido
POR FERNANDO SILVEIRA
Aos sete anos, Daniel da Conceição
que eles tem uma maneira diferen-
Martins estuda na Escola Desdobra-
ciada de ensinar, que ajuda a manter
da da Costa da Lagoa desde que che-
os laços entre escola e família.
apoio para esse relacionamento.
gou à comunidade. Membro de uma família simples que reside há três
É um pouco peculiar a amizade en-
anos numa das comunidades mais
tre os professores e os responsáveis
preservadas da Ilha, Daniel é o úni-
pelos educandos, pois a instituição
co filho de Josiane Martins da Silva.
tenta aproximar a família da escola,
Dedicado aos estudos e muito brin-
em prol de uma educação melhor e
calhão, o que toca mesmo o coração
mais presente na vida dos educan-
desse menino é o futebol.
dos. Seus professores são seus vizinhos e sempre vão até a casa de Da-
Como trabalha fora da Costa, a mãe
niel chamar Josiane para a reunião
deixa o menino em período integral
de pais e professores. Professores
na escola. Ela se acha um pouco au-
e alunos vão juntos à escola, como
sente por conta disso, mas procura
numa grande família.
compensar nos momentos em que estão juntos: “São sempre muito di-
Sempre respeitando os limites de
vertidos”. Quem conhece o pequeno
Daniel, Josiane tenta ajudar o filho
garoto dos olhos de mel sabe que
como pode e quando pode com as
nem sempre é tão tímido quanto
tarefas de casa: “Com o método de
aparenta, principalmente na hora de
ensino da escola, acaba que também
brincar com os amigos. Perguntado
ajuda a gente a ter uma base, de
sobre o que mais gosta na escola,
como ajudar no aprendizado do meu
Daniel pensa um pouco e responde
filho”. Na Costa, as famílias e a es-
Josiane trabalha fora da Costa e Daniel fica na
certeiro: “Meus amigos e principal-
cola são ligadas à cultura da região,
escola em tempo integral. Se divertem quando
mente as professoras”. A mãe explica
de modo que se cria mais um elo de
estão juntos (Foto: Bruno Bach Albornoz)
49
Tradição celebrada na vida
Cantorias, brincadeiras e festas são o cenário vivo dos romances
POR LUANA MARTENDAL
Ratoeira, Pão-por-Deus, Terno de Reis,
do pela amada: “Na época eu namorava
guiu reatar com a menina mais especial
Festa de Navegantes. Junto com a tradi-
uma menina, aí briguei com ela; eu não
da Lagoa: “Cantei pra ela: ‘Plantei no meu
ção açoriana, os moradores da Costa da
quis mais saber dela. Sabe o que aconte-
quintal, a semente da favaca, tu ainda
Lagoa herdaram as celebrações e festas
ceu? Ela foi e arrumou outro parceiro, eu
olhas pra mim sua cara de macaca’. E aí
de origem portuguesa. Não são apenas
fui e arrumei outra menina”. A história de
a gente ficou junto”, diz ele, contando o
um culto a uma tradição congelada no
Valter não terminou ainda e é mais um
final feliz.
passado: elas fazem parte da memória
conto bonito de uma juventude saudá-
presente como cenário das histórias de
vel, da qual ele e seus conterrâneos des-
Seu Valter considera a celebração da
vida dos habitantes e dos encontros que
frutaram.
Festa de Navegantes, que acontece no segundo domingo de fevereiro, um dos
deram origem às famílias. Foi nas ratoeiras que ele se reconciliou
momentos mais bonitos do ano. E explica
Nessas festas, alguns casais tradicionais
com a namorada. A cantoria acontecia
orgulhoso: “A nossa Festa de Navegantes
na Costa se formaram há cinco, seis ou
sempre junto com as brincadeiras das
em termos de embarcação é só na Bahia
até sete décadas. Elas contam histórias
festas juninas, quando se declamavam
que podemos comparar. A santinha na
de amor que encontramos nesse pedaci-
cantigas em pares entre amigos e namo-
véspera fica na casa do primeiro festeiro,
nho do mundo, de relações de infância e
rados. Os amigos iam para fazer as pazes
aí ela sai de manhã da casa do festeiro e
juventude que perduram até hoje como
ou intriga com alguém. É com orgulho
vai pra igreja. Chegam três horas da tar-
algo cada vez mais belo quanto mais
que Valter descreve como foi ouvir a de-
de, ela sai e vem aqui para o trapiche. Os
raro.
claração: “Chegou a hora da ratoeira e
barcos todos vêm pegar a gente. Aí vai lá
ela cantou pra mim bem assim: ‘Plantei
ao ponto 23 e depois até o ponto 7”. Ao
As festas típicas ajudaram a unir mui-
no meu quintal a semente da congonha,
todo são, em média, 60,70 embarcações.
tas duplas. Valter Miguel de Andrade,
tu ainda olhas pra mim sua cara sem-ver-
Uma verdadeira celebração no mar.
pescador e nativo da Costa da Lagoa, é
gonha’”. Naqueles tempos da década de 60, havia
um desses senhores contadores de histórias que se uniu ao seu grande amor
Depois desse poema, aconteceu a rea-
eventos culturais de sobra para a juven-
pela Ratoeira. Ao lembrar a época de sua
proximação. Ele não resistiu e seguiu a
tude se confraternizar na Costa. O Pão
mocidade, confessa rindo ter sido troca-
provocação. Foi cantando que conse-
-por-Deus, celebração muito praticada
50
Imagem da santa protetora acompanha o cortejo juntamente com a banda, coral e moradores da Costa da Lagoa (Foto: Gilberto Pereira)
no bairro sempre no dia 1° de novembro,
Os donos de mercearia já se prepara-
Alguns desses eventos permanecem
dia de Todos os Santos tornou-se outro
vam e deixavam os saquinhos prontos
ainda hoje. É o caso do Terno de Reis,
entretenimento forte na comunidade.
para distribuir aos grupos de peque-
uma das festas típicas que ocorrem ge-
Mais do que entretenimento. É conside-
nos brincalhões. Também entregavam
ralmente nos meses de março e janeiro.
rado patrimônio cultural imaterial, que
corações de papel, tecidos com men-
Originada em torno da celebração dos
segundo a UNESCO “são expressões de
sagens e versinhos, pedindo algo ou
Três Magos na Igreja Católica, a festa
vida e tradições que comunidades, gru-
agradecendo alguém. Faziam sucesso
acontece durante a noite. Os morado-
pos e indivíduos em todas as partes do
mensagens como: “Esse pão que vai
res permanecem dentro das residências
mundo recebem de seus ancestrais e
por Deus da terra do olhó-lhó, vai ho-
com portas e janelas fechadas, enquan-
passam seus conhecimentos a seus des-
menagear minha amada mãe e minha
to um grupo de músicos, cantores e
cendentes”.
querida vó”. Ou ainda: “La vai o meu
dançarinos que desfila pelas ruas da vizi-
coração todo cheio de carinho. Vai pe-
nhança, com pandeiros, gaita, tambores
As crianças saíam na vizinhança para
dir pão-por-Deus de quem encontrar
vai entrando nas casas dores e cantando
pedir doces, banana, bolo, biscoito.
no caminho”.
o “terno de reis”.
51
a cachoeira da costa
Um lugar de reflexão, paz e purificação da alma
POR GABRIELA MEIRA
Pela rua de pedra, um acesso leva à flo-
antes de chegar à cachoeira, há alguns
ou ruelas. Nesse lugarejo, especial por
resta, com o chão de terra molhada já
degraus de barro que foram marcados
excelência, ainda ergue-se uma queda
demarcada pelas pessoas que por ali
pelas pisadas dos visitantes, e outros
d’água.
passaram, sem dificuldades de loco-
degraus de pedra. No meio disso tudo,
moção. Do lado direito, as águas da ca-
bancos feitos de madeira, bem conser-
Alguns arriscam-se a subir até a ultima
choeira caindo, indicam que o caminho
vados, se distribuem em cores azuis e
pedra para ter uma visão mais plena da
está correto. Clarões entre os galhos ao
verde. Uma casinha ao lado esquerdo
Costa, apesar de saberem que é peri-
lado direito deixam entrever uma casa
igualmente bem preservada, pintada
goso. Alguns procuram momentos de
de madeira, verde, bem simples e per-
de verde, com janelas brancas. Pelas
paz para pensar e refletir melhor sobre
to dela muitas pedras com tamanhos
escrituras na madeira constata-se uma
a vida. Outros se deliciam com suas
variados, algumas já dominadas pelo
pequena mercearia, que supostamente
câmeras tirando selfies e provando
limo, outras limpas pela chuva, em uma
funciona no verão, atendendo os turis-
aos conhecidos a sua ultima aventura.
delas uma barraca — talvez um turista,
tas. Mais do que a floresta, ou a bele-
Apesar da brisa leve e do friozinho do
que esteja se abrigando ali para manter
za da Costa da Lagoa, naquele infinito
sul, alguns curiosos ainda se arriscam a
o contato com a natureza.
verde, encontra-se a Cachoeira. São as
banhar-se nas águas cristalinas, muitas
suas águas e rochas que fazem milha-
vezes também gélidas. Há uma energia
res de pessoas ir além dos restaurantes
de paz, e de purificação da alma.
Seguindo a trilha pela pequena floresta
Lugar tranquilo e relaxante, sem dúvidas um paraíso. (Foto: Gabriela Meira)
52
moradia no deslizar das águas
A convivência marcante de Oscar Florianni e a cachoeira
POR GABRIELA MEIRA
Pelas mãos do artista plástico curitiba-
próximo à queda d’água. Encaixa-se
o que a Costa tem, aparecem em suas
no Oscar Florianni, a Costa da Lagoa ga-
com exatidão em uma pedra que dá
telas. Assim, entre um passeio e outro
nha uma abordagem suave e marcante
fácil acesso à corrente de águas cris-
é possível carregar na mala como lem-
em forma de pinturas. Filho de relojoei-
talinas. Não é preciso muita conversa
brança uma imagem bela do local. É
ro, com 60 anos de idade e uma trajetó-
e ele fala o que sente, a graça da vida
a partir do retorno financeiro de suas
ria de vida digna de grandes conquis-
ali, no meio da floresta, rente à cacho-
vendas que o aventureiro se mantém.
tas. Um senhor de porte médio, magro
eira: “Viver assim é ter a vida ao ar livre,
que carrega no rosto um sorriso sereno
sem as violências da cidade grande;
Além de artista, Oscar é um homem
e sincero. Da pele clara, dos cabelos ra-
usufruo aqui da água pura e também
que anseia sempre por descobertas.
los e loiros. Embora tenha sido bem-e-
da energia solar”.
Não tem medo das mudanças. Ama o novo. Vive como cigano. Nasceu no
ducado, origem de classe média e um sucesso econômico que lhe elevou na
O homem que trocou as regalias pela
Paraná, mas é filho do mundo. A Ilha
sociedade, decidiu largar todos os seus
simplicidade do pé no chão, usa a
da Magia é sua segunda casa. Dono de
bens materiais, deixando-os para os
maior parte do tempo para se dedicar
uma oratória de dar inveja, admirador
seus filhos e seguiu sua vida com mui-
às obras que faz inspirado no espetá-
do pôr-do-sol, por onde passa cons-
ta despretensão. Dormindo em várias
culo do pátio de sua casa: a Costa da
titui fortes amizades. Maturidade de
cidades de Santa Catarina, tem muitos
Lagoa. Como recompensa pelo tra-
quem já viveu muito e no coração uma
amigos, sua última parada foi na bela
balho, nos dias em que o bairro mais
bondade de criança. Defensor da na-
Costa da Lagoa.
recebe turistas Oscar aproveita para
tureza, é praticante do bem, das boas
vender seus coloridos quadros. Todos
ações. Cultua a convivência com a co-
Esse senhor formado na faculdade de
elaborados nos mínimos detalhes,
munidade, e seu amor pela liberdade
Belas Artes, deixou a comodidade de
que transmitem tranquilidade e des-
vai além de apenas morar em uma
uma cama para dormir em um colchão
tacam nas paisagens a lembrança de
barraca. Procura um ambiente que
inflável, assim como a segurança de
um mundo que ainda não foi poluído.
transmite paz, alegria, calma, e além
uma casa com paredes e um teto para
Emoldurados com bambu da própria
de tudo lhe dá inspiração para criação.
serem substituídos por uma barraca
floresta, desenhados a lápis ou com
Um senhor calmo e sonhador, um des-
montada no terreno de um amigo,
tintas, os barcos, restaurantes e tudo
temido vencedor.
53
Convivência pacífica com os animais
Moradores e visitantes mantêm relação harmoniosa com os pets
POR YSTTÉPHANI SINHORINI
Muito visitada por pessoas de várias
população de ratos que transmitem
quena e simples sorveteria, com cores
regiões que vão aproveitar a nature-
doenças graves, como a leptospirose
claras, uma divisória entre a parte que
za exuberante do pequeno recanto,
e hantavirose.
ela atende os clientes e outra com ca-
a Costa da Lagoa é uma ilhota den-
deiras e mesas de madeira. O primeiro
tro de Florianópolis, na qual animais
Sob esse ângulo, as cobras mais sal-
animal que ela levou para a Costa foi
selvagens e domésticos podem ser
vam vidas do que matam. Ali tam-
um poodle de tamanho pequeno, que
encontrados. Ao Leste da Lagoa da
bém vive a cobra-coral de coloração
pegou em Palhoça. Escondeu-o dentro
Conceição, o reduto da cultura aço-
forte e de fácil identificação: listrada
de uma sacola, pois não é permitido a
riana revela-se por seus pescadores,
em preto, vermelho e amarelo. Ela é
entrada de animais dentro de trans-
barcos, casas, restaurantes, escola,
considerada mais perigosa do que
portes coletivos.
posto de saúde e também pela vasta
as jararacas, por causa da altíssima
floresta, regada por córregos e ca-
toxidade de seu veneno. Quando al-
Ela já teve outros animais, mas eles
choeiras.
guém é picado por cobra na Costa
faleceram. Teve dois poodles, um fa-
da Lagoa, a comunidade já sabe que
leceu de velhice, e agora tem o Totó e
Provavelmente esses animais foram
precisa buscar socorro imediato no
a Chica, que foi abandonada na Cos-
levados para lá ou acabaram achan-
Centro de Informações Toxicológicas
ta com uma bicheira no pescoço. Si-
do o caminho por acaso. Nessa trilha
do Hospital Universitário (HU).
mone começou a cuidar dela; deixa-
extensa de barro podem ser vistos
va-a sempre debaixo de uma árvore,
macacos de portes pequenos e ja-
Ao adentrar mais nesse paraíso, vemos
com comida e remédio e a cadelinha
raracas, que atingem até 1,60 me-
crianças brincando com cães peque-
sobreviveu. “Em geral, a relação dos
tros de comprimento. As espécies
nos, médios, grandes, brancos, pretos,
animais com as crianças e a comuni-
peçonhentas, alertas dia e noite,
de raça ou vira-latas. Os gatos fazem
dade é afetuosa”, diz Simone. Os mais
escondem-se sob arbustos e pedras
a alegria dos pequenos nativos. Dona
velhos costumam soltar os cães e não
rastejando sorrateiramente. Elas se
Simone de Souza Amorim, de 39 anos,
prendê-los dentro de casa, de modo
alimentam principalmente de peque-
que não nasceu na Costa, mas mora no
que a convivência entre humanos e
nos roedores. Seu papel é importan-
lugar há 10 anos, é conhecida pelo seu
não-humanos seja também a marca
tíssimo na natureza, pois controlam a
amor aos animais. Dona de uma pe-
dessa comunidade.
54
Assim como as crianças, cães vivem soltos na
55
comunidade
Foto: Marcelo Martins
uma filosofia para morar
Uma passagem da cidade grande para uma lugar em paz com a natureza
POR MARCELA SILVA TEIXEIRA
A rotina conturbada dos grandes centros
dores e visitantes garantem achar tudo que
E hoje, aos 60 anos, garante ser o melhor lu-
urbanos, apontada como a principal causa
procuravam nesse único lugar, que fascina
gar para morar, especialmente para quem
de doenças ligadas à poluição e ao estres-
em cada detalhe.
procura uma maior expectativa de vida. Já John Ênio, de Porto Alegre, encontrou no
se, provoca a busca de um novo estilo de vida. Pessoas estão à procura de uma nova
Deixando os pontos mais centrais e povoa-
recanto o que jamais teria em sua cidade
filosofia de vida. Um cotidiano baseado
dos da Costa da Lagoa para os nativos e fa-
natal.
na tranquilidade, harmonia e leveza. Essas
miliares, os novos moradores se encontram
transformações englobam mudanças di-
principalmente no caminho das trilhas. Um
Ao se mudar para o bairro, passou por uma
versas que podem ir de uma alimentação
fator importante e motivador da imigração
transformação radical no estilo de viver.
saudável até a busca de um equilíbrio espi-
para Costa da Lagoa é a consciência de co-
Hoje, reside em uma casa em meio à natu-
ritual, assim como o início de uma nova fase
letividade dos moradores do bairro. Todos
reza. E cada manhã podendo abrir a janela
de contato mais intenso com a natureza.
se acolhem e se ajudam: a comunidade é
e enxergar o seu jardim florido é um motivo
um exemplo de cidadania e união.
para agradecer. A espiritualidade também tornou-se muito presente em sua vida, in-
Na pesquisa por esse ambiente fundamentado no bem-estar, pessoas de todas as
Elizabeth Porto, do interior do Rio Grande
centivada, segundo ele, pelo ambiente ins-
partes encontram a Costa da Lagoa, famosa
do Sul, conheceu há muitos anos o seu ma-
pirador. Como ele diz:” O Deus que habita
pelas suas belezas naturais, segurança e es-
rido na Costa, de onde é nativo. Ao visitar o
em mim saúda o Deus que habita em você,
tilo de vida aprazível. Nativos, novos mora-
local, se apaixonou pela sua tranquilidade.
Namastê!”.
Inspirando tranquilidade e leveza, a Costa da Lagoa é uma filosofia para morar. (Foto: Marcela Teixeira)
56
Os segredos de viver na Costa
“É um ambiente onde um vizinho acolhe o outro”
POR MARCELA SILVA TEIXEIRA
Na volta do médico, onde ia em busca
contato direto com a natureza contribui
três meses parada sem trabalhar, gas-
de oxigênio para o filho, antes de subir
diariamente para fazer da Costa o me-
tando muito em remédios e táxis para
o Morro do 25, Cristina pedia para o ta-
lhor lugar para se habitar. Aos 53 anos
levar o adolescente a consultas diárias
xista fazer dois sinais (gesto combinado
de idade, ela confirma o que já havia
no Cepon e no Hemosc, onde precisa-
com os meninos da comunidade para
ficado claro em suas falas durante a con-
vam pegar o primeiro barco e acabavam
se identificar). Ao ser reconhecida, sua
versa: “Quem procura tranquilidade e
voltando no último. Observando todas
subida era autorizada e então acom-
conhece aqui, nem procura mais, sabe?
as dificuldades pelas quais os dois eram
panhavam ela e seu caçula, ainda um
Porque aqui já se acha! Morar na Costa é
obrigados a passar diariamente, seus vi-
bebê de colo, até sua casa. Guilherme
tudo de bom!”. Mãe de três filhos, conta
zinhos, amigos e parentes organizaram
tinha bronquiolite, doença que dificul-
que o seu mais velho, Alex, ainda mora-
dois bailes beneficentes no salão paro-
ta o fluxo do ar para dentro e para fora
dor do centro da cidade, insiste para ela
quial da Costa da Lagoa. Com a ajuda do
dos pulmões.
ir morar com ele. Mas, ela repete: “Da
pai da namorada de Guilherme, conse-
Costa não saio, da Costa ninguém me
guiram que a banda Dazaranha tocasse
Com a poluição do centro de Florianó-
tira”. Já a filha do meio, Tamara, veio com
nos dois bailes. Cartazes anunciando o
polis, sua infecção piorava com o passar
ela para o bairro quando tinha 14 anos
evento foram espalhados pela Lagoa da
dos dias. Estressada e, principalmente,
e continua morando no lugar até hoje
Conceição e o resultado foi melhor do
amedrontada com o risco de viver em
com seus dois filhos. E Guilherme, o mais
que o esperado. Com a entrada sendo
um meio tão perigoso, Cris decidiu mu-
novo, mora com ela no ponto 13. Os dois
cobrada por R$ 10,00 para mulher e R$
dar de bairro. Porém, o objetivo não era
juntos, já enfrentaram muitos desafios e
15,00 para homem, o baile lotou e todo
uma simples mudança de lar, ela busca-
cada dia é uma nova vitória. Gui foi diag-
o dinheiro que conseguiram foi usado
va mais: gostaria de uma nova filosofia
nosticado com leucemia pouco tempo
em futuros exames e tratamentos ne-
de vida para a sua família.
depois de terem se mudado para a Cos-
cessitados por Gui. Cris diz não saber até
ta da Lagoa, onde ele conseguiu se curar
hoje como agradecer toda a ajuda que
da bronquiolite.
recebeu. Afirma também que o povo da
Há 16 anos que Cristina encontrou o seu
Costa sempre a auxiliou demais. “É um
destino tão almejado. Hoje, moradora da Costa da Lagoa, garante levar uma
Na época em que o câncer se encontra-
ambiente onde um vizinho acolhe o ou-
vida muito mais leve e tranquila, onde o
va no pior estado, Cristina chegou a ficar
tro”.
57
se chover ela recolhe as minhas roupas
porta mais o barulho das buzinas e do
Para ela, essa vida em comunidade é um
e coloca na minha área, fecha as minhas
trânsito. Nada se compara ao som da
outro fator essencial para fazer da Cos-
janelas e tudo”.
cachoeira e dos pássaros em sua janela.
ta um espaço mágico. Todos no bairro
“Riqueza que nenhum dinheiro compra”.
têm a consciência dessa coletividade e
Ela dá muito valor a esse sentimento de
Tranquilidade, leveza, calmaria e natu-
assim, acabam formando um ambiente
confiança, afinal onde morava anterior-
reza fazem parte da filosofia de vida da
seguro, onde podem deixar as portas e
mente, vivia o oposto do que se pode
Cris, fazem parte de sua transformação
janelas abertas sem preocupação. Cris
chamar de segurança. Se não for para
iniciada há 16 anos e que segue aconte-
ilustra uma situação corriqueira na Cos-
visitar Alex, Cristina conta que vai para
cendo nos pequenos detalhes do dia a
ta: “Eu aviso para a vizinha que vou sair,
o centro da cidade forçada, pois não su-
dia.
Cristina vivencia importantes mudanças na vida e valoriza um lar tranquilo e o contato com a natureza. (Foto: Marcela Teixeira)
58
Comunidade: uma grande família
Relacionamentos consanguíneos são comuns na Costa da Lagoa
POR LEIDIANE SAMPAIO
Em uma comunidade pequena, com
ces de um filho nascer com alguma
sobre o nascimento do filho com seu
poucas opções de acesso como a
doença são de 3% em um casal sem
primo Mauricio.
Costa da Lagoa, até meados do sé-
parentesco, e 6% a 8% em um casal
culo XX era comum os parentes casa-
com vínculo sanguíneo, mas se esse
rem-se entre si. Mas engana-se quem
casal já tiver algum filho com doença
pensa que os enlaces consanguíneos
genética, os riscos de nova ocorrên-
não aconteçam mais nos dias de hoje.
cia aumentam para 25%. Segundo
Seu Nelson, morador da Costa da La-
os moradores afirmam, no entanto,
goa, explica que as pessoas começa-
apenas o caso de uma família em que
vam a namorar e as meninas eram
dois dos três filhos nasceram com
“roubadas” da casa dos pais. Quando
algum tipo de deficiência foi regis-
retornavam com seu parceiro eram
trado até agora na Costa da Lagoa.
consideradas casadas. Poucos eram
Como naquela época não havia um
os que realizavam o casamento ofi-
acompanhamento médico, não foi
cial, com cerimônia e comemoração.
possível diagnosticar com exatidão
Ainda hoje é possível encontrar ca-
as causas da doença.
sais que buscam na própria comu-
Entre os moradores, todos têm um parente em comum, um tio, um primo, um sobrinho nidade os parceiros para a consti-
Para eles não existia a preocupação de se casar com alguém do mesmo
“A gente foi procurar, perguntamos
tuição de um lar, isto é, apesar de
sangue. O que realmente importava
para os médicos e eles falaram que
conhecerem novas pessoas, novos
era a constituição de uma nova fa-
acontecem problemas, mas que não
lugares, mantem a tradição e o com-
mília. Geralmente, só após a união
iria acontecer, que a gestação tava
portamento de seus pais. Entre os
se parava para pensar nos desdobra-
tudo bem; não tinha nenhum perigo
moradores, todos têm um parente
mentos dessa espécie de endogamia.
de nascer com sequela pelo fato de
em comum, um tio, um primo, um
O amor e a vontade de ter alguém ao
ter parentesco. Graças a Deus deu
sobrinho. A comunidade da Costa da
lado falavam mais alto. Em contrapo-
tudo certo, foi parto normal, minha
Lagoa não é formada apenas por vi-
sição à união de familiares, a ciência
recuperação foi boa, bem tranquila”,
zinhos e conhecidos. Nela vive uma
alerta para o fato de que as chan-
diz Maiara, jovem moradora da Costa
grande família.
59
Mãe, esposa, estudante e trabalhadora
Uma jovem que concilia o trabalho, a casa e o filho
POR LEIDIANE SAMPAIO
Em uma tarde ensolarada na Costa da
medo de a criança ter alguma doença,
mente cursar Administração. Maiara
Lagoa, uma jovem morena, de olhos
mas graças a Deus ele saiu perfeito”.
concilia sua vida de mãe, esposa e es-
castanhos, muito simpática e comu-
Ainda sobre a questão de casar com al-
tudante com o trabalho em um restau-
nicativa está sentada na sala da casa
guém da família, ela completa: “Tenho
rante na própria comunidade. Pergunto
de uma conhecida, juntamente com a
uma tia que é casada com um primo,
se tem interesse em ter mais filhos. Ela
irmã e o filho. É Maiara dos Santos, 22
uma prima também que se casou ago-
fica em silêncio por um instante e com
anos, moradora da comunidade. Aten-
ra, aqui é bastante comum, né. Como
um sorriso responde: “Hoje em dia é
ciosamente, ela conta um pouco sobre
a comunidade é pequena, acho que
muito difícil criar, educar, um já tá de
sua vida.
na verdade é relativo, até porque hoje
bom tamanho”.
a gente já conhece bastante gente de Maiara é casada e tem um filho. Pri-
fora, estuda lá no Centro, na Lagoa, en-
mo de 1º grau, Maurício tornou-se seu
tão acho que é relativo”.
marido depois de um longo namoro. Como fruto da união, nasceu Guilherme, hoje com um ano e dez meses. “A gente namorava há seis anos, quando eu engravidei e a gente casou”, conta a moça, olhando orgulhosamente para o filho no colo. A exemplo de muitas outras pessoas
“Hoje em dia é muito difícil criar, educar, um já tá de bom tamanho”
que têm um relacionamento com alguém da própria família, ela também
Sem abandonar os estudos, formou-se
teve a preocupação em saber se o fi-
pelo IFSC em Técnica em Saneamento
lho correria o risco de vir com alguma
e hoje está estudando para concurso,
deficiência. Ao comentar sobre essa
mas não quer parar por aí. Em busca
“Hoje em dia é muito difícil criar, educar, um já
questão delicada, ela diz: “A gente tinha
dos seus objetivos, pretende futura-
tá de bom tamanho” (Foto: Leidiane Sampaio)
60
Sonho de ser o craque da Costa
Enquanto sonha, o pequeno Bernardo aproveita a beleza, a pescaria e a família
POR JÉSSICA DAUSSEN
Nativo da Costa da Lagoa, Bernardo
teve que parar por motivos financei-
um hobby muito vivo na vida deles.
Manoel Bernardes, o pequeno sonha-
ros. Nesse tempo realizou alguns tes-
Outro passatempo de Bernardo são as
dor de apenas 14 anos de idade desde
tes para ingressar no time de juniores
novas tecnologias, como seu celular e
muito cedo encarou diversas dificul-
de Avaí e Figueirense, mas não teve
computador.
dades. Quando tinha somente dois
êxito em função das condições exigi-
anos, ficou órfão de mãe. A partir daí,
das pelos clubes. Bernardo teve que se
O garoto quer terminar os estudos
passou a ser educado pelo pai, Mano-
contentar com o campinho da escola.
e treinar fora do país. Mas, enquanto ainda está na fase da adolescência,
el João Bernardes, 65 anos, pescador, hoje barqueiro na Costa. O seu barco
A convivência entre pai e filho é muito
aproveita a Costa com o pai e a família,
tem o nome do filho mais novo, o pró-
intensa. Os dois, por exemplo, adoram
sonhando que um dia a Costa da La-
prio Bernardo.
pescar juntos e curtir as belezas que a
goa seja anfitriã de um grande craque
Costa oferece. A pesca continua sendo
do futebol.
A rotina do menino inclui o translado diário, realizado por barco, da Costa da Lagoa até a Lagoa da Conceição, onde estuda no Colégio Escola Básica Municipal Henrique Veras. Bernardo navega todos os dias movido pelo sonho de ser jogador de futebol. Sem a infraestrutura necessária para manter um campo de futebol na Costa, o sonhador joga no colégio com seus colegas, e em alguns lugares inapropriados para a prática da modalidade. Há somente dois meses na escolinha de futebol da Cachoeira do Bom Jesus,
Depois de terminar os estudos, quer treinar em um time de fora do país. (Foto: Jessica Daussen)
61
Turismo sem perder a identidade
Comunidade apoia fluxo turístico sem prejuízos para a cultura local
POR JÉSSICA DAUSSEN
Durante muitas décadas, a Costa da
do seu esforço o resto do ano, conta
vem muito tempo na Ilha de Santa Ca-
Lagoa sobreviveu de um fluxo turís-
João Schmidt, nativo da Costa.
tarina sem conhecerem a Costa. “Vão encontrar depois de muito tempo,
tico concentrado na alta temporada, mas essa tendência tem variado bas-
Depois da criação das cooperativas de
por volta de 40 anos, um lugar desse
tante nos últimos 15 anos. Hoje co-
barco, muitos pescadores adquiriram a
que a Ilha mantém escondido”, conta
meça a receber turistas nacionais e
sua própria embarcação. Consequen-
Djalma Naelzo Laureano, o Jájá, dono
estrangeiros o ano todo, interessados
temente, o pescador faz o transporte
do restaurante Sabor da Costa.
em conhecer não somente os pon-
dos turistas e, no final da semana, essa
tos mais badalados, mas cada peda-
renda é revertida para a comunidade.
Segundo os empreendedores do lo-
ço desta ilha cheia de esconderijos e
O aumento do fluxo turístico fez tam-
cal, manter-se no inverno somente
surpresas pelo mar ou mata adentro.
bém multiplicarem-se as cooperativas
com a renda da baixa temporada é
Em função da mudança, restaurantes
e os estabelecimentos gastronômicos.
muito difícil. Eles aproveitam essa
funcionam todos os dias e a procura é
Atualmente são 13 restaurantes, man-
época para fazer as reformas estrutu-
cada vez maior, provocada pela divul-
tidos por 50 famílias da Costa. O pio-
rais com vistas a deixar tudo pronto
gação na mídia dos atrativos históri-
neiro é o Lacosta, de propriedade de
para a alta temporada, como acon-
cos e culturais do local.
Marlene Laureano de Andrade, com 43
tece em outras regiões turísticas. O
anos de estrada.
diferencial da Costa é que tudo funciona normalmente, mesmo em dias
Na alta temporada, os donos dos restaurantes garantem sua renda anual.
As possibilidades de entretenimento
de chuva. As atrações voltadas para
Com a casa sempre cheia, eles se pre-
ecológico aquecem o turismo na Cos-
a baixa temporada já fazem parte do
param para o inverno. Antigamente,
ta. Forasteiros procuram bastante a
cotidiano da comunidade.
os pescadores nativos, já trabalhavam
trilha na mata atlântica que também
em um sistema sazonal: durante o in-
é um dos modos de acesso à Costa.
Para animar a cultura tradicional, todo
verno, iam para o Rio Grande do Sul
De barco ou de trilha, eles passeiam
ano o povoado realizada a Farinhada
pescar durante seis meses por ano.
valorizando e preservando a cultura
do Engenho no Ponto 8, promovida
No estado vizinho, faziam o “pé de
tradicional da Ilha.
com apoio do Curso de Antropologia
meia” e quando voltavam usufruíam
Impressiona ver vários nativos que vi-
da Universidade Federal. A Festa dos
62
Navegantes, que parte do local, tam-
tivos muito fortes que não têm a de-
a hospitalidade com o forasteiro, pois
bém desponta como a maior procis-
vida valorização, nem de reforma de
muitas famílias vivem disso. Barcos
são de barcos da Ilha, reunindo cerca
casarões históricos, nada.
que eram pra 20 pessoas, em questão
de cem participantes. A Festa da Cruz,
de 15 anos evoluíram de 30 acentos
que envolve a Capela da Costa é outra
- A gente tem que fazer tudo sendo
para cem acentos. Pelo tamanho das
comemoração que mobiliza a comu-
moradores; falta liderança política. A
embarcações, percebe-se a evolução
nidade e visitantes.
nova geração tem que se capacitar pra
da atividade turística, mas os mora-
isso, saber reivindicar. Os nativos anti-
dores sabem que tem uma galinha de
A Costa gera um fluxo turístico na Ilha
gos aceitavam qualquer coisa, eles não
ovos de ouros nas mãos.
toda. “O pessoal vem pra Floripa só
tinham o poder de contestação, argu-
pra vir pra cá, pra vir aqui comer estas
mentação, e ainda temos uma política
- Um publicitário muito envolvido
delícias, visitar este lugar maravilho-
bem rudimentar, bem retrógrada, que
com o Governo do Estado já tem um
so, estar nesta energia”, empolga-se
rola aqui — desabafa João.
projeto para 23 bangalôs de luxo e
João Schmidt. Todos retornam. Quem
uma estrada lá pelo Ratones, mas é
não volta, segundo ele, é o poder pú-
Todo morador da Costa tem contato
uma coisa contra o que a gente vai
blico: “Não volta com os incentivos,
com o turista direta ou indiretamente.
lutar até a última pra não vir, pra não
em forma de estrutura, acessibilida-
Um comportamento cultural já enrai-
perder a identidade aqui da Costa, do
de”. Segundo ele, o lugar oferece atra-
zado como importante é o respeito e
passeio de barco — a posta Jajá.
Turistas que visitam a comunidade o ano todo deram impulso econômico à região (Foto: Jessica Daussen)
63
A jornada nas marés
Desde os 13 anos, seu Valter vive da pescaria
POR IZABELA SGROTT SERPA
Dentre muitas idas e vindas, o desti-
nos de farinha, com 15 a 20 quilos
um ano e três meses sem voltar para
no final é sempre o mesmo. Seu Val-
cada um? Puxado? Que nada, para
casa. Dormindo em barraco e traba-
ter Miguel de Andrade, durante seus
seu Valter isso era comum. Conta
lhando na pesca, adquiriu grande
63 anos de vida, já foi e voltou mui-
que, quando pequeno, era muito fu-
experiência: “Na minha época nin-
tas vezes, mas o lar original fala mais
rioso, inclusive ganhou o apelido de
guém ganhava mais dinheiro que
alto. Costa da Lagoa. Esse lar origi-
“Bartola”.
eu, na pescaria”. Até que aos 21 anos retornou para Costa.
nal tem como característica forte a união da família, e com seu Valter não seria diferente. Deu início com seu avô, logo após seu pai e agora ele, casado com Dona Marlene Laureano de Andrade, com quem teve três filhos. Como todos os outros nasceram e permanecem na Costa da Lagoa.
“Na minha época ninguém ganhava mais dinheiro que eu, na pescaria”
Seu Valter não deixa de ir para o Rio Grande do Sul, mas é algo esporádico. Sua nova viagem, que já dura 33 anos, é a inda e vinda diária de casa ao seu restaurante, “Lacosta”, que administra com a mulher. Agora a pescaria já não é lá tão praticada por ele, o foco é a administração do
Os costumes de pesca não foram
restaurante, mas garante que não
passados para as filhas, mas Valter
tem medo de pescar com alguém de 18 anos.
aprendeu e viveu uma parte deles.
Mas nem sempre ele viveu des-
Lembra que, ainda jovem, acorda-
sa maneira que apresenta. Aos 13
va entre 4 e 5 horas da manhã para
anos decidiu acompanhar seu pai
Apesar dessas constantes viagens,
colocar fogo no forno e começar a
nas pescarias que não eram tão ao
Seu Valter permanece na Costa da
fazer a farinha, pois na época ainda
redor da Costa da Lagoa. Toda essa
Lagoa. Perto dos filhos e conheci-
existiam 11 engenhos funcionando.
aventura o levou para o Rio Grande
dos, que nesse lugar se tornam fa-
Sua companhia eram apenas os bois
do Sul. Passando meses aqui meses
mília também. Ele diz que continua
que o esperavam no tronco. E todo o
acolá, ele completou seus 15 anos e
aqui e não tem mais vontade de sair.
trabalho de fazer três ou quatro for-
permaneceu no estado gaúcho por
Afinal, o bom filho à casa torna.
64
Paisagem inspiradora., nĂŁo ĂŠ a toa que turistas
65
e moradores se encantam. Foto: Izabela Sgrott Serpa
pelos caminhos da saúde
Lugar onde a indisposição não tem nem espaço para aparecer
POR IZABELA SGROTT SERPA
O movimento dos carros, a pressa do
muito difícil ter cultivo próprio, mas
hábitos diários, o que inclui alimenta-
dia a dia, correria e mais correria. “Não
salvam-se algumas exceções. A Cos-
ção e movimentação do corpo, fato-
deu tempo de preparar a janta, apela-
ta da Lagoa, por exemplo, consegue
res primordiais, não importa a idade.
se para o fast food”. Todos esses costu-
ser um refúgio para tudo o que é vi-
Ao contrário das grandes cidades, lá
mes são tão normatizados que as pes-
venciado nos centros urbanos. Como
não tem asfaltamento e calçadas. A
soas não se dão conta de como eles
a maioria dos lugares, antigamente
“rua principal” é uma trilha, ou seja,
influenciam na qualidade das nossas
também produziam seus próprios
sem acesso a carros tudo é na base
vidas. Parece que o tempo já não está
recursos, mas o diferencial está jus-
da caminhada. Com isso, a questão da
mais a nosso favor e, na tentativa de
tamente no local em si, pois ainda há
saúde é favorecida de uma forma dis-
fazer o mais prático, a nossa qualidade
espaço para isso. Dona Vadinha, Val-
creta e cotidiana. “Jájá”, Djalma Naelzo
de vida pode sofrer mudanças.
delina Felomena, por exemplo, tem
Laureano, dono do restaurante Sabor
mais de cinco variedades de planta-
da Costa, sintetiza bem esse privilé-
O melhor exemplo disso é a compa-
ções de chá, como o de quebra pedra,
gio quando afirma que: “Para alguém
ração entre os tempos antigos e o
chá de alecrim, capim limão e espi-
ficar doente na Costa da Lagoa, só de-
moderno, em relação aos costumes
nheira santa. Claro que esses costu-
pois dos 100 anos! ”
alimentares, visto que o imediatismo
mes não são tão intensos como antes,
é uma característica da atualidade,
uma vez que também se adaptaram à
A beleza natural do lugar fixa os mo-
o prático ganha destaque. Mas nem
praticidade das coisas.
radores, que se adaptam muito bem a tudo que seria um empecilho para os
sempre foi assim. A entrada de enlatados e transgênicos foi algo tardio,
A Costa da Lagoa se destaca também
que moram em cidade grande, como
sendo assim, na época o costume de
devido à quantidade de idosos que lá
a necessidade de fazer várias viagens
plantio próprio de feijão, verduras e
vivem, como o seu Zidoro que com
de idas e vindas de barcos. Mas nada
farinha era muito comum, ou seja, há-
80 anos vai longe com sua bengala.
disso é problema para eles, afinal, vi-
bitos alimentares mais saudáveis era
Ou então dona Joana, com 84 anos,
vem em um local onde o barulho do
algo quase que inevitável.
que faz seu almoço, janta e o que for
mar e a natureza compensam qual-
preciso, com muita disposição. A lon-
quer desconforto e levam, natural-
gevidade costuma ter relação com os
mente, aos caminhos da saúde.
Hoje, no meio da selva de pedras, é
66
Do rádio à internet
A tradição modifica-se com a tecnologia
POR MARCELO MARTINS
Desde 1988 quando a associação dos
sinal nosso povo poderá ver a televisão
vida “isolado”. A tecnologia mobile criou
moradores da Costa da Lagoa (Amocosta)
local’’.
um novo mundo e transformou o que
conseguiu a instalação do primeiro tele-
Savas acrescenta que essa ausência da
era uma facilidade numa necessidade.
fone público celular do estado, na Vila da
informação local é reforçada pela impos-
Djalma Naelzo Laureano, o Jajá, conta
Igreja, até a chegada da internet na últi-
sibilidade de os jornais impressos chega-
que nos últimos cinco anos as mudanças
ma década, o lugar pôde deixar o isola-
rem à Costa da Lagoa. “Aqui os jornais não
foram grandes, principalmente entre os
mento. Geograficamente separada pelo
chegam, principalmente pela dificuldade
jovens. “A juventude de hoje já não escu-
difícil acesso ou pelas trilhas ou de barco,
de entrega e pela falta de uma agência
ta rádio, os jovens colocam uma playlist
a Costa da Lagoa é uma comunidade tu-
dos correios. Quem lê jornal por aqui é
e ficam escutando música e trocando
rística e pesqueira localizada ao longo da
porque trouxe de fora”, explica. Valter Mi-
mensagens o dia todo”. Para Jajá, mesmo
margem noroeste da Lagoa da Conceição
guel de Andrade conta que a localidade
que essa revolução tecnológica afaste um
em Florianópolis. A comunidade ainda
já teve um jornal local. “Por um tempo
pouco as pessoas da cultura nativa, tem
guarda traços da colonização açoriana
um moço colocou um jornalzinho aqui na
promovido o desenvolvimento da co-
em seu modo pacato de viver e falar.
Costa. Era bom saber das coisas do lugar,
munidade. “A facilidade da internet tem
Em 1982 chegou à localidade a rede elé-
mas isso acabou quando ele foi embora”,
ajudado nosso povo; agora todo mundo
trica. Com ela o uso dos antigos rádios
afirma.
tem um telefone e tudo ficou mais fácil,
de pilha foi diminuindo para dar lugar
A chegada da internet e dos smartpho-
apesar de alguns problemas que o uso
aos aparelhos de televisão, que logo se
nes tem provocado grandes revoluções
demasiado dos celulares possa trazer.
consolidou como o principal meio de co-
no cotidiano dos moradores acostuma-
Hoje a Costa da Lagoa não viveria sem
municação. Com o sinal de transmissão
dos com a peculiaridade desse modo de
esse avanço”, acredita.
local precário, a comunidade buscou a instalação das antenas parabólicas que transmitem com maior nitidez, porém com programação de outros estados. Segundo Savas Naelzo Laureano, hoje, com a chegada do sinal digital, esse problema está sendo resolvido. “A maioria na comunidade ainda possui as parabólicas, mas creio que com o tempo e a melhora no
A internet trouxe muitas facilidades à Costa, e isto é só o começo. (Foto: Marcelo Martins)
67
Caminhos do No acesso pelas 26 moinhos “celeiro da trilhas, de farinha ilustram ilha” a história POR ELIO QUARESMA NETO
A Costa da Lagoa, um recanto turís-
Baixada, Centrinho, Praia do Sul e Sa-
tico e gastronômico da ilha de Santa
quinho.
caminhar junto à natureza.
Catarina, é conhecido e respeitado
Além de sua natural beleza, o cami-
pela qualidade da comida típica servi-
nho possui placas que orientam o
da nos mais de vinte restaurantes na sua extensão e também pela estonteante beleza que constitui o local. O acesso através dos barcos é a escolha favorita da maioria dos visitantes deste paraíso florianopolitano. No entanto, a Costa da Lagoa tem em suas trilhas, um atrativo a parte para quem procura além de belas lembranças e uma comida saborosa, uma caminhada sadia e a oportunidade para fotos incríveis, além de conhecer mais sobre a história local.
Além de sua natural beleza, o caminho possui placas que facilitam saber mais sobre os marcos históricos do lugar
andarilho e que facilitam saber mais sobre os marcos históricos do lugar, como a casa que foi construída por escravos em 1780 aproximadamente, além do engenho que ainda hoje abriga a festa da “farinhada”, ocorrida em agosto, uma festa histórica que mantém a tradição do povo açoriano. O caminho da Costa da lagoa já foi conhecido como o “celeiro da Ilha”, por conter mais de 26 moinhos na sua extensão. Um importante caminho histórico cuja preservação apenas os seus moradores e simpatizantes do local se encarregam.
As trilhas têm aproximadamente 8
Com um trajeto bem demarcado, em
km de extensão total, sendo possível
sua maioria estrada de terra, caminha-
sair do Canto dos Araçás e ir até a es-
se por dentro da mata preservada,
O caminho deixou de ser conservado
trada geral de Ratones, próximo ao
com cachoeiras, córregos de aguas
em 1945. Até então, era possível per-
Canto do Moreira. Possui ao longo de
cristalinas, um cheiro de orvalho se-
correr toda sua extensão de charrete
todo o caminho sete vilas, sendo na
cando nas folhas, o barulho do mar e
ou carro-de-boi. Joana, moradora da
ordem partindo do Canto dos Araçás:
dos barcos que transitam ao seu lado,
Baixada e benzedeira, conta que na
Vila Verde, Praia Seca, Praia da Areia,
sem afetar a paz e a tranquilidade de
região residia um certo Manoel da
68
Costa, rico proprietário de terras, que
çás é a mais longa. Com cerca de 7 km
ga-se ao centrinho da Costa da Lagoa
mandava cortar os ramos de árvores
de extensão, são aproximadamente
que oferece excelentes restaurantes e
que tocassem seu chapéu enquan-
duas horas de caminhada. Já a trilha
visuais incríveis da baía da Lagoa da
to passava montado a cavalo. Outro
que parte de Ratones, tem cerca de
Conceição até o Rio Vermelho.
dono de engenho cavalgava acompa-
meia hora de duração e tem cami-
nhado por um escravo a pé, levando
nhos mais íngremes. A vista única de
Mas os recursos naturais que cercam
parte das compras feitas na Freguesia
toda a lagoa da Conceição e praias da
toda a Costa, não se comparam a be-
da Lagoa, atual avenida das rendeiras,
região compensa o esforço da subida
leza de seu povo, que é a fonte e a
na Lagoa da Conceição.
do morro da chapada.
essência de todo o charme que completa a aventura de estar em um dos
A trilha que parte do Canto dos Ara-
Por qualquer caminho escolhido che-
locais mais bonitos de toda a ilha.
Desde 1945 o caminho não é conservado. O acesso à Costa da Lagoa só é possível a pé (Foto: Elio Quaresma Neto)
69
perfil de mulher, mãe natureza
Seu cheiro possibilita resgatar sensações da infância
POR ELIO QUARESMA NETO
Como jornalista que quero ser, te-
variando as temperaturas entre a
um Brasil ainda ingênuo, mas tam-
nho o desafio de escrever sobre um
água fria contida na terra e a nesga
bém brutal. Sei que o ideal seria res-
personagem característico da trilha.
do sol quente que escorre através
gatar essa história e documentá-la
Escolhi ela que é mãe. Não uma mãe
das folhas das árvores, iluminando
com profundidade, pois afinal é esse
humana, mas de essência, como os
o caminho.
o sentido da literatura da vida real,
primeiros habitantes da nossa na-
mas tentarei aqui, como capricho de
ção nomearam a terra que gerava
seus filhos pescadores, lançar meus
seu sustento, a terra-mãe, a mãeterra. Acredito que devo tratá-la como mulher por cuidar de seus filhos e de todos que passam por seus rústicos caminhos, mesmo que não percebamos. Deve ser por instinto ou apenas a minha singela percepção de que em alguns casos, ser mulher é dar suporte à vida. E isso ela faz muito bem. Se me pedissem para descrevê-la, falaria que ela tem a beleza de um parque cheio de folhas caindo, em um acolhedor e charmoso outono.
Quando se evocam essas memórias, os tempos se misturam, e ainda hoje é possível sentir o cheiro vivo das mortes que tiveram como palco esse local
anzóis no lago nebuloso do passado para falar um pouco do que ela viu. Era um tempo em que as estações se sucediam, produzindo nada além de si mesmas. Homens escravizaram uns aos outros em seu ventre, impondo ideologias irracionais, de fundamentação tão vaga e prejudicial quanto a própria ação. Nesse tempo surgiram a casa histórica construída por escravos e também o moinho de farinha, que assim como rugas que vêm com o tempo, marcam o corpo dessa essência que chamo de mãe.
Com seu cheiro é possível resgatar
Estas e outras memórias ela expõe
e sentir novamente as sensações da
para todos que quiserem ouvir, ou
infância. Posso sentir um pé corren-
Impossível determinar e revelar sua
pelo menos para os que souberem
do no seu chão ainda enlameado,
idade, pois ela viveu um tempo de
como perguntar. Quando se evocam
70
Uma mãe de muitas memórias, à procura de quem sabe ouvir. (Foto: Elio Quaresma Neto)
essas memórias, os tempos se mis-
Aprendi que para contar bem uma
em movimento é o que traz a bele-
turam, e ainda hoje é possível sentir
história é preciso primeiro se sentir
za de falar desta mãe que às vezes
o cheiro vivo das mortes que tive-
parte dela e a dificuldade de con-
é imperceptível, indizível, que é a
ram como palco esse local.
cluir uma narrativa que ainda está
própria trilha.
71
lembranças do velho pescador
Viúvo há quase dois anos, se emociona quando fala dos velhos tempos
POR CLÁUDIO SOUZA DA ROSA
Morador da Costa da Lagoa, seu Dar-
cia do centro de Florianópolis, Darcy
turistas que contribuíram para o
cy — c omo é conhecido pelos ami-
conta que está acostumado a andar
crescimento da economia e da qua-
gos e vizinhos — t em orgulho do lo-
de barco, principal meio de transpor-
lidade de vida do povoado Em rela-
cal que escolheu para construir sua
te dos moradores da Costa. Na sua
ção aos trapiches, Darcy diz que é um
vida. Nascido no dia 15 de outubro
opinião, o barco é mais seguro que o
privilégio desfrutar dos seus benefí-
de 1931, Darcy Leopoldo Albino co-
carro, além de evitar as filas que cos-
cios. Eles são resultado da mobiliza-
memora, no final deste ano, 84 de
tumam acontecer no trânsito caótico
ção dos moradores da Costa junto
vida. No seu cotidiano, o ex-pesca-
da Ilha. E o melhor de tudo, segundo
ao poder público e à classe política.
dor costuma refletir sobre o passado
ele, é poder contemplar durante o
A construção dos trapiches, a im-
e os novos tempos vivenciados pela
trajeto as belezas naturais que o fa-
plantação do sistema de transporte
comunidade.
zem ter a certeza de que escolheu o
coletivo e a organização das coope-
melhor lugar para viver.
rativas são, portanto, conquistas da vontade coletiva.
Viúvo há quase dois anos, ele ainda se emociona quando fala dos velhos
Mas nem tudo sempre foram flores.
tempos. Nascido e criado por uma
O manezinho Darcy diz que as coi-
Manezinho da ilha, Darcy Leopoldo
família de pescadores, herdou do pai
sas melhoraram após a instalação da
Albino relembra ainda o sacrifício e
a paixão pela pesca, que garantiu o
energia elétrica, há mais ou menos
a dedicação dos moradores na árdua
sustento da família. Ao falar de sua
31 anos, quando o deputado federal
tarefa de construir suas moradias
história, Darcy lembra que passava
Esperidião Espiridião Amim era pre-
nessa comunidade isolada. Todos os
dias, ou até mesmo meses, fora de
feito. Darcy lembra que o político é
materiais chegavam e ainda chegam
casa. O seu principal destino era o
muito estimado pelos moradores,
até hoje de barco, o que exige mui-
estado do Rio Grande do Sul, onde
que reconhecem a importância de
ta força física, além de encarecer o
aperfeiçoou o oficio em 1953. A pai-
suas obras.
preço das construções, conta o velho pescador. Mesmo diante das dificul-
xão pela Costa da Lagoa o trouxe de volta, em 1967, para a ilha onde nas-
Após a chegada da energia elétrica,
dades e das ameaças à cultura po-
ceu e se criou.
começou a construção dos primeiros
pular, Darcy garante que não troca
restaurantes. Em função dessa nova
a Costa da Lagoa por nenhum lugar
realidade, a Costa passou a receber
deste mundo.
Vivendo há mais de 18 km de distân-
72
Relembrando os esforรงos para conseguir morar na Costa,
73
Darcy hoje vive no melhor lugar Foto: Clรกudio Souza da Rosa
De barco ou internet, há navegação
Novas redes se infiltram na cultura da Costa da Lagoa
POR CLAUDIANY SCHUTZ
Meios comunicação modernos, que
tecnologia como uma forma de dis-
princípios e opiniões também se dis-
dão acesso a amplas redes de infor-
tanciar os jovens da cultura nativa, so-
tinguem. Cristiano Santos, 26 anos,
mação com eficiência e velocidade,
bretudo da pesca e culinária. Mas ele
utiliza o meio apenas quando neces-
infiltraram-se na cultura da comuni-
reconhece que com as novas automa-
sário para pesquisas que facilitam as
dade da Costa da Lagoa, que durante
tizações, seus mergulhos ficaram mais
tarefas do dia a dia. Ele conta ainda
muito tempo manteve-se mais isola-
fáceis. “O GPS, sem dúvidas, ajuda mui-
que obteve seu primeiro celular aos
da e protegida dos costumes urba-
to na remada: antes tínhamos que re-
15 anos, mas hoje em dia crianças
nos. Por volta de uma década eles se
mar quase uma hora até ter a precisão
de 10 anos, na Costa, já têm todas as
propagam cada vez com mais rapidez
de olhar no escuro e localizar o ponto
tecnologias possíveis. Na sua adoles-
na comunidade. Porém, essa “invasão
do mergulho, que não tivesse pedras
cência, a internet e a telefonia eram
digital” divide opiniões entre os nati-
nem escuridão. Com o GPS, localiza-
menos acessíveis pelas dificuldades
vos. Segundo Manoel João Bernardes,
mos em um instante só”, compara Jajá.
de conexão e valores abusivos. Assim
de 65 anos, as inovações promovem
como Cristiano, Alisson Laureano, de
o acesso dos jovens ao mundo intei-
22 anos, salienta a diferença no de-
ro e deixam a população mais inteligente. Seu filho mais jovem, de 14, fica praticamente 24 horas no celular, o que para ele não é um empecilho. Além disso, segundo Manoel, a tecnologia não prejudicou o aprendizado e o vínculo dos jovens com a cultura local, uma vez que com ela os jovens podem aprender ainda mais sobre sua origem. Pescador, dono de restaurante, Djalma
“A diferença da minha idade para a do meu irmão é de cinco anos, porém, ele parece ter uns 30 a mais do que eu, pois só pensa em utilizar a internet e afins”
74
diferença da minha idade para a do meu irmão é de cinco anos, porém, ele parece ter uns 30 a mais do que eu, pois só pensa em utilizar a internet e afins”, conta o jovem nativo. Conflitos de opiniões surgem a todo o momento. Ana Carolina Ghisio, 18 anos, defende que a internet veio para somar e argumenta que a tecnologia não interfere na cultura local, Julia Pereira, também com 18 anos,
Naelzo Laureano, 45 anos, conhecido como Jajá, considera, ao contrário, a
correr dos anos e das gerações. “A
As gerações mudam e com elas os
pensa diferente. Ela relata ter deixado
de aprender aspectos da cultura po-
meno globalização” envolve vanta-
tação, entretanto, necessita de caute-
pular açoriana com seus pais e avôs
gens e desvantagens. É preciso en-
la e moderação para evitar que a sé-
por causa da tecnologia, que virou fe-
tender e participar com senso crítico
rie de vantagens trazidas pelas novas
bre logo na sua pré-adolescência.
e autonomia dessa nova realidade
tecnologias da comunicação se torne
Contudo, o grande desafio do “fenô-
que permeia o mundo inteiro. A adap-
uma série de riscos.
Na comunidade da Costa da Lagoa existem “de sobra” mãos cheias de tecnologias e criatividade. (Foto: Claudiany Schutz)
75
Barco da cooperativa, que leva e traz moradores e turistas
76
todos os dias
Foto: Claudiany Schutz
pequeno grande pescador
Aventureiro de longa data, Manoel João Bernardes não troca a Costa por nada
POR CLAUDIANY SCHUTZ
Filho de pai pescador, Manoel João
Santos, Paranaguá e Rio de Janeiro. Ao
rou a retirada do seio, mas o distúrbio
Bernardes, natural da Costa da Lagoa,
descarregar toneladas e toneladas de
já havia se espalhado pela corrente san-
começou a seguir a carreira do pai aos
pescados e crustáceos, podia desfrutar
guínea, o que causou a morte de Cléia.
oito anos de idade. Além da pesca, tra-
da beleza de cada local. Nos barcos de
balhou na roça plantando milho, feijão,
aproximadamente 28 metros de com-
Foi sem dúvida uma dura notícia para
batata, mandioca e aipim para ajudar
primento, Manoel e seus companheiros
o pescador, que não se deixou abalar
na sobrevivência da família, enquanto
costumavam capturar mais de 100 to-
e seguiu a vida para educar os filhos.
o pai João José Bernardes viajava em
neladas ao ano, já fisgaram camarão de
Logo no mesmo período, virou barquei-
grandes embarcações, em torno de seis
700g e peixes de 380 kg.
ro e piloto náutico. Comprou seu barco e iniciou a carreira na Coopebarco, a co-
meses, para ganhar o sustento da casa. Com a ajuda da família, criava animais
De volta para a Costa da Lagoa, em
operativa de barqueiros autônomos da
como bois, vacas e porcos para contri-
2011, Manoel, mais conhecido como
Costa da Lagoa.
buir na alimentação.
Deka, a esposa, Cléia Maria Pereira, e três filhos, Samara, Mariana e Bernardo,
Atualmente, aos 65 anos de idade, o
Em 1969 Manoel entrou na profissão
retornaram para “o paraíso”, como Ma-
pescador, barqueiro e pai de família
pesqueira, onde permaneceu durante
noel se refere à Florianópolis.
vive com seu filho mais jovem, Bernardo de 14 anos. O menino é estudante
35 anos, até se aposentar. Durante a jornada, o pescador pôde presenciar
Após o retorno da família, a esposa
e sonha em ser craque de futebol, en-
momentos de felicidade e aflição, pas-
descobriu uma doença incurável, ainda
quanto as filhas Samara, enfermeira
sou noites em claro, presenciou raios,
amamentando o filho mais novo, Ber-
de 24 anos e Mariana, estudante de 18
tempestades e trovões. Tantos foram
nardo. Ela foi diagnosticada com mas-
moram em outras residências na mes-
os apertos que já passou por três dias
tite (conhecido popularmente como
ma comunidade.
se alimentando apenas de bolachas em
leite empedrado). Como não deu muita
alto mar.
atenção ao tratamento, a doença foi se
Certamente Manoel guarda cada gota
agravando, até Manoel tomar uma pro-
do mar em sua memória, e por mais
Navegou por diversos lugares ao re-
vidência e levá-la novamente ao hospi-
que tenha percorrido uma imensa lista
dor do Brasil; os mais visitados foram
tal. No novo diagnóstico foi descoberto
de lugares encantadores, afirma que
o estado do Rio Grande do Sul, Vitória,
um câncer maligno de mama, o que ge-
igual seu lar, a Costa da Lagoa, não há.
77
vidas ancoradas em barcos
Transporte hidroviário permite contato único com a natureza
POR CLÁUDIO SOUZA DA ROSA
A única via de acesso terrestre é a trilha
por causa do vento ou das marés. Outros
munidade melhorou consideravelmente.
formada por pontes, escadarias e rampas
acham um transtorno depender do barco
Fortalecendo a economia local, os nati-
aberta pelos moradores ao longo de dé-
para locomoção. Mas para os nativos, o
vos criaram as cooperativas de barco que
cadas. O outro meio para chegar ao lu-
barco é tão comum quanto sair de carro,
garantem transporte público de hora em
gar é mais fácil mas nem por isso menos
ônibus e moto. Eles sublinham que, ape-
hora.
emocionante: o transporte marítimo. São
sar de ser um transporte lento, é extrema-
embarcações públicas ou particulares,
mente seguro. Sem congestionamentos
Moradores e barqueiros enfatizam que
incluindo os barcos dos próprios pesca-
e livre de acidentes, oferece, de quebra, a
o transporte é seguro. Até porque a con-
dores, que fazem o trajeto dos turistas e
apreciação de uma beleza ímpar.
dução da maioria dos barcos é feita por
habitantes locais. De uma forma ou de
ex-pescadores da Costa que conhecem
outra, chegar ao recanto da é sempre
Há alguns anos, cada morador tinha seu
o trajeto como a palma da mão. Tudo na
uma aventura, mesmo para quem faz o
próprio barco para ir e voltar da cidade.
Costa funciona ancorado nas embarca-
percurso todos os dias.
Com o passar do tempo e com a chegada
ções: transporte de habitantes e visitantes,
da energia elétrica, surgiram também os
de alimento, de lixo, de medicamentos, de
Para os visitantes, pode ser um transporte
primeiros restaurantes e aumentou a fre-
materiais de construção, enfim, a vida das
emocionante, fora da rotina. Mas também
quência de turistas. Como consequência
pessoas e a sobrevivência do lugar estão
pode parecer estranho, lento e perigoso
das mudanças, a qualidade de vida da co-
umbilicalmente ligadas aos barcos.
A comunidade que recebe tudo pelo mar (Foto: Cláudio Souza da Rosa)
78
uma ilha de muitos povos
Lugarzinho contornado pelo Oceano Atlântico, um reduto acolhedor
POR BRUNO BACH ALBORNOZ
Ilha dos Patos. Este foi o primeiro nome
de diversas figuras internacionais não
interesse econômico. As simples casas
registrado, por dois importantes comer-
perdeu essa característica depois de
de pescadores e a mata nativa deram
ciantes português, Nuno Manuel e Cris-
tantos anos. Dados do Instituto Brasi-
espaço a grandes casas de veraneio, de
tóvão de Haro, por volta de 1598. No ano
leiro de Geografia e Estatísticas (IBGE)
pessoas que de pouco em pouco tem-
seguinte, houve a primeira miscigenação
apontam que Santa Catarina foi o esta-
po visitam o seu paraíso comprado, com
intensa com aborígenes, após um nau-
do que recebeu o maior volume de imi-
decks que invadem áreas não permiti-
frágio envolvendo o navegador espanhol
grantes em relação aos outros estados
das. Mas não são todos que invadem a
Juan Del de Solis. Piratas e mercantes que
do Sul, uma média de 638.494 pessoas
pacífica comunidade deste jeito. Muitas
passavam pela região, em rotas que iam
entre 2000 e 2010. Somente em Floria-
figuras encontradas no pier 16 são es-
da Espanha e Portugal até suas colônias.
nópolis residem 3.566 estrangeiros. Esse
trangeiros e optaram por se adaptar ao
Anos depois, em 1675, o nome de Ilha
fluxo intenso chegou com força à Costa
estilo de vida da comunidade em vez
de Santa Catarina foi dado pelo paulista
da Lagoa. Apenas dois piers, de um total
de realizar uma intervenção na vida dos
Francisco Dias Velho, fundador do povo-
de dezesseis, permanecem com a sua
nativos, inserindo hábitos e costumes
ado de Nossa Senhora do Desterro, anos
maioria de moradores nativos da Ilha.
diferentes. Pessoas de outros países, de
depois, rebatizada Florianópolis. Um povoado que cresceu pelo esforço
outros estados e nativos formam a rede O mercado imobiliário percebeu essa
de moradores presentes no dia a dia da
transição e abraçou a Costa para seu
comunidade.
Povoado que cresceu com esforço, a Costa da Lagoa hoje agrega moradores de diferentes lugares (Foto: Bruno Bach Albornoz)
79
uma comunidade política
Vida coletiva a partir de um sistema de idéias para a transformação social
POR BRUNA TOMASELLI
Um grupo de indivíduos com algo
de cada indivíduo dentro deles. Um exemplo é a Costa da Lagoa, lo-
em comum, seja nacionalidade, ideologia, religião ou trabalho, que lhes
A política de comunidade reconhece
calizada na orla oeste da Lagoa da
permite identificar-se uns com os ou-
que a sociedade em si está em cons-
Conceição, na capital catarinense.
tros. Esse é o significado de comuni-
tante mudança, e que o propósito da
Comunidade onde a grande maioria
dade. Comunidade política: não ape-
organização política e social é o de
dos moradores se conhece, onde há
nas uma técnica para a conquista de
permitir que a mudança seja contro-
comida fresca em abundância e onde
eleições autárquicas, mas um sistema
lada de forma deliberada e democra-
todos se reúnem para ajudar a uns
de ideias para a transformação social.
ticamente.
aos outros.
Comunidade política não é local. É universal. Trata-se do seu exercício de poder dos coletivos. Uma comunidade política não se limita à tomada de decisões “políticas” no âmbito das estruturas de governo. Também não se configura em períodos de eleições. As eleições são um ingrediente essencial para o processo de política da comunidade, um elemento necessário e vital na condução dos assuntos sociais, mas não a restringe. Uma sociedade baseada na liberdade também é baseada em responsabilidade e interdependência. As comunidades não são um fim em si. O fim é a qualidade da experiência
80
Volnei tem orgulho de viver na Costa da Lagoa (Foto: Bruna Tomaselli)
orgulho do lugar onde ela vive
Sem perder a essência, comunidade luta para preservar a Costa da Lagoa
POR BRUNA TOMASELLI
Sentado à beira do píer do vigésimo
presidente da Cooperbarcos (Coope-
Tratando-se de uma comunidade que
primeiro ponto da Costa da Lagoa,
rativa dos Barqueiros Autônomos da
sempre teve dificuldades básicas, os
abaixo de nuvens carregadas que es-
Costa da Lagoa). Vendo a necessida-
cabos eleitorais são personagens im-
condem os últimos raios do sol que já
de de melhorias na comunidade onde
portantes dentro da Costa. Para os
estava se pondo, ao som de algumas
mora, ele se candidata a presidente da
habitantes, o cabo eleitoral personi-
ultimas garças que ainda não haviam
associação de moradores da Costa da
fica o indivíduo que tem força para
se molhado com os leves pingos de
Lagoa , uma entidade representativa
barganhar junto a políticos a resolu-
chuva… encontra-se um homem mo-
capaz de promover a administração e
ção de seus problemas individuais e
reno, usando um casaco em cima da
a articulação entre poderes constituí-
coletivos.
regata branca. Um nem tão típico pes-
dos dentro e fora da comunidade. De
cador ou um nem tão clássico manezi-
três em três anos, quando ocorre uma
Em um mundo de contrastes, a loca-
nho de Florianópolis.
eleição, uma urna é levada até a comu-
lidade da Costa da Lagoa encontra-se
nidade, mesmo se há, muitas vezes,
em uma situação medianeira, dividi-
apenas uma chapa concorrendo.
da entre o que foi o passado e o que
A simplicidade não disfarça sua essên-
poderá ser o futuro. A manutenção
cia. Volnei Valdir de Andrade, 42 anos, nativo de Florianópolis, eterno mora-
Em uma comunidade onde 80% dos
dos indivíduos e das famílias ainda
dor da Costa da Lagoa. Nascido e cria-
habitantes são nativos, o povo local é
depende das condições do meio em
do às margens da Lagoa da Conceição,
acostumado com o som do motor dos
que vivem. Por isso, a comunidade em
Vaninho, como é conhecido por todos,
barcos. Para sair do local, ou eles ou
si se autorrepresenta, com uma irre-
é o líder comunitário, representa os
o caminho, arranhado, usado, pedre-
dutível vontade de independência e
aproximados 1600 habitantes da Cos-
goso das trilhas que circundam toda
autoafirmação. A Costa da Lagoa tem
ta. Ostenta no peito erguido o orgulho
a Costa. Os moradores querem e an-
seu jeito “mané” de viver e ver as coi-
de viver à beira da Lagoa. E agradece
seiam por melhorias, por progresso.
sas, crescer sem deixar de vestir sua
a Deus.
“A gente está em um lugar muito bom
história. “Assim como meu vô ensinou
para viver; a gente quer melhorar nos-
a meu pai, eu ensino a minha filha a
O homem que carrega a função de
sa qualidade de vida, mas sem perder
ter orgulho da Costa da Lagoa”, diz o
“cuidar” dos mais diversos assuntos da
a essência”, sintetiza Volnei, o porta
pescador que fala em nome dessa co-
sua comunidade foi, por cinco anos,
voz da comunidade.
munidade.
81
cultura que desafia a lei
Farra do boi teima em permanecer viva nas tradições açorianas
POR BRUNA NICOLETTI
nacional.
Desde a antiguidade, os povos medi-
necessidade de povoar o sul do país,
terrâneos acreditam que o boi é um
seriam os colonizadores de Desterro e
elemento que traz fertilidade e prospe-
acabariam por implementar definitiva-
A matéria, publicada no jornal O Globo,
ridade. O tempo foi passando e as tradi-
mente a prática nos solos guaranis.
no período da semana santa de 1986,
cionais festas se espalharam por parte
enfatizava as atrocidades cometidas
da Europa. Fazer brincadeiras com o
contra o animal, e descrevia de forma
animal resistiu ao tempo e às mudanças sociais. A modernidade e a urbanização avançaram desordenadamente em direção ao campo, e isso incluiu a Ilha de Santa Catarina. Na cidade, tudo muda. Novos moradores de todos os cantos do país e turistas de todas as partes do mundo provocaram um inevitável choque de
Boi xucro era procurado para protagonizar brincadeiras e comemorar o retorno dos pescadores
chocante os “seres humanos” que faziam dele um “Judas”. Graças a isso, todos os olhos voltaram-se para os chamados “monstros de Santa Catarina”. Os jornalistas e artistas, que, em sua maioria, nunca haviam presenciado a farra, publicaram e repudiaram essa tradição. Muitas cartas foram mandadas ao Governador do Estado, Pedro Ivo Campos, exigindo a proibição desta manifestação cultural.
culturas. Apesar disso, os manezinhos, que durante muito tempo viveram em
Para os imigrantes açorianos, a farra do
uma redoma, não deixaram a cultura de
boi não passava de um evento prazero-
Páscoa, natal, semana santa. Todas as
seus antepassados açorianos de lado.
so, mas como os turistas entenderiam
datas comemorativas, épocas quando
isso? Como os novos moradores dei-
os pescadores retornavam para suas
Antes de chegar ao Brasil, a farra do boi
xariam ‘seus filhos andar na rua, se um
casas, após um longo período no mar,
ou boi em campo atracou nos Açores
animal “desgovernado” poderia estar à
pescando para obter o sustento dos
com os portugueses, que iniciavam as
solta? A partir daí, iniciaram-se as dis-
que os aguardavam ansiosamente em
grandes navegações e a época dos mo-
cussões contra a prática, que tomaram
suas casas. Assim que eles aportavam,
nopólios. A brincadeira acabou se tor-
maior corpo quando a jornalista blu-
a festa começava. Logo iam atrás de um
nando comum entre os nativos dessa
menauense Urda Alice Klueger fez uma
boi xucro para protagonizar a brinca-
região, que mais tarde, movidos pela
denúncia em um jornal de circulação
deira. Enquanto este ficava preso com
82
água e comida à vista, porém fora de
mente a luta para se esquivar dos cor-
reinicia a busca por novos bois “bons de
seu alcance para aumentar a revolta do
tes e pancadas que o atingem de todos
farra”.
animal, os moradores se espalhavam
os lados, e continua correndo, sem se
pelas ruelas e bares, juntando pessoas
importar com quem estiver à frente. O
de todas as gerações e famílias em uma
“brinquedo” simplesmente não aguen-
única festa.
ta mais.
Devido a toda essa repercussão, os
Tanto o livro A farra do boi — Palavras,
naturalistas iniciaram intensos deba-
Sentidos, Ficções, de Maria Bernadete
tes com base na Declaração Universal
Ramos Flores, como o documentário
dos Direitos dos Animais da UNES-
Farra do boi, de Zeca Pires, mostram a
CO, segundo a qual “todos os animais
violência com que a polícia passou a re-
nasceram iguais diante da vida e com
preender os farristas após a criação da
direitos de existência e que nenhum
lei proibindo a farra do boi em todo o
animal será submetido a maus tratos e
estado. Segundo eles, ao mesmo tempo
atos cruéis.” Então, quem seriam os ho-
em que se advogava a defesa da ordem
mens para se sentir no direito de en-
e dos direitos dos animais, os direitos
curralar, furar os olhos, cortar e matar
humanos eram deixados de lado com
cruelmente um animal indefeso? Mas,
os atos de violência contra pessoas. O
ao mesmo tempo, não seria hipocri-
exemplo que tomou mais repercussão
sia de uma sociedade frigorífica, que
ocorreu na cidade de Governador Cel-
Segundo
criou uma linha de produção de ani-
so Ramos (Ganchos) e ficou conhecido
Edward B. Tylor, cultura é “todo aquele
mais criados para morrer, reificados e
como o episódio de Ganchos, quando
complexo que inclui o conhecimento,
expostos em prateleiras de supermer-
na Semana Santa de 1988, a polícia e a
as crenças, a arte, a moral, a lei, os cos-
cado como produtos, julgar um ato
comunidade se enfrentaram em uma
tumes e todos os outros hábitos e capa-
trazido pelos colonizadores do litoral
verdadeira “batalha”.
cidades adquiridos pelo homem como
A farra do boi é um mero elemento da cultura açoriana, que foi perdendo carecterísticas com o tempo por força da modernidade e da indústria cultural o
antropólogo
britânico
membro da sociedade”. A farra do boi
catarinense? Mesmo assim, a farra continua, durante
é um mero elemento da cultura açoria-
Então, o boi começa a ser perseguido
toda a noite e dias a fio, e apenas quan-
na, que foi se descaracterizando com o
pela pequena multidão de pescadores,
do os homens não aguentam mais é
tempo por força da modernidade e da
muitos deles estimulados pelo álcool,
que o animal tem descanso. O que res-
indústria cultural. A marginalização da
crianças muitas vezes bem pequenas e
ta do evento singular são farristas or-
cultura manezinha ocorreu de tal forma
mulheres. Sem saber para onde ir, dian-
gulhosamente exaustos após desafiar
que rendeiras, boi de mamão, pescado-
te de tamanho desespero, ele se atira
o boi e saírem ilesos, rastros que se de-
res, ratoeira, benzedeiras, terno de reis
ao mar, na esperança de que essa dor
senharam nas areias que beiram o mar
entre outras tantas expressões da cultu-
acabe de uma vez por todas. Mas não,
e nos caminhos calçados da comunida-
ra popular, são encontradas apenas em
os farristas não deixam que o animal
de, e finalmente ele, que depois de tan-
redutos como a Costa da Lagoa. Após à
escape e vão ao seu encalce dentro da
to divertir os conterrâneos é dividido
travessia inicia-se então a Florianópolis
água até fazê-lo sair novamente para a
entre a comunidade ou é vendido a um
urbanizada e estratificada como hoje é
terra. Mesmo exausto, ele inicia nova-
preço menor que o da compra. Então se
conhecida mundialmente.
83
a vida pelas mãos de um pescador
Uma relação de afeto entre o parteiro e o amanhecer
POR BRUNA DE MORAES SILVA
Ah, esses amanheceres na Costa da La-
ram a paixão deste senhor. Ele, a esposa,
comigo. Uma recepção 5 estrelas. O que
goa! Parecem tão únicos que beiram ao
os filhos e os amigos. Nada mais importa,
falta em muitos lugares belos pelos cinco
nascimento do mundo, mas para o pesca-
a não ser a paz de viver no bairro onde o
continentes, sobra pela Costa da Lagoa:
dor Manoel, são 70 anos de uma relação
café passado é fresco, onde a brisa é gos-
Simpatia.
de intimidade. Entre futuro e passado, sua
tosa mesmo no inverno. A paisagem e as
fala se enche de afeto, realização e tradi-
relações acaloradas pelos “bom-dia” que
Assim é Seu Manoel Cabral, com 74 anos,
ção. Pescarias de manhã cedinho ou na
se houve a cada esquina, a cada ruela,
parteiro dos quatro filhos. A simplicidade
calada da noite, sob a luz da lua ou sob o
de um vizinho ou parente, tornam o seu
da esposa ao explicar o motivo de o mari-
clarão do sol: Manoel esteve sempre pes-
bairro singular e curioso para quem está
do ter feito seus partos evidencia o quão
cando alegria com sua rede na Lagoa.
acostumado às ruas das cidades cheias de
adaptados eles estão com o que: “Se um
pessoas e tão vazias de acolhimento.
filho ia nascer ele era obrigado a ter o
Como diria o escritor Antoine de Sain-
filho, até porque a embarcação era bem
t-Exupéry, no conto O Pequeno Príncipe:
Pontos turísticos europeus e australianos
difícil”, disse ela como quem fala impondo
“Você é responsável por tudo que cati-
me lembram o que enxerguei quando saí
algo, como se desse uma breve lição de
vas”. Manoel sabe disso e, coincidente-
do trapiche do Rio Vermelho em direção
casa para Manoel, do tipo: “Ai dele se não
mente, como o Pequeno Príncipe, tem o
ao refúgio da Costa da Lagoa. O lugar
me ajudasse!”.
seu mundinho único com flores que rega
lembra alguns cartões postais daquelas
há quatro, cinco décadas e revigora, a
cidades praianas. Ao olhar de longe, casas
Praticamente uma enciclopédia viva, o
cada lembrança contada, a cada atitude
coloridas, rochas e montanhas — quanto
pescador apaixonado pela família e pela
lembrada.
mais o barco se aproxima, mais o verde
única mulher que teve na vida, a quem
do mato e das árvores ganha tons, assim
orgulhosamente afirma “aquela é a mi-
Foi seu caráter de homem de família que
como a igreja de frente para o mar estilo
nha coroa” e aponta o dedo indicador em
o fez ser exemplo para quem mais im-
açoriana, as escadarias e as casas ganha-
direção a senhora logo ali a sorrir. Assim
porta: a esposa e os quatro filhos. Todos
vam pequenos diversos detalhes. Logo
é Cabral. Tudo o que parece tão distante
formados em faculdades, mas antes, to-
ao descer da embarcação em um dos
e acompanhado pela água ainda de obs-
dos amados. São os frutos pescados na
pontos que dividem o bairro, um garoto,
táculo é celebrado por ele como um pro-
Lagoa que alimentaram essa história. São
por volta de 16 anos, soube ser educado
blema pequeno, que faz parte da vida e
os raios desses amanheceres que aquece-
o suficiente e excessivamente simpático
do sorriso largo.
84
AlĂŠm da famĂlia, os moradores tem o prazer de estar onde a
85
brisa ĂŠ gostosa mesmo no inverno. Foto: Tiago Bento
girando com os ponteiros do sol
Aqui o tic-tac vale menos que do outro lado da Lagoa
POR BRUNA DE MORAES SILVA
Sem querer meus olhos batem no
meus olhos não param um segundo.
tensamente como pé na água ou na
relógio, mas não enxergo que horas
A água embaixo dos meus pés e a
areia, onde só se chega com os pró-
são, pois meu inconsciente não está
paisagem das sandálias havaianas
prios pés, pelos caminhos de terra,
disposto a pensar nas frações que
vestindo as meias. Me sinto na sala
ou de barco, pelo fluxo das águas.
dividem o tempo. No meu pequeno
de estar de minha casa, porém são
mundo, procurando entender sobre
seis horas da manhã. Dificilmente
Uso uma regata e sinto a brisa fria
os povos que habitam este planeta,
eu estaria na sala a esta hora! Es-
que dá graça aos pelinhos arrepia-
compreendo que aqui o tic-tac vale
pecialmente hoje fugimos da cama
dos dos meus braços. Pareço um
menos que do outro lado da Lagoa.
para ver o espetáculo colorido e
porco espinho na ventania da ma-
À diferença da cidade, aqui as conta-
gratuito que o sol proporciona para
nhã. Meus olhos aproveitam os últi-
gens acontecem com o pulsar do co-
todos os viventes. A imensidão do
mos quase vinte minutos sem cegar,
ração. Na calmaria das ondas, sinto
amanhecer do trapiche da Costa da
pois a estrela solar indescritivel-
a liberdade e sacio com meus olhos
Lagoa nos fez esquecer o relógio, o
mente começa a brilhar surgindo no
o cenário que ocupa toda a minha
aparelho de televisão, a internet e
fundo desse quadro que admiramos
atividade mental. Sinto os segundos
todas as telas.
ou melhor, dessa obra de arte viva! O céu com a cor laranja, tão satura-
em paz e lentamente. Um trapiche tocando a lagoa e um banco velho e
Um barco cruza na perpendicu-
da quanto a cor amarela, a vermelha
simpático revela a madeira por bai-
lar — o utro se afasta, o caminho for-
e a azul formam um dégradé já roti-
xo da tinta branca descascada. Mes-
ma um x na água; o formato de letra
neiro para os habitantes. Porém eu
clado como um dálmata, ora branco,
fica abstrato e o “x” logo é engolido
faço aquela expressão de encanta-
ora marrom, seu encosto é meigo e
pelas pequenas ondas. Os barqui-
mento com um suspiro barulhento e
confortável, como um abraço queri-
nhos típicos da Costa somem no
abro um bocão arregalando os olhos
do.
horizonte parecendo até mesmo ser
em câmera lenta para reverenciar o
abocanhados pelos raios de sol. As-
show natural que compartilho com
Balanço os pés devagarinho e o
sim começa a vida neste lugar onde
meus amigos.
vento arrasta uma mecha do meu
o tempo não gira como os ponteiros
cabelo para os meus lábios entrea-
do relógio. Gira com o nascer do sol,
Nas minhas costas também há um
bertos. Minha boca está imóvel, mas
horas contadas ou não, vividas in-
rancho. Esse eu não sinto como o
86
Arte viva, o amanhecer na Costa da Lagoa. (Foto: Bruna de Moraes Silva)
vento, mas ali, foi onde tomei o meu
nheceu e preciso despertar, princi-
assistir o espetáculo do amanhecer
primeiro gole de café passado na
palmente da preguiça espoleta que
está tomando café da manhã junto.
Costa da Lagoa. Me sinto incrivel-
brinca, com frequência, dentro de
Uma energia boa toma conta das
mente bem nesses dois dias aqui e
mim. O lugar é rústico, a mesa de
pessoas ali, não sei se é o café re-
consigo enfim entender o porquê
madeira e os bancos fofos aconche-
cém passado, ou simplesmente uma
algumas pessoas vivem há quase um
gantes. Me jogo em um dos bancos!
sensação gostosa de viver algo inex-
século e sentem — s e lisonjeados no
Alguns dos meus amigos comem bo-
plicável como aquele nascer do sol,
passar da vida entre os dormir e os
lachinhas caseiras, outros bolinhos
juntos. Apenas degustei o esquen-
acordar aqui neste bairro o qual re-
de chuva adormecidos feitos pela
tar dos meus dedos frios na xícara
sume suas existências.
Dona Bete na noite anterior. O clima
de café, o aroma e o gosto daquela
de galera é muito bom. Gosto muito
delícia escura líquida bastou, afinal
Quero mais é um café no rancho
do acolhimento de experiências no-
já estava saciada pelo sol que vi nas-
da Dona Bete. Agora o dia já ama-
vas. Todo mundo que acordou para
cer, na hora em que o dia clareou.
87
Desigualdade no privilégio a forasteiros
Mansões surgem onde só havia ranchos de pesca
POR BEATRIZ WAGNER DA ROCHA
A saída do barco do porto da Lagoa pro-
não são as famílias tradicionais da Costa,
to embora a desatenção em outras ques-
porciona uma visão ampla do que está
mas quem vem depois. Principalmente se
tões os incomode, os viventes da Costa
por vir. O extraordinário cenário da Costa.
é alguém com influencia financeira e polí-
da Lagoa buscam se organizar e trabalhar
De longe pode-se perceber o estilo aço-
tica na Grande Florianópolis.
da melhor maneira possível para estabe-
riano desenhado nas casas e restaurantes.
lecer o nível de igualdade de todos — é
Ao que parece, tudo anda em pé de igual-
O que se conta é o seguinte: áreas de pre-
como se os forasteiros não fizessem parte
dade. Mas a primeira impressão não é a
servação permanente são alteradas pela
daquele corpo social. É como se os seus
que fica. Passando pelas trilhas que cor-
legislação do município para o favoreci-
luxos fossem alheios aos demais.
tam o bairro, a conversa com moradores
mento dos chamados “amigos do rei”, o
logo revela que uns são mais iguais que
que é muito comum na capital catarinen-
Embora alguns dos habitantes sazonais
os outros.
se, enquanto os moradores e donos de
da Costa ainda façam questão de parti-
restaurantes, quando necessitam de re-
cipar ativamente da vida comunitária,
A diferenciação feita por órgãos públicos
formas e pequenos ajustes nas estruturas
outros se fazem indiferentes ao que acon-
a locais e a forasteiros é gritante quando
de seus negócios e residências, esbarram
tece ao seu redor, mantendo-se isolados
se trata de construir e modificar casas na
nos encargos da lei.
em suas mansões, acessando o local ape-
região. Ao contrário do que o leitor pode
Nota-se que tal distinção não afeta pro-
nas para o seu bel prazer e ignorando a
pensar, os privilegiados nessa história
fundamente a vida da comunidade, mui-
cultura local.
Poucos possuem o privilégio de construir casas com essa dimensão na Costa da Lagoa (Foto: Beatriz Wagner da Rocha)
88
o visitante que chega de helicóptero
Poucas vezes visto, publicitário construiu uma casa tipicamente açoriana
POR BEATRIZ WAGNER DA ROCHA
Tentar fazer as vezes de Gay Talese e ela-
formas: barco ou trilha. Exceto para Wil-
amigos — grandes personalidades da mí-
borar um perfil de alguém ligado à Costa
fredo, que tem uma maneira exclusiva de
dia, políticos nacionais e internacionais,
da Lagoa a partir de depoimento e infor-
chegar ao local. Suas entradas na região
jogadores de futebol e globais — que
mações colhidas sem ter acesso ao perfi-
são marcadas para os moradores primei-
também frequentam a casa têm conhe-
lado nunca pareceu um desafio fácil. Mas
ramente pelo medo. O fato de o homem
cimento da cultura e acontecimentos do
quando o personagem do qual se propõe
de negócios chegar em seu helicóptero
bucólico vilarejo.
a falar não costuma ser visto na comuni-
já o diferencia dos demais habitantes do
Barrado pela legislação vigente, os planos
dade, não há método mais indicado do
bairro e causa espanto porque evoca os
do empresário de construir uma pousa-
que o de Talese, que fez o célebre perfil
resgates aos turistas acidentados nas ca-
da tiveram de ser abandonados. O mes-
de Frank Sinatra cercando-o por todos os
choeiras da região que é feito da mesma
mo aconteceu com a ideia de uma via
lados, sem conseguir entrevistá-lo.
maneira. O barulho das hélices do veículo
que ligasse diretamente Ratones à Cos-
dirige o olhar de todos para o céu, mas ao
ta. Atravessar uma área de preservação
Sobrinho dos donos da empresa Tramon-
perceberem a intensa movimentação de
permanente não foi possível para esse
tina, Wilfredo Gomes possui uma casa
aeronaves, logo tomam consciência de
Midas da publicidade. Porém, engana-se
tipicamente açoriana no bairro do leste
que o bon vivant encontra-se no local.
quem pensa que a área foi mantida intacta durante a reforma do imóvel. Segundo
da ilha de Santa Catarina. A casa em si, é aparentemente simples, quando vista
Sua presença é indiferente, tanto por pas-
relatos, muitas árvores foram derrubadas
de modo isolado, mas não é difícil perce-
sar pouco tempo na comunidade quanto
dando lugar ao verde gramado que se ex-
ber a magnitude do imóvel, que agrega,
por não interagir com os que nela vivem,
pande por todo o terreno. Pelo visto, não
além da residência do publicitário, uma
como relata um morador: “Ele vem, faz a
é só na maneira de acessar a região que
outra habitação para hóspedes, um deck
festa dele e vai embora”. Tampouco seus
Wilfredo se difere dos demais moradores.
particular e um gazebo estrategicamente construído no alto do terreno de 60 hectares. Um carrinho de golfe oferece transporte às visitas que têm alguma dificuldade para acessar a moradia.
O acesso à Costa da Lagoa é feito de duas
Nem todos desfrutam da vida em comunidade (Foto: Beatriz Wagner da Rocha)
89
o pé de valsa da costa
Pescador por profissão, dançarino nas horas vagas e amante pela vida
POR ANDREZA MARTINS CÂNDIDO
Aproximei-me desse ator “costense” para
Nativo da Costa da Lagoa, Seu Adão nun-
como pescador, saía de casa em julho e
saber sobre sua participação no filme A
ca pensou em ir embora. O máximo que
voltava em dezembro. Dona Maria, com
Antropóloga, gravado na Costa da Lagoa,
ficou longe foi o tempo que passou no
sete filhos pequenos, comprava fiado na
mas obtive muito mais. Seu Adão aparece
mar, pescando. Viveu o tempo em que
vendinha. A conta era paga só quando ele
logo no início do filme, com uma gaiola
ainda não havia eletricidade na Costa. “A
voltava. “Se o dinheiro desse, se não des-
nas mãos, na fila para entrar num barco
mulher esquentava a água na cozinha, e
se, só quando voltasse da outra pescaria.
que ia rumo à Costa. Mesmo com parti-
o banho era de caneca”, e as refeições ilu-
Na pesca é assim, um dia tem peixe no
cipação curta, acompanhou de perto as
minadas com velas.
outro não”.
produção com carinho, apesar de ter dito
Amante de sua rotina, aproveita cada pe-
Já venceu um câncer e agora tira de letra
que se fosse para aparecer mais do que
dacinho desse dia que passa sem pressa.
o problema na coluna, praticando pilates
apareceu, não aceitaria.
O primeiro café do dia é ao lado da espo-
durante a semana. “No primeiro dia tava
sa. Preenche suas manhãs com a pesca
todo quebrado, mas depois pra mim virou
Pescador na profissão, dançarino nas horas
leve, na beirinha da Lagoa, que às vezes
uma brincadeira”. Para os dias da semana
vagas e amante por toda a vida. Conheci
é feita dentro de algum dos barcos anco-
que não tem pilates, comprou uma bola e
em Seu Adão um homem que, aos 69 anos,
rados. Depois do almoço, curte a lomba
alonga de casa mesmo. No domingo cru-
vive com paixão o dia a dia da comunida-
gostosa que é completada com a soneca
zei com ele todo perfumado e pomposo.
de. Alto e esbelto, é sofisticado no seu jei-
revigorante. A tarde é de preguiça, “passa
Era dia de bailão. Valsa, bolero, xote, esse
to de andar. Cabelos penteados para trás,
devagarinho”, e a noite, antes do jantar
bailarino dança. Tem dias que ele vai até
volta e meia trazia o pente às mãos para
com dona Maria, uma passada no bar,
Santo Amaro da Imperatriz, pega barco,
mantê-los no lugar. Casado com Maria
para uma conversa com os velhos ami-
pega carona e vai bailar.
Ana há 48 anos, Adão João Sálvio prepara
gos, colegas de pescaria e vizinhos de
e leva o café da esposa na cama todos os
comunidade.
gravações. Guarda o filme que ganhou da
Esse encontro, o último que tive com Adão, foi também meu último dia na Costa. Nes-
dias. Por motivos de saúde, a esposa quase não sai de casa. Fala dela com delicadeza e
Nem sempre Adão foi pescador. Já tra-
se encontro breve perguntei para onde ele
doçura, compõe poemas para ela, mostra
balhou na lavoura, plantando mandioca,
ia tão elegante, e ele me disse que era dia
a sabedoria de um autodidata, que fez da
feijão, milho. Pela falta de retorno com as
de baile. Sorriso solto de meninão, se des-
vida uma faculdade.
plantações, ingressou e ficou na pesca. Já
pediu e foi esperar o próximo barco.
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O pescador e dançarino arrumando as redes para mais
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uma pesca leve Foto: Andreza Martins Cândido
histórias da costa em “a antropóloga”
A comunidade no imaginário cinematográfico nacional
POR ANDREZA MARTINS CÂNDIDO
Primeira ou sétima filha de um casal
num local com uma faixa terrestre
do tempo que o diretor morou na co-
sem varões, as bruxas, como rezam
tão pequena. Mas o diretor insistiu:
munidade.
as lendas, se reúnem em madruga-
“Quis fazer lá, a voz, o sotaque, o lu-
das de lua cheia, atacam pescadores
gar. Isso aí imprime uma diferença. A
Zeca deixou claro que desde o início
e bailam dentro de tarrafas de pes-
Costa tem uma cor especial”.
havia medo de gerar incômodo de-
caria. A Antropóloga, filme lançado
masiado aos moradores. Mas na hora
no dia 29 de abril de 2011 em todo
da convivência, muitos se mostraram
território nacional, explora a magia
participativos e dispostos a ajudar
e a cultura açorianas ainda vivas na Ilha de Santa Catarina. Inspirado na obra de Franklin Cascaes, um grande estudioso da cultura local, o filme aproxima o público das tão temidas bruxas do imaginário ilhéu.
“O tempo para a comunidade é outro; não existe pressa”
no que era preciso. Indagado sobre qual o maior diferencial do lugar, não pensou duas vezes: “O tempo para a comunidade é outro; não existe pressa”. O longa-metragem esteve entre os 15 filmes selecionados que concor-
Foram 11 anos de projeto e nove para que se tornasse viável financei-
Para que o filme se tornasse viável na
reram à vaga para representar o Ci-
ramente. Desde o início, Zeca Nunes
Costa, toda a equipe se hospedou lá
nema Brasileiro na Premiação do
Pires, diretor do longa-metragem,
durante 45 dias. O elenco e a produ-
OSCAR 2012. Pela primeira vez um
idealizou que as gravações teriam
ção inteira fizeram uma imersão lite-
filme catarinense entrou na disputa.
como cenário a Costa da Lagoa, co-
ral na comunidade, inserindo-se no
Quando Zeca Pires retornou à Cos-
munidade
açoriana,
seu cotidiano. Foram alugadas 12 ca-
ta da Lagoa para apresentar a obra,
onde morou durante um ano antes
sas para os integrantes, e seis barcos
surpreendeu-se com a eloquente
do início das filmagens. A ideia não
que passaram a ser camarim, meio
torcida da comunidade pelo Os-
foi bem aceita pelos outros integran-
de transporte, além de depósito para
car. Seu trabalho foi recebido com
tes da produção do filme sob a alega-
guardar os equipamentos. Houve um
os parabéns pelo resultado e muita
ção de que não seria nada fácil cons-
grande apoio e paciência da comuni-
animação para que o filme vencesse
truir um ambiente cinematográfico
dade, segundo Zeca Pires, em função
a competição. “Assim que estreou,
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tipicamente
levei pra comunidade. Estava todo
há morador que não tenha alguma
senhoras nativas da Costa da Lagoa;
mundo convidado. Os barcos ficaram
lembrança da estadia da equipe na
tudo está pulsante na memória desse
um mês fazendo transporte de pas-
comunidade ou que não tenha as-
povo. Os moradores, em geral, viram
sageiros com banners do filme”.
sistido ao filme. O barco de Pedro,
no filme uma forma de dar visibilida-
o lobisomem, destruído pelas bru-
de ao lugar, para que seja lembrado
A Antropóloga acabou ficando fora
xas, a brava luta da portuguesa Malu
por suas belezas, mas também por
da disputa, mas permanece tatuado
contra a mãe-bruxa de Carolina, e os
sua ainda praticada pesca artesanal,
na história do povo da Costa. Não
ricos diálogos documentais com as
por seu povo e por suas crendices.
Zeca Pires, idealizador e diretor do filme A Antropóloga (Foto: Cláudio Silva)
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“Poder conciliar a primeira experiência com a reportagem em um lugar como esse foi mágico”
“Trouxemos conosco novas amizades que serão inesquecíveis. A todos o nosso muito obrigado!”
Vinícius Marinho Flausino
Rafaella Moraes
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