De frente pra Costa da Lagoa

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UMA sobrevivência sobrevivênciA utópica RAQUEL WANDELLI

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio... (Caetano Veloso – Um índio)

Ao entardecer, as águas salobras da Lagoa

seus “diques” na medida justa para que as benesses

de Fora lambem com seu vaivém manso o casco

paradoxais dos centros urbanos cheguem duran-

dos barcos que contornam a Costa da Lagoa. Re-

te o dia e partam no mesmo barco que as trouxe.

fletido na onda fria, o céu promete a essa comuni-

dade de rendas e benzeduras, de ladeiras e casas

ao qual só se chega de barco foi escolhido pela

risonhas, de crianças soltando pipa e contadores

turma do Primeiro Ciclo de Jornalismo da Unisul

de histórias nada mais do que a medida do seu

do primeiro semestre de 2015 para realizar sua ex-

sonho. Desde que o povoado se consolidou, no

periência inaugural de reportagem-vivência. Foi

início do século XVIII, a água leva, a água traz, a

antes de tudo a eleição de um povo que oferece

água integra, conduz, mas também marca o limite

uma alternativa de vida num mundo cansado de

que une e separa. Poucos minutos de barco dis-

si mesmo. A decisão de se hospedar três dias na

tanciam essa “pequena ilha” da “grande Ilha”, onde

comunidade durante o feriado do Dia do Traba-

a ideologia do progresso já destruiu os sonhos de

lho também partiu da própria turma. Do encontro

vida comunitária e mergulhou a cidade no futuro

entre essas duas autonomias, a comunidade que

sem horizonte das grandes metrópoles. Mas as dis-

luta para autodeterminar os seus destinos e a ju-

tâncias simbólicas foram mantidas. Lugar onde o

ventude que é encorajada pelo novo projeto pe-

contato com a sociedade autodestrutiva da “outra

dagógico do curso de jornalismo a se tornar prota-

margem” não esmagou a experiência da tradição, a

gonista de seu processo de ensino-aprendizagem

Costa da Lagoa é um pequeno oásis social no ser-

nasceu a revista multimídia O olho da multidão.

Entre inúmeras outras opções, o povoado

tão-litoral de Florianópolis. A comunidade parece ter encontrado o segredo de como abrir e fechar

Há nestas narrativas, nestes vídeos, nes-


tes registros de texto, imagem e som muito mais

rico. Os povos são capazes de alcançar com a

do que a aplicação de técnicas jornalísticas com

linguagem, com a arte, com suas experiências

a pretensão de mostrar a verdade ou o retrato de

culturais, possibilidades inimagináveis de existên-

um lugar. O esforço de múltiplas linguagens aqui

cia. Essas experiências resistentes não configu-

expressado traduz a ânsia desses jovens repórte-

ram uma utopia única, solução mirabolante para

res de encontrar perspectivas de continuidade de

onde todos devem convergir, mas oferecem, nos

vida saudável para o ser humano e para o trabalho

termos de Michel Foucault, pequenas e podero-

jornalístico. Ele passa pela vontade de compreen-

sas heterotopias, múltiplos e diferentes contralu-

der o delicado e tenso diálogo entre a moderni-

gares, onde se constroem sonhos de uma vida

dade e a tradição, que está também nas relações

em comum verdadeiramente mais plena e feliz.

entre o tempo do trabalho e o tempo para “entrar na graça de viver”, valendo-nos de uma expres-

Nesses tempos de cidades-fake, construí-

são recorrente em Clarice Lispector. Há, sobretu-

das para satisfazer o desejo de exotismo de um tu-

do, um esforço para compreender o que significa

rismo predatório e individualista, a Costa da Lagoa

para a criança, para o jovem, para a mulher, para

é uma resistência e uma sobrevivência. Os siste-

a velhice estudar, trabalhar, criar os filhos sem se

mas alternativos e exitosos de educação, de trans-

separar do meio ambiente e das práticas culturais.

porte, de destinação do lixo, a política comunitária democrática, o ecletismo religioso, a vizinhança

Durante o Ciclo de Conferências Mutações

2015, que abordou o tema utopia, o músico e pensador José Miguel Wisnik lembrou que a verdadeira utopia está contida no presente. Isso significa que o novo espírito utópico da época deveria apostar em sonhos compossíveis que não são nem uma projeção para o futuro nem um recuo para o passado, mas

uma

sobrevivên-

cia forte no presente. Apesar da síndrome cientificista

oci-

dental, que teima em depositar nos avanços

tecno-

lógicos

nossas

melhores

espe-

ranças de futuro, a

humanidade

ainda

não

per-

cebeu em si mesma as potências de

transformação,

disse ainda o teó-

solidária, entre muitas outras preciosidades, en-


cerram aprendizados para a cidade grande, tão po-

des de explorar o turismo local sejam afastados e

bre de soluções. No fundo verde da mata atlântica,

para que a comunidade faça valer os seus próprios

bordado pela linha horizontal do casario colorido,

arranjos, diante do assédio do poder político cen-

mas praticamente livre dos contrastes e desigual-

tral e dos grandes grupos econômicos. Sobretudo

dades sociais, moram lições para a Florianópolis

a luta interna da comunidade contra a própria ga-

desfigurada pelos problemas de criminalidade e

nância fortalece a crença na permanência desse

pela especulação urbana. Longe de ser produto

sonho chamado Costa da Lagoa.

do atraso de uma comunidade que viveu durante

muitas décadas isolada, como apregoam deduções

Essa comunidade onde o coletivo prevalece, é

rasas, essa conquista é fruto de uma opção políti-

povoada de existências singulares. O artista que

ca do seu povo. Fruto de um trabalho comunitá-

mora na cachoeira e instalou aos seus pés um

rio vigilante na regulação do turismo, para que os

atelier ao ar livre. O pescador autodidata que es-

forasteiros se integrem à cultura do meio, em vez

tudou até a quarta série, mas aos 80 anos decla-

de imporem a ela suas políticas de subjetividade.

ma os próprios versos e os de escritores famosos,

Para que empresários afoitos com as possibilida-

o Adão que fez o parto da maioria dos 11 filhos. A professora que ganha prêmio internacional com um projeto que aposta na relação entre a comunidade e a escola. O agente de saúde que aprofunda o conhecimento da medicina popular em vez de esmaga-la com a medicina ortodoxa. Em todas as personagens aqui evocadas, o interesse afetivo dos repórteres por essas sintaxes de vida traduz o desejo quase dramático

de

encontrar

na própria cidade, pequenas heterotopias. Longe de ser o lugar sem conflitos e sem incompletudes que

caracteri-

zam as utopias famosas, a Costa da Lagoa é uma ilha de felicidade social

dentro

de

um mundo infeliz. Nesse sentido, podemos dizer que a comunidade é quase um milagre.


EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul/Campus Pedra Branca Primeiro Ciclo de Aprendizagem Tecnologia e Produção Jornalística Professores Daniela Fachini Germman Daniel Signorelli Luciano Bitencourt Raquel Wandelli Reportagens e Fotografias Andreza Martins Candido Beatriz M. Wagner da Rocha Bruna Nicoletti Bruna Tomaselli Bruno Bach Albornoz Claudiany Wagner Schutz Cláudio Souza da Rosa Elio Quaresma Neto Fernando Silveira Gabriela Meira Guilherme Martins da Cunha Jéssica Daussen

Leidiane Sampaio Santos Luana Martendal Maiara dos Passos Nascimento Marcela Silva Teixeira Marcela Borba Marcelo Martins Natalia Santos de Pinho Rafaella G. de Moraes Sofia Mayer Dorner Thuani Regis Mendes Tiago Bento Vinícius Marinho Flausino Vitória Zardo Wellinton Skinner Farias Ysttéphani Jurak Sinhorini Foto da Capa e Contracapa Sofia Mayer Dorner Capa da Revista Bruno Bach Albornoz Coordenação de Editoração Bruno Bach Albornoz Vinícius Marinho Flausino Luciano Bitencourt


DE FRENTE PARA A

COSTA DA LAGOA SUMÁRIO 23 10 26 60 44 39 46 49 34 81 79 64 14 90 77 57 70 72 61 84 89 35 20

Personagem para um conto de Franklin Cascaes Segurança é não trancar a porta da frente A última benzedeira da Costa está doente Mãe, esposa, estudante e trabalhadora Jornalismo estreia na comunidade De Macau para a Costa da Lagoa Pescador nas férias e nas folgas Entre casa e escola, um menino Perspectivas distantes de casa Orgulho do lugar onde ela vive Uma ilha de muitos povos A jornada das marés Um líder carismático O pé de valsa da Costa Pequeno grande pescador Os segredos de viver na Costa Perfil de mulher, mãe natureza Lembranças do velho pescador Sonho de ser o craque da Costa A vida pelas mãos de um pescador O visitante que chega de helicóptero Naelzo, personagem de saberes legendários “Se amar fosse pecado, eu jamais seria inocente”

PERFIL


TRADIÇÃO

Benzedura pode estar com os dias contados Desigualdade no privilégio a forasteiros Histórias da Costa em “A Antropóloga” De barco ou internet, há navegação Taxa de ocupação ameaça nativos Comunidade: uma grande família Do engenho açoriano ao turismo Tradição e sonhos conciliados Tradição celebrada na vida A orquestra das rendeiras Uma comunidade política Cultura que desafia a lei Segredos da logevidade Cotidiano inspira a arte Do rádio à internet Cultura religiosa

25 88 92 74 33 59 41 30 50 18 80 82 21 38 67 36

A cachoeira da Costa Uma filosofia para morar Pelos caminhos da saúde Vidas ancoradas em barcos Caminhos do “Celeiro da Ilha” Moradia no deslizar das águas Turismo sem perder a identidade A vida que acontece o ano inteiro Girando com os ponteiros do sol Caminhos inusitados para o paraíso Convivência pacífica com os animais Consciência ecológica mobiliza comunidade Homem e natureza convivem em harmonia

52 56 66 78 68 53 62 47 86 13 54 16 28

MEIO AMBIENTE


PROD SONORAS Agricultura

Lendas

Vida

Seu Ad茫o

Dona Joana

Dona Vadinha

Hist贸rias de Pescador


UÇÕES AUDIOVISUAIS Cotidiano

Educação

Gravidez

Vida

Saúde e Bem estar

Pesca e Culinária

Patrimônio Histórico


SEGURANÇA É NÃO TRANCAR A PORTA DA FRENTE

As crianças brincam na rua e casas ficam abertas

POR MARCELLA BORBA

Uma ilha dentro de uma ilha. É assim

vez que a assistência policial demora

veio aqui pra roubar e a gente botou

que pode ser vista a Costa da Lagoa,

muito para chegar, a população cria

pra correr”, conta João Schmitt da Ro-

um bairro tranquilo, onde todos os

suas próprias estratégias para se

cha, nativo da Costa. Para o morador,

moradores se conhecem e todas as

defender do que consideram amea-

a vida comunitária e os laços familia-

famílias são amigas, dentro de uma

ças.

res são o que garantem a segurança

cidade movimentada como Florianó-

do bairro e a solução dos problemas

polis. A diferença começa no acesso.

quando eles surgem.

Na Costa da Lagoa não tem estradas para carros nem ônibus e só se chega a pé ou de barco. Dos 1.600 moradores, cerca de 80% são nativos, segundo informação dos próprios moradores, mas também há gente de várias outras cidades e estrangeiros que foram morar no local. Ainda é

“Essa tranquilidade é sinônimo de qualidade de vida”

A vida pacata da Costa é motivo de orgulho para os moradores e de atração para os turistas. As crianças podem brincar pelas redondezas à vontade, sem a preocupação dos pais quanto aos perigos comuns nos centros urbanos. “Aqui as crianças crescem sem traumas, sem aquele medo de já sair

hábito no bairro deixar a porta aberta e ir trabalhar. Dona Claudete, por

Quando alguém desembarca em um

na rua e ser assaltado ou até seques-

exemplo, conta que apenas encosta

dos vinte e quatro pontos de parada

trado”. Esse não é um ponto positivo

a porta da frente e segue a pé para

do barco, sempre tem um morador

apenas para os moradores. Muitos

sua pequena loja de roupa e artesa-

observando para saber se é conheci-

turistas são atraídos por esse motivo,

nato, que fica umas cinco casas de-

do ou se poderia apresentar alguma

e algumas vezes, acabam permane-

pois. Essa tranquilidade, é sinônimo

ameaça. Quando há algum conflito

cendo na Costa. A paz de caminhar

de qualidade de vida.

com pessoas “de fora”, a comunidade

sem medo pelo bairro, o conforto de

se mobiliza e quem não faz parte dela

ver as crianças brincando na rua e a

Mas não significa que eles não se

pode ser expulso do bairro e proibido

tranquilidade de não precisar trancar

preocupem com a segurança. Uma

de voltar. “Já teve caso de gente que

a porta de casa, formam esse lugar.

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Os moradores da Costa da Lagoa se orgulham do tipo de

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seguranรงa que tem Foto: Marcelo Martins


Um lugar inspirador que encanta atĂŠ mesmo aqueles

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que jĂĄ viveram outras realidades Foto: Bruno Bach Albornoz


CAMINHOS INUSITADOS PARA O PARAÍSO

Da Península Ibérica à Ilha de Santa Catarina

POR BRUNO BACH ALBORNOZ

No encontro de ruelas e na germina-

ção começou a melhorar. Segunda ela,

de última geração enquanto residen-

ção de residências vive uma mulher

os europeus não demonstram senti-

tes na Espanha, mas a beleza e a ma-

que, de tanto ver culturas e costumes

mento de união e são preconceituosos

gia da Ilha de Santa Catarina conquis-

diferentes, escolheu uma casa verde

com estrangeiros. “Se você precisar

taram seus corações.

de madeira morro acima, beirando a

de ajuda, ninguém vai te dar a mão”,

Costa da Lagoa, como recanto. O so-

conta ela, com olhar vago, preenchido

Em 2012, na primeira visita a Floria-

nho de muitos brasileiros de viajar e

de lembranças, para o céu claro porta

nópolis, Josiane teve a oportunidade

morar fora do país foi realidade para

afora.

de conhecer a Costa da Lagoa e se

Josiane Martins da Silva, de 34 anos,

encantou, conta ela com um sorriso

nascida na cidade de Itapeva, interior

Sua estada foi de curto período se

amplo no rosto, que reflete o gosto

de São Paulo. Em sua visita ao Brasil, a

comparada à próxima aventura. Após

de sua casa nova. O filho Daniel teve

tia, Claudeli, casada com um espanhol,

dois anos e três meses em Barcelona,

dificuldades na Escola Desdobrada

José, convidou-a a morar com ela na

Josiane foi para Galícia, comunida-

da Costa da Lagoa, destaque na edu-

Espanha. Como tinha apenas segundo

de autônoma espanhola situada no

cação pública. Por estar acostumado

grau incompleto em tempos econo-

noroeste da Península Ibérica, para

com o idioma castelhano, as professo-

micamente conturbados pela alta do

trabalhar em uma cafeteria chama-

ras não entendiam algumas palavras,

desemprego, o convite acendeu-lhe as

da Malakas a convite de uma amiga.

mas bastou alguns meses para que a

expectativas de uma mudança de vida.

Nessa cafeteria Josiane encontrou em

dificuldade ser vencida. “Pensei que

um colega de trabalho um parceiro

meu marido não fosse aguentar viver

O contraste cultural pesou na deci-

de vida e aventuras, Denilson da Con-

em um lugar tão quieto e isolado. O

são de batalhar por uma nova vida na

ceição, natural de Vila Velha, Espírito

barco foi uma surpresa pra ele. Na

Espanha ou utilizar sua passagem de

Santo, com quem residiu 12 anos na

vinda, ele só perguntava: ‘Quando a

volta no primeiro mês de estada. As-

Europa. Dessa união nasceu Daniel da

gente vai chegar?’”, brinca Josiane. O

sim como o português Dom Pedro I,

Conceição Martins, de sete anos, na-

marido não estava em casa na hora da

ela disse “fico”, e com o emprego de

turalizado espanhol. A família tinha

conversa, mas a vontade do casal é a

“camarera” (garçonete) em uma cafe-

dinheiro para sair quando desejasse.

mesma: continuar a viver na Costa da

teria brasileira em Barcelona, a situa-

Eles possuíam celulares e eletrônicos

Lagoa.

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UM LÍDER CARISMÁTICO

Jajá tem papel importante na comunidade

POR MARCELLA BORBA

Ele pertence a uma família que está

Tulio, por sua vez, sonha com uma

ção de desavenças internas e na inte-

há cinco gerações na Costa da Lagoa.

profissão totalmente fora da tradição

gração dos moradores, ele acaba por

Dono de um dos restaurantes mais

da comunidade: ser piloto de avião.

colaborar também para a manutenção da segurança local.

famosos da comunidade, o Sabor da Costa, ele mesmo se responsabiliza pela pesca dos peixes servidos no estabelecimento. Com poucos minutos de conversa, Djalma Naelzo Laureano, 43 anos, mais conhecido como Jajá, cativa pela simpatia e pelo poder de se comunicar, característica que não perde mesmo quando ocupado preparando “ao vivo” uma tainha assada na folha de bananeira em frente aos seus

Essa cultura amistosa evita a ocorrência de crimes por meio da autodefesa da comunidade

A criação desse ambiente favorável à vida comunitária serve para coibir a presença de estranhos mal-intencionados. Como ele afirma, a grande integração do povoado permite que todos se conheçam e ajam conjuntamente em casos de atitudes suspeitas na região. Essa cultura amistosa evita a ocorrência de crimes por meio da autodefesa da comunidade. Assim, ele

clientes. Ao exercer sua tarefa como líder paro-

exerce importante papel de porta-voz

Simpatia e convivialidade são caracte-

quial e dono do restaurante, Jajá pro-

e articulador da comunidade, colabo-

rísticas determinantes para um líder

move a união, o diálogo e a convivência

rando para promover um bom relacio-

da Paróquia da Igreja da Costa, car-

entre as pessoas. Visto como referência

namento entre os moradores. Afinal,

go que assumiu há dois anos. Djalma

por seu trabalho na Paróquia, ajuda a

sua personalidade comunicativa o

mostra gostar do seu dia a dia corrido

promover a importância da religião para

coloca em posição de destaque e per-

com o acúmulo de tantos afazeres. En-

a comunidade. Jajá é uma referência de

mite que seja um grande articulador

tretanto, essa rotina atrai apenas um

pai de família e amigo, sempre prestan-

dentro do bairro. Jajá traduz o amor

dos seus filhos, Alyson, que vê o pai

do serviços para quem precisa, missão

que sente pela Costa da Lagoa com

como um exemplo a seguir e o ajuda

na qual se sente reconhecido por todos.

uma simples frase: “Privilégio enorme

nas tarefas do dia a dia. O outro filho,

Com esse importante papel na resolu-

nascer nesta terra tão abençoada.”

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Responsabilidade grande: pescar e preparar os pratos no

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restaurante

Foto: Marcelo Martins


CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA MOBILIZA COMUNIDADE

Costa da Lagoa prioriza a preservação da cultura e do meio ambiente

POR MARIA EDUARDA HADDAD

A Costa da Lagoa, bairro da Lagoa

estrada, facilitando o acesso.

monio histórico-cultural, conforme o

da Conceição, é conhecida por suas

Decreto Municipal n.247/86. Uma ou-

belezas naturais, atrai turistas de

tra trilha para a Costa parte do Can-

todos os lugares do mundo em busca do segredo de como um bairro, colonizado por açorianos, consegue ser um dos únicos na cidade de Florianópolis que ainda mantém nítidos, no seu cotidiano, os costumes, a arquitetura e as ideias dos seus colonizadores. É uma comunidade tradicional que possui toda sua região zoneada como Área de Preservação Cultural.

Inúmeras leis de preservação mantêm a Costa, o mais próximo possível, do habitat original de mais de dois séculos.

to da Moreira, em Ratones, cruzando também a exuberante Mata Atlântica, num percurso de aproximadamente 90 min. Inúmeras leis de preservação mantêm a Costa, o mais próximo possível, do habitat original de mais de dois séculos. O Plano Diretor, estabelecido em 1987 pela prefeitura, nunca foi analisado diretamente pelos moradores, que, dessa forma, não participaram

O difícil acesso, de barco ou trilha, é

da demarcação das áreas de preser-

um dos fatores que ajudam a manter

vação. Mesmo com a elaboração de

viva a cultura açoriana, o que per-

A maioria dos moradores posicio-

um Plano Diretor Participativo de

mite que os residentes convivam, o

nou- se contra. O Caminho da Costa,

Florianópolis em 2006, as demandas

mais perto possível, com a realidade

como é conhecida a trilha, que come-

e necessidades da comunidade da

de antigamente. A população local

ça pelo Canto dos Araçás, medindo

Costa da Lagoa continuaram sendo

possui uma admirável consciência

cerca de oito quilômetros e com du-

ignoradas. Em 2008, a comunidade

ecológica. Certa vez a Prefeitura de

ração de cerca de 1h30min de cami-

concebeu um projeto de zoneamen-

Florianópolis realizou uma pesquisa

nhada, passando por um corredor de

to e o apresentou na Câmara De Ve-

para saber se os moradores gosta-

Mata Atlântica que margeia a Lagoa

readores, que também não foi levado

riam de transformar a trilha em uma

da Conceição, é definido como patri-

em conta. Já em 2012, mais uma vez

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Leis asseguram preservação, mas moradores nunca discutiram o Plano Diretor do município. (Foto: Maria Eduarda Haddad)

a prefeitura apresentou uma Propos-

monitoramento da estação detrata-

ta de Plano Diretor, e que ficou só no

mento de esgoto. A vistoria final, por

papel. A comunidade da Costa ainda

conta da Vigilância Sanitária Munici-

Algumas casas são consideradas pa-

tem como meta se integrar ao Progra-

pal, analisa eventuais prejuízos à La-

trimônios históricos, isto é, algo que

ma da Reserva da Biosfera ( Programa

goa da Conceição.

ficaria para sempre guardado na me-

internacional da UNESCO para preservação ambiental).

tros por corte de vegetação.

mória dos moradores, e poderia ser Mesmo sendo famosa por sua área

mostrado aos filhos como exemplo da

verde, coberta pela Mata Atlântica e

arquitetura dos colonizadores. Com o

A legislação proíbe a construção em

cercada pela Lagoa, a região da Cos-

passar do tempo, esses patrimônios

áreas de preservação, cabendo a

ta também está visivelmente tomada

precisam ser recuperados. O poder

fiscalização á prefeitura. Para comprar

por edificações irregulares; O diretor

público, infelizmente, não costuma li-

ou construir casas em áreas autoriza-

de fiscalização da Fundação munici-

berar as verbas necessárias para esta

das, precisa haver uma distância de

pal do Meio Ambiente (Floram), Bruno

finalidade, nem disponibiliza profis-

ao menos 30 metros da Lagoa, exi-

Palha informa que somente naquela

sionais habilitados para o trabalho.

gindo também um profissional espe-

localidade estão tramitando mais de

O impasse é uma ameaça a mais que

cializado legalmente habilitado como

110 processos por danos ambientais,

justifica o medo da comunidade de

responsável técnico pelo plano de

alguns por construção irregular, ou-

perder esse patrimônio para sempre.

17


A ORQUESTRA DAS RENDEIRAS

Tradição não cessa de desaparecer

POR NATALIA SANTOS DE PINHO

O cenário é um paraíso, com uma lagoa

motivação. A ex-rendeira Zinha France-

imensa de fundo, uma natureza cerca-

lina Albino, de 84 anos, por exemplo,

da de vegetação e árvores centenárias

alega que parou de fazer a renda por

Antigamente, segundo essas rendeiras

em volta e embalada pelo som do bilro.

falta de tempo e quando sobra uma fol-

mais antigas contam por experiência

Trazida pelos descendentes açorianos,

ga “é pra descansar”.

própria, a renda era admirada pelas

sentada horas a fio tecendo uma peça.

a prática da renda de bilro é muito co-

menininhas da Costa, que ficavam

mum na comunidade da Costa da La-

encantadas ao ver suas mães criando

goa, ou era. Essa parte da cultura açoriana transmitida de geração em geração, de mãe para filha, a cada ano vem perdendo força. O desinteresse das jovens traz a preocupação de que uma parte única da história seja perdida e só nos reste as lembranças do que foi a vida de uma rendeira.

“Quando eu era pequena [...] fiz o meu primeiro vestido. Até hoje não esqueço do desenho do vestido”

algo tão bonito. Seus olhinhos ficavam hiponitizados com a velocidade das mãos ágeis, com o movimento dos bilros e com a mágica de pontos e agulhas configurando as linhas em diferentes mosaicos e desenhos. Durante várias gerações essa visão alimentou curiosidade e desejo de aprender esse talento das mais velhas. Com os cabelos cinzas e simpatia con-

As jovens da comunidade têm outras

Outra dificuldade nesse aprendizado,

tagiante, Maria Rosa Filha Pereira, 67

ambições. Com a modernidade e com

segundo Maria da Cida Laureano, 57

anos, fala desse antigo fascínio com

o conhecimento crescendo a cada

anos, seria a dificuldade em aprender

todo o amor do mundo: “Quando eu

dia, elas não têm interesse em apren-

a renda que é muito delicada e exige

era pequena, sentava ao lado de minha

der a renda de bilro. Essas mulheres

tempo, paciência e esforço na execu-

mãe, fiz uns 15 metros o primeiro, aí a

estudam e trabalham cedo, quase

ção.As meninas querem sair da Costa e

moça que comprava levou e me trouxe

sempre fora da comunidade. Mesmo

abraçar o mundo, querem correr atrás

uma peça de pano e fiz o meu primeiro

as mais velhas perderam um pouco a

dos sonhos e não têm paciência de ficar

vestido. Até hoje não esqueço do de-

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O movimento dos bilros e a mágica de pontos e agulhas configuram linhas em diferentes mosaicos (Foto: Natalia Santos de Pinho)

senho do vestido”, ela conta com uma fala que se mistura ao som dos bilros no malabarismo das mãos que estão a todo o momento traçando pontos na peça de renda sobre a almofada. Segundo as rendeiras mais antigas, a renda se tornou também profissão por necessidade financeira. O aparecimento de outras atividades modernas mais lucrativas ou menos trabalhosas acabou se tornando outro motivo pelo qual as artesãs pararam com essa cultura. O que manterá a força dessa parte da cultura açoriana viva, o que manterá o som do bilro na casa dessas mulheres é a vontade de continuar fazendo o que mais sabem. É a esperança de que a tradição nunca se acabará e a vontade de ensinar para outras menininhas curiosas, assim como elas um dia foram.

Curiosa quando menina, hoje Dona Maria esbanja talento. (Foto: Natalia Santos de Pinho)

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“SE AMAR FOSSE PECADO, EU JAMAIS SERIA INOCENTE”

Dona Maria tece os sonhos na almofada

POR NATALIA SANTOS DE PINHO

A cena se desenrola no deque de uma

combinar o que sempre gostou de fa-

amor que sente pelas pessoas: “Se

casa com o gramado aparado sob a

zer com o trabalho, que se tornou sua

amar fosse pecado, eu jamais seria

vista de uma lagoa imensa e um pôr

fonte financeira. Para Maria, rendeira

inocente”.

de sol inigualável. Foi nessa paisagem

mesmo é aquela que ainda faz a ren-

que conheci Maria Rosa Filha Pereira

da e tem todos os seus projetos guar-

Quando pergunto se tem algum so-

(faz questão de dizer que só aderiu ao

dados, o que ela de fato mostra com

nho, pensa em poder ajudar todos os

nome do marido depois de 34 anos

muito orgulho. Ela comentou inclusi-

filhos. Não sabe se vai morrer com ele,

de casados), que vai completar em

ve que está animada com um curso

mas tem a esperança de que se torne

breve 67 anos. Rendeira e mãe coruja,

de renda de bilro que está fazendo no

realidade porque “apesar de aconte-

me atendeu com o rosto sorridente e

Rio Vermelho, onde também ajuda a

cerem coisas ruins, sempre aconte-

os olhos brilhando.

professora com base nos seus muitos

cem as coisas boas”. Apegada a Deus,

anos de experiência. Alimenta a es-

conta que tem um lugar guardado

Cabelos grisalhos amarrados, vestido

perança de que cada vez mais outras

no céu, pois acredita que colhemos o

florido e riso frouxo quando conta a

mulheres se interessem em manter a

que plantamos e ela se esforça para

própria história, Dona Maria nasceu na

tradição viva.

plantar sementes boas e no futuro colher somente frutos bons.

Praia do Sul, na Costa da Lagoa e aos 12 anos se mudou para o Rio Verme-

Ela se emociona ao falar da infância

lho com a família, mas retornou tem-

difícil que teve e diz que se sente

Durante toda a conversa, com o som

pos depois. Pergunto por que decidiu

hoje uma guerreira, ainda mais por

do bilro ao fundo, Maria não deixou

voltar. “Nasci na Costa e quero morrer

ter criado tão bem todos os filhos.

a peça de renda de lado. As mãos in-

aqui”. Menina curiosa que era, come-

“Eles me dão muito orgulho”, diz ela,

cansáveis, com a aliança de casamen-

çou a fazer renda de bilro aos sete

que afirma ser uma mãe coruja e fica

to apertada e o relógio no pulso, con-

anos. Postava-se ao lado da mãe e in-

sem palavras ao falar do amor que

tinuaram rápidas e ágeis, traçando

sistia para que lhe ensinasse a prática.

sente pelos filhos, netos e por todos

caminhos, ligando pontos, transfor-

que conhece. Conta que guarda sem-

mando a renda em desenhos impre-

pre uma frase para tentar explicar o

visíveis.

Prosseguindo na atividade, conseguiu

20


SEGREDOS DA LONGEVIDADE

Uso de ervas medicinais ainda é forte

POR SOFIA MAYER DöRNER

Em meio ao crescente ceticismo que

nho, Dedeco elogia o posto de saúde

bi que existia um hiato e uma descons-

tem comandado a cabeça de boa par-

da comunidade e consulta o médico

trução do meu saber anterior sobre

te da população desde a Idade Moder-

quando a situação aperta. Segundo

plantas”, afirma o médico, que, ao en-

na, parece loucura acreditar que, em

reclama, tem sido difícil o cultivo dos

trar na Costa chegou a ser confundido

um cantinho da Ilha de Santa Catarina,

chás na Costa da Lagoa, porque muita

com um hippie, por causa dos cabelos

hábitos primitivos e naturais em rela-

gente ao passar pelos arredores acaba

longos. Devido ao engajamento com

ção ao cuidado da saúde ainda sejam

levando as plantas para casa. “Não dá

a pesquisa da medicina natural e ao

preservados. Embora tenha sofrido

pra plantar, roubam tudo!”, diz o mo-

prestígio que conquistou com o traba-

influência de métodos modernos para

rador ilhéu.

lho na comunidade, ele é, ainda hoje, procurado pelos corredores no posto

o cuidado do corpo e da alma, a Costa da Lagoa é considerada, ainda, um

Ao conversar com os habitantes acerca

de saúde do Rio Tavares, onde trabalha

exemplo em destaque da medicina na-

do tratamento de doenças com ervas,

no momento.

tural e de uma boa longevidade.

um nome sempre mencionado era o de César Simionato, médico que aten-

Segundo pesquisas, a Costa da Lagoa

Melissa, poejo, feijão guandu e bol-

deu no posto de saúde da Costa da

tem um dos maiores índices de longe-

do. Essas são algumas das plantas que

Lagoa por cerca de 15 anos. Um sim-

vidade dos habitantes. César acredita

Manuel Zé Pereira, 78 anos, conhecido

ples questionamento — e uma respos-

que essa liderança não se deve so-

pelos vizinhos como Dedeco, exibe

ta ainda mais simplória — fez o doutor

mente ao fato de os moradores usa-

com orgulho no quintal de sua casa.

se tornar um autodidata em medicina

rem medicamentos naturais, mas à

Homem de fala rápida, típica de quem

natural. Quando no início da carreira

forma como encaram as complicações

nasceu e viveu por muito tempo em

perguntou o que uma moradora usava

na vida diária. Muitas doenças, para

Florianópolis, tem na ponta da língua

para tratar a tosse, recebeu uma res-

ele, como a pressão alta e a depres-

as funções de cada uma das ervas, que

posta que o deixou intrigado: flor de

são — comumente diagnosticadas nes-

vão desde o tratamento para dor no

mamão macho. “Nada nos meus livros

te século — não são doenças de fato,

estômago a um alívio de coceira na

de medicina falava dessa erva como

mas males provenientes da grande

pele. Embora não dispense um chazi-

remédio para tosse. A partir daí, perce-

corporação que vende medicamentos.

21


Cesar cultivava plantas na Costa da Lagoa como forma de incentivar a população à medicação natural. (Foto: Sofia Mayer Dörner)

Em geral, no período em que o médi-

para procurar comida nas casas), o re-

camentos modernos. “A gente precisa

co realizou seu ofício, as pessoas da

canto é um convite para se levar uma

acompanhá-los, porque não adianta

comunidade tratavam essas angústias

vida mais leve. Embora guarde resquí-

tomar um medicamento se eles não

com chá da folha da laranjeira ou ape-

cios do que foi um dia, o hábito de

verificam a pressão a fim de saber se a

nas com água e açúcar. Não existia a

tratar e prevenir doenças apenas com

substância é realmente indicada”, pon-

ideia de que um choro significasse um

ervas naturais tem perdido a força. A

dera uma das profissionais que atende

motivo para ser tachado de deprimido.

mudança de comportamento se deve,

os moradores, Charlene Duarte.

Cesar, no entanto, não gosta de fazer a

principalmente, à introdução de há-

contraposição entre os remédios natu-

bitos da cidade moderna: se antes a

O que salta aos olhos na Costa da La-

rais e os fabricados: “De vez em quan-

Costa da Lagoa formava uma socieda-

goa é a força da crença. Mesmo que a

do a gente usa um remédio de síntese

de mais fechada, hoje dispõe de linha

ideia de se medicar por conta própria

que é bom também; eu falo é do uso

regular de barco, celular e internet.

não seja mais a única opção — e o povo, em sua maioria, de fato, está aberto

excessivo e da criação de doenças que, na verdade, não existem. Eles não ti-

O posto de saúde, hoje totalmente

a novas ideias — há uma ciência nas

nham esse problema, hoje eles têm,

revitalizado, não mantém a mesma fi-

próprias convicções dos que lá vivem.

claro”.

losofia de anos atrás. A visita de agen-

Quando eles tomam um chá receitado

tes de saúde nas casas da comunida-

há várias gerações para ficar tranquilos,

Rodeado de plantas, paisagens encan-

de para prestar orientações, medir

por exemplo, eles, de fato, ficam. Eles

tadoras e animais (inclusive os saguis

a pressão arterial e fazer as vacinas

acreditam. Essa fé, por fim, tão rara e

traquinas, que descem das árvores

necessárias incentivou o uso de medi-

curadora, não pode ser perdida.

22


PERSONAGEM PARA UM CONTO DE FRANKLIN CASCAES

“Acho que existe muita fé porque as pessoas ficam boas. Por isso acredito”

POR SOFIA MAYER DöRNER

Acredito cegamente que nada aconte-

e, ao mesmo tempo, rico em experiên-

ce por acaso. Era domingo, alguns es-

cias e crenças.

lesterol. Em tom de lamúria, a aposentada me

tudantes já haviam ido embora, outros empacotavam os seus pertences e eu

Sentada à mesa, observo a mulher que

disse não poder tomar o chá de sete san-

sonhava com o chuveiro de casa, cren-

se encontra na minha frente. A entre-

grias, embora a mãe fizesse uso constan-

te de que já estava com todo o trabalho

vista foi precedida por um momento de

te. Tudo bem que ela nem tem colesterol

de pautas finalizado. Engano meu. Um

reconhecimento mútuo, uma recíproca

alto, mas diz que a planta, áspera, pare-

imprevisto, nos 45 do segundo tempo,

troca de olhares que é a linha tênue da

ce espetar a garganta. O fato, para ela,

me fez seguir por uma pequena trilha e,

conquista de confiança ou do esquivo.

é algo tão misterioso e intrigante que

literalmente, bater na porta da casa de

Depois de algumas experiências no bair-

despertou também a minha curiosida-

Dona Leka.

ro, tive a certeza de que essa senhora de

de: — “Quando eu tomava o chá, parecia

pensamentos reservados teria muito

que eu ficava com dor no corpo!” — O

para compartilhar.

enigma chamou tanta atenção que até

Marina Leandra Goés, de 63 anos, ca-

o antigo médico da comunidade, César

sada, mãe de quatro filhos, foi a última pessoa que conheci na jornada pela

Um chá de manhã, no meio dia e à noi-

Simionato, foi em busca de resposta do

Costa da Lagoa. Ela, que sempre morou

te. É assim o ritual de Marina quando a

motivo de ela não poder tomar o chazi-

na mansa comunidade, recebeu-me, na-

saúde resolve pregar umas peças. Juran-

nho.Lembro, então, de Franklin Cascaes,

quela tarde, em sua cozinha. Seu sem-

do não saber o motivo do apelido, Leka,

que nos contos de “O fantástico na Ilha

blante confuso — justificável quando se

acredita fielmente no poder das ervas e,

de Santa Catarina” falava de ervas em

tem dois intrusos dentro de sua casa às

sempre que possível, faz a sua própria

benzeduras. Perguntei se ela teria algum

13 horas de um dia de descanso — atra-

medicação. Nas falas, intercala histórias

caso interessante para contar.

sou o desdobramento de uma conversa

da família com receitas de chás, assim

natural. Não foi preciso muito tempo,

que elas vêm à memória: chá de louro,

- O meu filho mais velho, José Nilton, es-

porém, para aquele cômodo passar a ser

por exemplo, é bom para labirintite e

teve no hospital por dez dias, com diar-

palco de risadas fáceis e de contos de

para dor de estômago; de alecrim, bom

reia e vômito. Quando teve alta, levei à

um cotidiano manezinho típico: singelo

para acalmar, e sete sangrias, para o co-

senhorinha que mora na Barra da Lagoa.

23


Ela o benzeu três vezes. Ficou bom de

ressa ainda por outro motivo: embora

houve uma mudança de hábitos em re-

arca caída. Tinha saído do hospital para

cultivasse costumes dos antigos habi-

lação ao modelo de medicação na Costa

morrer.

tantes da ilha, tinha hábitos, digamos,

nos últimos tempos. A cultura, em todos

de vanguarda. Chegou a fazer ginástica

os lugares, está cada vez mais homoge-

Ao relatar algumas de suas experiências,

no postinho de saúde do local e, até, em

neizada, e isso se reflete nas práticas dos

Leka falou algo sobre sua convicção nos

bairros mais movimentados, como o Ita-

moradores. Com pesar, me diz que nem

métodos naturais que me fez pensar:

corubi, onde um dos filhos mora. Parou

os netos tomam mais chá, apesar da re-

“Acho que existe muita fé porque as pes-

de se exercitar, porém, por conta de um

comendação que faz às mães.

soas ficam boas. Por isso acredito.” A mu-

problema no joelho e tudo quanto é do-

lher que estava sentada à minha frente,

ença, segundo ela, começou a aparecer

A conversa gerou uma visível nostalgia:

narrando histórias de sua vida para dois

desde então: problemas no coração, va-

histórias de família relembradas e his-

desconhecidos, é o tipo de gente que

rizes…

tórias presentes refletidas. A cada fala,

inspiraria o bruxo da Ilha, Franklin Cas-

era comum um período de silêncio, em

caes, a compor um de seus causos e

Engana-se quem pensa que a serenida-

que dona Leka parecia viajar na própria

contos. Nos olhos dessa gente simples,

de de Dona Leka se deve somente à be-

memória. Se Franklin Cascaes estivesse

vi uma fé capaz de superar qualquer

leza natural do recinto. É bem verdade

vivo, provavelmente adaptaria seus con-

avanço tecnológico da medicina ou de

que o local, cercado de árvores, plantas

tos às diversidades modernas do mun-

superar remédio de médico, como diz a

e cheirinho de mar é um convite à paz

do ilhéu de hoje. E essa manezinha, com

ilhoa. Fé de mãe que viu o seu filho ser

de espírito, mas não é só isso. Contou-

suas histórias de benzeduras, de medi-

curado não tem limites.

me que fez, durante três anos, medita-

cação com chás e de envolvimento com

ção na escola da comunidade.

a arte da ioga, seria, com certeza, uma

Dona Leka, entretanto, lamenta que

personagem digna da literatura.

Aquela mulher de fala rápida me inte-

Marina Leandra Goés, também conhecida como “Dona Leka” (Foto: Sofia Mayer Dörner)

24


BENZEDURA PODE ESTAR COM OS DIAS CONTADOS

A tradição se mantém viva na Costa graças a Dona Joana

POR Thuani Regis Mendes

Muitas pessoas procuram as benze-

problemas de saúde, a idosa garante

estão acertando com a gente, não tá

deiras alegando que os médicos não

que só faz o bem às pessoas e traba-

fazendo bem, se a gente vai na ben-

conseguem dar um diagnóstico cor-

lha por amor, sem cobrar.

zedeira, benze a gente fica bom”. Geralmente a benzedura é feita com

reto. Arca caída, mau-olhado, quebranto e cobreiro são os principais

Tradição forte em Florianópolis, prin-

alguma erva, como folhas de laranja

problemas tratados pelas mulheres

cipalmente nas Comunidades do Ri-

ou limão, acompanhada do santinho

que cultuam essa tradição.

beirão da Ilha, Ratones, Pântano do

com a imagem de Jesus Cristo.

Sul e Costa da Lagoa, a benzedura é Em busca de benzedeiras na Costa da

uma questão de crença. Para dar cer-

Mas até quando essa prática vai per-

Lagoa, em Florianópolis, encontrei

to, precisa acreditar no que está sen-

durar? As novas gerações não querem

Vaudelina Felomena Laureano (dona

do feito.

saber de aprender os rituais e, por isso, as benzedeiras vão sumindo. A

Vadinha), moradora da comunidade, que por sua vez indicou dona Joana

- Já foi falado por um casal que veio

cura através das ervas e de uma boa

Rita Bernardes, a última curandeira

aqui do Rio, e o marido disse: “O que

dose de fé sempre foi um mistério

da região. Aos 83 anos, e sofrendo de

há dona Joana, agora os médicos não

que a medicina procura ignorar.

No caminho da cachoeira podemos encontrar um pouco da crença da comunidade da Costa. (Foto: Mateus Bianchini)

25


A última benzedeira da Costa está doente

Aos 83 aos, Dona Joana sofre com os problemas de saúde

POR Thuani Regis Mendes

Joana Rita Bernardes, mais conhe-

nhecido como “Zé Tainha”, fez uma

médico disse que ele teria que quei-

cida como dona Joana, 83 anos, é a

entrevista com ela. “O Zé Tainha

mar uma veia, mas a mãe não teve

única benzedeira da Costa da Lagoa

veio aqui na Costa, fez a entrevista

coragem e a procurou. Então dona

hoje. Manezinha desde nascença,

comigo, aí o pessoal viu na televisão

Joana benzeu:

cresceu e vive na Costa até hoje. Lu-

e vieram me procurar.”

gar bom de se morar, calmo e silen-

- São Lucas, São Mateus, vou afu-

cioso, mas que hoje está mudando:

gentar capim santo seu, São Lucas

“Agora já não é como antes, porque antes não tinham pessoas de fora, estranhas. Agora a gente já tem mais medo, podem fazer mal a gente, mas graças a Deus está cheio de gente de fora aí e nunca fizeram mal nenhum, com a graça de Jesus.” Hoje, com nove filhos, conta que até pediram para que ela parasse de benzer, para não se estressar ou

Dona Joana encontra na reza uma maneira de fazer o que mais gosta: o bem para as pessoas

cortava, São Mateus benzeu; Ô sangue, assossega em ti como o Senhor Jesus Cristo assossegou em si; Ô sangue, assossega na veia como o Senhor Jesus Cristo assossegou na ceia; Ô sangue assossega no corpo como o Senhor Jesus Cristo assossegou no outro. Essa prece que eu fiz tá entregue a Jesus que sara o corpo de (daí a gente diz o nome da pessoa né, Manoel, do Antônio).

se cansar. Mas não adiantou porque

Em nome de Deus da virgem Maria

ela encontra na reza uma maneira

e amém.

de fazer o que mais gosta: o bem

Muito procurada também por pesso-

para as pessoas. Quando era nova,

as de outros estados, como Rio de

Logo o sangue estancou e o vizinho

já sabia benzer. Às vezes cuidava de

Janeiro e São Paulo, dona Joana é

ficou bom. Aos 83 anos, e sofrendo

algumas crianças doentes, e então

uma senhora muito humilde e queri-

com problemas de saúde gerais e

elas melhoravam. Mas mergulhou

da por todos. Ela conta também que

dor nas costas, Joana é a última es-

mesmo nessa prática depois que o

já curou uma hemorragia no nariz

perança da comunidade para man-

comunicador Eduardo Bolina, co-

de um morador da comunidade. O

ter viva a tradição da cura.

26


“Zé Tainha veio aqui, fez a entrevista, o pessoal viu e vieram

27

me procurar.”

Foto: Sofia Mayer Dörner


HOMEM E NATUREZA CONVIVEM EM HARMONIA

Sustento vem da conscientização e preservação

POR TIAGO BENTO

O Escorpião surge ao crepúsculo. É o

passando o recado de que ali lugar de

barco que faz a coleta dos resíduos da

lixo é no lixo.

Com o passar dos tempos, a mudança foi inevitável, como conta Savas Naelzo

Costa da Lagoa. O barqueiro desata os nós do trapiche para sair em mais uma

Com o início da coleta pública em me-

Laureano. “Após esse processo de in-

noite de oficio. Ele faz esse trajeto ao

ados de 1991, vieram também outros

dustrialização, também começamos a

menos quatro vezes na semana. Cor-

cuidados no sentido de preservar o

gerar muito lixo, mas a coleta municipal

tando as águas às margens do povoa-

meio ambiente: nos 23 trapiches ao

chegou, graças a Deus, pois não tínha-

do, a vegetação se mescla com os te-

longo da Costa foram instaladas lixeiras

mos a cultura de retirar os resíduos do

lhados das construções, que remetem

que dão a possibilidade de os turistas

lugar. Se não fosse a coleta, a Costa não

à colonização açoriana, descaracteriza-

se livrarem de pequenas quantidades

seria preservada como é hoje”, explica.

das gradativamente com o levantar das

de resíduos para não descartá-las nas

novas edificações.

trilhas.

Em um mundo onde o avanço da urbanização deixa rastro de degradação do

As belezas da Costa da Lagoa são mes-

Ao que parece funciona, pois as ruas e

próprio ambiente onde se habita, mui-

mo admiráveis. Nesse meio ambiente, o

vielas que cortam o povoado têm um

tos bares, restaurantes, hotéis e resi-

homem e a natureza convivem em har-

aspecto simples e limpo, que dá um ar

dências ainda jogam o óleo utilizado na

monia, e surpreendentemente dá cer-

de cooperação entre o meio ambiente

cozinha direto na rede de esgoto, des-

to. Com moradores conscientes de que

e as pessoas que vivem na localidade.

conhecendo os prejuízos dessa ação. O produto prejudica o solo, a água, o ar

seu sustento depende da preservação ambiental, fazem o papel junto com

Antes de a coleta de resíduos do muni-

e a vida de muitos animais, inclusive o

o poder público de passar as lições de

cípio atender aos moradores, não havia

homem. Mas a comunidade foge desse

respeitar a natureza da Costa. Os mora-

tanta preocupação. Na época, cerca de

péssimo hábito com boas práticas de

dores e turistas recebem essa mensa-

90% dos alimentos consumidos eram

destinação correta do lixo.

gem de muitas formas, seja nas placas

produzidos pela própria comunidade,

das trilhas ou até mesmo com as “boas

sem necessidade de embalagens, co-

Os índices de saneamento mostram

vindas” de um local limpo e preservado,

muns aos produtos industrializados.

que a Costa está no caminho certo para

28


preservar a harmonia com o meio am-

rantes são encaminhados a ACIF, de

na comunidade o maior percentual de

biente, resultado da consciência dos

onde é destinado para confecção de

ligações regulares (59,3%). acima da

moradores que querem “manter tudo

produtos como o óleo é a matéria

média do município que é de (50,7%).

como era no tempo dos nossos avós”.

prima, evitando que o óleo seja descar-

O programa é uma parceria entrePre-

Alguns exemplos dessa consciência

tado de maneira imprópria.

feitura Municipal de Florianópolis e a CASAN que tem por objetivo a regula-

merecem destaque: 100% do óleo descartado pelos restau-

A Costa da Lagoa foi destaque no pro-

rização das ligações prediais de água

grama Se Liga na Rede, que encontrou

pluvial e esgoto sanitário.

Escorpião, barco de coleta de lixo, vai à Costa ao menos

29

quatro vezes por semana Foto: Tiago Bento


TRADIÇÃO E SONHOS CONCILIADOS

Jovens desejam mudar os horizontes na comunidade

POR VINÍCIUS MARINHO FLAUSINO

Ser acordado pelo barulho do mar,

sidão do oceano, com a perspectiva de

trabalho deles? A preocupação de pai

ter a oportunidade de ver os peixes

juntar o suado dinheiro para poder dar

traz à tona a tendência de seus filhos

pulando na lagoa e poder apreciar o

uma vida digna à família.

partirem para outra atividade. Tulio, fi-

silêncio da mata fazem parte do dia

lho do pescador Jajá, não quer viver da

a dia do pescador da Costa. Mas hou-

Por intermédio da cultura pesqueira, a

tarrafa “porque é muito trabalho pra

ve um tempo em que isso ficou só na

Costa da Lagoa se desenvolveu de tal

pouco retorno e muito cansaço tam-

lembrança. Tudo estava tão longe, a

forma que possibilitou a profissiona-

bém”, diz. Nem todos seguem o dita-

família estava viva na memória e a sau-

lização e a regularização da atividade

do “filho de peixe, peixinho é”. Alguns

dade batia cada vez mais forte, de tal

na região, eliminando a necessidade

preferem não repetir a profissão do pai

modo que o pensamento de derrota

de se afastar de casa por longos dias

para não viver as mesmas dificuldades.

vinha à tona.

para buscar sustento. A criação de restaurantes especializados em frutos do

Por esses motivos, a preocupação não

A preocupação de pôr o alimento na

mar também contribuiu para trazer de

está mais tão voltada à manutenção

mesa e educar os filhos, contudo, era

volta a terra o pescador que trabalha-

da cultura, mas sim ao futuro promis-

maior que a possível desistência. E

va em alto mar.

sor que os jovens podem ter, fazendo

assim continuava sua jornada de em-

o que gostam, sem a obrigação de sus-

barcado, como se chamava o pescador

Hoje, são mais de dez restaurantes em

tentar a casa ou ajudar nas contas. Os

que ia trabalhar em alto mar como

toda a Costa da Lagoa que atraem mui-

pais preferem que os filhos conheçam o

tripulante de barcos de empresas pes-

tos turistas para a região, mesmo num

mundo e estudem para que a realidade

queiras. “A última vez que eu estava

lugar onde só se chega de barco ou por

mude, para que tenham a oportunida-

embarcado, eu fiquei mais de cinco

trilha. Hoje, os recursos para manter os

de de dar passos maiores. É o caso de

meses fora. A gente ficava 22 dias e

filhos em uma boa faculdade vêm dos

Tulio Djalma Laureano, 17 anos, filho de

voltava, ficava uma semana em casa

ganhos na própria comunidade.

Simone e Djalma, moradores da região.

e ia de novo”, diz Valter Miguel de An-

Em vez de seguir a profissão do pai, seu

drade, 63 anos. Era essa a rotina de um

O cenário é de crescimento, mas uma

maior desejo é se tornar piloto, e estan-

pescador da Costa: se afastar da famí-

pergunta paira na mente dos pesca-

do nos ares, quer ver as embarcações

lia e passar dias ou até meses na imen-

dores: será que os filhos continuarão o

na imensidão do oceano lá de cima.

30


Filhos de pescadores mantêm distante a perspectiva de

31

continuar a tradição Foto: Guilherme Martins da Cunha


Mesmo estando em um lugar preservado, moradores sofrem

32

com legislação inadequada Foto: Wellinton da Silva Farias


TAXA DE OCUPAÇÃO AMEAÇA NATIVOS

Cobrança de 5% por edificação contraria moradores

POR WELLINTON DA SILVA FARIAS

Bom é viver em um lugar onde os índi-

porque nossa cultura é essa, vivemos

para os barcos. A nossa calçada na Costa

ces de violência, furtos ou qualquer ou-

da pesca e aqui estamos presentes há

da Lagoa são os deques e os trapiches

tro crime são praticamente nulos. Onde

várias gerações. A legislação ambiental

que são essenciais para o deslocamento

os moradores podem deixar as casas

não permite que façamos melhorias ou

dentro da costa, complementa Savas.

abertas quando saem e ainda desfrutar

novas construções e não entende que

de uma das mais belas paisagens de Flo-

iremos ocupar o mínimo de área, apenas

Em entrevista ao jornal Notícias do Dia,

rianópolis. Esse lugar é a Costa da Lagoa,

para subsistência, comenta Savas Laure-

o engenheiro cartógrafo Obéde Pereira

um dos bairros que melhor preservou a

ano, morador tradicional do bairro.

Lima disse considerar o método presumido de demarcação da SPU (Secretaria

cultura açoriana ao longo dos séculos na A taxa deve ser cobrada de todas as

do Patrimônio da União) “equivocado,

edificações que estejam na faixa de 33

impróprio, inadmissível e ilegal”. Djalma

Por ser reconhecido como comunidade

metros ao longo da costa da Lagoa da

Naelzo, morador nativo da Costa da la-

tradicional, o lugar dá direito de ocupa-

Conceição. Além disso, todas as obras de

goa, comenta que a população sente-se

ção aos moradores nativos. Em seu con-

melhoria ou novas construções devem

abandonada pelos poderes públicos.

junto, eles ocupam apenas 2% de todo

ser realizadas mediante autorização da

o território de mata atlântica preservada

SUSP (Secretaria de Urbanismo e Servi-

A principal reivindicação da comuni-

que integra o recanto. Porém, a cobran-

ços Públicos de Florianópolis).

dade é que os órgãos ambientais e po-

Ilha de Santa Catarina.

líticos tenham mais sensibilidade com

ça de uma taxa anual de 5% sobre o valor de cada edificação tem causado uma

- Já tivemos vários casos de demolição;

os moradores que sofrem uma pressão

grande e negativa repercussão entre os

meu pai, por exemplo, fez uma melhoria

constante com a possibilidade de desa-

habitantes.

no restaurante, construiu um deque, e

propriação e a burocracia legal. Ela não

tivemos que demolir. Foi tempo perdi-

só impede novas construções, como

- Isso vai sobrecarregar nossa realidade,

do. O deque se fazia necessário porque

ameaça apreservação da cultura tradi-

pois o IPTU já é caro e essa taxa nos pa-

nosso ambiente é externo, é o atrativo

cional. As novas gerações podem não

rece desnecessária. Não queremos mo-

para os clientes dos nossos restauran-

encontrar espaço para permanecer na

rar aqui por ser um lugar agradável, mas

tes e, além disso, serve como atracador

Costa da Lagoa.

33


PERSPECTIVAS DISTANTES DE CASA

Dificuldades afastam os jovens da pesca

POR VINÍCIUS MARINHO FLAUSINO

As dificuldades de uma vida notur-

sui o restaurante Sabor da Costa, de

cordam com a afirmação e dão total

na, silenciosa, que depende da épo-

onde tiram o sustento.

apoio à decisão dos filhos, mesmo

ca e o serviço árduo de um pescador

que a profissão escolhida os leve

que ganha o necessário, são os mo-

para longe de casa. Djalma conta,

tivos que afastam muitos jovens da

descontraído, uma brincadeira que

pesca, como Tulio Djalma Laureano,

Tulio faz com Alyson, o irmão mais

17 anos. Tulio iniciou seus estudos na Escola Desdobrada da Costa da Lagoa, de onde não queria ter saído. Mas a falta de continuação do ensino , a escola vai até o quinto ano aoenas, levou o jovem para o outro lado da Lagoa, onde concluiu o ensino médio. Sonhando estar nos ares, so-

Sonhando estar nos ares, sobrevoando as nuvens, o jovem não pretende lançar rede ao mar

velho quando vai pescar com o pai. “Vai lá fazer esforço vai. Amanhã vou passar por cima aí pra ver vocês”. Já na infância, o jovem olhava para o céu imaginando-se dentro de um helicóptero. Djalma afirma que apoia a decisão do caçula. “Que bom que ele realize esse sonho, a gente tá lutando e trabalhando pra isso.”

brevoando as nuvens, o jovem não

Mesmo sabendo que a pesca foi o

pretende lançar rede ao mar. “Meu

sustento da família durante anos, o

plano profissional é estudar pra ser

anseio de estar nas nuvens conquisFilho da terceira geração de pesca-

ta o coração de Tulio. Ele se orgu-

dores, Tulio conta que o pai, Djalma

lha de todo o esforço que o pai faz.

Sua infância foi tranquila. Desde

Naelzo Laureano, trabalha muito e

Mas não se imagina na pesca, “já

muito cedo o pai passava longos

tem pouco retorno. “O pai conquis-

fui pescar uma vez mas não gosto”,

dias em alto mar pescando, mas ele

tou bastante coisa, mas o cara fa-

comenta. E mesmo que seja forte o

não lembra dessa época, quando ti-

zendo uma faculdade vai ganhar mil

desejo de estar perto da família, “sei

nha cinco anos. Hoje, a família pos-

vezes mais”, diz. O pai e o avô con-

lá, sonho é sonho né”.

piloto de helicóptero”.

34


NAELZO, PERSONAGEM DE SABERES LEGENDÁRIOS

Leis de preservação ambiental arriscaram fonte de renda familiar

POR WELLINTON DA SILVA FARIAS

Em meio a um dos mais belos cená-

biental e regularização dos terrenos

Apesar de todo impasse com as novas

rios da Ilha de Santa Catarina encon-

de Marinha a demolir o trapiche, Na-

leis e o descontentamento com as ex-

tra-se um personagem de saberes le-

elzo acabou arriscando a fonte de sus-

periências passadas, o que não falta

gendários. Marcado em sua veia pela

tento de sua família. “Foi uma grande

em Naelzo é disposição para contri-

tradição açoriana, Naelzo Brasiliano

surpresa pra mim e uma das maiores

buir com a melhoria das condições de

Laureano, 66 anos, nascido e criado

dificuldades que enfrentei na vida.

vida no lugar onde cresceu. A chave

na Costa da Lagoa, detém muito co-

Sem poder realizar reformas ou novas

para o otimismo está em um belo sor-

nhecimento sobre a cultura da pesca.

construções, todos os moradores so-

riso e no suor da luta de cada dia.

Ali onde vive constituiu família, teve

frem com a falta de sensibilidade dos

três filhos, e hoje trabalha no deslo-

poderes públicos”, comenta. A fisca-

camento de moradores e turistas até

lização ficou mais rígida nos últimos

a Costa da Lagoa com a Cooperbarco.

anos, quando a Secretaria do Patrimônio da União decidiu impor limites ao

Naelzo tem um perfil empreendedor

avanço urbano além de cobrar taxas

e já foi dono de restaurante. Hoje é o

de ocupação dos moradores. Hoje,

filho quem dá continuidade no traba-

várias famílias como a de Naelzo sen-

lho. Aliado aos saborosos pratos típi-

tem-se ameaçadas.

cos do pescado, o que sempre contribuiu para manter uma boa clientela foram os deques, que além de servirem de parada para os turistas apreciarem a paisagem e a gastronomia, são o que podemos chamar de “calçada” em toda orla da costa da Lagoa da Conceição. Forçado pelas leis de preservação am-

Hoje, várias famílias como a de Naelzo sentem-se ameaçadas

Perfil empreendedor, montou restaurante que hoje fica a cargo do filho. (Foto: Wellinton da Silva Farias)

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CULTURA RELIGIOSA

A cada ano cai o interesse de jovens e crianças pela religião

POR GUILHERME MARTINS DA CUNHA

Na Costa da Lagoa, restaurantes, ran-

Pão por Deus são algumas das contri-

moradores são os donos dos 14 es-

chos, decks e barcos dividem o es-

buições culturais que a religião traz

tabelecimentos espalhados pela co-

paço à beira da Lagoa da Conceição.

para a comunidade. Mas há alguns

munidade e, porque os restaurantes

Atrás do Ponto 16, uma das paradas

anos a igreja anda vazia.

vivem cheios de turistas, dizem que

do barco que leva moradores e turis-

não têm tempo para ir à igreja. Eles

tas até o bairro, corre uma trilha de

afirmam que nos dias de missa, ge-

lajotas ou de barro que dá acesso

ralmente no domingo de manhã, es-

às casas dos moradores da comunidade. No alto de uma escadaria, de frente para a lagoa, destaca-se uma igreja branca com portas e janelas compridas e estreitas. Dentro, bancos em madeira acomodam os fiéis. À esquerda do altar, podem ser vistos o círio pascal e uma cruz de madeira. À direita, um púlpito onde fica a equipe de canto. Imagens de nossa

Dona Vadinha auxilia os celebrantes que se deslocam até a Costa para a realização das missas.

tão trabalhando. Dona Vadinha, que há anos ajuda na administração da igreja e é mãe de um dos donos de restaurante, discorda do argumento. Ela acredita na falta de interesse das pessoas. Dona Vadinha auxilia os celebrantes que se deslocam até a Costa para a realização das missas. Na ausência de

Senhora dos Navegantes e São José

um padre residente, muitas vezes

chamam atenção atrás do altar. A

ela mesma se encarrega das missas.

Capela da Santa Cruz ergue-se como

A frequência nas missas não passa de

Segundo ela, nos últimos 16 anos a

uma remanescência da religião que

meia dúzia de fiéis.

igreja tem ficado cada vez mais va-

já teve um papel preponderante nes-

Uma das justificativas para esse

zia, chegando ao ponto de as cele-

se povoado. Em comunidades com

abandono, segundo alguns mora-

brações não conseguirem arrecadar

descendência açoriana, o catolicis-

dores, é a falta de tempo. A pesca,

fundos para mantê-la. Em diversas

mo sempre foi um pilar importante

que era a principal fonte de renda da

ocasiões, a coleta entre os fiéis não

da cultura. Festa do Divino, Festa da

comunidade, acabou se desdobran-

consegue nem pagar a ida do padre

Santíssima Trindade, Terno de Reis e

do no negócio dos restaurantes. Os

que vai de barco para a comunidade.

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Capela da Santa Cruz, onde Dona Vadinha presta auxilio com muito carinho. (Foto: Marcelo Martins)

Ela se preocupa muito com a situa-

cada dois anos, passou a ter um ce-

sentam 64,6% da população brasi-

ção em que está a igreja. A cada ano

lebrante diferente a cada semana.

leira. Os evangélicos subiram 17% e

menos crianças entram para as cate-

Essa relação mais duradoura criava

representam no momento 22,2% dos

queses de comunhão e crisma, e até

um vínculo maior entre comunidade

brasileiros. Esse aumento não se dá

os mais velhos, que reforçavam a reli-

e igreja.

pela conversão de católicos em evan-

gião, têm perdido o interesse.

gélicos, mas pela escolha das novas

A falta de um padre fixo foi outro

Enquanto os católicos deixam de ir

gerações, que têm maior proporção

ponto levantado pelos fiéis para jus-

à igreja e se tornam um número me-

entre os evangélicos. Se os números

tificar a falta de interesse. Em uma

nor na comunidade, os evangélicos

continuarem subindo e descendo no

comunidade na qual a confiança en-

têm ganhado cada vez mais espaço.

mesmo ritmo das últimas décadas,

tre os moradores é visível para quem

A baixa no catolicismo e a ascensão

futuramente teremos uma igualda-

vem de fora, ter a cada final de sema-

dos evangélicos não é uma particu-

de entre as religiões no Brasil. Mas a

na uma pessoa diferente realizando

laridade da Costa da Lagoa. Segun-

Costa traz uma singularidade interes-

as missas causa um desconforto. Há

do o Censo realizado pelo IBGE em

sante, as duas religiões conseguem

16 anos, a igreja da Costa da Lagoa,

2010, o índice de católicos, teve uma

conviver em harmonia, a ponto de o

que era regida por Freis trocados a

queda de 12,2%, agora os fiéis repre-

pastor frequentar as missas.

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COTIDIANO INSPIRA A ARTE

Nesse lugar, a arte está em tudo que se vê, toca ou respira

POR MANOELLA CORREA DA ROSA

sencial no nosso mundo.

esse dom, sempre gostei de desenhar”.

pescadores, que, enquanto andamos

Mas um lugar tão intocado pelo ho-

Esta arte passa despercebida por eles,

pela tarde, podemos ver fazendo suas

mem, a Costa da Lagoa, é fonte de inspi-

esses artistas que nem se dão conta que

redes, como nas rendeiras que tecem

ração para artistas como Oscar Florianni.

fazem arte, pois o cotidiano pleno não

peças únicas e bem detalhadas, num

Um artista plástico que mora em uma

permite. Sair para pescar de madrugada,

artesanato que é passado de mãe para

barraca na trilha da cachoeira, e pinta

voltar abastecido, prover o sustento da

filha. Arte sempre fez parte do que

seus quadros inspirados pela natureza

comunidade, que também se mantém

somos. Aprendemos a nos expressar

ímpar do local. E também Leewei Chan,

pelos tantos restaurantes desses pesca-

e comunicar através dela. E defini-la

caricaturista que escolheu a Costa para

dores, pode se tornar invisível no dia a

beira o impossível. Mas podemos dizer

morar, e produz sua arte quando os ani-

dia. A rendeira, que desde pequena vê

que ela está em tudo o que a gente vê,

mados “exploradores” vêm passar o dia

a mãe ou a avó fazendo as rendas numa

lê, toca, respira ou escuta. Ser artista,

na região. Retratando seus rostos exube-

almofada de bilro, não consegue en-

pode demandar uma habilidade espe-

rantes e maravilhados com a natureza,

xergar arte em algo que desde sempre

cial, um dom, ou talvez apenas uma

Chan repara, com atenção, suas expres-

considerou apenas mais uma fonte de

aptidão. E isso é o que a faz ser tão es-

sões e as rabisca no papel. “Nasci com

renda.

A arte pode ser encontrada em todas as formas na Costa da Lagoa. Desde

Habilidade especial nas mãos da rendeira. (Foto: Manoella Correa da Rosa)

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DE MACAU PARA A COSTA DA LAGOA

Leewie Chan sobrevive por 15 anos fazendo caricaturas

POR MANOELLA CORREA DA ROSA

Vi o Chan logo que cheguei à Costa da

Rodou muito o mundo até parar final-

como as letras não saem como ele quer,

Lagoa. O movimento de estudantes o

mente na Costa da Lagoa, onde vive há 15

acaba ficando irritado, Em Macau traba-

atraiu para o restaurante em que estáva-

anos. De início, o povo não o aceitou mui-

lhava como piloto de hidroavião em uma

mos almoçando. Primeiro apareceu meio

to bem, por não gostar de sair e nem de

empresa de táxi aéreo chamada Airtax:

tímido, com um caderno de desenho de-

falar muito. Diziam: “Esse cara não presta,

“Sou piloto formado”, diz com orgulho.

baixo do braço, olhando acuado para os

não vale nada”. Mas depois se acostuma-

Seu pai também era piloto, mas morreu

alunos barulhentos que estavam entre os

ram. “Como um cão malcriado, põem no

no fatídico desastre do avião da Air Fran-

bares à beira da lagoa. Depois de se am-

cantinho quando ele não se dá com as

ce no ano 2000. Apesar da perda, Chan de

bientar com a algazarra, veio de mesa em

pessoas, mas depois vão se acostuman-

sente feliz, porque, segundo ele, seu pai

mesa perguntando se queríamos fazer

do”, ele disse quando perguntei sobre sua

morreu fazendo o que mais gostava, voar.

uma caricatura. Prestei atenção para ver

adaptação na Costa. Antes de sair de Macau fez um roteiro por

quantos visitantes encomendariam seu retrato desenhado e, escutando mais não

Começou a fazer caricaturas depois de

vários países da Europa que gostaria de

do que sim, Chan não demorou para bai-

escutar vários “não estamos precisando”

visitar, como França, Inglaterra e Itália.

xar o preço.

enquanto procurava trabalho. Então a

Ficou cerca de um ano em cada país e en-

necessidade falou mais alto. No inverno,

tão foi para Madagascar, de lá os Estados

Fiquei intrigada com ele. Pelo sotaque,

quando o movimento de turistas na Cos-

Unidos e Canadá, para finalmente parar

podia perceber que não era dali, mas

ta da Lagoa cai consideravelmente, vai

no Brasil. Veio para o Brasil pelo idioma e

também não conseguia identificar sua

até os cafés da Lagoa da Conceição e faz

também porque procurava uma ilha para

origem. Logo vi que por trás daquele

seus desenhos por lá. Mas, na verdade, o

morar. Não procura nada em continentes;

sotaque não havia só um país diferente,

que mais gosta de fazer é ficar sozinho

gosta de ver o mar sempre que possível.

mas alguém que resolveu sair pelo mun-

em casa na frente do computador crian-

Morou em Fernando de Noronha e em

do para espairecer e já estava há 20 anos

do e modificando jogos. Se não precisas-

mais algumas ilhas no Nordeste do país

longe de casa.

se de dinheiro para sobreviver faria isso

até finalmente chegar em Florianópolis

para sempre. Também gosta de ler; lê de

há 15 anos e enfim fincar raízes de novo.

Macau, um dos primeiros países a falar

tudo, mas prefere história geral. Perdeu

Faz dez anos a última vez que esteve em

português no mundo, com cerca de 500

o costume de escrever porque, devido

Macau. Visitou suas velhas casas, as esco-

mil habitantes, é o berço do gravurista.

ao álcool, tem ‘tremeliques’ nas mãos, e

las nas quais estudou e os amigos de in-

39


fância que ainda estavam vivos. Fala três idiomas fluentes: português, inglês e candoles, o chinês tradicional. Todos os três aprendeu nas escolas que frequentou em Macau.

Posso perceber um saudosismo quando fala sobre sua vida em Macau. Como se o tempo das aventuras pelo mundo tivesse se esgotado e agora já fosse hora de voltar para casa. Saiu de seu país porque achava que não havia mais nada lá para ele; já não tinha mais família; permanecia horas trancado em um quarto sozinho, sem nada para fazer. Agora, mais velho, com 50 anos, praticamente a metade deles passada fora de sua pátria, a saudade é visivelmente grande. Pergunto se ele não quer voltar e a resposta é imediata: “Sim, ainda este ano”. Chan só está esperando os papeis da extradição saírem. Como não tem dinheiro para pagar a passagem de volta, teve que entrar com pedido de extradição. Tem esperança de que até setembro já esteja tudo resolvido. Em Macau, pretende ser instrutor de futuros pilotos de avião e também quer cuidar da sua saúde, que segundo ele está precária.

Quando a conversa acaba, desligo o gravador e pergunto se quer escutar a gravação. Ele diz que sim, contente por lhe dar a possibilidade. Assim que escuta sua voz, faz uma careta. “Odeio escutar minha voz. Só gosto dela cantando”. Ele compõe músicas desde criança e canta uma. Emocionado, o artista pega a marmita sobre a mesa e segue em direção à sua casa na Costa.

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Chan pretende voltar para a terra natal. Depende ainda de documentação Foto: Manoella Correa da Rosa


DO ENGENHO AÇORIANO AO TURISMO

Reduto histórico açoriano, lugar único na formação humana

POR VITÓRIA ZARDO

A Costa da Lagoa foi oficialmente po-

devastada para o plantio e extração de

por historiadores, dentre eles, o profes-

voada no fim do século XVIII por imi-

madeira destinada a diferentes consu-

sor da Universidade do Estado de Santa

grantes açorianos. Durante o período

mos: construções de barcos e canoas,

Catarina, Esdras Pio Antunes da Luz, um

de instalações ergueram-se as primei-

uso próprio das famílias, abastecimento

apaixonado por história. Em 2014, seu

ras edificações e engenhos de farinha e

dos engenhos e venda para outras lo-

trabalho de mestrado na Costa, contri-

aguardente. As casas tipicamente aço-

calidades próximas. Nas montanhas de

buiu com informações de cada época

rianas surgiram no mesmo momento,

encosta da Lagoa, o trabalho era ainda

da ocupação humana na região e seus

e em torno desses marcos nasceram os

mais rigoroso e cansativo, mas fez com

desdobramentos.

primeiros núcleos e vilas da Costa. Gran-

que se destacasse e se transformasse em

des plantações de mandioca, milho e

referência por aproximadamente meio

Mas com o tempo, a falta de minerais e

cana se desenvolveram com o trabalho

século.

nutrientes na terra tornou-se uma consequência séria para o andamento das

árduo de escravos e famílias tradicionais Na metade do século XIX, o café passou

plantações, assim como a falta de lenha

também a ser comercializado, gerando

para abastecer os engenhos e madeira

Moradores nativos e atuais da região

exportações para outros estados brasi-

para a construção privada. Um agravan-

relembram com saudades dos anos

leiros. Junto com a farinha de mandioca,

te constatado pelos moradores foi que a

de juventude em que se dedicavam às

o café ganhou espaço nas capitais do

extração tornara-se superior ao tempo

plantações com suas famílias. Meninos,

Rio de Janeiro e São Paulo.

da terra se revigorar. Não consideravam

de posse.

viável trabalhar numa terra pobre e sem

meninas, homens e mulheres fazendo de suas vidas o vínculo com a terra, do

Assim como na Costa da Lagoa, diver-

árvore alguma para o consumo ardente

amanhecer ao entardecer na roça. Co-

sas partes da Ilha se tornaram lavoura.

dos engenhos. A degradação fez com

lhendo, semeando e aguardando da ter-

Os colonos transformaram a terra vir-

que em questão de anos, o setor agrí-

ra os frutos para se viver com segurança

gem em ricos campos de produção. Se

cola perdesse sua força e se extinguisse

e tranquilidade.

isso trouxe subsistência, também ge-

aos poucos do cenário na Costa.

rou nessa época um desmatamento de A paisagem da Mata Atlântica nativa

aproximadamente 75% do território de

A vitalidade da terra começou a se res-

dos morros da Costa foi absolutamente

Florianópolis, segundo dados coletados

tabelecer novamente e os engenhos

41


elétrica e telefone.

passaram a ser esquecidos com o tem-

canto da Lagoa até então quase desco-

po, virando lembranças para a história.

nhecido, algumas se mudaram anima-

A mata foi lentamente ressurgindo e

das e compraram terrenos nesse perí-

Em 1986, através de um decreto muni-

tomando seu espaço de sempre; uma

odo de reconhecimento. Aos poucos a

cipal, o município reconhece o cami-

floresta secundária cheia de histórias

nova economia foi se estabilizando com

nho da Costa da Lagoa como Patrimô-

gravadas no solo trazendo a beleza e a

o transporte náutico de pessoas, o turis-

nio Histórico e Natural de Florianópolis,

diversidade de volta.

mo gastronômico e a pesca em pequena

que foi tombado para a conservação do

escala. A criação de novos empregos fez

local e arredores, assim como as duas

Com o fim da agricultura em meados do

com que os homens não precisassem

construções remanescentes da época

começo do século XX, era inevitável a

mais ir embora, acabando com as migra-

do colonialismo: o casarão chamado

procura por outro recurso para a renda

ções.

D. Loquinha e o engenho de farinha na Vila Verde. Atualmente propriedade

das famílias. Houve um êxodo de pessoas nesse período para outras locali-

Ainda nos anos 80, outro grande fator

privada, as obras de reforma do casarão

dades, e as famílias que permaneceram

mudou a relação de toda a história na re-

alteraram sua identidade arquitetôni-

não conseguiam se manter com as pes-

gião: a inserção das leis ambientais, que

ca açoriana. O engenho também é de

cas sazonais, o que levou os homens e

gerou confrontos e desconhecimentos

propriedade particular, do professor

jovens a migrarem para o norte do Es-

de normas impostas a moradores nati-

Esdras, que junto com a comunidade

tado e para o Rio Grande do Sul à pro-

vos. Desde a década de 60 e 70, quando

mantém o cuidado necessário com a

cura de trabalho em barcos de pesca. O

o código florestal entrou em vigor, as

construção.

salário mensal era enviado às mulheres

matas não poderiam mais ser mexidas,

que viviam na Costa fazendo trabalhos

porém foi o plano diretor de 87 que no-

A Costa da Lagoa, salvo proporções, é

domésticos, rendas de bilro e artesana-

meou as APP (área de preservação per-

um retrato da nossa ocupação huma-

tos tradicionais açorianos.

manente) e as APL (Área de Preservação

na. Começamos com o que sabemos

Limitada) em toda a região da Lagoa,

e possuímos e depois com a ambição

Assim, a Costa da Lagoa viveu por dé-

inclusive em terrenos de famílias cente-

provocada pela abundância, saímos do

cadas; os homens saíam jovens de casa,

nárias que viviam no local.

nosso espaço e iniciamos as trocas e comercializações. A partir de então as tro-

pescavam fora, mandavam o dinheiro para suas esposas e retornavam para

Os moradores passaram a conviver com

cas passam também a ser humanas, com

casa quando lhes sobrava tempo. Esse

novas limitações ambientais mais seve-

pessoas de outros lugares chegando e

roteiro de vida durou até a década de

ras, mas concordaram a respeito da ar-

trazendo novas informações, educação

80, quando a partir de então a vida na

gumentação sobre a beleza intacta das

e ciência, um processo de movimento

região mudou drasticamente de ritmo.

matas no intuito de conservação e atra-

que cresce naturalmente com a histó-

ção turística. E com o passar dos anos,

ria de nosso desenvolvimento. Dessa

O turismo nasceu com a abertura do

as pessoas se apressam para fazer dos

forma, a Costa reconhece sua história

primeiro restaurante para visitantes em

seus direitos algo legal e ético de preser-

como algo compreensível e natural,

1980, o que estimulou de forma rápida o

vação, mesmo havendo preocupações.

cada momento de transformação foram

crescimento de novos estabelecimentos

Com o turismo ganhando cada vez mais

lembranças que hoje aprendemos e re-

e originou novos negócios na área. Pes-

autonomia, o governo libera verbas na

conhecemos de uma forma única para

soas começaram a conhecer esse novo

década de 1980, para a instalação de luz

cada lugar.

42


O reflexo de um lugar que conduz hist贸ria, simplicidade

43

e beleza

Foto: Vit贸ria Zardo


JORNALISMO ESTREIA NA COMUNIDADE

A familiarização com as câmeras, o cenário e o povo

POR RAFAELA MORAES

Era a primeira vez de quase todos. Está-

de sentimentos, o significado pessoal.

vocês e no dia que cheguei lá comentei

vamos ansiosos, afinal, nosso maior de-

Todos sempre receptivos esperavam-nos

isso”.

sejo era o de sucesso na missão. Tivemos

com um café sobre a mesa e uma con-

uma longa preparação, dois meses de

versa generosa. Quando o indivíduo per-

As noites chegavam cedo e o trabalho

pesquisa, decisões e finalmente havia

cebia que estávamos ali para realmente

não parava. Cada hora era única e tra-

chegado o grande dia. O que nos espe-

ouvi-los, as histórias fluíam com entu-

zia uma nova experiência. Houve noites

rava?

siasmo. Esse foi o caso de Dona Maria,

mais conturbadas que outras mas que

rendeira e moradora da Costa da Lagoa.

nos fizeram trazer instantes de euforia.

Chegamos entusiasmados, nos desmem-

Ela nos falava com os olhos brilhando ao

O caderno e as máquinas fotográficas

bramos de nossa turma, e, separados por

lembrar os momentos de luta e determi-

tornaram-se nossos confidentes, afinal,

equipe, fomos fazer o reconhecimento e

nação. Revelaram segredos que apenas

sempre acontecia algo novo que não po-

a investigação de nossas temáticas por

os mais íntimos poderiam saber. O orgu-

deríamos perder.

grupos. Todos queríamos conhecer no-

lho de ser moradora, de ter uma família

vas pessoas, aprender novas práticas e

que ela ama e admira foi captado por

Hoje, depois de um mês de vivência, po-

produzir uma vivência marcante.

nós com singularidade.

demos responder que o povo que nos esperava era afável, que nos acolheu

Descobrir o lugar foi intenso, o cenário

A experiência favoreceu a união da

de braços abertos e compartilhou suas

era cativante e envolvente. Sempre ouvi-

equipe; todos os grupos se ajudavam e

histórias de vida. Vivenciamos três dias

mos que o tempo na Costa da Lagoa era

unidos conseguimos fazer uma grande

de intensa profissional e acima de tudo

diferente do nosso. Era um tempo deva-

corrente para compartilhar os recursos

extremamente humana. Afirmo com

gar. Na prática, o aluno Marcelo Martins

e equipamentos necessários ao nosso

convicção que a turma de Jornalismo da

confirmou isso: “Aqui a questão do tem-

trabalho. Houve dificuldades, mas com

Universidade do Sul de Santa Catarina de

po é verdade como o Zéca nos disse, o

a colaboração de todos os alunos e pro-

2015 carrega uma eterna gratidão pela

tempo é mais demorado.”

fessores foi simples superar. O professor

troca de conhecimentos vivida em um lo-

Daniel afirma: “A quantidade de histórias

cal rico de costumes. Trouxemos conosco

Ouvir o outro foi gratificante, captar as

lá na Costa da Lagoa era incrivelmente

novas amizades que serão inesquecíveis.

palavras ditas e não ditas, a tonalidade

grande. Percebi também a união forte de

A todos o nosso muito obrigado!

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Conhecendo algumas técnicas, alunos começam a produzir conteúdos Foto: Rafaela Moraes

Olhos e ouvidos atentos aos ensinamentos fizeram parte

45

dos dias vividos no local Foto: Rafaela Moraes


PESCADOR NAS FÉRIAS E NAS FOLGAS

O gari e, às vezes, pescador, não quis seguir a tradição

POR MAIARA PASSOS NASCIMENTO

O dia nublado com uma temperatura

como única fonte de sustento.

anos, vive uma vida tranquila ao lado da família. Nas horas vagas, além da pesca

abaixo dos 20 graus, as casas fechadas e uma delas com a porta e janelas aber-

“Gosto de pescar, mas por hobby, ainda

gostava de um futebol com os amigos.

tas. Tarrafas pelo pátio, o rádio e a xícara

mais agora que estou de férias. Acordo

“Não ando mais jogando; quebrei a perna

de café dividindo o espaço sobre uma

de madrugada, vou lá e horas depois já

duas vezes, se eu quebrar de novo serei

pequena mesa na varanda. O rádio toca

estou de volta com muitos peixes para

expulso de casa”, brinca dizendo que fu-

uma música em um volume quase imper-

nosso consumo, mas já divido com a raça

tebol agora só pela TV. De preferência os

ceptível. Do café sai aquela fumaça avi-

toda”, conta.

jogos do Figueirense, o time do coração.

Estudou até a 5ª série, mas sempre gostou

Advogada já foi consultada para enca-

de ler e discutir sobre vários assuntos. Con-

minhar aposentadoria que deve acon-

Com a faca na mão, chinelos de dedo e

ta que sente falta do estudo na sua vida e

tecer dentro de poucos anos. Viajar, ver

uma roupa surrada, Cláudio Manoel Pe-

por isso incentiva o máximo que pode a

a formação dos filhos, pescar de vez em

reira, 52 anos, remenda sua rede. Sempre

educação dos três filhos. A esposa Eliane

quando e nem pensar em deixar a Costa

faz os remendos quando volta da pesca,

Pereira, 50, cuida da casa e faz renda, uma

da Lagoa; esses são os planos de Cláudio

por culpa dos siris que arrebentam os

atividade cada vez mais rara na região.

que acabou sua xícara de café insistindo

perfeitos quadradinhos das tarrafas.

Funcionário da Comcap há mais de 25

para que eu também bebesse uma.

sando a temperatura e o aroma de uma bebida quente e fresca.

Filho de pescador, aprendeu a pescar quando era criança; os tios e o pai foram os professores. Mal sabiam eles que ensinavam o que se tornaria um hobby, não uma profissão. Ainda assim acompanhou -os em grandes pescas por cerca de 10 anos. Conheceu os perigos das tempestades em alto mar e sobreviveu a elas. Apesar de gostar da pesca, não quis tê-la

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A pesca, atividade tradicional na Costa, é só um hobby para Seu Cláudio (Foto: Maiara Passos)


A VIDA QUE ACONTECE O ANO INTEIRO

Sem turistas, nem acontecimento extraordinário, um retrato da Costa

POR MAIARA PASSOS NASCIMENTO

A ida de barco até a comunidade pa-

a montanha e do outro a lagoa. E no

zarra do dia, cantam em sua máxima

rece ser uma preparação para o que

meio de toda essa riqueza natural, a

performance. Com o arzinho que corre

se encontra do outro lado. Os únicos

Costa da Lagoa.

entre a floresta, as folhas caem vagarosamente, os galhos balançam com

barulhos que se escutam nesse trajeto são o motor barulhento, as conversas

Um bairro cheio de lombinhas e des-

entre prováveis vizinhos que sentam

cidas, uma trilha do início ao final

perto um do outro para colocar o papo

com trechos calçados. Já em outras é

em dia e quem fica ao lado da porta

necessário cuidado para não escorre-

percebe a água batendo no barco.

gar entre as pedras, afastar as folhas e manter a atenção.

Os pontos de parada vão do um ao 23.

suavidade mato adentro.

“É um pouco complicado; trabalho fora daqui, divio com minhas irmãs a tarefa de cuidar da minha velha”

É possível visualizar alguns telhados

Ao amanhecer o silêncio predomina

entre a floresta, quanto mais próximo

nesse refúgio do barulho. Domingo,

do ponto 15, mais visíveis se tornam.

por volta de 10 horas, a movimenta-

Bem próximas umas das outras as ca-

ção ocorre no ponto 16. O ponto da

sas parecem formar um vilarejo muito

igreja. A missa está prestes a começar.

distante do que estamos acostuma-

As crianças caminham de mãos dadas

dos. A igreja, o centro comunitário, o

com suas mães rumo à igreja, não por

posto de saúde, os restaurantes, a es-

medo, pois desconhecem o perigo,

cola, a cachoeira e a trilha, que vai do

mas talvez para fortalecer a importân-

início ao fim do lugarejo, os moradores

cia do ritual. No pequeno riacho que

De volta ao ponto principal, a missa

donos de sorrisos largos quando pas-

corre em direção à lagoa, a água pro-

em andamento, uma ou outra pessoa

sam uns pelos outros, as crianças que

duz um barulho agradável, espécie de

caminha pela rua, uma senhora sen-

brincam pelas ruas, os cachorros que

sinfonia contínua que não incomoda.

tada sob o sol da manhã no seu pátio,

saem de seus pátios e passeiam pelo

Ao se afastar e andar um pouco mais,

junto do colo, uma bacia de laranjas e

local tranquilamente, um pequeno

o silêncio pretende retornar, mas os

ela a devorá-las com avidez que só se

comércio aqui, outro lá. De um lado

pássaros não querem abafar a alga-

tem por frutas muito suculentas. Ao

47


Serenidade e tempo aparentemente diferente, essas são impressões dos que passam pela Costa da Lagoa. (Foto: Maiara Passos)

lado da igreja, uma casa verde claro.

está o pescador tarrafeando sua rede,

suas atividades antes do anoitecer. As

Da rua avista-se uma salinha de estar

Abenir dos Santos, 58, afirma com or-

crianças guardam suas bicicletas. O ar

bem aconchegante, o sofá e um casal

gulho que uma das maiores qualida-

mais ameno faz com que as pessoas se

de idosos sentados assistindo televi-

des do bairro que vive é poder dormir

mantenham no aconchego das casas.

são. A filha se aproxima, abaixa e põe a

e acordar sem medo. “O chinelo fica na

Os ponteiros do relógio fazem suas

pantufa no pé da mãe que aos 69 anos

rua, a porta a gente não tranca e não

voltas normalmente, mas a impressão

foi apanhada pelo Alzheimer. Hoje,

tem perigo nenhum”.

de quem passa pelo lugar é que a vida

quatro anos depois não reconhece a

Noite é sinônimo de tranquilidade e

acontece num ritmo próprio e tudo

própria filha. “É um pouco complicado;

serenidade. Os restaurantes encerram

fica tão natural.

trabalho fora daqui, divido com minhas irmãs a tarefa de cuidar da minha velha”, comenta Gabriela. Num lugar onde há casas pequenas, outras maiores, de cores e estilos variados, não poderia faltar um castelo. Parece castelo de filme, todo de pedra, cheio de árvores em volta, impossível não querer entrar. É uma propriedade privada e muito restrita para visitas. No pequeno espaço entre duas casas,

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No refúgio do barulho, o som mais alto é o das gaivotas. (Foto: Tiago Bento)


Entre casa e escola, um menino

Quem conhece o pequeno sabe que nem sempre é tão tímido

POR FERNANDO SILVEIRA

Aos sete anos, Daniel da Conceição

que eles tem uma maneira diferen-

Martins estuda na Escola Desdobra-

ciada de ensinar, que ajuda a manter

da da Costa da Lagoa desde que che-

os laços entre escola e família.

apoio para esse relacionamento.

gou à comunidade. Membro de uma família simples que reside há três

É um pouco peculiar a amizade en-

anos numa das comunidades mais

tre os professores e os responsáveis

preservadas da Ilha, Daniel é o úni-

pelos educandos, pois a instituição

co filho de Josiane Martins da Silva.

tenta aproximar a família da escola,

Dedicado aos estudos e muito brin-

em prol de uma educação melhor e

calhão, o que toca mesmo o coração

mais presente na vida dos educan-

desse menino é o futebol.

dos. Seus professores são seus vizinhos e sempre vão até a casa de Da-

Como trabalha fora da Costa, a mãe

niel chamar Josiane para a reunião

deixa o menino em período integral

de pais e professores. Professores

na escola. Ela se acha um pouco au-

e alunos vão juntos à escola, como

sente por conta disso, mas procura

numa grande família.

compensar nos momentos em que estão juntos: “São sempre muito di-

Sempre respeitando os limites de

vertidos”. Quem conhece o pequeno

Daniel, Josiane tenta ajudar o filho

garoto dos olhos de mel sabe que

como pode e quando pode com as

nem sempre é tão tímido quanto

tarefas de casa: “Com o método de

aparenta, principalmente na hora de

ensino da escola, acaba que também

brincar com os amigos. Perguntado

ajuda a gente a ter uma base, de

sobre o que mais gosta na escola,

como ajudar no aprendizado do meu

Daniel pensa um pouco e responde

filho”. Na Costa, as famílias e a es-

Josiane trabalha fora da Costa e Daniel fica na

certeiro: “Meus amigos e principal-

cola são ligadas à cultura da região,

escola em tempo integral. Se divertem quando

mente as professoras”. A mãe explica

de modo que se cria mais um elo de

estão juntos (Foto: Bruno Bach Albornoz)

49


Tradição celebrada na vida

Cantorias, brincadeiras e festas são o cenário vivo dos romances

POR LUANA MARTENDAL

Ratoeira, Pão-por-Deus, Terno de Reis,

do pela amada: “Na época eu namorava

guiu reatar com a menina mais especial

Festa de Navegantes. Junto com a tradi-

uma menina, aí briguei com ela; eu não

da Lagoa: “Cantei pra ela: ‘Plantei no meu

ção açoriana, os moradores da Costa da

quis mais saber dela. Sabe o que aconte-

quintal, a semente da favaca, tu ainda

Lagoa herdaram as celebrações e festas

ceu? Ela foi e arrumou outro parceiro, eu

olhas pra mim sua cara de macaca’. E aí

de origem portuguesa. Não são apenas

fui e arrumei outra menina”. A história de

a gente ficou junto”, diz ele, contando o

um culto a uma tradição congelada no

Valter não terminou ainda e é mais um

final feliz.

passado: elas fazem parte da memória

conto bonito de uma juventude saudá-

presente como cenário das histórias de

vel, da qual ele e seus conterrâneos des-

Seu Valter considera a celebração da

vida dos habitantes e dos encontros que

frutaram.

Festa de Navegantes, que acontece no segundo domingo de fevereiro, um dos

deram origem às famílias. Foi nas ratoeiras que ele se reconciliou

momentos mais bonitos do ano. E explica

Nessas festas, alguns casais tradicionais

com a namorada. A cantoria acontecia

orgulhoso: “A nossa Festa de Navegantes

na Costa se formaram há cinco, seis ou

sempre junto com as brincadeiras das

em termos de embarcação é só na Bahia

até sete décadas. Elas contam histórias

festas juninas, quando se declamavam

que podemos comparar. A santinha na

de amor que encontramos nesse pedaci-

cantigas em pares entre amigos e namo-

véspera fica na casa do primeiro festeiro,

nho do mundo, de relações de infância e

rados. Os amigos iam para fazer as pazes

aí ela sai de manhã da casa do festeiro e

juventude que perduram até hoje como

ou intriga com alguém. É com orgulho

vai pra igreja. Chegam três horas da tar-

algo cada vez mais belo quanto mais

que Valter descreve como foi ouvir a de-

de, ela sai e vem aqui para o trapiche. Os

raro.

claração: “Chegou a hora da ratoeira e

barcos todos vêm pegar a gente. Aí vai lá

ela cantou pra mim bem assim: ‘Plantei

ao ponto 23 e depois até o ponto 7”. Ao

As festas típicas ajudaram a unir mui-

no meu quintal a semente da congonha,

todo são, em média, 60,70 embarcações.

tas duplas. Valter Miguel de Andrade,

tu ainda olhas pra mim sua cara sem-ver-

Uma verdadeira celebração no mar.

pescador e nativo da Costa da Lagoa, é

gonha’”. Naqueles tempos da década de 60, havia

um desses senhores contadores de histórias que se uniu ao seu grande amor

Depois desse poema, aconteceu a rea-

eventos culturais de sobra para a juven-

pela Ratoeira. Ao lembrar a época de sua

proximação. Ele não resistiu e seguiu a

tude se confraternizar na Costa. O Pão

mocidade, confessa rindo ter sido troca-

provocação. Foi cantando que conse-

-por-Deus, celebração muito praticada

50


Imagem da santa protetora acompanha o cortejo juntamente com a banda, coral e moradores da Costa da Lagoa (Foto: Gilberto Pereira)

no bairro sempre no dia 1° de novembro,

Os donos de mercearia já se prepara-

Alguns desses eventos permanecem

dia de Todos os Santos tornou-se outro

vam e deixavam os saquinhos prontos

ainda hoje. É o caso do Terno de Reis,

entretenimento forte na comunidade.

para distribuir aos grupos de peque-

uma das festas típicas que ocorrem ge-

Mais do que entretenimento. É conside-

nos brincalhões. Também entregavam

ralmente nos meses de março e janeiro.

rado patrimônio cultural imaterial, que

corações de papel, tecidos com men-

Originada em torno da celebração dos

segundo a UNESCO “são expressões de

sagens e versinhos, pedindo algo ou

Três Magos na Igreja Católica, a festa

vida e tradições que comunidades, gru-

agradecendo alguém. Faziam sucesso

acontece durante a noite. Os morado-

pos e indivíduos em todas as partes do

mensagens como: “Esse pão que vai

res permanecem dentro das residências

mundo recebem de seus ancestrais e

por Deus da terra do olhó-lhó, vai ho-

com portas e janelas fechadas, enquan-

passam seus conhecimentos a seus des-

menagear minha amada mãe e minha

to um grupo de músicos, cantores e

cendentes”.

querida vó”. Ou ainda: “La vai o meu

dançarinos que desfila pelas ruas da vizi-

coração todo cheio de carinho. Vai pe-

nhança, com pandeiros, gaita, tambores

As crianças saíam na vizinhança para

dir pão-por-Deus de quem encontrar

vai entrando nas casas dores e cantando

pedir doces, banana, bolo, biscoito.

no caminho”.

o “terno de reis”.

51


a cachoeira da costa

Um lugar de reflexão, paz e purificação da alma

POR GABRIELA MEIRA

Pela rua de pedra, um acesso leva à flo-

antes de chegar à cachoeira, há alguns

ou ruelas. Nesse lugarejo, especial por

resta, com o chão de terra molhada já

degraus de barro que foram marcados

excelência, ainda ergue-se uma queda

demarcada pelas pessoas que por ali

pelas pisadas dos visitantes, e outros

d’água.

passaram, sem dificuldades de loco-

degraus de pedra. No meio disso tudo,

moção. Do lado direito, as águas da ca-

bancos feitos de madeira, bem conser-

Alguns arriscam-se a subir até a ultima

choeira caindo, indicam que o caminho

vados, se distribuem em cores azuis e

pedra para ter uma visão mais plena da

está correto. Clarões entre os galhos ao

verde. Uma casinha ao lado esquerdo

Costa, apesar de saberem que é peri-

lado direito deixam entrever uma casa

igualmente bem preservada, pintada

goso. Alguns procuram momentos de

de madeira, verde, bem simples e per-

de verde, com janelas brancas. Pelas

paz para pensar e refletir melhor sobre

to dela muitas pedras com tamanhos

escrituras na madeira constata-se uma

a vida. Outros se deliciam com suas

variados, algumas já dominadas pelo

pequena mercearia, que supostamente

câmeras tirando selfies e provando

limo, outras limpas pela chuva, em uma

funciona no verão, atendendo os turis-

aos conhecidos a sua ultima aventura.

delas uma barraca — talvez um turista,

tas. Mais do que a floresta, ou a bele-

Apesar da brisa leve e do friozinho do

que esteja se abrigando ali para manter

za da Costa da Lagoa, naquele infinito

sul, alguns curiosos ainda se arriscam a

o contato com a natureza.

verde, encontra-se a Cachoeira. São as

banhar-se nas águas cristalinas, muitas

suas águas e rochas que fazem milha-

vezes também gélidas. Há uma energia

res de pessoas ir além dos restaurantes

de paz, e de purificação da alma.

Seguindo a trilha pela pequena floresta

Lugar tranquilo e relaxante, sem dúvidas um paraíso. (Foto: Gabriela Meira)

52


moradia no deslizar das águas

A convivência marcante de Oscar Florianni e a cachoeira

POR GABRIELA MEIRA

Pelas mãos do artista plástico curitiba-

próximo à queda d’água. Encaixa-se

o que a Costa tem, aparecem em suas

no Oscar Florianni, a Costa da Lagoa ga-

com exatidão em uma pedra que dá

telas. Assim, entre um passeio e outro

nha uma abordagem suave e marcante

fácil acesso à corrente de águas cris-

é possível carregar na mala como lem-

em forma de pinturas. Filho de relojoei-

talinas. Não é preciso muita conversa

brança uma imagem bela do local. É

ro, com 60 anos de idade e uma trajetó-

e ele fala o que sente, a graça da vida

a partir do retorno financeiro de suas

ria de vida digna de grandes conquis-

ali, no meio da floresta, rente à cacho-

vendas que o aventureiro se mantém.

tas. Um senhor de porte médio, magro

eira: “Viver assim é ter a vida ao ar livre,

que carrega no rosto um sorriso sereno

sem as violências da cidade grande;

Além de artista, Oscar é um homem

e sincero. Da pele clara, dos cabelos ra-

usufruo aqui da água pura e também

que anseia sempre por descobertas.

los e loiros. Embora tenha sido bem-e-

da energia solar”.

Não tem medo das mudanças. Ama o novo. Vive como cigano. Nasceu no

ducado, origem de classe média e um sucesso econômico que lhe elevou na

O homem que trocou as regalias pela

Paraná, mas é filho do mundo. A Ilha

sociedade, decidiu largar todos os seus

simplicidade do pé no chão, usa a

da Magia é sua segunda casa. Dono de

bens materiais, deixando-os para os

maior parte do tempo para se dedicar

uma oratória de dar inveja, admirador

seus filhos e seguiu sua vida com mui-

às obras que faz inspirado no espetá-

do pôr-do-sol, por onde passa cons-

ta despretensão. Dormindo em várias

culo do pátio de sua casa: a Costa da

titui fortes amizades. Maturidade de

cidades de Santa Catarina, tem muitos

Lagoa. Como recompensa pelo tra-

quem já viveu muito e no coração uma

amigos, sua última parada foi na bela

balho, nos dias em que o bairro mais

bondade de criança. Defensor da na-

Costa da Lagoa.

recebe turistas Oscar aproveita para

tureza, é praticante do bem, das boas

vender seus coloridos quadros. Todos

ações. Cultua a convivência com a co-

Esse senhor formado na faculdade de

elaborados nos mínimos detalhes,

munidade, e seu amor pela liberdade

Belas Artes, deixou a comodidade de

que transmitem tranquilidade e des-

vai além de apenas morar em uma

uma cama para dormir em um colchão

tacam nas paisagens a lembrança de

barraca. Procura um ambiente que

inflável, assim como a segurança de

um mundo que ainda não foi poluído.

transmite paz, alegria, calma, e além

uma casa com paredes e um teto para

Emoldurados com bambu da própria

de tudo lhe dá inspiração para criação.

serem substituídos por uma barraca

floresta, desenhados a lápis ou com

Um senhor calmo e sonhador, um des-

montada no terreno de um amigo,

tintas, os barcos, restaurantes e tudo

temido vencedor.

53


Convivência pacífica com os animais

Moradores e visitantes mantêm relação harmoniosa com os pets

POR YSTTÉPHANI SINHORINI

Muito visitada por pessoas de várias

população de ratos que transmitem

quena e simples sorveteria, com cores

regiões que vão aproveitar a nature-

doenças graves, como a leptospirose

claras, uma divisória entre a parte que

za exuberante do pequeno recanto,

e hantavirose.

ela atende os clientes e outra com ca-

a Costa da Lagoa é uma ilhota den-

deiras e mesas de madeira. O primeiro

tro de Florianópolis, na qual animais

Sob esse ângulo, as cobras mais sal-

animal que ela levou para a Costa foi

selvagens e domésticos podem ser

vam vidas do que matam. Ali tam-

um poodle de tamanho pequeno, que

encontrados. Ao Leste da Lagoa da

bém vive a cobra-coral de coloração

pegou em Palhoça. Escondeu-o dentro

Conceição, o reduto da cultura aço-

forte e de fácil identificação: listrada

de uma sacola, pois não é permitido a

riana revela-se por seus pescadores,

em preto, vermelho e amarelo. Ela é

entrada de animais dentro de trans-

barcos, casas, restaurantes, escola,

considerada mais perigosa do que

portes coletivos.

posto de saúde e também pela vasta

as jararacas, por causa da altíssima

floresta, regada por córregos e ca-

toxidade de seu veneno. Quando al-

Ela já teve outros animais, mas eles

choeiras.

guém é picado por cobra na Costa

faleceram. Teve dois poodles, um fa-

da Lagoa, a comunidade já sabe que

leceu de velhice, e agora tem o Totó e

Provavelmente esses animais foram

precisa buscar socorro imediato no

a Chica, que foi abandonada na Cos-

levados para lá ou acabaram achan-

Centro de Informações Toxicológicas

ta com uma bicheira no pescoço. Si-

do o caminho por acaso. Nessa trilha

do Hospital Universitário (HU).

mone começou a cuidar dela; deixa-

extensa de barro podem ser vistos

va-a sempre debaixo de uma árvore,

macacos de portes pequenos e ja-

Ao adentrar mais nesse paraíso, vemos

com comida e remédio e a cadelinha

raracas, que atingem até 1,60 me-

crianças brincando com cães peque-

sobreviveu. “Em geral, a relação dos

tros de comprimento. As espécies

nos, médios, grandes, brancos, pretos,

animais com as crianças e a comuni-

peçonhentas, alertas dia e noite,

de raça ou vira-latas. Os gatos fazem

dade é afetuosa”, diz Simone. Os mais

escondem-se sob arbustos e pedras

a alegria dos pequenos nativos. Dona

velhos costumam soltar os cães e não

rastejando sorrateiramente. Elas se

Simone de Souza Amorim, de 39 anos,

prendê-los dentro de casa, de modo

alimentam principalmente de peque-

que não nasceu na Costa, mas mora no

que a convivência entre humanos e

nos roedores. Seu papel é importan-

lugar há 10 anos, é conhecida pelo seu

não-humanos seja também a marca

tíssimo na natureza, pois controlam a

amor aos animais. Dona de uma pe-

dessa comunidade.

54


Assim como as crianças, cães vivem soltos na

55

comunidade

Foto: Marcelo Martins


uma filosofia para morar

Uma passagem da cidade grande para uma lugar em paz com a natureza

POR MARCELA SILVA TEIXEIRA

A rotina conturbada dos grandes centros

dores e visitantes garantem achar tudo que

E hoje, aos 60 anos, garante ser o melhor lu-

urbanos, apontada como a principal causa

procuravam nesse único lugar, que fascina

gar para morar, especialmente para quem

de doenças ligadas à poluição e ao estres-

em cada detalhe.

procura uma maior expectativa de vida. Já John Ênio, de Porto Alegre, encontrou no

se, provoca a busca de um novo estilo de vida. Pessoas estão à procura de uma nova

Deixando os pontos mais centrais e povoa-

recanto o que jamais teria em sua cidade

filosofia de vida. Um cotidiano baseado

dos da Costa da Lagoa para os nativos e fa-

natal.

na tranquilidade, harmonia e leveza. Essas

miliares, os novos moradores se encontram

transformações englobam mudanças di-

principalmente no caminho das trilhas. Um

Ao se mudar para o bairro, passou por uma

versas que podem ir de uma alimentação

fator importante e motivador da imigração

transformação radical no estilo de viver.

saudável até a busca de um equilíbrio espi-

para Costa da Lagoa é a consciência de co-

Hoje, reside em uma casa em meio à natu-

ritual, assim como o início de uma nova fase

letividade dos moradores do bairro. Todos

reza. E cada manhã podendo abrir a janela

de contato mais intenso com a natureza.

se acolhem e se ajudam: a comunidade é

e enxergar o seu jardim florido é um motivo

um exemplo de cidadania e união.

para agradecer. A espiritualidade também tornou-se muito presente em sua vida, in-

Na pesquisa por esse ambiente fundamentado no bem-estar, pessoas de todas as

Elizabeth Porto, do interior do Rio Grande

centivada, segundo ele, pelo ambiente ins-

partes encontram a Costa da Lagoa, famosa

do Sul, conheceu há muitos anos o seu ma-

pirador. Como ele diz:” O Deus que habita

pelas suas belezas naturais, segurança e es-

rido na Costa, de onde é nativo. Ao visitar o

em mim saúda o Deus que habita em você,

tilo de vida aprazível. Nativos, novos mora-

local, se apaixonou pela sua tranquilidade.

Namastê!”.

Inspirando tranquilidade e leveza, a Costa da Lagoa é uma filosofia para morar. (Foto: Marcela Teixeira)

56


Os segredos de viver na Costa

“É um ambiente onde um vizinho acolhe o outro”

POR MARCELA SILVA TEIXEIRA

Na volta do médico, onde ia em busca

contato direto com a natureza contribui

três meses parada sem trabalhar, gas-

de oxigênio para o filho, antes de subir

diariamente para fazer da Costa o me-

tando muito em remédios e táxis para

o Morro do 25, Cristina pedia para o ta-

lhor lugar para se habitar. Aos 53 anos

levar o adolescente a consultas diárias

xista fazer dois sinais (gesto combinado

de idade, ela confirma o que já havia

no Cepon e no Hemosc, onde precisa-

com os meninos da comunidade para

ficado claro em suas falas durante a con-

vam pegar o primeiro barco e acabavam

se identificar). Ao ser reconhecida, sua

versa: “Quem procura tranquilidade e

voltando no último. Observando todas

subida era autorizada e então acom-

conhece aqui, nem procura mais, sabe?

as dificuldades pelas quais os dois eram

panhavam ela e seu caçula, ainda um

Porque aqui já se acha! Morar na Costa é

obrigados a passar diariamente, seus vi-

bebê de colo, até sua casa. Guilherme

tudo de bom!”. Mãe de três filhos, conta

zinhos, amigos e parentes organizaram

tinha bronquiolite, doença que dificul-

que o seu mais velho, Alex, ainda mora-

dois bailes beneficentes no salão paro-

ta o fluxo do ar para dentro e para fora

dor do centro da cidade, insiste para ela

quial da Costa da Lagoa. Com a ajuda do

dos pulmões.

ir morar com ele. Mas, ela repete: “Da

pai da namorada de Guilherme, conse-

Costa não saio, da Costa ninguém me

guiram que a banda Dazaranha tocasse

Com a poluição do centro de Florianó-

tira”. Já a filha do meio, Tamara, veio com

nos dois bailes. Cartazes anunciando o

polis, sua infecção piorava com o passar

ela para o bairro quando tinha 14 anos

evento foram espalhados pela Lagoa da

dos dias. Estressada e, principalmente,

e continua morando no lugar até hoje

Conceição e o resultado foi melhor do

amedrontada com o risco de viver em

com seus dois filhos. E Guilherme, o mais

que o esperado. Com a entrada sendo

um meio tão perigoso, Cris decidiu mu-

novo, mora com ela no ponto 13. Os dois

cobrada por R$ 10,00 para mulher e R$

dar de bairro. Porém, o objetivo não era

juntos, já enfrentaram muitos desafios e

15,00 para homem, o baile lotou e todo

uma simples mudança de lar, ela busca-

cada dia é uma nova vitória. Gui foi diag-

o dinheiro que conseguiram foi usado

va mais: gostaria de uma nova filosofia

nosticado com leucemia pouco tempo

em futuros exames e tratamentos ne-

de vida para a sua família.

depois de terem se mudado para a Cos-

cessitados por Gui. Cris diz não saber até

ta da Lagoa, onde ele conseguiu se curar

hoje como agradecer toda a ajuda que

da bronquiolite.

recebeu. Afirma também que o povo da

Há 16 anos que Cristina encontrou o seu

Costa sempre a auxiliou demais. “É um

destino tão almejado. Hoje, moradora da Costa da Lagoa, garante levar uma

Na época em que o câncer se encontra-

ambiente onde um vizinho acolhe o ou-

vida muito mais leve e tranquila, onde o

va no pior estado, Cristina chegou a ficar

tro”.

57


se chover ela recolhe as minhas roupas

porta mais o barulho das buzinas e do

Para ela, essa vida em comunidade é um

e coloca na minha área, fecha as minhas

trânsito. Nada se compara ao som da

outro fator essencial para fazer da Cos-

janelas e tudo”.

cachoeira e dos pássaros em sua janela.

ta um espaço mágico. Todos no bairro

“Riqueza que nenhum dinheiro compra”.

têm a consciência dessa coletividade e

Ela dá muito valor a esse sentimento de

Tranquilidade, leveza, calmaria e natu-

assim, acabam formando um ambiente

confiança, afinal onde morava anterior-

reza fazem parte da filosofia de vida da

seguro, onde podem deixar as portas e

mente, vivia o oposto do que se pode

Cris, fazem parte de sua transformação

janelas abertas sem preocupação. Cris

chamar de segurança. Se não for para

iniciada há 16 anos e que segue aconte-

ilustra uma situação corriqueira na Cos-

visitar Alex, Cristina conta que vai para

cendo nos pequenos detalhes do dia a

ta: “Eu aviso para a vizinha que vou sair,

o centro da cidade forçada, pois não su-

dia.

Cristina vivencia importantes mudanças na vida e valoriza um lar tranquilo e o contato com a natureza. (Foto: Marcela Teixeira)

58


Comunidade: uma grande família

Relacionamentos consanguíneos são comuns na Costa da Lagoa

POR LEIDIANE SAMPAIO

Em uma comunidade pequena, com

ces de um filho nascer com alguma

sobre o nascimento do filho com seu

poucas opções de acesso como a

doença são de 3% em um casal sem

primo Mauricio.

Costa da Lagoa, até meados do sé-

parentesco, e 6% a 8% em um casal

culo XX era comum os parentes casa-

com vínculo sanguíneo, mas se esse

rem-se entre si. Mas engana-se quem

casal já tiver algum filho com doença

pensa que os enlaces consanguíneos

genética, os riscos de nova ocorrên-

não aconteçam mais nos dias de hoje.

cia aumentam para 25%. Segundo

Seu Nelson, morador da Costa da La-

os moradores afirmam, no entanto,

goa, explica que as pessoas começa-

apenas o caso de uma família em que

vam a namorar e as meninas eram

dois dos três filhos nasceram com

“roubadas” da casa dos pais. Quando

algum tipo de deficiência foi regis-

retornavam com seu parceiro eram

trado até agora na Costa da Lagoa.

consideradas casadas. Poucos eram

Como naquela época não havia um

os que realizavam o casamento ofi-

acompanhamento médico, não foi

cial, com cerimônia e comemoração.

possível diagnosticar com exatidão

Ainda hoje é possível encontrar ca-

as causas da doença.

sais que buscam na própria comu-

Entre os moradores, todos têm um parente em comum, um tio, um primo, um sobrinho nidade os parceiros para a consti-

Para eles não existia a preocupação de se casar com alguém do mesmo

“A gente foi procurar, perguntamos

tuição de um lar, isto é, apesar de

sangue. O que realmente importava

para os médicos e eles falaram que

conhecerem novas pessoas, novos

era a constituição de uma nova fa-

acontecem problemas, mas que não

lugares, mantem a tradição e o com-

mília. Geralmente, só após a união

iria acontecer, que a gestação tava

portamento de seus pais. Entre os

se parava para pensar nos desdobra-

tudo bem; não tinha nenhum perigo

moradores, todos têm um parente

mentos dessa espécie de endogamia.

de nascer com sequela pelo fato de

em comum, um tio, um primo, um

O amor e a vontade de ter alguém ao

ter parentesco. Graças a Deus deu

sobrinho. A comunidade da Costa da

lado falavam mais alto. Em contrapo-

tudo certo, foi parto normal, minha

Lagoa não é formada apenas por vi-

sição à união de familiares, a ciência

recuperação foi boa, bem tranquila”,

zinhos e conhecidos. Nela vive uma

alerta para o fato de que as chan-

diz Maiara, jovem moradora da Costa

grande família.

59


Mãe, esposa, estudante e trabalhadora

Uma jovem que concilia o trabalho, a casa e o filho

POR LEIDIANE SAMPAIO

Em uma tarde ensolarada na Costa da

medo de a criança ter alguma doença,

mente cursar Administração. Maiara

Lagoa, uma jovem morena, de olhos

mas graças a Deus ele saiu perfeito”.

concilia sua vida de mãe, esposa e es-

castanhos, muito simpática e comu-

Ainda sobre a questão de casar com al-

tudante com o trabalho em um restau-

nicativa está sentada na sala da casa

guém da família, ela completa: “Tenho

rante na própria comunidade. Pergunto

de uma conhecida, juntamente com a

uma tia que é casada com um primo,

se tem interesse em ter mais filhos. Ela

irmã e o filho. É Maiara dos Santos, 22

uma prima também que se casou ago-

fica em silêncio por um instante e com

anos, moradora da comunidade. Aten-

ra, aqui é bastante comum, né. Como

um sorriso responde: “Hoje em dia é

ciosamente, ela conta um pouco sobre

a comunidade é pequena, acho que

muito difícil criar, educar, um já tá de

sua vida.

na verdade é relativo, até porque hoje

bom tamanho”.

a gente já conhece bastante gente de Maiara é casada e tem um filho. Pri-

fora, estuda lá no Centro, na Lagoa, en-

mo de 1º grau, Maurício tornou-se seu

tão acho que é relativo”.

marido depois de um longo namoro. Como fruto da união, nasceu Guilherme, hoje com um ano e dez meses. “A gente namorava há seis anos, quando eu engravidei e a gente casou”, conta a moça, olhando orgulhosamente para o filho no colo. A exemplo de muitas outras pessoas

“Hoje em dia é muito difícil criar, educar, um já tá de bom tamanho”

que têm um relacionamento com alguém da própria família, ela também

Sem abandonar os estudos, formou-se

teve a preocupação em saber se o fi-

pelo IFSC em Técnica em Saneamento

lho correria o risco de vir com alguma

e hoje está estudando para concurso,

deficiência. Ao comentar sobre essa

mas não quer parar por aí. Em busca

“Hoje em dia é muito difícil criar, educar, um já

questão delicada, ela diz: “A gente tinha

dos seus objetivos, pretende futura-

tá de bom tamanho” (Foto: Leidiane Sampaio)

60


Sonho de ser o craque da Costa

Enquanto sonha, o pequeno Bernardo aproveita a beleza, a pescaria e a família

POR JÉSSICA DAUSSEN

Nativo da Costa da Lagoa, Bernardo

teve que parar por motivos financei-

um hobby muito vivo na vida deles.

Manoel Bernardes, o pequeno sonha-

ros. Nesse tempo realizou alguns tes-

Outro passatempo de Bernardo são as

dor de apenas 14 anos de idade desde

tes para ingressar no time de juniores

novas tecnologias, como seu celular e

muito cedo encarou diversas dificul-

de Avaí e Figueirense, mas não teve

computador.

dades. Quando tinha somente dois

êxito em função das condições exigi-

anos, ficou órfão de mãe. A partir daí,

das pelos clubes. Bernardo teve que se

O garoto quer terminar os estudos

passou a ser educado pelo pai, Mano-

contentar com o campinho da escola.

e treinar fora do país. Mas, enquanto ainda está na fase da adolescência,

el João Bernardes, 65 anos, pescador, hoje barqueiro na Costa. O seu barco

A convivência entre pai e filho é muito

aproveita a Costa com o pai e a família,

tem o nome do filho mais novo, o pró-

intensa. Os dois, por exemplo, adoram

sonhando que um dia a Costa da La-

prio Bernardo.

pescar juntos e curtir as belezas que a

goa seja anfitriã de um grande craque

Costa oferece. A pesca continua sendo

do futebol.

A rotina do menino inclui o translado diário, realizado por barco, da Costa da Lagoa até a Lagoa da Conceição, onde estuda no Colégio Escola Básica Municipal Henrique Veras. Bernardo navega todos os dias movido pelo sonho de ser jogador de futebol. Sem a infraestrutura necessária para manter um campo de futebol na Costa, o sonhador joga no colégio com seus colegas, e em alguns lugares inapropriados para a prática da modalidade. Há somente dois meses na escolinha de futebol da Cachoeira do Bom Jesus,

Depois de terminar os estudos, quer treinar em um time de fora do país. (Foto: Jessica Daussen)

61


Turismo sem perder a identidade

Comunidade apoia fluxo turístico sem prejuízos para a cultura local

POR JÉSSICA DAUSSEN

Durante muitas décadas, a Costa da

do seu esforço o resto do ano, conta

vem muito tempo na Ilha de Santa Ca-

Lagoa sobreviveu de um fluxo turís-

João Schmidt, nativo da Costa.

tarina sem conhecerem a Costa. “Vão encontrar depois de muito tempo,

tico concentrado na alta temporada, mas essa tendência tem variado bas-

Depois da criação das cooperativas de

por volta de 40 anos, um lugar desse

tante nos últimos 15 anos. Hoje co-

barco, muitos pescadores adquiriram a

que a Ilha mantém escondido”, conta

meça a receber turistas nacionais e

sua própria embarcação. Consequen-

Djalma Naelzo Laureano, o Jájá, dono

estrangeiros o ano todo, interessados

temente, o pescador faz o transporte

do restaurante Sabor da Costa.

em conhecer não somente os pon-

dos turistas e, no final da semana, essa

tos mais badalados, mas cada peda-

renda é revertida para a comunidade.

Segundo os empreendedores do lo-

ço desta ilha cheia de esconderijos e

O aumento do fluxo turístico fez tam-

cal, manter-se no inverno somente

surpresas pelo mar ou mata adentro.

bém multiplicarem-se as cooperativas

com a renda da baixa temporada é

Em função da mudança, restaurantes

e os estabelecimentos gastronômicos.

muito difícil. Eles aproveitam essa

funcionam todos os dias e a procura é

Atualmente são 13 restaurantes, man-

época para fazer as reformas estrutu-

cada vez maior, provocada pela divul-

tidos por 50 famílias da Costa. O pio-

rais com vistas a deixar tudo pronto

gação na mídia dos atrativos históri-

neiro é o Lacosta, de propriedade de

para a alta temporada, como acon-

cos e culturais do local.

Marlene Laureano de Andrade, com 43

tece em outras regiões turísticas. O

anos de estrada.

diferencial da Costa é que tudo funciona normalmente, mesmo em dias

Na alta temporada, os donos dos restaurantes garantem sua renda anual.

As possibilidades de entretenimento

de chuva. As atrações voltadas para

Com a casa sempre cheia, eles se pre-

ecológico aquecem o turismo na Cos-

a baixa temporada já fazem parte do

param para o inverno. Antigamente,

ta. Forasteiros procuram bastante a

cotidiano da comunidade.

os pescadores nativos, já trabalhavam

trilha na mata atlântica que também

em um sistema sazonal: durante o in-

é um dos modos de acesso à Costa.

Para animar a cultura tradicional, todo

verno, iam para o Rio Grande do Sul

De barco ou de trilha, eles passeiam

ano o povoado realizada a Farinhada

pescar durante seis meses por ano.

valorizando e preservando a cultura

do Engenho no Ponto 8, promovida

No estado vizinho, faziam o “pé de

tradicional da Ilha.

com apoio do Curso de Antropologia

meia” e quando voltavam usufruíam

Impressiona ver vários nativos que vi-

da Universidade Federal. A Festa dos

62


Navegantes, que parte do local, tam-

tivos muito fortes que não têm a de-

a hospitalidade com o forasteiro, pois

bém desponta como a maior procis-

vida valorização, nem de reforma de

muitas famílias vivem disso. Barcos

são de barcos da Ilha, reunindo cerca

casarões históricos, nada.

que eram pra 20 pessoas, em questão

de cem participantes. A Festa da Cruz,

de 15 anos evoluíram de 30 acentos

que envolve a Capela da Costa é outra

- A gente tem que fazer tudo sendo

para cem acentos. Pelo tamanho das

comemoração que mobiliza a comu-

moradores; falta liderança política. A

embarcações, percebe-se a evolução

nidade e visitantes.

nova geração tem que se capacitar pra

da atividade turística, mas os mora-

isso, saber reivindicar. Os nativos anti-

dores sabem que tem uma galinha de

A Costa gera um fluxo turístico na Ilha

gos aceitavam qualquer coisa, eles não

ovos de ouros nas mãos.

toda. “O pessoal vem pra Floripa só

tinham o poder de contestação, argu-

pra vir pra cá, pra vir aqui comer estas

mentação, e ainda temos uma política

- Um publicitário muito envolvido

delícias, visitar este lugar maravilho-

bem rudimentar, bem retrógrada, que

com o Governo do Estado já tem um

so, estar nesta energia”, empolga-se

rola aqui — desabafa João.

projeto para 23 bangalôs de luxo e

João Schmidt. Todos retornam. Quem

uma estrada lá pelo Ratones, mas é

não volta, segundo ele, é o poder pú-

Todo morador da Costa tem contato

uma coisa contra o que a gente vai

blico: “Não volta com os incentivos,

com o turista direta ou indiretamente.

lutar até a última pra não vir, pra não

em forma de estrutura, acessibilida-

Um comportamento cultural já enrai-

perder a identidade aqui da Costa, do

de”. Segundo ele, o lugar oferece atra-

zado como importante é o respeito e

passeio de barco —  a posta Jajá.

Turistas que visitam a comunidade o ano todo deram impulso econômico à região (Foto: Jessica Daussen)

63


A jornada nas marés

Desde os 13 anos, seu Valter vive da pescaria

POR IZABELA SGROTT SERPA

Dentre muitas idas e vindas, o desti-

nos de farinha, com 15 a 20 quilos

um ano e três meses sem voltar para

no final é sempre o mesmo. Seu Val-

cada um? Puxado? Que nada, para

casa. Dormindo em barraco e traba-

ter Miguel de Andrade, durante seus

seu Valter isso era comum. Conta

lhando na pesca, adquiriu grande

63 anos de vida, já foi e voltou mui-

que, quando pequeno, era muito fu-

experiência: “Na minha época nin-

tas vezes, mas o lar original fala mais

rioso, inclusive ganhou o apelido de

guém ganhava mais dinheiro que

alto. Costa da Lagoa. Esse lar origi-

“Bartola”.

eu, na pescaria”. Até que aos 21 anos retornou para Costa.

nal tem como característica forte a união da família, e com seu Valter não seria diferente. Deu início com seu avô, logo após seu pai e agora ele, casado com Dona Marlene Laureano de Andrade, com quem teve três filhos. Como todos os outros nasceram e permanecem na Costa da Lagoa.

“Na minha época ninguém ganhava mais dinheiro que eu, na pescaria”

Seu Valter não deixa de ir para o Rio Grande do Sul, mas é algo esporádico. Sua nova viagem, que já dura 33 anos, é a inda e vinda diária de casa ao seu restaurante, “Lacosta”, que administra com a mulher. Agora a pescaria já não é lá tão praticada por ele, o foco é a administração do

Os costumes de pesca não foram

restaurante, mas garante que não

passados para as filhas, mas Valter

tem medo de pescar com alguém de 18 anos.

aprendeu e viveu uma parte deles.

Mas nem sempre ele viveu des-

Lembra que, ainda jovem, acorda-

sa maneira que apresenta. Aos 13

va entre 4 e 5 horas da manhã para

anos decidiu acompanhar seu pai

Apesar dessas constantes viagens,

colocar fogo no forno e começar a

nas pescarias que não eram tão ao

Seu Valter permanece na Costa da

fazer a farinha, pois na época ainda

redor da Costa da Lagoa. Toda essa

Lagoa. Perto dos filhos e conheci-

existiam 11 engenhos funcionando.

aventura o levou para o Rio Grande

dos, que nesse lugar se tornam fa-

Sua companhia eram apenas os bois

do Sul. Passando meses aqui meses

mília também. Ele diz que continua

que o esperavam no tronco. E todo o

acolá, ele completou seus 15 anos e

aqui e não tem mais vontade de sair.

trabalho de fazer três ou quatro for-

permaneceu no estado gaúcho por

Afinal, o bom filho à casa torna.

64


Paisagem inspiradora., nĂŁo ĂŠ a toa que turistas

65

e moradores se encantam. Foto: Izabela Sgrott Serpa


pelos caminhos da saúde

Lugar onde a indisposição não tem nem espaço para aparecer

POR IZABELA SGROTT SERPA

O movimento dos carros, a pressa do

muito difícil ter cultivo próprio, mas

hábitos diários, o que inclui alimenta-

dia a dia, correria e mais correria. “Não

salvam-se algumas exceções. A Cos-

ção e movimentação do corpo, fato-

deu tempo de preparar a janta, apela-

ta da Lagoa, por exemplo, consegue

res primordiais, não importa a idade.

se para o fast food”. Todos esses costu-

ser um refúgio para tudo o que é vi-

Ao contrário das grandes cidades, lá

mes são tão normatizados que as pes-

venciado nos centros urbanos. Como

não tem asfaltamento e calçadas. A

soas não se dão conta de como eles

a maioria dos lugares, antigamente

“rua principal” é uma trilha, ou seja,

influenciam na qualidade das nossas

também produziam seus próprios

sem acesso a carros tudo é na base

vidas. Parece que o tempo já não está

recursos, mas o diferencial está jus-

da caminhada. Com isso, a questão da

mais a nosso favor e, na tentativa de

tamente no local em si, pois ainda há

saúde é favorecida de uma forma dis-

fazer o mais prático, a nossa qualidade

espaço para isso. Dona Vadinha, Val-

creta e cotidiana. “Jájá”, Djalma Naelzo

de vida pode sofrer mudanças.

delina Felomena, por exemplo, tem

Laureano, dono do restaurante Sabor

mais de cinco variedades de planta-

da Costa, sintetiza bem esse privilé-

O melhor exemplo disso é a compa-

ções de chá, como o de quebra pedra,

gio quando afirma que: “Para alguém

ração entre os tempos antigos e o

chá de alecrim, capim limão e espi-

ficar doente na Costa da Lagoa, só de-

moderno, em relação aos costumes

nheira santa. Claro que esses costu-

pois dos 100 anos! ”

alimentares, visto que o imediatismo

mes não são tão intensos como antes,

é uma característica da atualidade,

uma vez que também se adaptaram à

A beleza natural do lugar fixa os mo-

o prático ganha destaque. Mas nem

praticidade das coisas.

radores, que se adaptam muito bem a tudo que seria um empecilho para os

sempre foi assim. A entrada de enlatados e transgênicos foi algo tardio,

A Costa da Lagoa se destaca também

que moram em cidade grande, como

sendo assim, na época o costume de

devido à quantidade de idosos que lá

a necessidade de fazer várias viagens

plantio próprio de feijão, verduras e

vivem, como o seu Zidoro que com

de idas e vindas de barcos. Mas nada

farinha era muito comum, ou seja, há-

80 anos vai longe com sua bengala.

disso é problema para eles, afinal, vi-

bitos alimentares mais saudáveis era

Ou então dona Joana, com 84 anos,

vem em um local onde o barulho do

algo quase que inevitável.

que faz seu almoço, janta e o que for

mar e a natureza compensam qual-

preciso, com muita disposição. A lon-

quer desconforto e levam, natural-

gevidade costuma ter relação com os

mente, aos caminhos da saúde.

Hoje, no meio da selva de pedras, é

66


Do rádio à internet

A tradição modifica-se com a tecnologia

POR MARCELO MARTINS

Desde 1988 quando a associação dos

sinal nosso povo poderá ver a televisão

vida “isolado”. A tecnologia mobile criou

moradores da Costa da Lagoa (Amocosta)

local’’.

um novo mundo e transformou o que

conseguiu a instalação do primeiro tele-

Savas acrescenta que essa ausência da

era uma facilidade numa necessidade.

fone público celular do estado, na Vila da

informação local é reforçada pela impos-

Djalma Naelzo Laureano, o Jajá, conta

Igreja, até a chegada da internet na últi-

sibilidade de os jornais impressos chega-

que nos últimos cinco anos as mudanças

ma década, o lugar pôde deixar o isola-

rem à Costa da Lagoa. “Aqui os jornais não

foram grandes, principalmente entre os

mento. Geograficamente separada pelo

chegam, principalmente pela dificuldade

jovens. “A juventude de hoje já não escu-

difícil acesso ou pelas trilhas ou de barco,

de entrega e pela falta de uma agência

ta rádio, os jovens colocam uma playlist

a Costa da Lagoa é uma comunidade tu-

dos correios. Quem lê jornal por aqui é

e ficam escutando música e trocando

rística e pesqueira localizada ao longo da

porque trouxe de fora”, explica. Valter Mi-

mensagens o dia todo”. Para Jajá, mesmo

margem noroeste da Lagoa da Conceição

guel de Andrade conta que a localidade

que essa revolução tecnológica afaste um

em Florianópolis. A comunidade ainda

já teve um jornal local. “Por um tempo

pouco as pessoas da cultura nativa, tem

guarda traços da colonização açoriana

um moço colocou um jornalzinho aqui na

promovido o desenvolvimento da co-

em seu modo pacato de viver e falar.

Costa. Era bom saber das coisas do lugar,

munidade. “A facilidade da internet tem

Em 1982 chegou à localidade a rede elé-

mas isso acabou quando ele foi embora”,

ajudado nosso povo; agora todo mundo

trica. Com ela o uso dos antigos rádios

afirma.

tem um telefone e tudo ficou mais fácil,

de pilha foi diminuindo para dar lugar

A chegada da internet e dos smartpho-

apesar de alguns problemas que o uso

aos aparelhos de televisão, que logo se

nes tem provocado grandes revoluções

demasiado dos celulares possa trazer.

consolidou como o principal meio de co-

no cotidiano dos moradores acostuma-

Hoje a Costa da Lagoa não viveria sem

municação. Com o sinal de transmissão

dos com a peculiaridade desse modo de

esse avanço”, acredita.

local precário, a comunidade buscou a instalação das antenas parabólicas que transmitem com maior nitidez, porém com programação de outros estados. Segundo Savas Naelzo Laureano, hoje, com a chegada do sinal digital, esse problema está sendo resolvido. “A maioria na comunidade ainda possui as parabólicas, mas creio que com o tempo e a melhora no

A internet trouxe muitas facilidades à Costa, e isto é só o começo. (Foto: Marcelo Martins)

67


Caminhos do No acesso pelas 26 moinhos “celeiro da trilhas, de farinha ilustram ilha” a história POR ELIO QUARESMA NETO

A Costa da Lagoa, um recanto turís-

Baixada, Centrinho, Praia do Sul e Sa-

tico e gastronômico da ilha de Santa

quinho.

caminhar junto à natureza.

Catarina, é conhecido e respeitado

Além de sua natural beleza, o cami-

pela qualidade da comida típica servi-

nho possui placas que orientam o

da nos mais de vinte restaurantes na sua extensão e também pela estonteante beleza que constitui o local. O acesso através dos barcos é a escolha favorita da maioria dos visitantes deste paraíso florianopolitano. No entanto, a Costa da Lagoa tem em suas trilhas, um atrativo a parte para quem procura além de belas lembranças e uma comida saborosa, uma caminhada sadia e a oportunidade para fotos incríveis, além de conhecer mais sobre a história local.

Além de sua natural beleza, o caminho possui placas que facilitam saber mais sobre os marcos históricos do lugar

andarilho e que facilitam saber mais sobre os marcos históricos do lugar, como a casa que foi construída por escravos em 1780 aproximadamente, além do engenho que ainda hoje abriga a festa da “farinhada”, ocorrida em agosto, uma festa histórica que mantém a tradição do povo açoriano. O caminho da Costa da lagoa já foi conhecido como o “celeiro da Ilha”, por conter mais de 26 moinhos na sua extensão. Um importante caminho histórico cuja preservação apenas os seus moradores e simpatizantes do local se encarregam.

As trilhas têm aproximadamente 8

Com um trajeto bem demarcado, em

km de extensão total, sendo possível

sua maioria estrada de terra, caminha-

sair do Canto dos Araçás e ir até a es-

se por dentro da mata preservada,

O caminho deixou de ser conservado

trada geral de Ratones, próximo ao

com cachoeiras, córregos de aguas

em 1945. Até então, era possível per-

Canto do Moreira. Possui ao longo de

cristalinas, um cheiro de orvalho se-

correr toda sua extensão de charrete

todo o caminho sete vilas, sendo na

cando nas folhas, o barulho do mar e

ou carro-de-boi. Joana, moradora da

ordem partindo do Canto dos Araçás:

dos barcos que transitam ao seu lado,

Baixada e benzedeira, conta que na

Vila Verde, Praia Seca, Praia da Areia,

sem afetar a paz e a tranquilidade de

região residia um certo Manoel da

68


Costa, rico proprietário de terras, que

çás é a mais longa. Com cerca de 7 km

ga-se ao centrinho da Costa da Lagoa

mandava cortar os ramos de árvores

de extensão, são aproximadamente

que oferece excelentes restaurantes e

que tocassem seu chapéu enquan-

duas horas de caminhada. Já a trilha

visuais incríveis da baía da Lagoa da

to passava montado a cavalo. Outro

que parte de Ratones, tem cerca de

Conceição até o Rio Vermelho.

dono de engenho cavalgava acompa-

meia hora de duração e tem cami-

nhado por um escravo a pé, levando

nhos mais íngremes. A vista única de

Mas os recursos naturais que cercam

parte das compras feitas na Freguesia

toda a lagoa da Conceição e praias da

toda a Costa, não se comparam a be-

da Lagoa, atual avenida das rendeiras,

região compensa o esforço da subida

leza de seu povo, que é a fonte e a

na Lagoa da Conceição.

do morro da chapada.

essência de todo o charme que completa a aventura de estar em um dos

A trilha que parte do Canto dos Ara-

Por qualquer caminho escolhido che-

locais mais bonitos de toda a ilha.

Desde 1945 o caminho não é conservado. O acesso à Costa da Lagoa só é possível a pé (Foto: Elio Quaresma Neto)

69


perfil de mulher, mãe natureza

Seu cheiro possibilita resgatar sensações da infância

POR ELIO QUARESMA NETO

Como jornalista que quero ser, te-

variando as temperaturas entre a

um Brasil ainda ingênuo, mas tam-

nho o desafio de escrever sobre um

água fria contida na terra e a nesga

bém brutal. Sei que o ideal seria res-

personagem característico da trilha.

do sol quente que escorre através

gatar essa história e documentá-la

Escolhi ela que é mãe. Não uma mãe

das folhas das árvores, iluminando

com profundidade, pois afinal é esse

humana, mas de essência, como os

o caminho.

o sentido da literatura da vida real,

primeiros habitantes da nossa na-

mas tentarei aqui, como capricho de

ção nomearam a terra que gerava

seus filhos pescadores, lançar meus

seu sustento, a terra-mãe, a mãeterra. Acredito que devo tratá-la como mulher por cuidar de seus filhos e de todos que passam por seus rústicos caminhos, mesmo que não percebamos. Deve ser por instinto ou apenas a minha singela percepção de que em alguns casos, ser mulher é dar suporte à vida. E isso ela faz muito bem. Se me pedissem para descrevê-la, falaria que ela tem a beleza de um parque cheio de folhas caindo, em um acolhedor e charmoso outono.

Quando se evocam essas memórias, os tempos se misturam, e ainda hoje é possível sentir o cheiro vivo das mortes que tiveram como palco esse local

anzóis no lago nebuloso do passado para falar um pouco do que ela viu. Era um tempo em que as estações se sucediam, produzindo nada além de si mesmas. Homens escravizaram uns aos outros em seu ventre, impondo ideologias irracionais, de fundamentação tão vaga e prejudicial quanto a própria ação. Nesse tempo surgiram a casa histórica construída por escravos e também o moinho de farinha, que assim como rugas que vêm com o tempo, marcam o corpo dessa essência que chamo de mãe.

Com seu cheiro é possível resgatar

Estas e outras memórias ela expõe

e sentir novamente as sensações da

para todos que quiserem ouvir, ou

infância. Posso sentir um pé corren-

Impossível determinar e revelar sua

pelo menos para os que souberem

do no seu chão ainda enlameado,

idade, pois ela viveu um tempo de

como perguntar. Quando se evocam

70


Uma mãe de muitas memórias, à procura de quem sabe ouvir. (Foto: Elio Quaresma Neto)

essas memórias, os tempos se mis-

Aprendi que para contar bem uma

em movimento é o que traz a bele-

turam, e ainda hoje é possível sentir

história é preciso primeiro se sentir

za de falar desta mãe que às vezes

o cheiro vivo das mortes que tive-

parte dela e a dificuldade de con-

é imperceptível, indizível, que é a

ram como palco esse local.

cluir uma narrativa que ainda está

própria trilha.

71


lembranças do velho pescador

Viúvo há quase dois anos, se emociona quando fala dos velhos tempos

POR CLÁUDIO SOUZA DA ROSA

Morador da Costa da Lagoa, seu Dar-

cia do centro de Florianópolis, Darcy

turistas que contribuíram para o

cy —  c omo é conhecido pelos ami-

conta que está acostumado a andar

crescimento da economia e da qua-

gos e vizinhos —  t em orgulho do lo-

de barco, principal meio de transpor-

lidade de vida do povoado Em rela-

cal que escolheu para construir sua

te dos moradores da Costa. Na sua

ção aos trapiches, Darcy diz que é um

vida. Nascido no dia 15 de outubro

opinião, o barco é mais seguro que o

privilégio desfrutar dos seus benefí-

de 1931, Darcy Leopoldo Albino co-

carro, além de evitar as filas que cos-

cios. Eles são resultado da mobiliza-

memora, no final deste ano, 84 de

tumam acontecer no trânsito caótico

ção dos moradores da Costa junto

vida. No seu cotidiano, o ex-pesca-

da Ilha. E o melhor de tudo, segundo

ao poder público e à classe política.

dor costuma refletir sobre o passado

ele, é poder contemplar durante o

A construção dos trapiches, a im-

e os novos tempos vivenciados pela

trajeto as belezas naturais que o fa-

plantação do sistema de transporte

comunidade.

zem ter a certeza de que escolheu o

coletivo e a organização das coope-

melhor lugar para viver.

rativas são, portanto, conquistas da vontade coletiva.

Viúvo há quase dois anos, ele ainda se emociona quando fala dos velhos

Mas nem tudo sempre foram flores.

tempos. Nascido e criado por uma

O manezinho Darcy diz que as coi-

Manezinho da ilha, Darcy Leopoldo

família de pescadores, herdou do pai

sas melhoraram após a instalação da

Albino relembra ainda o sacrifício e

a paixão pela pesca, que garantiu o

energia elétrica, há mais ou menos

a dedicação dos moradores na árdua

sustento da família. Ao falar de sua

31 anos, quando o deputado federal

tarefa de construir suas moradias

história, Darcy lembra que passava

Esperidião Espiridião Amim era pre-

nessa comunidade isolada. Todos os

dias, ou até mesmo meses, fora de

feito. Darcy lembra que o político é

materiais chegavam e ainda chegam

casa. O seu principal destino era o

muito estimado pelos moradores,

até hoje de barco, o que exige mui-

estado do Rio Grande do Sul, onde

que reconhecem a importância de

ta força física, além de encarecer o

aperfeiçoou o oficio em 1953. A pai-

suas obras.

preço das construções, conta o velho pescador. Mesmo diante das dificul-

xão pela Costa da Lagoa o trouxe de volta, em 1967, para a ilha onde nas-

Após a chegada da energia elétrica,

dades e das ameaças à cultura po-

ceu e se criou.

começou a construção dos primeiros

pular, Darcy garante que não troca

restaurantes. Em função dessa nova

a Costa da Lagoa por nenhum lugar

realidade, a Costa passou a receber

deste mundo.

Vivendo há mais de 18 km de distân-

72


Relembrando os esforรงos para conseguir morar na Costa,

73

Darcy hoje vive no melhor lugar Foto: Clรกudio Souza da Rosa


De barco ou internet, há navegação

Novas redes se infiltram na cultura da Costa da Lagoa

POR CLAUDIANY SCHUTZ

Meios comunicação modernos, que

tecnologia como uma forma de dis-

princípios e opiniões também se dis-

dão acesso a amplas redes de infor-

tanciar os jovens da cultura nativa, so-

tinguem. Cristiano Santos, 26 anos,

mação com eficiência e velocidade,

bretudo da pesca e culinária. Mas ele

utiliza o meio apenas quando neces-

infiltraram-se na cultura da comuni-

reconhece que com as novas automa-

sário para pesquisas que facilitam as

dade da Costa da Lagoa, que durante

tizações, seus mergulhos ficaram mais

tarefas do dia a dia. Ele conta ainda

muito tempo manteve-se mais isola-

fáceis. “O GPS, sem dúvidas, ajuda mui-

que obteve seu primeiro celular aos

da e protegida dos costumes urba-

to na remada: antes tínhamos que re-

15 anos, mas hoje em dia crianças

nos. Por volta de uma década eles se

mar quase uma hora até ter a precisão

de 10 anos, na Costa, já têm todas as

propagam cada vez com mais rapidez

de olhar no escuro e localizar o ponto

tecnologias possíveis. Na sua adoles-

na comunidade. Porém, essa “invasão

do mergulho, que não tivesse pedras

cência, a internet e a telefonia eram

digital” divide opiniões entre os nati-

nem escuridão. Com o GPS, localiza-

menos acessíveis pelas dificuldades

vos. Segundo Manoel João Bernardes,

mos em um instante só”, compara Jajá.

de conexão e valores abusivos. Assim

de 65 anos, as inovações promovem

como Cristiano, Alisson Laureano, de

o acesso dos jovens ao mundo intei-

22 anos, salienta a diferença no de-

ro e deixam a população mais inteligente. Seu filho mais jovem, de 14, fica praticamente 24 horas no celular, o que para ele não é um empecilho. Além disso, segundo Manoel, a tecnologia não prejudicou o aprendizado e o vínculo dos jovens com a cultura local, uma vez que com ela os jovens podem aprender ainda mais sobre sua origem. Pescador, dono de restaurante, Djalma

“A diferença da minha idade para a do meu irmão é de cinco anos, porém, ele parece ter uns 30 a mais do que eu, pois só pensa em utilizar a internet e afins”

74

diferença da minha idade para a do meu irmão é de cinco anos, porém, ele parece ter uns 30 a mais do que eu, pois só pensa em utilizar a internet e afins”, conta o jovem nativo. Conflitos de opiniões surgem a todo o momento. Ana Carolina Ghisio, 18 anos, defende que a internet veio para somar e argumenta que a tecnologia não interfere na cultura local, Julia Pereira, também com 18 anos,

Naelzo Laureano, 45 anos, conhecido como Jajá, considera, ao contrário, a

correr dos anos e das gerações. “A

As gerações mudam e com elas os

pensa diferente. Ela relata ter deixado


de aprender aspectos da cultura po-

meno globalização” envolve vanta-

tação, entretanto, necessita de caute-

pular açoriana com seus pais e avôs

gens e desvantagens. É preciso en-

la e moderação para evitar que a sé-

por causa da tecnologia, que virou fe-

tender e participar com senso crítico

rie de vantagens trazidas pelas novas

bre logo na sua pré-adolescência.

e autonomia dessa nova realidade

tecnologias da comunicação se torne

Contudo, o grande desafio do “fenô-

que permeia o mundo inteiro. A adap-

uma série de riscos.

Na comunidade da Costa da Lagoa existem “de sobra” mãos cheias de tecnologias e criatividade. (Foto: Claudiany Schutz)

75


Barco da cooperativa, que leva e traz moradores e turistas

76

todos os dias

Foto: Claudiany Schutz


pequeno grande pescador

Aventureiro de longa data, Manoel João Bernardes não troca a Costa por nada

POR CLAUDIANY SCHUTZ

Filho de pai pescador, Manoel João

Santos, Paranaguá e Rio de Janeiro. Ao

rou a retirada do seio, mas o distúrbio

Bernardes, natural da Costa da Lagoa,

descarregar toneladas e toneladas de

já havia se espalhado pela corrente san-

começou a seguir a carreira do pai aos

pescados e crustáceos, podia desfrutar

guínea, o que causou a morte de Cléia.

oito anos de idade. Além da pesca, tra-

da beleza de cada local. Nos barcos de

balhou na roça plantando milho, feijão,

aproximadamente 28 metros de com-

Foi sem dúvida uma dura notícia para

batata, mandioca e aipim para ajudar

primento, Manoel e seus companheiros

o pescador, que não se deixou abalar

na sobrevivência da família, enquanto

costumavam capturar mais de 100 to-

e seguiu a vida para educar os filhos.

o pai João José Bernardes viajava em

neladas ao ano, já fisgaram camarão de

Logo no mesmo período, virou barquei-

grandes embarcações, em torno de seis

700g e peixes de 380 kg.

ro e piloto náutico. Comprou seu barco e iniciou a carreira na Coopebarco, a co-

meses, para ganhar o sustento da casa. Com a ajuda da família, criava animais

De volta para a Costa da Lagoa, em

operativa de barqueiros autônomos da

como bois, vacas e porcos para contri-

2011, Manoel, mais conhecido como

Costa da Lagoa.

buir na alimentação.

Deka, a esposa, Cléia Maria Pereira, e três filhos, Samara, Mariana e Bernardo,

Atualmente, aos 65 anos de idade, o

Em 1969 Manoel entrou na profissão

retornaram para “o paraíso”, como Ma-

pescador, barqueiro e pai de família

pesqueira, onde permaneceu durante

noel se refere à Florianópolis.

vive com seu filho mais jovem, Bernardo de 14 anos. O menino é estudante

35 anos, até se aposentar. Durante a jornada, o pescador pôde presenciar

Após o retorno da família, a esposa

e sonha em ser craque de futebol, en-

momentos de felicidade e aflição, pas-

descobriu uma doença incurável, ainda

quanto as filhas Samara, enfermeira

sou noites em claro, presenciou raios,

amamentando o filho mais novo, Ber-

de 24 anos e Mariana, estudante de 18

tempestades e trovões. Tantos foram

nardo. Ela foi diagnosticada com mas-

moram em outras residências na mes-

os apertos que já passou por três dias

tite (conhecido popularmente como

ma comunidade.

se alimentando apenas de bolachas em

leite empedrado). Como não deu muita

alto mar.

atenção ao tratamento, a doença foi se

Certamente Manoel guarda cada gota

agravando, até Manoel tomar uma pro-

do mar em sua memória, e por mais

Navegou por diversos lugares ao re-

vidência e levá-la novamente ao hospi-

que tenha percorrido uma imensa lista

dor do Brasil; os mais visitados foram

tal. No novo diagnóstico foi descoberto

de lugares encantadores, afirma que

o estado do Rio Grande do Sul, Vitória,

um câncer maligno de mama, o que ge-

igual seu lar, a Costa da Lagoa, não há.

77


vidas ancoradas em barcos

Transporte hidroviário permite contato único com a natureza

POR CLÁUDIO SOUZA DA ROSA

A única via de acesso terrestre é a trilha

por causa do vento ou das marés. Outros

munidade melhorou consideravelmente.

formada por pontes, escadarias e rampas

acham um transtorno depender do barco

Fortalecendo a economia local, os nati-

aberta pelos moradores ao longo de dé-

para locomoção. Mas para os nativos, o

vos criaram as cooperativas de barco que

cadas. O outro meio para chegar ao lu-

barco é tão comum quanto sair de carro,

garantem transporte público de hora em

gar é mais fácil mas nem por isso menos

ônibus e moto. Eles sublinham que, ape-

hora.

emocionante: o transporte marítimo. São

sar de ser um transporte lento, é extrema-

embarcações públicas ou particulares,

mente seguro. Sem congestionamentos

Moradores e barqueiros enfatizam que

incluindo os barcos dos próprios pesca-

e livre de acidentes, oferece, de quebra, a

o transporte é seguro. Até porque a con-

dores, que fazem o trajeto dos turistas e

apreciação de uma beleza ímpar.

dução da maioria dos barcos é feita por

habitantes locais. De uma forma ou de

ex-pescadores da Costa que conhecem

outra, chegar ao recanto da é sempre

Há alguns anos, cada morador tinha seu

o trajeto como a palma da mão. Tudo na

uma aventura, mesmo para quem faz o

próprio barco para ir e voltar da cidade.

Costa funciona ancorado nas embarca-

percurso todos os dias.

Com o passar do tempo e com a chegada

ções: transporte de habitantes e visitantes,

da energia elétrica, surgiram também os

de alimento, de lixo, de medicamentos, de

Para os visitantes, pode ser um transporte

primeiros restaurantes e aumentou a fre-

materiais de construção, enfim, a vida das

emocionante, fora da rotina. Mas também

quência de turistas. Como consequência

pessoas e a sobrevivência do lugar estão

pode parecer estranho, lento e perigoso

das mudanças, a qualidade de vida da co-

umbilicalmente ligadas aos barcos.

A comunidade que recebe tudo pelo mar (Foto: Cláudio Souza da Rosa)

78


uma ilha de muitos povos

Lugarzinho contornado pelo Oceano Atlântico, um reduto acolhedor

POR BRUNO BACH ALBORNOZ

Ilha dos Patos. Este foi o primeiro nome

de diversas figuras internacionais não

interesse econômico. As simples casas

registrado, por dois importantes comer-

perdeu essa característica depois de

de pescadores e a mata nativa deram

ciantes português, Nuno Manuel e Cris-

tantos anos. Dados do Instituto Brasi-

espaço a grandes casas de veraneio, de

tóvão de Haro, por volta de 1598. No ano

leiro de Geografia e Estatísticas (IBGE)

pessoas que de pouco em pouco tem-

seguinte, houve a primeira miscigenação

apontam que Santa Catarina foi o esta-

po visitam o seu paraíso comprado, com

intensa com aborígenes, após um nau-

do que recebeu o maior volume de imi-

decks que invadem áreas não permiti-

frágio envolvendo o navegador espanhol

grantes em relação aos outros estados

das. Mas não são todos que invadem a

Juan Del de Solis. Piratas e mercantes que

do Sul, uma média de 638.494 pessoas

pacífica comunidade deste jeito. Muitas

passavam pela região, em rotas que iam

entre 2000 e 2010. Somente em Floria-

figuras encontradas no pier 16 são es-

da Espanha e Portugal até suas colônias.

nópolis residem 3.566 estrangeiros. Esse

trangeiros e optaram por se adaptar ao

Anos depois, em 1675, o nome de Ilha

fluxo intenso chegou com força à Costa

estilo de vida da comunidade em vez

de Santa Catarina foi dado pelo paulista

da Lagoa. Apenas dois piers, de um total

de realizar uma intervenção na vida dos

Francisco Dias Velho, fundador do povo-

de dezesseis, permanecem com a sua

nativos, inserindo hábitos e costumes

ado de Nossa Senhora do Desterro, anos

maioria de moradores nativos da Ilha.

diferentes. Pessoas de outros países, de

depois, rebatizada Florianópolis. Um povoado que cresceu pelo esforço

outros estados e nativos formam a rede O mercado imobiliário percebeu essa

de moradores presentes no dia a dia da

transição e abraçou a Costa para seu

comunidade.

Povoado que cresceu com esforço, a Costa da Lagoa hoje agrega moradores de diferentes lugares (Foto: Bruno Bach Albornoz)

79


uma comunidade política

Vida coletiva a partir de um sistema de idéias para a transformação social

POR BRUNA TOMASELLI

Um grupo de indivíduos com algo

de cada indivíduo dentro deles. Um exemplo é a Costa da Lagoa, lo-

em comum, seja nacionalidade, ideologia, religião ou trabalho, que lhes

A política de comunidade reconhece

calizada na orla oeste da Lagoa da

permite identificar-se uns com os ou-

que a sociedade em si está em cons-

Conceição, na capital catarinense.

tros. Esse é o significado de comuni-

tante mudança, e que o propósito da

Comunidade onde a grande maioria

dade. Comunidade política: não ape-

organização política e social é o de

dos moradores se conhece, onde há

nas uma técnica para a conquista de

permitir que a mudança seja contro-

comida fresca em abundância e onde

eleições autárquicas, mas um sistema

lada de forma deliberada e democra-

todos se reúnem para ajudar a uns

de ideias para a transformação social.

ticamente.

aos outros.

Comunidade política não é local. É universal. Trata-se do seu exercício de poder dos coletivos. Uma comunidade política não se limita à tomada de decisões “políticas” no âmbito das estruturas de governo. Também não se configura em períodos de eleições. As eleições são um ingrediente essencial para o processo de política da comunidade, um elemento necessário e vital na condução dos assuntos sociais, mas não a restringe. Uma sociedade baseada na liberdade também é baseada em responsabilidade e interdependência. As comunidades não são um fim em si. O fim é a qualidade da experiência

80

Volnei tem orgulho de viver na Costa da Lagoa (Foto: Bruna Tomaselli)


orgulho do lugar onde ela vive

Sem perder a essência, comunidade luta para preservar a Costa da Lagoa

POR BRUNA TOMASELLI

Sentado à beira do píer do vigésimo

presidente da Cooperbarcos (Coope-

Tratando-se de uma comunidade que

primeiro ponto da Costa da Lagoa,

rativa dos Barqueiros Autônomos da

sempre teve dificuldades básicas, os

abaixo de nuvens carregadas que es-

Costa da Lagoa). Vendo a necessida-

cabos eleitorais são personagens im-

condem os últimos raios do sol que já

de de melhorias na comunidade onde

portantes dentro da Costa. Para os

estava se pondo, ao som de algumas

mora, ele se candidata a presidente da

habitantes, o cabo eleitoral personi-

ultimas garças que ainda não haviam

associação de moradores da Costa da

fica o indivíduo que tem força para

se molhado com os leves pingos de

Lagoa , uma entidade representativa

barganhar junto a políticos a resolu-

chuva… encontra-se um homem mo-

capaz de promover a administração e

ção de seus problemas individuais e

reno, usando um casaco em cima da

a articulação entre poderes constituí-

coletivos.

regata branca. Um nem tão típico pes-

dos dentro e fora da comunidade. De

cador ou um nem tão clássico manezi-

três em três anos, quando ocorre uma

Em um mundo de contrastes, a loca-

nho de Florianópolis.

eleição, uma urna é levada até a comu-

lidade da Costa da Lagoa encontra-se

nidade, mesmo se há, muitas vezes,

em uma situação medianeira, dividi-

apenas uma chapa concorrendo.

da entre o que foi o passado e o que

A simplicidade não disfarça sua essên-

poderá ser o futuro. A manutenção

cia. Volnei Valdir de Andrade, 42 anos, nativo de Florianópolis, eterno mora-

Em uma comunidade onde 80% dos

dos indivíduos e das famílias ainda

dor da Costa da Lagoa. Nascido e cria-

habitantes são nativos, o povo local é

depende das condições do meio em

do às margens da Lagoa da Conceição,

acostumado com o som do motor dos

que vivem. Por isso, a comunidade em

Vaninho, como é conhecido por todos,

barcos. Para sair do local, ou eles ou

si se autorrepresenta, com uma irre-

é o líder comunitário, representa os

o caminho, arranhado, usado, pedre-

dutível vontade de independência e

aproximados 1600 habitantes da Cos-

goso das trilhas que circundam toda

autoafirmação. A Costa da Lagoa tem

ta. Ostenta no peito erguido o orgulho

a Costa. Os moradores querem e an-

seu jeito “mané” de viver e ver as coi-

de viver à beira da Lagoa. E agradece

seiam por melhorias, por progresso.

sas, crescer sem deixar de vestir sua

a Deus.

“A gente está em um lugar muito bom

história. “Assim como meu vô ensinou

para viver; a gente quer melhorar nos-

a meu pai, eu ensino a minha filha a

O homem que carrega a função de

sa qualidade de vida, mas sem perder

ter orgulho da Costa da Lagoa”, diz o

“cuidar” dos mais diversos assuntos da

a essência”, sintetiza Volnei, o porta

pescador que fala em nome dessa co-

sua comunidade foi, por cinco anos,

voz da comunidade.

munidade.

81


cultura que desafia a lei

Farra do boi teima em permanecer viva nas tradições açorianas

POR BRUNA NICOLETTI

nacional.

Desde a antiguidade, os povos medi-

necessidade de povoar o sul do país,

terrâneos acreditam que o boi é um

seriam os colonizadores de Desterro e

elemento que traz fertilidade e prospe-

acabariam por implementar definitiva-

A matéria, publicada no jornal O Globo,

ridade. O tempo foi passando e as tradi-

mente a prática nos solos guaranis.

no período da semana santa de 1986,

cionais festas se espalharam por parte

enfatizava as atrocidades cometidas

da Europa. Fazer brincadeiras com o

contra o animal, e descrevia de forma

animal resistiu ao tempo e às mudanças sociais. A modernidade e a urbanização avançaram desordenadamente em direção ao campo, e isso incluiu a Ilha de Santa Catarina. Na cidade, tudo muda. Novos moradores de todos os cantos do país e turistas de todas as partes do mundo provocaram um inevitável choque de

Boi xucro era procurado para protagonizar brincadeiras e comemorar o retorno dos pescadores

chocante os “seres humanos” que faziam dele um “Judas”. Graças a isso, todos os olhos voltaram-se para os chamados “monstros de Santa Catarina”. Os jornalistas e artistas, que, em sua maioria, nunca haviam presenciado a farra, publicaram e repudiaram essa tradição. Muitas cartas foram mandadas ao Governador do Estado, Pedro Ivo Campos, exigindo a proibição desta manifestação cultural.

culturas. Apesar disso, os manezinhos, que durante muito tempo viveram em

Para os imigrantes açorianos, a farra do

uma redoma, não deixaram a cultura de

boi não passava de um evento prazero-

Páscoa, natal, semana santa. Todas as

seus antepassados açorianos de lado.

so, mas como os turistas entenderiam

datas comemorativas, épocas quando

isso? Como os novos moradores dei-

os pescadores retornavam para suas

Antes de chegar ao Brasil, a farra do boi

xariam ‘seus filhos andar na rua, se um

casas, após um longo período no mar,

ou boi em campo atracou nos Açores

animal “desgovernado” poderia estar à

pescando para obter o sustento dos

com os portugueses, que iniciavam as

solta? A partir daí, iniciaram-se as dis-

que os aguardavam ansiosamente em

grandes navegações e a época dos mo-

cussões contra a prática, que tomaram

suas casas. Assim que eles aportavam,

nopólios. A brincadeira acabou se tor-

maior corpo quando a jornalista blu-

a festa começava. Logo iam atrás de um

nando comum entre os nativos dessa

menauense Urda Alice Klueger fez uma

boi xucro para protagonizar a brinca-

região, que mais tarde, movidos pela

denúncia em um jornal de circulação

deira. Enquanto este ficava preso com

82


água e comida à vista, porém fora de

mente a luta para se esquivar dos cor-

reinicia a busca por novos bois “bons de

seu alcance para aumentar a revolta do

tes e pancadas que o atingem de todos

farra”.

animal, os moradores se espalhavam

os lados, e continua correndo, sem se

pelas ruelas e bares, juntando pessoas

importar com quem estiver à frente. O

de todas as gerações e famílias em uma

“brinquedo” simplesmente não aguen-

única festa.

ta mais.

Devido a toda essa repercussão, os

Tanto o livro A farra do boi — Palavras,

naturalistas iniciaram intensos deba-

Sentidos, Ficções, de Maria Bernadete

tes com base na Declaração Universal

Ramos Flores, como o documentário

dos Direitos dos Animais da UNES-

Farra do boi, de Zeca Pires, mostram a

CO, segundo a qual “todos os animais

violência com que a polícia passou a re-

nasceram iguais diante da vida e com

preender os farristas após a criação da

direitos de existência e que nenhum

lei proibindo a farra do boi em todo o

animal será submetido a maus tratos e

estado. Segundo eles, ao mesmo tempo

atos cruéis.” Então, quem seriam os ho-

em que se advogava a defesa da ordem

mens para se sentir no direito de en-

e dos direitos dos animais, os direitos

curralar, furar os olhos, cortar e matar

humanos eram deixados de lado com

cruelmente um animal indefeso? Mas,

os atos de violência contra pessoas. O

ao mesmo tempo, não seria hipocri-

exemplo que tomou mais repercussão

sia de uma sociedade frigorífica, que

ocorreu na cidade de Governador Cel-

Segundo

criou uma linha de produção de ani-

so Ramos (Ganchos) e ficou conhecido

Edward B. Tylor, cultura é “todo aquele

mais criados para morrer, reificados e

como o episódio de Ganchos, quando

complexo que inclui o conhecimento,

expostos em prateleiras de supermer-

na Semana Santa de 1988, a polícia e a

as crenças, a arte, a moral, a lei, os cos-

cado como produtos, julgar um ato

comunidade se enfrentaram em uma

tumes e todos os outros hábitos e capa-

trazido pelos colonizadores do litoral

verdadeira “batalha”.

cidades adquiridos pelo homem como

A farra do boi é um mero elemento da cultura açoriana, que foi perdendo carecterísticas com o tempo por força da modernidade e da indústria cultural o

antropólogo

britânico

membro da sociedade”. A farra do boi

catarinense? Mesmo assim, a farra continua, durante

é um mero elemento da cultura açoria-

Então, o boi começa a ser perseguido

toda a noite e dias a fio, e apenas quan-

na, que foi se descaracterizando com o

pela pequena multidão de pescadores,

do os homens não aguentam mais é

tempo por força da modernidade e da

muitos deles estimulados pelo álcool,

que o animal tem descanso. O que res-

indústria cultural. A marginalização da

crianças muitas vezes bem pequenas e

ta do evento singular são farristas or-

cultura manezinha ocorreu de tal forma

mulheres. Sem saber para onde ir, dian-

gulhosamente exaustos após desafiar

que rendeiras, boi de mamão, pescado-

te de tamanho desespero, ele se atira

o boi e saírem ilesos, rastros que se de-

res, ratoeira, benzedeiras, terno de reis

ao mar, na esperança de que essa dor

senharam nas areias que beiram o mar

entre outras tantas expressões da cultu-

acabe de uma vez por todas. Mas não,

e nos caminhos calçados da comunida-

ra popular, são encontradas apenas em

os farristas não deixam que o animal

de, e finalmente ele, que depois de tan-

redutos como a Costa da Lagoa. Após à

escape e vão ao seu encalce dentro da

to divertir os conterrâneos é dividido

travessia inicia-se então a Florianópolis

água até fazê-lo sair novamente para a

entre a comunidade ou é vendido a um

urbanizada e estratificada como hoje é

terra. Mesmo exausto, ele inicia nova-

preço menor que o da compra. Então se

conhecida mundialmente.

83


a vida pelas mãos de um pescador

Uma relação de afeto entre o parteiro e o amanhecer

POR BRUNA DE MORAES SILVA

Ah, esses amanheceres na Costa da La-

ram a paixão deste senhor. Ele, a esposa,

comigo. Uma recepção 5 estrelas. O que

goa! Parecem tão únicos que beiram ao

os filhos e os amigos. Nada mais importa,

falta em muitos lugares belos pelos cinco

nascimento do mundo, mas para o pesca-

a não ser a paz de viver no bairro onde o

continentes, sobra pela Costa da Lagoa:

dor Manoel, são 70 anos de uma relação

café passado é fresco, onde a brisa é gos-

Simpatia.

de intimidade. Entre futuro e passado, sua

tosa mesmo no inverno. A paisagem e as

fala se enche de afeto, realização e tradi-

relações acaloradas pelos “bom-dia” que

Assim é Seu Manoel Cabral, com 74 anos,

ção. Pescarias de manhã cedinho ou na

se houve a cada esquina, a cada ruela,

parteiro dos quatro filhos. A simplicidade

calada da noite, sob a luz da lua ou sob o

de um vizinho ou parente, tornam o seu

da esposa ao explicar o motivo de o mari-

clarão do sol: Manoel esteve sempre pes-

bairro singular e curioso para quem está

do ter feito seus partos evidencia o quão

cando alegria com sua rede na Lagoa.

acostumado às ruas das cidades cheias de

adaptados eles estão com o que: “Se um

pessoas e tão vazias de acolhimento.

filho ia nascer ele era obrigado a ter o

Como diria o escritor Antoine de Sain-

filho, até porque a embarcação era bem

t-Exupéry, no conto O Pequeno Príncipe:

Pontos turísticos europeus e australianos

difícil”, disse ela como quem fala impondo

“Você é responsável por tudo que cati-

me lembram o que enxerguei quando saí

algo, como se desse uma breve lição de

vas”. Manoel sabe disso e, coincidente-

do trapiche do Rio Vermelho em direção

casa para Manoel, do tipo: “Ai dele se não

mente, como o Pequeno Príncipe, tem o

ao refúgio da Costa da Lagoa. O lugar

me ajudasse!”.

seu mundinho único com flores que rega

lembra alguns cartões postais daquelas

há quatro, cinco décadas e revigora, a

cidades praianas. Ao olhar de longe, casas

Praticamente uma enciclopédia viva, o

cada lembrança contada, a cada atitude

coloridas, rochas e montanhas — quanto

pescador apaixonado pela família e pela

lembrada.

mais o barco se aproxima, mais o verde

única mulher que teve na vida, a quem

do mato e das árvores ganha tons, assim

orgulhosamente afirma “aquela é a mi-

Foi seu caráter de homem de família que

como a igreja de frente para o mar estilo

nha coroa” e aponta o dedo indicador em

o fez ser exemplo para quem mais im-

açoriana, as escadarias e as casas ganha-

direção a senhora logo ali a sorrir. Assim

porta: a esposa e os quatro filhos. Todos

vam pequenos diversos detalhes. Logo

é Cabral. Tudo o que parece tão distante

formados em faculdades, mas antes, to-

ao descer da embarcação em um dos

e acompanhado pela água ainda de obs-

dos amados. São os frutos pescados na

pontos que dividem o bairro, um garoto,

táculo é celebrado por ele como um pro-

Lagoa que alimentaram essa história. São

por volta de 16 anos, soube ser educado

blema pequeno, que faz parte da vida e

os raios desses amanheceres que aquece-

o suficiente e excessivamente simpático

do sorriso largo.

84


AlĂŠm da famĂ­lia, os moradores tem o prazer de estar onde a

85

brisa ĂŠ gostosa mesmo no inverno. Foto: Tiago Bento


girando com os ponteiros do sol

Aqui o tic-tac vale menos que do outro lado da Lagoa

POR BRUNA DE MORAES SILVA

Sem querer meus olhos batem no

meus olhos não param um segundo.

tensamente como pé na água ou na

relógio, mas não enxergo que horas

A água embaixo dos meus pés e a

areia, onde só se chega com os pró-

são, pois meu inconsciente não está

paisagem das sandálias havaianas

prios pés, pelos caminhos de terra,

disposto a pensar nas frações que

vestindo as meias. Me sinto na sala

ou de barco, pelo fluxo das águas.

dividem o tempo. No meu pequeno

de estar de minha casa, porém são

mundo, procurando entender sobre

seis horas da manhã. Dificilmente

Uso uma regata e sinto a brisa fria

os povos que habitam este planeta,

eu estaria na sala a esta hora! Es-

que dá graça aos pelinhos arrepia-

compreendo que aqui o tic-tac vale

pecialmente hoje fugimos da cama

dos dos meus braços. Pareço um

menos que do outro lado da Lagoa.

para ver o espetáculo colorido e

porco espinho na ventania da ma-

À diferença da cidade, aqui as conta-

gratuito que o sol proporciona para

nhã. Meus olhos aproveitam os últi-

gens acontecem com o pulsar do co-

todos os viventes. A imensidão do

mos quase vinte minutos sem cegar,

ração. Na calmaria das ondas, sinto

amanhecer do trapiche da Costa da

pois a estrela solar indescritivel-

a liberdade e sacio com meus olhos

Lagoa nos fez esquecer o relógio, o

mente começa a brilhar surgindo no

o cenário que ocupa toda a minha

aparelho de televisão, a internet e

fundo desse quadro que admiramos

atividade mental. Sinto os segundos

todas as telas.

ou melhor, dessa obra de arte viva! O céu com a cor laranja, tão satura-

em paz e lentamente. Um trapiche tocando a lagoa e um banco velho e

Um barco cruza na perpendicu-

da quanto a cor amarela, a vermelha

simpático revela a madeira por bai-

lar —  o utro se afasta, o caminho for-

e a azul formam um dégradé já roti-

xo da tinta branca descascada. Mes-

ma um x na água; o formato de letra

neiro para os habitantes. Porém eu

clado como um dálmata, ora branco,

fica abstrato e o “x” logo é engolido

faço aquela expressão de encanta-

ora marrom, seu encosto é meigo e

pelas pequenas ondas. Os barqui-

mento com um suspiro barulhento e

confortável, como um abraço queri-

nhos típicos da Costa somem no

abro um bocão arregalando os olhos

do.

horizonte parecendo até mesmo ser

em câmera lenta para reverenciar o

abocanhados pelos raios de sol. As-

show natural que compartilho com

Balanço os pés devagarinho e o

sim começa a vida neste lugar onde

meus amigos.

vento arrasta uma mecha do meu

o tempo não gira como os ponteiros

cabelo para os meus lábios entrea-

do relógio. Gira com o nascer do sol,

Nas minhas costas também há um

bertos. Minha boca está imóvel, mas

horas contadas ou não, vividas in-

rancho. Esse eu não sinto como o

86


Arte viva, o amanhecer na Costa da Lagoa. (Foto: Bruna de Moraes Silva)

vento, mas ali, foi onde tomei o meu

nheceu e preciso despertar, princi-

assistir o espetáculo do amanhecer

primeiro gole de café passado na

palmente da preguiça espoleta que

está tomando café da manhã junto.

Costa da Lagoa. Me sinto incrivel-

brinca, com frequência, dentro de

Uma energia boa toma conta das

mente bem nesses dois dias aqui e

mim. O lugar é rústico, a mesa de

pessoas ali, não sei se é o café re-

consigo enfim entender o porquê

madeira e os bancos fofos aconche-

cém passado, ou simplesmente uma

algumas pessoas vivem há quase um

gantes. Me jogo em um dos bancos!

sensação gostosa de viver algo inex-

século e sentem —  s e lisonjeados no

Alguns dos meus amigos comem bo-

plicável como aquele nascer do sol,

passar da vida entre os dormir e os

lachinhas caseiras, outros bolinhos

juntos. Apenas degustei o esquen-

acordar aqui neste bairro o qual re-

de chuva adormecidos feitos pela

tar dos meus dedos frios na xícara

sume suas existências.

Dona Bete na noite anterior. O clima

de café, o aroma e o gosto daquela

de galera é muito bom. Gosto muito

delícia escura líquida bastou, afinal

Quero mais é um café no rancho

do acolhimento de experiências no-

já estava saciada pelo sol que vi nas-

da Dona Bete. Agora o dia já ama-

vas. Todo mundo que acordou para

cer, na hora em que o dia clareou.

87


Desigualdade no privilégio a forasteiros

Mansões surgem onde só havia ranchos de pesca

POR BEATRIZ WAGNER DA ROCHA

A saída do barco do porto da Lagoa pro-

não são as famílias tradicionais da Costa,

to embora a desatenção em outras ques-

porciona uma visão ampla do que está

mas quem vem depois. Principalmente se

tões os incomode, os viventes da Costa

por vir. O extraordinário cenário da Costa.

é alguém com influencia financeira e polí-

da Lagoa buscam se organizar e trabalhar

De longe pode-se perceber o estilo aço-

tica na Grande Florianópolis.

da melhor maneira possível para estabe-

riano desenhado nas casas e restaurantes.

lecer o nível de igualdade de todos — é

Ao que parece, tudo anda em pé de igual-

O que se conta é o seguinte: áreas de pre-

como se os forasteiros não fizessem parte

dade. Mas a primeira impressão não é a

servação permanente são alteradas pela

daquele corpo social. É como se os seus

que fica. Passando pelas trilhas que cor-

legislação do município para o favoreci-

luxos fossem alheios aos demais.

tam o bairro, a conversa com moradores

mento dos chamados “amigos do rei”, o

logo revela que uns são mais iguais que

que é muito comum na capital catarinen-

Embora alguns dos habitantes sazonais

os outros.

se, enquanto os moradores e donos de

da Costa ainda façam questão de parti-

restaurantes, quando necessitam de re-

cipar ativamente da vida comunitária,

A diferenciação feita por órgãos públicos

formas e pequenos ajustes nas estruturas

outros se fazem indiferentes ao que acon-

a locais e a forasteiros é gritante quando

de seus negócios e residências, esbarram

tece ao seu redor, mantendo-se isolados

se trata de construir e modificar casas na

nos encargos da lei.

em suas mansões, acessando o local ape-

região. Ao contrário do que o leitor pode

Nota-se que tal distinção não afeta pro-

nas para o seu bel prazer e ignorando a

pensar, os privilegiados nessa história

fundamente a vida da comunidade, mui-

cultura local.

Poucos possuem o privilégio de construir casas com essa dimensão na Costa da Lagoa (Foto: Beatriz Wagner da Rocha)

88


o visitante que chega de helicóptero

Poucas vezes visto, publicitário construiu uma casa tipicamente açoriana

POR BEATRIZ WAGNER DA ROCHA

Tentar fazer as vezes de Gay Talese e ela-

formas: barco ou trilha. Exceto para Wil-

amigos — grandes personalidades da mí-

borar um perfil de alguém ligado à Costa

fredo, que tem uma maneira exclusiva de

dia, políticos nacionais e internacionais,

da Lagoa a partir de depoimento e infor-

chegar ao local. Suas entradas na região

jogadores de futebol e globais  —  que

mações colhidas sem ter acesso ao perfi-

são marcadas para os moradores primei-

também frequentam a casa têm conhe-

lado nunca pareceu um desafio fácil. Mas

ramente pelo medo. O fato de o homem

cimento da cultura e acontecimentos do

quando o personagem do qual se propõe

de negócios chegar em seu helicóptero

bucólico vilarejo.

a falar não costuma ser visto na comuni-

já o diferencia dos demais habitantes do

Barrado pela legislação vigente, os planos

dade, não há método mais indicado do

bairro e causa espanto porque evoca os

do empresário de construir uma pousa-

que o de Talese, que fez o célebre perfil

resgates aos turistas acidentados nas ca-

da tiveram de ser abandonados. O mes-

de Frank Sinatra cercando-o por todos os

choeiras da região que é feito da mesma

mo aconteceu com a ideia de uma via

lados, sem conseguir entrevistá-lo.

maneira. O barulho das hélices do veículo

que ligasse diretamente Ratones à Cos-

dirige o olhar de todos para o céu, mas ao

ta. Atravessar uma área de preservação

Sobrinho dos donos da empresa Tramon-

perceberem a intensa movimentação de

permanente não foi possível para esse

tina, Wilfredo Gomes possui uma casa

aeronaves, logo tomam consciência de

Midas da publicidade. Porém, engana-se

tipicamente açoriana no bairro do leste

que o bon vivant encontra-se no local.

quem pensa que a área foi mantida intacta durante a reforma do imóvel. Segundo

da ilha de Santa Catarina. A casa em si, é aparentemente simples, quando vista

Sua presença é indiferente, tanto por pas-

relatos, muitas árvores foram derrubadas

de modo isolado, mas não é difícil perce-

sar pouco tempo na comunidade quanto

dando lugar ao verde gramado que se ex-

ber a magnitude do imóvel, que agrega,

por não interagir com os que nela vivem,

pande por todo o terreno. Pelo visto, não

além da residência do publicitário, uma

como relata um morador: “Ele vem, faz a

é só na maneira de acessar a região que

outra habitação para hóspedes, um deck

festa dele e vai embora”. Tampouco seus

Wilfredo se difere dos demais moradores.

particular e um gazebo estrategicamente construído no alto do terreno de 60 hectares. Um carrinho de golfe oferece transporte às visitas que têm alguma dificuldade para acessar a moradia.

O acesso à Costa da Lagoa é feito de duas

Nem todos desfrutam da vida em comunidade (Foto: Beatriz Wagner da Rocha)

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o pé de valsa da costa

Pescador por profissão, dançarino nas horas vagas e amante pela vida

POR ANDREZA MARTINS CÂNDIDO

Aproximei-me desse ator “costense” para

Nativo da Costa da Lagoa, Seu Adão nun-

como pescador, saía de casa em julho e

saber sobre sua participação no filme A

ca pensou em ir embora. O máximo que

voltava em dezembro. Dona Maria, com

Antropóloga, gravado na Costa da Lagoa,

ficou longe foi o tempo que passou no

sete filhos pequenos, comprava fiado na

mas obtive muito mais. Seu Adão aparece

mar, pescando. Viveu o tempo em que

vendinha. A conta era paga só quando ele

logo no início do filme, com uma gaiola

ainda não havia eletricidade na Costa. “A

voltava. “Se o dinheiro desse, se não des-

nas mãos, na fila para entrar num barco

mulher esquentava a água na cozinha, e

se, só quando voltasse da outra pescaria.

que ia rumo à Costa. Mesmo com parti-

o banho era de caneca”, e as refeições ilu-

Na pesca é assim, um dia tem peixe no

cipação curta, acompanhou de perto as

minadas com velas.

outro não”.

produção com carinho, apesar de ter dito

Amante de sua rotina, aproveita cada pe-

Já venceu um câncer e agora tira de letra

que se fosse para aparecer mais do que

dacinho desse dia que passa sem pressa.

o problema na coluna, praticando pilates

apareceu, não aceitaria.

O primeiro café do dia é ao lado da espo-

durante a semana. “No primeiro dia tava

sa. Preenche suas manhãs com a pesca

todo quebrado, mas depois pra mim virou

Pescador na profissão, dançarino nas horas

leve, na beirinha da Lagoa, que às vezes

uma brincadeira”. Para os dias da semana

vagas e amante por toda a vida. Conheci

é feita dentro de algum dos barcos anco-

que não tem pilates, comprou uma bola e

em Seu Adão um homem que, aos 69 anos,

rados. Depois do almoço, curte a lomba

alonga de casa mesmo. No domingo cru-

vive com paixão o dia a dia da comunida-

gostosa que é completada com a soneca

zei com ele todo perfumado e pomposo.

de. Alto e esbelto, é sofisticado no seu jei-

revigorante. A tarde é de preguiça, “passa

Era dia de bailão. Valsa, bolero, xote, esse

to de andar. Cabelos penteados para trás,

devagarinho”, e a noite, antes do jantar

bailarino dança. Tem dias que ele vai até

volta e meia trazia o pente às mãos para

com dona Maria, uma passada no bar,

Santo Amaro da Imperatriz, pega barco,

mantê-los no lugar. Casado com Maria

para uma conversa com os velhos ami-

pega carona e vai bailar.

Ana há 48 anos, Adão João Sálvio prepara

gos, colegas de pescaria e vizinhos de

e leva o café da esposa na cama todos os

comunidade.

gravações. Guarda o filme que ganhou da

Esse encontro, o último que tive com Adão, foi também meu último dia na Costa. Nes-

dias. Por motivos de saúde, a esposa quase não sai de casa. Fala dela com delicadeza e

Nem sempre Adão foi pescador. Já tra-

se encontro breve perguntei para onde ele

doçura, compõe poemas para ela, mostra

balhou na lavoura, plantando mandioca,

ia tão elegante, e ele me disse que era dia

a sabedoria de um autodidata, que fez da

feijão, milho. Pela falta de retorno com as

de baile. Sorriso solto de meninão, se des-

vida uma faculdade.

plantações, ingressou e ficou na pesca. Já

pediu e foi esperar o próximo barco.

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O pescador e dançarino arrumando as redes para mais

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uma pesca leve Foto: Andreza Martins Cândido


histórias da costa em “a antropóloga”

A comunidade no imaginário cinematográfico nacional

POR ANDREZA MARTINS CÂNDIDO

Primeira ou sétima filha de um casal

num local com uma faixa terrestre

do tempo que o diretor morou na co-

sem varões, as bruxas, como rezam

tão pequena. Mas o diretor insistiu:

munidade.

as lendas, se reúnem em madruga-

“Quis fazer lá, a voz, o sotaque, o lu-

das de lua cheia, atacam pescadores

gar. Isso aí imprime uma diferença. A

Zeca deixou claro que desde o início

e bailam dentro de tarrafas de pes-

Costa tem uma cor especial”.

havia medo de gerar incômodo de-

caria. A Antropóloga, filme lançado

masiado aos moradores. Mas na hora

no dia 29 de abril de 2011 em todo

da convivência, muitos se mostraram

território nacional, explora a magia

participativos e dispostos a ajudar

e a cultura açorianas ainda vivas na Ilha de Santa Catarina. Inspirado na obra de Franklin Cascaes, um grande estudioso da cultura local, o filme aproxima o público das tão temidas bruxas do imaginário ilhéu.

“O tempo para a comunidade é outro; não existe pressa”

no que era preciso. Indagado sobre qual o maior diferencial do lugar, não pensou duas vezes: “O tempo para a comunidade é outro; não existe pressa”. O longa-metragem esteve entre os 15 filmes selecionados que concor-

Foram 11 anos de projeto e nove para que se tornasse viável financei-

Para que o filme se tornasse viável na

reram à vaga para representar o Ci-

ramente. Desde o início, Zeca Nunes

Costa, toda a equipe se hospedou lá

nema Brasileiro na Premiação do

Pires, diretor do longa-metragem,

durante 45 dias. O elenco e a produ-

OSCAR 2012. Pela primeira vez um

idealizou que as gravações teriam

ção inteira fizeram uma imersão lite-

filme catarinense entrou na disputa.

como cenário a Costa da Lagoa, co-

ral na comunidade, inserindo-se no

Quando Zeca Pires retornou à Cos-

munidade

açoriana,

seu cotidiano. Foram alugadas 12 ca-

ta da Lagoa para apresentar a obra,

onde morou durante um ano antes

sas para os integrantes, e seis barcos

surpreendeu-se com a eloquente

do início das filmagens. A ideia não

que passaram a ser camarim, meio

torcida da comunidade pelo Os-

foi bem aceita pelos outros integran-

de transporte, além de depósito para

car. Seu trabalho foi recebido com

tes da produção do filme sob a alega-

guardar os equipamentos. Houve um

os parabéns pelo resultado e muita

ção de que não seria nada fácil cons-

grande apoio e paciência da comuni-

animação para que o filme vencesse

truir um ambiente cinematográfico

dade, segundo Zeca Pires, em função

a competição. “Assim que estreou,

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tipicamente


levei pra comunidade. Estava todo

há morador que não tenha alguma

senhoras nativas da Costa da Lagoa;

mundo convidado. Os barcos ficaram

lembrança da estadia da equipe na

tudo está pulsante na memória desse

um mês fazendo transporte de pas-

comunidade ou que não tenha as-

povo. Os moradores, em geral, viram

sageiros com banners do filme”.

sistido ao filme. O barco de Pedro,

no filme uma forma de dar visibilida-

o lobisomem, destruído pelas bru-

de ao lugar, para que seja lembrado

A Antropóloga acabou ficando fora

xas, a brava luta da portuguesa Malu

por suas belezas, mas também por

da disputa, mas permanece tatuado

contra a mãe-bruxa de Carolina, e os

sua ainda praticada pesca artesanal,

na história do povo da Costa. Não

ricos diálogos documentais com as

por seu povo e por suas crendices.

Zeca Pires, idealizador e diretor do filme A Antropóloga (Foto: Cláudio Silva)

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“Poder conciliar a primeira experiência com a reportagem em um lugar como esse foi mágico”

“Trouxemos conosco novas amizades que serão inesquecíveis. A todos o nosso muito obrigado!”

Vinícius Marinho Flausino

Rafaella Moraes



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