Histórias Pequenas da Vida Cotidiana

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POVOS DO MAR

HISTÓRIAS PEQUENAS DA VIDA COTIDIANA

CURSO DE JORNALISMO UNISUL - PEDRA BRANCA

PRIMEIRO CICLO DE ESTUDOS TÉCNICAS JORNALÍSTICAS

PALHOÇA-SC / 2013


! JORNAL-LABORATÓRIO! HISTÓRIAS PEQUENAS!

! Curso de Jornalismo! !

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA CAMPUS GRANDE FLORIANÓPOLIS UNIDADE PEDRA BRANCA

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Primeiro Ciclo de Estudos TÉCNICAS JORNALÍSTICAS!

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Professores! Daniela Germann Giovanna Flores Helena Santos Neto Jaci Rocha Gonçalves Luciano Bitencourt Raquel Wandelli

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Colaboradores! Vitor Gneco Paulo Henrique

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Estudantes! Alexandre Mustafá Silveira Evelyn Santos Isadora Satie Leandro Lima Leonardo Santos Manoela Nascimento Mariana Smânia Pablo Mingoti

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Parceiros! Programa Revitalizando Culturas

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Fotos de capa! Mariana Smânia

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Trabalho realizado no primeiro semestre de 2013 PALHOÇA - SC


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Jornal-laboratório e suas narrativas "desinteressantes"

“O ordinário da vida é extraordinário”, escreve Eliane Brum em A Vida que Niguém Vê. E é com “histórias pequenas”, “desimportantes” que o cotidiano se desvela para além de nossa rotina. Mensagem melhor para quem tem o desejo de Jornalismo talvez exista. Mas esta é adequada, cai como uma luva para esta “edição” do jornallaboratório que reúne os trabalhos dos estudantes do primeiro ciclo de estudos em Jornalismo na Universidade do Sul de Santa Catarina – Pedra Branca. Em tecituras ainda experimentais e exploratórias, as relações de produção aqui expressas são uma amostra incipiente de um processo rico em conflitos e incertezas, em afetos e memórias; rico em tudo o que alimenta a construção do conhecimento. Cada peça, cada texto expõe um grau de esforço na medida de cada jornalista-aprendiz. Os estudos empreendidos para resultar no trabalho aqui apresentado tentam compreender os modos de fazer Jornalismo em sua complexidade. Como resultado, os pontos de contato entre o esforço de compreensão e a força de realização revelam o que na aprendizagem há quem não veja: são as “histórias pequenas”, “desinteressantes” que alimentam a formação. Em Histórias Pequenas o cotidiano desvelado é mais o de seus autores que o de seus personagens; é mais o dos jornalistas-aprendizes em seu labor de descoberta e reflexão que o dos atores escolhidos para dar vida às narrativas. O batimento da vida não depende do quanto a percebemos nem do ritmo que imprimimos a ela. Contamos Histórias Pequenas para fazer notar impulsos que teimam, extraordinariamente, em se instalar no campo periférico de visão.


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Foto: Mariana Smania

O homem que aprendeu a ser com o mar ! “O que é a nossa vida perto da eternidade?”, pergunta Luiz Otávio, um homem com espírito de criança e o saber de um experiente pescador

! ! ! Mariana Smania

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! ! Olhos sonhadores de um pescador com alma de menino

Estamos na Enseada do Brito, um dos únicos locais colonizados pelos açorianos no município de Palhoça, Santa Catarina. Ainda encontramos a típica igreja açoriana com apenas uma praça de distância do mar, marca registrada do colonizador. O lugar parece ter se perdido no tempo, com casas construídas pelos fundadores e ruas ainda lajotadas. As horas parecem demorar um pouco mais a passar, pelo som das ondas quebrando na Primeiro Ciclo de Estudos

praia, ou talvez por ser a característica mais marcante da principal atividade econômica da região: a pesca. Não é preciso esperar por muito tempo para avistar um pescador saindo de casa com suas redes ou qualquer outro aparato de pesca. Os barcos ficam todos ancorados de frente para a Igreja, referência antiga da comunidade. De cima da torre principal podemos avistar, em especial, um barco não muito grande, de cor

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vermelha desbotada – talvez um pouco mais puxada para o laranja -, bem próximo da areia. É o barco de Luiz Otávio Martins, figura mais do que conhecida na região. O homem de 43 anos, que acredita na força dos trabalhos em prol do meio ambiente, passou 32 anos dedicando sua vida pessoal e profissional ao mar, tanto praticando quanto fazendo cursos profissionalizantes relacionados à pesca e ao cultivo da ostra. Aprendeu quase tudo o que sabe com o pai, Manoel Nelson Martins, que conhece praticamente todo o litoral brasileiro. Pescador por herança e pescador por opção, fugiu do estudo regular enquanto ainda cursava o Ensino Médio. “Meu professor disse que estávamos estudando para uma vida em escritório. Não era o que eu queria”, declara com um sorriso vitorioso, um sentimento meio inocente, quase infantil. Em uma conversa rápida, o pescador mostra que entende de tudo um pouco, e não somente a respeito da pesca, mas também de coisas simples, sobre as quais as pessoas costumam complicar. Instigado a pensar sobre o que é a vida, Luiz Otávio mergulha na sinceridade de seus olhos. Com a testa franzida e a voz um pouco alterada, quase num apelo para que as pessoas entendam de uma vez por todas o que pensa, responde: “A vida é uma passagem muito curta por este planeta. O que é a nossa vida perto da eternidade? Uma árvore, que todos dizem não pensar, vive mais de 200 anos, e nós temos apenas 80, 100… É muito pouco! Imagina ainda ficar estressado, na fila, no trânsito, dentro do ônibus, cuidando da vida do outros. Deixar de viver a sua própria vida para ficar escravo do dinheiro; ganhar dinheiro, bastante dinheiro. No final, todo mundo é carregado lá para a comunidade dos pés junto, atrás da igreja, do mesmo jeito”. Com cursos profissionalizantes nas áreas de saneamento ambiental, manutenção em motores marítimos, ostreicultura e mitilicultura (cultivo industrial de mexilhão), Luiz Primeiro Ciclo de Estudos

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Otávio não tem medo ao dizer que deixou formações convencionais para trás e focou sua vida no trabalho com a natureza. “As pessoas costumam esconder essas coisas, mas eu tenho orgulho”, afirma ao dizer que tem todos esses cursos em seu currículo de trabalho. Currículo este que teve de estruturar assim que se candidatou a diretor da Casa da Cultura na Enseada de Brito. A Casa da Cultura da região é algo de muito valor para o experiente pescador. Com olhos apertados e sobrancelhas quase juntas, queixa-se da falta de cursos como entralhe de tarrafas, componente fundamental na cultura pesqueira. E é com detalhes neste sentido que Luiz Otávio mais se preocupa. A busca pela manutenção da cultura açoriana está presente em todas as suas falas. O sotaque manezinho marcado, e a fala simples parecem não se importar em caracterizar o discurso muito bem estruturado e todo o saber nele presente. Luiz fala como quem quer compartilhar o máximo de informações possível com qualquer um que se predisponha a ouvir suas aventuras e conhecimento acumulado. Os olhos num tom castanho claro, emoldurados por algumas rugas causadas pelo tempo, transbordam a paixão pela vida calma e rica em histórias. A paixão pela família é algo que aparenta querer esconder, mas o sorriso de canto sempre acaba surgindo toda vez que fala de como a esposa ajuda na estrutura de seu currículo. Enquanto andava pela areia molhada, falando sobre as algas cor de rosa grudadas em sua rede, o pescador diz ter como sonho de consumo um veleiro oceânico ancorado na Baia da Enseada. No mesmo momento, comenta a sorte de um americano por ter ganhado uma bolada num desses sorteios de lotérica. O olhar baixa, não como alguém que acaba de ser derrotado, mas como alguém que ainda tem muitos sonhos a se concretizarem.

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Foto: Alexandre Mustafá da Silveira

De Macacu dos macacos à Enseada dos Mariscos !

O homem que descobriu a maneira mais inteligente e econômica de cultivar marisco do litoral brasileiro

Alexandre Mustafá Silveira

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Martinho: “o conhecimento é pra todos, não só pra mim"

Em certo dia, na década de 30, em certo lugar à beira mar, berçário de macacos, conhecido como Macacu, nasce uma criança. Nesse lugar paradisíaco, com dunas de areia fina e branca, de mata atlântica intocável, essa criança vai aprendendo com seus pais a luta do trabalho na roça da mandioca. Criando algumas cabeças de gado e pequenos animais para a sobrevivência, aprendendo a pescaria e os conhecimentos que é preciso ter do mar, do clima e do tempo: assim cresceu Martinho Ladislau de Souza. Macacu, lugar distante, com caminho de estrada de boi, aberto a picadas, dista a seis quilômetros do distrito de Garopaba. Hoje o lugar de Primeiro Ciclo de Estudos

turismo, com pousadas, hotéis e diversidade de restaurantes, recebe até 50 mil turistas na temporada. Será que esse senhor de fala mansa, contador de histórias, de poucos cabelos, vestido com roupas simples, com a bainha das calças dobradas para não molhar, se acostumaria no agito de Macacu? Não. Ele está é na sua Enseada de Brito, lugar de silêncio quase absoluto. A escola ficava a seis quilômetros de sua casa e só funcionava em horário noturno. O menino teve que aprender sozinho como viver do mar e da roça e abandonou a escola. Mas a vontade de estudar era grande, e resolveu atendê-la, estudando a vida, os conhecimentos e a experiência que os

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mais velhos passam de gerações em gerações. A falta, em vez de paralisá-lo, abriu um caminho para a filosofia de vida de seu Martinho. O trabalho era árduo na roça de mandioca, descascando as raízes para fazer a farinha, cuidando das criações, pescando após as tarefas, sua primeira tarrafa foi entralada quando tinha dez anos. O jovem Martinho teceu-a com as conchas do “caramujo” tiradas do mar, no lugar do chumbo, pois não havia chegado o chumbo ainda lá pelas bandas de Macacu. Durante 25 anos, essa foi a vida do adolescente, já tonando-se homem. Aos poucos, aquele sinhozinho carismático e falante, desenvolvia novos conhecimentos sobre a vida, em especial com os mais velhos. Trabalhando muito na pesca, sempre escutando e respeitando os pais, os avós e os mais velhos, Martinho fez do mundo a sua escola. Certo dia, após quebrar as costelas em um acidente na prensa da mandioca, pensou: “Chega da roça, vou trabalhar de empregado, nem que seja para ganhar somente quinhentos réis”. Assim largou Macacu e veio para a cidade , onde ficou 23 anos abrindo estrada como funcionário do DNER, exercendo uma tarefa ainda mais pesada do que a da roça. “Oh quirido, era muitcho trabaio pesado, mas essa é a vida”. A vida puxava-o novamente para a beiramar. Então, após se aposentar, voltou às raízes, não na roça e sim ao mar. O lugar escolhido foi a Enseada de Brito, uma colônia de açorianos, pescadores e de grande fé. Foi nessa comunidade que começou a transmitir seus ensinamentos para seus 14 filhos, 65 netos, 70 bisnetos e dois tataranetos. Não mais Macacu dos macacos, mas a Enseada dos mariscos, um lugar onde conquistou a tranquilidade financeira, para criar sua família. Tornou-se o segundo a cultivar o molusco na região, com o incentivo da Epagri, Ibama e UFSC. O início foi difícil: tinha grande perda de mariscos com a maneira como era feito o cultivo, através de redes que não aguentavam o peso do molusco. Foi então que o sinhozinho miúdo da Enseada, sem os ensinamentos de uma sala de aula, mas com os aprendizados da vida, achou a maneira ideal e Primeiro Ciclo de Estudos

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correta para o cultivo dos moluscos que até hoje está sendo usada por todo Brasil. Descobriu que colocando uma corda dentro do canudo de PVC, onde a semente do marisco se agarra, não há mais perda. E essa invenção ficou só para o seu próprio uso?, pergunto. “Não senhori , o conhecimento é pra todos, não só pra mim”. Sempre tentando aprender mais, foi levado pela Associação de Maricultores a um curso sobre o cultivo na cidade de Bombinhas, onde escutou do palestrante : “Quem não sabe ler, não vai poder falar ou perguntar”. Entretanto, seu Martinho precisava indagar como conhecer a semente do marisco. Só sabia que ela era do tamanho de um grão de areia, que vinha naturalmente pela água ou se depositava na beira dos costões. Aproveitou o horário do café, para agir: “Qui tali, qui tali… fui dando lado, lado, até todos saírem”. Aí pode finalmente questionar o palestrante: “Como é a semente do marisco?”. Em resposta, o homem disse apenas que o líquido vermelho que o marisco lança na água é o seu sêmen. Seu Martinho nunca acreditou totalmente na explicação e sempre teve vontade de comprar um “aquari” para colocar a água vermelha e esperar os 30 dias necessários para ver a semente crescer. Seu Martinho é “homem de pensamento”, contador de histórias engraçadas e animadas. Suas decepções foram apagadas pelo tempo. Ficaram as memórias marcadas da época de criança e as lembranças especiais da esposa, de quem nunca se esqueceu. Perdeu-a no dia em que comemorariam 65 anos de casados. A criança de Macacu, hoje Martinho pescador e maricultor da Enseada de Brito é uma referência na comunidade a quem todos consideram: “É pessoa pura”, dizem. Questionado sobre a vida, fala como se estivesse no céu ou em qualquer parte ao mesmo tempo. Fala de forma simples: “A vida foi muito boa para mim, me dou com Deus e com todo mundo”. Transmite uma sabedoria que não vem dos bancos da escola, mas dos caminhos da roça aberta a picadas, das ruas descalças e das águas do mar. Como um bordão, sempre repete: “Meu fio, ocês têm que escutar os mais véios, aprendê que eles têm pa falá… Os novos não credita nos mais véios, eles se escondi deles”.

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Foto: Mariana Smania

Um homem no seu lugar Ailton aprendeu a profissão de pescador com o pai e construiu a vida no mar Manoela Nascimento

Nascer no dia de finados não era uma boa ideia, segundo o escrivão do cartório. Então assim, por pura crendice, o menino Ailton Caetano dos Santos foi registrado não no dia de defunto, que era aquele dois de novembro, mas no dia de todos os santos, primeiro de novembro de 1961. Desde então, uma vida inteira se passou com os pés dentro d’água da enseada que parece ter moldado a personalidade desse filho do mar que sobrevive da pesca. Da infância Ailton traz as lembranças do que aprontava com os amigos ao caçar passarinho e subir nos pés de árvores frutíferas. “Lembra, Duduga, nós com a funda atirando nos bem-te-vi?”, cutuca o amigo Luís Otávio, chamando-o pelo apelido de infância. Quando seu pai e mãe saiam para pescar, o menino ficava na casa da vizinha, que cuidava dele e dos seis irmãos. Foi o único que seguiu os passos na lida com o mar. “Eu tenho um irmão que não é bem certo das ideia. Mas assim, pouca coisa! Hoje, ele já ta bem melhor, nem dá pra perceber. Só eu virei pescador; os outros não sabem nada [de pescaria].” O pai até que sabia pescar, mas quem realmente ensinou a profissão de Ailton quando ainda era um jovem foi Olegário da Silva. Deficiente visual, exigia certa paciência nas atividades de pesca, o que certamente não representou para o aprendiz uma grande dificuldade. Hoje, tem um barco, dois hectares de fazenda de marisco, que chama de “marisqueira”, e seu rancho de frente ao mar. Seu? “Não, nosso!”, ele me corrige. Dele e do filho, que não quis ser pescador, mas que herdará a pequena propriedade. Ailton sai para o mar quando tem que comer e na volta vende o peixe para os Primeiro Ciclo de Estudos

“De vez em quando eu pego o barco e vou até a ponta do morro, onde a baía se abre para o mar, e vejo o sol nascendo”

atravessadores ou para os moradores, na praça da Enseada. O jeito contido com que o pescador fala de si mesmo se transforma quando o assunto é o seu ofício: aí ele fica expansivo, gesticula, domina a conversa. Formado no mar, com o fazer diário, Ailton repete muitas vezes a expressão “eu quero crer” quando aborda a questão da reprodução dos mariscos ou o sumiço dos peixes perto da costa, por exemplo. Não é cientista, mas sabe de m e t e o ro l o g i a e c o r re n t e s m a r í t i m a s . S e u conhecimento vem do que foi transmitido durante gerações. Enseada de Brito, bairro de Palhoça, é uma das localidades de Santa Catarina com maior influência cultural da herança açoriana. O meio faz o homem: com a fé originalmente católica, Ailton preza o rito da missa e participa dos festejos da igreja. Quando questionado se a cultura de festas religiosas e devoção aos santos está se perdendo, o fiel de Nossa Senhora de Lourdes entristece a face e diz: “Não vai se deixar perder; é muito bonito pra acabar”. Poucos têm a sorte de Ailton: aliar sua forma de sustento ao lazer. “Nem sempre conto isso, mas quando tenho oportunidade, de vez em quando eu pego o barco e vou até a ponta do morro, onde a baía se abre para o mar, e vejo o sol nascendo de lá. Imagina aquele vermelhão refletido na água, o sol saindo por detrás do morro. É a coisa mais linda desse mundo!”. Entendi então que a maior riqueza do homem é também a do lugar.

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Talento de pescador, disciplina de empresário

Flávio fez do Pontal seu escritório e cenário da maior fazenda de pesca da região

1991, foi desafiado por técnicos do governo a implantar uma fazenda de mexilhões a partir de sementes fornecidas pela Universidade Federal de Santa Catarina e com assistência da Epagri, (Empresa Estadual de Pesquisa Agrícola). Ele topou, e a mudança deu certo. Zé Tucano plantava marisco com a mesma técnica que se planta tomate, com Foto: Divulgação/Marpesc bambus trançados. Vislumbrando que ali haveria um bom futuro, sogro e genro foram em busca de tecnologias para melhorar as condições de trabalho na maricultura. Nessa época, Flávio atuava como diretor de Maricultura da Prefeitura de Palhoça, chegando a participar da VII Feira Internacional de Aquicultura, em Puerto Montt, no Chile.

União da engenhosidade do sogro na plantação de mariscos e da experiência administrativa de Flávio Martins resultou no sucesso empresarial de duas famílias Evelyn Santos

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Remanso tranquilo de clima agradável, a Praia do Pontal é paragem de barcos, onde predomina o cultivo de mariscos. Morador desse remanso, Flávio Martins foi, há 20 anos, um forte comerciante. Nessa época, era dono de um supermercado, localizado na avenida São Cristóvão, em Palhoça. Administrava seu comércio com ajuda de familiares, pais e irmãos e, mais à frente, também com ajuda da noiva, hoje esposa. Por algum tempo, Flávio manteve o comércio, porém, anos depois, resolveu mudar de ramo e fazer da praia seu novo escritório. Já casado, começou a entrar nos negócios da família da mulher, os Souza, pioneiros da maricultura na cidade de Palhoça. “Seu” Zé Tucano, pai de Néia, ia mal na pesca quando, em Primeiro Ciclo de Estudos

No embalo dessa união de famílias e de investimentos, surge a ideia de promover a Marifest, uma festa que até 2010 ocorria em todo o mês de novembro, na Enseada de Brito. A festa se tornou um espaço para abrigar a verdadeira cultura açoriana e resgatar a importância do cultivo do marisco para a economia do município. Reunindo cultura, gastronomia, dança música, bailes, o evento era realizado com ajuda da prefeitura de Palhoça, mas por falta de incentivo a Marifest parou na sexta edição. Com o intuito de agregar valor ao marisco, a dupla cria então a Marpesc, a maior “aquifazenda” do Pontal de Palhoça. Dirigida hoje por Flavio e Néia, sua esposa e filha de Zé Tucano, a empresa familiar responde por um décimo da produção de mexilhões de Palhoça. Gera 23 empregos diretos e mais de 200 empregos indiretos, com a maioria ocupada por

trabalhadores da própria comunidade. Hoje, aos 33 anos, Flávio espera que a filha, Ana, cuide da fábrica no futuro, quando ele se aposentar. Aos sete anos, a menina já o ajuda no escritório. Muito focado na empresa, considera-se uma pessoa feliz, que faz o que gosta. Trabalhando em frente ao mar, não vê seu futuro em outro lugar a não ser a maricultura.

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Mulher, pescadora, empresária e contadora de histórias !

! ! Entre pescarias e lembranças da infância, Sidnéia prepara os quitutes do mar que seduzem e sustentam a família

Pablo Mingoti

! ! O vento movia as folhas das palmeiras na praia. Apontando para o mar iluminado pelas estrelas, Sidnéia Dilma Souza se lembra das suas histórias de vida. Histórias recheadas de Primeiro Ciclo de Estudos

Foto: Pablo Mingoti

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Pratos do mar com gosto de aventura

mistérios e cenas marcantes, desde “causos” contados pela avó, até assaltantes tentando invadir sua casa. Mulher, filha de pescador, aprendeu, observando os pais e avós, a valorizar toda cultura que se produz na vida em torno do mar.

Nascida em Santo Amaro da Imperatriz, Santa Catarina, ela adotou a Praia do Pontal como moradia fixa. Debruçada no balaústre da varanda, olhando pescadores, instantaneamente lembra algumas histórias da infância que viveu nas águas do Pontal. “Uma vez fomos pescar em família e tinha um canal com lama, que atola. Com os movimentos bruscos das ondas, vários caíram do barco e ficaram atolados. Foi sufocante”, narra Néia, como costumam chamá-la.

Olha novamente os pescadores, que naquele momento voltavam da pesca e recorda de mais cenas da infância. Quando criança, adorava os “causos” que contados pela avó,

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com que aprendeu a pescar. Deitada na cama, sua avó costumava narrar histórias evolvendo fantasmas em busca de baús enterrados, bruxas que sugam sangue de bebês e homens endiabrados pelo demônio. Quando terminava a narração, os olhos da menina já estavam fechados.

O sabor da convivência com a avó e os pais é uma das sensações que a remetem à infância. Na beira da praia, sua avó pescava berbigões e colocava os moluscos comestíveis em um balaio. Enquanto brincava em torno do balaio, ela e a prima acabaram por derrubá-lo e levaram um longo sermão da velhinha. Certa noite, Néia foi ajudar o pai a pescar, mas não queria molhar os pés, pois estava só de pijama e meia. Quando decidiu se aproximar e pegar o peixe, o animal pulou de sua mão e voltou saltitando para a água, desaparecendo para sempre no fundo do oceano. “Meu pai ficou furioso”, comenta.

Hoje, com 34 anos, Sidnéia conta como se apaixonou pelo marido Flávio Martins, em Santo Amaro. Passeando com uma amiga, viu o moço, achou-o “bonitinho” e decidiu ir atrás. “Foi amor a primeira vista”. Com o casamento, nasceu Ana Flávia, o que uniu ainda mais o casal. Sidnéia fica muito tempo na cozinha produzindo empanados para a empresa da família, a MarPesc. Seus dias ficaram corridos por causa do trabalho, mas, apesar do esforço, tem muito orgulho do que faz e ainda coleciona histórias para contar.

Grande apreciadora dos almoços em família e das práticas de cozinha, Néia aprendeu com a mãe todas as receitas que prepara na cozinha da Marpesc: camarão empanado, ostra gratinada, sopa de peixe e bolinho de bacalhau. Adora encontrar os vizinhos na comunidade pequena, típica de interior para uma comilança. Néia se lembra de quando o Pontal tinha um clube onde famosos Primeiro Ciclo de Estudos

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se apresentavam: o clube Catira. Quando o local de eventos fechou, ela até gostou, pois adora ouvir o barulho do mar, “ouvir a calmaria”, como diz. Recorda muito de tempestades na região. “Quando o morro do Cambirela fica com o chapéu [nuvem] é uma correria dos pescadores saindo do mar, porque quando venta, derruba o barco”.

Mesmo morando em um local pacato, Néia se lembra de quando assaltantes tentaram invadir a sua casa no Pontal em uma madrugada. “Eram dois e quando abri o blecaute da janela, vi um homem com capuz. O estranho é que eles falavam o nome do Flávio, inventando que queriam comprar sementes de mariscos. Quando começaram a chutar a porta, liguei para a vizinha, que gritava de medo ao ver o que ocorria. Ainda bem que a polícia chegou logo, mas eles tinham fugido. Não tínhamos nem R$ 30,00 em casa”, explica com o olhar trêmulo ao lembrar o ocorrido. Outro fato marcante na região foi quando um cano estourou e alagou o pontal. Ela se lembra de quando ligaram três cachoeiras em uma para abastecer as casas da comunidade e o cano estourou, abrindo uma vala que alagou tudo. “Eu só ficava em casa assoprando para a água não entrar”.

Depois da agradável prosa, Sidnéia olha para a lua que ressurge por de trás das nuvens e recorda as palavras de seu pai sobre o astro. “Ele diz que quando a lua empinar significa que o vento vai mudar”. Ao ver o astro, também revelou que ele é responsável pela saída de um caranguejo das águas. O caranguejo azul, segundo descreve, parece uma aranha de longe e de vez em quando aparece no Pontal. “A gente leva um susto quando o vê no muro”, comenta. Termina a conversa com uma filosofia muito simples: “Para mim, viver é tudo. Eu gosto de viver”.

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O Marisqueiro dos brilhantes !

Foto: Alexandre Mustafá da Silveira

Luis Borges Gouveia já foi um homem de muitas posses, que ganhou dinheiro com diamantes. Hoje opta pela vida simples de maricultor

! Leonardo Santos

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Luis Borges conta os caminhos que o levaram dos quilates e brilhantes para os quilos e moluscos

Dentre os povos e pescadores da Enseada de Brito, em Palhoça, um deles já foi “pescador de diamantes”. Após perder as ambições no ramo das pedras preciosas, Luis Borges Gouveia entrou para a maricultura. Como duas profissões tão distintas se encontraram na vida de um mesmo homem? “Bem, temos que voltar muito atrás no tempo para entender essa história…”, ele avisa, em um convite para entrar em uma aventura de sonhos e pesadelos.

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Aos quatro anos, o garoto Luis perdeu a mãe e acabou sendo criado no município de Franca, em São Paulo, pela avó, com quem ficou até os 18 anos. Foi quando partiu rumo a Ribeirão Preto, onde conheceu a moça com quem se casou. Em 1969, seus caminhos de ambição passaram por Itumbiara e, em quatro anos, já havia adquirido um avião, fazenda e agropecuária. Contratou com auxílio de seu amigo comandante Rolim, os trabalhos de uma empresa de aviação em combate agrícola. “Ali eu tive uma grande ascensão financeira, até sofrer um golpe”, comenta Luís. Em 17 de

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outubro de 1978, o piloto do avião da empresa aplicou um golpe na firma avaliado em mais de R$ 4 milhões e desapareceu do mapa. Os olhos de Luís mostram que este dia ainda está bem vivo em sua lembrança. Foram nove meses de procura a esse homem foragido, antes que eles voltassem a se encontrar. Por uma coincidência cinematográfica, o carro de um bateu no de outro. Ambos foram parar na delegacia, onde Luis e o piloto selaram acordo de que em 20 dias o dinheiro seria devolvido. Em 21 dias, o piloto apareceu com o valor de R$ 5,5 milhões e quitou sua dívida financeira. Com o dinheiro recuperado, voltou para Franca, onde reencontrou um amigo de infância, que era diamantário. Juntos foram para o Mato Grosso lidar com esse comércio de pepitas. Passados quatro meses, já tinha juntado R$ 17 milhões às custas do ambicioso trabalho. Acabou criando um grande interesse pelos diamantes e adquiriu algumas pedras. Nessa época, seu amigo viajou para comercializar uma peça bastante valiosa, mas a Guerra das Malvinas estourou, obrigando-o a retornar sem concluir a venda. Então, Luis adquiriu a pedra e mais tarde trocou-a por alguns terrenos, duas casas, uma caminhonete e ainda R$ 2 milhões. “Comecei a vender os diamantes trazidos da África do Sul, só que em quatro meses já havia levado o desfalque de R$ 12 mil dólares em cheques sem fundo”. Foi aí que resolveu desistir do ramo e abrir uma loja para a esposa. E como o senhor se tornou maricultor?, pergunto: “É aqui que entra a última parte da história sobre a minha chegada à maricultura”, diz Luís, com o cuidado de revelar o mistério por partes. Em 1988, comprou o fundo de estoque de uma distribuidora de roupas em São José, já em fase falimentar. “Resolvi adquiri-los como uma complementação para a loja da minha esposa”, explica. Entretanto, após algum tempo, recebeu uma carta precatória para depor em São José. Internado no hospital, em coma por complicações da diabete, não pode comparecer à delegacia e nem foi informado sobre a correspondência. Quando tudo se estabilizou, um delegado apareceu em Primeiro Ciclo de Estudos

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sua casa, cobrando-lhe explicações e forçandoo a regressar a São José. Ficou algum tempo hospedado na cidade e acabou gostando: “Um lugar diferente, agradável, gostei e fui recebido de forma tão calorosa, que resolvi ficar,” explica Luis. Com o problema resolvido, hospedou-se na Enseada do Brito. Logo comprou um barco e ancorou na baía em frente à morada que mais tarde se tornou sua. O primeiro morador que Luis Borges conheceu foi Luis Otávio, com quem se iniciou na pescaria. Depois montaram suas próprias marisqueiras. Luis Borges passava sempre por dentro do terreno em frente do qual seu barco estava ancorado e fazia um pedido a Deus para que um dia, se possível, a casa fosse sua. Em poucos dias, a mulher que nela morava veio conversar com ele. “Sou de Porto Alegre e estou sem emprego, tenho quatro filhos e muita vontade de voltar para minha terra”. Luis se disponibilizou a assumir os cuidados da casa e em troca pagaria as despesas do retorno dela, era só acordar com o dono da residência. Em 15 dias tudo estava resolvido. Passaram-se sete anos, até que o dono da propriedade ligou para Luís contando que sua esposa havia falecido e ele não retornaria à Enseada. Pediu então a Luis que avaliasse o preço da propriedade e visse como poderia pagar a compra. “A gente tem que ter a crença para acreditar numa coisa dessas. Isso só pode ser de Deus, porque do ser humano não é”, conclui. Essa história ocorreu há 22 anos e hoje o Senhor Luís Borges Gouveia está com 64. Ele adquiriu a propriedade que desejava e nela viveu feliz. Seus problemas com a diabete e a hipertensão são amenizados com a pesca: “O trabalho é que me dá continuidade de vida; se não trabalho, estou resolvendo problema financeiro, de casa, de saúde e das pessoas que trabalham comigo”, justifica o homem. E onde e quando serão suas próximas aventuras?, pergunto. “Daqui só vou pra lá!”, ele responde, apontando para o céu.

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Foto: Alexandre Mustafá da Silveira

Vila de pescadores é refúgio de historiador e museólogo

Berço de risonha formosura, espalhando uma cultura sem vaidade: Enseada do Brito.

!

para o mar, encontramos Gelci José Coelho,

A história de uma das três freguesias mais antigas de Santa Catarina atraiu Peninha à Enseada do Brito

mais conhecido como Peninha, historiador e museólogo formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, hoje morador e grande entusiasta da cultura e da natureza dessa localidade.

Natural da cidade de São Pedro de

Alcântara, localizada a 15 km da grande Florianópolis, mudou-se com sua família aos

Leandro Lima

quatro anos de idade para o litoral de São José,

!

onde passou grande parte da vida. Trabalhou mais de 30 anos na UFSC, muitos deles

Lugar encantado, Enseada do Brito é

dedicados à diretoria do museu da instituição.

berço da história açoriana em Palhoça e terra

Foi coroado em 2012 com a medalha cultural

de gente simples. Bairro que representa 75%

Cruz e Souza, “algo que me honrou muito”,

do território municipal e tem 80% do patrimônio

comenta. Totalmente integrado à comunidade

natural preservado. Até hoje traz no seu sistema

nativa, ele é o herdeiro do legado de Franklin

de urbanização as lembranças da herança

Cascaes. Logo que chegou ao local, em 2008,

portuguesa, com a preservação da sua Igreja

entrou no ritmo da vida dos pescadores e

em local alto. Em um campo aberto e de frente

aprendeu a amar a comunidade de Enseada do

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Brito, onde mora desde então. Aposentado, 64

de isqueiros, barbeadores e canetas em uma

anos, trabalha no acervo sem pressa para um

parede. “Quando preciso ir ao centro da cidade,

dia mostrar a riqueza cultural desse povo, cuja

apesar de ser complicado, vou de ônibus”,

história muitos catarinenses desconhecem.

emenda.

Quando terminou seu trabalho na

O historiador diz que a comunidade tem

Universidade Federal de Santa Catarina, ele já

umas das maiores heranças do povo açoriano,

tinha um projeto pessoal, que era morar em um

a tradicional festa do Divino Espírito Santo, cujo

lugar pequeno e tranquilo e nesse lugar instalar

grande objetivo é reunir as pessoas e promover

uma casa-biblioteca. Foi a São Pedro de

o encontro das famílias. “Em qualquer parte do

Alcântara, Angelina, São Bonifácio e, depois de

mundo onde vivem, os açorianos instituem o

correr todo o litoral, encontrou uma casa

culto de louvor ao Divino, uma festa de muita

histórica para comprar. Construída pelos

importância, porque é a própria comunidade

açorianos entre os anos de 1750 e 1800, a

que realiza”, valoriza. Além disso, salienta que o

construção já foi escola, salão

povo açoriano vive um

de baile e ainda guarda muitas

calendário cultural intenso,

histórias assustadoras. Tem

que começa em dezembro,

um porão alto que servia de

preparando o Natal, e vai até

senzala e abrigava escravos,

novembro no dia de finados.

segundo o povo diz. E o povo

assombrada. Ainda hoje,

ainda o deixa triste é a falta

acredita-se que todas as sextas feiras, às seis horas da tarde, as janelas se fecham e a cadeira de balanço se mexe sozinha. Uma vez palestrando para as crianças na escola da

Foto: Divulgação/Internet

fala também que a casa é mal

Uma das coisas que

de hábito da maioria do povo de ir visitar museus, exposições de arte, a própria casa da cultura. “Estamos perdendo nosso patrimônio histórico e cultural”, lamenta

comunidade, Peninha contou

o h i s t o r i a d o r. “ Te m o s

sobre as lendas. “Elas se

acervos que o povo

arrepiaram de medo e adoraram”, diz ele.

Gelci José Coelho organiza acervo que herdou

desconhece sobre as ocupações humanas nessa região”. Ele se queixa ainda que

H o j e e l e q u e r fi c a r c u r t i n d o ,

poucas pessoas têm acesso ao material

contemplando o cenário da localidade. “A

arqueológico e à própria obra de Franklin

Enseada do Brito proporciona tudo isso de

Cascaes, apesar de ser um patrimônio público.

fantástico: acordo cedo, abro a porta e tenho

“Esperamos que essa mentalidade mude para

montanhas, campo e mar, tudo a minha frente”,

que um dia tenhamos muita gente interessada

sorri. Ele ainda desfruta de um rico jardim com

em saber sobre nossa cultura, que é muito rica

flores, frutas, cercado de pássaros, seus três

e linda”.

gatos e uma cachorra. Fumante declarado, amante de um bom café, cuida do seu jardim, do seu canteiro de flores, colando sua coleção Primeiro Ciclo de Estudos

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Foto: Mariana Smania

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Pescador por acaso ! Vindos de Buenos Aires, Matias e a companheira pararam na Enseada de Brito por acidente e acabaram fazendo uma nova opção de vida

! Isadora Satie Primeiro Ciclo de Estudos

!

O automóvel que provocou a mudança da família estacionou na Enseada de Brito e não retornou mais para a Argentina

!

De férias com a mulher, três cães e uma Kombi quebrada após uma longa viagem de Buenos Aires. Foi assim que o argentino Matias Gil, de 34 anos, teve de passar uma semana na prainha de águas calmas de Enseada de Brito. Não era bem esse o plano, mas o casal acabou ficando desde 2011. Hoje, reside em um dos morros da Enseada, onde acompanha o crescimento do bebê de seis meses, gerado em uma casinha simples, porém com o luxo de uma vista para o mar na porta de entrada. “Em toda ciudad grande, todo mundo fica triste, a vida passa, você trabalha, no aprecia a vida e fica sem saber o gosto que ela tem. E ter uma criança num lugar como este é um sonho”, valoriza Matias, falando um portunhol bem acentuado. O que era um acidente de percurso provocou uma nova opção de vida para o casal. Ao lado da esposa Isabel, 33 anos, Matias não se incomodou em abandonar a vida na cidade grande de Buenos Aires para respirar todos os dias ares do

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litoral brasileiro. “Meu pensamento é vivir a vida em vez de apenas sobrevivir, no passar por ela só tendo um trabalho, trabalhando das nove às cinco. Acho que isso no é bom”. Ainda ensaiando os passos na profissão de pescador, acha que a vida na cidade é infeliz, chata. “Uma persona que mora na cidade grande no vai decir isso, mas a verdade é esta: o problema da cidade grande é que pra todo mundo acontece a angústia, soledad, a inseguridad.” Não foi somente a natureza praieira que envolveu o estrangeiro. Segundo ele, a comunidade da Enseada foi muito receptiva e procurou ajudá-los dentro do possível, pois dificuldades não faltaram. Atualmente, faz parte da comunidade de pescadores, mas ainda está acostumando as mãos ao manuseio da rede e se sente inexperiente dentro do barco. Embora ouça repetidas vezes um “não, Matias, não é assim!”, ele corrige o erro, corrige outra vez e segue compenetrado na pesca. Mostra uma visível ânsia de aprendizado, amor pela atividade pesqueira e respeito por quem lhe transmite conhecimentos e dá ordens durante o trabalho.

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Foto: Mariana Smania

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O lado financeiro não faz parte de suas prioridades: Matias tem como virtude valorizar as coisas pequenas e simples, pois o mar, uma de suas paixões, é algo imenso. Em pé, no barco, seu olhar viaja por toda a imensidão que o rodeia. Admira o céu e não teme o vento forte em seu rosto. “A idea é ter uma vida aqui no terreno, com minha mulher, meu filho, meus cachorros, minha casa, e trabalhar no mar com pesca artesanal. E estou muito satisfeito, no quero mais que isso”, repete, com seu portunhol. Mudar a vida da cidade para a praia foi um ato corajoso e radical. Matias teve formações e experiências de trabalho distintas na área de administração de empresas, meio ambiente e veterinária. Na Enseada, porém, o argentino apenas vive a realidade que inconscientemente sempre desejou. Envolto por uma natureza viva e calma, segue sua vida de forma otimista e paciente. “O importante é ir devagar, o sonho já está realizado, mas também achamos que do jeito como estamos vivendo e pensando, cosas melhores vão acontecer, Primeiro Ciclo de Estudos

Ser pescador é para Matias uma forma de se conectar com a natureza

uma cosa de cada vez.” Ao longo da profissão, pescadores acumulam sabedoria e, é claro, muitas histórias para contar. Matias já pode começar pela inusitada forma como se tornou pescador e de como uma Kombi quebrou na hora e no lugar certo para fazer a mudança interior que ele e sua companheira procuravam.

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